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Variações sobre a literatura como antropologia especulativa1
Alexandre Nodari2
“Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi
então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria
ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu.”
(Clarice Lispector)
1. Em “O nativo relativo”, Eduardo Viveiros de Castro caracterizou o seu famoso artigo
“Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” como um “exercício de
ficção antropológica”, que consistia “em tomar as idéias indígenas como conceitos, e em
extrair dessa decisão suas consequências” (grifo meu). O objetivo desse esforço era
equivocar nossas noções ocidentais de humanidade, subjetividade, perspectiva, natureza
e cultura, fazendo “o discurso do nativo funciona[r], dentro do discurso do antropólogo,
de modo a produzir reciprocamente um efeito de conhecimento sobre esse discurso”.
Equivocar na medida em que, dizia Eduardo em Metafísicas canibais, “O equívoco não
é o que impede a relação, mas aquilo que a funda e a propele: uma diferença de
perspectiva. Traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é
comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro ao presumir uma univocidade
originária e uma redundância última – uma semelhança essencial”. A ficção antropológica
consistiria, portanto, nessa tradução equivocante, nessa re-configuração operada em
nosso pensamento pelo pensamento do nativo. Ou seja, o procedimento tradutório em
jogo envolvia “uma dimensão essencial de ficção, pois se trata[va] de pôr em ressonância
interna dois pontos de vista completamente heterogêneos”, o do nativo e o do
antropólogo, deslocando a ambos nesse movimento. Nossa hipótese aqui é a de que tal
ressonância diz algo, ainda que em germe, sobre o estatuto ontológico da ficção. Viveiros
salientava, a respeito do perspectivismo, que essa “ficção é antropológica, mas sua
antropologia não é fictícia”, ao que poderíamos acrescentar que tal ficção antropológica
talvez contenha também o esboço de uma antropologia da ficção.
1 Versão oral (sem revisão, notas e referências) apresentada no Seminário “Variações do corpo selvagem
– Em torno do pensamento de Eduardo Viveiros de Castro”, São Paulo, outubro de 2015. O texto retoma
na íntegra trechos do artigo “A literatura como antropologia especulativa”, publicado na Revista da
ANPOLL, n. 38 (2015), pp. 75-85, disponível em
http://www.anpoll.org.br/revista/index.php/revista/article/view/836/791 2 Professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira da UFPR. Co-fundador do species – núcleo de
antropologia especulativa.
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2. Na “Introdução à obra de Marcel Mauss”, Lévi-Strauss sublinhava a “situação
particular das ciências sociais”. Por um lado, assim como nas ciências físicas, “o
observador é ele próprio uma parte de sua observação”, ou seja, o sujeito da investigação
é também parcialmente seu objeto, o ponto de vista altera ou constitui o objeto. Mas, por
outro, também o “caráter intrínseco” do objeto do cientista social possui uma
ambiguidade constitutiva: o seu objeto, as sociedades humanas, são “ao mesmo tempo
objeto e sujeito”; dito de outro modo, o “objeto” das ciências humanas é também um
ponto de vista. A dificuldade que se coloca é a da observação do etnógrafo ter como
“parte integrante” a apreensão subjetiva que o nativo tem do objeto (o próprio nativo).
Ou seja, a observação demanda que o etnógrafo faça essa apreensão também como se a
vivesse tal como o indígena a vive. Para dar conta de um objeto que é um sujeito, é preciso
que o sujeito da investigação se “transforme” ele próprio nesse objeto, que ele se
“objetive” como um outro sujeito. “Transforme” e “objetive” entre aspas, pois na verdade
se trata de se manter ao mesmo tempo como sujeito e objeto, e um objeto de tipo peculiar,
que também é um sujeito. Desse modo, poderíamos chamar essa operação de obliquação,
a passagem do pronome reto (eu) ao pronome oblíquo (mim) e não simplesmente uma
passagem do eu ao tu: o desafio é manter uma posição transversal, ser ao mesmo tempo e
conjuntamente sujeito e objeto, eu-próprio e mim-outro. Tal exercício hipotético e
ficcional de “perspectivismo” seria possível, para Lévi-Strauss, porque a posição do
antropólogo, a sua cultura ou sociedade, é contingente – enquanto ser humano, ele
poderia ser o nativo: “As milhares de sociedades que existem ou existiram na superfície
da terra são humanas e, por essa razão, delas participamos de forma subjetiva: poderíamos
ter nascido nelas, e podemos portanto buscar compreendê-las como se nelas tivéssemos
nascido.”
Diante de um outro, portanto, o eu se vê diante de um eu-possível. Mas esse eu-
possível implica algo mais: “Que queremos dizer quando dizemos que temos diante nós
Outro, isto é, outro como eu (...)?”, pergunta Ortega y Gasset, para responder: “Isso
implica que esse novo ser (...) é um eu, ego, mas, ao mesmo tempo, é outro, alter, é um
alter ego (...) um eu que não sou eu, mas que é precisamente outro, portanto, não-eu”. O
que o alter ego mostra a mim, a ego, é a existência de “um mundo alheio ao meu, um
outro mundo” no qual sou objeto, no qual o eu é um outro. O “eu”, desse modo, seria um
dêitico, a marcação por excelência da posição locucionaria do mundo de onde se fala (“O
cosmos parte do eu”, diria Oswald de Andrade): uma perspectiva, mas não a perspectiva
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sobre o mundo (o “mundo-para-um-sujeito”), e sim a perspectiva de um mundo (o
“mundo-de-um-sujeito”), para retomar uma diferenciação fundamental entre relativismo
e perspectivismo de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro.
Nesse sentido, segundo Eduardo, a tarefa do antropólogo consistiria em traduzir
essa possibilidade em uma virtualidade, traduzir um eu e mundo possíveis em eu e mundo
virtuais: “Os problemas reais de outras culturas são problemas apenas possíveis para a
nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade (lógica) o estatuto de
virtualidade (ontológica), determinando – ou seja, construindo – sua operação latente em
nossa própria cultura”. Possível e virtual não são sinônimos, mas indicam modos
ontológicos distintos. Enquanto o possível é aquilo que pode ser e se opõe ao real, o
virtual é aquilo que, sem ser, tem efeitos de ser, a eficácia do ser: a realidade virtual não
é a realidade, mas tem os efeitos da realidade, é como se fosse a realidade para todos os
efeitos. Se o nativo é um eu-possível do antropólogo, este – seguindo o raciocínio de
Viveiros de Castro – não deve atualizar tal possibilidade, transformar-se completamente
em nativo; antes, o antropólogo deve traduzi-lo em um eu-virtual, o que implica obliquar-
se nesse eu-virtual, tomando-o como ponto de dis-junção entre perspectivas diferentes.
Isto é, sem tornar-se nativo, o antropólogo deve verificar os efeitos dessa transformação,
ou seja, como se tivesse se tornado nativo.
3. Nas passagens citadas e glosadas de Lévi-Strauss, tentei ressaltar os vários “como se”
de que ele lança mão para descrever a objetivação de si – a obliquação – no intuito de
apontar para certa afinidade estrutural entre antropologia e literatura que tentaremos
desenvolver, a partir de um belíssimo texto devotado à crítica do gênero de “non-fiction”,
de Juan José Saer. Nele, a ficção parece se situar na mesma encruzilhada entre
objetividade e subjetividade. A ficção, segundo Saer, não se limita a “uma reivindicação
do falso”; tampouco, obviamente, está constrangida pelo critério da veracidade: na ficção,
“está presente” o “entrecruzamento crítico entre verdade e falsidade, essa tensão íntima e
decisiva” – uma equi-vocidade, por assim dizer: “O fim da ficção não é estender-se nesse
conflito e sim fazer dele sua matéria, modelando-a ‘à sua maneira’”: “Não se escreve
ficções”, continua, “para se esquivar (...) dos rigores que o tratamento da ‘verdade’ exige,
mas justamente para pôr em evidência o caráter complexo da situação, caráter complexo
de que o tratamento limitado ao verificável implica uma redução abusiva e um
empobrecimento. Ao dar o salto em direção ao inverificável, a ficção multiplica ao
infinito as possibilidades de tratamento. Não dá as costas a uma suposta realidade
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objetiva: muito pelo contrário, mergulha em sua turbulência, desdenhando a atitude
ingênua que consiste em pretender saber de antemão como é essa realidade. Não é uma
claudicação ante tal ou qual ética da verdade, mas uma busca de uma um pouco menos
rudimentar”.
É como se o mundo verificável objetivamente fosse insuficiente, e o romancista
demandasse tratar “o universo à sua maneira”, i.e., dotando-o de perspectiva: a ficção “é
um tratamento específico do mundo, inseparável do que trata”, “uma identidade total com
aquilo que trata” – ou seja, toda perspectiva é isomórfica ao (seu) mundo. “Por causa
deste aspecto principalíssimo do relato fictício”, conclui Saer, “por causa também de suas
intenções, de sua resolução prática, da posição singular de seu autor entre os imperativos
de um saber objetivo e as turbulências da subjetividade, podemos definir de um modo
global a ficção como uma antropologia especulativa”.
Vejamos essa comparação entre antropologia e literatura mais de perto. Por um
lado, a ficção literária parece se dar pelo mesmo processo de obliquação que vimos no
argumento de Lévi-Strauss: o autor literário se obliqua em narrador, em personagens, em
heterônimos, etc.; e, por sua vez, o leitor se obliqua naqueles que, num texto literário,
dizem eu – isso sem perderem completamente a sua posição subjetiva: o pacto ficcional
implica ao mesmo tempo e conjuntamente uma consciência e uma inconsciência da
ficcionalidade, sem as quais a ficção se torna, respectivamente, verdade ou falsidade.
Além disso, está em jogo na ficção, como argumenta Milan Kundera, a exploração de
possibilidades do eu por meio de “egos imaginários”, alter-egos: “o romance não
examina a realidade, mas sim a existência. A existência não é o que aconteceu, a
existência é o campo das possibilidades humanas, tudo aquilo que o homem pode tornar-
se, tudo aquilo de que é capaz. Os romancistas desenham o mapa da existência
descobrindo esta ou aquela possibilidade humana”. Por outro lado, a literatura se
diferencia da antropologia desta na medida em que o eu-possível com que ela se depara
é inatual, irreal. A irrealidade característica da ficção e que ela assume, afirma Ortega y
Gasset, “não existe em nenhum mundo”, habita “o outro mundo, o verdadeiramente
outro”, o “Ultramundo”. Todavia, isso não quer dizer que ela não nos afete: “O
personagem não é uma simulação de um ser vivo. É um ser imaginário. Um ego
experimental. (...) Dom Quixote é quase impensável como ser vivo. No entanto, em nossa
memória, que personagem é mais vivo que ele?”, pergunta Kundera. Um ser que não é
vivo, mas que, paradoxalmente, é mais vivo que um ser vivo: uma vida virtual,
poderíamos dizer.
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Essa virtualização na literatura se dá, segundo Elizabeth Costello, por meio da
“imaginação simpatética”, que consiste em criar uma relação entre existência e
inexistência: “to think my way into the existence of a being who has never existed”
(pensar meu modo de adentrar a existência de um ser que nunca existiu, em uma tradução
literal e imperfeita) – adentrar a existência de um ego experimental, de um eu-virtual,
derivando os efeitos dessa experiência. E se isto é possível, se é possível adentrar a
existência de um ser que nunca existiu, então conclui a personagem de Coetzee, também
é possível “pensar meu modo de adentrar a existência de um morcego ou um chimpanzé
ou uma ostra, de qualquer ser que participe comigo do substrato da vida”. A literatura,
portanto, também é, como Lévi-Strauss definira a etnografia, uma “forma experimental e
concreta” do “processo ilimitado de objetivação do sujeito”. Todavia, na formulação de
Costello, a ilimitação desse processo se revela em sua inteireza, indo para além das
fronteiras do humano. Pois na descrição citada de Lévi-Strauss, a obliquação é possível
porque participamos de forma subjetiva de todas as sociedades na Terra – poderíamos ter
nascido nelas – na medida em que elas são humanas. Já na perspectiva de Costello, é a
possibilidade dada pela ficção de podermos participar de forma subjetiva de seres
ficcionais, inexistentes, que nos permite obliquarmo-nos em outros sujeitos, humanos e
não-humanos. É nesse sentido que a ficção constitui uma antropologia especulativa: por
meio da obliquação, ela nos faz especular sobre a imagem da espécie, sobre o que é
humano, o que é um ponto de vista, o que é sujeito, o que é o mundo.
4. Mas não era justamente isso ou algo semelhante que Viveiros caracteriza como a ficção
antropológica do “perspectivismo ameríndio”, quando ela traduz a antropologia nativa –
o conceito nativo do que é humano, do que é um sujeito, do que é a natureza, de quem
pode ocupar um ponto de vista? Não seria assim a antropologia proposta por ele uma
antropologia especulativa, como sugeriu Marco Antonio Valentim? Ou seja, será que toda
antropologia desse tipo não implicaria uma ressonância ou escoamento difer-ente, que
difere, que faz deslocar nosso próprio ponto de vista, nosso próprio eu? Aliás, não seria
esse o grande efeito da tradução do eu-possível em um eu-virtual?
Parece-me que é algo nesse sentido que Patrice Maniglier afirma, a partir de Lévi-
Strauss: o ser, o eu, é ser situável em um conjunto de alternativas ou variações de si
mesmo; ou, dito de outro modo, o eu-atual (sujeito) é apenas a posição relacional em um
conjunto de eus-possíveis (objetos) – mudando tal conjunto, modifica-se o eu-atual. Por
isso, a “capacidade do sujeito de objetivar-se indefinidamente (sem conseguir jamais
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abolir-se como sujeito)” implica também transformar-se ontologicamente: obliquar-se em
um eu possível, traduzi-lo como um eu-virtual, é variar a própria posição, o próprio ser.
E o que estamos sugerindo é que um dos procedimentos dessa variação, ou um de seus
nomes, é ficção. Nesse sentido, toda antropologia, social ou ficcional, talvez seja
especulativa, mas não menos real por isso, pois depende do ser situar-se como se fosse
outro: o sujeito como se fosse objeto, o possível como se fosse real, o inexistente como se
fosse existente, criando uma terceira posição puramente virtual que consiste na
equivocação produzida pela ressonância – ou dissonância – recíproca – dos termos.
Tendemos a encarar esse como se enquanto via de mão única: o estabelecimento de uma
identificação entre os termos ou de uma postura falsária e embusteira que quer estabelecer
uma relação onde ela não existe. Verdade e falsidade, objetividade e subjetividade:
justamente as antinomias que, cada qual a seu modo, Saer e Lévi-Strauss quiseram
desmontar. Se a obliquação possibilitada pelo como se (pela ficção) possui um estatuo
ontológico, então ela designa uma via recíproca, de mão dupla, uma ponte entre mundos,
em que tanto a identidade quanto a diferença se afirmam ao mesmo tempo e se
reconfiguram mutuamente: o princípio da contradição, o terceiro incluído: eu como outro.
O essencial nessa fórmula é a modificação dos dois polos (atual e possível, existente e
inexistente, eu e outro), a ponte intersticial entre eles em que ambos se dão ao mesmo
tempo, entrando em relação, em que mundos se chocam e se comparam: sujeito e objeto,
atual e possível, existente e inexistente estão constantemente se redefinindo,
constantemente postos em jogo, nesses encontros. Portanto, o contato com um outro
mundo pela antropologia especulativa cria uma terceira margem virtual entre dois
mundos, que tem efeitos sobre ambos, fazendo eles colidirem, se encontrarem; e faz o
antropólogo ou escritor variar a si mesmo, isto é, mudar de perspectiva, mudar a
perspectiva.
5. Por fim, uma questão que deixamos em aberto: o que torna possível a obliquação? Se,
segundo o desenvolvimento do raciocínio de Costello, não é uma condição existencial
comum, a humanidade como identidade entre eu e outro, se não é a presença do eu no
outro (que, no fundo, não passa de uma projeção narcísica), então, a meu ver, a única
resposta possível é que a sua condição de possibilidade só pode ser a presença do outro
no eu, a saber, a não coincidência do sujeito consigo mesmo, a sua diferença interna ou
interior, constitutiva. Em nossa cultura, tal diferença expressa-se por meio de vários
dualismos: corpo e alma, animalidade e humanidade, consciente e inconsciente, o ser e
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suas partes, etc. Tais dualismos, porém, geralmente são concebidos de forma
substancialista, tomando-se os termos e suas relações como fixos, ou seja, não reversíveis.
Desse modo, geralmente são concebidos não como uma multivocidade, mas como
tendentes a univocidade, a uma domesticação de um termo por outro. Um exemplo disso
é o cogito cartesiano, em que a dúvida, a “reflexão”, a tomada de distância do sujeito em
relação a si, é o que leva à segurança existencial subjetiva. Todavia, o que torna possível
a reflexão possibilita também uma refração, ou seja, a possibilidade contrária, de auto-
estranhamento, afinal, a gente nunca sabe o que o espelho irá refletir. Clarice Lispector
apresentou tal possibilidade por meio de uma experiência cotidiana que todos
conhecemos: “Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-
se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que
lugar escolheria?” “Às vezes dá certo”, ela diz; porém, tal experiência, que visa à
ipseidade, que visa a uma unidade por meio da duplicação, pode resultar no seu contrário:
a auto-encenação, possível por meio da diferença interna entre eu e mim, pode produzir
diferença, pode resultar num outrar-se, ou seja, numa equivocidade:
“Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura
do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor SENTIR. E não me
sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de
início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou
de ser movida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas
que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua,
porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei. Metade das coisas
que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. (...) "Se eu fosse eu" parece
representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido.
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da
festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei,
experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que
aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase
de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de
algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie
de pudor que se tem diante do que é grande demais.”
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Se é possível que façamos o exercício do “se eu fosse eu”, se é possível virtualizar-se, se
é possível se auto-encenar, é porque não há uma unidade ou univocidade necessária do
sujeito. No relato de Clarice, a busca de si mesmo, por meio da encenação, da
especulação, do “e se...”, se converte em uma alteração ou variação de si, a entrada no
desconhecido, a gênese de um eu-virtual, por meio de uma ficção, que se revela
paradoxalmente como o “realmente eu” e “a experiência do mundo”. Aqui, ser a si
mesmo implica diferir de si: a identidade aparece como uma performatização das
diferenças, um “auto-teatro”, como diria Hélio Oiticica – o outrar-se é uma “identidade
ao contrário” (EVC). É por isso que, se a literatura busca, segundo Kundera, responder à
pergunta “o que é o eu?”, ao “enigma do eu”, só pode fazê-lo de modo oblíquo,
transversal, por meio da “existência vista através de personagens imaginários”. O contato
com o mundo (e com o próprio eu) implica um sair de si, como única forma plena de ser
a si mesmo sem obliterar a si e ao mundo, sem converter a alteridade em identidade, sem
reduzir o outro ao à identidade: por isso Clarice afirmava que “Criar não é imaginação, é
correr o grande risco de se ter a realidade”. Nem real nem irreal, a ficção é “inreal”, ao
mesmo tempo dentro e fora da realidade. A realidade virtual, a internet, onde não
cansamos de fazer essa experiência do “se eu fosse eu”, alterando-nos em nossos avatares,
é possível por causa dessa estrutura ontológica que é a ficção – embora não cansemos
também de tentar reduzir tal diferimento à identidade e à psicologia do sujeito. A ficção,
seja ela literária seja ela antropológica, é o que torna experienciável e tradutível, por meio
da virtualização, a variação de si, o outrar-se que é a condição ontológica primeira da de
toda subjetividade. Os antropólogos especulativos, como Clarice e Viveiros de Castro,
são aqueles que traduzem essa experiência maior, não a de ser a si mesmo (um eu-atual),
nem a de ser o outro (um eu-possível), mas de ser o outro dos outros (um eu-virtual): se
o outro dos outros sou eu, esse eu, após a experiência maior de outrar-se, já é outro. Essa
talvez seja a lição daquele livro imaginário composto pelas entrelinhas dos livros reais de
Viveiros de Castro – e dizia Clarice: "Mas já que há de se escrever, que ao menos não se
esmaguem com palavras as entrelinhas" –, livro imaginário que ele intitulou O anti-
Narciso.