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Universidade do Minho

Escola de Direito

ANUÁRIO PUBLICISTA DA ESCOLA DE DIREITO

DA UNIVERSIDADE DO MINHO

Tomo II, Ano de 2013 – ÉTICA E DIREITO

ESCOLA DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO MINHO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PÚBLICAS

BRAGA 2014

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ANUÁRIO PUBLICISTA DA ESCOLA DE DIREITO

DA UNIVERSIDADE DO MINHO

Tomo II, Ano de 2013 – ÉTICA E DIREITO

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Título:

Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho – Tomo II, Ano

de 2013 – Ética e Direito

Coordenação:

Joaquim Freitas da Rocha

Edição:

Departamento de Ciências Jurídicas Públicas

Escola de Direito da Universidade do Minho

Campus de Gualtar

4710-057 Braga

Telefone: 253 601 800 / 253 601 801

Fax: 253 601 809

e-mail: [email protected]

URL: http://www.direito.uminho.pt

ISBN: 978-989-97970-3-1

Data: Março de 2014

(*) Esta publicação segue as regras do novo acordo ortográfico, salvo indicação contrária em alguns textos.

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Índice

ANA TERESA CARNEIRO – Entre as duas faces de Janus: o recurso

extraordinário de revisão, em particular, as alíneas a) e b) do n.º 1

do art. 449.º do Código de Processo Penal ……………………………………………

ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA – Competências próprias e

delegadas das freguesias: uma desigualdade inaceitável …………………………

CLÁUDIA FIGUEIRAS – A prevenção do conflito tributário:

a importância de uma ética tributária (?)…………………………………………….

FERNANDO CONDE MONTEIRO – Ética e direito penal

(Reflexões epistemológicas sobre as relações entre ética e

direito penal em face do direito positivo português) ………………………………..

ISABEL CELESTE M. FONSECA – A revisão do Código do Procedimento

Administrativo: pontos (mais) fortes e pontos (mais) fracos ……………………….

JOANA COVELO DE ABREU – O procedimento europeu de injunção

de pagamento: solução simplificada de cobrança de

créditos transfronteiriços? ……………………………………………………………...

JOÃO SÉRGIO RIBEIRO – A diretiva relativa à cooperação administrativa

no domínio da fiscalidade ……………………………………………………………...

JOAQUIM FREITAS DA ROCHA – Contributo para um conceito de

democracia plena ………………………………………………………………………..

PEDRO CRUZ E SILVA – Uma análise (também crítica) do “novo” princípio

da boa administração no projecto de revisão do

Código do Procedimento Administrativo ……………………………………………

SOPHIE PEREZ FERNANDES – O Tribunal de Justiça e o respeito pela

identidade (constitucional) nacional dos Estados-Membros ……………………….

TIAGO LOPES DE AZEVEDO – O direito das contraordenações e o

princípio da proibição da reformatio in pejus: em especial, a Lei-Quadro

das Contraordenações Ambientais, o Código dos Valores Mobiliários e

o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeira …………….

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Colaboram nesta publicação

Ana Teresa Carneiro

António Cândido de Oliveira

Cláudia Figueiras

Fernando Conde Monteiro

Isabel Celeste M. Fonseca

Joana Covelo de Abreu

João Sérgio Ribeiro

Joaquim Freitas da Rocha

Pedro Cruz e Silva

Sophie Perez Fernandes

Tiago Lopes de Azevedo

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O direito das contraordenações e o princípio da proibição da reformatio

in pejus: em especial, a Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais,

o Código dos Valores Mobiliários e o Regime Geral das Instituições de

Crédito e Sociedades Financeiras

Tiago Lopes de Azevedo

Sumário: Introdução. I. O princípio sancionatório da proibição da reformatio

in pejus. 1. Natureza jurídica. 2. Aproximação histórica. 2.1. No direito

português. 2.2. No direito comparado. II. O direito sancionatório contra-

ordenacional. 1. Natureza jurídica. 2. O direito internacional e o direito contra-

ordenacional. III. A proibição da reformatio in pejus no direito sancionatório

contraordenacional. 1. Regra geral: o art. 72.º-A do Regime Geral das Contra-

ordenações. 2. Exceção: A Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, o

Código dos Valores Mobiliários e o Regime Geral das Instituições de Crédito e

Sociedades Financeiras. 3. Doutrina existente divergente. 4. Posição defendida.

4.1. Manutenção de garantias de defesa do arguido. 4.2. Procura da verdade

material. 4.3. Celeridade processual. 4.4. Posição seguida. Bibliografia.

Introdução

O direito das contraordenações tem andado esquecido da Academia.

Urge laborar neste singular ramo de direito sancionatório uma orientação sis-

temática, doutrinariamente sedimentada e não votada ao abandono e à disposi-

ção de evidentes conveniências económicas estaduais sem ligação a verdadeiras

finalidades sancionatórias (1).

Reflexo desta avidez tributária, que atravessa de fio a pavio o poder legis-

lativo, é precisamente o abandono cada vez mais frequente de um dos princí-

pios que julgávamos estar devidamente sedimentado na ordem jurídica portu-

guesa. Mas não está. Aliás, o acolhimento da reformatio in pejus vai surgindo em

áreas onde o direito das contraordenações parece tomar uma nova vida – na

Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, no Código dos Valores Mobiliá-

rios e no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.

Concentramo-nos no problema, que se pretende aprofundar, o qual se

expõe na possibilidade legal que o órgão jurisdicional de recurso tem em agra-

(1) Em jeito de desabafo, não nos inibimos de referir: já é tempo de a Academia pensar

seriamente numa teoria geral do ilícito contraordenacional.

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var a sanção aplicada em Primeira Instância aos arguidos contraordenacionais

nas referidas áreas, quando só o referido sujeito processual recorreu ou o pró-

prio Ministério Público recorreu no exclusivo interesse do arguido.

Tentaremos, sistematicamente, partir da origem do princípio da proibi-

ção da reformatio in pejus e posteriormente enquadrá-lo devidamente no direito

sancionatório contraordenacional e direito internacional, sempre com o auxílio

da jurisprudência e doutrina que no nosso entender se mostram mais fiéis à

ideia de direito sancionatório. O direito molda-se com precisão se contar com

uma doutrina e jurisprudência mais fiel aos princípios nucleares.

I. O princípio sancionatório da proibição da reformatio in pejus

1. Natureza jurídica

São várias as razões apontadas por estudiosos para a consagração da

proibição da reformatio in pejus.

Alguns autores entendem que a proibição da reformatio in pejus advém do

princípio civilístico do dispositivo, na medida em que apenas os sujeitos pro-

cessuais têm a possibilidade de fixar o thema decidendum, ficando tal possibili-

dade vedada ao tribunal superior. Este tribunal não tem a possibilidade de

agravar a sanção para além do pedido dos sujeitos processuais (2).

Para OTTORINO VANNINI, a proibição da reformatio in pejus tem como base o

interesse do sujeito processual que recorreu. Tendo em conta que o recurso, nes-

te caso, é interposto no exclusivo interesse do acusado, então esse mesmo recur-

so não pode aplicar sanções contrárias ao interesse do referido recorrente (3).

Segundo outra doutrina, a proibição da reformatio in pejus visa fomentar

precisamente a interposição de recursos, para que haja maiores probabilidades

de um melhor julgamento da causa, através de um novo reexame crítico, em

que o acusado não tem receio de lhe vir a ser aplicada uma sanção mais gra-

ve (4).

(2) Cfr. SABATINI, Guglielmo, “Reformatio in pejus”, in Novissimo Digesto Italiano, vol XIV,

[s. n.], 1957, p. 1122.

(3) VANNINI, Ottorino, Manuale di diritto processuale penale italiano, Milano: A. Giuffrè,

1965, p. 242.

(4) Assim, PISANI, Mario, Il divieto della “reformatio in peius" nel processo penale italiano,

Giuffrè, 1967, p. 58.

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Constatamos ainda que para outros autores, o receio do acusado em

recorrer e a sua inércia em interpor o respetivo recurso são apenas o reflexo de

uma decisão a quo justa. Assim, a proibição da reformatio in pejus serviria apenas

para ajudar a que esses condenados justamente apresentassem recurso, aumen-

tando por isso quer a pendência processual nos tribunais superiores, quer a

possibilidade de ser aplicada uma sanção mais leve e injusta (5).

Um outro fator que nos parece igualmente relevante é relativo à relação

entre a proibição da reformatio in pejus e o tipo de Estado in casu.

Já defendemos noutra sede que há uma relação entre o tipo de Estado, os

serviços que esse estado presta e as contrapartidas que este exige, designada-

mente ao nível das garantias processuais aos seus administrados (6). Pensamos

que há uma relação crescente entre os serviços que a comunidade solicita ao

Estado, a prestação desses serviços e a contraprestação ao nível das garantias

processuais dos sancionados. V.g., há maior regulação sancionatória porque a

sociedade o exige? Consequentemente, o legislador cria mais obstáculos a um

efetivo recurso por parte das entidades reguladas? Há possibilidade de recurso

em matéria de direito ou só em matéria de facto? E, para o que nos interessa, há

lugar à reformatio in pejus ou esta é vedada aos órgãos jurisdicionais superiores?

2. Aproximação histórica

É sabido que o direito romano não contemplava o princípio da reformatio

in pejus. Segundo alguma doutrina, este princípio tem a sua origem no século

XVIII, suportado pela teoria dos direitos adquiridos à época segundo a qual,

após a primeira sentença, o arguido (assim designado no direito português)

adquiria o direito de não lhe ser aplicada uma sanção mais grave. Para outra

doutrina, o referido princípio tem a sua origem numa decisão do Conselho de

Estado francês, em 12 de novembro de 1806 (7).

(5) Cfr., DELITALA, Giacomo, Il Divieto della Reformatio in Pejus nel Processo Penale, Milano:

Societã editrice «VIta e Pensiero», 1927, p. 213.

( 6 ) AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações:

Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, 1.a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 23, 24.

(7) Para maiores pormenores, cfr. DELITALA, Giacomo, Il Divieto della Reformatio in Pejus

nel Processo Penale, cit., pp. 195 e ss.

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2.1. No direito português

Recuando o benevolente leitor até às Ordenações Filipinas de 1595 ou ao

Regime da Reforma Judiciária de 1841, não encontrará limitações à atuação san-

cionatória do tribunal ad quem. De facto, tais limitações começaram claramente a

ser questionadas na doutrina e jurisprudência, segundo pensamos, com o Códi-

go de Processo Penal de 1929.

Estamos convictos que o primeiro marco jurisprudencial relativo ao

princípio da (proibição) da reformatio in pejus terá ocorrido com o Assento de 4

de maio de 1950. Pela primeira vez na ordem jurídica portuguesa, o Supremo

Tribunal de Justiça firmava a obtenção de uma decisão justa como a finalidade

primordial do sistema sancionatório. Neste aresto, com aliás quatro votos de

vencido, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a jurisprudência de acordo com a

orientação de que em “recurso penal, embora só interposto pelo reu [sic], pode

o Tribunal agravar a pena” (8). Vejamos com maior pormenor.

Aquele Tribunal começou por explanar que os tribunais superiores não

tinham limitações legais, quer ao nível do Código de Processo Penal de 1929,

quer quanto a legislação complementar, relativas à extensão da apreciação

jurisdicional. Nesses termos, tal juízo devia ser apreciado com recurso aos prin-

cípios gerais de direito que orientavam o processo penal.

Ora, analisado o caráter público do direito processual penal, o Supremo

Tribunal de Justiça entendeu que o ius imperii estadual implicava obrigatoria-

mente a devida liberdade de aplicação de sanções que julgassem adequadas ao

caso, sem com isso estarem limitados ao objeto do recurso indicado pelos sujei-

tos processuais. O caráter público obstava pois a que houvesse limites à cogni-

ção dos órgãos jurisdicionais superiores.

Por outro lado, o princípio da aplicação da sanção justa era igualmente

beliscado caso a reformatio in pejus ficasse limitada. O facto de os tribunais supe-

riores ficarem limitados à fixação do objeto dos recursos efetuada pelos sujeitos

processuais criminais restringia indevidamente a finalidade de aplicar uma san-

ção justa (9).

(8) Cfr. Sumário do aresto, em Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.05.1950,

Relator António de Magalhães Barros (Processo n.º 026890 1950).

(9) O mesmo não ocorria à data no âmbito processual civilístico, onde as partes fixavam

de facto o objeto do recurso, o que aliás o respetivo Código de Processo Civil previa expres-

samente, no seu art. 685.º.

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No referido aresto foi ainda indicado o art. 663.º do referido Código de

Processo Penal, o qual, previa que os tribunais ad quem deviam conhecer da

causa em relação a todos os réus (hodiernamente designados por arguidos),

mesmo que apenas alguns réus interpusessem recurso. Assim, ao abrigo do

princípio da unicidade ou incindibilidade das decisões penais, entendeu o Tri-

bunal que o legislador pretendeu abrir a possibilidade dos tribunais superiores

conhecerem além do objeto do recurso fixado pelos réus que recorreram. A

decisão superior abrangia pois os réus que não tinham interposto o respetivo

recurso mas que, apesar dessa inércia, teriam os seus factos conhecidos na ins-

tância de recurso.

Cumpre ainda salientar que até 1965, com a publicação e entrada em

vigor do Decreto-Lei n.º 46 206, estava consagrada no Código de Processo Mili-

tar a proibição da reformatio in pejus, situação que com a entrada em vigor do

referido diploma se alterar, de forma a efetuar-se uma aproximação ao regime

processualista criminal comum.

Só em em 1969, com a entrada em vigor da Lei n.º 2139, de 14 de março

de 1969, foi alterado o alterou o art. 667.º do Código de Processo Penal. Assim,

consagrou-se expressamente a proibição de reformatio in pejus. Todavia, tal alte-

ração manteve a reformatio in pejus nos casos em que houvesse aplicação de

medidas de segurança ou quando o representante do Ministério Público junto

do tribunal ad quem pedisse a agravação da pena, mesmo que o recurso tivesse

sido interposto só pelo arguido ou pelo Ministério Público no interesse daquele.

Posteriormente, o Código de Processo Penal de 1987 pôs termo à possibi-

lidade de aplicação da reformatio in pejus nos casos descritos no parágrafo ante-

rior, mantendo todavia tal possibilidade ao nível do processo criminal militar.

2.2. No direito comparado

Os primeiros ordenamentos jurídicos a consagrarem expressamente a

proibição da reformatio in pejus foram a França, a Alemanha e a Itália, em geral,

desde a primeira metade do século XX.

Quanto a França, não obstante a decisão referida supra, em 1806, só em

1959, com o Code de Procédure Pénale, no seu art. 515 foi consagrada explicita-

mente a proibição da reformatio in pejus.

Na Alemanha, apesar da reformatio in pejus em vigor desde 1935, fruto da

época, foi em 1950 que a Vereinheitlichungsgesetz consagrou finalmente o princí-

pio da proibição da reformatio in pejus.

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Excecionalmente, em Itália, o referido princípio vigora desde 1865 no

âmbito do Codice di Procedura Penale, embora com alguma instabilidade e

determinadas limitações.

Em Inglaterra, o princípio da proibição da reformatio in pejus vigora desde

a entrada em vigor Criminal Appeal Act, em 1964.

II. O direito sancionatório contraordenacional

1. Natureza jurídica

Já discorremos com algum pormenor acerca da natureza jurídica do

direito das contraordenações, razão pela qual não nos vamos deter com igual

detalhe nesta pequena reflexão (10).

Devemos todavia assumir que o direito das contraordenações enquadra-

-se num ramo de direito público, uma vez que está imbuído do ius puniendi

estadual, protegendo e privilegiando dessa forma o interesse público e o bem-

-estar comum, a par da justiça, especialmente ao nível da Administração

enquanto autoridade com poderes sancionatórios.

Além de ser direito público, o direito das contraordenações enquadra-se

perfeitamente na natureza sancionatória, a par do direito criminal.

O direito das contraordenações é pois direito (público) sancionatório. E

este ponto é fundamental.

É sabido que o direito criminal é pertença do direito sancionatório. É um

ramo do direito de ultima ratio – defende interesses fundamentais, essenciais à

vida em comunidade, só atua se determinados bens jurídicos fundamentais são

colocados em perigo e o Estado e a comunidade não têm outra forma de os pro-

teger senão recorrer ao direito criminal. Além disso, o direito criminal comporta

um leque variado de sanções onde se destaca a privação de liberdade. É pois o

expoente máximo do ius puniendi estadual.

Já o direito contraordenacional é, em termos correntes, o outro direito

sancionatório. O direito sancionatório contraordenacional atua para defender

bens jurídicos que não são fundamentais à vida em sociedade – não protege a

vida, a liberdade, a integridade física. Assim, não se trata de um direito sancio-

(10) Cfr., o nosso Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações: Problemas, Críticas e

Sugestões Práticas, cit., pp. 69 -77.

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natório de ultima ratio mas um direito sancionatório mais abrangente, mais

genérico. O direito das contraordenações protege valores importantes à vida em

sociedade, comporta a manifestação do ius puniendi estadual mas não se reflete

na proteção de bens jurídicos essenciais a qualquer comunidade politicamente

organizada. Por isso as suas sanções são (ou deviam ser) menos gravosas para o

agente infrator – a sanção principal é a coima, ou seja, uma limitação ao direito

de propriedade do sancionado (11).

Por outro lado, é igualmente importante firmar que o direito das con-

traordenações não é direito tributário. Visto de outro prisma, as coimas não são

tributos. E disto se tem o legislador esquecido.

Já sabemos de outras lidas: os tributos têm finalidades financeiras, de

satisfação das necessidades do Estado derivadas da prestação de bens públicos

e semipúblicos; por outro lado têm uma função de redistribuição da riqueza e

do rendimento dos sujeitos passivos (12).

A cobrança de coimas, ou melhor, a aplicação da sanção principal do

direito contraordenacional não tem quaisquer finalidades tributárias. As coimas

têm tão-só finalidades sancionatórias, aliás à semelhança do direito criminal, que

se consubstanciam em finalidades de prevenção geral e, na nossa opinião, de

prevenção especial (13).

Não nos vamos alongar mais nesta vertente teleológica da aplicação de

coimas e da cobrança de tributos. Mas queremos deixar bem claro – coimas não

são tributos, são sanções.

2. O direito internacional e o direito contraordenacional

Partindo da natureza jurídica assinalada supra, verifiquemos como é que

o direito internacional se debruça acerca do direito contraordenacional o qual,

já sabemos, o nosso ordenamento jurídico abraça, em virtude do princípio da

(11) Já as sanções acessórias, paradoxalmente, podem ser mais graves que as sanções

criminais.

Por outro lado, há coimas que comportam uma limitação tão extensa à propriedade dos

agentes que, na nossa opinião, pairam constantemente algumas dúvidas acerca da sua

inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da proporcionalidade. Mas o

nosso Tribunal Constitucional assim não tem entendido.

(12) Cfr., entre outros, o art. 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e o art.

5.º da Lei Geral Tributária.

(13) Com maior desenvolvimento, apontando algumas consequências desta singular

confusão entre tributo e coima, veja-se o nosso Da Subsidiariedade no Direito das Contra-

-Ordenações: Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, cit., pp. 67, 111-117, maxime, 114 e 115.

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abertura internacional previsto no art. 8.º, n.º 2, da Constituição da República

Portuguesa (14).

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem é paradigmática, em

especial, no que por hora nos interessa, em relação ao art. 6.º. Dispõe o referido

artigo que qualquer “pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equi-

tativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e impar-

cial, estabelecido pela lei, o qual decidirá (…) sobre o fundamento de qualquer

acusação em matéria penal dirigida contra ela (...)” (itálico nosso). A versão deste

n.º 1 não traduzida estabelece o seguinte: “In the determination of his civil

rights and obligations or of any criminal charge against him, everyone is entitled

to a fair and public hearing within a reasonable time by an independent and impar-

tial tribunal established by law(...)” (itálico nosso) (15).

Primus, é sabido que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sempre

deixou alguma discricionariedade aos estados contratantes para que efetuassem

a delimitação entre os diferentes ilícitos sancionatórios, desde que tal demarca-

ção não violasse as finalidades e objetivos da Convenção (16).

Secundus, em virtude da referida margem de liberdade que a Convenção

consagra relativa à delimitação entre direito criminal e outros direitos sanciona-

tórios, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem entende que os conceitos

criminal e charge devem enquadrar-se nos diferentes direitos sancionatórios

internos, das Partes Contratantes. O que deve existir é sempre um respeito

escrupuloso das finalidades e objetivos da Convenção (17).

Tertius, já entendeu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que o

conceito de criminal offence presente no art. 6.º, n.º 3, da Convenção vinculava as

(14) Ibid., pp. 217-249, acerca das fontes internacionais e comunitárias de direito contra-

ordenacional.

(15) In Council of Europe, Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental

Freedoms – as amended by Protocols Nos. 11 and 14, with Protocols Nos. 1, 4, 6, 7, 12 and 13, 2010,

http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_ENG.pdf.

(16) Assim, o Acórdão Engel e outros vs Holanda, de 08.06.1976, Tribunal Europeu dos

Direitos do Homem, 81 (Application no. 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72; 5370/72, disponível

em http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=2&portal=hbkm&action=html&highlight=ENGEL&

sessionid=58304697&skin=hudoc-en, acedido em 18.08.2010).

(17) Acórdão Engel e outros vs Holanda, de 08.06.1976, Tribunal Europeu dos Direitos

do Homem (Application no. 5100/71; 5101/71; 5102/71; 5354/72; 5370/72, disponível em

http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=2&portal=hbkm&action=html&highlight=ENGEL&sess

ionid=58304697&skin=hudoc-en, acedido em 18.08.2010); e BREDOW, Lippold Freiherr von,

“Direito Processual Administrativo no Contexto Europeu – tutela administrativa sob influência

do Direito Internacional Público e supranacional”, trad. Martim Vicente Gottschalk, in Revista do

Centro de Estudos Judiciários (Brasil) Brasília, n. 27 (outubro de 2004): sec 2, http://www2.cjf.

jus.br/ojs2/index.php/cej/article/view/628/808.

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normas constantes da Ordnungswidrigkeitengesetz. Pela primeira vez, aquele Tri-

bunal obrigou os Estados a respeitarem a Convenção Europeia dos Direitos do

Homem, ao nível da aplicação das sanções criminais, quanto às sanções disci-

plinares e, para o que nos interessa particularmente, no âmbito da sanção con-

traordenacional (Ordnungswidrigkeit) (18).

Em suma, o estado português, no que concerne ao direito contraordena-

cional, está vinculado ao respeito pela Convenção Europeia dos Direitos do

Homem.

III. A proibição da reformatio in pejus no direito sancionatório contra-

ordenacional

1. Regra geral: o art. 72.º-A do Regime Geral das Contraordenações

Estabelece o art. 72.º-A do Regime Geral das Contraordenações, no seu

n.º 1: “Impugnada a decisão da autoridade administrativa ou interposto recurso

da decisão judicial somente pelo arguido, ou no seu exclusivo interesse, não

pode a sanção aplicada ser modificada em prejuízo de qualquer dos arguidos,

ainda que não recorrentes”.

Parece-nos claro que a regra geral do direito das contraordenações é a

proibição da reformatio in pejus (19).

Em relação à Ordnungswidrigkeitengesetz, verifica-se que a reformatio in

pejus vale tão-só no recurso judicial: (§66.º) “Der Bußgeldbescheid enthält ferner (1)

den Hinweis, daß (b) bei einem Einspruch auch eine für den Betroffenen nachteiligere

Entscheidung getroffen werden kann” (20).

Já a proibição da reformatio in pejus é aplicada no recurso jurisdicional:

[§72.º (3)] “Das Gericht darf von der im Bußgeldbescheid getroffenen Entscheidung

nicht zum Nachteil des Betroffenen abweichen.” (21).

( 18 ) Acórdão Öztürk vs República Federal da Alemanha, de 21.02.1984, Tribunal

Europeu dos Direitos do Homem, pp. 54-56 (Processo n.º 8544/79, disponível em

http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-57553, acedido em 30.07.2010).

(19) Não iremos analisar o n.º 2 do mesmo artigo, uma vez que não nos parece que tenha

a devida importância no âmbito destas reflexões.

(20) Na versão inglesa: “(§66.º) The regulatory fining notice shall further contain (1) an

indication to the effect that (b) in the event of objection a decision may be given that is more

disadvantageous to the person concerned”.

( 21 ) Tradução inglesa: “[§72.º, (3)] The court may not deviate from the decision in the

regulatory fining notice to the detriment of the person concerned”.

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2. Exceção: a Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, o Código dos Valo-

res Mobiliários e o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras

A Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais estabelece no seu art.

75.º que não “é aplicável aos processos de contraordenação instaurados e deci-

didos nos termos desta lei a proibição de reformatio in pejus, devendo essa

informação constar de todas as decisões finais que admitam impugnação ou

recurso”.

Da mesma forma, o Código dos Valores Mobiliários dispõe, no art. 416.º,

n.º 8: “Não é aplicável aos processos de contraordenação instaurados e decidi-

dos nos termos deste Código a proibição de reformatio in pejus, devendo essa

informação constar de todas as decisões finais que admitam impugnação ou

recurso”.

Por fim, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Finan-

ceiras permite igualmente a reformatio in pejus, no seu art. 22.º, n.º 1, alínea f): “A

decisão que aplique sanção conterá [alínea f)] [i]ndicação de que não vigora o

princípio da proibição da reformatio in pejus”.

Devemos desde já sublinhar dois fatores essenciais:

Primus, em todos os referidos regimes há a possibilidade de se aplicar

coimas em montantes que podem alcançar vários milhões de euros.

Secundus, em todos aqueles regimes, o tribunal de segunda instância só

conhece em matéria de direito, não havendo, consequentemente, recurso para

um tribunal superior.

3. Doutrina existente divergente

A orientação do legislador seguida no art. 72.º-A do Regime Geral das

Contraordenações, no seu n.º 1, tem sido maioritariamente criticada na dou-

trina.

A doutrina maioritária tem entendido que a proibição da reformatio in

pejus limita desmesuradamente a celeridade que é (ou devia ser) pertença de

um processo contraordenacional moderno.

Em geral, estes autores entendem que a proibição da reformatio in pejus

aumenta a pendência processual em diversas gravidades de sanções contraor-

denacionais, quer nas bagatelares, quer nas que são tão ou mais graves que as

sanções criminais, privilegiando dessa forma os arguidos com maiores posses

económicas, quanto mais não seja, porque com recursos sucessivos e com a

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Tomo II – Ano de 2013 – Ética e Direito

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garantia e não aplicação de uma sanção mais grave, o respetivo pagamento da

coima sempre se vai protelando (22).

Há ainda quem entenda que, em virtude da presença do princípio da

proibição da reformatio in pejus, a administração pode cair na tentação de des-

considerar os direitos precessuais do arguido e ainda de aplicar sanções mais

graves, para prevenir eventuais reduções das sanções a posteriori (23).

Para outros autores, a aplicação da reformatio in pejus implica um “risco

acrescido no exercício do direito fundamental à tutela efetiva” que é desajusta-

do ao direito das contraordenações (24).

Muito recentemente, ALEXANDRA VILELA propôs um interessantíssimo

regime geral das contraordenações redesenhado, face ao atual.

Em relação à aplicação do princípio da proibição da reformatio in pejus, a

Autora defendeu uma aproximação ao §69.º da Ordnungswidrigkeitengesetz,

através da criação de um processo intermédio de apreciação por parte do juiz e

da própria administração sancionatória. Este processo intermédio, existente

entre a apresentação da impugnação judicial e a respetiva prossecução dos

autos, serviria para que a administração ou o juiz, sempre que verificassem que

(22) Assim, entre outros, VILELA, Alexandra, O Direito de Mera Ordenação Social: Entre a

Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, 1.a ed, Coimbra: Coimbra Editora,

2013, 483; DANTAS, A. Leones, “[s.n. – texto gentilmente cedido pelo Autor]” (Texto policopiado

gentilmente cedido pelo Autor, que nas palavras deste, engloba designadamente, as

“Considerações sobre o processo das contra-ordenações: as fases do recurso e da execução”,

publicado na Revista do Ministério Público, n.º 57, janeiro/março de 1994, pp. 71 e ss.,

“Considerações sobre o processo das contra-ordenações – A fase administrativa”, publicado na

Revista do Ministério Público, n.º 61, janeiro/março de 1995, pp. 103 e ss., “Coimas e Sanções

Acessórias no Direito das Contra-Ordenações do Ambiente”, publicado em Textos, Ambiente e

Consumo, II Volume, CEJ, 1996, pp. 445 e ss., e “O Ministério Público no Processo das Contra-

-ordenações”, publicado em Questões Laborais, Ano VIII, 2001, pp. 26 e ss. Pontualmente

recuperaram-se ainda outros elementos, nomeadamente, do parecer do Conselho Consultivo da

Procuradoria-Geral da República n.º 84/2007, de 28 de fevereiro de 2008, publicado no Diário da

República, 2.a série, de 7 de abril de 2008, de que o signatário foi relator, junho de 2009), pp. 34,

35; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da

Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade

Católica Editora, 2011, pp. 25, 294 e 295.

(23) Assim, CARVALHO, Américo Taipa de, Direito Penal: Parte Geral, 2.a ed., Coimbra:

Coimbra Editora, 2008, p. 140.

(24) Cfr. CATARINO, Luís Guilherme, Regulação e Supervisão dos Mercados de Instrumentos

Financeiros – Fundamento e Limites do Governo e Jurisdição das Autoridades Independentes, Teses de

Doutoramento, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 765, 766.

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existia falhas de investigação, deveriam devolver os autos à administração, para

que este suprisse as referidas falhas (25).

Não obstante a louvável proposta, apresentamos, salvo melhor opinião,

duas críticas.

Em primeiro lugar, a administração já tem a possibilidade de reapreciar a

decisão definitiva quando recebe a impugnação judicial, nos termos do art. 62.º,

n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações. Aliás, a impugnação judicial é

apresentada junto da autoridade sancionatória respetiva, precisamente para que

esta possa reapreciar a sua decisão condenatória. Na prática, porque pleitea-

mos, verificamos que a autoridade administrativa nunca reaprecia a sua decisão.

Por outro lado, não vemos como é que um juiz, subordinado, grosso

modo, a um dever de imparcialidade, iria devolver os autos à autoridade san-

cionatória para que esta suprisse eventuais deficiências.

O referido processo intermédio, segundo a Autora defende, possibilitaria

a aplicação da reformatio in pejus na decisão judicial derivada da impugnação

judicial. Já quanto ao acórdão proveniente do recurso jurisdicional, a Autora

defende a manutenção da proibição da reformatio in pejus (26).

4. Posição defendida

A nossa opinião, já defendida em 2011, vai no sentido de que não deve

vigorar uma proibição absoluta da reformatio in pejus (27).

Vejamos o seguinte esquema:

Deve desde já ficar explícito que a proibição da reformatio in pejus apenas

se colocará na fase 2, quando o arguido impugna a decisão para um órgão

jurisdicional (recurso judicial), e na fase 3, quando o arguido recorre da senten-

ça de primeira instância para um tribunal superior (recurso jurisdicional).

Em termos genéricos, a reformatio in pejus ou a sua proibição têm sobre-

tudo que ver com a prevalência de diferentes valores adjetivos sancionatórios

potencialmente conflituantes: manutenção de garantias de defesa do arguido,

procura da verdade material e celeridade processual.

(25) VILELA, Alexandra, O Direito de Mera Ordenação Social: Entre a Ideia de “Recorrência” e

a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, cit., p. 484.

(26) Ibid., pp. 485-487.

(27) Cfr. AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações:

Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, cit., pp. 156-169.

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4.1. Manutenção de garantias de defesa do arguido

O processo sancionatório está enformado pelo princípio da acusação, o

qual deriva do princípio do processo equitativo.

Relativamente ao princípio do processo equitativo, limitamo-nos a citar

as doutas palavras de HENRIQUES GASPAR, patentes num voto vencido: “o prin-

cípio do processo equitativo (enunciado no art. 6.º, n.º 1, da Convenção Euro-

peia dos Direitos do Homem, e no art. 14.º do Pacto Internacional sobre os

Direito Civis e Políticos, e particularmente densificado pela jurisprudência do

Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) também impõe que a proibição da

reformatio in pejus seja avaliada e confrontada neste âmbito de compreensão: a

lisura, o equilíbrio, a lealdade tanto da acusação como da defesa, que consti-

tuem, ao lado do contraditório, da igualdade de armas e da imparcialidade do

tribunal, momentos de referência da noção de processo equitativo, impõem que

o arguido, no caso de único recorrente e que usa o recurso como uma das ga-

rantias de defesa constitucionalmente reconhecidas, não possa ser, em nenhuma

circunstância, surpreendido no processo com a decorrência de uma situação

desequilibrante; o recurso, inscrito como meio de defesa, não pode, quando a

acusação o não requerer, produzir, sem desconformidade constitucional, um

resultado de agravamento (neste sentido interpreto a doutrina subjacente à

decisão do Tribunal Constitucional no acórdãos n.os 499/97 e 498/98)” (28).

O princípio do contraditório é igualmente importante. É um princípio

essencial na relação de forças entre a acusação e a defesa, na relação entre a

autoridade administrativa e o arguido no processo contraordenacional.

O contraditório surge no direito adjetivo sancionatório como um verda-

deiro satélite. Tem de estar sempre presente, tem de acompanhar a prova que se

vai produzindo e claro, tem de seguir a sentença.

Sejamos claros. A reformatio in pejus limita o direito do contraditório do

arguido. Ou seja, o arguido não tem sequer o direito ao contraditório, na medi-

da em que, após o recurso apresentado por ele ou pelo Ministério Público no

exclusivo interesse do arguido, numa fase em que a prova está produzida em

audiência do tribunal a quo ou no tribunal ad quem, o arguido não mais é ouvi-

(28) Do voto de vencido do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.04.2003,

processo n.º 2628/02-3, que teve como Relator Borges de Pinho, citado em Acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça, de 15.11.2007, Relator: Simas Santos (Processo n.º 3761/07, 5.a Secção 2007).

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do, não volta a apresentar novos argumentos, não volta a existir um direito ao

contraditório. Ao existir a reformatio in pejus, o arguido deixa de poder apresen-

tar uma efetiva defesa – fica impossibilitado de apresentar novos argumentos.

4.2. Procura da verdade material

A verdade material não é prejudicada com a proibição da reformatio in

pejus. Se, por um lado, há a possibilidade de se alcançar a verdade material com

a inexistência da referida proibição, não é menos verdade que caso a proibição

não exista sem quaisquer limites, não será difícil que os arguidos pensem duas

vezes antes de recorrer devido aos riscos de verem as sanções agravadas, saben-

do todavia que a verdade material não foi alcançada na decisão em crise.

4.3. Celeridade processual

A celeridade deve ser igualmente um valor a que o legislador não pode

ficar alheio. O que não pode o legislador é cair na tentação de legislar para as

estatísticas, limitando de forma desproporcional o direito de acesso ao recurso

jurisdicional, constrangendo pois o acesso ao direito, através de um risco adi-

cional aos condenados que paira, sempre que queiram colocar em questão uma

decisão de aplicação de uma sanção contraordenacional (29).

4.4. Posição seguida

Primus, deixemos bem claro, novamente, que estamos perante a aplica-

ção de coimas (e não de tributos) cujos montantes chegam facilmente aos milha-

res ou mesmo milhões de euros.

Afirmamos supra que o legislador se esqueceu de que estamos perante

prestações coativas de diferentes naturezas. De facto, a limitação da aplicação

da proibição da reformatio in pejus nos diplomas normativos in casu é mais um

reflexo de uma avidez desproporcional do Estado em angariar recursos finan-

ceiros a todo o custo – nem que seja através de sanções contraordenacionais que

deviam ter como únicas finalidades, as finalidades sancionatórias, de prevenção

(29) Cfr. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, e FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón, Curso de Derecho

Administrativo, vol II, 7.a ed, Reimpressão, Madrid: Civitas Ediciones, S. L., 2001, p. 202.

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Tomo II – Ano de 2013 – Ética e Direito

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geral e especial. Lamentavelmente, é esta a tendência que o legislador tem

seguido e, acreditamos, vai seguir cada vez com mais frequência.

Tentamos, porém, chegar a uma posição de compromisso.

Em relação à fase 2, somos da opinião de que deve vigorar a reformatio in

pejus sempre que seja possível ao arguido recorrer para uma instância jurisdi-

cional superior.

Ao nível do princípio do processo equitativo, verificamos que o arguido

não é apanhado numa posição irremediável de desvantagem. Pelo contrário,

caso o pretenda, pode colocar tal decisão em crise, através de um recurso para o

órgão jurisdicional superior respetivo.

O princípio do contraditório, admitimos, é de alguma forma comprimi-

do. De facto, ao nível dos tribunais de segunda instância não pode haver recur-

sos em matéria de facto; situação que já criticámos (30). Porém, alterando-se esta

limitação que a nosso ver é claramente inconstitucional, pensamos que a refor-

matio in pejus deixa de limitar desproporcionalmente o princípio do contradi-

tório.

Por fim, é evidente que a celeridade é devidamente defendida. Escusa-

mo-nos de mais explicações a este respeito.

Em relação à fase 3, temos outra posição.

Tendo em conta que já não há a possibilidade do arguido interpor novo

recurso jurisdicional, somos da opinião que deve vigorar, sem qualquer mar-

gem para dúvidas, o princípio da proibição da reformatio in pejus.

Quanto ao princípio do processo equitativo, verificamos que o condena-

do, neste caso, é apanhado numa posição de desvantagem irremediável. De facto,

após tal decisão condenatória mais severa que a anterior aplicada, o condenado

nunca mais poderá, tendencialmente, colocar em questão a aplicação da respe-

tiva sanção.

O princípio do contraditório, claro está, desvanece-se. O condenado não

tem mais armas para reagir processualmente, apresentando o respetivo contra-

ditório.

Finalmente, é evidente que também neste caso a celeridade é defendida.

Mas é uma defesa à custa de valores adjetivos sancionatórios essenciais a qual-

quer Estado de Direito.

( 30 ) AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da Subsidiariedade no Direito das Contra-Ordenações:

Problemas, Críticas e Sugestões Práticas, cit., pp. 167, 169-182.

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Ora, com o afastamento da proibição da reformatio in pejus constante da

Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, do Código dos Valores Mobiliá-

rios e do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras,

parece-nos que os direitos de defesa inscritos na Constituição da República Por-

tuguesa, no seu art. 32.º, n.º 10, ficam irremediavelmente postos em causa se

forem aplicados à decisão judicial derivada do último órgão jurisdicional com

competência para julgar a causa contraordenacional.

E não nos ficamos com a violação da Constituição.

Como expusemos supra, também a Convenção Europeia dos Direitos do

Homem é aplicável ao direito contraordenacional.

Assim, não temos dúvidas que a previsão legal onde conste a reformatio

in pejus relativamente à decisão do mais elevado órgão jurisdicional viola o art.

6.º, n.º 1, da Convenção, por violação do princípio do processo equitativo.

Da mesma forma, viola o art. 13.º da mesma Convenção, uma vez que em

virtude da reformatio in pejus há uma evidente limitação ao direito a um recurso

efetivo, pois o condenado não dispõe de uma igualdade de armas que lhe pos-

sibilitem, com a devida liberdade interior, interpor um respetivo recurso juris-

dicional.

Concluindo, estamos convictos que a reformatio in pejus constante da Lei-

-Quadro das Contraordenações Ambientais, do Código dos Valores Mobiliários

e do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, viola a

Constituição da República Portuguesa, a Convenção Europeia dos Direitos do

Homem e, não menos importante, princípios fundamentais de qualquer direito

público sancionatório.

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Tomo II – Ano de 2013 – Ética e Direito

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Bibliografia

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de 1995, pp. 103 e ss.;

“Coimas e Sanções Acessórias no Direito das Contra-Ordenações do

Ambiente”, publicado em Textos, Ambiente e Consumo, II Volume, CEJ, 1996, pp.

445 e ss.; e

“O Ministério Público no Processo das Contra-Ordenações”, publicado

em Questões Laborais, Ano VIII – 2001, pp. 26 e ss.

Pontualmente recuperaram-se ainda outros elementos, nomeadamente,

do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n.º

84/2007, de 28 de fevereiro de 2008, publicado no Diário da República, 2.a série, de

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