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III- Dramaturgia Contemporânea 127

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III- Dramaturgia Contempornea

III- Dramaturgia Contempornea1. Notas sobre dramaturgia contemporneaQualquer espectador ou leitor mais assduo de dramaturgia contempornea constata facilmente sua diversidade. Construda segundo as regras do playwriting ou como storyboard de cinema, estruturada em padres de ao e dilogo ou a partir de monlogos justapostos, tratando de problemas atuais de forma realista ou metaforizando grandes temas abstratos, hoje a pea de teatro desafia generalizaes. A diversidade da produo chega a ponto de levar um pesquisador da envergadura de Patrice Pavis a definir o texto teatral pelo critrio elocutrio. Segundo o terico francs, atualmente texto de teatro tudo aquilo que se fala em cena . O que parece um exagero de simplificao encontra eco no encenador americano Richard Schechner, para quem drama tudo que o escritor escreve para a cena, e se ope a script, o roteiro que serve como mapa de uma determinada produo .Parece evidente que essas definies pragmticas resultam dos problemas para distinguir o texto teatral de hoje, quando as fronteiras do drama se alargaram a ponto de incluir romances, poemas, roteiros cinematogrficos e at mesmo fragmentos de falas esparsas, desconexas, usados apenas para pontuar a dramaturgia cnica do diretor ou do ator. Diante dessa situao, no de estranhar que uma das principais tarefas do estudioso do texto teatral contemporneo seja distinguir seu objeto. Pois tudo o que aparecia at o final do sculo XIX como marca inconfundvel do dramtico, como o conflito e a situao, o dilogo e a noo de personagem, torna-se condio prescindvel quando os artistas passam a usar todo tipo de escritura para eventual encenao, na tentativa de responder s exigncias de tema e forma deste final de sculo.Talvez um olhar mais atento possa distinguir nas formas hbridas do texto teatral contemporneo a necessidade de expresso de assuntos que os modelos histricos no conseguem conter. A hiptese reforada pela leitura do j clssico Teoria do drama moderno, de Peter Szondi. A perspicaz anlise de Szondi mostra que a noo a-histrica de texto leva suposio de que uma mesma forma dramtica pode ser usada em qualquer poca, para a construo potica de qualquer assunto. Defensor da posio dialtica, o terico alemo percebe, ao contrrio, uma equivalncia entre forma e contedo, com a forma concebida como uma precipitao do contedo (como quer Adorno), em que a temtica nova funciona como um problema para a antiga moldura formal.Na poca em que escreve, meados da dcada de 50, Szondi constata que as peas compostas com dilogos trocados entre os personagens, como numa conversao quotidiana, so incapazes de expressar as novas contradies da realidade. E localiza a crise da forma dramtica muito antes, por volta de 1880, quando a crescente complexidade das relaes sociais j no cabe no mecanismo do drama absoluto, que se estrutura a partir das relaes intersubjetivas dos personagens. A acomodao forada de Ibsen pea-bem-feita na fase realista, a ruptura de Strindberg por meio da dramaturgia do eu, expressa pelo monodrama e o drama de estaes expressionista, os textos impressionistas de Tchekhov, cujos solitrios protagonistas vivem de memrias e sonhos de futuro, estagnados em um tempo que exclui o presente dramtico, configuram a crise da passagem do sculo, predecessora das vrias tentativas de salvao do drama em um mundo em que a ao humana livre, individual, parece sucumbir ao peso da histria, ao aprisionamento na subjetividade e presena obsessiva da morte.No auge da crise da forma dramtica, o romance parecia estar mais apto a tratar do tema da ao humana individual pressionada por foras externas, ou internas demais, pois dispunha de processos narrativos mais eficazes para representar tanto a subjetividade quanto o mundo moderno e seus mecanismos elaborados, projetando com maior facilidade o processo histrico, o tempo vivido e os abismos da interioridade. No de estranhar que, depois da crise apontada por Szondi, o drama seja cada vez mais contaminado por procedimentos picos e escape lgica intersubjetiva que funda a mimese teatral. A forte presena das tcnicas analticas na construo do texto teatral contemporneo talvez indique que a diegesis seja o modo mais eficaz de representar os estados de coisas a que Benjamin se refere quando analisa o teatro pico brechtiano .A dramaturgia ps-dramtica pode ser considerada uma das etapas mais recentes do texto teatral narrativo. Hans-Thies Lehmann, que cunhou o termo ao analisar as peas de Heiner Mller, observa que no limite essa dramaturgia prescinde do conflito, do dilogo, do personagem e da ao . De fato, o leitor ou o espectador de Mller percebe em seus textos mais radicais um processo de desdramatizao levado a extremos. Quartett, Medeamaterial ou mesmo Hamlet-machine so verdadeiros tratados de argumentao, em que o personagem expe seus enunciados de modo arbitrrio, por meio de longos monlogos que impedem a troca dialgica e imobilizam o desenvolvimento da suposta fbula que, alis, nem chega a ser definida pelo dramaturgo. No caso desse tipo de escritura dramtica, como o assunto no claro e o enredo no existe, o resultado o esmaecimento do contedo, como observa Fredrik Jameson em relao a outro contexto. O procedimento leva diluio relativa do referente histrico, o que Jameson tenta explicar pela incapacidade que o artista contemporneo teria de olhar o presente, um mundo extremamente complexo e cada vez mais difcil de mapear .De qualquer forma, como sucessor de Brecht no Berliner Ensemble, Mller sempre alimentou a contradio entre a forma fragmentria, com potentes descries de imagem, e os traos alusivos aos momentos traumticos da histria alem deste sculo. evidente que o horror nazista e a represso estalinista permanecem como alegoria incmoda em quase todas as suas peas. Mesmo no caso de Quartett, baseada nas relaes perigosas de Choderlos de Laclos, a rubrica inicial sugere um bunker depois da terceira guerra mundial onde se movimentam as figuras movedias de Valmont e Merteuil, trocando constantemente de papel como se fossem meras projees do narrador. Essa identidade frgil fora o espectador ou leitor a olhar os personagens como meras funes de enunciao e no mais como sujeitos com autonomia ficcional suficiente para lhes permitir ser agentes de um conflito dramtico . Corroborando essa impresso, Stephen Watt menciona a subjetividade migratria como caracterstica bsica do drama mais recente, em que a identidade humana marcada em termos de horizontalidade, e se liga a travessias territoriais e ocupaes temporrias de espao, constituindo-se em termos bastante diferentes daqueles que enformam os modelos tradicionais de construo de personagem, mais prximos do aprofundamento vertical .De qualquer forma, Fernando Peixoto considera a posio fronteiria da dramaturgia de Mller como um momento de sntese, pois mostra a firmeza ideolgica revestida de perplexidade e a reflexo consciente sobre o processo histrico, o questionamento do significado e da prtica da revoluo e a discusso do socialismo postos em tenso pelo debate sobre a tica individual . Nesse turbulento espectro temtico, no de estranhar que o conflito seja substitudo pela idia de catstrofe, e em lugar de opor os protagonistas oponha o narrador ao mundo narrado.No aspecto estrutural, pode-se considerar a dramaturgia de Mller como o correlato literrio de um tipo de encenao freqente no princpio dos anos 80, criado especialmente por artistas da vanguarda formalista americana, como Bob Wilson e Richard Foreman, e no caso brasileiro, por Gerald Thomas. Em certo sentido, os textos do autor alemo so a prova de que os dramaturgos no ficaram alheios s modificaes do espetculo contemporneo e parecem ter incorporado ao veculo literrio os procedimentos criados por seus parceiros de cena, redefinindo assim os limites da textualidade dramtica. Certamente no se deve ao acaso a parceria de Heiner Mller com Wilson nas encenaes de Hamlet-machine e Quartett.Michael Vanden Heuvel foi um dos primeiros tericos contemporneos a apontar o forte movimento da dramaturgia do perodo em direo encenao, que agiu como fator de modificao das estruturas textuais. Para Heuvel, esse mecanismo permitiu ao texto incorporar a indeterminao e a disperso caractersticas da performance dos encenadores mencionados, alm de influenci-la, pois os canais dramtico e cnico sempre operaram como interfaces abertas . As peas de Mller seriam um dos exemplos do processo formativo texto/cena deflagrado em conjunto, cujo grande precursor foi Samuel Beckett, e que envolveu outros criadores, como o Wooster Group e Sam Shepard, para mencionar apenas os casos exemplares.

O movimento no novo. Como lembra Anne Uberfeld, a dramaturgia sempre foi escrita contra ou a favor do objeto-teatro a que se dirigia . A forma dramtica, alm de expressar um sentimento de poca, sempre revelou uma prtica cnica, um tipo de desempenho e uma determinada imagem da representao. A qualidade do espao, o estilo de atuao e o modelo de fbula que o teatro estava apto a contar sempre foram fatores determinantes da escritura do dramaturgo. A diferena, sentida numa parcela da dramaturgia recente, que esta aparentemente esqueceu as preocupaes com a ao dramtica, escrita para ser atualizada pelo espetculo. Talvez a resposta dos dramaturgos escritura autoral dos encenadores tenha sido uma dramaturgia no dramtica, sem ao, que em ltima instncia autnoma. Pode ser lida como poema, depoimento ou relato. Nada em sua conformao revela a famosa incompletude literria, os buracos a que Ubersfeld se refere quando destaca a necessria passagem do literrio para o cnico.Talvez o exemplo mais radical dessa dupla autonomia - da escritura dramtica e da escritura cnica - sejam as peas de Heiner Mller supostamente encenadas por Bob Wilson. A verdade que as montagens de Mller por Wilson tinham pouca semelhana com o que se entende por encenar um texto dramtico. O artista americano gravava a ntegra das peas do dramaturgo e as exibia ao pblico como trilha sonora da escritura cnica. Na realidade, o que se via no palco era a justaposio do texto do dramaturgo no espao sonoro e do texto do encenador no espao cnico, literatura e teatralidade justapostas para criar um sentido aberto, que cabia as espectador completar .Talvez essa tenha sido uma das mudanas mais radicais da relao texto/cena no teatro contemporneo. Para entend-la, no preciso voltar discusso sobre a natureza literria ou teatral do texto dramtico. Jiri Veltrusk, terico da escola de Praga, considera a discusso intil. Observa que sem dvida o drama uma obra literria e, enquanto tal, pode ser simplesmente lido ou usado como componente da performance, como faz Bob Wilson com os textos de Mller. A diferena est no tipo de teatro que se pratica e, em ltima instncia, vai determinar a escolha e o uso que se faz do texto. Algumas formas teatrais contemporneas, por exemplo, preferem os textos lricos e narrativos ao drama, pois pretendem que a escritura cnica entre em relao com a literatura como um todo, e no apenas com o gnero dramtico .Richard Schechner retoma, em certo sentido, a discusso de Veltrusk, quando distingue dois tipos de texto de teatro. O texto performtico (performance text) indissocivel da representao e existe apenas enquanto materializao cnica relacionada a outros componentes da escritura teatral. A representao lhe d suporte e coerncia, e apenas como parte dela que pode fazer sentido. Exatamente por isso o texto performtico fragmentado, heterogneo, mltiplo, e seria incoerente tentar analis-lo enquanto obra literria, pois depende dos outros sistemas cnicos para se realizar. verdade que pode ser transcrito, mas apenas como partitura mnima da representao, pois depende da interveno de outros elementos para compor a totalidade da escritura cnica. Schechner ope o texto performtico a algo que chama simplesmente de texto (text), cuja existncia extra cnica considera perfeitamente legtima, pois precede a representao e sobrevive a ela enquanto obra literria autnoma. O encenador americano associa os dois tipos de texto s tradies teatrais do ocidente e do oriente e define o texto performtico recorrendo ao teatro N. O drama N no existe enquanto conjunto de palavras que sero, em seguida, interpretadas pelos atores, mas enquanto um conjunto de palavras inextricavelmente unidas msica, aos gestos, dana, aos diferentes modos de interpretao teatral, aos figurinos. .Partindo da distino de Schechner, Josette Fral procura relativiz-la. Em primeiro lugar, enfatiza a existncia de diferentes tipos de texto performtico, dependendo da natureza e do modo de insero no espetculo. Para Fral, ainda que muitos deles sejam incompletos, fragmentados, heterogneos, sem linha narrativa, e seu sentido no se ligue lgica do discurso literrio mas combinatria de elementos cnicos em meio aos quais so apresentados, outros mantm a linearidade narrativa sem deixar de permitir um discurso cnico mltiplo. A ensasta afirma que, nos dois casos, a constante a dependncia dos textos totalidade da encenao, pois ambos fazem sentido apenas em relao aos elementos da representao com que dialogam. Adotando uma perspectiva histrica, considera o texto e o texto performtico como os dois polos entre os quais a encenao contempornea oscila, com o teatro dos anos 60 e 70 escolhendo de preferncia o segundo como base da representao. Acredita que numerosos encenadores do perodo preferiram trabalhar com textos no criados originariamente para o palco por julgarem que os excertos de romances, poemas ou depoimentos favoreciam uma maior liberdade criativa. Continuando sua anlise, Fral observa que o teatro dos anos 90 retornou ao texto literariamente autnomo, eleito como matriz para a criao dos espetculos. Mas adverte que preciso ver nessa polaridade no uma relao de excluso, que considera empobrecedora, mas antes um movimento de complementaridade. Aproximando-se de Veltrusk, a ensasta sugere que a opo preferencial por um ou outro tipo de texto, ou por ambos, depende de fatores exteriores, como ideologias e estticas dominantes, associados a questes ligadas ao percurso criativo do artista. Ainda que no discorde de Schechner de forma clara, Fral sugere que no a presena ou a ausncia de um texto performtico que vai definir o tipo de encenao. E, pode-se acrescentar, no isso que determina o uso que o encenador faz do texto. So as modalidades de integrao do texto aos outros elementos da representao que permitem dizer a que categoria a encenao pertence e de que forma ela trata o texto, performtico ou no.

Para corroborar suas concluses, Josette Fral cita o encenador canadense Robert Lepage, responsvel pela autoria cnica integral das produes que dirige, quer faa uso de textos ou textos performticos, alternadamente ou de forma simultnea. Menciona como exemplo os espetculos Les Aiguilles et lOpium e Elseneur, considerando este ltimo bastante fiel ao Hamlet de Shakespeare . No caso brasileiro, sem dvida Antunes Filho quem mais se aproxima dessa alternncia, o que pode ser conferido nas montagens de Drcula e Gilgamesh e nas encenaes de Nlson Rodrigues, do Macbeth de Shakespeare (Trono de Sangue) e, mais recentemente, das Troianas de Eurpides (Fragmentos Troianos). Tambm Enrique Diaz faz opo alternada por um ou outro tipo de texto, quando cria A bao a Qu ou encena A Morta e O rei da vela de Oswald de Andrade, sem que isso influencie de forma substancial sua autoria cnica.

As observaes de Veltrusk, Schechner e Fral podem facilitar a mudana do foco de anlise do texto teatral. Pois at bem pouco tempo a funo precpua da pea de teatro era projetar uma ao dramtica que a cena deveria atualizar. Sem dvida foi Raymond Williams quem investigou as etapas decisivas dessa relao. Para definir sua abordagem, Williams vinculou teatral a dramtico, medindo a teatralidade pela capacidade que a literatura teria de criar ao por meio dos dilogos ou de outros recursos disponveis no veculo textual. Ao analisar por esse prisma o desenvolvimento histrico da forma dramtica, constatou mudanas por volta do princpio do sculo, o mesmo perodo em que Szondi localizou a crise. Williams definiu a mudana a partir do momento em que autores dramticos como Tchekhov passaram a escrever textos onde os dilogos se dissociavam da ao e o drama passava a necessitar da encenao para se realizar plenamente. evidente que o texto dramtico sempre precisou do palco para se concretizar, mas o que Williams observa que nas formas dramticas exemplares, como a tragdia grega, as peas medievais e o drama elizabetano, ainda prevalece o padro da fala acionada (acted speech), em que cabe palavra movimentar a ao dramtica. Em virtude de uma conveno implcita nessas formas teatrais, o discurso ainda uma maneira de agir, o que vale inclusive para as normas da dramaturgia clssica. Williams no se cansa de enfatizar que, nesse tipo de dramaturgia, as palavras se encarregam de prescrever aes exatas e por isso o dramaturgo no escreve apenas uma obra literria mas tambm uma encenao, entendida como a comunicao fsica de um trabalho dramaticamente completo . Nesse caso, falar fazer. O logos adquire as funes da praxis e se substitui a ela, como observa Roland Barthes a respeito de Racine.

No entanto, ao analisar A Gaivota, de Tchekhov, Williams constata que os dilogos j no prescrevem aes, transformadas em algo que ele chama de comportamento, em que se consubstancia uma ntida separao entre fala e performance. Agora o texto dramtico no projeta aes, mas uma conversao provvel em que no h relao exata entre a organizao das palavras e o mtodo de fal-las. Nem preciso dizer que a pea de Tchekhov abre espao para uma interpretao sujeita a amplas variaes. As constantes divergncias do dramaturgo com Stanislavski a respeito da montagem de seus textos so mais uma prova da instaurao da polifonia significante a que Bernard Dort se refere quando analisa o teatro contemporneo .Entre outros motivos, para ocupar o espao aberto pelo texto que o encenador comea o lento trabalho de elaborao de uma escritura prpria, iniciando o movimento de justaposio do texto cnico ao dramtico, at que o primeiro adquira plena autonomia. Como observa Williams em outro ensaio, a repetida tenso entre dramaturgos e encenadores, to marcante nesse sculo, caracterstica dos problemas da prpria forma dramtica. Isso fica especialmente claro nos movimentos de reforma literria que, concentrando-se nos problemas da fala dramtica, menosprezaram os problemas bsicos da ao dramtica. Mudar a conveno da fala, mas no a outra conveno, desintegrar uma forma que j tem seus mtodos teatrais, e criar um hiato que a produo forada a preencher .Ao preencher esse hiato, a encenao permitiu dramaturgia completar o percurso de autonomia e de expurgo da ao dramtica a que me referi anteriormente. E, por outro lado, tambm estimulou o movimento paralelo de incorporao da nova materialidade cnica. Nesse caso, a contaminao do drama pela cena contempornea aconteceu especialmente pelo uso de procedimentos literrios que j no pretendiam construir uma ao dramtica para ser atualizada pelo palco. Agora os dramaturgos procuravam incorporar a prpria teatralidade ao texto, na tentativa de apropriar-se de tudo aquilo que na representao especificamente cnico, essa espessura de signos e sensaes que Roland Barthes liga a uma espcie de percepo ecumnica de artifcios sensuais, gestos, tons, distncias, substncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior. .O resultado da apropriao da teatralidade pela dramaturgia mais recente que o texto literrio ganhou novo estatuto. O dramtico ainda se conserva no modo de enunciao, na construo dos dilogos, monlogos ou narrativas e, algumas vezes, no desdobramento dos personagens. Mas a qualidade teatral deixa de ser medida pela capacidade de criar ao. Agora teatral pode ser apenas espacial, visual, expressivo no sentido da projeo de uma cena espetacular. Paradoxalmente, teatral um texto que contm indicaes espao-temporais ou ldicas auto-suficientes. Os textos do dramaturgo francs Bernard-Marie Kolts, por exemplo. interessante observar como em suas peas a circulao da palavra auxilia a construo de estratgias espaciais complexas. Na solido dos campos de algodo uma trans-ao entre traficante e cliente, em que o jogo de ataque e defesa projetado por meio dos movimentos do dilogo. Sem utilizar uma nica rubrica, Kolts consegue sugerir a imobilidade do primeiro e a movimentao do segundo com um motim verbal que se desdobra no ritmo preciso das falas e nas passagens bruscas do discurso altamente retrico linguagem cotidiana. O movimento do traficante em direo ao cliente e o recuo deste, na tentativa dbia de negar e afirmar a inteno de compra, acabam projetando territrios de ao. Jean-Pierre Ryngaert nota, com razo, que essa dana do desejo falada, comentada e realizada no desdobramento da linguagem, de preciso quase manaca, que em ltima instncia quem se encarrega de coreografar a tenso que une e ope as personagens. Nesse percurso, o dilogo no exibe o desejo por meio do sentido das falas - de certa forma, trata-se de um encontro de trajetrias abstratas - mas por intermdio do elaborado sistema espacial que a palavra projeta, dando acesso ao prazer por meio da construo de uma rede imaginria de aproximaes verbais . Como observa Anne Ubersfeld, todo o sistema espao-temporal do texto baseado nas isotopias desse movimento verbal de idas e vindas, que constri uma coreografia repetitiva atravs da recorrncia do mesmo vocabulrio. Pode-se dizer que os argumentos do cliente ressoam nas falas do fregus como gestos, e a alternncia de monlogos fluentes e dilogos lacnicos hibridiza as formas dramtica e pica, ao mesmo tempo que cria, pela alternncia e variao, um intenso ritmo cnico .Michel Vinaver nota que os dilogos de Na solido dos campos de algodo tm qualidade postia e retrica, acentuada pela falta de ligao entre pergunta e resposta. Na verdade, as rplicas infladas so longos monlogos em que cada interlocutor fala at perder o flego, sem que nunca se tenha certeza a quem se dirige. Em lugar de responder, o antagonista geralmente retoma sua fala anterior, compondo um movimento musical de repetio/variao tambm presente em outro texto de Kolts, o Combate de negro e de ces. A situao inicial da pea a de um homem que vem exigir de outro a restituio imediata de um corpo. A diferena de vises de mundo entre Alboury e Horn, o negro e o europeu, so demarcadas atravs dos territrios que as falas projetam quando o primeiro entra no campo do outro para reclamar seu direito. O interessante que Kolts consegue figurar a temtica de oposio entre culturas no eixo espacial projetado pela exuberncia da vegetao tropical (a rubrica do primeiro segmento indica atrs das buganvlias, no crepsculo) oposta ao canteiro de obras. O principal tema da pea exatamente a oscilao entre os territrios demarcados pelo dentro e o fora, o velho e o jovem, o branco e o negro, a Europa e a frica. Pode-se dizer que os principais eixos temticos ligam-se a essa oposio de espaos e, nesse sentido, possvel concluir que a ao dramtica a passagem de um territrio a outro, de uma situao espacial a outra, feita por meio do movimento fsico/verbal dos personagens. Nessa forma de construo dramtica, que Michel Vinaver considera uma pea/paisagem figurada pela aventura da palavra, a temtica se cristaliza na projeo de espaos cnicos conflitantes, territrios inimigos confragrados no passe de armas dos dilogos de rplicas incisivas no tanto pelo contedo semntico mas pela brutalidade fsica que produzem.

No momento em que um autor lana mo desses procedimentos para elaborar seus textos, outras dinmicas de construo dramtica esto em jogo. A atividade da palavra toma o lugar antes reservado progresso da intriga. Dessa forma, o que Kolts concebe uma micro-dramaturgia baseada em estratgias de dilogo feitas de figuras de ataque, de resposta, de esquiva, criando armadilhas que restabelecem uma perspectiva agonstica, desta vez dentro da prpria linguagem .Patrice Pavis v nessa retomada do dilogo um indcio da necessidade de reatar relaes com o outro, mesmo que esse outro seja, como Na solido dos campos de algodo, apenas um reflexo invertido. No combate entre o cliente e o fregus, percebe a vontade de restaurar a dialtica da troca humana e, ao mesmo tempo, a necessidade de fazer com que o outro fale para interpelar o mundo em suas certezas.No entanto, sintomtico que as personagens de Kolts, apesar de estarem sempre em busca dos argumentos do interlocutor, paream question-lo sem esperana de resposta imediata. O que explica que os dilogos patinem nas rplicas infladas, parecendo girar em falso. Segundo Pavis, esse processo mostra a viso de mundo de um artista que perdeu a vontade de explicar ou compreender, como se a questo do sentido, o da obra e o do mundo, tenha se tornado obsoleta. Essa opinio no impede o terico francs de constatar uma forte ligao da dramaturgia francesa contempornea com a realidade, especialmente sensvel nos textos de Kolts, em que a violncia das grandes metrpoles pode explicar em parte a solido existencial e a excluso social das personagens .A mesma violncia e marginalidade reaparecem nos textos do dramaturgo brasileiro Dionsio Neto. O crtico Nlson de S v no artista um estranho hbrido dos diretores Jos Celso Martinez Corra, Gerald Thomas e Antunes Filho, que Dionsio considera o principal responsvel por sua formao . A influncia dos trs encenadores pode explicar a clara incorporao de recursos cnicos a textos que trazem as marcas da teatralidade contempornea tanto nas falas quanto na estrutura narrativa e fragmentria. A par disso, visvel a filiao do dramaturgo ao teatro de Z Celso, de quem empresta a urgncia de ser cronista do tempo. Quero extrair poesia do homem contemporneo, do portugus coloquial, afirma em entrevista recente.

De fato, a violncia da grande cidade brasileira explode no registro do submundo urbano e no tecido social esgarado em cenas terminais, em que marginais e artistas associam a discusso existencial ao crime, s drogas e descrena. o caso de Desembest@i, texto de 1996 que mostra adolescentes praticando crimes macabros, descritos em detalhes que lembram certas passagens do Roberto Zucco de Kolts.Quanto influncia de Thomas, ela visvel em peas como Perptua e sobretudo em Opus Profundum, justaposio de monlogos/performances de trs protagonistas do contemporneo - um fotgrafo, um ator e um apaixonado pela imagem - que vomitam as vises sujas do imaginrio urbano de fim de milnio. A pea-show para atores, cantores e banda de rock tem apenas dois dilogos finais, um deles a entrevista de um reprter com o ator de fama internacional que mal disfara a voz onipresente do dramaturgo. Como nos trabalhos de Thomas, o texto combina essa ostentao da autoria indicao, nas rubricas, de inseres de dana, msica, cinema, mdias eletrnicas e virtuais, artes plsticas e moda, na conexo das muitas referncias do imaginrio do artista.A despeito da incluso dos vrios intertextos da cultura contempornea, o recurso estrutural mais interessante de Opus Profundum o uso sistemtico de sugestes de cena nos monlogos, com indicaes de movimento e projees de gesto contaminando as falas dos personagens. A impresso que se tem a de um dramaturgo que consegue incorporar ao texto literrio procedimentos de atuao experimentados com os grandes diretores de ator com quem trabalhou, como Antunes e Jos Celso. Mas a incorporao dessa dramaturgia do ator no acontece em forma de rubricas, o que em ltima instncia reforaria a dependncia do texto realizao cnica. O que Dionsio parece adotar um modelo textual especfico, semelhante ao de Kolts, capaz de transformar os monlogos em performances de palavra .A partir dessas observaes, fcil concluir que na dramaturgia de Dionsio Neto prepondera o que Franco Ruffini chama de cena do texto. O terico italiano percebe, em qualquer texto de teatro, a convivncia de dois componentes. O texto do texto o elemento rgido, orientado, programado, que diz respeito ao conflito e fbula, e tem como eixo o encadeamento da intriga. A cena do texto, ao contrrio, representada pela personagem e tudo que lhe diz respeito, incluindo as rplicas e micro-situaes que se mantm margem do conflito e da fbula, dando passagem a certa imprevisibilidade e curso livre ao encenador e ao ator . Essa distino permite avaliar como o texto de Dionsio tem pouco a ver com o encadeamento da intriga e a coerncia das aes. E como deve muito simultaneidade, ao ritmo, ao modo de compor as falas e o gesto, projeo do espao, mas tambm aos deslizamentos de sentido, poesia das palavras, s surpresas de construo. primeira vista, no o que acontece com as peas do dramaturgo paulista Fernando Bonassi. Semanticamente fortes, elas tm uma relao imediata, quase selvagem, com o real. O espectador ou leitor atropelado pela pulsao contempornea que explode no longo monlogo de Preso entre ferragens ou nos dilogos tensos e brutais de Um cu de estrelas, romance posteriormente adaptado para cinema e teatro. A narrativa clara torna as peas perfeitamente legveis como obras literrias e mostra um autor que conhece bem a realidade do teatro, mas sabe escrever textos que no dependem do palco para existir. So autnomos enquanto fico e projeo de uma cena imaginria.A linguagem de Bonassi arma de duplo corte que secciona a realidade social de classe mdia baixa e a solido existencial das personagens, o impasse brasileiro e a dissoluo moral do homem contemporneo. Essa duplicidade permite que os efeitos de real, ou de autenticidade, estejam estreitamente associados e se alternem a recursos da mais radical teatralidade. Em Um cu de estrelas , por exemplo, o dramaturgo trabalha de forma aparentemente realista a histria de um desempregado que invade a casa da noiva que o abandonou e comete todo tipo de violncia, para acabar cercado pela polcia. No entanto, esse realismo sediado na Mooca convive com todo tipo de inverossimilhana assumida pelo dramaturgo - a polcia que chega sem ser chamada, o contexto social insuficiente, a frgil personagem da me, que nem nome tem, e reza no banheiro como coro passivo dos protagonistas. visvel que o acento local e a ambientao naturalista interessam ao dramaturgo, mas seu ponto de partida um leitmotiv temtico, geralmente a violncia em todas as formas possveis, incorporado a personagens comuns ou marginalizados.Em As coisas ruins da nossa cabea, Bonassi trabalha a mesma estrutura aparentemente realista, com dilogos plausveis que opem os personagens Lena e Vilela. Mas, como no texto anterior, aos poucos esses seres desajustados e isolados em um bar de estrada na Amaznia (que pelo tom do texto, poderia ser um deserto de Shepard) so colocados em situaes-limite, inverossmeis mas dissimuladas em hiper-realismo. O contraste entre a plausibilidade dos dilogos e o absurdo da situao exposta - o tensionamento da violncia at o limite, sem que se expliquem as razes que levaram a ela - o tratamento de choque que Bonassi aplica forma realista, cujo resultado uma concentrao dramtica que se aproxima da estrutura da tragdia. Tragdia da falta de controle dos personagens sobre a ao que no compreendem e da qual no so sujeitos. Tragdia da impotncia do dramaturgo contemporneo, que no consegue representar as coisas como elas so.

2. A violncia do novo

Talvez se possa olhar a dramaturgia paulista produzida nos ltimos anos no pelo filtro negativo das resenhas de fim de dcada, que teimam em lastimar a falta de textos de teatro, mas sob uma perspectiva de tenso no interior dos modelos tradicionais. O que se nota hoje uma disseminao de novas dramaturgias, que tende a converter-se em experincia generalizada no teatro.

Especialmente nos anos recentes, chama a ateno uma variao sistemtica na criao e na forma das peas, manifesta tanto em exerccios de composio conjunta por dramaturgo, atores e diretor, quanto em movimentos de incorporao da narrativa ao drama e de retomada e adaptao, via palco, de gneros como a novela, o conto, a poesia e, mais recentemente, os textos filosficos, como os dilogos de Plato ou os aforismos de Descartes apresentados no ltimo festival de So Jos do Rio Preto.Essas variaes tm contrapartida na aparente falta de especializao dos dramaturgos mais novos. As constantes passagens do jornalismo para o romance e o conto minimalista, com estgios nos roteiros de cinema, perceptveis na prtica de Fernando Bonassi, por exemplo, parecem provar que os autores do teatro recente so avessos a modelos rgidos e preferem experimentar muitas vias no interior dos processos criativos a que esto ligados. O que talvez possa indicar um exerccio de correspondncias entre dramaturgia, roteiro, prosa e reportagem, ou entre produo teatral, literria e visual. Nesse sentido, Bonassi continua um bom exemplo, especialmente no estilo seco e contundente dos contos curtos, hbridos de drama e narrativa, recentemente encenados por Beth Lopes em So Paulo uma festa, ou nos duelos verbais de Um cu de estrelas, romance posteriormente adaptado para cinema e teatro.Semanticamente fortes, as produes de Bonassi tm uma relao imediata, quase selvagem, com a violncia que explode no Brasil de hoje. Seu realismo cru sinaliza a atrao da dramaturgia recente pelo submundo de marginalizados, prostitutas, policiais corruptos e sub-empregados envolvidos em tragdias de rua da grande cidade. E pelo escrever sucinto e direto, que se impe como modelo de um novo teatro urbano, herdeiro violento dos romances de Rubem Fonseca e dos flagrantes dramticos de Plnio Marcos.Indcios desse procedimento so encontrados sob formas bastante diferentes nos textos dos ltimos anos. Passando pelas incurses teatrais de Patrcia Melo, em Duas mulheres e um cadver, com sua obsesso pelo crime e o tringulo amoroso, pelo embate de professores e alunos de periferia em Vermuth, que Aimar Labaki situa na zona leste paulistana, pela retomada de formas caractersticas do monlogo no Jantar de Luiz Cabral ou pelas releituras da temtica urbana feitas por Bosco Brasil em Atos e omisses, que espelha assustadoramente a invaso do quotidiano mais ntimo pela brutalidade. O mesmo ocorre com Pedro Vicente, na repetio de temas urbanos que expe, de forma urgente e direta, a crueldade das drogas e dos desencontros em Banheiro. Ou os bbados de PromisQuidade, que misturam sexo a planos de ataque terrorista a shopping-centers, reeditando por aqui os serial killers urbanos de Quentin Tarantino e as perversidades de todos os gneros da dramaturgia inglesa de Sarah Kane e Mark Ravenhill. Impulso de expor a violncia de modo casual que persiste em Disk Ofensa linha vermelha, desta vez por meio de um servio de agresses telefnicas. Mas talvez seja Mrio Bortolotto quem mais se aproxime, em Medusa de Rayban, de um hiper-realismo no retrato da classe mdia baixa, assumindo influncias de Charles Bukovski e Sam Shepard, associadas a automatismos de comportamento de assassinos de aluguel, bbados e artistas frustrados, resgatados de um mundo que o dramaturgo conhece bem, e talvez seja o mais prximo do universo dramtico de Plnio Marcos.Por outro lado, um desconforto narrativo parece acompanhar essas dramatizaes da insegurana social e da criminalizao sistemtica das questes pblicas, semelhante ao que Flora Sussekind observa na literatura dos 90. Na dramaturgia de Bonassi, ele bastante visvel na produo de uma espcie de duplicidade no tratamento do tema, capaz de associar efeitos de real, ou de autenticidade, a recursos da mais radical teatralidade. So exemplares desse processo os desdobramentos em Um cu de estrelas, em que o dramaturgo trabalha de forma aparentemente realista a histria do desempregado que invade a casa da ex-noiva para cometer todo tipo de violncia, at acabar cercado pela polcia. A evoluo do roteiro por meio de guinadas propositais de inverossimilhana deixa claro que o que est em jogo a tenso entre o emprego de uma estrutura dramtica linear, compacta, e o exerccio de interrupo do efeito de realidade, como o que orienta a ao da me, que nem nome tem, ou a chegada da polcia sem ser chamada, ou a omisso deliberada de certos elos de ligao do contexto e da trama.Em As coisas ruins da nossa cabea, recentemente filmado por Toni Venturi em Latitude 9o, Bonassi situa a trama aparentemente realista em um bar de estrada na Amaznia. Jogando com dilogos plausveis, aproxima trs personagens de situaes-limite, mas omite os nexos causais da violncia. Esse tratamento de choque aplicado forma realista produz uma sntese dramtica prxima de seus contos minimalistas, ou da concentrao estrutural da tragdia, nesse caso, como no modelo tradicional, atuada por personagens que no compreendem nem so donos de suas aes.

Movimento complementar marca a expresso de Bonassi em Apocalipse 1, 11, escrito para o Teatro da Vertigem de Antonio Arajo. Exemplo da prtica conhecida como processo colaborativo, comum entre os autores de hoje, o texto filtra as vozes heterogneas do grupo numa espcie de roteiro cnico, cruel e potico ao ligar a violenta excluso social brasileira s alegorias do apocalipse bblico, mantendo a tenso enunciativa anterior.

Talvez O livro de J, de Luiz Alberto de Abreu, escrito com o mesmo Teatro da Vertigem, seja precursor dessa dramaturgia de muitas vozes, pautada em quadros autnomos mas interligados pelo protagonista. Apontando para o trabalho de regulao espacial planejado por Arajo no Hospital Humberto I, Abreu organiza o enredo numa trajetria ascensional, que refora a passagem para o final transcendente.Tambm nos textos de Dionsio Neto clara a incorporao de recursos de cena e atuao, talvez como resultado da influncia dos diretores Antunes Filho e Gerald Thomas, com quem trabalhou. A par disso, visvel a filiao do dramaturgo ao teatro de Jos Celso, de quem empresta a urgncia de ser cronista de seu tempo. De fato, a violncia da grande cidade brasileira explode no registro do tecido social esgarado nas cenas de Desembest@i, em que marginais e artistas associam a discusso existencial ao crime, s drogas e descrena, enquanto adolescentes praticam crimes macabros, lembrando certas passagens do Roberto Zucco, de Kolts. Em Opus Profundum, que chegou a oito verses, modificadas no processo de montagem, Dionsio se inspira em Tongues, de Sam Shepard, para criar a estrutura de um show que progride segundo variaes rtmicas, intercalando dana, teatro e msica numa espcie de mbile dramtico, registrado em rubricas. A pea-show para atores, cantores e banda de rock mistura autobiografia a figuras da mdia, msica a monlogos lricos de amor e solido, coreografias de street dance a descries de batida policial, num tensionamento simultneo entre palco e rua. Tanto o desdobramento numa sucesso de quadros independentes, que desmaterializa a trama, quanto a ausncia de qualquer substncia estvel de personagens, transformados nas figuras-clich de Antiga - a milagrosa histria da imagem que perdeu seu heri, caracterizam a proliferao de vozes heterogneas em que se converte a escrita teatral de hoje. Como acontece em NarrAAdor de Rubens Rewald, tambm criado num processo que articula informaes de dramaturgo, diretor, cengrafo, sonoplasta e atores, assimilando rudos e flutuaes ao jogo entre uma personagem cega, de inspirao beckettiana, para quem o mundo uma grande novela radiofnica, e uma narradora que se incumbe da mediao visual. Tanto Dionsio quanto Rewald definem a prtica hbrida, polifnica, da dramaturgia recente, ao trabalhar no cruzamento das variaes de registro, no contraste entre voz e visualidade, mtodo dramtico e forma teatral, acentuando a tenso crtica entre texto e performance.

3. Mostra de dramaturgia

A Mostra de Dramaturgia Contempornea concebida pelo Ncleo Teatro Promscuo permite que o pblico paulista entre em sintonia com a expresso mais recente da realidade brasileira. No por acaso, um primoroso texto de Fernando Bonassi abre o ciclo. Escrito em parceria com Victor Navas, Trs cigarros e a ltima lazanha funciona como sntese da nova dramaturgia, cuja marca mais forte o mergulho na violncia urbana e a fuga dos modelos tradicionais.O estilo seco e contundente dos autores, hbrido de drama e narrativa, molda o longo monlogo do protagonista annimo que lembra o acidentado de Preso entre ferragens, escrito por Bonassi em 1990. A pea um relato distanciado, feito em primeira pessoa, de um narrador que incorpora personagens e situaes descrio do ltimo almoo no restaurante costumeiro, quando cigarro e lazanha so interrompidos por um tiro que lhe decepa a mo. Sem nunca esclarecerem o ocorrido, mantendo a frieza no exame dos fatos, trabalhando com lacunas de informao que nem sequer permitem que o protagonista se pergunte quem atirou e por que, os dramaturgos conseguem recriar o clima de violncia absurda, quase casual, que todo morador de So Paulo conhece bem. A cirurgia providenciada pela junta mdica para implantar no corpo da vtima a mo de um desconhecido uma prtese literal de estranhamento nessa narrativa frentica da rejeio do outro. A direo correta de Dbora Dubois, trabalhando com pontuais intervenes sonoras e luminosas, abre espao para Renato Borghi compor uma emocionada interpretao de cunho realista, que naturaliza o texto. O desenho minucioso das motivaes da personagem e a fala sustentada por subtextos so indicadores precisos de um mtodo de trabalho que d bons resultados, mas neutraliza a estranheza contempornea da pea, providenciando uma capa protetora para a agudeza do depoimento impessoal.

Neutralizado nessa cena, o desconforto narrativo reaparece nos textos seguintes, de Marici Salomo e Leonardo Alkmin, pela intromisso de um dado estranho em histrias aparentemente corriqueiras. Em Remoto Controle, de Alkmin, o distanciamento vem da amnsia inexplicvel da protagonista, que sugere uma impossibilidade de comunicao s vezes explicitada em imagens gastas, como a da gaiola que impede o pssaro de voar. Talvez na tentativa de contornar esse problema, a direo equivocada de Elias Andreato transforma a pea numa chanchada, que no dispensa nem mesmo a proverbial cadeira quase atirada na cabea das atrizes, timas na caricatura, especialmente a hilariante Dbora Duboc.Em O Pelicano o dilogo de surdos de um casal contaminado pela simbologia da ave que rasga o ventre para alimentar os filhos, reflexo invertido da mesquinhez da relao. Na verdade, o tema e a forma da pea falam, mais uma vez, do isolamento e da impossvel solidariedade com o outro. A direo inteligente de Maurcio Paroni de Castro d tratamento cnico temtica ao aprisionar os protagonistas num bunker de intimidade que os isola numa rede de segurana e os distancia da rua, mas no impede a invaso da tragdia urbana. O despojamento das interpretaes de Luah Guimares e lcio Nogueira emociona e d passagem crueza dessa dramaturgia, feita de encomenda para atores que cultivam a tica e a simplicidade.

***No difcil encontrar semelhanas entre Sem Memria e Deve ser do caralho o carnaval em Bonifcio, textos de Pedro Vicente e Mrio Bortolotto apresentados na segunda semana da Mostra de Dramaturgia Contempornea. Em certo sentido, ambos so herdeiros dos romances urbanos de Rubem Fonseca e dos flagrantes dramticos de Plnio Marcos. A diferena que os personagens so de hoje, na maioria de uma gerao entre 20 e 30 anos, o que mantm a violncia temtica mas muda o modo e o tom das peas.Talvez a invaso macia da cultura de massa que os formatou seja responsvel por um protesto no assumido contra a estereotipia da TV e da publicidade, mais evidente no caso de Vicente, que escreve sobre sujeitos adoecidos pela mdia como quem j est completamente infectado. Mostrando a informao invasiva pela tica de quem fruto da invaso, cria uma dramaturgia de superfcie que recusa o aprofundamento e usa uma espcie de sarcasmo blas, cnico quando ri de si mesmo ao exibir a superficialidade, no terrorismo anrquico de PromisQuidade, por exemplo, ou no servio de agresses telefnicas operado por uma mendiga e um casal de empresrios em DiskOfensa Linha Vermelha.Em Sem Memria, a justaposio desses dois mundos sofre interferncia de uma teatralidade estranha, que no distingue real de figurado e mistura cinismo e delrio no personagem do publicitrio Ulysses, que planeja um programa de rdio sobre literatura num coquetel de marketing com a namorada arrivista. O corte acontece quando Ulysses aterrissa, sem maiores explicaes, na misria dos sem-teto sob um viaduto urbano. A travessia dessa cidade sem territrio fixo, que lembra o limbo de Terra Estrangeira, de Walter Salles, revela a identidade frgil do protagonista, uma subjetividade migratria caracterstica da dramaturgia contempornea, em que a construo da personagem se liga a mudanas territoriais e ocupaes provisrias de espao.Johana Albuquerque acentua essa ciso espacial ao assumir intervenes no texto que a filiam aos diretores-escritores de cena com quem trabalhou. Se por um lado a montagem se beneficia delas, especialmente das invenes de luz e som, e do namoro com o teatro fsico, primorosamente executado por Luah Guimaraez e Elcio Nogueira, por outro se enfraquece, especialmente na passagem para o lugar dos mendigos, envolta num clima simblico que dissimula a convivncia produtiva da dramaturgia do cotidiano com as panes do irrealismo.

No texto de Bortolotto, o desejo de outro espao reaparece e, como todo o resto, literal, explicitado no dilogo grosseiro que disfara o sonho de felicidade projetado na Frana, que apenas Lu, a irm, consegue alcanar. Fauzi Arap assume o naturalismo cru do texto para descarn-lo aos poucos, at chegar delicada solido final. Luah Guimaraez e Elcio Nogueira, solidrios, contracenam com um Renato Borghi minimalista, frgil, maltrapilho nas placas de publicidade decorando o corpo, compondo um hai-kai contemporneo da excluso social.Completando a apresentao, S, Ifignia, sem Teu Pai, de Srgio Slvia Coelho, repete o territrio movedio das outras peas, mas se distancia delas pelo cultivo da palavra. O recurso ao rdio prioriza a fala potica, retrica, e mantm o deslocamento temporal em narrativa densa e pouca dramatizao, entrelaando os motivos mticos sociedade do espetculo, numa espcie de roteiro cnico que discute a angstia da influncia, a existncia vicria dos famosos e a confuso de intimidade e publicidade. Essa linhagem temtica, que Mrcio Aurlio conhece bem, lhe permite tratar o palco como uma tela de Edward Hoper, onde os atores se inscrevem como afrescos de um tempo indefinido. Valendo-se da familiaridade com Luah Guimaraez e Dbora Duboc, com quem criou o grupo Razes Inversas e de quem foi professor, investe no retardamento do tempo, atuado por Duboc numa Ifignia distendida no sacrifcio do heri e seu clich.***O terceiro ciclo de apresentaes da Mostra de Dramaturgia menos sedutor. Mas conta com representantes radicais como Dionsio Neto, autor de O dia mais feliz da sua vida. Comparado ao francs Bernard-Marie Kolts pela criao de peas-paisagens urbanas, ao americano Sam Shepard pelos monlogos inflados de influncia musical, aos ingleses Sarah Kane e Mark Ravenhill pelas perversidades temticas de todos os gneros, Dionsio se alia aos brasileiros Fernando Bonassi e Pedro Vicente no impulso de expor a violncia de modo casual e na estrutura dramtica que incorpora recursos de cena e atuao, resultado da prtica ecltica de dramaturgo, ator e diretor em Perptua e Opus Profundum, por exemplo. No texto da mostra, compe uma dramaturgia de DJ em que proliferam as vozes heterogneas do taxista Tefilo (Borghi), da promotora de eventos Virgnia (Duboc) e do tatuador Escrpia (Nogueira), figuras-clichs incompletas do ponto de vista dramtico, mas abertas performance e ao humor negro caracterstico dessa gerao de dramaturgos. Na estrutura instvel de seu mbile dramtico, nem sempre Dionsio acerta as variaes de registro entre palco e rua, ao cruzar a teatralidade de Escrpia e Virgnia, em figurino de pasta de dentes, e o realismo do taxista vencedor de um bolo da copa do mundo numa trama do acaso, que dissemina os motivos da tatuagem e do escorpio. Hbrido, assombrado por um veneno literal e figurado, O dia mais feliz... no se resolve na direo de Mrcia Abujamra, que desperdia o mistrio da caixa de surpresas e a proliferao de escorpies, prxima de certas passagens de Ionesco e Kafka. Em contrapartida, acerta na direo dos atores. Dbora Duboc atua com perfeio os monlogos visuais e lcio Nogueira Seixas introduz um rudo de nonsense na composio exata de Renato Borghi.O medo oculto nesse texto se expe em Blitz, de Bosco Brasil, mais prximo da dramaturgia irada dos angry young men ingleses Edward Bond, Harold Pinter e John Osborne. Aqui a guerra civil urbana vista pelo ngulo do cabo Rosinha, acusado do assassinato de um aluno numa blitz de periferia. A narrativa da invaso e dos cadveres que sobressaltam o policial e a mulher o recurso que o dramaturgo usa melhor, articulando o fracasso existencial agresso pblica, como acontecia em Atos e Omisses. Ariela Goldman encontra equivalente exato para o texto ao compor um estado de stio cnico, que ameaa o cotidiano do casal. Mas no impe ritmo aos dilogos girando em falso, que lcio e Luah Guimaraez no conseguem contornar.

Completando a apresentao, Errado, de Alberto Guzik, introduz a temtica gay na diversidade da mostra. O dramaturgo cria um texto sem riscos, em que as personagens coerentes resultam de um recorte fiel da realidade do professor universitrio de carreira que se envolve com o jovem de periferia. A direo de Srgio Ferrara dinamiza a pea, ao sugerir situaes que os bons atores sabem aproveitar, enriquecendo visualmente os dilogos. Mas no consegue evitar, especialmente na personagem do cunhado, o tom didtico do raisonneur contemporneo, que o talentoso lcio Nogueira Seixas no consegue abafar.***Sonho de Npcias, de Otvio Frias Filho, abre a quarta semana da mostra de dramaturgia com projees da subjetividade. Com vrios textos encenados, como Don Juan, Tpico Romntico e Rancor, o dramaturgo retoma aqui a influncia de Harold Pinter, visvel nas outras peas, para relativiz-la com recursos de humor negro e esteretipos de literatura policial, sem deixar de evocar, em eco longnquo, os fluxos de conscincia de Alade em Vestido de Noiva de Nlson Rodrigues. As camadas de tempo e espao que o texto sobrepe num mecanismo regressivo, feito da repetio de verses de uma mesma cena de estupro, so inseridas na noite de npcias de Salete (Dbora Duboc) e Reinaldo (lcio Nogueira Seixas), quando a irrupo da violncia arbitrria, tpica de Pinter, inviabiliza temporariamente o clich dos noivos apaixonados num quarto de hotel na praia. A precria consistncia da realidade, as falhas de comunicao e a indeciso de tom, entre srio e risvel, so transportadas pelo relato da personagem feminina, capaz de reconstituir experincias que nunca viveu, ao menos no plano naturalista que o texto, ao mesmo tempo, confirma e esvazia, como Pinter em No Mans Land e Old Times. Os vestgios do passado no presente sobrevivem na materializao desses fantasmas pessoais, que a recordao mais banal atualiza, lembrando, nesse aspecto, certas cenas de Sam Shepard, semelhantes tambm no contexto provisrio, como o caso do quarto de hotel. Contrariando o movimento de instabilidades, o final conclusivo da pea soa artificial, pois retm as variaes dessa dramaturgia de espasmos, que o diretor Maurcio Paroni de Castro soube captar quando usou tapadeiras mveis para marcar as passagens de cena, alm de sublinhar o feitio cinematogrfico do roteiro. Os atores, especialmente Dbora Duboc e Renato Borghi como Moraes, o detetive de hotel, optam decididamente por uma linha de comicidade, que enfraquece a trama ambgua.

A interveno incisiva do diretor reaparece na concepo cnica de William Pereira para O Regulamento, de Samir Yazbek. As falas telegrficas do roteiro frgil, entre farsesco e absurdo, facilitaram a opo de Pereira por uma espcie de farsa ps-moderna, com direito a todos os clichs da encenao dos anos 80, incluindo gelo seco e telas maquinadas. Nessa leitura pardica, a personagem Deus (lcio Nogueira Seixas) se assemelha a um chefe mafioso que imita a dana de Chaplin com o globo terrestre em O grande ditador, numa sntese de sentido reforada pelas tbuas do regulamento divino. Renato Borghi, o suicida que se recusa a viver depois da morte, contracena com Luah Guimares, a sensual secretria de Deus, valorizando o texto com expresses e gestos antolgicos, dignos da melhor estirpe de comediantes brasileiros.ltimo texto da noite, Dentro, de Newton Moreno, continua a inquieta dramaturgia gay de Deus sabia de tudo e no fez nada. A pea explora a complexidade de relacionamentos e prticas homoerticas na narrativa polmica de um fist-fucking, aproximando-se de Jean Genet em Nossa Senhora das Flores, na combinao de primitivo e simblico e na mistura de carne e alma que resultam numa sntese potica do comportamento marginal e da vida de riscos. Nilton Bicudo escolhe o caminho da simplicidade na montagem, mas derrapa no incio, para enfrentar o texto incmodo apenas no final, quando permite que Renato Borghi e lcio Nogueira Seixas sustentem o espectro turbulento da relao, numa auto-exposio corajosa e comovedora.

***O encerramento da Mostra de Dramaturgia Contempornea sinaliza algumas linhas do teatro brasileiro recente ou de tradio mais longa. O teatro poltico, o besteirol e o do comediante nacional esto representados em Cordialmente Teus, Os Marcianos e A meia hora de Abelardo.

Em Cordialmente Teus, Aimar Labaki continua uma dramaturgia atenta s contradies histricas do pas, definida, de forma paradigmtica, por Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri, e preocupada em inserir as personagens em contextos exemplares, para faz-las representantes de estratos sociais mais amplos, como acontece na escola de periferia em Vermouth ou no confronto urbano de assistencialismo e marginalidade em A Boa. Aqui o contexto recortado em episdios picos de cronologia distinta, que se estendem da colonizao portuguesa atualidade, tendo como fio condutor os flagrantes de resistncia do homem cordial brasileiro aos quinhentos anos de opresso. As falas contundentes, permeadas de ironia, indicam a qualidade do dramaturgo e ganham impacto maior nas snteses contemporneas, dirigidas com eficcia por Ivan Feij, especialmente a crtica ao capital financeiro e a reconstituio dos pores da tortura, quando Luah Guimarez demonstra a coragem da militante que conhece bem.Como todo besteirol, Os Marcianos, de Marcelo Rubens Paiva, trabalha equvocos sexuais numa situao de nonsense. Os astronautas da misso-americano-do-norte-brasileira colonizam Marte, e o palco, com chaves de gratuidade to escancarada que talvez escondam, bem demais, a tentativa de crtica pelo avesso. A vantagem que o gnero se apia no improviso dos atores e na comunicao direta com o pblico.Quanto ao texto de Hugo Possolo, sem dvida o mais complexo do ponto de vista das referncias que associa. No novidade que o dramaturgo trabalhe com seu grupo, os Parlapates, na trilha do ator-improvisador de uma cena popular de vrios matizes, em que sobressai a prtica urbana do palhao-ator de rua, de onde vieram a comunicao anrquica e a atuao anti-naturalista de Pantagruel, Sardanapalo e U Fabuli. No caso de A meia hora de Abelardo, essa herana canalizada para um exerccio de sobreposio de palhaos de uma linhagem brasileira sintetizada na figura de Abelardo. Participam do jogo de referncias Abelardo Pinto, o Piolin, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, Abelardo I, o protagonista de O rei da vela, de Oswald de Andrade e, finalmente, o prprio Renato Borghi, que criou a personagem na antolgica montagem de Jos Celso para o Teatro Oficina, em 1967, e encerra o espetculo com citao dela. Com simplicidade desconcertante, Borghi apresenta, em seu prprio nome, a combinatria de Abelardos, resumida num ator de fotonovelas que assassina mulheres, depois de seduzi-las numa mascarada que no dura mais de meia hora. A direo de Alvize Camozzi e Mauricio Paroni de Castro formaliza demais essa reflexo chapliniana sobre a morte, a representao e o tempo da fama - quinze minutos, segundo Andy Warhol - que Luah Guimarez cita no desempenho contido da jornalista, semelhante ao de Dbora Duboc como a vtima do serial killer. Ambas compatveis com a linha da encenao, que contribui para ralentar a comicidade dos Abelardos de Borghi e Elcio Nogueira Seixas. Talvez a capacidade que esses atores mostram de ser histrinicos como os comediantes de quem so herdeiros desminta a brevidade da fama e confirme um teatro brasileiro de longa memria.

***Sem dvida a violncia foi o trao mais forte da Mostra de Dramaturgia de Dbora Duboc, lcio Nogueira Seixas, Luah Guimarez e Renato Borghi, atores do Ncleo Teatro Promscuo que, em pouco mais de um ms, se revezaram no trabalho exaustivo com cinqenta e cinco personagens e quinze textos de autores contemporneos. interessante observar como o testemunho da excluso social contamina os dramaturgos da mostra de tal forma que, mais que jornalistas de seu tempo, assemelham-se a antroplogos experimentando, por dentro, os flagrantes exibidos no palco como peas-paisagens urbanas. o caso de Pedro Vicente, que apresenta em Sem Memria sujeitos invadidos pela mdia sob a tica de quem fruto da invaso. Semelhantes a esse, os textos mais potentes e incmodos do ciclo, como Trs cigarros e a ltima lazanha, de Fernando Bonassi e Victor Navas, Deve ser do caralho o carnaval em Bonifcio, de Mrio Bortolotto, O dia mais feliz da sua vida, de Dionsio Neto e Dentro, de Newton Moreno, nascem de um desejo intervencionista mais interessado no real que no realismo. Da resulta uma espcie de dramaturgia bruta que transpira uma insubordinao quase selvagem, responsvel pela compresso das tramas em snteses curtas muito prximas dos conflitos cerrados da tragdia. Sintomaticamente, de uma tragdia da cidade, como todas, mas que nesse caso j nasce beira do abismo, poluda de humor negro, e dispensa evoluo de enredo e personagens estruturadas, desligando-se, definitivamente, dos padres da pea bem feita e da construo dramtica tradicional. Os movimentos de incorporao da narrativa ao drama, como o do monlogo do protagonista annimo de Trs cigarros e a ltima lazanha ou do fist-fucking de Dentro, provam que a retomada e a adaptao, via palco, de procedimentos da novela, do conto, da poesia e dos roteiros de cinema, geram textos hbridos que respondem melhor s exigncias contemporneas de expresso. No por acaso, dramaturgos como Fernando Bonassi, Victor Navas, Pedro Vicente, Dionsio Neto e Mrio Bortolotto tm formao teatral pouco ortodoxa e, especialmente o primeiro, vive do trnsito constante entre jornalismo, romance, roteiro e conto minimalista. Esse hibridismo o sintoma mais visvel do desconforto narrativo que acompanha essas dramatizaes da insegurana individual e da criminalizao sistemtica das questes pblicas. E aparece na mistura de sonhos, pobreza e palavres de Bonifcio, de Bortolotto, na guerra civil de intimidade e urbanidade em Blitz, de Bosco Brasil, na justaposio de simbolismo e cotidiano em O Pelicano, de Marici Salomo, no contraste de candura e tortura em Cordialmente Teus, de Aimar Labaki, na associao de mscara e tempo da fama de A meia hora de Abelardo, de Hugo Possolo, na confuso de mito e publicidade em S, Ifignia, sem teu Pai, de Srgio Slvia Coelho, e na instabilidade das projees subjetivas de Sonho de Npcias, de Otvio Frias Filho. Ou ainda nas variaes de registro entre palco e rua, performance e cidade, presentes nos textos turbulentos de Dionsio Neto, Victor Navas e Fernando Bonassi.

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S, Nlson de. Divers/idade. Um guia para o teatro dos anos 90. So Paulo: Hucitec, 1998, p.444.

Processo semelhante acontece em relao aos dilogos. Da mesma forma que as indicaes cnicas, eles so incorporados aos monlogos como fala direta, na repetio de um procedimento bastante comum na dramaturgia de Kolts, especialmente evidente no longussimo monlogo que A noite logo antes das florestas. Veja-se a esse respeito um trecho do monlogo de Opus Profundum que descreve uma batida policial: Mo na cabea! Mo na cabea seno leva furo! Mas eu no fiz nada. T drogado, filho da puta. T com olho de drogado! Mas eu... Cala boca seno vai virar peneira pra So Pedro lavar roupa! Encosta na parede! T machucando. pra machucar sua bicha. Sou filho de advogado. Pode ser filho do Papa! T limpo. A voc tem certeza que vai ser ali. Pronto, chegou a sua hora. Valeu. E a Anna Stesia? Foda-se. Documento. Documento. Cad o monza? No sei de nada. C roubou monza, caralho. Tava andando indeciso. Tava procurando orelho. Pascoale. Porra, foste tu que fotografou o Papa com as bicha evanglica? Te vi na televiso. Pascoale. Dionsio Neto, Opus Profundum, texto indito, 1996, cpia digitada.

RUFFINI, Franco, apud FRAL, Josette, op. cit., p. 9.

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