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DOZE ANOS DA CONSTITUI^ÁO BRASILEIRA DE 1988 (UMA BREVE E ACIDENTADA HISTORIA DE SUCESSO) Por Luís ROBERTO BARROSO * SUMARIO 1. iNTRODugÁo.—2. ANTECEDENTES. O OCASO DO REGIME MILITAR.— 3. INSTALACÁO, AMBIENTE POLÍTICO E MÉTODOS DE TRABALHO DA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE. O PREÁMBULO DO TEXTO FINAL APROVADO.—4. CARACTERÍSTICAS GERAIS DA CONSTITUICÁO DE 1988. A ESTRUTURA DO TEXTO. VIRTUDES E DEFEITOS.—5. O DESEMPENHO DAS INSTITUICÓES SOB A CONSTITUICÁO DE 1988. AS ELEICÓES DE 1989. OS GOVERNOS FERNANDO COLLOR, ITAMAR FRANCO E FERNANDO HENRIQUE CARDOSO. AS REFORMAS CONSTITUCIONAL. A REELEICÁO.—6. Ju- RISDICÁO CONSTITUCIONAL E PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOB A CONSTITUICÁO DE 1988.—7. CONCLUSOES. 1. INTRODUCÁO Suponha-se que o relógio tenha voltado no tempo cerca de vinte e dois anos. Estamos no inicio de 1978, ano que marca a deflagracáo do movi- mento pela convoca?áo de uma Assembléia Nacional Constituinte. Livre e soberana, como exigiam as palavras de ordem da época. Um ato público na Cinelándia, Rio de Janeiro, reúne cerca de duzentas pessoas. Quase nin- guém interrompera sua rotina para aderir a uma reivindicac.ao táo distante e abstrata. O cenário á volta era desolador. * Professor Titular (Catedrático) de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Master of Laws pela Universidade de Yale. Procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro. 11

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Page 1: Doze anos da Constituigao Brasileira de 1988 · 2 Anai s da VIII Conferenci Nacional Ordem do Advogado o Brasil , Manaus mai de 1980. 3 RAYMUNDO FAORO , Assembléia constituinte:

DOZE ANOS DA CONSTITUI^ÁO BRASILEIRADE 1988

(UMA BREVE E ACIDENTADA HISTORIA DE SUCESSO)

Por Luís ROBERTO BARROSO *

SUMARIO

1. iNTRODugÁo.—2. A N T E C E D E N T E S . O OCASO D O REGIME M I L I T A R . —

3. INSTALACÁO, AMBIENTE POLÍTICO E MÉTODOS DE TRABALHO DAASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE. O PREÁMBULO DO TEXTO FINAL

APROVADO.—4. CARACTERÍSTICAS GERAIS DA CONSTITUICÁO DE 1988. A

ESTRUTURA DO TEXTO. VIRTUDES E DEFEITOS.—5. O DESEMPENHO DAS

INSTITUICÓES SOB A CONSTITUICÁO DE 1988. AS ELEICÓES DE 1989. OS

GOVERNOS FERNANDO COLLOR, ITAMAR FRANCO E FERNANDO HENRIQUE

CARDOSO. AS REFORMAS CONSTITUCIONAL. A REELEICÁO.—6. Ju-

RISDICÁO CONSTITUCIONAL E PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

SOB A CONSTITUICÁO DE 1988.—7. CONCLUSOES.

1. INTRODUCÁO

Suponha-se que o relógio tenha voltado no tempo cerca de vinte e doisanos. Estamos no inicio de 1978, ano que marca a deflagracáo do movi-mento pela convoca?áo de uma Assembléia Nacional Constituinte. Livre esoberana, como exigiam as palavras de ordem da época. Um ato públicona Cinelándia, Rio de Janeiro, reúne cerca de duzentas pessoas. Quase nin-guém interrompera sua rotina para aderir a uma reivindicac.ao táo distantee abstrata. O cenário á volta era desolador.

* Professor Titular (Catedrático) de Direito Constitucional da Universidade do Estado doRio de Janeiro. Master of Laws pela Universidade de Yale. Procurador do Estado e advogadono Rio de Janeiro.

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Page 2: Doze anos da Constituigao Brasileira de 1988 · 2 Anai s da VIII Conferenci Nacional Ordem do Advogado o Brasil , Manaus mai de 1980. 3 RAYMUNDO FAORO , Assembléia constituinte:

LUÍS ROBERTO BARROSO

O País ainda se recuperava do trauma do fechamento do CongressoNacional para outorga do Pacote de Abril, conjunto de reformas políticasque eliminavam quaisquer riscos de acesso da oposigáo a alguma fatia depoder. Os atos institucionais que davam poderes ditatoriais ao Presidenteda República continuavam em vigor. O bipartidarismo artificial, a cassacaode mandatos parlamentares e casuísmos eleitorais diversos falseavam a re-presentagao política. A imprensa ainda enfrentava a censura. Havia presospolíticos nos quartéis e brasileiros exilados pelo mundo afora.

Mova-se o relógio, agora, de volta para o presente. Estamos no final doano 2000. Refazendo-se da longa trajetória, o intrépido viajante intertem-poral contempla a paisagem que o cerca, enebriado pelo marcante contras-te com a aridez que deixara para tras: a Constituicáo vige com supremacía,há liberdade partidaria, eleicSes livres em todos os níveis, liberdade deimprensa e urna sociedade politicamente reconciliada. Um procer da antigaordem, que se referirá ao partido de sustentagáo política do regime militarcomo o maior partido do ocidente, de certo ficaria tentado a indagar aindaurna vez: «Que País é este?».

A viagem no tempo reforca a constatagáo evidente: um País muito me-lhor do que antes. Conforme o espirito e a ideologia de cada um, pode-seter maior ou menor aprego pelo elenco; pode-se criticar o enredo, o texto eaté, supremo preconceito, a incultura da platéia. Mas é inegável: sem em-bargo das dificuldades, dos avangos e dos recuos, das tristezas e decepgSesdo caminho, a historia que se vai aqui contar é urna historia de sucesso.Um grande sucesso.

Soma. Vocé está em urna democracia.

2. ANTECEDENTES. O OCASO DO REGIME MILITAR

A posse do general Ernesto Geisel na presidencia da República, em1974, marcou o inicio do processo «lento e gradual» de refluxo do poderditatorial no Brasil. Nao obstante a utilizagáo de instrumentos discricioná-rios — que ensejavam a cassagao de mandatos parlamentares e a decreta-gao do recesso do Congresso Nacional —, coube históricamente a Geisel areagao á violencia física perpetrada pelo Estado brasileiro contra os adver-sarios políticos. Ao término de seu governo, a Emenda Constitucional n° 11,de 13 de outubro de 1978, revogou os atos institucionais e os atos comple-mentares, símbolos do regime de excegao instaurado em 1964.

Indicado por Geisel após diversificada resistencia, o general Joao Bap-tista de Oliveira Figueiredo foi eleito indiretamente pelo Congresso — de-rrotando o general Euler Beñtes Monteiro, langado pela oposigáo —, to-mando posse em 15 de margo de 1979. O novo presidente assume,reafirmando o compromisso de restauragáo da legalidade democrática. Pou-

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DOZE ANOS DA CONSTITUICÁO BRASILEIRA DE 1988

co á frente, aínda em 1979, é aprovada a lei da anistia, permitindo a voltados brasileiros no exilio. No mesmo ano é votada a nova lei dos partidospolíticos, rompendo com o bipartidarismo artificial e dando ensejo ao pluri-partidarismo. O movimento sindical, duramente reprimido desde o golpe de1964, recomeca sua articulagáo pelo ABC paulista, desafiando a legislagaorestritiva vigente. Atentados terroristas cuja origem estava na própria basede sustentacao militar do governo (OAB - 1980; Riocentro - 1981)', em-bora impunes, nao comprometeram a lenta marcha em direcáo ao Estadodemocrático.

A reivindicagáo pela convocagao de urna Assembléia Nacional Consti-tuinte comega a ganhar peso institucional, inclusive com a ampia adesaoda comunidade jurídica, a partir de 1980. Na Conferencia Nacional dosAdvogados, realizada nesse ano, é aprovada a «Declaragao de Manaus», naqual se clamava pela volta do poder constituinte ao povo, «seu único titu-lar legítimo»2. No ano seguinte, Raymundo Faoro, ex-presidente da OAB efigura destacada na transicao democrática brasileira, publica um eruditomanifestó no qual condena a fórmula entáo proposta da emenda constitu-cional á Carta de 1967-69 — «um corpo incongruente de regras nao se har-monizará com a adigáo gramatical de pontos cirúrgicos» — e defende aconvocagao da constituinte, independentemente de um ato de ruptura for-mal: «é sempre legítimo o ato do governo, mesmo de fato, que restitui aopovo o Poder Constituinte, se esse é o titular do poder estatal»3. Em 1982,na mesma linha, M. Seabra Fagundes publica o texto de conferencia queproferia em diversas partes do País:

«Ao cabo de tantos anos de poder instalado e mantido sem efetivaratificagao popular, afigura-se que o Estado Brasileiro só poderá ga-nhar legitimidade institucional mediante a convocagao do povo parareunirse, pelos seus representantes, em Assembléia Constituinte.

(...) É de ponderar, todavía, que se em urna Constituigáo votadapela representagáo do povo está a base máxima da legitimidade, estanao será plena enquanto a escolha do Presidente da República seprocessar por eleigao indireta, meramente homologatória de candida-turas oriundas de imposigoes militares»*.

1 Sobre o tema, v. JULIO DE SÁ BlERRENBACH, Riocentro: quais os responsáveis pelaimpunidade?, 1996.

2 Anais da VIII Conferencia Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Manaus, maiode 1980.

3 RAYMUNDO FAORO, Assembléia constituinte: a legitimidade recuperada, 1981, pp. 82-83 e 85.

4 M SEABRA FAGUNDES, A legitimidade do poder político na experiencia brasileira,publicacáo da OAB - Seccáo de Pernambuco, 1982, pp. 26-7.

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E, de fato, na dinámica do processo político, a crescente e generalizadainsatisfacao com o regime militar desaguou em um ampio movimento su-prapartidário pelo restabelecimento das eleicoes diretas para presidente daRepública. Ñas principáis capitais do país, centenas de milhares de pessoasacorrem ás rúas em manifestares de oposicao ao governo sob a palavrade ordem «Diretas Já». Em 25 de abril de 1984, sob estado de emergenciadecretado na capital federal, foi votada a proposta de emenda constitucio-nal que restauraría o pleito direto. Embora tivesse obtido a maioria dosvotos dos parlamentares, nao foi atingido o quorum de dois tersos necessá-rios á modificacáo da Constituifáo. Sem embargo da frustracao trazida pelodesfecho do movimento, a verdade é que o regime militar já nao apresen-tava unidade interna nem contava com apoio político suficiente para pro-longar-lhe a duracao.

Após intensa disputa interna, o Partido Democrático Social (PDS), desustentado do governo, indica como candidato á presidencia o ex-gover-nador de Sao Paulo, Paulo Maluf. Forma-se, no entanto, urna dissidénciano PDS, que vai unir-se ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro(PMDB), principal agremiacáo de oposicao, formando a Alianga Democrá-tica. Tancredo Neves, um dos principáis líderes da oposicao moderada aolongo de todo o regime militar, é lanzado candidato á presidencia, tendocomo vice-presidente, na mesma chapa, José Sarney, que fora um dos prin-cipáis articuladores civis do regime militar. Tancredo derrota Maluf na elei-cao indireta pelo Colegio Eleitoral realizada em 15 de Janeiro de 1985. Emcomovente fatalidade, no entanto, adoece antes de tomar posse e morre em21 de abril daquele mesmo ano.

Assume José Sarney, em momento difícil e anticlimático. Salvo o breveperíodo de sucesso do plano económico de combate á inflacáo denominadoPlano Cruzado, seu governo é marcado por crescente insatisfacao políticae social, para a qual nao deixaram de contribuir a personalidade do presi-dente, os desacertos económicos e as denuncias persistentes de corrupgao efavorecimentos. Ao longo dos cinco anos do governo Sarney, que se esten-de até 15 de marco de 1990, afirma-se política e eleitoralmente o Partidodos Trabalhadores (PT). Em cumplimento do compromisso de campanhaassumido por Tancredo Neves, é convocada, pela Emenda Constitucionaln° 26, de 27 de novembro de 1985, urna Assembléia Nacional Constituintepara elaborar nova Constituicao para o Brasil.

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DOZE ANOS DA CONSTITUIgÁO BRASILEIRA DE 1988

3. INSTALACÁO, AMBIENTE POLÍTICO E MÉTODOS DE TRABALHODA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE. O PREÁMBULODO TEXTO FINAL APROVADO

Previu a Emenda Constitucional n° 26/85 que os membros da Cámarados Deputados e do Senado Federal se reuniriam, unicameralmente, emAssembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia Io de fevereirode 1987. Nao prevaleceu a idéia, que teve ampio apoio na sociedade civil,de eleicáo de urna constituinte exclusiva, que se dissolveria quando da con-clusáo dos trabalhos5. Ao revés, optou-se pela outorga de poderes cons-tituintes ao Congresso Nacional, tendo sido admitida, inclusive, a partici-pacao dos Senadores alcunhados de biónicos, residuo autoritario dogoverno Geisel, que outorgara a Emenda Constitucional n° 8, de 1977, naqual se previa que um terco das vagas do Senado seriam preenchidas poreleicao indireta.

Instalada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro JoséCarlos Moreira Alves, a Assembléia Constituinte elegeu em seguida, parapresidi-la, o Deputado Ulysses Guimaraes, que fora o principal líder parla-mentar de oposicáo aos governos militares. Os trabalhos, a exemplo do quejá ocorrera em 1946, desenvolveram-se sem a apresentacáo de um antepro-jeto previo. É de interesse assinalar que o próprio Poder Executivo haviainstituido, em julho de 1985, urna Comissao Provisoria de Estudos Consti-tucionais, conhecida, em razao do nome de seu presidente, como ComissaoAfonso Arinos, que veio a apresentar um anteprojeto. Tal texto, todavía, adespeito de suas virtudes, nao foi encaminhado á constituinte pelo presi-dente Sarney, inconformado, dentre outras coisas, com a opcáo parlamen-tarista nele veiculada.

A ausencia de um texto base e a ansia de participacao de todos os seg-mentos da sociedade civil, arbitrariamente alijados do processo político pormais de vinte e cinco anos, dificultaram significativamente a racionaliza-cao e a sistematizacao dos trabalhos constituintes. Divididos os parlamen-tares, inicialmente, em vinte e quatro subcomissoes, oito comissóes temá-ticas e urna Comissao de Sistematizacao, o processo constituinte padeceudas vicissitudes inevitáveis a um empreendimento desse porte naquele con-texto, assim como de ingerencias excessivas do Executivo e da dificuldadede formacao de maiorias consistentes, mesmo em questoes meramente re-gimentáis.

Após urna fase de conclusao penosa e desgastante, a Constituicao é fi-nalmente promulgada em 5 de outubro de 1988, aclamada como a «Cons-tituicao Cidadá», na expressao do presidente da Assembléia, Ulysses Gui-

5 Sobre o tema, v. FLÁVIO BlERRENBACH, Quem tem medo da constituinte?, 1986.

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LUÍS ROBERTO BARROSO

maraes. No texto de seu Preámbulo, a fotografía, retocada pela retórica epelo excesso de boas intencóes, do momento histórico de seu nascimento edas aspiracoes de que deveria ser instrumento:

«Nos, representantes do povo brasileiro, reunidos em AssembléiaNacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destina-do a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuáis, a liber-dade, a seguranca, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e ajustica como valores supremos de urna sociedade fraterna, pluralistae sem preconceitos, fundada na harmonía social e comprometida, naordem interna e internacional, com a solugao pacífica das controver-sias, promulgamos, sob a protecáo de Deus, a seguinte Constituidoda República Federativa do Brasil».

4. CARACTERÍSTICAS GERAIS DA CONSTITUICÁO DE 1988.A ESTRUTURA DO TEXTO. VIRTUDES E DEFEITOS

A Constituicáo brasileira de 1988 tem, antes e ácima de tudo, um valorsimbólico: foi ela o ponto culminante do processo de restauracáo do Esta-do democrático de direito e da superacao de urna perspectiva autoritaria,onisciente e nao pluralista de exercício do poder, timbrada na intoleranciae na violencia. Ao reintronizar o Direito e a negociacao política na vida doEstado e da sociedade, removeu o discurso e a prática da burocracia tec-nocrático-militar que conduzira a coisa pública no Brasil por mais de vinteanos.

Á medida em que se distancia no tempo, vai-se tornando possível oexame do ciclo que se encerrou em outubro de 1988, já agora sem a dis-torcáo das paixoes políticas. O que se pode constatar, isentamente, é que operíodo ditatorial exibiu indicadores económicos positivos e custos sociaisdramáticos. Inserido na economía mundial como um dos dez grandes pro-dutores de riquezas, o Brasil convivia e continua a conviver com índicessofríveis em áreas como educacáo, habitacao e saúde. A inapetencia políti-ca para enfrentamento da questáo agraria acentuou os problemas urbanos,que em sua ponta mais visível se manifestam na criminalidade e na violen-cia em geral.

No plano institucional, o exercício autoritario do poder desprestigiou eJ

enfraqueceu os órgáos de representacao política e afastou da vida públicaas vocacóes de toda urna geracao. O processo de amadurecimento demo-crático, de consciéncia política e de prática da cidadania fícou truncado.Agravou-se, aínda, pelo fisiologismo e clientelismo — que nao podiam serdenunciados nem combatidos á luz do dia — a atávica superposicáo entreo público e o privado, com as perversóes que a acompanhavam: favoreci-mentos, nepotismo, corrupc.áo e descompromisso com a eficiencia.

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DOZE ANOS DA CONSTITUICÁO BRASILEIRA DE 1988

O processo constituinte que resultou na nova Carta Política teve comoprotagonistas, portante, urna sociedade civil marcada por muitos anos demarginalizacáo e um Estado apropriado pelos interesses privados que dita-vam ú ordem política e económica até entao. Na euforia — saudável eufo-ria — de recupera?áo das liberdades públicas, a constituinte foi um ampioexercício de participacao popular. Neste sentido, é inegável o seu caráterdemocrático. Mas, paradoxalmente, foi este mesmo caráter democrático quefez com que o texto final expressasse urna vasta mistura de interesses legí-timos de trabalhadores e categoría económicas, cumulados com interessescartoriais, corporativos, ambicóes pessoais etc. O produto final foi hetero-géneo, com qualidade técnica e nivel de prevaléncia do interesse públicooscilantes entre extremos.

A doutrina constitucional caracteriza a Carta de 1988 como sendo com-promissória, analítica e dirigente6. Compromissória por ser um texto dia-lético, sem predominio absoluto de urna única tendencia política. Em ummundo ainda marcadamente dividido em dois blocos ideológicos antagóni-cos, o texto buscou um equilibrio entre os interesses do capital e do traba-Iho. Ao lado da livre iniciativa, aleada á condÍ9ao de principio fundamentalda ordem institucional brasileira, consagraram-se regras de intervengo doEstado no dominio económico, inclusive com a reserva de determinadossetores económicos á explora§áo por empresas estatais, alguns deles sobregime de monopolio. O texto contemplou, ademáis, um ampio elenco dedireitos sociais aos trabalhadores e impós restrÍ9óes ao capital estrangeiro.

O constituinte de 1988 optou, igualmente, por urna Carta analítica, natradÍ9áo do constitucionalismo contemporáneo, materializado ñas Constitui-9Óes Portuguesa e Espanhola, de 1976 e 1978, de Países que, a exemplodo Brasil, procuravam superar experiencias autoritarias. O modelo oposto éo que tem como paradigma a Constitui9áo dos Estados Unidos, exemplotípico do constitucionalismo sintético, cujo texto se contém em apenas seteartigos e vinte e seis emendas (em sua maior parte aditamentos, e nao mo-difica96es, a versao original). A tradi9áo brasileira, a complexidade do con-texto em que desenvolvida a reconstitucionaliza9ao do país e as caracterís-ticas de nosso sistema judicial inviabilizavam a op9ao pela fórmula do textomínimo, cuja importagao seria um equívoco caricatural. É inevitável a cons-tatacao, todavía, de que o constituinte de 1988 caiu no extremo oposto,produzindo um texto que, mais que analítico, é casuístico e prolixo.

6 Veja-se, por todos, CLÉMERSON MERLIN CLÉVE, «A teoría constitucional e o direitoalternativo», estudo publicado na obra coletiva Urna vida dedicada ao Direito — Homenagema Carlos Henrique de Carvalho. Merece referencia, neste passo, a valiosa contribuicáo dadoutrina constitucional portuguesa ao longo desta última década, tendo á frente os ProfessoresJoaquim José Gomes Canotilho, da Universidade de Coimbra, e Jorge Miranda, da Universi-dade de Lisboa.

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LUÍS ROBERTO BARROSO

Por fim, a Carta brasileira de 1988 é dirigente. O termo, trazido doconstitucionalismo portugués, identifica urna opcao pela inclusao no textoconstitucional de grandes linhas programáticas, que procuram sinalizar ca-minhos a serem percorridos pelo legislador e pela Administracáo Pública.Estabelecem-se fins, tarefas e objetivos para o Estado e para a sociedade.Este tipo de constitucionalismo diminui, de certa forma, a densidade jurí-dica do texto, embora represente um esforco para condicionar a atuagao dosPoderes e impulsioná-los na direcáo eleita pelo constituinte, notadamenteem dominios como os da educacao, cultura, saúde e realizacao de valorescomo a justica social e os direitos a ela inerentes. O constitucionalismodirigente é extremamente dependente da atuagao do Congresso Nacional naedicao das leis ordinarias necessárias ao desenvolvimento dos programasmeramente alinhavados na Constituicáo7.

A Constituicao de 1988 convive com o estigma, já apontado ácima, deser um texto excessivamente detalhista, que em diversos temas perdeu-seno varejo das miudezas — seja no capítulo da Administracao Pública, comono título da ordem tributaria ou no elenco de mais de 70 artigos do Atodas Disposicóes Constitucionais Transitorias, para citar apenas algunsexemplos. Nao escapou, tampouco, do rango do corporativismo exacerba-do, que inseriu no seu texto regras específicas de interesse de magistrados,membros do Ministerio Público, advogados públicos e privados, policíasfederal, rodoviária, ferroviaria, civil, militar, corpo de bombeiros, cartóiiosde notas e de registros, que bem servem como eloqüente ilustracao. Alémdisso, timbrou-se, em sua versao originaria, pela densificagáo da interven-gáo do Estado na ordem económica, em um mundo que caminhava na dire-cao oposta, e por urna recaída nacionalista que impunha restrigoes ao in-gresso de capital estrangeiro de risco, em dominios como o da mineracao,telecomunicagoes, petróleo, gas etc.

Alias, este caráter nacionalista e estatizante de diversos pontos da Cons-tituigao fez com que fossem ideológicamente atropelados pelos eventossimbolizados na queda do Muro de Berlim e pela constatacáo desconcer-tante, para muitos idealistas, de que o socialismo, tal como praticado, era afracassada mistificagao de um Estado autoritario e burocrático. Escrevi eupróprio, em 1990, a expressáo dessa perplexidade, do desencontro históri-co de urna geragao:

«Em meio aos escombros, existe no Brasil toda urna geragao depessoas engajadas, que sonharam o sonho socialista, que acreditavam

1 Sobre o tema, vejam-se dois momentos diferentes de J. J. GOMES CANOTILHO, Consti-tuicao dirigente e vinculacáo do legislador, 1982; Rever a ou romper com a Constituticaodirigente, conferencia pronunciada no Instituto Pimenta Bueno, 1994. Acerca das normas pro-gramáticas, seu conteúdo, alcance e aplicabilidade, v. Luis ROBERTO BARROSO, O direitoconstitucional e a efetividade de suas normas, 1996, pp. 113 e ss.

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DOZE ANOS DA CONSTITUICÁO BRASILEIRA DE 1988

estar comprometidas com a causa da humanidade e se supunham pas-sageiras do futuro. Compreensivelmente abalada, esta geragao viveuma crise de valores e de referencial.

De fato, onde se sonhou a solidariedade, venceu a competigao.Onde se pensou a apropriacáo coletiva, prevaleceu o lucro. Quemimaginou a progressiva universalizacao dos países, confrontase comembates nacionalistas e étnicos. Pior que tudo: os que viveram osonho socialista nao viam a hora de acordar e livrar-se dele. É in-discutível: Eles venceram»*.

De parte isto, o texto nao foi capaz de conter a crónica voracidade fis-cal do Estado brasileiro, nem de impedir um sistema tributario que, na prá-tica, constitui um cipoal de tributos que se superpóem, criando uma onero-sa e ineficiente burocracia nos diferentes níveis de poder. O sistema deseguridade social, sobretudo no campo previdenciário, integra uma estrutu-ra que se tornou económicamente inviável e incapaz de conter a sangría derecursos imposta pelas fraudes e pela corrupcao. É preciso, todavia, con-servar a capacidade de identificar as vicissitudes que podem e devem serassociadas ao texto constitucional de 1988 com outras tantas que fazemparte da crónica patologia institucional, social e cultural brasileira, e quenao podem ser imputadas ao trabalho do constituinte, mas, sim, a um paísfragilizado por sucessivas rupturas políticas e pelo desequilibrio de suasrelacóes sociais.

Nao é possível, assim, debitar-se a Constituicao de 1988, por exemplo,o crónico autoritarismo do sistema presidencial bjasileiro, que nos temmantido prisioneiros de líderes populistas, generáis onipotentes ou, nos me-lhores momentos, de um certo despotismo esclarecido. Tampouco se devecontabilizar dentre suas culpas a exclusao social ampia que nos acompanhahá 500 anos. A Constituicao, como o Direito em geral, tem seus próprioslimites e possibilidades. O amadurecimento dos povos é um processo comdiferentes etapas, que nao sao abreviadas — mas antes retardadas — pelossalvacionismos em geral: seja dos golpes militares, dos partidos vanguar-distas ou do constitucionalismo retórico e inocuo.

Nesta linha de raciocinio, é preciso evitar que a crítica, cabível e ne-cessária9, venha a encobrir as virtudes e inovacóes criativas e valiosas tra-

8 Luís ROBERTO BARROSO, «Principios constitucionais brasileiros ou de como o papelaceita tudo», in Revista Trimestral de Direito Público, 1/168, onde se acrescentou: «Eles, noBrasil, nao tem um conteúdo puramente ideológico de quem optou pelo modelo privatista. Elestraz um estigma: o dos que compactuaram com toda a violencia institucional que preparou ocaminho do modelo vencedor».

9 Na perspectiva essencialmente crítica, veja-se a fina ironía de DlOGO DE FlGUEIREDOMOREIRA NETO, A revisáo constitucional brasileira, pp. 5-6: «A consciéncia cidadá, desperta-da do letargo de vinte anos, tinha pressa na redemocratizacáo; 'diretas já ' , 'constituinte já ' ,tudo 'já'..., e com esse acodamento foi votada a mais extensa Carta Política de nossa Historia

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zidas pela Carta de 1988. Os direitos fundamentáis, por exemplo, trazidospara o inicio do texto constitucional, antes da disciplina da organiza?áo doEstado e dos Poderes, confíguram, a despeito da enuncia?ao prolixa e de-sarrumada, urna valiosa carta de protecao dos cidadáos brasileiros contraos abusos, tanto estatais como privados. Novas acoes judiciais, como omandado de seguranza coletivo, e a constitucionaliza?áo da acao civil pú-blica ampliaram os mecanismos de protecáo dos direitos, inclusive os deúltima gera$áo, intitulados direitos difusos, que abrigam áreas importantescomo a tutela do meio ambiente e do consumidor.

A nova Constituigáo, ademáis, reduziu o desequilibrio entre os Poderesda República, que no período militar haviam sofrido o abalo da hipertrofiado Poder Executivo, inclusive com a retirada de garantías e atribuicoes doLegislativo e do Judiciário. A nova ordem restaura e, em verdade, fortalecea autonomía e a independencia do Judiciário, assim como amplia as com-petencias do Legislativo. Nada obstante, a Carta de 1988 manteve a capa-cidade legislativa do Executivo, nao mais através do estigmatizado decreto-lei, mas por meio das medidas provisorias, importadas do regime italiano,onde o sistema parlamentar de governo dá maior lastro de legitimidade aoinstituto. Embora se tenha operado em todo o mundo, em maior ou menorintensidade, o esvaziamento da capacidade legislativa originaria do Con-gresso ou do Parlamento, o fato é que a redacto do texto constitucional e atimidez do Legislativo e do Judiciário deram ensejo ao abuso da utiliza§aode instrumento que, nascido para acudir a situac.6es excepcionais — de«relevancia e urgencia», como prevé o art. 62 — passou a integrar a rotinano processo de edicáo de normas jurídicas.

A Federa§ao, mecanismo de reparticáo do poder político entre a Uniáo,os Estados e os Municipios, foi amplamente reorganizada, superando a fasedo regime de 1967-69, de forte concentracáo de atribuicSes e receitas noGoverno Federal. Embora a Uniáo tenha conservado ainda a parcela maissubstantiva das competencias legislativas, ampliaram-se as competenciaspolítico-administrativas de Estados e Municipios, inclusive com a previsáode um dominio relativamente ampio de atuagao comum dos entes estatais.A partilha das receitas tributarias, de outra parte, foi feita de forma maisequánime, sem a prevaléncia quase absoluta da Uniao, como no regimeanterior. A prática tem revelado, no entanto, que os principáis beneficiariosdo sistema de distribuic.ao de receitas sao os grandes Municipios. Os Esta-dos brasileiros, nos doze anos de vigencia da Constituic,áo, a despeito darecupera9áo da plena autonomía política, nao conseguiram, em sua grande

e urna das maiores do mundo: trezentos e quinze artigos, no total da Parte Permanente e daParte Transitoria; talvez por isso mesmo alcunhada de 'Constituido Coragem', o nascituropartejado 'da profunda crise', como o crismou o nosso Ulysses, entáo já próximo de sua últi-ma víagem».

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maioria, encontrar o equilibrio financeiro desejável. O reequacionamento dofederalismo no Brasil é um tema á espera de um autor10.

Em materia eleitoral, a Constituicao de 1988 reintroduziu o voto direto,secreto e universal para a Presidencia da República (art. 77), transformadoem cláusula pétrea (art. 60, § 4o, II), insuscetível de supressao do textoconstitucional. Além disso, estabeleceu a eleicao em dois turnos na hipóte-se de nenhum candidato alcanzar a maioria absoluta na primeira votac,ao,de modo que os dois candidatos mais votados no primeiro escrutinio habi-litam-se para a disputa em segundo turno (art. 77, §§ 2° e 3o).

5. O DESEMPENHO DAS INSTITUICÓES SOB A CONSTITUICÁO DE 1988.

AS ELEICÓES DE 1989. OS GOVERNOS FERNANDO COLLOR,

ITAMAR FRANCO E FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.

AS REFORMAS CONSTITUCIONAIS. A REELEICÁO

Em 3 de outubro de 1989 realizou-se a primeira eleicao de um Presi-dente da República, por via direta, desde a sagracao de Jánio Quadros em1960. O Partido dos Trabalhadores, principal partido de oposic.ao, e queganhou densidade política e eleitoral no rastro do desgaste do GovernoSarney, lan?ou como candidato Luís Inácio Lula da Silva, sua principal li-deranca desde a fundacao, urna década antes. No setor liberal-conservador,também beneficiado pelo descrédito das principáis liderancas políticas,apresentou-se Fernando Collor de Mello, lancado pelo inexpressivo Partidoda Reconstracao Nacional (PRN) e apoiado pelos setores empresariais e poralguns dos principáis meios de comunica§áo. No primeiro turno das elei-c5es, Collor obteve 28% dos votos, seguido de Lula, com 16%. Nao sehabilitaran! para o segundo turno concorrentes de expressáo, como LeonelBrizóla (PDT), Ulysses Guimaraes (PMDB) e Mario Covas (PSDB).

Collor derrotou Lula na rodada final, com 42,75% dos votos, contra37,86%. Empossado, o novo Presidente deflagrou um ambicioso plano eco-nómico, que, em medida de duvidosa constitucionalidade, promoveu a re-tencao da quase totalidade dos ativos depositados em instituigoes fmancei-ras, inclusive cadernetas de poupanca. O Plano Brasil Novo foi instituido

10 Em 4 de maio de 2000, foi promulgada a Lei Complementar n° 101, que estabeleceunormas de financa públicas voltadas para a responsabilidade na gestao fiscal. Em meio a di-versas inovacóes visando ao equilibrio ñas contas públicas, a nova lei (i) ñxa limites para asdespesas com pessoal nos tres Poderes da República e nos tres níveis da Federacao; (ii) fixalimites para a divida pública; estabelece metas para controlar receitas e despesas; (iii) impedeque se criem despesas continuadas sem indicar sua fonte de receita ou a reducáo de urna outradespesa; (iv) limita a atuacao dos governantes em ano eleitoral. Aprovada com grande expec-tativa, a lei, conquanto necessária e moralizadora, encontra Estados e grandes Municipios emsituacao de desequilibrio que dificulta o enquadramento na nova regulamentacao.

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mediante utilizado abusiva das recém-criadas medidas provisorias, e, empouco mais de um ano, já havia se tomado urna nova aventura monetariafracassada.

A despeito do choque inicial, o discurso neoliberal e privatizante doPresidente contou com ampio apoio da mídia e da opiniao pública. Suacredibilidade, todavía, comefou a desmoronar no inicio do segundo ano degoverno. Um provinciano desentendimento entre o Presidente e seu irmaotrouxe á tona urna rede de extorsao e corrupcáo que comprometiam o Che-fe de Estado e a eminencia parda de seu governo, o tesoureiro da campa-nha, Paulo Cesar Farias.

A crise que se seguiu ás denuncias de Pedro Collor de Mello levou áinstauracao de urna Comissáo Parlamentar de Inquérito que, contrariandourna tradi§ao de inconseqüéncia, revelou, para um país atónito, que o po-der público fora tomado de assalto por personagens envolvidos em varia-dos tipos penáis. Ao final de agosto de 1992, quando a CPI deliberou pelaresponsabilizac,ao do Presidente, por 16 votos a 5, o País já sofría o impac-to das multidóes que, em movimento espontáneo, exigiam o impeachmentde Collor.

Em 29 de setembro de 1992, a Cámara dos Deputados, ao apreciar orequerimento apresentado pelos Presidentes da OAB (Ordem dos Advoga-dos do Brasil) e da ABI (Associa?áo Brasileira de Imprensa), aprovou aabertura de processo por crime de responsabilidade contra Collor, com aexpressiva margena de 441 votos a favor. O Presidente foi afastado do car-go. Na data de seu julgamento pelo Senado, após o inicio da sessáo, oPresidente enviou urna carta-renúncia, mas viu frustrado o artificio paralivrar-se da cassa§ao de seus direitos políticos por oito anos.

O desfecho exemplar do episodio revigorou as instituicoes e desfez omito do golpismo. O País já era capaz de administrar suas crises políticassem violentar a Constituicáo.

Com a destituicao-renúncia de Collor, assume definitivamente o cargoo Vice-Presidente constitucional, Itamar Franco, tradicional político minei-ro, que fora membro histórico do PMDB. Em 21 de abril de 1993, realiza-se o plebiscito sobre a forma e o sistema de governo, previsto no art. 2o doAto das Disposicoes Constitucionais Transitorias: por 66% contra 10,2%,venceu a República sobre a Monarquía; e, por 55,4% contra 24,6%, o povobrasileiro reincidiu no modelo presidencialista, ficando vencida a propostaparlamentarista.

Ñas eleicóes presidenciais de 3 de outubro de 1994 saiu vitorioso, emprimeiro turno, o ex-Ministro da Fazenda de Itamar Franco, Fernando Hen-rique Cardoso, do PSDB. Em segundo lugar ficou, ainda urna vez, LuísInácio Lula da Silva, do PT. Com Cardoso finalmente chegou ao poder ageracáo que fora perseguida pelo regime de 64.

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Fernando Henrique Cardoso atravessou seu primeiro mandato com ex-pressivos índices de apoio popular. A oposi?áo, enfraquecida e desarticula-da, nao foi capaz de dar densidade e repercussao á crítica ao governo pelafragilidade de sua atuagao na área social. A eterna indigna?ao pela existen-cia atávica de urna legiao de excluidos continuou a assombrar o país, semsolucoes objetivas ou de curto prazo. O governo, no entanto, no período de1995 a 1998, foi capaz de capitalizar como ganho político a duradoura es-tabilidade monetaria. Em 4 de junho de 1997, foi aprovada, pelo quorumconstitucional de 3/5 (tres quintos) dos membros de cada Casa do Congres-so, e em contraste com a tradigao republicana brasileira, a Emenda Consti-tucional n° 16, que passou a permitir a reeleicao do Presidente da Repú-blica e Chefes dos Executivos estaduais e municipais por um períodosubseqüente.

Realizaram-se, ainda, neste quadriénio (observe-se que a Emenda Cons-titucional de Revisao n° 5, de 7.06.94, havia reduzido o mandato presiden-cial de cinco para quatro anos), reformas económicas substanciáis quemudaram significativamente a face do texto original da Constituigao. É deproveito analisar mais detidamente o tema. As reformas envolveram trestransformac.oes estruturais que se complementam mas nao se confundem.Duas délas tiveram de ser precedidas de emendas a Constituicáo, ao passoque a terceira se fez mediante a edicao de legislagao infraconstitucional ea prática de atos administrativos. Confira-se, a seguir, cada urna délas.

A primeira transformacao substantiva da ordem económica brasileira foia extingao de determinadas restrigdes ao capital estrangeiro. A EmendaConstitucional n° 6, de 15.08.95, suprimiu o art. 171 da Constitui?ao, quetrazia a conceituacao de empresa brasileira de capital nacional e admitía aoutorga a elas de protecao, beneficios especiáis e preferencias. A mesmaemenda modificou a redacao do art. 176, § Io, para permitir que a pesqui-sa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciáis de ener-gía elétrica sejam concedidos ou autorizados a empresas constituidas sobas leis brasileiras, dispensada a exigencia do controle do capital nacional.Na mesma linha, a Emenda Constitucional n° 7, de 15.08.95, modificou oart. 178, nao mais exigindo que a navega?ao de cabotagem e interior sejaprivativa de embarcacoes nacionais, nem que sejam brasileiros os armado-res, proprietários e comandantes e, pelo menos, dois ter?os dos tripulantes.

A segunda linha de reformas que modificaram a feicao da ordem eco-nómica brasileira foi a chamada flexibilizacao dos monopolios estatais. AEmenda Constitucional n° 5, de 15.08.95, alterou a redacao do § 2° doart. 25, abrindo aos Estados-membros a possibilidade de concederem a em-presas privadas a exploragao dos servicos públicos locáis de distribui?áo degas canalizado, que, anteriormente, só podiam ser delegados a empresa sobcontrole acionário estatal. O mesmo se passou com rela?ao aos servi?os detelecomunicacoes e de radiodifusao sonora e de sons e imagens. É que a

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Emenda Constitucional n° 8, de 15.08.95, modificou o texto dos incisos XIe XII, que só admitiam a concessao a empresa estatal. Na área do petró-leo, a Emenda Constitucional n° 9 rompeu, igualmente, com o monopolioestatal, facultando á Uniao Federal a contrata9áo, com empresas privadas,de atividades relativas á pesquisa e lavra de jazidas de petróleo, gas naturale outros hidrocarbonetos fluidos, a refina?ao do petróleo nacional ouestrangeiro, a importa§áo, exportacáo e transporte dos produtos e deriva-dos básicos de petróleo (outrora vedados pela CF, art. 177 e § 1°, e Lein° 2.004/53).

A terceira transforma?áo económica de relevo — a denominada pri-vatizacáo — operou-se sem alteracao do texto constitucional, com a edi-cáo da Lei 8.031, de 12.04.90, que instituiu o Programa Nacional deDesestatiza9áo, depois substituida pela Lei 9.491, de 9.09.97. O programade desestatiza§ao tem sido levado a efeito por mecanismos como (a) a alie-nacao, em leiláo ñas bolsas de valores, do controle de entidades estatais,tanto as que exploram atividade económica como as que prestam servi?ospúblicos e (b) a concessao de servicos públicos a empresas privadas. Noplano federal foram privatizadas empresas dos setores petroquímico, side-rúrgico, metalúrgico, de fertilizantes e de telecomunica9óes. A venda deempresas tidas outrora como estratégicas, a exemplo da Cia. Vale do RioDoce e da Telebrás, precisou superar reacoes populares localizadas e inú-meras agoes judiciais.

Acrescente-se, em desfecho do levantamento aqui empreendido, que,além das Emendas Constitucionais n°s 5, 6, 7, 8 e 9, assim como da Lei8.031/90, os últimos anos foram marcados por urna fecunda producáolegislativa em temas económicos, que inclui diferentes setores, como: ener-gía (Lei 9.427, de 26.12.96), telecomunica9oes (Lei 9.472, de 16.07.97) epetróleo (Lei 9.478, de 6.08.97), com a cria9áo das respectivas agenciasreguladoras; moderniza9áo dos portos (Lei 8.630, de 25.02.93) e defesa daconcurrencia (Lei 8.884, de 11.06.94); concessóes e permissóes (Leis8.987, de 13.02.95 e 9.074, de 7.07.95), para citar alguns exemplos.

Em 4 de junho de 1998 foi promulgada a Emenda Constitucional n° 19,concretizando a chamada Reforma Administrativa. Em extensa reformu-Ia9áo de dezenas de dispositivos do texto constitucional, foi modificadaa disciplina jurídica de temas relevantes como a introducao do subsidio— parcela única, insuscetível de qualquer acréscimo — para retribui9ao pe-cuniaria de diversas categorías de agentes públicos; supressao da previsáoconstitucional de regime jurídico único; a refixa9áo de um limite máximode remunera9áo dos servidores públicos, tendo como parámetro o subsidiode Ministro do Supremo Tribunal Federal; a flexibiliza9áo do regimeconstitucional da estabilidade, para introdu9áo de exce9óes ao principio ñashipóteses de insuficiencia de desempenho e necessidade de corte de despe-sas, em meio a outras inova9óes. Passados mais de dois anos, a reforma

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nao havia produzido nenhum dos resultados esperados, por falta de consen-so entre os Poderes relativamente á implementacáo das medidas.

Pouco mais á frente, em 4 de outubro de 1998, no primeiro precedentede reeleicáo na historia brasileira, Fernando Henrique Cardoso foi recon-duzido á Presidencia da República, em primeiro turno, com 53,06 % dosvotos. Luís Inácio Lula da Silva ficou mais uma vez em segundo lugar, com31,71%, e Ciro Gomes em terceiro, com 10,97%".

Após as reformas económicas e administrativa, sobreveio a polémicaReforma Previdenciária, materializada na Emenda Constitucional n° 20, de15.12.98, modificando regras concernentes a aposentadoria, tanto no setorprivado (regime geral, art. 201), quanto no privado (regime próprio dosservidores, art. 40). Introduziu-se inovacao substantiva na contagem dotempo para aposentadoria, com a substituicáo do criterio tempo de servigopelo tempo de contribuigao, além da previsáo de idade mínima para aqui-sicáo do direito de passagem á inatividade n.

Diversas outras modificacoes ao texto constitucional foram Íntroduzidas,em aspectos de maior ou menor repercussáo13, perfazendo a assombrosacifra de 28 (vinte e oito) emendas á Constituicáo, as vésperas do seu 12°aniversario. Na mesma ocasiao, aínda se encontravam em discussao peran-te o Congresso Nacional propostas de emenda constitucional contendo,dentre outras, a Reforma do Judiciário, a Reforma Tributaria e a ReformaPolítica.

6. JURISDICÁO CONSTITUCIONAL E PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL

FEDERAL SOB A CONSTITUICÁO DE 1988

A Constitui§áo de 1988 procurou acentuar o papel de corte constitucio-nal do Supremo Tribunal Federal. Foi criado, assim, um novo órgáo judi-ciário, o Superior Tribunal de Justica, ao qual se transferiu, em meio aoutras atribui?6es, a competencia de uniformizacáo da interpretacao do di-reito infraconstitucional federal, mediante apreciacáo do recurso denomina-do especial. Pretendeu-se, assim, que o STF desempenhasse, «precipua-mente, a guarda da Constituicáo», na diccao expressa do caput do art. 102.O desempenho da jurisdic.áo constitucional, ao longo dos dez anos de vi-gencia da Constituicáo, foi marcado por altos e baixos.

" Jornal do Brasil, 10.10.98, p. 5. O Presidente foi reeleito com 35.936.918 votos.12 O regime geral de Previdencia encontra-se disciplinado na Lei 8.212, de 24.7.91 e o

regime próprio do servidor na Lei 9.717, de 27.11.98.13 A Emenda Constitucional n° 23 deu base constitucional á cria9áo do Ministerio da

Defesa, com a extin^ao dos Ministerios da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, transfor-mados em Comandos (Lei Complementar n° 97, de 9.06.99).

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O constituinte de 1988 tomou, sem maior debate político, a decisao gra-ve de manter como integrantes do STF todos os Ministros que haviam sidoinvestidos no Tribunal pelos governos anteriores. Vale dizer: sem embargoda inegável virtude pessoal e intelectual de muitos dos juízes que lá tinhamassento, a corte constitucional brasileira, encarregada de interpretar a novaCarta, era composta de juristas cuja nomeacáo era lacada a crédito do re-gime militar. Sem dever o seu título de investidura á nova ordem, e semcompromisso político com a transforma?ao institucional que se operara noPaís, a Corte reeditou burocráticamente parte da jurisprudencia anterior, bemcomo alimentou inequívoca má-vontade para com algumas inova^oes. Naose escapou, aqui, de urna das patologias crónicas da hermenéutica constitu-cional brasileira, que é a interpretacao retrospectiva, pela qual se procurainterpretar o texto novo de maneira a que ele nao inove nada, mas, ao revés,fique táo parecido quanto possível com o antigo14. Com argucia e espirito,Barbosa Moreira estigmatiza a equivocidade desta postura:

«Poe-se énfase ñas semelhangas, córrese um véu sobre as dife-rengas e conclui-se que, á luz daquelas, e a despeito destas, a disci-plina da materia, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verda-de mudou. É um tipo de interpretagao em que o olhar do intérpretedirige-se antes ao passado que ao presente, e a imagem que ele cap-ta é menos a representagao da realidade que urna sombra fantas-magórica» 15.

Também comprometeu, em ampia medida, o trabalho do Supremo Tri-bunal Federal como corte constitucional o elenco incrivelmente vasto deatribui?5es que nao dizem diretamente com a interpretacáo da Carta. Emtal variedade se incluem competencias em temas como extradicáo, homolo-gacao de sentencas estrangeiras, concessáo do exequátur ás cartas ro-gatorias (e os recursos que tais providencias suscitam) e urna diversificadagama de hipóteses de habeas corpus e mandados de seguranca. Mais quetudo, congestiona o Tribunal a sistemática do recurso extraordinario e aavalanche de agravos de instrumento contra a denegacao de seu seguimen-to. Enquanto as Cortes Constitucionais espalhadas pelo mundo, inclusive aSuprema Corte americana, inspiradora do modelo brasileiro, apreciam al-gumas centenas de processos por ano, o Supremo Tribunal Federal debáte-se em dezenas de milhares de feitos, que desviam a atencao dos Ministrosdas questóes verdadeiramente constitucionais e relevantes16.

14 Sobre este e outros aspectos da interpretado constitucional, v. Luís ROBERTO BAR-ROSO, Interpretagao e aplicagáo da Constituí!fao, 1996.

15 JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, O Poder Judiciário e a efetividade da nova Cons-tituifáo, RF 304/151, 152.

16 Nada obstante isto, faca-se Justina, os acordaos do STF, do ponto de vista estritamen-te técnico e da discussáo doutrínária, nao ñcam a dever, em pesquisa, erudicáo e conhecimen-

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Nao se deve fugir, por igual, da crítica imperativa ao papel desinteressa-damente omisso desempenhado pelo Senado Federal no processo de esco-lha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Seguindo a tradicáo re-publicana brasileira, moldada no constitucionalismo norte-americano, osMinistros do Supremo Tribunal Federal sao nomeados pelo Presidente daRepública, «depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Sena-do Federal» (art. 101, parágrafo único). Afastando-se, todavía, da tradi?áoamericana, o Senado jamáis exerceu tal competencia com aplicacao e inte-resse, limitando-se a chancelar, acriticamente, o ungido do Presidente. Con-vertida a nomeacao, de fato, em uma competencia discricionária unipessoal,a maior ou menor qualidade dos integrantes da Suprema Corte passa a sertributaria da sorte ou da visao de estadista do Presidente da República. Que,como se sabe, nem sempre existe, ou, ao menos, sucumbe eventualmente acircunstancias da política, da amizade e de outras vicissitudes do crónicopatrimonialismo da formacao nacional. De um potencial Ministro do Su-premo Tribunal é legítimo que o Senado e o povo brasileiro queiram saber,antes de sua nomeafao: de onde vem; que experiencia tem; que posi?oesdoutrinárias sustenta; o que pensa sobre questóes institucionais importantescomo, por exemplo, a constitucionalidade da pena de morte, da uniao depessoas do mesmo sexo, da reedicáo de medidas provisorias etc. Fora isto,é pura lotería. Nao se prega nada como uma inquisicao ou um patrulha-mento ideológico, mas a valoriza§áo do cargo pela exposifao pública dapessoa e do ideario de seu ocupante.

A crónica desatencao com a composic.áo do Supremo Tribunal Federalna experiencia constitucional brasileira tem reduzido a importancia de seupapel em momentos graves. Sua falta de lastro representativo, de deferen-cia institucional e de autoridade política efetiva tem impedido que a Corte,pela concretizacáo afirmativa dos grandes principios constitucionais, seja oarbitro das crises políticas. É por esse vacuo de poder que, nos momentosde incerteza, cresce e se desvirtúa o papel das Forcas Armadas. Minha pro-posic.áo é simples: o fortalecimento de uma corte constitucional, que tenhaautoridade institucional e saiba utilizá-la na solucao de conflitos entre osPoderes ou entre estes e a sociedade (com sensibilidade política, o quepode significar, conforme o caso, prudencia ou ousadia), é a salvacáo daConstituic.ao e o antídoto contra golpes de Estado ".

to, as melhores manifestacoes das Cortes estrangeiras. A questao aqui, todavía, nao é de técni-ca, mas, sim, de valorizacáo da atividade de jurisdicáo constitucional por seu caráter seletivoe excepcional. A banalizacao dos pronunciamentos do STF, pela recórreme incidencia de te-mas menores, compromete a visibilidade e relevancia de suas decisoes constitucionais.

17 Sobre o papel das cortes constitucionais na ascensáo do constitucionalismo no mundomoderno, v. BRUCE ACKERMAN, The rise of world constitutionalism, Yale Law School Occa-sional Papers, Second Series, Number 3. Merece registro expresso o valioso empenho do Mi-nistro Sepúlveda Pertence, quando Presidente do STF, em dar visibilidade á Corte e difundir

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Deixando de lado a análise política, cumpre estudar, agora, o funciona-mento efetivo dos mecanismos de afirmacao da supremacia da Constitui-cáo na prática judicial. A jurisdicao constitucional no Brasil, como se sabe,pode ser exercida por via incidental e por via principal18. O controle inci-dental de constitucionalidade é atribuido difusamente aos órgáos do PoderJudiciário, que podem deixar de aplicar, nos casos concretos submetidos ásua apreciacao, norma que considerem inconstitucional. É o mecanismoinspirado na judicial review do direito norte-americano, que teve comogrande precedente a decisao da Suprema Corte no caso Marbury v. Ma-dison19, julgado em 1803.

Já o controle de constitucionalidade por via principal, ou por acáo di-reta, é exercido de forma concentrada pelo Supremo Tribunal Federal, emse tratando de lei ou ato normativo federal ou estadual impugnado emface da Constituicao Federal (art. 102, I, a)20. Cuida-se de controle de na-tureza abstraía e o pronunciamento da Corte produz efeitos erga omnes. Éneste dominio que se sitúa urna das principáis inovacóes da Constituicáode 198821.

De fato, o florescente desenvolvimento da jurisdicao constitucional noBrasil se deveu, substancialmente, á ampliacáo da legitimacao ativa parapropositura da acáo direta de inconstitucionalidade. No regime constitucio-nal anterior, o Procurador-Geral da República detinha o monopolio da de-flagrado do controle abstrato de constitucionalidade, mediante oferecimen-to de representando, para utilizar a designacao entáo empregada. Pela novaCarta, nos termos do art. 103, podem propor a acáo de inconstituciona-lidade: o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa daCámara dos Deputados, a Mesa de Assembléia Legislativa, o Governadorde Estado, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem

pela sociedade o debate sobre o papel institucional do Poder Judiciário. Nao é irrelevante aconstatado de que foi ele o primeiro Ministro que chegou ao Supremo após a promulgacáoda Constituicao de 1988 a assumir-lhe a presidencia.

18 Sobre o tema do controle de constitucionalidade, foram produzidos importantes traba-lhos monográficos durante a vigencia da Constituicáo de 1988, dentre os quais: CLÉMERSONMERLIN CLÉVE, A fiscalizado abstraía de constitucionalidade no direito brasileiro; GfLMARFERREIRA MENDES, Controle de constitucionalidade; RONALDO POLETTI, Controle da consti-tucionalidade das leis.

" 5 U.S. 137.20 A Constituicao prevé, também, no art. 125, § 2°, o controle por via principal concen-

trada perante o Tribunal de Justica dos Estados na hipótese de representacao contra leis ouatos normativos estaduais ou municipais em face da Constituicao do Estado.

21 Nao será objeto de aprofundamento nestas notas a inovacao introduzida pela EC 3/93,representada pela ac.áo declaratoria de constitucionalidade, instrumento que permite ao Presi-dente da República, ás Mesas do Senado e da Cámara e ao Procurador-Geral da Repúblicaobter do STF o pronunciamento sobre a validade de determinada lei ou ato normativo federal,com caráter erga omnes e efeito vinculante relativamente aos demais órgáos do Poder Judici-ário e ao Poder Executivo (CF, arts. 102, I, a e § 2°, e 103, § 4°).

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DOZE ANOS DA CONSTITUICÁO BRASILEIRA DE 1988

dos Advogados do Brasil, partido político com representado no CongressoNacional e confederacao sindical ou entidade de classe de ámbito nacional.

A fecunda producto do Supremo Tribunal Federal em materia de con-trole de constitucionalidade desenvolveu ou consolidou inúmeras linhas ju-risprudenciais de natureza processual na materia, algumas délas sintetiza-das ñas proposites que se seguem22:

a) A decisao que pronuncia a inconstitucionalidade de urna norma temcaráter declaratorio e produz efeitos retroativos;

b) Nao cabe ac.ao direta contra atos normativos secundarios, como de-cretos regulamentares, instrucóes normativas, resolucóes etc;

c) Cabe acao direta contra regulamento autónomo, isto é, aquele quenao visa a regulamentar urna lei, para o fim de verificar se nao houve ofen-sa ao principio constitucional da reserva legal;

d) Declarac.áo de inconstitucionalidade é competencia privativa do Po-der Judiciário. Nao cabe declaracao de inconstitucionalidade de lei ou atonormativo feita por lei;

e) Nao cabe acáo direta contra leis anteriores á Constituicáo;,f) Revogada a lei argüida de inconstitucional, a a§ao direta perde o

objeto;g) Nao cabe a?ao direta contrapondo lei municipal a Constitui§ao Fe-

deral;h) A declaracao de inconstitucionalidade de urna lei restaura a efica-

cia de norma que haja sido por ela afetada;j) Os chefes dos Poderes Executivo e Legislativo podem determinar a

náo-aplicacáo de lei que considerem inconstitucional até a manifesta?áo doJudiciário.

Nao é possível, ñas circunstancias, percorrer a casuística das decisóesde mérito do Supremo Tribunal Federal no exercício de sua jurisdicao cons-titucional. Nada obstante, e com certa arbitrariedade, sao selecionadas, aseguir, algumas linhas jurisprudenciais em temas institucionais relevantes.

Em materia de federagao, a jurisprudencia do STF reproduziu o enten-dimento cristalizado no regime anterior no sentido de impor-se ao consti-tuinte dos Estados-membros observancia estrita do modelo federal, espe-cialmente em relacao ao processo legislativo, inclusive no tocante áiniciativa reservada e aos limites do poder de emenda parlamentar23. Ad-mitiu, ademáis, a medida provisoria em ámbito estadual, prática que, toda-

22 Parte desta jurisprudencia, mas com algumas inovacoes, veio a ser consolidada na Lei9.868, de 10.11.99, que dispós sobre o processo e julgamento da acao direta de inconsti-tucionalidade e da acao declaratoria de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Fe-deral.

23 RDA 199/173 e 191/194.

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via, nao se disseminou24. Considerou contrario ao principio federativo o es-tabelecimento de equiparado ou vinculac.ao entre servidores estaduais efederáis para fins de remunerac,ao25. Ainda em tema de federacáo, houveurna importante decisáo do Superior Tribunal de Justi§a que admitiu comoconstitucio-nal norma de Carta Estadual que condiciona a instaura§áo deprocesso criminal contra o Governador á previa autorizado da AssembléiaLegislativa26.

No dominio das relacoes entre os Poderes, o STF exerceu a competen-cia de declarar a inconstitucionalidade de emenda constitucional, votadapelo Congresso, sob o fundamento de que o poder constituinte derivado ésubordinado á Constituido originaria, nao podendo violar cláusulas pé-treas27. No controle das medidas provisorias, no entanto, a Corte reincidiuna antiga jurisprudencia, firmada em relacáo aos decretos-lei, de nao caberao Judiciário a apreciado da presenca dos requisitos de relevancia e ur-gencia exigidos pelo art. 62. Recentemente, todavía, sinalizou com a ate-nuac.ao de tal entendimento, ao suspender, «excepcionalmente», determi-nado dispositivo «pela falta de urgencia necessária a edicao da medidaprovisoria impugnada»28.

Ainda no ámbito das relacoes entre Poderes, foi fértil a participa?ao doSupremo Tribunal Federal quando da discussao do impeachment do Presi-dente Collor de Mello. Diversos foram os acordaos, merecendo destaqueaquele que firmou as teses jurídicas de que (a) em materia de crime deresponsabilidade do Presidente da República, o direito brasileiro prevé duaspenas autónomas: a perda do cargo e a inabilitacao para o exercício defunc.ao pública; bem como que (b) a renuncia ao cargo, apresentada nasessao de julgamento, quando já iniciado, nao paralisava o processo deimpeachment19.

Ao longo do período de vigencia da Constituic,áo de 1988, ganhou sig-nificativa expressáo política o instituto da comissáo parlamentar de inqué-rito — CPI, que se transformou no principal instrumento da atuacao fis-calizadora do Poder Legislativo. A materia tem sede específica no art. 58,§ 3o da Carta, assim lavrado:

24 RDA 183/151.25 RDA 197/100; RTJ 146/348.26 RDA 184/192.27 RDA 198/123.28 InfSTF 106, ADInMC 1.753-DF, reí. Min. Sepúlveda Pertence, j . 16.4.98, pub. no D.J.

em 12.06.98.29 MS 21.689 — DF, in Impeachment, publicacáo do Supremo Tribunal Federal, 1996.

No processo por crime comum, no entanto, o STF, contra os votos dos Ministros Carlos Vel-loso, Sepúlveda Pertence e Néri da Silveira, absolveu o ex-Presidente da denuncia por crimede corrupcao passiva (RTJ 162/3, AP 307-DF, Reí. Min. limar Galváo).

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DOZE ANOS DA CONSTITUICÁO BRASILEIRA DE 1988

«Art. 58. ...§ 3o A Í comissoes parlamentares de inquérito, que teráo pode-

res de investigando próprios das autoridades judiciais, além de ou-tros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serao criadaspela Cámara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ouseparadamente, mediante requerimento de um terco de seus membros,para apuracdo de fato determinado e por prazo certo, sendo suasconclusoes, se for o caso, encaminhadas ao Ministerio Público, paraque promova a responsabilidade civil ou criminal dos infrotores».

A novidade em relacáo aos textos constitucionais anteriores foi a intro-ducáo da locucao «poderes de investigacao próprios de autoridades judici-ais», cujo conteúdo e extensáo tém sido objeto de ampio debate doutriná-rio e jurisprudencial30. Sem maior controversia, reconhece-se que as CPIspodem, dentre outras competencias, promover diligencias, convocar teste-munhas, requisitar documentos públicos, determinar a exibicáo de docu-mentos privados, convocar autoridades públicas, realizar inspecoes pesso-ais. Mas há aspectos extremamente polémicos que tém sido abordados emdecisoes do Supremo Tribunal Federal, notadamente no que diz respeito áexistencia ou nao de reserva constitucional de jurisdicao para a prática dedeterminados atos. Abaixo, o resumo de algumas teses que tém prevalecidona Corte:

a) Os atos praticados pelas CPIs sao passíveis de controle judicial, in-serindo-se no ámbito da competencia do STF o julgamento de mandado deseguranca e habeas corpus contra eles impetrados31;

b) As CPIs devem ser instauradas para apurar fato determinado. To-davia, nao estáo impedidas de averiguar fatos intimamente ligados ao obje-to principal da investigacáo. A locucao prazo certo, inscrita no § 3o doart. 58 da Constituicao, nao impede prorrogacóes sucessivas dentro da legis-latura32;

c) CPI nao possui competencia para determinar a prisáo de qualquerpessoa, urna vez que, como regra, tal privacao de liberdade somente poderesultar de flagrancia ou de ordem emanada de autoridade judiciária33;

d) Quanto á pessoa investigada, a CPI pode determinar a quebra desigilo bancário, fiscal e telefónico34 desde que a decisáo com tal finalidade

30 Sobre o tema, v. Luís ROBERTO BARROSO, «Comissoes Parlamentares de Inquérito esuas competencias: Política, Direito e Devido Processo Legal», Revista de Direito Renovarn° 15/99.

31 STF, RDA 199/205, HC 71.039, Reí. Min. Paulo Brossard.32 STF, RDA 209/242, HC 71.231-2-RJ, Reí. Min. Carlos Velloso.33 STF.RDA 196/195, HC 71.279, Reí. Min. Celso de Mello.34 O sigilo telefónico em questáo incide sobre os dados/registros telefónicos, nao se iden-

tificando com a inviolabilidade das comunicacoes telefónicas.

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LUÍS ROBERTO BARROSO

seja adequadamente fundamentada, indicando a causa provável da medidae sua necessidade35;

e) Em decorréncia do principio constitucional da separac,áo dos pode-res, CPI nao pode investigar atos materialmente judiciais nem convocar ma-gistrados para explicá-los36;

f) As CPIs nao podem decretar a indisponibilidade de bens, por se tra-tar de medida jurisdicional de caráter cautelar37;

g) A CPI, como qualquer outro órgáo do Estado, nao pode impedir,dificultar ou frustrar o exercício, pelo advogado, das prerrogativas de or-dem profissional que lhe foram outorgadas pelo Estatuto da Advocacia (Lein° 8.906/94)38.

As comissóes parlamentares de inquérito preencheram, nos últimosanos, um espaco importante, tanto na vida política como no imaginariopopular, suprindo demandas de Justina nem sempre eficientemente atendi-das pelo Poder Judiciário. Na sua face menos virtuosa, no entanto, tém sidocenário de episodios de prepotencia parlamentar e de exibicionismo, comexposicao pública de pessoas e juízos precipitados, sem observancia dodevido processo legal.

Merece registro, ainda no tópico das relacóes entre os Poderes, o re-cente cancelamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do verbete 394 daSúmula da jurisprudencia predominante, que tinha a seguinte redacao: «Co-metido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competencia es-pecial por prerrogativa de funcdo, ainda que o inquérito ou a acao penalsejam iniciados após a cessacao daquele exercício». A proposicao subsis-tiu por trinta e cinco anos e foi superada pela interpretacáo do art. 102, I,b, da Constituic.ao Federal, que estabelece a competencia do STF para jul-gar originariamente «ñas infracdes comuns, o Presidente da República, oVice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Minis-tros e o Procurador-Geral da República». Passou-se a entender que o dis-positivo nao se estende aos ex-ocupantes dos cargos referidos, que, por viade conseqüéncia, devem responder perante as instancias ordinarias.

Vejam-se, por fim, alguns marcos na esfera dos direitos fundamentáis.No tocante ao mandado de injuncáo, instrumento criado para permitir aefetivacao de determinados direitos constitucionais prejudicados por omis-sáo legislativa, o Supremo Tribunal Federal minimizou o instituto, tratan-do-o com desconfianca e má-vontade. Na verdade, o entendimento que pre-valeceu foi o de que o objeto do mandado de injuncáo é o de dar meraciencia ao órgao omisso da existencia da omissao — isto é, o mesmo da

35 STF, RDA 218/285, MS 23.553, Reí. Min. Néri da Silveira36 STF, Informativo STF n° 172, HC 79.441-DF, Reí. Min. Octavio Gallotti.37 STF, DJU 22.06.99, p. 31, MS 23.466 (medida liminar), Reí. Min. Sepúlveda Pertence38 STF, RDA 219/308, MS 23.576, Reí. Min. Celso de Mello.

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acao direta de inconstitucionalidade —39, e nao, como prega toda a doutri-na, a atribuicáo de competencia ao Judiciário para formular, nos limites docaso concreto submetido á sua apreciacáo, a regra faltante. A atenuacao darigidez do entendimento inicial em alguns casos posteriores nao serviu paraa reeuperacáo do instituto, que caiu no dominio da desimportáncia40.

No campo do processo penal, a Corte proferiu importantes decisoes narejeicáo as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5o, LVI), dentre as quaisincluiu as interceptares telefónicas clandestinas e mesmo as autorizadasjudicialmente, antes da promulgacao da lei específica que regulamentou ashipóteses e a forma em que o sigilo poderia ser violado (art. 5o, XII)41. OSTF entendeu, também, com base no principio do privilegio contra a auto-incriminacao, nao haver crime de desobediencia na recusa do acusado emfornecer a autoridade policial padrSes gráficos do próprio punho para ins-trucao do processo42.

Ainda em materia probatoria, já agora no ámbito do processo civil, oSupremo, em votacáo dividida, decidiu que em acáo de investigacáo depaternidade o réu nao poderia ser compelido a submeter-se ao exame doDNA. O acórdáo é assim ementado:

«INVESTIGADO DE PATERNIDADE — EXAME DNA — CON-DUQÁO DO RÉU 'DEBAIXO DE VARA'. Discrepa, a mais nao po-der, de garantías constitucionais implícitas e explícitas — preserva-gao da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do cor-po humano, do imperio da lei e da inexecucáo específica e direta daobrigagao de fazer — provimento judicial que, em agao civil de in-vestigagao de paternidade, implique determinagdo no sentido de o réuser conduzido ao laboratorio, 'debaixo de vara', para coleta do ma-terial indispensável á feitura do exame DNA. A recusa resolve-se noplano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina ea jurisprudencia, no que voltadas ao deslinde das questoes ligadas áprova dos fatos»43.

39 RDA 184/226, 1991, MI 107-3-DF, reí Min. Moreira Alves.40 Para urna ampia análise da jurisprudencia e da doutrina sobre o tema, e urna proposta

totalmente diversa para a solucao das omissoes legislativas violadoras de direitos constitucio-nais, v. LUÍS ROBERTO BARROSO, «Mandado de injuncáo: o que foi sem nunca ter sido. Urnaproposta de reformulacáo», in Estudos em homenagem ao Prof. Caio Tácito, 1997, org. porCARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, p. 429.

41 DJU 26.11.93, HC 69.912-0-RS, Reí. para acórdao Min. Carlos Mario Velloso.42 Inf.STF 122, HC 77.135-SP, Reí. Min. limar Galvao.43 HC 71373-4-RS, reí. Min. Marco Aurelio, j . 10.11.94, vencidos os Ministros Rezek,

Pertence e Galváo. Sobre o tema, para urna perspectiva crítica da decisao, v. MARÍA CELINABODIN DE MORAES, «Recusa á realizacáo de exame de DNA na investigacao de paternidade edireitos da personalidade», in Direito, Estado e Sociedade, Revista do Departamento de Direi-to da PUC-Rio, n° 9.

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Em desfecho, é digna de mencáo a ascendente trajetória do principioda razoabilida.de, que os autores sob influencia germánica preferem deno-minar principio da proporcionalidade, na jurisprudencia constitucional bra-sileira. O principio, que a doutrina tem decomposto em tres elementos— adequac.ao entre meio e fim, necessidade da medida e proporcionalidadeem sentido estrito (custo-benefício da providencia adotada) — é um valio-so instrumento de protecáo de direitos e mesmo do interesse público con-tra o abuso de discricionariedade, tanto do legislador quanto do adminis-trador. De fato, por forc.a do principio, excepciona-se a regra tradicional deque os atos públicos sujeitam-se apenas ao controle de legalidade, pois aaferic.áo da razoabilidade enseja exame de mérito. Naturalmente, como naose deseja substituir a discricionariedade dos agentes políticos eleitos pelado Judiciário, a invalidac.ao de leis e atos administrativos com esse fun-damento somente deve ocorrer quando claramente arbitrarios ou capri-chosos44.

O Supremo Tribunal Federal, fundado na invocacáo do principio, pas-sou a inadmitir, por exemplo, discriminafáo em razao da idade na inscri-§ao em concursos públicos, salvo se a restricto passar no teste da razoa-bilidade45. (Alias esse principio faz imperiosa parceria com o da isonomia:embora existam classifica?óes suspeitas — como as fundadas em origem,raca, sexo, cor e idade (art. 3o, IV) — poderáo elas subsistir validamentese atenderem, com razoabilidade, a um fim constitucionalmente legítimo).A Corte serviu-se do principio, igualmente, para invalidar leis que impu-nham ónus exagerado a direito46 ou as que instituíam vantagem absurdapara servidores públicos47.

44 Sobre o tema da razoabilidade, v. os seguintes importantes trabalhos monográficos:SUZANA DE TOLEDO BARROS, O principio da proporcionalidade e o controle de constitu-cionalidade das leis restritivas de direitos fundamentáis; e RAQUEL DENIZE STUMM, Principioda proporcionalidade no direito constitucional brasileiro. V, também, LufS ROBERTO BARRO-SO, Interpretacáo e aplicacáo da Constituicáo, 2* ed., 1998, pp. 198-219, onde o principio darazoabilidade é analíticamente estudado como um dos principios específicos de interpretadoconstitucional.

45 RDA196/103, 1994, RE 174.548-7-AC, reí. Min. Carlos Mario Velloso; RDA 199/153,1995, RO em MS 21.045-5-DF, reí. Min. Celso de Mello.

46 RDA 194/299, 1993, e RTJ 152/455, 1995, ADIn 855-2-PR, reí. Min. Sepúlveda Per-tence: deferiu-se a suspensáo liminar de lei estadual que determinava a pesagem de botijóesde gas liquefeito de petróleo á vista do consumidor.

47 RDA 200/242, 1995, ADIn 1.158-8-AM, reí. Min. Celso de Mello: deu-se por inváli-da lei que concedía gratificac.ao de ferias a servidores ¡nativos.

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7. CONCLUSÓES

a) O constitucionalismo como única alternativa democrática

Desde as grandes revolucóes que abriram caminho para o Estado libe-ral — inglesa (1689), americana (1776) e francesa (1789) —48, o consti-tucionalismo tem se mostrado como a melhor op?ao de limitac.ao do poder,respeito aos direitos e promocáo do progresso. Nada parecido com o Jimda historia49, porque valorizar e prestigiar a Constituicáo nao suprime aquestáo política de definir o que vai dentro déla. Mas o fato é que as ou-tras vias de institucionalizac.ao do poder praticadas ao longo do tempo naose provaram mais atraentes. Vejam-se alguns exemplos.

A historia deste século relata urna proposta alternativa que empolgoucoragóes e mentes pelo mundo afora: a implantacáo do socialismo científi-co, fundado ñas teses do Manifestó Comunista, de 1848, e na densa produ-gao teórica de Marx e Engels. De Lenin a Mao, o projeto de implantadode urna sociedade socialista depositava seus valores e sua fé nao na Cons-tituigao, mas no Partido50, pega essencial e insubstituível no funcionamen-to das instituigdes políticas económicas e sociais dos países que adotaramesse modelo51. Por mais sedutora que possa ter sido ao espirito humano, a

48 Para urna análise preciosa da temática das revolucóes, v. HANNAH ARENDT, On revo-lution, 1987.

49 O autor norte-americano FRANCIS FUKUYAMA publicou, em 1989, um artigo que setornou célebre intitulado «The end of history» (in The National Ínteres! 16/3, 1989). Ali, aofinal da guerra fría, proclamava ele a vitóiia da democracia liberal como consenso universal eque, conseqüentemente, se tería chegado ao «ponto final da evolucáo ideológica da humanida-de». E mais: «que nao haveria mais progresso no desenvolvimento dos principios e das ins-tituicóes básicas, porque todas as questóes realmente importantes estariam resolvidas». Apolémica tese virou tema de livro, com edicao brasileira: O fim da historia e o último ho-mem, 1992.

50 V. BRUCE ACKERMAN, ob. cit., p. 8: «lncreasingly (though not invariably), liberalconstitutionalists turned away from constitutions as the supreme achievement of popular sove-reignty. And then carne 1917: lnstead of placing their faith in a constituent assembly for-mulating a constitutional text, the Bolsheviks put their faith in a ruling party to serve as acontinuing vehicle for the collective breakthrough. Their apparent success inspired many otherrevolutionary movements to look upon the party, not the constitution, as the great achievementthat would serve to institutionalize their political success».

51 Expressando, didaticámente, conceitos desenvolvidos sobretudo por Lenin, fundadordo Partido Operario Social-Democrata Russo, e principal líder da ala do Partido conhecidacomo Bolchevique, escreveu CAIO PRADO JÚNIOR, O mundo do socialismo, 1967, pp. 111-2e 121: «O partido comunista se faz entáo, por destinacao natural que decorre de sua natureza(...) em órgao condutor e dirigente de todo processo histórico de transformacao social quelevará ao socialismo. Nessa altura, o partido comunista já nao conserva mais nada, prcipria-mente, ou muito pouco daquilo que correntemenle se atribuí no mundo capitalista aos partidospolíticos. Ele será urna organizacáo onipresente em todos os setores da vida social, e que tem

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idéia socialista de Estado e de sociedade fracassou, pervertida em uma ex-periencia autoritaria e burocrática.

Uma outra variante foi vivida e sofrida por grande número de Países daAmérica Latina, e ainda prevalece em boa parte da África: o exercício dopoder sob a tutela das Forgas Armadas, e nao da Constituicao e dos tribu-nais. O fracasso desta via pode ser contabilizado em corpos, em dividas ouem crise social, conforme o caso e a preferencia. A tentacao militar con-duz, inevitavelmente, ao autoritarismo e ao predominio das oligarquías quese acumpliciam com o poder. Assim é porque sempre foi.

O último quarto de século assistiu ao florescimento de um outro proje-to alternativo: o fundamentalismo islámico. Aqui, a Constituicao é substi-tuida pelo Corno, pondo fim a separacáo entre Estado e religiáo. O gover-no dos aiatolás funda-se no repudio aos valores ocidentais, no rebaixamentoda condicao feminina e na intolerancia política e religiosa. A atormentadaexperiencia do Irá tem sido a vitrine desse modelo, que tem seguidoresorganizados em Países como Egito, Argelia, Líbano e Afeganistáo.

Constitucionalismo, unipartidarismo, militarismo e fundamentalismo.Estes os destinos possíveis. A escolha nao é farta.

b) O sucesso político-institucional da Constituicao de 1988

A Constituicao de 1988 instrumentalizou a travessia de uma longa dita-dura de quase um quarto de século para um Estado democrático de direito.Ao longo dos doze anos de sua vigencia, marcados pela estabilidade polí-tica e pela continuidade institucional, os Poderes do Estado funcionaramregularmente e os direitos, em linhas gerais, foram respeitados. Mais nota-damente, em um País marcado pelo golpismo desde os primordios da Re-pública, a Constituicao foi capaz de absorver, sem traumas na legalidade,conflitos eleitorais e políticos que, em outros tempos, teriam trazido abalose mesmo rupturas52.

De fato, nao é desimportante lembrar que, em 1989, o candidato doPartido dos Trabalhadores ficou a poucos pontos percentuais da conquistada Presidencia da República. Pela primeira vez na historia brasileira, hou-ve a possibilidade real de uma lideranca da classe trabalhadora, com dis-

por funcao orientar no seu conjunto, como em todos seus pormenores, a reorganizacáo do paíssobre bases socialistas. (...) É sobre eles que recai a maior responsabilidade nesses países: ada direcao suprema da revolucao socialista.»

52 Para uma interessante análise de um observador externo sobre o insucesso crónico doconstitucionalismo na América Latina, em contraste com seu éxito nos Estados Unidos, veja-se KEITH S. ROSENN, «The success of constitutionalism in the United States and its failure inLatín America: an explanation», in The Inter-American Law Review, The University of Miami,vol. 22, n. 1, 1990.

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curso que a dicotomía tradicional nao hesitaría em qualificar como deesquerda, chegar ao poder. Nao se cogitou de desrespeito ao eventual resul-tado das urnas nem de golpe de Estado. Pode ter passado despercebido,mas menos de dez anos antes o mesmo candidato estava preso e processa-do pela Lei de Seguranca Nacional por liderar reivindicacoes sindicáis. Naofoi pequeña a evolucáo.

Logo á frente, em 1992, o procedimento de impeachment do PresidenteCollor de Mello tramitou, tanto na Cámara dos Deputados como no Sena-do Federal, sem que se registrasse qualquer sobressalto institucional. Naosao muitos os Países em desenvolvimento que podem ostentar a pacíficadestituicáo de um Presidente da República dentro do quadro constitucionalpreestabelecido, com a posse do Vice-Presidente e conclusáo regular domandato. Ao longo do episodio, todas as instituicóes se superaram: o Con-gresso, o Judiciário, as Forjas Armadas. As Forjas Armadas, alias, em pro-va de maturidade e assimilacao dos novos tempos, permanecerán! exemplar-mente afastadas da efervescencia política. Nenhuma ordem do dia. Quemsoube a sombra, sabe a luz.

Poderes limitados (dentro, naturalmente, da tradicáo presidencial-impe-rial brasileira)", direitos individuáis respeitados e absorcao institucionaldas crises políticas. Do ponto de vista político-institucional, a Constituicáode 1988 foi um retumbante sucesso54.

c) O defeito evidente: texto casuístico, prolixo e corporativo

Já se reconheceu, em passagem anterior, que o constituinte de 1988produziu um texto que, mais do que analítico, é casuístico, prolixo ecorporativista em muitos momentos. Tal constata?áo reintroduz o discurso

53 O maior legado que o Presidente reeleito poderá deixar, do ponto de vista institu-cional, será a revisáo do presidencialismo no Brasil, com reducao de poderes do Executivo,profissionalizac,ao das comissoes permanentes do Congresso e valorizacáo do Judiciário. So-bre o tema, veja-se o agudo comentario de Roberto Mangabeira Unger: «Com o plebiscito,mantivemos o presidencialismo clássico, que é o grande potencial desestabilizador da políticabrasileira, o grande fator de imprevisao. Mas o presidencialismo clássico tem um defeito fatalpara a nossa democracia. O presidente é forte para favorecer, mas é fraco para transformar.Eleito prometendo mundos e fundos para o eleitorado, logo encontra, entrincheirada no Con-gresso Nacional e ñas outras instituicóes de élite, urna maioria cripto-conservadora. E ai se dáo dilema: ou o Presidente se rende a essa maioria ou agita contra ela de forma cesarista, pon-do a democracia em perigo» (Exposicáo na Assembléia Legislativa do Estado de Minas Ge-rais, 1993, mimeo).

54 Em sentido diametralmente oposto, com implacável crítica á Constituicao e seu de-sempenho, v. FÁBIO KONDER COMPARATO, in Crítica (CACO-UFRJ), pp. 12-3: «Nao sejamosridículos. A Constituicáo de 1988 nao está mais em vigor. (...) É triste morrer táo moca, semchegar nem mesmo á adolescencia!».

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recórreme de que o ideal seria uma Constituicao sintética, principiológica,que tornasse mais singelos e menos traumáticos os processos de mutacáoconstitucional. A idéia é ótima, e nao é nova: tem mais de 210 anos, setomarmos como marco a Convencáo de Filadélfía de 1787. Sua importacáopara o Brasil é uma tenta?áo continua. Naturalmente, para que pudesse darcerto, precisaríamos também importar os puritanos ingleses que coloniza-ram os Estados Unidos, assim como a tradic.áo do common law e a decla-rac.áo de Virginia. Ajudaria, também, se permutássemos D. Pedro I porGeorge Washington e José Bonifacio por James Madison. Ruy Barbosa fi-caria. Ah, sim: sem uma guerra civil sangrenta e quinhentos mil mortos aimportacáo também seria um fiasco55.

Superado o argumento, volta-se á inevitabilidade do texto analítico.Muitas sao as causas que conduzem ao texto espichado. Algumas legítimas,outras patológicas. Em primeiro lugar, no caso brasileiro de 1988, como jáobservado, a ansia de participac,áo de uma sociedade longamente margina-lizada do processo político. Em segundo lugar, pela razáo constatada pelogrande jurista M. Seabra Fagundes, que ainda estava vivo e atuante quandodo nascimento da Carta: «no Brasil é preciso dizer tudo tintim por tintim,senao nao se cumpre». Por traz do prosaísmo do autor potiguar, a cons-tata?áo inafastável: diz-se muito na Constituicáo por desconfianza de seusintérpretes. Nao nos sentimos seguros ñas maos do Judiciário e do Congres-so. Quanto menos subjetividade se deixar, melhor. E, reconheca-se, mesmoassim os sobressaltos se multiplican!56.

A terceira causa dos textos longilíneos é patológica, dramáticamentepatológica: o atávico patrimonialismo da formac,áo social brasileira. Emoutro estudo qualifícamos o termo:

«O colonialismo portugués, que, como o espanhol, foi produto deuma monarquía absolutista, assentou as bases do patrimonialismo,arquetipo de relacoes políticas, económicas e sociais que predispdema burocracia, ao paternalismo, á ineficiéncia e a corrupcáo. Os ad-

55 Em observado pertinente, BRUCE ACKERMAN, ob. cit., p. 3, assinalou que a Consti-tuicao norte-americana deve ser vista como um caso especial, e nao como um modelo. Lite-ralmente: «We tnust learn to look upon the American experience as a special case, not as theparadigmatic case».

56 Um exemplo, em meio a muitos, ilustra a tese. O inciso XI do art. 37 do texto origi-nal da Constituicao estabelecia como limite máximo de remunera9ao «os valores percebidoscomo remunerac3o, em especie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Mi-nistros de Estado e Ministros do Supremo Tribunal Federal». A despeito da contundencia dalocucjio a qualquer título, a jurisprudencia do Supremo Tribunal Federal, por maioria quaseunánime (contra uma única dissidéncia, do Min. Marco Aurelio), entendeu que estavam exclu-idas as chamadas «vantagens pessoais», porta larga por onde entravam vantagens polpudas eirrazoáveis decorrentes de incorporacóes, acumulac,des e desvíos variados. Foi preciso umaemenda constitucional para dizer o que já estava dito.

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DOZE ANOS DA CONSTITUICÁO BRASILEIRA DE 1988

ministradores designados ligavam-se ao Monarca por lagos de leál-dade pessoal e por objetivos comuns de lucro, antes que por princi-pios de legitimidade e dever funcional. Daí a gestáo da coisa públicaem obediencia a pressupostos privatistas e estamentais, de modo atraduzir fielmente, na Administracao Pública, as aspiracoes ¡media-tas da classe que Ihe compoe o quadro burocrático. O agente público,assim, moralmente descomprometido com o servigo público e suaeficiencia, age em funcao da retribuigao material e do prestigiosocial» ".

A má definic.áo entre o espado público e o espac.o privado, aliado aopopulismo paternalista entranhado em nossa prática política, infla a Cons-tituic,áo com disposic,óes que, de um lado, protegem os canarios, tanto osliterais58 como os figurados59, e, de outro, acenam com benesses retóricas.O Estado, apropriado pelo estamento dominante, é o provedor de garantíasmúltiplas para os ricos e de promessas para os pobres. Em um País semtradi?áo de respeito aos direitos, a constituinte termina sendo urna ca?a aosprivilegios. Criam-se diferentes castas dos que sao mais iguais. Alguns con-seguem um lugar sob o sol da protec.ao constitucional direta. Outros ficamno morma?o das normas que sinalizam o status, mas precisarao ser inte-gradas pelo legislador infraconstitucional. A maioria fica sob o sereno dasnormas programáticas, as que prometem saúde, cultura e terceira idadetranquila. Mas só quando for possível.

57 Patrimonialismo, surpreendentemente, nao é um vocábulo dicionarizado na Hngua por-tuguesa (v. Aurelio Buarque de Holanda, Caldas Aulete e Laudelino Freiré). Trata-se de umconceito devido a Max Weber (v. Ensaios de sociología, 1971, onde se reproduz o ensaio «Apolftica como vocacao», traduzido do original Politlk ais Beruf, publicado em 1910) e intro-duzido no Brasil por Sergio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, cuja 1* edicáo é de 1936).É ele objeto de densa reflexao por Raymundo Faoro (Os donos do poder, cit.) e está presente,também, embora sem referencia expressa, em obra de Caio Prado Júnior (Formacao do Brasilcontemporáneo, cuja 1* edicáo é de 1942), notadamente no penúltimo capítulo, dedicado á«Administracáo». Em nosso O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 1996,pp. 8-9, o tema foi abordado com o seguinte comentario: «Por tras das idas e vindas, do avan-co e do recuo, diáfanamente encoberta, a heranca maldita do patrimonialismo: o cargo públi-co. O poder de nomear, de creditar-se favores, de cobrar do agente público antes o reconheci-mento e a gratidáo do que o dever funcional. A lealdade ao chefe, nao ao Estado, muito menosao povo. A autorídade, em vez de institucionalizar-se, personaliza-se. Em seguida, corrómpe-se, nem sempre pelo dinheiro, mas pelo favor, devido ou buscado». Veja-se, sobre esta e ou-tras disfuncóes nacionais, KEITH S. ROSENN, «Brazil's legal culture: the jeito revisited», inFlorida International Law Journal, vol. I, n. 1, 1984. Esse estudo ganhou urna edicáo brasi-leira, revista e ampliada, publicada sob o título «O jeito na cultura jurídica brasileira», 1998.

58 Art. 236: «Os' servicos notaríais e de registro sao exercidos em caráter privado, pordelegacáo do Poder Público».

59 Art. 199, § 3o: «É vedada a participado direta ou indireta de empresas ou capitaisestrangeiros na assisténcia á saúde no País, salvo nos casos previstos em lei».

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LUÍS ROBERTO BARROSO

Nao sem certa ironía, o combate ao patrimonialismo também é respon-sável pelo alongamento do texto constitucional. O capítulo dedicado á Ad-ministracáo Pública esparrama-se por muitas dezenas de dispositivos nosquais se procura impedir, de forma detalhada e expressa, o que em outrassociedades prescinde de normas: o uso do poder público em proveito pró-prio. Ali estáo, por exemplo, os preceptivos que visam a impedir ofavorecimento pessoal e o nepotismo, dentre outros males crónicos, pelaexigencia de concursos públicos para provimento de cargos, licitado paracontratado pela Administrac.ao e o estabelecimento de tetos e outras regrasremuneratorias. Emblemática, na materia, é a vedacáo expressa de promo-gáo pessoal com dinheiro público, materializada no § Io do art. 37:

«A publicidade dos atos, programas, obras, servicos e campanhasdos órgaos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou deorientagao social, déla nao podendo constar nomes, símbolos ou ima-gens que caracterizem promogáo pessoal de autoridades ou servido-res públicos».

A verdade é que, em urna síntese de diversos males históricos, acumu-lamos, nesses primeiros 500 anos, as relagoes de dependencia social dofeudalismo, a vocacao autoritaria do absolutismo e o modelo excludenteda aristocracia. A Constituicao de 1988 é vítima, e nao causa, dessas vi-cissitudes. E a muitas délas combate com bravura A outras capitulou. Emseu texto antológico publicado em 1981, já referido, escreveu RaymundoFaoro:

«O que há no Brasil de liberal e democrático vem de suas cons-tituintes e o que há no Brasil de estamental e elitista vem das outor-gas, das emendas e dos atos de forca. Nunca o Poder Constituinteconseguiu ñas suas quatro tentativas vencer o aparelhamento de po-der, firmemente ancorado ao patrimonialismo de Estado, mas essasinvestidas foram as únicas que arvoraram a insignia da luta, liberan-do energías parcialmente frustradas. O malogro parcial nao prestacomo argumento contra as constituintes, senáo que, ap contrario,convida a revitalizá-las, urna vez que, franqueadas das escoltas esta-tais autoritarias, encontrarao o rumo da maioria e da sociedade real(...) . O que a imperfeigao da obra mostra é, apesar da adversidade,que o rio da democracia nao tem outro leito por onde possa correr.O desastre histórico maior seria o salvacionismo das minorías, con-geladas em privilegios, dispostas a, para manté-los, afastar o povodas deliberagoes políticas»60.

60 RAYMUNDO FAORO, Assembléia constituinte: a legitimidade recuperada, 1981, p. 92.

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d) A conseqüéncia inevitável: a mutacao constitucional constante

A Carta de 1988, como decorre dessa longa exposicáo, nao é a Consti-tuido da nossa maturidade institucional. É a Constituigáo das nossas cir-cunstancias. Transformada em um espaco de luta política, a constituinte de1988 produziu um documento que sofre em demasia o impacto de certasmodificacoes conjunturais. Ao lado disso, há no Brasil urna crónicacompulsáo dos governantes de modificar a Constituicao para fazé-la á ima-gem e semelhanc.a de seus governos. Urna especie de narcisismo constitu-cional.

Constituicoes devem ter vocacáo de permanencia — ensina, de longadata, a melhor doutrina constitucional. Nao temos aprendido a li?áo. Emparte por peculiaridades de sua elaboracáo e em parte por falta de senti-mento constitucional dos governantes, a Carta brasileira tem variado aosabor de conjunturas passageiras e polémicas efémeras. Daí o fato de che-gar as véspera de seu décimo-segundo aniversario já tendo sofrido 25 re-formas (19 emendas e 6 emendas de revisao, de 1993) e com a perspectivaimediata de outras tantas.

Por paradoxal que possa parecer, a reiterada sucessao de emendas reve-la urna preocupa?áo nova: a de nao descumprir simplesmente a Constitui-cao, de nao atropelá-la, como de nossa tradigáo, mas reformá-la na disputapolítica pelo quorum qualificado. É consolo pequeño. E é preciso reconhe-cer que, nesse particular, o ciclo do amadurecimento institucional brasilei-ro ainda nao se completou.

e) A efetividade da Constituicao e o nascimento de um sentimentoconstitucional

Ao longo da historia brasileira, sobretodo nos períodos ditatoriais, reser-vou-se ao direito constitucional um papel menor, marginal. Nele buscou-senao o caminho, mas o desvio; nao a verdade, mas o disfarce. A Constituicaode 1988, com suas virtudes e imperfeicóes, teve o mérito de criar um ambi-ente propicio á superacáo dessas patologías e á difusao de um sentimentoconstitucional, apto a inspirar urna atitude de acatamento e afeicao em rela-cao á Lei Maior. O último decenio é marcado pela preocupado, tanto dopróprio constituinte como da doutrina e dos tribunais, com a efetividade dotexto constitucional, isto é, com o seu real cumprimento, com a concretiza-§ao da norma no mundo dos fatos e na vida das pessoas61.

61 Para urna ampia análise do tema, v. Luís ROBERTO BARROSO, O direito constitucionale a efetividade de suas normas, 1996.

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LUÍS ROBERTO BARROSO

A patología do autoritarismo, aliada a certas concepcóes doutrináriasretrógradas, havia destituido outras constituifóes de sua forca normativa,convertendo-as em um repositorio de promessas vagas e exortacóes ao le-gislador infraconstitucional, sem aplicabilidade direta e imediata. A Cons-titui?ao de 1988 teve o mérito elevado de romper com este imobilismo.Embora ainda existam disposicóes inoperantes, o Texto em vigor, tantoquanto carta de direitos quanto como instrumento de governo, é urna reali-dade viva na prática dos cidadáos e dos Poderes Públicos.

Urna Constituicao nao é só técnica. Tem de haver, por tras déla, a ca-pacidade de simbolizar conquistas e de mobilizar o imaginario das pessoaspara novos avancos. O surgimento de um sentimento constitucional no Paísé algo que merece ser celebrado. Trata-se de um sentimento ainda tímido,mas real e sincero, de maior respeito e até um certo carinho pela Lei Mai-or, a despeito da volubilidade de seu texto. É um grande progresso. Supe-ramos a crónica indiferenca que, históricamente, se manteve em relacao aConstituicáo. E para os que sabem, é a indiferenca, nao o odio, o contrariodo amor.

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