doze naus - · pdf filehora do mar ... e vem do mar uma canção perdida....

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DOZE NAUS

Manuel Alegre

DOZE NAUS

PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTELISBOA

2007

RESP

EITE OS DIREITOS DE AUTOR

NÃO FOTOCOPIE LIVROS

Publicações Dom QuixoteEdifício Arcis

Rua Ivone Silva, n.o 6 – 2.o

1050-124 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2007, Manuel Alegre e Publicações Dom Quixote

Revisão: Susana Baeta1.a edição: Abril de 2007

ISBN: 9789722045803

www.dquixote.pt

7

ÍNDICE

I

À sombra das árvores milenares .................................................................... 13

Sobre as colinas de Lisboa ............................................................................. 15

País de muito mar ......................................................................................... 18

Mar absoluto .................................................................................................. 19

Doze naus pintadas de vermelho ................................................................... 22

Breve canção do vento oeste ......................................................................... 23

As ondas ......................................................................................................... 24

Atrás da sombra ............................................................................................. 25

Numa barca de prata ..................................................................................... 26

Praia ................................................................................................................ 27

Surf ................................................................................................................. 28

Olhando o mar .............................................................................................. 29

Sagres .............................................................................................................. 30

A cor do vento ............................................................................................... 31

Crepúsculo ...................................................................................................... 32

Hora do mar .................................................................................................. 33

A viagem ......................................................................................................... 34

8

II

O tremor ........................................................................................................ 37

Em certos quartos .......................................................................................... 38

Regresso à velha casa ..................................................................................... 39

Requiem pela velha ameixieira ....................................................................... 40

Jardim ............................................................................................................. 41

As árvores e o vento ...................................................................................... 42

A voz .............................................................................................................. 43

III

O caçador ....................................................................................................... 47

Francisco Duarte ou o segundo poema do caçador ..................................... 49

A perdiz ou o terceiro poema do caçador .................................................... 50

Blackbird ou o quarto poema do caçador .................................................... 51

Flechas ou o quinto poema do caçador ........................................................ 52

Batida ou o sexto poema do caçador ............................................................ 53

Caça de salto ou o sétimo poema do caçador ............................................. 54

Balada das aves de arribação ou o oitavo poema do caçador ...................... 55

Arte poética ou o nono poema do caçador .................................................. 56

IV

Outono ........................................................................................................... 59

Por vezes chega um rumor ............................................................................ 60

Uma sombra de passagem ............................................................................. 61

Uma rima ....................................................................................................... 62

Naquele dia .................................................................................................... 63

Não necessariamente uma palavra ................................................................. 64

Circunstância .................................................................................................. 66

Um adeus ....................................................................................................... 67

Maria João George ......................................................................................... 68

As terras altas ................................................................................................. 69

Contracanto de Babilónia .............................................................................. 70

«Ontem não te vi em Babilónia» .................................................................. 72

9

V

Carta a Milena ............................................................................................... 75

Uma luz sobre os corpos ............................................................................... 76

Tablado ........................................................................................................... 77

VI

Espuma ........................................................................................................... 81

Uma só palavra .............................................................................................. 82

O poema ......................................................................................................... 83

Meu pai em mim ........................................................................................... 84

O vazio ........................................................................................................... 85

Uma bala passou ............................................................................................ 86

A curva ........................................................................................................... 87

I

13

À SOMBRA DAS ÁRVORES MILENARES

Passaram muitos anos mas não passouo momento único irrepetívelo som abafado do estilhaço no corpoo eco estridente do ricochete no metalo cheiro da pólvora misturado com sangue e terrao sabor da morte na última viagem de Portugal.

À sombra das árvores milenares ouvi tamboresouvi o rugido do leão e o zumbido da balaouvi as vozes do mato e o silêncio mineral.E ouvi um jipe que rolava na picadaum jipe sem sentidona última viagem de Portugal.

Vi o fulgor das queimadas senti o cheiro do medoo silvo da cobra cuspideira o deslizar da onçaas pacaças à noite como luzes de cidadea ferida que não fecha o buraco na femuralno meio da selva escura em um lugar sem nomena última viagem de Portugal.

14

Soberbo e frágil tempointensa vida à beira morteamores de verão amores de guerra amores perdidos.Uma ferida por dentro um tinir de cristalpassaram os anos o ser permanece.Fiz a última viagem de Portugal.

16-9-2003

15

SOBRE AS COLINAS DE LISBOA

Como se fossem várias vidas e outros euse a alma se mudasse e a própria pelesobre as colinas de Lisboa eu digo adeuse há um Deus que não cabe no papelcujo sentido não sei e que me soacomo ausência e distância ou o desejode saber quem eu sou vendo em Lisboaoutros eus nas colinas sobre o Tejo.

Sobre as colinas de Lisboa eu busco o fioe quanto mais me busco me dispersosobre as colinas de Lisboa olhando o rioe o tempo que passou esperando um versoa História de rompante e a vida à toa.Consoante amor se tem (e amor eu tive-o)consoante amor se tem vem o reverso.Eis o que escrevo sobre as colinas de Lisboa.

Sobre as colinas de Lisboa a noite caie eu olho o Tejo ponto de partida.Há um barco a chegar outro que saiassim fui eu. Também assim a vidae tudo o que se tem é tempo que se escoaeu próprio sou quem fica e sou quem vai

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melancolia ausência despedidaolhando o Tejo das colinas de Lisboa.

Quase todos casaram têm filhos outros nãoaos poucos vão morrendo em sua insónia.Foi ontem foi há um século nunca foisobre os rios que vão cantámos por Siãotambém nós também nós em Babilónia.Há guerras que não acabam: a nossa dói.Sobre as colinas de Lisboa ainda vejoos barcos que já não vão e são o Tejo.

É a mesma paisagem e outra paisagemnão são os olhos é o tempo que não perdoa.Consoante o amor se tem assim a imagemconsoante a vida – essa miragem – embora doanão fazer ao contrário a grande viagem.Olhando para trás já me não vejosou a minha própria ausência nas colinas de Lisboaninguém passa duas vezes no mesmo Tejo.

Não é questão de desejo ou não desejoninguém é eterno duas vezes num momentofragmento a fragmento a memória entoaa passagem do grande rio do esquecimentonão fica senão um gesto um rastro um breve beijoa memória é uma montagem o resto vai no ventoe ninguém volta nunca ao mesmo Tejo.Não sei quem sou sobre as colinas de Lisboa.

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O passado e o presente conjugadostodo o tempo vivido se desvaneceu.Ninguém refaz os passos já passadosnão sei quantos fui nas voltas que o mundo deunem um só posso dizer que não me soaa pedaços de mim no tempo fragmentados.Por isso me pergunto quem sou euolhando o Tejo das colinas de Lisboa.

Fevereiro de 2003

18

PAÍS DE MUITO MAR

Somos um país pequeno e pobre e que não temsenão o marmuito passado e muita História e cada vez menosmemóriapaís que já não sabe quem é quempaís de tantos tão pequenospaís a passarpara o outro lado de si mesmo e para a margemonde já não quer chegar. País de muito mare pouca viagem.

17-5-2006

19

MAR ABSOLUTO

Em português o vento vem do marvem a doce vogal e o silvo agresteo ritmo e o tom da escrita e do falare o poema onde bate o vento oeste.

Auroras e crepúsculos e a linhaonde a curva da terra se pressentee certas tarde mágicas na minhalíngua virada a sul e a ocidente.

Mar invisível sobre o mar visívelmar que me bate em todos os meus músculose às vezes traz às praias do dizívela música e a melancolia dos crepúsculos.

Mar que brame na tristezafica por dentro a flor da espumae a vela branca a envolver a mesaonde um poeta escreve entre uma ode e a bruma.

Azul e branco de Melville. Deus e o Diabo.Em cada página a baleia. A festa e o luto.E depois do canal outro canal. Dobrar o caboao sol do mar absoluto.

20

Venha até mim o mar venha até mimo mar que foi e o que há-de ser e é pai e mãevenha até mim o mar princípio e fimo mar que mesmo aqui é mais além.

E de repente tudo fica incertotocaram à campainha e a letra está tremidaagora a página é um areal desertoe vem do mar uma canção perdida.

É então que o mar bate mais forte: o mar de dentrosobre o plexo solar a onda tremenavegador da alma eu estou no centrode um navio fantasma sem ninguém ao leme.

E agora mais atento uns versos adianteeu vejo as doze naus de Ulisses ou talveza vida toda nesse breve instanteem que disseste mar pela primeira vez.

Doze proas pintadas de vermelhono meio das negras naus do AlmiranteAquiles sentado as mãos sobre o joelhonão tardará não tardará que se levante.

Não me venham dizer que o mar não dá sinalno mar já navegado há um mar que ninguém leumesmo que a página seja um arealonde um rei está caído. Ou um país. Ou talvez eu.

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Um peso em mim: a História foi demais.País do mar. Agora outrora.E todos os navios a sair do caispara outro espaço outro crepúsculo outra aurora.

Por isso diz-se mar e é um destino.Ou memória que dói. O Mundo. Este que sou.O marinheiro volta a ser meninomas o que ele buscava naufragou.

Ainda que haja mar e sete marese um outro azul no espaço onde disponhoo mapa de outro longe e outros lugarese o poema de outro sul e de outro sonho.

E eis que de súbito há uma nau capitanapela página dentro. E sou Bartolomeusou a índia perdida e a saga lusitana.Um barco na memória. Esse barco sou eu.

Sou aquele que partiu e o que não foi.Sou o que lembra e o que se esquece. Um rastrono caminho. Um rastro. E mar que dói.Sou o último gajeiro no topo do mastro.

Sou o que busca a palavra onde se escondeuma pergunta sem resposta. Sou esse navegar.Sou o que procura mesmo se ninguém respondee sou o que pergunta pelo mar.

Lisboa, 1 a 4 de Setembro de 2002Maio de 2005

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DOZE NAUS PINTADAS DE VERMELHO

A Tereza Rita Lopes

Embarcarei nas doze naus pintadas de vermelhoparadas em frente da cidade de Príamoas doze naus de Ulisses que por enquantoainda ferido está sentadopensando nas palavras que disse a Socosobre a morte e o obscuro destinoà espera que Nestor de Gerénia o Velhotraga um médico (talvez Mácoon) para estancar o sangueque lhe corre da coxa para o meio da páginajunto das doze naus pintadas de vermelho.

Lisboa, Junho de 2005

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BREVE CANÇÃO DO VENTO OESTE

Ele há-de vir o vento oesteele há-de vir e há-de levaras vãs palavras que escreveste.Ele há-de vir com seu presságioe os címbalos que já trazem o som do invernoele há-de vir o vento oeste e há-de apagaro verão que parecia ser eterno.

Ele há-de vir com seu adágiosuas orquestras em convés que vão ao fundoele há-de vir e há-de apagara escrita a jura as ilusões do mundo.

Em cada verso há um naufrágionão sei de poema que não seja mar.

Foz do Arelho, 30-8-2003

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AS ONDAS

Até que a escrita tremae então do fundo da memória um corpo e o marum cheiro de alfazema e de salgemaum acento circunflexo um til um tremaum nome que noutro nome se diziaum erro no ditado umas letras redondasuma rosa por dentro da caligrafiaa praia um rosto as ondas.

Foz do Arelho, Agosto de 2003