Universidade Metodista de São Paulo
CRISTOLOGIA ANGELOMÓRFICA DE HEBREUS
Estudo Sócio-Retórico e História das Religiões Comparadas
em Hebreus 1.1-14; 2.5-18; 7.1-10
Por
JOSÉ ROBERTO CORRÊA CARDOSO
Orientador:
Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo como requisito para a obtenção do título de
Doutor em Ciências da Religião.
São Bernardo do Campo
2005
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ii
Para Raquel,
por seu amor devotado,
e para o Davi,
meu primogênito amado.
iii
Quem, pois, esteve presente no conselho de Yahweh, para ver e ouvir
a sua palavra?
Quem prestou atenção à sua palavra
e a ouviu?
(Jeremias 23.18)
iv
AGRADECIMENTOS
Foram muitos amigos e amigas que cooperaram para a gestação e parto deste material.
Entre estes, alguns serão destacados, num ato temerário, mas necessário, por justo:
Rosi Santos (a imprescindível)
Breno (pela amizade)
Joéde e Loyde (hospitaleiros como quem hospeda anjos)
Jacqueline Ziroldo (por sua leitura perspicaz)
C. Rowland (por suas intuições)
David Maxwell e Sherron K. George (por sua generosidade)
José Adriano, (por seu coleguismo exemplar)
Marcelo Smargiasse (por sua fineza)
Ronaldo (pela amizade nas horas difíceis)
Munir (meu amigo de infância)
John e Renée Sidenstricker (pela �torcida�)
Alunos do SPS e EST - Mackenzie (por sua compreensão)
Paulo Nogueira (por sua maestria)
Em termos institucionais, a realização desta tarefa deve muito a Presbyterian Church
USA (USA), ao Seminário Presbiteriano do Sul (Campinas-SP) e à Universidade Metodista de
São Paulo (S. Bernardo do Campo-SP).
v
RESUMO
A Epístola aos Hebreus apresenta já em seus primeiros versos Jesus Cristo assentado à destra
de Deus (Hebreus 1,1-4). Assim, desde o princípio a Carta aos Hebreus revela a estratégia de
seu autor ao expressar Jesus Cristo em termos honrosos. Tais indícios sugerem o meio
ambiente cultural típico do mundo mediterrâneo do século I E.C., em que honra e vergonha
exerciam uma função pivô nessa sociedade. A estratégia de Hebreus apresenta a dignidade
de Jesus Cristo e sustenta o controle social de seus leitores diante de uma eminente evasão do
grupo religioso. Para isso, o autor de Hebreus lança mão de tradições angelológicas
amplamente conhecidas do entorno religioso judaico do período do segundo templo.
Caracterizam principalmente essas tradições elementos gloriosos desenvolvidos pela religião
judaica (anjos, figuras hipostáticas, Melquisedec), que contribuíram para a confissão do
Cristo exaltado de Hebreus. Fazemos um estudo da História das Religiões Comparadas das
figuras mediadoras nos escritos do AT e da literatura pseudepígrafa, entendendo que essas
figuras foram adquirindo cada vez mais características divinizadas possibilitando a
elaboração da Cristologia angelomórfica de Hebreus 1.1-14; 2.5-18; 7.1-10. Além disso, uma
aproximação sócio-retórica à Hebreus garante resultados mais claros no que diz respeito à
estratégia pretendida por seu autor.
vi
ABSTRACT The Epistle to the Hebrews presents in its very first verses Jesus Christ sat at the right side of
God (Hebrews 1.1-4). Thus, since the beginning, Hebrews reveals the strategy of its author in
expressing Jesus Christ in honorable terms. Such indications suggest the cultural
environment typical of 1st century C.E. Mediterranean world, in that honor and shame exerts
a pivot function in this society. The strategy of Hebrews presents the dignity of Jesus Christ
and supports his readers� social control before an eminent escape of the religious group. For
this, the author of Hebrews makes uses of angelologic traditions widely known of the Jewish
religious context of second temple period. These traditions characterize principally the
glorious elements developed by Jewish religion (angels, hypostatic figures, Melchizedek),
that contributed for the confession of the exalted Christ of Hebrews. We have elaborated a
study of History of the Compared Religions of the mediatory figures in Old Testament and
Pseudepigrapha Literature writings, perceiving that these figures got more and more divine
characteristics allowing the angelomorphic Christology elaboration in Hebrews 1.1-14; 2.5-
18; 7.1-10. Besides, a social rhetorical approach to Hebrews guarantees clearer results
concerning to the intended strategy by its author.
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 001
1. ESTADO ATUAL DA QUESTÃO 009
2. ANÁLISE SÓCIO-RETÓRICA DE HEBREUS 027
2.1. Intertextura sócio-cultural 028
2.2. Situação retórica 031
2.2.1. A Cidade no mundo Mediterrâneo do 1º século 031
2.2.1.1. O aspecto físico da Cidade 031
2.2.1.2. A coletivide 032
2.2.1.3. Cargos públicos 034
2.2.1.4. O Príncips 035
2.2.1.5. O direito à cidadania 037
2.2.1.6. Patronato e clientelismo 039
2.2.1.7. O excluídos: Peregrinos, escravos, libertos, artesãos e operários 041
2.2.1.8. Honra e vergonha 046
2.2.2. Auditório e orador 049
2.3. Gênero discursivo da Carta aos Hebreus 051
2.4. Disposição 055
2.4.1. Exórdio (Hebreus 1. 1-4) 055
2.4.2. Narração (Hebreus 1. 5-2.18) 056
2.4.3. Argumentação (3.1-5.10; 5.11-10.39; 11.1-12.13) 058
2.4.4. Peroração (Hebreus 13.1-19) 060
2.5. Invenção 061
2.5.1. Provas extrínsecas 061
viii
2.5.2. Provas intrínsecas 061
2.6. Eclesiologia política 063
2.7. Conclusão 073
3. ANJOS, FIGURAS HIPOSTÁTICAS E JESUS 075
3.1. O herói greco-romano como modelo 075
3.2. Tradições fundantes do mediador angelomórfico 077
3.2.1. Dois motivos paradigmáticos: �O Anjo do Senhor� e
�A Assembléia Divina� 078
3.2.1.1. O Anjo do Senhor 078
3.2.1.2. A Assembléia Divina 084
3.3. Configuração de Hebreus 1.1-4 088
3.3.1. O Filho, o mensageiro dos últimos dias (Hb 1.1-2b) 089
3.3.2. Papel angelomórfico dos profetas 090
3.3.3. O Filho de Deus, herdeiro de todas as coisas (Hb 1.2c) 091
3.3.4. Filho Primogênito 092
3.3.5. Papel demiúrgico do Filho (Hb 1.3c) 094
3.3.5.1. A Sabedoria hipóstasi de Deus 094
3.3.5.2. A Sabedoria pré-existênte 095
3.3.5.3. A Sabedoria na Assembléia Divina e no Templo 096
3.3.5.4. Sabedoria angelomórfica 097
3.3.6. O Filho, efúlgencia da Glória Divina 097
3.3.6.1. Teofania e Glória Divina 098
3.3.6.2. A Glória e mediação 099
3.3.6.3. A Glória Divina e o Culto 100
3.3.6.4. AGlória e Yahweh angelomórfico entronizado 100
3.4. Configuração de Hebreus 1.5-14 102
3.4.1 O Filho de Deus é superior aos anjos (Hb 1.14) 103
3.4.2. Vice-regência do Filho de Deus (Hb 1.3e) 104
3.4.3. O Filho de Deus como detentor do Nome superior ao dos anjos 105
3.5. A estruturação de Hebreus 2.5-18 108
ix
3.6. Jesus, paradigma do homem primordial (Urmemsch) 109
EXCURSO I: O Filho do Homem em Daniel 7.13s 110
3.7. A Irmandade do Filho de Deus (Hb 2.10-16) 113
3.7.1. A humanidade e os anjos 115
3.7.2. A restauração da imagem do homem primordial (urmemsch) 115
3.8. Avaliação 119
3.9. Conclusão 121
4. JESUS E MELQUISEDEC (Hebreus 7.1-10) 122
4.1. Santuário e sacerdócio 123
4.1.1. Santuário Terrestre espelho do Santuário Celeste 124
EXCURSO II: O Sacerdócio cívico da Religião Imperial 127
4.1.2. O sumo sacerdote celeste 128
4.1.3. O Santuário celeste na carta aos Hebreus 135
4.2. Melquisedec e o Jesus sumo sacerdote celestial 136
4.2.1. Melquisedec em Gênesis 14.17-20 136
4.2.2. Melquisedec no Salmo 110.4 139
4.3. Melquisedec em 2 Enoc 140
4.4. Melquisedec em 11Qmelquisedec 142
4.4.1. Melquisedec multifacetário 145
4.4.1.1. Melquisedec como redentor celeste 145
4.4.1.2. Melquisedec na Assembléia Divina 146
4.4.1.3. Melquisedec Belial 147
4.4.1.4. Melquisedec como Messias celestial 148
x
4.4.1.5. Sumário: Melquisedec angelomórfico 150
4.4.2. Melquisedec, O Filho do Homem e Jesus: O sumo sacerdócio
angelomórfico 151
4.4.3. O Filho do Homem como sumo sacerdote 152
4.5. Síntese de Hebreus 7.1-29 155
4.5.1. Texto grego e tradução de Hebreus 7.1-10 158
4.5.2. Sumário histórico (Hb 7.1-2) 159
4.5.3. Natureza do sacerdócio e Melquisedec 160
4.5.4. Dízimos de Abraão e benção de Melquisedec (Hb 7.4-10) 164
4.5.5. Jesus, sumo sacerdote angelomórfico 166
4.6. Conclusão 170
CONCLUSÃO 172
BIBLIOGRAFIA 176
Introdução
Caríssimos, este é o caminho no qual encontramos a nossa salvação: Jesus Cristo, o sumo sacerdote de nossas
ofertas, o protetor e o auxílio da nossa fraqueza. Por meio dele, fixamos nosso olhar nas alturas dos céus; por meio dele, contemplamos, como em espelho, sua face imaculada e incomparável; por meio dele, abriram-se os olhos do
nosso coração; mediante ele, nossa mente obtusa e obscura refloresce para a luz; mediante ele, o Senhor quis fazer-nos experimentar o conhecimento imortal. �De fato, sendo ele, o resplendor de sua majestade, é tanto superior aos
anjos quanto o nome que herdou é mais excelente� Assim está escrito: �Ele fez dos ventos mensageiros seus e de chama de fogo os seus servidores.� Assim diz o Senhor a respeito de seu Filho: �Tu és o meu filho, eu hoje te gerei.
Pede-me, e eu te darei as nações como tua herança, e teus serão os confins da terra.� E lhe diz ainda; �Senta-te à minha direita, até que eu coloque os teus inimigos como estrado para teus pés.� Quais são os inimigos? São os
malfeitores e aqueles que se opõem à sua vontade (Clemente aos Coríntios 36.1-6).
O texto acima nos remete ao final do 1º século da E.C., algo em torno de 95-96, mostrando o
temário da Carta aos Hebreus que prova que a sua divulgação já se estende de Roma a
Corinto. Clemente revela familiaridade com a Carta aos Hebreus e assume os seus conteúdos
Cristológicos. Nota contínua em seu texto é a da mediação,1 Jesus Cristo é o mediador por
excelência, o sumo sacerdote que efetua a experiência da salvação.
A ousadia (parrhsi,a) de sua declaração surpreende quando vista a partir do meio-
ambiente sócio-cultural do mundo Mediterrâneo do século I. Não se podia imaginar a
divindade de um homem como Jesus que recebera a sua pena. A morte trágica e vergonhosa
na cruz era a punição típica de escravos ou de criminosos acusados de alta traição, por conta
disto, Jesus deixa de ser um bom candidato para a filiação divina, mesmo para o meio-
ambiente cultural dos gentios. Da contraparte judaica propriamente dita, mutatis mutandis,
um Messias crucificado receberia uma forte resistência, muito mais se o pretenso Messias
fosse confessado com atributos divinos, como aconteceu com Jesus. Todavia, apesar desses
entraves, o Cristianismo prosperou confessando que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus,
crucificado e exaltado à destra de Deus.
Filiação divina, vice-regência e sacerdócio celestial são os motivos componentes da
Cristologia expressa pelo autor de Hebreus aos seus leitores em suas próprias circunstâncias.
O autor da Carta aos Hebreus faz uso de todos esses conteúdos em sua exposição. Sua
mensagem é a interpretação mais abrangente possível do evento do Cristo crucificado e
exaltado. Ao conjugar atributos divinos com terrenos, fatos desairosos com discurso
laudatório, o autor de Hebreus descreve Jesus digno da veneração angélica, superando-os e o
colocando ao lado de Deus (Hb 1.9). Disto levanta-se uma questão: Como uma vertente do
1 Note-se a freqüência de �por meio dele�.
2
Judaísmo do Período do Segundo Templo pode fazer tão ousada asseveração de considerar
um ser humano divino sem incorrer no risco de macular sua herança de fé monoteísta? E
outra: Que tradições fundamentariam essa expressão messiânica?
Defendemos a tese que o autor de Hebreus teria às mãos antecedentes expressivos em
anjos, figuras exaltadas e atributos divinos nas tradições da literatura bíblica vétero-
testamentária e do judaísmo contemporâneo. Que essas tradições, denominadas de
angelomórficas pela pesquisa bíblica recente e assumidas aqui, são perceptíveis em Hebreus.
Assim, a denominação Cristologia Angelomórfica é concordante com o que podemos aferir
da Carta aos Hebreus.
Esta tese é um temático a respeito das tradições contemporâneas que o autor teria
para expressar sua Cristologia exaltada. Nossa atenção para a aplicação desta tese se
concentrará nos textos de Hebreus 1.1-14; 2.5-18 e 7.1-10.
Para reconstruir a cosmovisão do autor e dos leitores da Epístola aos Hebreus
levamos em conta a obra de Peter L. Berger e Thomas Luckmann2 sobre a sociologia do
conhecimento. Ainda que não se consiga situar geograficamente com certeza a referida
comunidade, isso não nos impede de conhecermos o mundo da vida cotidiana dos mesmos.
Pois é possível detectar a teia de relações sociais impressas no documento. A zona da vida
cotidiana retratada em Hebreus contém muito do mundo da vida cotidiana de seus leitores e
que tais atores atuam numa realidade compartilhada na comunicação que exercitam. �A
atitude natural é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a
um mundo comum que é comum a muitos homens�.3 Nossa pesquisa deve levar em conta a
interação de significados do mundo espelhado na epístola. Essa preocupação também é
expressa por Bruce J. Malina:
O conjunto de significados típicos de um dado grupo social forma os cenários que as pessoas do grupo carregam em suas cabeças e/ou corações. E é nos termos desses cenários que as pessoas interpretam sua experiência e as dos outros. Para compreender qualquer tipo de comunicação, tanto o emissor quanto o receptor da mensagem devem partilhar algum cenário social; do contrário, o resultado é confuso ou pode colocar palavras na boca do emissor; isto é, o resultado é uma mensagem distorcida.4
Além disso, as obras �A interpretação das culturas� e �Saber local� de Clifford Geertz
servem-nos para o pressuposto de que a Epístola aos Hebreus apresenta uma textura rica e
2 A construção social da realidade, p. 40. 3 Ibid., p. 40. 4 O Evangelho social de Jesus, p. 22.
3
espessa que é configurada em diversas camadas que recebem contributos de elementos
históricos, sócio-culturais e ideológicos.5 De modo que é importante situar nosso texto em
seu ambiente da cultura dominante (mundo Mediterrâneo do I século da E.C.), da sub-
cultura a que pertence (judaísmo; talvez já como sub-cultura concorrente), da contra-cultura
diante tanto da cultura dominante como da sub-cultura ou cultura concorrente. Quanto à
cultura dominante, B. Malina esclarece:
Os significados partilhados pelo povo do primeiro século (...) do Mediterrâneo, estavam codificados em padrões de linguagem e comportamento derivados de sistemas sociais, similares, mas variados, que constituíam o Império Romano. (...). Se nós não partilhamos nada dos cenários sociais que moldaram as perspectivas dos autores bíblicos, nossa leitura da Bíblia e subseqüente teologia serão uma confusão ou nossas idéias e valores impor-se-ão aos dos autores e seus textos.6
A Epístola aos Hebreus nos apresenta um Cristianismo cuja identidade própria difere
de outras abordagens no Novo Testamento. O arcabouço cultual levítico é reinterpretado
mediante o evento Jesus Cristo. Ao usar desse expediente na carta, o autor nos apresenta sua
estratégia e ao construir a identidade da comunidade (ou identidade pretendida) a fim de
dinamizar sua existência e significado. C. Geertz define que a religião é:
(1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas.
Ao adotar essa definição e ao analisar a Cristologia do Cristo exaltado em Hebreus não
entendemos que a auto-compreensão do autor e da comunidade seja considerada redutora.
No caso específico de Hebreus parece-nos expressar um modelo em resposta aos modelos
apresentados pela cultura dominante ou concorrente. Mas mesmo quando constrói tal
identidade simbólica, Hebreus também reinterpreta valores, concepções e visão de mundo
herdados do judaísmo para uma configuração do Cristianismo das origens. Em outras
palavras, os conteúdos de Hebreus são desenvolvidos com base nas tradições bíblicas do
Antigo Testamento e extra-bíblicas, os documentos do período do segundo templo. Como
nossa pesquisa se dá sobre esse material, a importância de uma abordagem da História das
5 Vernon K. ROBBINS, The tapestry of early Christian discourse, p. 2. 6 Ibid., pp. 22, 28.
4
Religiões Comparadas. Esta abordagem visa angariar um entendimento de maior clareza no
trato de textos bíblicos.7 Para essa abordagem Klaus Berger diz que:
Mediante tal estudo comparativo, o exegeta coloca um texto em relação a outros materiais e aprende a olhar o próprio texto em diferentes e novas perspectivas. Assim, o exegeta estabelece ou descobre relacionamentos que dão ao texto bíblico um certo perfil. Tal estudo comparativo pode também ser um dos meios de impedir de lidar com texto num monólogo ou eisegeticamente pelo intérprete. (...) experimentará, assim, certo estranhamento vantajoso e essencial do texto bíblico, um estranhamento que pode se tornar ocasião de um ouvir mais paciente e mais atento. Ao reconstruir o relacionamento entre o texto bíblico e textos de seu meio-ambiente, o exegeta tenta desempenhar o papel de mediador entre o passado e o presente.8
Ao aplicar a abordagem referida, não nos orientamos por motivos apologéticos (a
originalidade e superioridade do Cristianismo) e nem com a finalidade destrutiva da
historicidade, mas pelo modo dialógico mediante o qual o Cristianismo das origens foi
dando formas à sua expressão Cristológica.9 Isso deve nos levar a desenvolver estratégias
para analisar e interpretar de maneira que o texto possa exibir a teia de significados que as
suas palavras comportam.
Assim, para alcançar nosso objetivo, propomo-nos a estudar essa temática e
apresentá-la a partir da abordagem da História das Religiões Comparadas. Os textos que
servirão de comparação são os dos livros apócrifos/dêutero-canônicos, pseudepígrafos e dos
manuscritos do Mar Morto, diga-se de passagem, textos seletos. As tradições angelomórficas
aí descritas têm antecedentes nas próprias Escrituras Sagradas na figura do Anjo do Senhor.
Se bem que podemos compartilhar os resultados com um dos autores revisores desse campo
de pesquisa como Larry Hurtado, que segue a classificação tripartida �anjos�, �figuras
hipostáticas� e �patriarcas exaltados� de tais tradições, seguimos a proposta de Charles A.
Gieschen, que as considera em um feixe como angelomórficas. A base disto é que todas elas
possuem características angelomórficas em alguma medida e não há necessidade de uma
classificação em modelos. Anjos, atributos hipostáticos e patriarcas exaltados não são
categorizações, mas concebidos como angelomórficas, uns mais, outros menos, mas de todo
angelomórficas.
Cabe dizer que adotamos o termo �angelomórfico� como mais abrangente e mais
fielmente descritível que �angélico�, e que mesmo onde aparece algum patriarca
7 Vernon K. ROBBINS, The tapestry of early christian discouse, p. 9. 8 M. Eugene BORING/Klaus BERGER/Carsten COLPE. Hellenistic commentary to the New Testament, p. 19. 9 M. Eugene BORING/Klaus BERGER/Carsten COLPE. Hellenistic commentary to the New Testament, p. 21.
5
transfigurado ou atributo divino, os termos anjo, angélico são entendidos como
angelomórficos. Com isto, não queremos dizer que Jesus é um anjo, mas que sua divindade é
descrita com elementos angélicos sem comprometer sua humanidade ou divindade.
Os critérios morfológicos a fim de discernir os atributos angelomórficos que
usaremos, com algumas modificações, são expressos pela vice-regência angelomórfica
adotada por Paul Deutsch,10 quais sejam: (1) Função Demiúrgica: Atribui-se funções na
Criação ao vice-regente angelomórfico. Este participa como agente de Deus na confecção do
universo, e em alguns momentos confunde-se com o próprio Criador e por isso é entendido
ser pré-existente. A atribuição criadora na Escritura, outrora, exclusiva de Deus, é agora
compartilhada com seu agente, evidenciando-se como um mistério revelado no fim dos
tempos; (2) Guardião do Portal: Cabe ao vice-regente permitir ou não a entrada dos seres
humanos e/ou celestiais à presença imediata de Deus; (3) Senhorio: O vice-regente
angelomórfico exerce governo sobre seres humanos e/ou seres angélicos. As hostes celestiais
são designadas a submeterem-se ao seu comando, bem como os seres humanos obedecerem
à sua voz como representante de Deus; (4) Juiz: Devido à sua justiça pessoal, o vice-regente é
comissionado por Deus para fazer os julgamentos sobre suas criaturas e pronunciar
sentenças. O papel de juiz fora exercido na pessoa do rei (Sl 72) e posteriormente na do sumo
sacerdote, no período pós-exílico (Zc 3.7); (5) Sacerdote: O vice-regente angelomórfico,
devido a sua proximidade de Deus, opera no âmbito do culto divino. Por sua intercessão e
mediação os seres humanos têm acesso a Deus. A atividade sacerdotal terrena prefigura a
celestial. Daí sua aparência, vestuário, gestos e falar, lembrarem a do sumo sacerdote; (6)
Forma hipostática do homem primordial: O vice-regente angelomórfico encarna o Urmensch,
isto é, a humanidade primeva idealizada no Adão pré-lapsariano, �a imagem de Deus�. Sua
principal característica é a submissão à divindade, isto é, a obediência, justamente a que
faltou em Adão conforme a narrativa bíblica, e, consequentemente, sua pureza de coração;
(7) Ontologia compósita: Este critério atende ao fato de que o vice-regente angelomórfico não
ser um anjo ou um ser humano apenas. Mas possuir tanto a natureza divina e humana, e ao
mesmo tempo ser descrito em termos angelomórficos, ou seja, de mediador glorificado. Essa
ontologia compósita pode ser adquirida ou predicada desde o início. Caso seja este, o vice-
regente é então pré-existente, caso seja aquela, alcançou a imortalidade.
10 The guardians of the gates, p. 14.
6
Outro passo que adotamos é o da Análise Retórica a fim de apreendermos a estratégia
discursiva do autor diante da situação vivenciada por seus leitores, e também para obter o
sentido que tem a aparente desconsideração aos anjos em Hebreus 1.1-14; 2.5-18. Na
abordagem retórica utilizaremos principalmente três clássicos: Arte Retórica de Aristóteles;
Ad Herennium (anônimo) e Instituições Oratórias de Quintiliano, mediante os quais
determinaremos o gênero retórico de Hebreus (Epidíctico/Deliberativo), bem como seu
enquadramento sócio-cultural são importantes para a pesquisa para testar a hipótese de
Cristologia Angelomórfica.
Os procedimentos nesta pesquisa podem ser listados da seguinte maneira: (1)
Determinação do gênero retórico da Epístola aos Hebreus. Seu gênero retórico leva em conta
e, ao mesmo tempo, se configura a partir de (2) um quadro sócio-cultural que dá sentido ao
seu discurso bem como aos valores partilhados por seu autor e seus leitores. (3)
Considerações estruturais quanto aos seus conteúdos serão seguidas de (4) uma comparação
histórico-religiosa com textos do Judaísmo do Período Segundo Templo e (5) os resultados
conseqüentes possibilitam uma melhor compreensão da Cristologia da Epístola aos Hebreus.
O Capítulo 1 apresenta o Estado da Questão (Status Quaestionis) da Cristologia
Angelomórfica na pesquisa. Apresentamos uma resenha dos autores mais destacados e a sua
obra proeminente a respeito do tema. Com isso, pretendemos situar o leitor dentro da linha
temática em que se insere nossa pesquisa. Serão destacados aí, as contribuições e desafios
postos ao nosso trabalho.
No Capítulo 2 estudamos o entorno sócio-cultural no qual podemos situar a Carta aos
Hebreus. Para uma re-construção desse meio-ambiente social utilizamos os indícios e sinais
que percebemos no próprio texto de Hebreus. Os dados levantados são lidos a partir do que
sabemos do mundo Mediterrâneo por volta do século I. Em seguida, fazemos a Análise
Retórica da Carta aos Hebreus. Determinaremos o gênero retórico, sua estrutura, estilo etc.
Obtida a classificação do gênero retórico podemos enquadrar sua mensagem e estratégia
retórica para a resolução da questão do enfrentamento do autor quanto à angelologia da
Carta. Que, apesar de expor a primazia de Cristo em relação aos anjos, isto não significa que
o autor desconsidere as contribuições para a composição de sua Cristologia exaltada. Mesmo
que expresse a exaltação de Jesus em comparação aos anjos em Hebreus 1-2, isto não
significa que ditas tradições sejam refugadas pelo autor, mas bem ao contrário, nosso autor
7
as recebe, modifica e adapta aos seus objetivos. E aquilo que parece ser a rejeição de uma
angelologia é na verdade uma re-configuração quando comparadas às tradições correntes em
seu meio ambiente judaico.
Portanto, a Análise Retórica nos possibilita perceber que o autor não tem em mente
uma polêmica a respeito de uma angelologia, que seria um risco aos conteúdos de sua
Cristologia, mas que a referência aos anjos em Hebreus 1.1-14; 2.5-18 atende a princípios
retóricos bem definidos em sua época, que não se pode entender a menção de anjos nesses
capítulos a parte de seu gênero retórico.
O Capítulo 3 se ocupa de estudar os conteúdos angelomórficos implícitos
propriamente em Hebreus 1.1-14; 2.5-18. Fazemos uma leitura da subcamada da Carta aos
Hebreus tomando em consideração as tradições angelomórficas da literatura contemporânea
do autor. Este passo é feito a partir da abordagem da História das Religiões Comparadas.
Objetivamos perscrutar as similaridades e disparidades dos motivos angelomorfismos
presentes em outros textos que nos ajudam a ver com mais intensidade a Cristologia de
Hebreus em seu próprio milieu de reflexões a respeito de mediadores celestiais. Pela ótica
retórica, este passo é entendido como o levantamento do conteúdo inventariado pelo autor
para sua Cristologia, o seja, a inventio.
O Capítulo 4 se ocupa da figura de Melquisedec que aparece em Hb 7.1-10 e sua
relação com a Cristologia de Hebreus. Começamos a apresentação situando a figura
mediadora do sumo sacerdote dentro das concepções da História das Religiões. Depois
passamos nossa atenção aos textos fundantes que apresentam Melquisedec no A.T. e que
deram origem a certa especulação de sua figura. Como expressão sui generis está a figura de
Melquisedec (Hb 7.1-10), que recebe tonalidades angelomórficas em algumas tradições. Os
Targumim, 2 Enoc 70-71 e 11QMelquisedec recebem nossa detida atenção, nas quais buscamos
as feições angelomórficas ali presentes. Essas tradições serão contempladas a partir de Gn
14.17-20; Sl 110.4 e depois de estudada a passagem de Hb 7.1-10, são com esta comparadas a
fim de nos resultarem as similaridades e disparidades. Focamos especificamente em
Melquisedec descrito em Hb 7.1-10, visto ser aí que encontramos a maior referência a sua
figura para construção do sumo sacerdócio de Jesus, enquanto que na perícope posterior (Hb
7.11-29) seu foco é no próprio Jesus, deixando Melquisedec em segundo plano, ou melhor,
como sua fundamentação. A apresentação dos textos têm o foco na figura sacerdotal de
8
Melquisedec e a comparação com Melquisedec e o Jesus de Hebreus. Com isso pretendemos
mostrar que apesar de paralelas, tais reflexões possuem um fio condutor que tanto pode
aproximar, como distinguir seus resultados.
Concluímos com uma avaliação dos resultados colhidos e as contribuições para um
melhor entendimento das origens da Cristologia na literatura de Hebreus. Na realidade, o
autor, de forma deliberada, lança mão das tradições angelomórficas resultantes das reflexões
anteriores e contemporâneas suas, pode recebê-las, re-configurá-las e re-contextualizá-las
para os seus próprios propósitos. É o que pretendemos ter mostrado com o nosso estudo.
9
Capítulo 1
ESTADO ATUAL DA QUESTÃO
E ao introduzir o Primogênito no mundo, diz novamente: Adorem-no todos os anjos de Deus... (Hebreus 1.7).
O tema mais importante da nossa exposição é este: temos um tal sacerdote que se assentou à direita do trono da Majestade nos céus. Ele é ministro do Santuário e da Tenda verdadeira, armada pelo Senhor, e não por homem (Hebreus 8.1-2).
Os textos bíblicos acima apresentam Jesus numa Cristologia exaltada explícita. Ele (Jesus) é
ao mesmo tempo superior aos anjos e sumo sacerdote celestial assentado à direita de Deus.
As questões subjacentes aqui são: Que elementos o Cristianismo das origens possuía para fazer tão
ousada asseveração? Ou em outros termos: Como um grupo procedente do judaísmo do segundo
templo, que confessava a unicidade de Deus, podia sustentar tranqüilamente uma figura exaltada ao
lado desse mesmo Deus a ponto de exigir a adoração dos anjos?
O autor de Hebreus não está sozinho ao confessar o Cristo exaltado em outros lugares
do Novo Testamento se apresentam muitas evidências dessa compreensão. Por exemplo, no
primeiro documento cristão neotestamentário, a 1 Tessalonicenses, o apóstolo Paulo escreve:
Pois eles mesmos contam qual acolhimento que da vossa parte tivemos, e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro, e esperardes dos céus a seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos: Jesus que nos livra da ira futura (1.9-10).
O texto acima mostra os conteúdos proclamados por Paulo aos cristãos de Tessalônica. Nota-
se claramente que a conversão de seus ouvintes exigia (1) o abandono de suas antigas
deidades, (2) a recepção do Deus dos judeus, confessado como �o Deus vivo e verdadeiro� e
(3) a expectativa da parousia do Cristo ressuscitado. O abandono dos ídolos e a recepção do
�Deus vivo e verdadeiro� são conteúdos tipicamente judaicos. Faziam parte da pregação
sinagogal que possuía como típica a profissão de fé em Deuteronômio 6.4, a Shemá: �Ouve
Israel, o Senhor (yhwh ), nosso Deus (´élöhêºnû), é o único Senhor (yhwh ´eHäd )�. Esses itens
distinguiam os judeus de outras expressões religiosas: A unicidade de Deus e a sua
conseqüente exclusividade. Ser judeu antes de tudo era fazer de tal profissão de fé um
compromisso pela exclusividade.
10
A respeito da exclusividade religiosa dos gentios, Bart Ehrman escreveu:
(...) praticamente ninguém no mundo pagão argumentaria que se você cultuasse um deus, você não poderia também cultuar a outro: adesão exclusiva a um culto era praticamente desconhecida. (...). Para as pessoas da antiguidade, contudo, isto não fazia sentido. Todos sabiam que havia muitos deuses, de todos os tipos e descrições, de todas as funções: deuses do campo e da floresta, deuses dos rios e riachos, deuses do lar e do pátio, deuses da colheita e da riqueza, deus da cura, deuses da fertilidade, deuses da guerra, deuses do amor.11
Assim, Paulo estava em perfeita consonância com seus patrícios. O acréscimo surge no item
três: a expectativa da parousia do Cristo ressuscitado. Esse aspecto da proclamação aos
tessalonicenses é ampliado em 1 Ts 4.13-18 e aludido em várias partes da carta (cf., 2.19; 3.13;
5.24). Paulo chega mesmo a apresentar Deus e Jesus lado a lado como receptores de sua
oração em 1 Ts 3.11-12.
Um texto ainda mais revelador que esse é o de 1 Coríntios 8.4-6. Lê-se:
(...), sabemos que um ídolo nada é no mundo e não há outro Deus a não ser o Deus único. Se bem que existam aqueles que são chamados deuses, quer no céu, quer na terra � e há, de fato, muitos deuses e muitos senhores � para nós, contudo, existe um só Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem tudo existe e por quem nós somos.
Aqui Paulo é bem mais explícito que em 1 Ts. Sua argumentação é a de que os muitos deuses
disponíveis no contexto de seus leitores nada eram. O apóstolo além de declarar a
exclusividade de Deus, eliminou praticamente a existência de qualquer outro pretenso
concorrente. Mas essa unicidade de Deus comporta a existência de Jesus Cristo, que é Senhor
sobre tudo, que faz mediação de tudo e todos. Percebe-se o paralelismo:
Deuses � um só Deus (o Pai � Origem de tudo) Senhores � um só Senhor (Jesus Cristo � Mediador de tudo)
A relação �Deus-Pai� com �Senhor Jesus Cristo� (v.6) se faz melhor percebida no texto grego:
avllV h`mi/n ei-j qeo.j o` path.r evx ou- ta. pa,nta kai. h`mei/j eivj auvto,n(
kai. ei-j ku,rioj VIhsou/j Cristo.j diV ou- ta. pa,nta kai. h`mei/j diV auvtou/Å
A diferença entre Deus e Jesus Cristo está basicamente no uso das preposições indicando
origem (evk) e finalidade (eivj) usadas para Deus e mediação (dia,) usada para Jesus Cristo.
11 Bart EHRMAN. The New Testament, A Historical Introduction to the Early Christian Writings. p. 22.
11
Um é Pai (Criador) e o outro é Senhor (Redentor). O termo �Pai� descreve �Deus não como
Pai de Jesus Cristo, mas como o Criador. Isto é claro mediante as duas cláusulas
explicativas�.12 As palavras �Deus� e �Senhor� aparecem em Dt 10.17, neste, os dois termos
são usados como sinônimos: �Pois o Senhor, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos
senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita
suborno�.
No texto de 1 Co 8.6, notamos um dado adicional, a Pré-existência do
Senhor/Mediador de todas as coisas. Portanto, Larry Hurtado está certo ao dizer que:
Paulo considerava o Jesus ressuscitado como ocupante de uma posição única de autoridade e honra celestiais e que ele escreveu do Cristo exaltado o reverenciando de modo que nos parece requerer a
conclusão de que Paulo o tratava como divino.13
Outros textos podem ser aventados a respeito da compreensão que os autores do Novo
Testamento possuíam do status exaltado de Jesus Cristo. Trata-se de textos classificados
como �Formas Pré-literárias�: Hinos e fragmentos hínicos, doxologias, aleluias, práticas de
oração sob a mediação de Jesus Cristo (Rm 1.8-10; 1 Co 1.4; 2 Co 1.3-4; Fp 1.3-5; 1 Ts 1,2-3; Fm
4); o Batismo em Cristo ou em nome do Senhor (Gl 3.27); a ordenança e prescrições para
celebrar a Ceia do Senhor (1 Coríntios 11,23-26); a Profissão de Fé em Jesus Cristo (Rm 10.9).14
Portanto, a evidência paulina, uma das mais antigas do NT, é a de que o Cristianismo
das origens bem cedo expressou sua fé em Jesus Cristo em termos divinos, sendo superado
somente por Deus, o Pai, somente, sem contudo incorrer no risco de lesa-majestade do Deus
único de Israel.
Dito isso, o estudo pelas origens da Cristologia tem encontrado respostas no campo
das figuras mediadoras dentro do Judaísmo do Período do Segundo Templo, a fim de
responder as questões levantadas no início deste capítulo. Essas figuras mediadoras
apresentam atributos emprestados de Deus aos anjos. Por conseguinte, os mediadores
exaltados em tais tradições foram pintados com os caracteres derivados da angelologia
judaica do século I da E.C.
A seguir, elecamos os principais autores dos últimos três decênios e suas
contribuições para a pesquisa de mediadores celestiais. 12 Hans CONZELMANN, 1 Corinthians, p.144. 13 One God, One Lord, p.3. 14 cf. tb. HURTADO, One God, One Lord, p.100.
12
Em 1977 Alan F. Segal trouxe a lume uma obra que chamou a atenção para a questão
especulativa acerca de mediadores celestiais15. Tratou do estudo da heresia conhecida pelos
rabinos como �Dois Poderes nos Céus�. Seu trabalho explorou alguns relacionamentos entre
o Judaísmo rabínico, o misticismo da Merkavah, o Cristianismo primitivo e o Gnosticismo.16
A heresia dos �dois poderes nos céus� foi percebida como contrária ao monoteísmo estrito
das tradições rabínicas. Segal disse que além da relevância de tal estudo para a compreensão
do Judaísmo Rabínico, se acrescentaria o interesse dos historiadores cristãos em duas
importantes áreas: �(1) o desenvolvimento da Cristologia e (2) o surgimento do
Gnosticismo.�17 Com respeito à Cristologia, Segal afirma:
O caráter do debate rabínico faz possível ver a Cristologia construída mediante a exegese ao invés de títulos hipotéticos pré-cristãos. Os cristãos criam que em sua trasladação aos céus, poderia ter aplicado a Jesus um número de passagens descrevendo um anjo principal de Deus ou algum outro ser divino cuja descrição seria uma manifestação antropomórfica nas Escrituras de Israel.18
Alan F. Segal apresentou os pontos de vista dos escritos rabínicos dentro da polêmica
com os grupos hereges. Nos textos coletados por A. Segal não apareceram os nomes dos
grupos com os quais o rabinismo polemizava. Talvez isso fosse uma estratégia de não
incentivar a curiosidade ou interesse em seus próprios grupos. Seja como for, Segal percebeu
pelos próprios textos que os grupos candidatos atacados possivelmente seriam os cristãos, os
gnósticos e os místicos da Merkavah. Este último grupo foi considerado negativamente pelos
rabinos que entendiam suas práticas como perigosas.19 Desde que �as tradições
sobreviveram dentro do judaísmo só em conventículos secretos de conhecimentos esotéricos
colecionados e redigidos mais tarde em documentos do misticismo da Merkavah.�20
A hostilidade aos grupos que sustentavam a heresia dos �Dois Poderes� só aumentou
durante os séculos II a IV da Era Comum. Os textos rabínicos são reveladores nesse aspecto.21
À conclusão que A. Segal chegou foi a de que a preocupação dos rabinos, até onde se pode
datar com precisão, tradições postas por escrito, com respeito à heresia dos �dois poderes
15 Alan F. SEGAL, Two Powers in Heaven. 16 p.ix. 17 p.x. 18 p.xii. 19 p.73. 20 p.73. 21 A. SEGAL coletou textos apresentando-os em sete capítulos na segunda parte de seu livro: (II) Conflicting Appearences of God; (III) Aher, Metatron, and Angel of YHWH; (VI) A Controversy between Ishmael and Akiba; (V) Midrashic Warnings against �Two Powers�; (VI) Mishnaic Prohibitions against Unorthodox Prayer; (VII) �Many Powers in Heaven� and Miscellaneous Reports; (VIII) Divine Powers and Angels.
13
nos céus�, tiveram que lidar primeiramente com os textos das Escrituras Hebraicas que
deram margem para reflexões a respeito de uma figura humana divinizada e exaltada ao
lado de Deus. Os textos mais importantes e que se tornaram alvos das investidas rabínicas
foram: (período Tanaítico) Gn 1.1; 1.26; 2.7; 4.1; 19.24; 21.20; Êx 15.3; 24.1s, 10s; Dt 22.6; 32.39;
Am 4.13; Dn 7.9s; Sl 22.2; 23.21; 37.25; 104.31; (período Amoraíta) Gn 1.1,26; 2.4; 11.7; 35.7; Dt
4.7; Js 22.22; 24.19; 2 Sm 7.23; Sl 50.1; Dn 4.7; 7.9. Esses textos foram lidos, interpretados e
reinterpretados principalmente no judaísmo do segundo templo favorecendo a crença de tal
figura humana exaltada ao lado de Deus no céu.22 Ainda, digna de nota no estudo de A.
Segal foi a reflexão desenvolvida por Filo de Alexandria: �Algumas tradições que se
tornaram parte da controvérsia dos �dois poderes� eram conhecidas por Filo, que utilizou o
termo �segundo deus� (deuteros theos) para descrever o logos�.23 Não se sabe como os fariseus
teriam reagido a essa terminologia. No entanto, parece não haver dúvidas com respeito a um
segmento do cristianismo que abertamente refletiu sobre o logos pré-existente, ou seja, a
comunidade do discípulo amado. Suas declarações Cristológicas eram claramente heréticas
e um dos temas básicos que fomentou a separação do judaísmo.24
Faz-se conveniente dizer que Alan Segal escreveu um capítulo muito importante
acerca de textos sectários judaicos.25 Nesse capítulo apresenta a literatura conhecida por
Pseudepígrafa e como seus conteúdos trabalham o tema de mediadores celestes, enfatizando
que �nem sempre é possível definir crenças sectárias como heréticas�.26 Para nós é
importante saber que tal literatura, ainda que diversa em sua apresentação, testemunhou a
insistência numa figura humana divinizada ao lado de Deus, mas quanto ao período da
formação do NT, poderia ter havido graus diversos de rejeição dessa expressão religiosa do
Cristianismo. Porém, a ampla evidência é a de que um mediador angelomórfico não era tão
rejeitada assim, e que apesar de unânimes na expressão da unicidade de Deus, os judaísmos
eram mais complacentes com a presença de um vizir exaltado ao lado de Deus.
Martin Hengel é outro autor a constar nesta pesquisa sobre Cristologia. Texto curto,
mas influente é El Hijo de Dios, El Origen de la Cristologia y la Historia de la Religion Judeo-
Helenistica. O problema a ser elucidado tem como ponto de partida Fp 2.6-8 como confissão
22 p. 260. 23 p. 261. 24 p. 262. 25 pp. 182-204. 26 p. 186.
14
de fé em Jesus como �figura divina pré-existente que se faz homem e se rebaixa até padecer
uma morte própria de escravos, ilustra o enigma das origens da Cristologia paleo-cristã�.27
Hengel mostrou como o ponto de vista do protestantismo liberal europeu a respeito de Paulo
moldou negativamente a apreciação da Cristologia do Novo Testamento.28 Seu livro começa
por questionar as teses da velha Escola Histórico-Religiosa:
Bultmann, seus mestres Bousset e Heitmüller e seus seguidores vêm repetindo até o esgotamento esta tese;29 bem é verdade que sem extraí-la suficientemente das fontes antigas. E se tivessem razão? Então se teria produzido realmente e poucos anos depois da morte de Jesus, uma �aguda helenização� ou, para ser mais exato, uma paganização sincrética do Cristianismo primitivo sob a direção espiritual de Judeus Cristãos como Barnabé; e conseqüentemente na própria Palestina ou na vizinha Síria (quiçá em Damasco ou em Antioquia).30
Hengel desmontou as teses dessa escola a respeito do título cristológico �Filho de Deus�. A
partir de Paulo, procurou retroceder à Comunidade Cristã Primitiva e às raízes Judaico-
Palestinenses. Seu estudo passou pelos testemunhos do Antigo Testamento, pelos paralelos
gregos e do helenismo (mistérios, filhos de deuses que morrem e ressuscitam e o culto ao soberano;
theios aner; o mito gnóstico do redentor; o envio de um redentor ao mundo e outras concepções
análogas), pelo Judaísmo antigo abarcando uma grande gama de textos do Judaísmo do
Período do Segundo Templo (pseudepígrafos, textos de Qumran, etc.).31 O autor afirmou que
os defensores das teses esboçadas pela velha Escola Histórico-Religiosa32 eram pouco
informados acerca do meio-ambiente religioso helenístico do século I, e, portanto, fizeram
muitas asseverações anacrônicas e parcamente fundamentadas nas fontes:
Consideremos ademais que até os séculos II e III E.C., não possuímos notícias mais amplas sobre os deuses mistéricos propriamente �orientais�, nem sequer sobre seus respectivos cultos esotéricos. Em princípio os mistérios foram uma forma de religiosidade tipicamente grega, que até a época do helenismo não seria �exportada� aos territórios orientais submetidos à Grécia. As investigações mais
27 El Hijo de Dios, p.12. 28 Ibid., p.18. 29 A tese citada por Martin HENGEL é expressa por R. BULTMANN em seu livro Crer e Compreender, p.105: �Não só os mistérios pagãos conhecem a figura do Deus redentor que morre, mas principalmente a mitologia gnóstico-pagã conhece aquela figura da divindade pré-existente, e que, obedecendo à vontade do pai, veste a roupagem deste mundo e toma sobre si miséria e aflição, ódio e perseguição, a fim de abrir para os seus o caminho rumo ao mundo celestial�. 30 El Hijo de Dios, p.34. 31 p.34-80. 32 M. HENGEL escreveu: �Se por exemplo Rudolf BULTMANN postula em sua Teologia do Novo Testamento uma dependência de Paulo com respeito às �comunidades gnósticas, que se achavam organizadas como comunidades mistéricas e nas quais haviam confluído, por exemplo, a figura do redentor gnóstico e o deus mistérico Attis�, isso constitui uma construção ideológica fantástica que não ilumina � ao contrário, obscurece � o transfundo histórico-religioso das comunidades primitivas sírias�. p.46.
15
recentes sobre a �religião mistérica� mais importante que existia precisamente no Oriente de fala grega � refiro-me ao culto de Ísis -, expostas por F. Dunand e L. Vidman, afirmam o que já sabíamos há muito tempo, pontuando com uma multidão de provas documentais e com a clareza necessária. 33
Martin Hengel defendeu quase que exclusivamente os antecedentes Judaicos para a
composição da Cristologia do Filho de Deus.34 Quanto à angelologia, Hengel fez observações
interessantes ao terceiro livro de Enoc, em que este é transformado no anjo Metatron e
colocado num trono junto a Deus para exercer o domínio geral sobre todos os anjos e
potestades. O texto apesar de ser provavelmente tardio, apresenta tradições bastante
antigas, que expressam paralelos conhecidos dos enunciados do Novo Testamento sobre o
Jesus exaltado.35 A contribuição de Hengel tem motivado muitos estudos dessa linha de
pesquisa a partir dos seus postulados; nosso enfoque também recai exclusivamente na
literatura do Judaísmo. Contudo, apesar de o Cristianismo das origens utilizar-se de
tradições do Judaísmo para a expressão de sua Cristologia, há de se lembrar que a partir da
interlocução judaica com os povos do mundo Mediterrâneo (praticada anteriormente) a
partir do exílio babilônico só aumentou, provendo muitos elementos para uma influência e
reflexão em suas crenças religiosas.
Outro autor importante para a pesquisa de figuras exaltadas dentro da literatura do
Judaísmo do Segundo Templo e sua pertinência ao estudo da Cristologia é Christopher
Rowland. Em seu livro Open Heaven, Rowland dedicou um espaço importante à figura de um
anjo exaltado na Apocalíptica.36 Ele escreve:
Embora não possa ser dito que seja um traço típico de todos os apocalipses em estudo, contudo, parece haver evidências de que uma angelologia tenha produzido uma figura de status considerável, cuja posição na hierarquia celestial colocou-a aparte do resto dos anjos. (...). Embora poucos detalhes existam acerca dessas angelofanias, parece que havia um ser angélico que em algum sentido era considerado comunicando a aparência de Deus mesmo e que às vezes aparecia em forma humana (Gênesis 18,2). (...). O que a maioria das discussões modernas da cristologia primitiva falha é em não incluir a extensão da influência de uma Cristologia angélica sobre a doutrina cristã primitiva. Não é apenas uma questão aí da rejeição de uma cristologia angélica como um fator importante no desenvolvimento cristológico; há uma quase total ausência de tal tópico.37
33 El Hijo de Dios, p.45. 34 Na p.93 lemos as palavras de consternação de M. HENGEL: �Os foram sempre o elemento ideológico ativo e determinante da linha teológica a seguir. No fundo foram eles quem puseram influência em toda a igreja do século I. Por desgraça, a Escola da História das Religiões prestou pouquíssima atenção a este ponto, tão decisivo�. 35 p.68. 36 Open Heaven, p.94-113. 37 Ibid., p.112.
16
Rowland apresentou um estudo cuidadoso do desenvolvimento da angelologia nas
Escrituras Hebraicas, na literatura Pseudepígrafa, nos escritos de Qumran e finalmente no
Novo Testamento, enfatizando que as tradições judaicas são as fontes em que se deve
procurar pelas origens cristãs.38 Deve-se enfatizar ainda que Rowland apresentou vários
textos do Novo Testamento em que há indícios angelomórficos que contribuíram para a
Cristologia do Novo Testamento.39 Suas considerações despertaram a atenção de outros
estudiosos que passariam a dar mais atenção a esse aspecto da Cristologia.
Larry W. Hurtado é o próximo autor relevante para a pesquisa de mediadores
celestes e sua aplicação à Cristologia do Novo Testamento. Seu livro One God, One Lord se
tornou referência para esse estudo. Sua investigação recaiu sobre as evidências do culto a
Jesus Cristo nas páginas do Novo Testamento e de como esse grupo, proveniente do
Judaísmo monoteísta, se acreditou fiel às suas tradições ao exercitar tal culto.40 Em suas
palavras:
(...) o problema a ser investigado neste livro é precisamente este: Como os judeus cristãos acomodaram a veneração do Jesus exaltado ao lado de Deus, enquanto continuavam a ver a si mesmos como leais à ênfase fundamental de sua tradição ancestral sobre um Deus, e sem o benefício de quatro séculos sucessivos de discussão teológica que conduziu à Doutrina Cristã da Trindade?41
Hurtado colheu as evidências do culto a Jesus Cristo em parte nas práticas cristãs de
piedade, aludidas no Novo Testamento, e no resultado da Crítica das Formas, ou seja, �As
Formas Pré-Literárias�.42 Hurtado chama essas evidências de �seis traços da mutação�. São:
(1) práticas hínicas, (2) oração e práticas relacionadas, (3) o uso do nome de Cristo, (4) a Ceia
do Senhor, (5) Confissão de Fé em Jesus, e (6) pronunciamentos proféticos do Cristo
ressurreto.43 Aliás, a tese de Hurtado é a de que no Cristianismo das origens se fez evidente
uma mutação de tradições judaicas em torno de mediadores celestes, que foi
38 Open Heaven, p.95. 39 Christopher ROWLAND defende o uso do termo �angelomórfico�. 40 One God, One Lord, p.2. 41 One God, One Lord, p.2. 42 Philipp VIELHAUER, Historia de la Literatura Cristiana Primitiva, p.25: �A produção escrita do cristianismo primitivo teve sua configuração literária fundamentalmente em quatro gêneros: as cartas, o apocalipse, os evangelhos e os atos dos apóstolos. Porém antes destes documentos já existia uma abundante tradição cristã, que surgiu de determinadas necessidades da comunidade. Esta tradição se acunhou em formas fixas na transmissão oral de peças particulares, foi assumida em grande parte na literatura cristã primitiva e se nos há conservado assim. A estes fragmentos fixos da tradição chamamos de �Formas Pré-Literárias��. 43 One God, One Lord, p.100.
17
convenientemente acomodada ao culto de Cristo.44 Tal mutação teve início com as
similaridades entre os títulos e funções dados a outros agentes divinos e a Cristo; em
segundo lugar envolveu fazer do Jesus exaltado objeto de devoção e que ao fazer isso, os
primeiros cristãos não faziam de Jesus um competidor de Deus, antes, estavam convictos de
que com tal prática glorificavam a Deus; em terceiro lugar, remodelaram a piedade
monoteísta para incluir um segundo objeto de devoção, fazendo de Jesus o principal agente
de Deus; e finalmente, que tal Cristologia não foi fruto de um estágio tardio, mas que desde o
início, a partir das tradições cristãs palestinenses (não influxos de um pano de fundo pagão),
mas que tal compreensão já existia no Cristianismo das origens.45 Sua pesquisa é feita nas
mesmas fontes de C. Rowland, citadas acima. Como a atenção de Hurtado fixa-se nas
tradições que foram explicitamente utilizadas pelos autores antigos, deixou de focar sobre os
Escritos de Qumran em busca de paralelos. O objetivo maior de Hurtado é demonstrar a
novidade expressa pelo Cristianismo das origens e da antiguidade da crença no Jesus Cristo
divino. Porém, devemos nos lembrar que as expectativas eram muito fortes em Qumran, cujo
paradigma disso pode ser achado em Melquisedec em 11QMelquisedec, como veremos.
O próximo autor que listamos aqui é William Horbury, especializado em estudos
sobre messianismo.46 Em seu livro Jewish Messianism and the Cult of Christ, Horbury se ocupou
da questão do culto devotado a Jesus Cristo como apresentado nas páginas do Novo
Testamento. Os dois temas de fundo foram: O messianismo Judaico durante o período do Segundo
Templo e o Messianismo Judaico e Cristão na época do surgimento do Cristianismo.47 O autor
questionou as explicações dadas para o surgimento do culto ao Cristo que entende apenas
que este �traz uma semelhança próxima dos cultos contemporâneos de heróis, soberanos e
divindades. (...) a visão de que o culto de Cristo era essencialmente uma manifestação
gentilizada de Cristianismo�.48 Sua intenção é mostrar que o culto a Cristo possui muitos
elementos judaicos e que se originou principalmente do Judaísmo, no mínimo da
Comunidade Judaico-Cristã. Assim, nas seguintes linhas:
44 Ibid., p.99. 45 Ibid., p.100. 46 William HORBURY possui muitos títulos relativos ao tema do �messianismo� (cf. a bibliografia da obra em questão). 47 Jewsih Messianism and the Cult of Christ, p.1. 48 Ibid., p.3.
18
O reconhecimento do culto de Cristo como rei messiânico, começando no ministério de Jesus e intensificado na comunidade Cristã primitiva, modelou o enfoque a Cristo de acordo como a tradição de homenagem assim notada, e conduziu às aclamações e títulos preservados no Novo Testamento. O Cristianismo primitivo também oferece sinais de continuidade com o desenvolvimento da expectativa messiânica do antigo Judaísmo, especialmente com respeito de ligações conceituais entre espírito e messias, e aquelas narrativas de advento e reino que produziram um tipo de mito messiânico. Estes desenvolvimentos de um messianismo herdado foram encorajados por paralelos em continuidade com a comunidade Judaica por todo o período das origens Cristãs, e pela importância do culto ao governante sob o governo Grego e Romano. Dentro do Cristianismo o culto ao Cristo se desenvolveu lado a lado com os cultos dos anjos e dos santos.49
O estudo de Horbury revisitou a pesquisa a respeito do Messias no Antigo Testamento, nos
textos pseudepígrafos, em textos de Qumran e nos Padres Apostólicos. Por todo o caminho
mostrou uma riqueza de informações no âmbito da pesquisa sobre o Messias. Ainda que
Horbury se ocupe principalmente de buscar traços de um culto do governante para legitimar
suas teses. Para nós interessa principalmente alguns insights do autor a respeito da
contribuição de textos de especulação angelomórfica para a compreensão do Cristo exaltado.
Para Horbury muitas expressões de invocação e reverência �sugerem que a honra aos anjos
estava entre as práticas herdadas por Judeus e Cristãos do Judaísmo do período do segundo
templo. É sugerido que essas concepções de Deus em um grande anjo ofereceram uma
possível chave para a exaltação de Cristo manifestada no Novo Testamento e em seu culto�.50
Concordamos com ele.
Charles A. Gieschen, em seu livro Angelomorphic Christology, Antecedents and Early
Evidence, apresentou os préstimos da Angelologia Judaica para a Cristologia do Cristianismo
das origens. Esse autor mostrou a importância do estudo de mediadores celestes para o
entendimento da Cristologia das origens. Assim, a Cristologia não deveria ter como ponto de
partida primariamente as páginas do Novo Testamento, mas as tradições angelomórficas
pré-cristãs provenientes da angelologia do Judaísmo adotadas pelos cristãos a fim de
expressar sua Cristologia exaltada.51 Seu livro apresentou um estudo bastante abrangente
das figuras hipostáticas do Antigo Testamento e do Judaísmo do segundo templo, de sua
angelologia e de seres humanos angelomórficos sob o título �Antecedents�.52 A seguir
começando pelos testemunhos dos Padres Apostólicos53 retrocedeu até as Cartas Paulinas e
49 Ibid., p.4. 50 Ibid., pp.121-122. 51 Charles A. Gieschen, Angelomorphic Christology, p.5. 52 ibid., pp.51-183. 53 pp.187-346.
19
encerrou ao apresentar os resultados para o estudo da Cristologia primitiva.54 Quatro foram
as implicações propostas por esse autor: (1) Que na Cristologia Primitiva foram empregadas
muitas tradições angelomórficas em sua composição; (2) a importância das tradições do Anjo
do Senhor para a Cristologia Primitiva; (3) a inter-relação das várias tradições judaicas a
respeito de mediadores celestes e (4) a contribuição da invisibilidade de Deus para o
desenvolvimento das tradições angelomórficas.55 No encerramento de sua obra, Charles A.
Gieschen expressou a opinião a respeito da importância de tal pesquisa:
As sementes que precisavam expressar uma sofisticada Cristologia foram semeadas nos textos Israelitas e Judaicos dos quais o Cristianismo Primitivo objetivou entender a Jesus como Senhor. Continuamente se demonstrou que as tradições angelomórficas dessa literatura, entre as quais as do Anjo do Senhor são fundamentais, foram algumas das mais antigas e mais significantes tradições que inspiraram a Cristologia que agora encontramos na literatura Cristã Primitiva, incluindo o Novo Testamento.56
O trabalho de C. A. Gieschen tem se mostrado enciclopédico quanto ao tema. Por se propor a
uma varredura muito ampla em termos espaciais, seu texto deixou de contemplar as
tradições acerca das narrativas da Transfiguração de Jesus. Nosso objetivo é mais modesto,
tomaremos por base a Carta aos Hebreus, e a partir de seus indícios, procuraremos as suas
possíveis tradições angelomórficas subjacentes e paralelas. Mas diga-se de passagem que, a
obra de Gieschen foi altamente motivadora para o nosso estudo.
Dentro da mesma temática, mas muito mais específico que Gieschen, está o livro
Michael and Christ: Michael Traditions and Angel Christology in Early Christianity de Darrell D.
Hannah. Como o próprio título e subtítulo indicam, sua preocupação fora com as tradições
acerca do Arcanjo Miguel. Hannah teve uma preocupação revisionista, ou seja, retornar às
pressuposições da Cristologia Angélica feitas por Wilhelm Lueken sob orientação de
Wilhelm Boussett.57 Para estes autores, o retrato judaico de Miguel e a crença no Cristo
exaltado estavam relacionados diretamente, pois ambos são apresentados como advogados
celestiais para Israel/Igreja, como sumo-sacerdotes, e como o comandantes das hostes
celestiais.58 A crítica de Hannah recaiu nas falhas metodológicas de Lueken, com respeito às
fontes, pois além de uso heterogêneo das tais, isto é, a ponto de construir um retrato
unificado de Miguel inexistente no antigo judaísmo, pouca atenção ou quase nenhuma dera 54 pp.349-350. 55 p.349. 56 Angelomorphic Christology, p.351. 57 Michael and Christ, p.12. 58 Ibid., p.2.
20
às suas datas. Sem contar que não apreendeu as diferenças entre as tradições de Miguel e a
Cristologia Primitiva.59
Hannah difere de Gieschen na terminologia. Enquanto este utilizou o termo
�Cristologia Angelomórfica� de modo abrangente, aquele em contrapartida apresentou
quatro termos objetivando maior especificidade: �, Angelo-Cristologia� como um termo
abrangente para Cristologias influenciadas por idéias angelológicas; �Cristologia Angélica�
define Cristo como um ser angélico; �Cristologia Angelomórfica� refere-se unicamente aos
retratos visuais de Cristo; finalmente �Cristologia Angélico-Teofânica�, que denota a
identificação patrística de Cristo com o Anjo do Senhor no Antigo Testamento.60 A literatura
estudada por Hannah vai de 200 A.E.C. a 200 E.C. Sua obra e a C. Gieschen são sem dúvida
referências valiosas para o nosso estudo da Cristologia Angelomórfica.
Destacamos Crispin H.T. Fletcher-Louis que enviou-nos gentilmente um ensaio seu
de 43 páginas ainda não publicado. Sob o título The Revelation of the Sacral Son of Man: The
Genre, History of Religions Context and The Meaning of the Transfiguration, Fletcher-Louis se
propôs a definir o lugar histórico e o significado da Transfiguração de Jesus nos Evangelhos
Sinóticos. É prioritariamente um estudo dos traços angelomórficos da Transfiguração, mas
citamos aqui devido ao seu valor de compreender o relato da Transfiguração apresentando
Jesus, o Filho do Homem como Sumo-Sacerdote Celestial, e para o nosso estudo em
particular, de sua importância como outro texto que testifica das implicações de tal assertiva.
Seu ensaio consta de quatro partes: (1) O estado da questão, (2) O ciclo da Transfiguração em
Cesaréia de Filipe e o Filho do Homem, (3) O ciclo CPT (�The Caeserea Philippi-
Transfiguration Cycle�), o Ano Novo e Hermon, e (4) Jesus, o Verdadeiro Sumo-Sacerdote e
o Novo Culto.61 Fletcher-Louis questionou a postura representada por Howard C. Kee de
que a narrativa da Transfiguração de Jesus nos Evangelhos Sinóticos seja definida pela
crença Judaica numa identidade futura, escatológica da transformação dos justos (cf. Daniel
12,3; 1 Enoc 38,4; 39,7; 4 Esdras 7,97).62 Portanto, a cena da transfiguração de Jesus seria uma
representação proléptica da glorificação pós-ressurreição dos justos e não a descrição de
�divindade� daquele. A partir das tradições angelomórficas de Enoc (2 Enoc 22,8-10; 3 Enoc
59 Ibid. 60 Ibid.p.12. 61 Os títulos orginais são: The State of Question (p.1); The Caesarea Philippi-Transfiguration Cycle and the Son of Man (p.7); The CPT cycle, the New Year and Hermon (p.13) & Jesus the True High Priest and the New Cult (p.21). 62 The Revelation of the Sacral Son of Man, p.1.
21
9-15 e das Similitudes) e de Moisés (Exagoge de Ezequiel, o Trágico, linhas 68-89; Êxodo 24,16;
4Q374 e outros), o autor apresenta as lacunas da posição sustentada por Kee.63 Disso resulta
que �a Transfiguração não é fundamentalmente proléptica em sua orientação Cristológica,
mas está preocupada com a presença real de um indivíduo que já em vida carrega alguma
coisa da identidade de Deus�.64
Na segunda parte de seu ensaio duas questões são apresentadas, que dizem respeito
à (1) identidade do Filho do Homem e seu relacionamento com Enoc e Moisés transformados
e (2) se há algo mais em termos de informação a esse respeito além daquilo que a pesquisa
tem intuído.65 Seu ensaio seguiu apresentando indícios de tradições de cunho sacerdotal a
respeito de Enoc e Moisés. Destacou a importância da identidade tríplice do Sumo-Sarcedote
possuindo traços divinos ou angélicos e de representar o povo eleito.66 Na terceira parte o
autor procurou indícios nas tradições relacionadas ao Monte Hermon (como por exemplo, a
queda dos Vigilantes em 1 Enoc) e conectou com o poder de Jesus sobre as forças
demoníacas. Outras conexões foram feitas com a Festa dos Tabernáculos, o Dia da Expiação,
o bode expiatório, a confissão de Pedro e outros detalhes da cena nos Sinóticos. Na quarta
parte, o autor fez as conexões necessárias com o texto sinótico da Transfiguração como
resposta às duas perguntas iniciais de seu ensaio. O autor entendeu que é importante ter as
tradições da transformação do Justo, bem como cabe ainda explorar outras facetas ligadas a
essas tais. Enfim, o ensaio de Fletcher-Louis é um excelente exemplo metodológico da busca
do contexto da História das Religiões que enfatiza os indícios de tradições interligadas num
texto bíblico para obter tal resultado.
Em 1992, Maxwell J. Davidson publicou Angels at Qumran, A Comparative Study of 1
Enoch 1-36, 72-18 and Sectarian Writings from Qumran. Trata-se de um estudo cuidadoso da
angelologia dos conteúdos de 1 Enoc, ou seja, do Livro dos Vigilantes (1-36), do Livro
Astronômico (72-82), do Livro dos Sonhos (83-90), da Epistola de Enoc (91-108), e da
literatura de Qumran, até então publicada e pertinente ao seu tema (1QS, CD, 1QH,
1QM,4Q400-407, 11QShirSabb e outros documentos menores). Davidson teve o cuidado de
estudar texto após texto, indicando data, gênero literário, tradições e conteúdo da literatura
63 Ibid., p.4. 64 Ibid., p.6. 65 The Revelation of the Sacral Son of Man, p.7. 66 Ibid.., p.9.
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em questão. Finalmente, apresentou a comparação de ambas e as respectivas conclusões. Seu
livro deixa uma porta aberta para futuros estudos. Como ele mesmo escreve:
Este (estudo) provoca algumas observações, ainda que breves, referentes a outras áreas para pesquisa ulterior, a fim de fornecer um quadro mais completo da angelologia do mundo Judaico e Cristão primitivos. Por exemplo, deveria se mostrar proveitoso considerar a angelologia do livro canônico de Daniel em relação à literatura Enóquica e outras relacionadas provenientes do período do Judaísmo do segundo templo. Tal estudo lançaria luz sobre a questão de se a angelologia de Daniel é mais parecida a do Antigo Testamento, ou se é mais como a dos livros Enóquicos estudados aqui. Uma similar investigação poderia ser feita em relação à literatura de Qumran. (...). Parece também valioso que os resultados deveriam ser feitos num estudo comparativo da angelologia do Novo Testamento com a literatura de Qumran e 1 Enoc. Seria o caso de comprovar quais elementos contrastantes descobertos em nossa pesquisa podem ser encontrados no Novo Testamento? E os Pais da Igreja? O seu entendimento acerca de anjos e seus papéis seriam modelados apenas pelos escritos do Novo Testamento ou poderiam ter recebido também influências de outros lugares?67
Procuramos fazer bom proveito dessas observações em nosso estudo.
A próxima autora, Martha Himmelfarb, foi muito importante para este trabalho,
ainda que não trate propriamente de Cristologia Angelomórfica e muito menos de uma
Cristologia exaltada, mas por apresentar um excelente estudo sobre a �transformação dos
justos� nos apocalipses de ascensão em seu livro Ascent to Heaven in Jewish and Christian
Apocalipses. Julgamos que a referida transformação é um fator importante na composição de
uma Cristologia Angelomórfica. Himmelfarb lidou com os seguintes textos: o Livro dos
Vigilantes, o Testamento de Levi, 2 Enoc, as Similitudes de Enoc 91, Enoc 37-71, o Apocalipse
de Sofonias, o Apocalipse de Abraão, a Ascensão de Isaías e 3 Baruc.68 Sua preocupação é
apresentar os indícios da transformação de seres humanos em anjos, ou de status angélico.
Para tanto, a autora buscou evidências nos temas principais dessa literatura, tais como
configuração do céu, paralelismo entre o templo celeste e o terrestre, a função dos
mediadores, proximidade de Deus, figuras exemplares da tradição judaica e a existência pós-
morte. Como ela mesma escreveu:
A transformação de seres humanos em anjos, implicitamente ou explicitamente, depois da morte, ou antes, não é incomum nos apocalipses (...). Em muitos dos apocalipses de ascensão, a idéia de anjos como sacerdotes celestiais atua um importante papel na descrição da transformação.69
67 Angels at Qumran, p.323. 68 Ascent to Heaven in Jewish and Christian Apocalypses, p.7. 69 Ibid., p.46.
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Destaca-se ainda, a sua preocupação em apresentar toda configuração do céu em moldes de
santuário, a de apontar para a importância do sacerdócio celestial, do ritual e da santidade,
tudo isso é digno de nota.
Numa linha de pesquisa inversa a dos autores aqui apresentados está à tese doutoral
de Kevin P. Sullivan, Wrestling with Angels: A Study of the Relationship between Angels and
Humans in Late Second Temple Judaism and Christianity.70 Sullivan se propôs a estudar o
relacionamento entre anjos e seres humanos. Para isso o autor examinou: a similaridade das
aparências entre seres humanos e anjos e vice-versa, o contato entre ambos, a hospitalidade a
anjos por seres humanos (e a possibilidade de anjos partilharem a refeição com seres
humanos), a existência híbrida do intercurso anjos-mulheres de Gênesis 6 com suas
respectivas interpretações e concluiu com as implicações resultantes de seu estudo para a
pesquisa corrente.71As duas principais contribuições que Sullivan procurou fazer, foram: (1)
aprofundar o conhecimento das idéias a respeito de anjos, e (2) apresentar as distinções entre
anjos e seres humanos no período estudado.72 Seu estudo, ainda que não seja sobre
Cristologia propriamente, apresentou resultados que percebemos não se sustentarem para o
nosso estudo ao tratar de uma série de justos que apresentam traços angelomórficos. Sua
atenção aos indícios, que acreditou serem os pontos fracos de uma abordagem
angelomórfica, foi muito econômica. Discutiremos sua conclusão a respeito de
11QMelquisedec em nosso capítulo 4.
Após a esta resenha dos autores, podemos esboçar algumas contribuições resultantes
para nossa pesquisa.
Em primeiro lugar, percebemos que o tema da Cristologia Angelomórfica, ainda que
não com este título, estava presente em considerações muito antigas como as de Justino, o
mártir, como mostrou C. A. Gieschen em vários lugares de sua obra.
Em segundo lugar, a expectativa de uma existência angelomórfica é atestada em uma
literatura bastante diversificada no Judaísmo do Período do 2º Templo. E que os autores do
NT se encontravam dentro de uma tradição bem fixada, e que havia certa familiaridade com
70 Tese apresentada na Faculdade de Teologia da Universidade de Oxford para obtenção do Grau de Doutor em Filosofia (PhD.), 2002. Seu estudo deve ser em breve publicado pela E.J. Brill em sua série Arbeiten zur Geschichte des Antiken Judentums und des Urchristentums. 71 Ibid., p.i. 72 Wrestling with Angels, p.i.
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o assunto tanto na Palestina como na Diáspora, com paralelos no meio ambiente cultural do
mundo Mediterrâneo do século I, sendo que, sua base estava nas próprias Escrituras de
Israel, como pretende mostrar o autor da Carta aos Hebreus.
Em terceiro lugar, a Cristologia Angelomórfica de escritos na linha de Hebreus são
repletas da expressão de anelos de uma nova humanidade, encontrando paralelos na
literatura de Qumran e no Judaísmo posterior, como por exemplo no Enoc transformado no
anjo Metatron no 3 Enoc. E que a figura do sumo sacerdote e do Templo foram fontes de
muito mais interlocução para o Cristianismo primitivo do que se tem estado em voga nos
estudos bíblicos. A releitura de Fletcher-Louis e Martha Himmelfarb tem sido bem sucedida
nesse campo, despertando uma maior atenção à temática.
Do que resulta principalmente que precisamos repensar os conceitos a respeito da
convicção monoteísta no próprio Judaísmo. Isto é, houve épocas em que seu monoteísmo
permitiu a expressão de um mediador glorificado em certa medida nos moldes de Jesus
Cristo, e que forneceu tradições para ter lugar a sua própria cosmovisão.
Dito isso, ocupar-nos-emos, inicialmente de estudar o meio ambiente sócio cultural
perceptível na Carta aos Hebreus, com o qual se dá sua interlocução, bem como a estratégia
retórica usada pelo autor a fim de situarmos o mais concretamente possível a comunidade de
Hebreus. É o que faremos a seguir.
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Capítulo 2
ANÁLISE SÓCIO-RETÓRICA DA CARTA AOS HEBREUS
Neste capítulo nos ocupamos de compreender o pano de fundo sócio-cultural dos leitores e
do autor de Hebreus e de sua estratégia retórica para alcançar seus objetivos. 73 Pretendemos
mostrar ao leitor que o autor ao mesmo tempo em que revela suas convicções cristológicas,
constrói uma eclesiologia adequada resultante. Feito isto, teremos um quadro referencial
para a importância da Cristologia de Hebreus, e ao qual precisaremos retornar na conclusão
desta tese.
Começamos com uma pergunta: A comparação de Jesus e os anjos em Hebreus
seria a resposta contra uma �Angelo-Cristologia� sustentada pelos membros
(ou uma parcela deles) da comunidade? Loren T. Stuckenbruck74 listou as cinco hipóteses
levantadas por uma parte da pesquisa a respeito de uma possível especulação angelológica
no seio da comunidade dos Hebreus:
() a comunidade endereçada estava de algum modo atraída por uma veneração de anjos; () a comunidade endereçada percebia a Cristo como um intermediário a quem eles entendem como uma figura Angélica; () a comunidade estava interessada em culto com os anjos; () o autor e/ou leitores eram conscientes de tradições angelológicas judaicas contemporâneas, e o autor tenta desencorajar seus leitores de mostrar um interesse em tais idéias; e () a inferioridade dos anjos ao Cristo é um realce retórico ou literário mediante o qual o autor argumenta pela superioridade da Nova Aliança sobre a Antiga.
As quatro primeiras respostas pressupõem uma polêmica angelológica que preocupava o
autor de Hebreus. Entendemos que quaisquer polêmicas representadas por essas quatro
alternativas não fundamentam o fato de o autor fazer a comparação entre Jesus e os anjos; e
que a alternativa (), isto é, uma estratégia retórica é a razão da referência a anjos em
Hebreus . Com efeito, trata-se de um recurso retórico que deve ser
contemplado na configuração global do gênero do discurso utilizado pelo autor. Em sua
configuração global, a Carta aos Hebreus é destituída de tonalidades polêmicas; a referência
à superioridade de Jesus aos anjos é antes axiomática, bem como a sua exaltação à direita de
73 José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 11 chama nossa atenção para não se fazer uma mera �história das idéias� no estudo da Carta aos Hebreus. 74 Angel veneration & Christology, p.124.
26
Deus Pai. Portanto, não se tratava de uma renúncia à alguma tradição angelológica que
prejudicaria a realidade exaltada do Filho de Deus.
Por um lado, nossa proposição é que a profissão de fé no Jesus Cristo exaltado à mão
direita de Deus era um valor estabelecido, não questionado. Por outro lado, a confissão de
que o Cristo foi crucificado, isto sim, causava um embaraço aos leitores em seu ambiente
social. Somava-se às vicissitudes enfrentadas a conseqüente �tentação� (: pepeira,smenoj)
de abandonar a �caminhada� da fé. O autor se defrontou com o desafio de legitimar a morte
de Jesus mediante o recurso interpretativo da Cristologia Sumo Sacerdotal expressa na carta.
Mas sua escolha relaciona-se à temática da �caminhada� para a Cidade do Deus vivo, a
Jerusalém celeste (Hb ), resposta a situação vivida por seus leitores. Por conta disso, a
estratégia de nosso autor era a proposta e ao mesmo tempo o espelho da realidade da
comunidade dos leitores. Espelho porque refletia a sociedade com suas instituições, valores,
preconceitos em que estava inserida. Ainda que a linguagem usada pelo autor seja tirada das
tradições de Israel, autor e destinatários reconheciam a sua realidade cotidiana no Mundo
Mediterrâneo dos fins do I séc. E.C., e que desse espelho, o autor apresentou a alternativa
para os leitores superarem as contradições do momento, contemplando uma realidade ao
mesmo tempo presente e futura, a cidadania celeste.
Outrossim, procuramos desvelar a função dos anjos em Hebreus . A
resposta deve se tornar evidente dentro da configuração retórica e estratégica do autor. Para
tanto, atentamos à estrutura do gênero discursivo da Carta ao Hebreu e à sua função
retórica.
Intertextura sócio-cultural
Neste item exploramos outras possibilidades do texto da Carta aos Hebreus. Adotamos as
definições dadas por Vernon K. Robbins:
Intertextura é uma representação de um texto, com referência a, e uso de fenômenos no �mundo� externo do texto que está sendo interpretado. Em outras palavras, a intertextura de um texto é a interação da linguagem no texto com o material �externo� e �objetos� físicos, eventos históricos, textos, costumes, valores, papéis, instituições e sistemas. O texto �configura� fenômenos externos ao texto numa linguagem particular do meio ambiente. Este meio ambiente de linguagem reclama, implicitamente ou explicitamente, seja para �representar� acuradamente fenômenos externos ou para ser uma aventura, implicitamente ou explicitamente, ao �criar� fenômenos que se relacionam de algum modo provocativo aos fenômenos externos ao texto. Uma das metas principais da análise intertextual é verificar a natureza e resultado do processo de configuração e re-configuração dos fenômenos no mundo externo ao texto. Algumas vezes o texto imita outro texto, mas coloca pessoas diferentes nele. Algumas vezes reestrutura uma tradição bem conhecida de modo que encerra diferentemente ou tem muitas implicações diferentes
27
para a crença e ação. Outras vezes inverte uma tradição, convertendo-se de uma prévia situação retórica para criar uma nova e distinta tradição dramática. Em cada instância, o resultado é um texto com uma rica configuração de textos, culturas e fenômenos histórico-sociais.75
Tem-se por princípio que um texto interage com seus leitores em seu mundo interno e
externo. Em outras palavras, o texto, especificamente o de Hebreus, interagia com os leitores
tendo como pano de fundo sua experiência religiosa e seu cotidiano. O autor lançou mão de
tradições normativas, no caso as Escrituras Judaicas, reinterpretou essas tradições frente ao
cotidiano dos leitores, transparecendo instituições implícitas e análogas às tradições do
conteúdo do texto. Propôs uma interpretação com base numa releitura das tradições das
Escrituras, levando em conta a experiência religiosa dos leitores e ao mesmo tempo
apresentando uma alternativa de contra-cultura ao seu meio ambiente vital. A própria Carta
aos Hebreus apresenta os indícios do tecido cultural vivenciado pelos leitores. Mas se faz
necessário um passo a mais, deslindar as possibilidades percebidas pelo autor e sua proposta
implícita no texto.
Destarte, levamos em conta os princípios elementares para a comunicação: emissor
(autor), mensagem (Carta aos Hebreus) e receptor (leitores/ouvintes). Emissor, mensagem e
receptores estão inseridos no mundo Mediterrâneo do I séc. E.C., compartilhavam essa
realidade, e a cultura produzida por esse mundo formava a moldura do seu cotidiano.
Assim, a Carta aos Hebreus foi configurada dentro dos moldes que regiam a expressão
discursiva desse ambiente e tempo. Entretanto, não era um instrumento servil, mas sofreu
alterações criativas de seu autor a fim de adaptar à sua própria cosmovisão. Comunicavam-
se dentro de um mundo representado: a construção comum da realidade mediante a mútua
experiência religiosa. Essa construção social da realidade levava em conta tanto as tradições
que formavam e legitimavam sua experiência religiosa, bem como o seu meio-ambiente
sócio-cultural pleno de desafios e coerções sobre seus leitores.
Portanto, o texto apresenta uma proposta muito mais ampla do que uma leitura de
superfície pode mostrar. Explicamos. É necessário procurar indícios e sinais de uma proposta
implícita nos procedimentos do autor, para se descortinar um algo mais, uma reserva de
sentido perceptível aos leitores, mas não totalmente evidente ao leitor de hoje. Esse conteúdo
implícito é a arena da pesquisa da intertextura sócio-cultural.
75Exploring the texture of texts, p. 40.
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A intertextura sócio-cultural contempla duas modalidades: () Referência ou Alusão e
() Eco.76 �Uma Referência é uma palavra ou frase que aponta para um personagem ou uma
tradição conhecida do povo na base da tradição.�77 Quanto a Alusão, esta �é uma declaração
que pressupõe uma tradição que existe em forma textual, mas o texto que está sendo
interpretado não está tentando �recitar� o texto�.78 Por sua vez o ��Eco� é uma palavra ou frase
que evoca, ou potencialmente evoca, um conceito de tradição cultural�.79 Para ser mais claro,
�o eco não contém seja uma palavra ou frase que é �indiscutivelmente� de uma única tradição
cultural. O eco é sutil e indireto�.80 Um bom exemplo disso foi apresentado por Abraham J.
Malherbe em seus estudos a respeito de Paulo. Neles, A. J. Malherbe advogou o
procedimento da necessidade de se estar atento ao milieu filosófico do mundo Mediterrâneo
do I séc. Fundamentou sua postura da seguinte maneira:
Platônicos, Peripatéticos, Cínicos, Estóicos, Epicureus e Pitagóricos (...) objetivavam uma reforma moral. Eles partilhavam não somente essa meta, mas muito da substância de sua instrução moral e muitos dos seus conselhos e métodos... Isto tem contribuído para uma visão de sincretismo koinê filosófico em que o Estoicismo era maior de idade importância. Tal compreensão parece ser inadequada. (...). O sincretismo não é mais considerado como um processo de homogeneização em que elementos contribuintes perdem sua individualidade. Pelo contrário, o compromisso pode muito bem conduzir a uma acentuação da unicidade. Isto era claramente tanto quanto as escolas filosóficas discutiam uma com a outra e os membros da mesma escola debatiam suas próprias doutrinas.81
É lugar comum comparar a Carta aos Hebreus aos escritos de Filo. A linguagem, os
motivos e o enfoque platônico eram comuns aos dois autores. Mas a tendência predominante
prioriza os elementos judaicos aparentes no texto. Nem todos pensam na possibilidade de o
autor também utilizar-se de elementos de uma cosmovisão greco-romana para os seus
interesses. Contudo, o autor de Hebreus tanto usou (visivelmente) elementos da tradição
judaica, articulou uma resposta para a esperança messiânica do ponto de vista sumo
sacerdotal, mas também deu uma resposta (latente) ao imaginário coletivo greco-romano,
ambos confluindo na sua expressão de Cristianismo como resposta superior às duas visões.
76 Vernon K. ROBBINS, Exploring the texture of text, p. 58. 77 Ibid., p. 58. 78 Ibid., p. 58. 79 Ibid., p. 60. 80 Ibid., p. 60. 81 Paul and the popular philosophers, p. 5.
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Situação retórica
Os leitores de Hebreus eram habitantes da cidade, em cujo milieu se dava a sua dialética
existencial. Daí apresentamos, em linhas gerais, uma descrição da Cidade-Estado que
formava o meio ambiente social do qual podemos tirar proveito para compreender a Carta
aos Hebreus. Posteriormente apresentaremos o perfil do auditório e do autor a partir dos
conteúdos do escrito. Neste procuraremos o Sitz im Leben dos leitores a fim de definir sua
estratégia retórica adequada a tal situação.
A Cidade no mundo Mediterrâneo do 1º século
A Cidade era de importância fundamental para o mundo Mediterrâneo do I séc. E.C. Uma
verdadeira existência só era possível dentro do Estado que recebia a máxima prioridade na
vida do cidadão. Visto que o homem é um animal político, destinado a viver em sociedade, a
Cidade, então, faz parte da sua natureza (Aristóteles, A Política, ). Pois,
a primeira causa dessa agregação de uns homens a outros é menos sua debilidade do que certo instinto de sociabilidade em todos inato (...), o homem não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum (Cícero, Da República, 1.25).
O aspecto físico da Cidade
Em termos materiais, um povoamento para ser considerado uma cidade precisava de
edificações que atendessem certas necessidades básicas da vida cidadã. A Cidade-Estado,
antes de tudo possuía um espaço físico em que se materializava o espaço público.
Constituíam este espaço urbano os templos, o mercado (em que poderia funcionar a
assembléia), o teatro, o estádio, o porto (quando cidade costeira) e a acrópole, muitas vezes
amuralhada.82 Localizada, idealmente, em terreno de difícil acesso ao inimigo, ao mesmo
tempo em que deveria ser bem localizada em terra e diante do mar (Aristóteles, A Política,
). As muralhas eram um fator importante, seja de embelezamento, seja de defesa, visto
que �não circundar a cidade de muralhas é criar um país fácil de ser invadido� (Aristóteles,
A Política, ).
Os templos deviam ser majestosos e se situarem no mesmo lugar em que se
realizavam os banquetes, salvo quando houvesse alguma palavra oracular para outra
82 Norberto Luiz GUARINELLO, Cidades-Estado na antiguidade clássica, in: J. PINSKY/C. B. PINSKY, História da cidadania, p. 34.
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localização (Aristóteles, A Política, ). Aí também deveria se situar a praça pública,
desembaraçada de todo tipo de comércio e prática de exercícios. Para o comércio, o mercado
era o lugar designado (Aristóteles, A Política, ).
A Cidade tornava-se então, além de uma necessidade, a expressão vital da
humanidade a ponto de ser considerada como ocupando o primeiro lugar numa escala de
três: Cidade, família, indivíduo (Aristóteles, A Política, ). Pois �o individuo, proprietário
autônomo de seus meios de subsistência e de riqueza, só existia e era possível no quadro de
uma comunidade concreta � que possuía, por assim dizer, de modo virtual o território
agrícola.�83 Para os gregos, a Cidade era um estado soberano composto de cidade, campo e
alguns aldeamentos das circunvizinhanças.84 Já sob a dominação romana, a extensão da
Cidade se ampliava abarcando o império. A Cidade era o Mundo.
A coletividade
O povo (de/moj) era a coletividade de todos os cidadãos. Devido a isso, os cidadãos eram
chamados à responsabilidade de participar �em comum de tudo ou de nada, de certas coisas
e não de outras. Participar de nada é impossível sem dúvida; porque a sociedade política é
uma espécie de comunidade� (Aristóteles A Política, ). A esta comunidade se dava o
nome de assembléia (evkklhsi,a), que se reunia a fim de registrar sua opinião às propostas do
conselho (boulh,), cujos membros eram provenientes das antigas famílias.85 Os chefes destas
famílias eram chamados de pais (pate,rej) e foram inicialmente os ancestrais das aristocracias,
pois miticamente fundada por um herói, a cidade tinha seu passado rememorado no
presente pelos cultos devidos. Destarte, Rômulo, o benfeitor de Roma, �tem algo de divino
pelo seu engenho e pelo seu berço� (Cícero, Da República, ).
Ainda quanto à assembléia, não se tratava da reunião de quaisquer homens, mas da
que tinha seu fundamento no seu consentimento �jurídico e na utilidade comum� (Cícero,
Da República, ). Os cidadãos eram aqueles que tinham os seus nomes inscritos nos
registros públicos; filhos de pais cidadãos, filhos legítimos:
E, depois, no terceiro ano, sob o arcontado de Antídoto, por uma proposição de Péricles motivada pela enormidade de cidadãos, decretou-se que participariam da cidadania apenas os que fossem filhos de
83 Noberto L. GUARINELLO, Cidades-Estado na antiguidade clássica, p. 33. 84 Pedro Paulo FUNARI, Grécia e Roma, p. 25. 85 John E. STAMBAUGH, Cities, in: ABD, vol. I, p. 1044.
31
ambos os pais cidadãos (e;gnwsan mh. mete,cein th/j po,lewj o]j a]n mh. ex amfoi/n aspoi/n h=| gegonw,j, Aristóteles A Constituição de Atenas, 26.4).
Ser cidadão era motivo de orgulho e plena realização da existência humana. Por isso
faltar das assembléias ou atrasar-se incorreria, muitas vezes, em multa (Aristóteles. A
Constituição de Atenas, ). Entretanto, uma ressalva deve ser feita quanto à assembléia
romana no século I E.C. Não eram contados os votos na assembléia dos cidadãos individuais,
mas das tribos. Cada tribo manifesta detinha um voto que exprimia a opinião de sua maioria
interna.86 O historiador Políbios mesmo quando teceu elogios desbragados à sua constituição
que, do seu ponto de vista, era a fusão das três fontes de autoridade política: autocracia,
aristocracia e democracia, ilustrou que mesmo um romano se confundiria ao descrever o
modelo de governo (em vigência no período imperial, fazendo vistas grossas à defasagem da
democracia grega), disse que a autoridade política no todo possuía características dos três
modelos.87 Em sua obra Da República, Cícero apresentou um conclave de amigos para
filosofar, temos aí uma descrição da engrenagem política de Roma e seu funcionamento.88
O governo romano suscitou um Imperador legitimado por um grupo de notáveis, que
eram eleitos e dependiam em muita coisa do voto popular. Esse modelo decorria de uma
sociedade que era essencialmente estratificada, que por um lado lhe dava sustentação e por
outro dele se nutria. Uma Sociedade de classes em que cada pessoa deveria saber qual era o
seu lugar e conseqüentemente pautar o seu cotidiano. No entanto, havia algumas
possibilidades das pessoas ascender socialmente, o que sustentava a vigência do patronato e
clientelismo.
Agora, devemos nos referir ao exercício da �Retórica� como expressão sublime da
cidadania. Com efeito, principalmente devido à necessidade de deliberar nas assembléias, o
cidadão era treinado na arte retórica a fim de poder melhor se expressar em público, bem
como persuadir os outros a respeito de sua opinião. Herdada dos gregos, os cidadãos do
império romano (ainda que na maioria não fosse praticante) eram fiéis entusiastas da arte de
falar. Os que não se arvoraram em oradores, por sua vez, a apreciavam. Desde os gregos,
foram se desenvolvendo técnicas e recursos para promover um bom discurso. Ainda que
nem todos se sentissem aptos a utilizá-la, o que conseqüentemente deixava o espaço somente 86 André AYMARD/Jeannine AYBOYER, Roma e seu império, p. 168. 87 História. 88 Cícero procura seus personagens na história recente de Roma: Cipião, Q. Tuberão, L. Fúrio, P. Rutílio, Filão, Lélio, Espúrio Múmio, C. Fânio, Quinto Cévola e M. Manílio.
32
para os menos tímidos e ousados fizessem suas proposições, levando as assembléias a
oscilarem de uma opinião para outra, conforme as habilidades dos oradores.
Seja como for, o fato é que toda a expressão oral e literária tinha como linhas
orientadoras a retórica. Os livros de história, de biografias, de poesia, de sátira, de odes, de
dramas, de comédias, tratados e cartas, para referir somente algumas possibilidades, eram
norteados pela arte retórica. O cidadão pleno (no mínimo rico), deveria ser treinado para
falar ao público. Para isto, o treinamento do futuro cidadão começava aos sete anos de idade
(Quintiliano, Instituciones Oratórias, ); aprendia-se gramática e outras disciplinas normais
à educação; mas um traço proposital era que o estudante muito cedo familiarizava com as
tradições e mitologias gregas e romanas, principalmente com Homero. Exercícios com as
figuras de retórica eram desde cedo praticados, bem como apreciar os bons oradores. Neste
viés, os futuros oradores eram estimulados a imitar estilos, a elaborar panegíricos, a escrever
cartas, a honrar e a censurar. E de fato, mesmo o louvor e a censura faziam parte das aulas.89
Já numa fase mais adiantada, no que corresponderia ao nosso ensino superior, eram
ministradas aulas de retórica pura. Nas aulas, os estudantes aprendiam pela teoria, imitação
e prática (Ad Herennium, ).90
A cultura do mundo mediterrâneo possuía uma noção muito forte da expressão
verbal, tratava-se de um verdadeiro poder em ação:
Pois não é à persuasão, mas ao êxtase que a natureza sublime conduz os ouvintes. Seguramente por toda parte, acompanhado do choque, o maravilhoso sempre supera aquele que visa a persuadir e a agradar, já que o ser persuadido, na maior parte do tempo depende de nós, enquanto aquilo de que falamos aqui, trazendo um domínio e uma força irresistíveis, coloca-se bem acima do ouvinte (Longino, Do Sublime, 2.4)
2.2.1.3.Cargos públicos
Dava-se ao cidadão o poder de ascender aos cargos públicos e de desfrutar outros
privilégios. A grande aspiração do cidadão era ser nomeado para um cargo público. Os
cidadãos detentores de tais cargos eram responsáveis por prestar serviços ao povo, eram os
leitourgoi, benfeitores da comunidade (Aristóteles, A Constituição de Atenas, ). Mas para
exercer bem qualquer função pública, idealmente, o cidadão devia saber obedecer para
89 �Em grande medida, é lícito aplicar uma repreensão moderada, porém firme, a fim de parecermos severos e decididos e evitar os ultrajes. Devemos também mostrar que a própria aspereza da censura atende ao interesse do censurado� (Cícero, Dos Deveres, 1.137). 90 Mais tarde Santo Agostinho expressaria sua aprovação daqueles autodidatas que imitam os pregadores cristãos a fim de aprender falar às comunidades (Agostinho, Princípios Fundamentais da Arte Oratória 3.5).
33
mandar alternativamente, pois a liberdade dos cidadãos dependia disso (Aristóteles, A
Política, 3.7.13; 7.1.6).
Aqui também os romanos fizeram uma alteração quanto à designação dos cargos
públicos. Estes foram denominados de magistraturas. O termo magistratus designava
concomitantemente a magistratura e o homem a que se lhe outorgou; magister era o �mestre�
oposto ao minister, o servidor (minister = leitou,rgoj).91 Detentor de um poder autônomo,
mesmo independente da comunidade e acima dela, era �a encarnação do Estado no seu
representante e no utilizador de sua autoridade.�92
Chamado de potestas, os magistrados eram os intermediários entre a cidade e os
deuses executando sacrifícios, interpretação de presságios, consagração de santuários,
organizando celebrações festivas e o privilégio de presidi-las.93 A este poder religioso se
anexou o poder de chefe de exército e o direito de convocar o povo e o senado.94 E nesse
mister dispensava editos à justiça, castigava e aplicava penas severas.95
A deferência à sua posição se revelava na disposição dos cidadãos em pé diante dele,
que sentado durante as cerimônias se vestia com uma toga distinta e ornamentada, o que
revela que Roma fez pouco caso da igualdade dos cidadãos.96 O magistrado tornara-se assim
a caricatura da cidadania:
O poder e o procedimento monárquicos do magistrado são, de direito como de fato, muito mais incontestáveis fora do que no interior de Roma e do território propriamente romano.(...). O magistrado representa Roma, dispõe de força material confiada pela cidade, o que aumenta a força moral encarnada em sua pessoa; não seria humano se nunca cedesse à tentação de abusar dessa situação. Os próprios romanos reconheciam que o governador, isto é, o magistrado, era um rei na sua província; (...) esse fato não contribuiu para a felicidade das províncias nem de Roma.97
2.2.1.4. O Princeps
Dentre os cidadãos, estava o princips, o primeiro cidadão, o Imperador, que segundo Políbios
fazia a parte do monarca na simbiose de governos de Roma (Políbios, História, 6.11). Do
tempo de Otaviano em diante, o princips foi chamado de Imperator, título honorífico dado
pelo exército. O título unido ao nome acrescentado de Caio Júlio César, passou a ser um
91 A. AYMARD/J. AYBOYER, Roma e seu império, p. 155. 92 Ibid., p. 155. 93 Ibid., p. 157. 94 Ibid., p. 157. 95 Ibid., p. 157. 96 Ibid., p. 169. 97 Ibid., p. 160.
34
nome.98 Por ser �filho� adotivo de Júlio César, que fora divinizado por ocasião de sua morte,
Otaviano recebeu o nome habitual de Imperator Caesar Divi filius, acrescido posteriormente
pelo senado do título �Augusto�, antes aplicado a certos deuses para �assinalar que eram
�aumentadores�, criadores de algo diferente e melhor � a mesma idéia que está na raiz da
crença romana da essência religiosa do gênio individual... restaurador e �aumentador do
Estado.�� 99 A mais alta honra atribuída a um homem e como o homem investido da mais
elevada autoridade.
Na mentalidade de Aristóteles isso era impossível, humanamente falando:
Se um cidadão tem tal superioridade de mérito, ou se vários cidadãos, não muito numerosos, no entanto, para formarem por si sós uma cidade são de tal modo superiores que não se possa comparar nem o mérito nem a influência de tal ou tais cidadãos ao mérito ou à influência política dos demais, não será mais preciso considerá-los como fazendo parte da cidade. Colocá-los num pé de igualdade, a eles que sobressaem aos outros pelo seu próprio mérito e influência política, seria prejudicá-los. Parece, com efeito, que um ser dessa espécie deve ser considerado como um deus entre os homens. Por outro lado, já se não poderá submetê-lo à autoridade. Seria o mesmo querer mandar em Júpiter e com ele repartir o poder (A Política, 3.8.1,7).
Otaviano este tentou minorar a impressão de seu autoritarismo consultando o senado e
deixando-se eleger anualmente pela assembléia.100
O Soberano em Roma era o Senhor (dominus, ku,rioj) e Patrono e ao mesmo tempo o
Pai da Pátria (Suetônio, A vida de Otávio César Augusto). Decorria disto que �o que agrada ao
príncipe tem força de lei.�101 Nessa linguagem, o imperador como Senhor-Patrão possuía
todo o império como clientela, cabia a ele, portanto, o que antes de tudo era tarefa de todos
os cidadãos, a Salvação do comunidade (peri. th/j swthri,ajAristóteles, A Política,3.2.2; A
Constituição de Atenas, 29.2 ).
A morte do imperador era a sua apoteose. Suetônio não economizou as palavras ao
listar os sinais autenticadores da proximidade da partida de Otaviano ao céu:
Sua apoteose foi anunciada pelos prodígios mais evidentes. Ao ocupar-se do encerramento de uma festa lustral, no Campo de Marte, perante grande afluência popular, uma águia voou várias vezes em seu derredor e, dirigindo-se em seguida ao templo vizinho, pousou em cima da primeira letra da gravação do nome Agripa. Impressionado com este espetáculo, Augusto encarregou seu colega Tibério de pronunciar os votos costumeiros para o lustro futuro. (...). Na mesma ocasião caiu um raio sobre a sua estátua, apagando a primeira letra do seu nome. O oráculo respondeu que ele não viveria mais do que cem dias, número marcado pela letra C, e que seria colocado na categoria dos deuses, porque �aesar�,
98 M. ROSTOVTZEFF, História de Roma, p. 164. 99 M. ROSTOVTZEFF, História de Roma, p. 164. 165. 100 Ibid., p. 165. 101 Pedro P. FUNARI, A Cidadania entre os romanos, p. 65.
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que era o resto do nome de �Caesar�, significa �deus� em língua etrusca. (...). Morreu no mesmo quarto em que morrera seu pai, Otávio... (...). Fizeram-lhe o elogio fúnebre em dois lugares: diante do templo do divino Júlio, por Tibério, e diante dos antigos Rostros, por Druso, filho de Tibério. (...). Ali um antigo pretor jurou que vira a imagem de Augusto incinerada subir ao céu (A vida de Otaviano Augusto).
Verdade era que imperadores como Tibério César, com na morte, fizeram mais pelo povo do
que em vida, a ponto de sua maior contribuição para o povo foi a de ter morrido. Muitos
fizeram orações à Mãe Terra e aos espíritos para que não recebessem nem a sua sombra de
Tibério; outros queriam trucidar seu cadáver e queimá-lo no anfiteatro (Suetônio, A Vida de
Tibério César). Entretanto, a rigor, a morte do soberano de Roma implicava em benefícios, seja
em dinheiro ou não, aos cidadãos, à cidade, aos soldados, aos escravos, aos libertos e mesmo
aos prisioneiros. Estes recebiam o perdão se estavam agendados para serem supliciados no
dia da morte do imperador.
O direito à cidadania
Grosso modo, a sociedade romana imperial era classificada em patrícios, plebeus, libertos e
escravos. Os das duas primeiras eram os cidadãos romanos, os das terceira poderiam vir a ser,
ocasionado pelo senhor; a última não. Os patrícios (�aqueles com pais�, também chamados
de gentes) provinham das antigas famílias ricas, proprietárias de terra e privilegiadas, sem
antepassados que foram escravos.102 Na Roma antiga somente os patrícios podiam ter os
cargos de cônsul, senador e sacerdote; eram os cidadãos romanos por excelência, os de pleno
direito (optimo iure).103 Os plebeus por sua vez eram os nascidos livres, protegidos ou
endividados e explorados pelos patrícios que �governavam a cidade (Roma) principalmente
em benefício próprio, aplicando as leis conforme seus interesses pessoais e procurando
reduzir à servidão plebeus camponeses que não conseguiam pagar suas dívidas�.104 Após
muitas lutas contra os patrícios e ameaças de abandonar a cidade, os plebeus conseguiram o
perdão das dívidas, a libertação dos outros escravizados e paulatinamente o direito de acesso
a todos os cargos do estado. No século I, um bom número de plebeus ocupavam os quadros
políticos, apesar de a grande maioria continuar de fora.105 Forma-se assim uma aristocracia
102 M. ROSTOVTZEFF, História de Roma, p. 34. 103 Claude NICOLET, O cidadão e o político, in: Andréa GIARDINA(org.), O homem romano, p. 22. 104 P. P. FUNARI, Grécia e Roma, p. 83. 105 Devemos lembrar que para ocupar cargos públicos, os cidadãos precisavam ser ricos, pois as ocupações públicas não eram remuneradas. Mas uma vez lá, muitos privilégios poderiam ser alcançados e conseqüentemente outros rendimentos.
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mista (plebéia-patrícia). Mas isso não exprime o retrato exato da sociedade romana; ela era
muito mais fragmentada no interior de seus quadros:
Por conseguinte, dentro da cidade, haverá �tribos� que são, ao mesmo tempo, quadros territoriais (uma propriedade encontra-se na posse de �uma tribo�) e humanos, porque neles estão reagrupados os indivíduos e as famílias, de acordo com a sua origem ou com a vontade do legislador ou do magistrado. Ter-se-á classes censitárias que reúnem todos aqueles que têm um patrimônio equivalente a um dado valor. No seio das classes cujos efetivos são muito desiguais (os pobres são em muito maior número de �centúrias�, de acordo com a sua idade (ou seja, segundo um critério militar). De início (a situação durará até a segunda guerra púnica, aproximadamente), as mesmas classes censitárias (que acabaram por ser fixadas em cinco) estabeleciam o armamento e portanto o posto de cada um no campo de batalha. Entre os ricos, por exemplo, os mais ricos (e os �melhores�) eram destinados ao serviço eqüestre: as 18 �centúrias� dos cavaleiros juntavam-se às 175 dos infantes (e dos �operários�). A dado momento houve uma relação entre o número desta 193 centúrias e os efetivos do exército (a legio) realmente recrutados. Mas essa relação desapareceu em breve, vindo a formar-se unidades que, embora com o mesmo nome, eram de dimensões bastante variáveis; Cícero assegura que havia mais gente na última centúria �sem classe� composta por proletarii, do que em todas as outras; por conseguinte, mais da metade do povo em das centúrias.106
Como se vê o sistema se complicara a ponto de ficar quase ininteligível. Todavia, os objetivos
de tal fragmentação visavam o recrutamento, a cobrança de impostos e sem dúvida, o voto.
A citação acima menciona os proletarii. Estes eram os que só podiam contribuir ao
estado devido a sua capacitação de gerar filhos. Aristóteles via que tanto no regime da
oligarquia ou da democracia haveria pobres. E que a verdadeira diferença entre oligarquia e
democracia estava �na pobreza e na riqueza; é preciso que todas as vezes que a riqueza
ocupa o poder, com ou sem maioria haja oligarquia; e democracia quando os pobres é que
ocupam o poder� (A Política,3.5.7) Para sobreviver, os proletarii dependiam de seus parcos
salários como pequenos artesãos, bem como da espórtula. Este benefício era direito somente
dos cidadãos romanos pobres, oferecido pelos cidadãos mais ricos.
Todavia, esse afluxo de beneficiários da espórtula, e depois das distribuições de trigo pelo Estado, torna o abastecimento de Roma cada vez mais aleatório. Os que vivem de favor tornam-se numerosos, numa cidade onde a alimentação sempre foi um problema crucial. Durante sua ditadura, César fez um censo dos beneficiários de distribuições: encarregou da operação os proprietários de insulae, o que � supunha ele � permitiria descobrir mais facilmente os fraudadores. A operação é interessante para as finanças do Estado: com efeito, de um total de 320.000 plebeus que recebem trigo de graça do Estado, 150.000, não têm nenhum direito aos favores públicos!107
Apesar dos pesares, qual seria o interesse dos cidadãos ricos em inscrever os nomes dos
cidadãos pobres, seria amor à humanidade (filadelfi,a)? Na verdade, os proletarii ainda que
pobres, detinham o direito de voto nas assembléias. E sua à necessidade de sobrevivência 106 C. NICOLET, O cidadão e o político, p. 29. 107 C. SALLES, Nos submundos da Antiguidade, p. 204.
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aliava-se a gana de privilégios dos cidadãos ricos, originando-se daí a relação patrono-
cliente.
2.2.1.6. Patronato e clientelismo
Karl Kautsky atentou nos seguintes termos para esse diferencial da sociedade romana que
outorgava a cidadania aos pobres:
Claramente não é uma completa cidadania, porque os antigos cidadãos que ostentam esse grau são os que governam a cidade e o Estado por meio de suas assembléias, senão a uma cidadania de segunda classe, que desfruta de toda liberdade e de toda a proteção legal do Estado, porém sem nenhuma participação em seu governo. Estes novos cidadãos eram necessários à cidade à medida que aumentava sua riqueza e crescia o peso da guerra, posto que as famílias dos antigos cidadãos não podiam subministrar já o necessário número de cidadãos soldados.108
Assim, as categorias intermediárias de cidadãos, conforme sua capacidade de aquisição,
uniam-se a protetores chamados de patronos que tanto podiam garantir certa sobrevivência
e abrir as portas para se galgar uma ascensão social. Possuir muitos clientes (uma espécie de
afilhados) era sinal de prestígio e riqueza. Há de fato nesse relacionamento uma troca de
favores, o patrono precisava dos votos e dos serviços de seus clientes, e estes por sua vez
precisavam das oportunidades e proteção de seus patronos (padrinhos). �Na verdade, a
exploração dessas circunstâncias pelos patronos com o objetivo de obtenção de vantagens
pessoais foi a precondição do sistema do patronato.�109 Muitos escravos foram tornados
forros por seus senhores a fim de que estes pudessem aumentar o número de clientes e
garantir votos às suas propostas e elegibilidade aos cargos administrativos. De posse da
liberdade os libertos de cidadãos romanos, cidadãos romanos eles próprios, eram integrados
no sistema dos comícios centuriados, ocupando neles um lugar correspondente ao
patrimônio que possuíam e com direito de voto.�110
Os benefícios concedidos pelos patronos eram tomados como favores pessoais,
embora fossem de origem pública, cabia-lhes distribuir tais adjutórias conforme seus
interesses. Por sua vez, muitos clientes eram também patronos de outros cidadãos mais
pobres, o que aumentava uma rede de relacionamentos e interesses. Entretanto, havia
aqueles que foram à bancarrota por não saberem administrar seu patronato:
108 El Cristianismo, sus orígenes y fundamentos, p. 99. 109 Richard A. HORSLEY, Paulo e o império, p. 99. 110 Jean ANDREAU, O liberto, in: A. GIARDINA (org.), O homem romano, p. 153.
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As antigas famílias nobres, ou as que ao depois se ilustraram por briosas ações, arruinavam-se todas pela sua grande magnificência, porque então não se levava a mal o dar festas brilhantes ao povo, aos aliados aos reis, nem o ser obsequiado por eles; de sorte que, segundo cada um se fazia mais notável pelas suas riquezas, pela sua bela casa, e pelo imenso número de clientes, de tanto maior nome, e mais amizades gozava (Tácito, Anais, )
Cícero, possuidor de muitos clientes, escreveu ao seu filho Marco a respeito da importância
de discernir os benefícios que devia-se dar aos seus clientes:
Às larguezas geradas pela liberalidade, não devemos ficar apegados do mesmo modo em circunstâncias diferentes. Um é o caso daquele que é premido por uma calamidade e outro o daquele que procura coisas melhores, sem que nada lhe seja contrário. A benignidade deverá privilegiar aqueles que estão sujeitos à calamidade, a não ser que, por acaso, sejam merecedores dessa mesma calamidade. Todavia, em relação àqueles que desejam ser auxiliados, não para evitar a aflição, mas para ascender a um posto mais elevado, de nenhum modo devemos ficar totalmente surdos a eles, mas aplicar julgamento e diligência para discernir os idôneos. Disse brilhantemente Ênio: Coisas bem-feitas, mal colocadas, julgo malfeitas (Dos Deveres, ).
Era dever dos clientes saudar matinalmente seus patronos (salutatio), acompanhá-los
em suas andanças, aplaudi-los quando discursavam e até serem convidados para jantar.111
Negar-se a isso era demonstração de ingratidão por parte dos clientes: �Certamente aquele
pobre, sendo bom, mesmo que não possa devolver o favor, pode ser grato� (Dos Deveres,
). Mesmo que um determinado cliente não tivesse sido alvo de favoritismo pessoal em
relação aos outros, aquele não podia deixar de cumprir a salutio, quer gostasse ou não.
Assim, dezenas, e as vezes centenas de pessoas:
a cada amanhecer vão desfilar na antecâmara de seu protetor ou �patrono� para lhe fazer uma rápida visita de homenagem. (...).Tal é a multidão que todas as manhãs faz fila diante da porta do patrono, na hora em que cantam os galos e os romanos se levantam. (...). Celebridades locais também são assediadas, embora por grupos mais reduzidos; longe de Roma, através das cidades, os mais poderosos notáveis também têm sua clientela. 112
A prática do clientelismo não se limitava às pessoas, mas também era também estendida às
cidades do império romano. Ao lado do imperador, patrono por excelência e por dever de
ofício, outros cidadãos locais tornaram-se patronos das cidades. Isso envolvia fazer grandes
contribuições para construções, reformas, festividades, exército e outros empreendimentos.
Com isso, o patrono garantia seu nome anexado à cidade, dando longa vida ao seu nome e a
outras honrarias públicas.
111 Peter GARNSEY/Richard SALLER, Relações patronais de poder, in: R. A. HORSLEY (org.), Paulo e o império, p. 106. 112 Paul VEYNE, O Império romano, in: P. ARIÈS/C. DUBY, História da vida privada, vol. 1, p. 81; 99.
39
Em suma, patronato e clientelismo eram práticas que asseguravam a �solidariedade�
entre os cidadãos dos mais altos estratos com aqueles dos mais baixos. Tudo por amor à
cidade e ao interesse mútuo, seja prestígio, seja subsistência, que se baseavam em �honra e
vergonha�, tema que discutiremos mais abaixo. No entanto, devemos por ora apresentar
aqueles que não eram considerados cidadãos.
2.2.1.7. Os excluídos: Peregrinos, escravos, libertos, artesãos e operários
José Adriano Filho estudou a forte presença do motivo do peregrino por toda a extensão da
Carta aos Hebreus, o que pode ser a mais efetiva descrição da identidade dos recipientes.113
Em Hb 11.13lemos: �estrangeiros e peregrinos nesta terra� (xe,noi kai. parepi,dhmoi, eivsin
evpi. th/j gh/j; ou em Latim: �peregrini et hospites sunt supra terram�). Com efeito, a expressão e
outras que pertencem ao mesmo campo semântico (�transviar�, �caminhos�, �conduzir�,
etc.) estão esparsas por todo o texto. A temática foi tirada das tradições do povo hebreu, que
é apresentado sempre por essa ótica. Essa temática, dos �estrangeiros e peregrinos�, também
é o fio condutor da Primeira Carta de Pedro (cf. 1 Pe 1.1; 2.11) Mas peregrino no Mundo
Mediterrâneo do I séc. era:
Um estrangeiro, um estranho, um cidadão de um Estado que não Roma. A grande maioria da população de Roma era constituída de peregrinos, tornados súditos de Roma após a conquista de seu país pelos romanos. Com o crescer do Estado romano, o número de peregrinos cresceu constantemente, sem que fosse compensado pelo crescimento do número de cidadãos, aos quais se concedia a cidadania romana. No seio do território romano, os peregrinos fruíam dos direitos de pessoas livres, a não ser que um tratado entre Roma e seu país de origem lhes concedesse direitos específicos. De modo geral, a legislação da República, tanto os estatutos como os senatusconsulta, se aplicava a peregrinos somente quando provisão particular estendesse a eles a validade. Os peregrinos não gozavam de nenhum direito político, não podiam participar das assembléias populares e eram excluídos do serviço militar. Um peregrinus só podia contrair matrimônio válido (iustae nuptiae) quando gozava do ius connubii... a ele pessoalmente concedido ou adquirido por cidadania em uma civitas que obtivera este direito de Roma. Um peregrino não podia exarar testamento na forma reservada aos cidadãos romanos nem agir como testemunha neste caso. Não podia constituir-se herdeiro de um cidadão romano nem receber delegação (delegatum), exceto no testamento de um soldado. Podia realizar transação comercial com um cidadão romano se possuía o ius commercii que se concedia da mesma forma que o ius connubii. Embora excluído dos procedimentos por legis actio, o peregrino tinha o benefício da proteção dos tribunais, em particular perante o pretor, que possuía jurisdição inter peregrinos... a partir de meados do séc. III a.C. ... Estrangeiros no mesmo Estado concluíam transações segundo as leis daquele Estado, e os litígios entre eles eram superados de acordo com suas próprias leis. 114
113 José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p.11. 114 Adolf BERGER, citado por John H. ELLIOTT, Um lar para quem não tem casa. Interpretação sociológica da primeira carta de Pedro, p. 41.
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Apesar de algumas prerrogativas alcançadas, a vida de um peregrino era muito
difícil. Tratava-se de gente desarraigada, errante, considerada não residente, sem teto e sem
pátria (Hb 3-4; 11.13), o que gerava a xenofobia nos indígenas. Nos tratados sobre Política,
em que o indivíduo e sua família tinham função apenas utilitarista em relação à Cidade-
Estado (Aristóteles, Política, 1.1.11), o estrangeiro era o estranho, ao qual não se dava direitos,
o inexistente, por vezes comparado ao escravo, ao bastardo (Aristóteles, Política, 3.3.4-6). O
estrangeiro era o inverso do cidadão (Cícero, Da República,1.43). A presença do grande
número de estrangeiros em Roma, por exemplo, foi motivo de desdém para Sêneca:
Onde se poderá encontrar um rochedo mais desguarnecido do que este? Ou mais pobre para quem procure riqueza? Ou mais selvagem para quem dê mais atenção aos homens? Ou mais horrível pela posição? Ou mais inclemente pelo clima? Apesar de tudo, também aqui moram mais estrangeiros do que indígenas (Consolação a minha mãe Hélvia, 6.5).
Somos informados que em Roma havia nesse período uma grande população
estrangeira, principalmente judaica, residente num dos bairros mais pobres e ao mesmo
tempo mais perigosos da cidade, o Trastevere. �Sua insegurança faz dele um refúgio para os
mais miseráveis dentre os miseráveis. Todo um mundo agitado e inquietante, composto de
estrangeiros, de fora-da-lei que desafiam a autoridade�.115 Juvenal escreveu: �À noite. A
sacra fonte, o bosque, e o templo aluga-se aos Judeus, cujas riquezas de feno num cestinho se
limitam, pagando por cada árvore um tributo� (Sátiras ).
Não era só em Roma que a xenofobia estava presente, pode-se dizer que Roma era
paradigmática como cidade, o que acontecia aí, se reproduzia em outros lugares. Em
Alexandria também se apresentava o mesmo sentimento xenófobo ao perseguir, aprisionar,
torturar e saquear as propriedades dos judeus residentes, ainda que e porque, neste caso,
fossem estrangeiros ricos (Fílon, In Flaccum, ). Riqueza por si só não tornava o
indivíduo um notável, pelo contrário, gerava a inveja dos que se sentiam lesados pelo o
sucesso do outro, visto que tais oportunidades lhe pertenciam por direito: �São (...) invejosos
aqueles há quem pouco falta para possuírem tudo (...), pois crêem que todos tentam
arrebatar o que lhes pertence (pa,ntaj ga.r oi;ontai ta. au`tw/n fe,rein, Aristóteles, Retórica das
paixões, 10.21).� Plauto expressou sua xenofobia para com os gregos com as seguintes
palavras:
115 C. SALLES, Nos submundos da antiguidade, p. 160.
41
Esses tipos gregalhões, que andam com a cabeça encapuzada e vivem carregados de livros e de cestas para a espórtula, param no meio da rua, conversam entre si. Esses escravos fugitivos bloqueiam o caminho e te impedem de passar, enquanto vão andando e fazendo belos discursos. Pode-se sempre vê-los na taberna, quando conseguiram algumas moedas; e, depois de terem bebido vinho quente, voltam para casa, enrolados em seus capuzes e ruminando sombrios pensamentos.116
Cícero também opinou um dever para os estrangeiros no quadro maior da vida do Estado:
Não é fora de propósito falar aqui a respeito dos deveres dos magistrados, dos particulares, dos cidadãos e dos estrangeiros. Do magistrado, a função é apresentar-se como representante da cidade, defender a honra e a decência desta, salvaguardar as leis, definir os direitos e lembrar-se de que tudo isso está confiado à sua boa-fé. O simples particular viverá com os seus cidadãos em igualdade e paridade de direito: não se submeterá, não se aviltará nem se exaltará, mas desejará na república a paz e a honestidade. Este é, com efeito, aquele que julgamos e dizemos ser um bom cidadão. O dever dos estrangeiros residentes e de passagem é não ir além de seus negócios, não se meter com os dos outros e mostrar-se o mínimo possível curioso a respeito dos assuntos da república alheia (Dos Deveres, ).
Igualados aos estrangeiros e peregrinos estavam também os pobres. Hebreus nos
conta que alguns dos recipientes, fossem judeu-cristãos, fossem gentio-cristãos, e até mesmos
indígena-cristãos, tiveram seus bens confiscados (Hb 12.34), o que se pode inferir daí que
procediam de um nível mais alto, talvez da classe média, mas que então foram rebaixados a
um patamar em que só lhes era garantido a subsistência (Hb 13.5). Quanto ao assunto, J. D.
Crossan escreve:
A palavra grega penhj significa �pobre� e ptwcoj significa �destituído�. A primeira descreve o status de uma família camponês que tem uma pequena forma de subsistência de ano para ano; a segunda indica o status de uma família (...) levada por doença ou dívida, imposição ou morte, a sair da terra e à penúria e mendicância.117
O termo �pobre� não aparece em Hebreus, mas com certeza muitos eram (se
tornaram) os empobrecidos:
Que o amor ao dinheiro não inspire a vossa conduta. Contentai-vos com o que tendes, porque ele próprio disse: Eu nunca te deixarei, jamais te abandonarei. De modo que podemos dizer com ousadia: O Senhor é meu auxílio, jamais temerei; que poderá fazer-me o homem?(13.5s)
Este texto abre outras possibilidades, levando-se ainda em conta que muitos pequenos
camponeses endividados ou cujas colheitas foram desastrosas migravam para as cidades, e
116 Citado por Catherine SALLES, p. 168. 117 Jesus, p. 76; igualmente Eduardo ARENS, Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João, p. 130.
42
não sabendo fazer outra coisa acabavam na mendicância ou na pirataria.118 Ainda que haja
pessoas com mentalidade mais filosóficas e altaneiras de pensamento, transcendentes à sua
sociedade, o pão, pão, queijo, queijo eram diferentes. A título de exemplo, Sêneca escreveu à
sua mãe a respeito da oportunidade feliz da pobreza:
Por isso a pobreza não traz nenhum dano ao desterrado; porque lugar algum de exílio é tão pobre que não seja bastante fértil para alimentar um homem. (...). Mas se desejar vestes de púrpura repletas de conchas, ou tecidas de ouro, ou bordadas com várias cores e pontos, ele é pobre por culpa não da sorte mas sua. (...). Quem, portanto, permanece contente entre os limites marcados pela natureza, não conhece a pobreza: quem sair desses limites é pobre mesmo entre as maiores riquezas. Às necessidades provêm suficientemente também os lugares de exílio; às coisas supérfluas não bastam os reinos. (...). A fim de que tu não creias que para aliviar os aborrecimentos da pobreza (que é grave só para os homens que a crêem tal) eu me sirva unicamente de preceitos dos sábios, observa como são mais numerosos os pobres; nem poderás dizer que eles são mais tristes ou mais preocupados do que os ricos, porque até se diria que são mais felizes quanto menos possuem objetos que possam magoá-los (Consolação a minha mãe Hélvia, 11.1-5).
Apesar da sabedoria aparente das palavras de Sêneca, suas atitudes demonstraram que tudo
não passava de demagogia. Pois Sêneca, movido por simpatia pela pobreza �decidiu viver
durante dois dias como um camponês pobre, impressiona-nos muito pouco quando lemos
que levou consigo um número reduzido de escravos � apenas um carro! � e que sua comida
era tão simples que se preparava em uma hora.�119 A verdade é que a pobreza era
vergonhosa, motivo de sátiras:
Se ele tem suja, e esfarrapada a capa! Se anda de toga imunda, e rota, e porca? Se um sapato arreganha a larga boca! Se de uma nova tomba, as cicatrizes, de curada ferida as linhas mostram! Nada há tão duro na infeliz pobreza, quanto é tornar ridículos os homens! �Fora deste lugar, aos Nobres dado! Se algum pudor conserva, rua, rua!� Na pobreza a virtude a custo vive (Juvenal, Sátira 3). Juntava-se a essas categorias menosprezadas a dos trabalhadores manuais. Estes eram
os operários ou artesãos, recebiam o desdém da elite a exemplo de Sêneca:
Desejas saber o que penso dos estudos liberais (...). ... por que foram chamados estudos liberais: porque são para o homem livre. (...). Neste ponto permitir-me-ás não seguir o convencionado. Ninguém me leva a admitir no número dos que cultivam as artes liberais os pintores, nem os escultores ou os marmoristas, nem os demais servidores do luxo. Também excluo dos estudos liberais os lutadores e sua ciência de misturar óleo e lama e excluo-os porque, se não o fizesse, teria de admitir igualmente os perfumistas, e os cozinheiros, e todos os outros que põem sua habilidade ao serviço de nossos deleites. (...). Posidônio diz que são quatro as espécies das artes: as vulgares e humildes, as recreativas, as didáticas, as liberais. As vulgares são as dos obreiros manuais, que se ocupam em prover às necessidades da vida, e em que não há nada que se assemelhe a honra ou virtude (Aprendendo a viver; carta 88).
118 C. R. WHITAKER, O pobre. In: O homem romano, p. 232. 119 Ibid., p. 242.
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Para Sêneca a arte liberal por excelência era a filosofia. Destarte, trabalhar com as próprias
mãos não era virtude, pois era impossível praticar a virtude quando se é artesão (Política
3.3.3) As atividades de operários e artesãos foram vilipendiadas pela nobreza:
Quanto às ocupações e ganhos, dispomos dos seguintes preceitos para avaliar quais devam ser considerados dignos de homens livres e quais são sórdidos. Em primeiro lugar, desaprovamos os ganhos que suscitam ódio nos homens, como o dos recebedores de impostos e dos usurários. São ignóbeis e sórdidas as remunerações de todos os trabalhadores pagos pelo esforço e não pela habilidade. Com efeito, neles, o próprio salário é o penhor da servidão. Devem ser tidos como vis os que compram dos mercadores para vender em seguida: nada ganham a não ser se mentirem de algum modo, e nada é mais torpe que a fraude. Todos os operários praticam uma arte abjeta: não haver engenho algum na oficina, sendo ainda mais reprováveis as funções que se põem a serviço dos prazeres: Peixeiros, carniceiros, cozinheiros, salsicheiros, pescadores, como diz Terêncio; acrescenta à lista, se te agradar, perfumistas, dançarinos e profissionais do espetáculo (Cícero, Dos Deveres, 1.42.150).
Por isso, a oratória lhes foi vedada:
Primeiramente (...), é preciso tomar isso como princípio: o verdadeiro orador não deve ter pensamento baixo e ignóbil. Pois não é possível que pessoas que destinam seus pensamentos e seus cuidados a preocupações vis e próprias de escravos, ao longo da vida, produzam alguma coisa espantosa e digna de qualquer época (Longino, Do Sublime, 9.3).120
Apesar desta opinião muito difundida, o artesão alcançou o direito de cidadania por ser
imprescindível ao estado (Aristóteles, Política ). Mas este seria sempre um cidadão de
segunda categoria, motivo de sátiras que tentavam disfarçar a inveja de não poder fazer
igual, além de que muitos artesãos enriqueceram com suas habilidades. Chama a atenção o
fato de o arquiteto também fosse excluído dos trabalhos honrados, justamente quem
projetava e coordenava as edificações citadinas. Era por causa disso que as obras de arte não
eram assinadas nem levavam quaisquer marcas de seu feitor, e quando atribuídas a alguém,
este alguém era o que encomendou a peça ou obra: Partenon de Fídias, a Coluna de Marco
Aurélio, o Arco de Constantino.121 Afetações à parte, muitos aristocratas possuíam
empreendimentos que empregavam operários, sejam livres ou escravos. O próprio Cícero
que torceu o nariz para essas categorias, possuía uma olaria e se servia de muita gente para o
trabalho.122 Os ricos investiram pesado nesse filão, multiplicando suas rendas.
120 Texto de um Longino ou desconhecido ou não identificável. Se ele visse quantas obras de artesãos permaneceram, encontradas nos sítios arqueológicos do tempo do Império romano, sentiria vergonha de ter dito isso. 121 Jean Paul MOREL, O artesão, in: A. CARDINI (org.), p. 184. 122 Ibid., p. 187.
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Todavia, os préstimos de muitos trabalhadores manuais podiam ser descartados
devido à concorrência provocada pela utilização massiva de mão de obra escrava que
acabava sendo mais barata. Assim:
Nas manufaturas, a nova organização do trabalho converte-o (o escravo) numa simples engrenagem de um processo produtivo que lhe escapa completamente. Um exame atento da cerâmica envernizada a negro e a que se chamou campaniana permitiu ter uma idéia precisa acerca do modo como é organizado o trabalho nesse setor, onde desde o início se constata uma simplificação sistemática. Assim, o verniz deixa de ser aplicado com um pincel e passa a sê-lo por imersão, o que leva a que o produto não tenha um acabamento tão perfeito e impede que a base, por onde o operário segura o vaso para o imergir no líquido, fique totalmente envernizada. Todavia, estes defeitos deviam acabar por não ter grande importância, tendo em conta o tempo que se ganhava.123
Uma automatização humana que Aristóteles imaginara como hipotética:
Com efeito, se cada instrumento pudesse, a uma ordem dada ou apenas prevista, executar sua tarefa (conforme se diz das estátuas de Dédalo ou das tripeças de Vulcano, que iam sozinhas, como disse o poeta, às reuniões dos deuses), se as lançadeiras tecessem as toalhas por si, se o plectro tirasse espontaneamente sons da cítara, então os arquitetos não teriam necessidade de trabalhadores, nem os senhores de escravos (Política, 1.2.5).
Era o escravo, ainda que involuntariamente, em competição com os trabalhadores
empobrecidos.124 O escravo deve ser levado em conta na re-construção do auditório de
Hebreus. A utilização feita pelo autor de Hebreus da tradição do êxodo dos hebreus é
sintomática (3.1-4.12; 11.23-29). Pois, ainda quando aqueles que podiam se tornar �os
libertos�,125 o estigma permanecia, seja na relação contínua com seus senhores imposta por
lei, seja diante dos cidadãos. Libertos eram cidadãos, mas cidadãos não por completo, pois
não detinham o direito de serem eleitos para muitas funções de direção administrativa.
2.2.1.8. Honra e vergonha
Anterior à prática institucionalizada, ainda que informalmente, estava o conceito de
�honra/louvor e vergonha/censura�. Os gregos já consideravam em alta estima tais valores e,
por conseguinte, toda a vida cotidiana era regulada por eles. Mesmo os discursos proferidos
nos tribunais, nas assembléias e nas cerimônias tinham como motivo pivô os valores honra e
123 Yvon THÉBERT, O escravo. In: O homem romano, p. 126. cf. tb. Catherine SALLES, Nos submundos da antiguidade., p. 166. 124 Aristóteles era de opinião de que os artesãos igualados aos escravos, ou seja, gente que precisava trabalhar para viver, não deveria ser considerada cidadã (Política, 3.3.2). 125 �Libertos� não se liga automaticamente a pobres, pois podia ocorrer de libertos se tornarem ricos e às vezes até mais ricos que seus antigos senhores.
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vergonha.126 Destarte, o mundo Mediterrâneo do I séc. E.C. também foi amplamente
condicionado por esses fatores. Um leitor atento perceberá que desde o primeiro Evangelho
até o Apocalipse de João, os escritos do NT são pontilhados pelos motivos honra e
vergonha.127
Arthur Schopenhauer definiu honra como a opinião que os outros fazem de nós, �a
opinião geral que aqueles que nos conhecem têm sobre o nosso valor sob um aspecto
qualquer a ser seriamente considerado, e que determina as diferentes espécies de honra.�128
O valor pessoal tido no pensamento dos outros. Todo o prestígio, e mais, a eternização de
uma pessoa tinha por base a manutenção da honra. O homem honrado vivia o seu �hoje�
respeitosamente na prática da virtude enquanto rejeitava todo vício que lhe era ofertado. Por
isso, honravam-se os deuses, os homens, os ancestrais, as autoridades, as edificações, as
nações, a literatura, a vida tranqüila e pacífica.
À pergunta da distinção entre vícios e virtudes respondeu Aristóteles da seguinte
maneira:
As coisas excelentes são os objetos de louvor, as coisas vis de censura; e no topo da excelência ficam as virtudes, no topo das vis os vícios; conseqüentemente as virtudes são objetos de louvor, e também as causas das virtudes são objetos de louvor, e as causas das virtudes são objetos de louvor, e as coisas que acompanham as virtudes e que resultam deles, e suas obras, enquanto que os opostos são objetos de censura (Vícios e Virtudes, 1.1-2).
No seu tratado sobre os deveres, Cícero constantemente recordou a seu filho Marco
as escolhas e deveres dignos de um cidadão romano honrado:
Quanto aos que se adaptaram ao serviço da comunidade política e à realização de grandes tarefas, sem dúvida sua existência é mais frutífera para o gênero humano, como também mais propícia à fama e à grandeza (Dos Deveres, 1.70). Assim, a justiça deve ser cultivada e preservada de qualquer modo, tanto por si mesma (pois, de outra forma, não seria justiça), quanto para aumentar a honra e a glória (Dos Deveres, 2.42). Entretanto, debater em público freqüentemente provoca uma glória geral. Grande é, de fato, a admiração por aquele que fala copiosa e sabiamente; os ouvintes julgam que ele compreende e sabe mais que os restantes. E se há no discurso gravidade de mistura com modéstia, nada será mais admirável, principalmente quando tais qualidades se encontram num adolescente (Dos Deveres, 2.48).
126 Jerome NEYREY, 2 Peter, Jude, p. 3. 127 Note-se o fato de Mateus começar com uma genealogia davídica de Jesus, sua concepção milagrosa, a admoestação do anjo a José para que não se envergonhe da gravidez de sua esposa e o encerramento com a declaração do ressurreto de possuir todo o poder sobre terra e céus (Mt 28.18). Note-se também a freqüência de hinos cristológicos por todo o texto de Apocalipse; por exemplo: �Digno é o cordeiro imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor� (Ap 5.13). 128 A arte de se fazer respeitar, ou tratado sobre a honra, máxima 1.
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O alicerce da recomendação e da fama pública é a justiça, sem a qual nada pode ser louvável (Dos Deveres, 2.71).
A vida era entretecida por elogios ao ser e ao fazer. Quaisquer que fossem os
assuntos, adjetivações honrosas e/ou censuráveis se achavam entretecidas nos mesmos.
Todavia, o excesso de ênfase em honrar, louvor poderia virar adulação. E isto era notada
pelas pessoas a ponto de Plutarco escrever uma obra para diferençar o verdadeiro amigo do
bajulador, pois o bajulador era um �verdadeiro camaleão, que pode assumir todas as cores
exceto a branca; e, se não lhe é possível chegar a uma parecença nos domínios dignos de sua
obstinação, não deixa de imitar tudo o que é vil� (Da Maneira de Distinguir o Bajulador do
Amigo, 9). Não somente a opinião dos indivíduos era importante para a promoção da honra,
mas também a opinião pública, o que o povo pensava de alguém:
A própria palavra opinião é de origem latina (opinio). Embora no mundo antigo não houvesse comunicação em massa e, menos ainda, pesquisas de opinião pública, foi naquele ambiente que surgiu o conceito de �opinião�. Cícero referia-se a populis opinio, e opinio tanto termo usado para traduzir o grego doxa, por oposição a episteme (ciência), como, mais prosaicamente, para designar �impressão�, verdadeira ou falas. �Impressão� que corresponde bem à raiz de dokeo (�parecer, pensar, imaginar�) e, ainda que não saibamos a origem de opinio, transmite a sensação de falta de certeza, imprecisão. Este é o sentido do termo em outra frase de Cícero, apud homines bárbaros opinio plus ualet saepe quam res ipsa (�entre os homens bárbaros, a impressão vale, muitas vezes, mais do que a própria realidade�). Expressões como opinio est (�considera-se�) e opiniones omnium (�todos acham�), bem como o sentido de �boato� que a palavra possui, conduzem-nos à percepção de um espaço público que permitia a existência não apenas do sentido individual da opinião (ut mea opinio est, �em minha opinião�), como da impressão tornada coletiva.129
As inscrições tumulares, os monumentos testemunham a honra ou a vergonha
atribuída aos seres. Assuntos privados eram levados ao conhecimento público, fosse para
enaltecer, fosse para vituperar como o seguinte grafito:
Já desempenhou oito, superará 16. Trabalhou como taberneiro, ceramista, salsicheiro, padeiro, agricultor, bronzista de quinquilharias, vendedor de rua; agora é ceramista de pequenos vasos. Para completar, só falta praticar o cunilíngua.130
Começando pelas coisas mais triviais e chegando até as mais nobres, tudo era filtrado
pelo princípio avaliador de honra e vergonha. Portanto, o relacionamento patrono-cliente se
achava eivado de expressões do tipo.
129 P. P. FUNARI, A Cidadania entre os romanos, in: J. PINSKY/C. PINSKY, História da Cidadania, p. 68. 130 Grafito em Pompéia, citado in: P. P. FUNARI, A Cidadania entre os romanos, p. 70.
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2.2.2. Auditório e orador
Este passo da análise retórica visa fazer uma re-construção verossímil do auditório intentado
pelo autor. �Re-construção� porque todo orador faz uma �construção� de seu auditório a fim
de deliberar uma mensagem adequada, ou seja, um auditório presumido mais próximo da
sua realidade.131 Com efeito, os elementos transparecem em certa medida nos discursos �de
tal maneira que é, em larga medida, desses próprios discursos que nos julgamos autorizados
a tirar alguma informação a respeito de civilizações passadas�.132 Preocupado com o assunto,
Aristóteles desenvolveu o tópico dos auditórios presumidos, dedicando ao tema os capítulos
12-17 do segundo livro de sua Retórica ao que chamou de �caracteres� segundo as paixões,
disposições, idades e diferenças de fortuna.133
O autor de Hebreus não nomeou pessoas da comunidade na carta, a única exceção foi
Timóteo (13.23), e mesmo assim não era um destinatário. Portanto, o que se pode coletar de
seus conteúdos para compor um perfil dos recipientes deve ser das referências diretas aos
ouvintes leitores, possíveis alusões e indícios.
A carta apresenta um uso muito elegante da língua grega, que é a de estilo mais
elevado de todo o Novo Testamento,134 o que também pressupôs um auditório capaz de
compreender sua linguagem. Uma mensagem visa persuadir, se o orador falar em um nível
diferente do de seu auditório pode não ser compreendido ou mesmo encontrar resistência.
Em outras palavras, �como a argumentação visa obter a adesão daqueles a quem se dirige,
131 Chaïm PERELMAN/Lucie OLBRECHTS-TYTECA, Tratado da argumentação, p. 22. 132 Ibid., p. 23. 133 Retórica 12.2,7; 13.1,2,16; 15.3; 16.1,2; 17.1.3,4: Quanto aos jovens: Os jovens, mercê do caráter, são propensos aos desejos e capazes de fazer o que desejam. A índole deles é antes boa do que má, por não terem ainda presenciado muitas ações más. Quanto aos velhos: Como viveram muitos anos, e sofreram muitos desenganos, e cometeram muitas faltas... têm opiniões, mas nunca certezas. Irresolutos como são, nunca deixam de acrescentar ao que dizem: �talvez�, �provavelmente�. Quanto à nobreza:Ora, a nobreza consiste na virtude da estirpe e uma pessoa é de boa estirpe, quando não perde suas qualidades naturais. Mas esta condição só raramente se realiza, visto que muitos nobres não se distinguem do vulgo. Quanto aos ricos: Os ricos são insolentes e intumescidos de orgulho, resultado lastimável da posse das riquezas. Quanto aos homens de poder: Têm mais dignidade do que gravidade, porque a elevada situação que ocupam os põe em destaque (...). Quanto às injustiças que cometem, não são faltas de pequena monta, mas de importância considerável. E quanto aos favorecidos pela sorte: A sorte dá a seus favoritos uma parte dos caracteres que indicamos, pois as maiores probabilidades de sucesso tendem a conferir riqueza e poder. Uma só conseqüência feliz deriva da sorte; tornar-nos piedosos para com os deuses e criar em nós uma peculiar disposição perante a divindade. 134 Hans CONZELMANN, Interpreting the New Testament, p. 265.
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ela é, por inteiro, relativa ao auditório que procura influenciar.�135 Contudo, convém notar
que apesar da elegância gramatical, sua retórica não é algo empolado, e se há familiaridade
com as tradições das Escrituras, tem-se uma boa compreensão de sua mensagem.136
Outro dado a favor disso é o de seu cotidiano ligar-se aos �discursos usados nos
mercados, sinagogas, teatros de forma bastante eficiente à arte de persuasão presentes nestas
formas de comunicação.�137 Além do mais, há indícios de que o autor de Hebreus escreveu
para sua própria comunidade (13.19). Os leitores por conta da linguagem de Hebreus
podiam ser oriundos de níveis econômicos medianos, com certa educação formal.
A Carta aos Hebreus nos dá a entender que seus leitores já possuíam algum tempo de
conversão (5.11-6.3), expressaram isto numa profissão de fé (3.1), experimentaram a
iluminação do Espírito Santo (6.4-5), quando ouviram a mensagem entregue por evangelistas
presenciaram sinais e prodígios e tiveram experiências carismáticas (2.4), dando a entender
que fizeram parte da segunda geração de cristãos, assim como o autor. Seus primeiros
pastores já haviam falecido (13.7) e outros careciam de seu respeito (13.17). Tratava-se de
uma comunidade mista, isto é, composta tanto judaico-cristãos (de fala grega) devido ao
massivo conteúdo das Escrituras, como também poderiam ser gentílico-cristãos, constatação
devida à expressão �o arrependimento de obras mortas�, que caracterizaria sua procedência
(para expressões análogas cf. Ef 4.17-23; 1 Pe 1.13-14).
Mas o mais preocupante é que o auditório atravessava um período de crise de fé,
conquanto foram lembrados que em nos primeiros tempos de sua experiência religiosa
suportaram muitas tribulações dolorosas (13.32), foram ridicularizados publicamente,
injuriados (13.33), outros foram aprisionados (13.34), e sem perder a solidariedade (13.34)
tiveram seus bens confiscados (13.34). Mas então necessitavam de perseverança (13.35).
Algumas pessoas já não eram tão assíduas às reuniões da comunidade (10.25), o que dá o
perfil de um auditório formado de pessoas que desanimavam fatigadas (12.12-13), e o que
era pior, desistirem da fé cristã (6.4-7), pois foram envergonhados publicamente: �Éreis às
vezes apresentados como espetáculo (qeatrizovmenoi), debaixo de injúrias e tribulações,
outras vezes vos tornáveis solidários daqueles que tais coisas sofriam� (Hb 10.33).
135 C. PERELMAN, Tratado da argumentação, p. 21. 136 Cícero postula às qualidades do orador: �falar de forma conveniente, clara e elegante� (Dos Deveres, 1.2; 37.133). 137 José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 12.
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Todo esse quadro fez o autor estimulá-los com insistência: �... permaneçamos firmes
na profissão de fé� (), �continuemos a afirmar nossa esperança, porque é fiel quem fez a
promessa� (), e �Nós não somos desertores, para a perdição. Somos de fé, para a
conservação da nossa vida� (). Essas exortações foram todas alinhavadas dentro das
estratégias do autor para reverter esse quadro: O motivo da Cristologia e o do peregrino.
3. Gênero discursivo da Carta aos Hebreus
Três eram os gêneros discursivos da retórica greco-romana: Demonstrativo, deliberativo e
judicial.138 O discurso demonstrativo (epidíctico/laudatório) visava o louvor ou censura de
alguém ou alguma coisa. O deliberativo consistia em aconselhar ou desaconselhar o
auditório. Já o discurso judicial objetivava acusar ou defender alguém ou algo. Mas em que
gênero de discurso classificaremos a Carta aos Hebreus?
Para começar a responder essa pergunta, voltemos nossa atenção para próprio
conteúdo do texto. Tomando por base as delimitações em grandes blocos literários oferecidas
por Albert Vanhoye139, contudo sem nos preocupar com os títulos por ele sugeridos às
unidades, além de que, por fugir ao nosso interesse aqui, omitimos as suas subdivisões. Pelo
que temos o seguinte resultado:
Exórdio ou proêmio,
Peroração,
Nesta estrutura, cada bloco literário é constituído ora de �exposição� (1.1-14; 2.5-3.6; 4.12-13;
5.1-10; 6.13-10.18; 11), ora de �parêneses� (2.1-4; 3.7-4.11; 4.14-16; 5.11-6.12; 10.19-39; 12.1-
13.17). As parêneses dão um perfil da necessidade de perseverança dos leitores, eis alguns
exemplos:
138�Tria genera sunt causarum quae recipere debet orator: demonstrativum, deliberativum, iudiciale� (Ad Herennium, 1.1.2.1). 139 A mensagem da Epístola aos Hebreus, p. 39.
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�Pelo que, importa observemos tanto mais cuidadosamente os ensinamentos
que ouvimos para que não nos transviemos� ().
�Vede, irmãos, que não haja entre vós quem tenha coração mau e infiel que se
afaste do Deus vivo� ().
�Ora, sendo que ainda continua a promessa de entrar no seu repouso...,
tenhamos os cuidado de não encontrar entre vós quem chegue atrasado� ().
�Empenhemo-nos, portanto, por entrar nesse repouso, para que este mesmo
exemplo de desobediência não leve ninguém a cair� ().
�Tendo, portanto, um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus: Jesus,
o Filho de Deus, permaneçamos firmes na profissão de fé� ().
�Por isso, deixando de lado, o ensinamento elementar sobre Cristo, elevemo-
nos à perfeição adulta, sem ter que voltar aos artigos fundamentais...� ().
�Sem esmorecer, continuemos a afirma a nossa esperança, porque é fiel quem
fez a promessa� ().
�Considerai, pois, aquele que suportou tal contradição por parte dos
pecadores, para não vos deixardes fatigar pelo desânimo� ().
�Por isso, reerguei as mãos enfraquecidas e os joelhos trôpegos; endireitai os caminhos
para os vossos pés, a fim de que o que é manco, não se extravie, mas antes seja
curado� ().
Todas as exortações se encaixam no objetivo do discurso deliberativo, visto que este buscava
aconselhar e/ou desaconselhar, persuadir e/ou dissuadir os ouvintes de fazerem alguma
coisa. É prospectiva: Delibera-se �sobre aquelas coisas que podem ou não acontecer�
(Aristóteles, Arte Retórica, ). Norteia-se dentro das possibilidades humanas:
�Deliberamos sobre coisas que estão ao nosso alcance e podem ser feitas (...). (...) tudo que
depende do homem (...). sobre coisas que podem ser feitas graças aos seus próprios esforços�
(Aristóteles, Ética a Nicômaco, ). Ademais, em Hb lemos: �Irmãos, eu vos peço que
acolhais esta palavra de exortação� (avne,cesqe tou/ lo,gou th/j paraklh,sewj). Assim, a exortação
de um discurso deliberativo pretendia alcançar a obediência de seus ouvintes ao mesmo
tempo em que propõe garantir a sua segurança (Ad Herennium, ): �A esperança, com
efeito, é para nós qual âncora da alma, segura e firme...� (). Sua meta final era a felicidade
das pessoas (Aristóteles, Arte Retórica, ).
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Porém, quanto às partes expositivas, devemos ter em mente uma outra possibilidade,
a do gênero demonstrativo (panegírico). Como foi dito, este tipo discursivo se ocupava de
louvar e/ou censurar, honrar e/ou vituperar. Uma nova leitura do texto se apresenta
reveladora. Desta vez observaremos os vocábulos e expressões que pertencem ao mesmo
campo semântico dos termos �honra� e �vergonha�:
�Resplendor da glória� (avpau,gasma th/j do,xhj), ;
�glória e honra� (do,xh| kai. timh/|), ;
�a honra� (th.n timh.n), ;
�O Cristo não se glorificou� (o` Cristo.j ouvc e`auto.n evdo,xasen), ;
�grandeza deste homem� (phli,koj ou-toj), ;
�por isso Deus não se envergonha� (dio. ouvk evpaiscu,netai auvtou.j o` qeo.j),
�a humilhação de Cristo� (to.n ovneidismo.n tou/ Cristou/), ;
�desprezando a vergonha� (aivscu,nhj katafronh,saj), ;
�Digno de honra o matrimônio� (Ti,mioj o` ga,moj), ;
�carregando a sua humilhação� (to.n ovneidismo.n auvtou/ fe,rontej), ;
�ofereçamos continuamente um sacrifício de louvor� (diV auvtou/ Îou=nÐ
avnafe,rwmen qusi,an aivne,sewj), ;
�mediante Jesus Cristo, ao qual seja a glória para os séculos� (dia. VIhsou/ Cristou/(
w-| h` do,xa eivj tou.j aivw/naj), .
No discurso demonstrativo (=Epidíctico) louvavam-se pessoas, objetos e deuses (Aristóteles,
Retórica, ). Tanto os heróis como as cidades também eram assuntos dos discursos
epidícticos (Quintiliano, Instituciones Oratórias, ). Quanto ao louvor dos deuses:
Nos deuses, geralmente falando, veneraremos a majestade de sua natureza e a virtude própria de cada um, por terem inventado coisas úteis ao gênero humano. Em Júpiter a virtude com que governa o mundo, em Marte o poder da guerra, em Netuno o império do mar. A invenção das artes em Minerva, das letras em Mercúrio, da medicina em Apolo, de cultivar as colheitas em Ceres e o vinho em Baco, trazendo também à memória as ações ilustres que deles contam a antiguidade. Adiciona-se honra aos deuses pais, de que tiveram princípio, como ser um filho de Júpiter. A antiguidade, como o haver nascido imortais, em outros o haver conseguido a imortalidade com a força de seu braço... (Quintiliano, Inst. Or. 3.7.2).
Como se nota, a orientação de Quintiliano e a descrição de Políbios são percebidas
nas partes expositivas da Carta aos Hebreus, haja vista, por exemplo, a passagem de .
Entretanto, honrar uma pessoa com tais discursos, vez por outra, poder-se-ia fixar nos
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contrários, ou seja, enfatizar-se-ia a vergonha, a fim de salientar a virtude, ou o que seria
digno de louvor.140 Em vários momentos encontramos tais paradoxos em seu texto
(). E a própria situação de humilhação, sofrimento dos leitores corroborou
para que o texto contemplasse também um discurso que elevasse o seu moral, um panegírico
ao seu Salvador.
Cabe dizer que isso de modo algum exigia uma exclusividade em um ou outro
gênero. Poderia acontecer de a peça oratória ser classificada como pertencente ao gênero
demonstrativo e apresentar partes do gênero deliberativo, ou vice-versa:
O elogio e os conselhos pertencem a uma espécie comum. O que podemos inserir num discurso, quando damos conselhos, torna-se matéria de panegírico, se lhe mudarmos a forma (Aristóteles Arte da Retórica, ).
Considerado todo ele (demonstrativo), tem algo de semelhante aos discursos do deliberativo, pois por comum o mesmo que neste aconselhamos, louvamos no primeiro (Quintiliano, Instituciones Oratorias ).
O �Panegírico de Trajano� escrito e pronunciado por Plínio, o moço, serve de
ilustração dos motivos componentes deste gênero. Vejamos:
Que presente dos deuses pode ser mais excelente ou mais formoso que um príncipe piedoso, irrepreensível e cuja aparência com os deuses seja extraordinária? (...). É evidente que nosso príncipe foi estabelecido pela vontade divina (). Porém tua moderação é muito mais louvável, porque, alimentado na glória das armas, amas a paz, e porque, apesar do merecido triunfo de teu pai e do laurel consagrado a Júpiter Capitolino o dia de tua adoção não tratas de aproveitar qualquer ocasião para conseguir as honras do triunfo (16). E que direi da doce severidade e da clemência isenta de debilidade que mostras em todos os juízos. Não te assentas no tribunal com a preocupação de enriquecer o fisco, e o único benefício que tiras de tua sentença é a consciência de haver operado justamente. Oh! Tarefa digna de um príncipe e inclusive de um deus: reconciliar as cidades rivais; aplacar os povos alvoroçados (...). Imagino como o pai do universo o rege tudo com um aceno de sua cabeça lança sobre a terra seu olhar e se digna contar os destinos dos homens entre as tarefas da divindade (...). Desempenhas, pois, teu compromisso e te mostras digno de quem te confiou, posto que todos os teus dias empregas em procurar nossa maior utilidade e tua maior glória (80).
Exposto isso, uma última observação se requer quanto ao gênero judicial. Expressões
deste tipo discursivo não se apresentam no texto de Hebreus. Sua linguagem é tranqüila, sem
altercações, e mesmo onde adverte seus leitores dos riscos de abandonar sua confissão, não
parte de algum ensino desviante, mas da própria situação dos leitores, ou seja, o que estava
140 Há casos em que o panegírico tem um efeito às avessas, uma sátira aviltando uma figura pública, como por exemplo, o texto de Sêneca �Apocoloquintosis (transformação em abóbora) do Divino Cláudio� (1.2-5): �Eu sei que me tornei livre no mesmo instante em que acabou os seus dias aquele que tinha demonstrado a verdade do provérbio: Um homem nasce ou rei ou idiota. (...). Mas se for preciso apresentar uma testemunha, dirija-se o leitor a quem viu subir Drusila aos céus: ele confirmará ter visto também Cláudio percorrer o mesmo itinerário �passinho por passinho�. Queira ou não, ele deve ver tudo o que acontece nos céus: é inspetor da Via Ápia.�
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em questão não eram opiniões doutrinais diferentes que estariam em discussão, mas o
desconhecimento das implicações das aceitas. Até a menção em parece ser mais uma
advertência a uma prática ascética e que nem foi tocada no decorrer do texto.141 Portanto, a
Carta aos Hebreus é um discurso do gênero demonstrativo com variações para o gênero
deliberativo.
Disposição
Neste passo, procuraremos apresentar como o autor estruturou as partes do discurso. Em
geral, o esquema padronizado consistia de () um exórdio (prooimion, exordium), () uma
declaração do caso (diegesis, narratio), () argumentação (pistis, confirmatio) e () uma
conclusão (epílogos, conclusio).142 Para tanto, levamos em conta que a Carta aos Hebreus
pertence tanto ao gênero Demonstrativo, ou seja, um panegírico a Cristo Jesus, com partes do
gênero Deliberativo.
Exórdio (Hebreus )
O exórdio é o começo do discurso. Aristóteles comparava o exórdio do gênero demonstrativo
ao prelúdio de uma ária; em outras palavras, o exórdio dava o �tom� do discurso (Arte
Retórica, ). Sua função era apresentar de entrada o que se pretendia dizer, a causa em
questão. Se esta pertencesse ao gênero demonstrativo ela seria honorável (Ad Herennium,
). Outra função do exórdio era captar a simpatia do auditório (captatio benevolentiae) para
que, dado o �tom�, os ouvintes mantivessem-se propícios desde o início, �isto se alcança
fazendo-lhes atentos, dóceis e benévolos� (Quintiliano, Instituciones Oratórias, 4.1.1).
Poder-se-ia fazer o exórdio de modo sutil (e;fodoj) e ou de modo direto (prooi/mion). O
modo direto agarrava a atenção dos ouvintes (ex abrupto). Hebreus é um exórdio deste
tipo, direto, ou seja, faz uma abordagem sem volteios, sem vocativos à audiência. O exemplo
de Isócrates:
Muitas vezes (polla,kij) fico assombrado com aqueles que primeiramente convocaram as assembléias nacionais e estabeleceram os jogos atléticos (gumnikou,jagw,naj), maravilho-me de que tenham visado as proezas dos corpos dos homens para merecerem tão grandes recompensas, enquanto aqueles que se afanaram da vida particular para o bem público e treinaram suas próprias mentes de modo que sejam aptas para também auxiliar seus companheiros sem receber recompensa (timh,) de qualquer tipo;
141 Aristóteles adverte quanto aos ensinos e práticas perniciosas que podem fazer perder os cidadãos nos vícios, prejudicando o Estado (A Política 4.15.9). 142 Burton L. MACK, Rhetoric and the New Testament, p. 41.
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quando, com toda razão, podiam ter feito provisões para o futuro; pois se todos os atletas adquirissem duas vezes a força que possuem agora, o resto do mundo não seria melhor; mas permita-se que um único homem retenha o saber e todos os outros comungarão dos benefícios favorecidos por discernimento daquele (Panegírico, ).
Compare-se a Hb :
Muitas vezes e de modos diversos (Polumerw/j kai. polutro,pwj) falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, neste dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. Ele é o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância; sustenta o universo com o poder de sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados, sentou-se nas alturas à direita da Majestade, tão superior aos anjos quanto o nome que herdou excede o deles.
Os dois autores optaram por uma abordagem direta, salientando desde o início o caráter
superior das personagens que tiveram em mente. Note-se ainda que, tanto num como noutro
exórdio, o orador não se apresentou. Fizeram isso para que o foco estivesse na(s) pessoa(s) de
que se ocuparam em louvar. A propósito, Chaïm Perelmann afirmou que o orador dos
discursos demonstrativos é �um orador solitário que, com freqüência, nem sequer aparecia
perante o público, mas se contentava em fazer circular sua composição escrita, apresentava
um discurso ao qual ninguém se opunha.�143 Isso torna desnecessária a busca por um nome
para o autor de Hebreus, basta o que se pode cotejar dele no próprio discurso.
Narração (Hebreus )
A narração deveria se ater aos fatos conhecidos e que formariam o fundo para o discurso, ou
seja, não dizer nem mais nem menos do que convém (Aristóteles, Arte Retórica, ).
Muitas vezes poder-se-ia omitir este item dos discursos, mas nem todos os retóricos
concordavam com isto pela a possibilidade de adicionar informações úteis à causa
(Quintiliano, Instituciones. Oratorias, 3.2.1). Por conta disso, não era recomendado se estender
demais; brevidade, clareza e verossimilhança eram os atributos de uma boa narração (�Tre
res convenit habere narrationem: ut brevis, ut dilucida, ut veri similis sit�, Ad Herennium, ).
Nossa proposta de delimitação da narração é que se leve em conta a declaração de
Jesus como Sumo-sacerdote (arci,ereuj). A expressão aparece em ;
; . Em sua importância é explícita: �Ora o tema
mais importante da nossa exposição é este: temos tal sumo-sacerdote, que se assentou à
direita do trono da Majestade nos céus�. Embora não seja expressa em , o motivo do 143 Tratado da argumentação, p. 53.
55
�sumo sacerdote� está presente: �e depois de ter realizado a purificação dos pecados�
(kaqari,smontw/n amarti,wnpoihsa,menoj. Já na primeira vez que aparece explícita () é
seguida de uma oração causal enunciada pela partícula ga,r em . Além disso, o conteúdo
desse bloco literário refere-se expressamente à encarnação de Jesus Cristo, cujos sofrimentos
culminam em sua morte, deixando antever que o seguirá é a interpretação de seu suplício
como obra salvífica de seus �irmãos� (). Por fixar-se nos sofrimentos e morte dolorosa
de Jesus, o autor enunciou aquilo que poderia ser considerado o ponto mais questionável da
fé cristã: O Messias crucificado. Com efeito, a narração, que atendeu aos três requisitos
(brevidade, clareza e verossimilhança), se ocupou somente de relembrar os fatos passados
mais pertinentes a respeito de Jesus, provocantes de censura e de vergonha pública. Dessa
maneira, ainda que se inicie retrocedendo até a sua pré-existência, o objetivo foi buscar uma
justificativa para a necessidade de sua morte e o papel de sumo sacerdote exaltado que Jesus
exerce a partir dela.
Mas de capital interesse é o artifício retórico utilizado pelo autor para fazer sobressair
o status de Jesus Cristo. Mediante a comparação aos anjos, o autor enfatizou a superioridade
do Filho (). Esse artifício também ocorre nas comparações de Jesus e Moisés (),
de Jesus e o sacerdócio levítico (5ss), etc. Tal recurso utilizado foi chamado de amplificação:
Devemos nos servir de muitos meios de amplificação (...). Acrescentaremos tudo o que se possa tirar das circunstâncias e das ocasiões, pois isso independe do que legitimamente seria de esperar. (...). Não omitiremos os incitamentos nem os distintivos encontrados e instituídos para ele (...). Haverá, porém, o cuidado de o por em paralelo com pessoas de renome: há muita matéria de amplificação em mostrar que um homem é superior às pessoas de bem. A amplificação enquadra-se logicamente no elogio, porque estriba na superioridade e a superioridade está no número das coisas boas. (...) a superioridade parece revelar o mérito. Entre as formas comuns a todos os discursos, a amplificação é, em geral, a que melhor se presta aos discursos demonstrativos, porque nela o orador toma os fatos aceites e só lhes resta revesti-los de grandeza e de beleza (Aristóteles. Da Arte Retórica, 1.6.38-40).
Desta forma, a temática dos anjos em atenderia a menção já expressa em 1.4: �tão
superior aos anjos quanto o nome que herdou excede o deles�. A função do recurso seria
�revestir de grandeza e de beleza�, fazer brilhar a figura-chave que é Jesus. Por isso, o autor
não se preocupou em apresentar categorias das figuras angélicas e nem nomear anjos (ex.:
anjos, arcanjos, [serafins, querubins]; Miguel, Gabriel, Rafael). Se levarmos em conta que os
deuses seriam o paralelo de anjos numa assembléia divina (cf. Ovídio, Metamorfosis,
56
),144 mais uma vez reforçaria a concepção das magistraturas; mas como o autor quis
incutir a idéia de cidadania sem paralelos do império, ele evitou a categorização. Não se trata
de uma redução, mas de não projetar os anjos além do necessário a fim de marcar a sobre-
excelência do Cristo. Diante do quadro apresentado do Mundo Mediterrâneo, os anjos
seriam a contraparte da dimensão espacial humana. Já em outros textos do Novo
Testamento, em especial da literatura paulina, encontramos classificações angélicas (Rm
; Ef ; Cl ). Potestas é o designativo, como vimos, dos magistrados (magisters).
Por sua vez, o autor o evitou e utilizou leitourgoi, ministros servidores (). No novo mundo
proposto pelo cristianismo, as criaturas celestes estão ao serviço dos que são objeto da
salvação, ainda que sejam menores que os anjos ().
Outrossim, a Cristologia apresenta um caminho a ser percorrido por Jesus, ou seja, o
mesmo que foi apresentado em Fp : Pré-existência (Hb a), encarnação (), cruz
() e exaltação (b; ).
Portanto, não foi movido por uma polêmica angelológica que o autor mencionou a
superioridade de Jesus Cristo frente aos anjos, mas como recurso retórico cuja finalidade foi
prover elementos para uma Cristologia Sacerdotal exaltada.
2.4.3. Argumentação (Hebreus )
A argumentação alterna partes do gênero deliberativo com partes do demonstrativo.
Seguiremos aqui a proposta de Lauri Thúren145com algumas alterações, esquematizamos da
seguinte maneira:
I. Deliberativo ()
i. Excurso Epidíctico ()
Transição ()
ii. Deliberativo (
Transição ()
II. Epidíctico ()
iii. Excurso Deliberativo ()
144 Comparar �e todas as coisas puseste debaixo dos seus pés...� (Hb 2.8) com a função do magistrado assentado na assembléia () como foi visto acima. 145 The general New Testaments writings, p. 589-592 in: Stanley E. PORTER (ed.), Handbook of classical rhetoric in the hellenistic period (330 B.C.-A.D. 400).
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Transição ()
iv. Epidíctico � retomada ()
Transição ()
III. Deliberativo ()
Transição ()
v. Excurso Epidíctico � Encômio dos Heróis da Fé ()
Transição ()
vi. Deliberativo ()
As alterações que propomos são primeiramente identificar os textos conectivos dos
blocos como �transição� (3.6; 4.14-16; 6.19-20; 10.19-22; 10.39; 11.39-40). A razão para isso está
no fato desses versículos funcionarem como uma espécie de �gancho� que unem as partes
laudatórias (epidíctico) às exortativas (deliberativo), e por vezes apresentar traços híbridos
(epidíctico-deliberativo; deliberativo-epidíctico), vejamos como isso se dá:
Hb Cristo, porém, na qualidade de filho, está acima de sua casa (epidíctico). Esta casa somos nós, se mantivermos a confiança e o motivo altaneiro da esperança (deliberativo). Hb Tendo, portanto, um sumo sacerdote eminente, que atravessou os céus: Jesus, o Filho de Deus (epidíctico), Permaneçamos firmes na profissão de fé. Com efeito, não temos um sumo sacerdotes incapaz de se compadecer das nossas fraquezas... aproximemos, com segurança do trono da graça ...(deliberativo) Hb A esperança, com efeito, é para nós ancora da alma, segura e firme, penetrando além do véu (deliberativo), Onde Jesus entrou por nós, como precursor, feito sumo sacerdote para o éon, segundo a ordem de Melquisedec (epidíctico) Hb Sendo assim, irmãos, temos toda a liberdade de entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus. Nele temos um caminho novo e vivo... (deliberativo). Temos um sumo sacerdote eminente constituído sobre a casa de Deus (epidíctico). Aproximemo-nos, então reto e cheios de fé... (deliberativo) Hb Não somos desertores, para a perdição. Somos homens da fé, para a conservação da nossa vida (epidíctico)... Hb E não obstante, todos eles, se bem que pela fé tenham recebido um testemunho, apesar disso não se beneficiaram da realização da promessa. Pois Deus previa para nós algo de melhor, para que sem nós não chegassem à plena realização (epidíctico).
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Só não são híbridos os textos de 10.39 e 11.39-40. Quanto a este último, pode-se encontrar
alguma dificuldade em relação a para se identificar qual seria o texto de transição. No
entanto, optamos por , pois desde percebemos uma unidade.
Outra alteração da proposta de Thúren é de classificarmos textos como �excursos�
(3.1-5; 5.11-6.18; 11.1-38).146 Entendemos que esses textos funcionam como o outro prato da
balança; ora pendem para o deliberativo, ora para o epidíctico. Explicamos: Excurso (ou
digressão) não deve ser entendido como despropósito, como se o autor estivesse forçando o
discurso, mas como previsto pelos manuais. Quintiliano afirmou que a digressão era o
�tratar extraordinariamente de coisa distinta do assunto, porém que tem com ele alguma
relação� e pode aparecer em diversos lugares (Instituciones Oratórias, ). Já Aristóteles
aconselhou a salpicar o discurso com louvores (ou censuras) a cada momento em que se
fizesse menção de um personagem novo (Arte Retórica, ).
Peroração (Hebreus
O tipo dominante na �conclusão� é o deliberativo. Mas mesmo aí percebemos a presença do
gênero demonstrativo: o matrimônio é digno de �honra� (v. ), os dirigentes são dignos de
imitação (v. ), a imutabilidade de Jesus Cristo (v. ), um altar santo (v. ), sacrifício de
louvor (v. ), uma palavra de doxologia (vv. ). Nisso tudo se percebe como os dois
gêneros discursivos eram aparentados (Aristóteles Arte Retórica, ).
A conclusão (ou peroração) se poderia escolher entre quatro possibilidades: (1)
recapitulação; (2) buscar a simpatia do público; (3) provocar as paixões (cólera, ódio, inveja) e
(4) amplificação ou atenuação. Nosso autor não fez uso da recapitulação. Por outro lado,
buscou a simpatia de seu auditório ao pedir suas orações () e ao transmitir saudações e
notícias de Timóteo (). Mas, digna de atenção é passagem de : �Irmãos, eu vos peço
que acolhais esta palavra de exortação. Aliás, eu vos envio apenas algumas palavras�. Trata-
se da quarta possibilidade, atenuação. Percebe-se que disso se trata ao compará-la às
expressões mais fortes no decorrer do texto e como o autor veio amenizando suas frases,
mesmo quando usou de imperativos. Ao fazer isso, seguiu sugerindo que o fim do discurso
se aproximava. Suas últimas palavras estariam num tom muito fraternal e menos
altissonante que as de , mais próximas aos leitores.
146 Deve-se lembrar que o primeiro excurso aparece já na �narração� em 2.1-4.
59
Invenção
Sob o título de invenção, os retóricos antigos compreendiam a coleta do material, verdadeiro
ou plausível que possibilitaria persuadir (Ad Herennium, ), ou seja, para que o discurso
fizesse sentido. O material coletado era classificado para (a) as provas intrínsecas e (b) as
provas extrínsecas. A matéria que comporiam as provas intrínsecas dependeria dos recursos
da própria retórica como as figuras de retórica. A matéria para as provas extrínsecas
proviriam de fora da retórica como por exemplo documentos, narrativas etc.
.1 Provas extrínsecas
O texto da Carta aos Hebreus revela que o autor buscou o material para o seu discurso
preferentemente na tradição das Escrituras Hebraicas (). Não obstante, o autor
expressou que �nestes dias que são os últimos, falou-nos por seu Filho�, não apresentou as
palavras do �Filho�, mas sua interpretação de quem ele é e fez (faz). Tratava-se de um
recurso retórico, pois pretendia que sua palavra fosse aceitável como fiel a Jesus.147 Sua
argumentação partiu assim de um repositório conhecido de seus ouvintes/leitores. Estamos
diante de material familiarizado aos que saberiam sua procedência (). Entretanto, isso
não impediu de que o autor o utilizasse criativamente, e é o que ele fez.
2.5.2. Provas intrínsecas
Como foi expresso acima, as provas intrínsecas eram aquelas que dependeriam
exclusivamente da arte retórica. A título de exemplo, nosso autor empregou as seguintes
figuras:
Aliteração: Polumerw/j kai. polutro,pwj pa,lai o` qeo.j lalh,saj toi/j patra,sin evn toi/j
profh,taij (1.1).
Endiadis (duas palavras que dão um único sentido): Polumerw/j kai.
polutro,pwj(1.1).
Esquematização comparativa:
Hb 148
Moisés Cristo
147 Quanto ao recurso retórico, Paulo faz algo similar em 1 Ts 4.9s, ou seja, diz uma coisa, faz outra: �Não precisamos vos escrever sobre o amor fraterno... Nós, porém, vos exortamos...� 148 Cf. Paul ELLINGWORTH, The Epistle to the Hebrews, 28.
60
(a) era fiel é fiel
(b) em toda a casa (de Deus) como filho
(c) como um servo sobre a casa (de Deus)
Hb comparar com 149
(a) Temos sumo sacerdote eminente
(b) Que entrou nos céus (novo e vivo caminho)
(c) Jesus, o Filho de Deus (no sangue de Jesus)
(d) Acheguemo-nos com intrepidez (com o coração verdadeiro).
Etimologia (Aristóteles Arte Retórica ):
�Melquisedec... rei de Salém... E seu nome significa, em primeiro lugar, �Rei de Justiça�; e, depois, �Rei de Salém�, o que quer dizer �Rei da Paz�� (Hb ).
Imperativos retóricos: �Considerai atentamente� ( katanoh,sate); �Vede�
( ble,pete; qewrei/te); �Lembrai-vos� ( avnamimnh,|skesqe).
Perguntas retóricas dramáticas duplas: �De fato, a qual dos anjos disse Deus: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei? Ou ainda: Eu lhe serei pai, e ele me será filho? (); triplas: �Quais foram os que ouviram, e fizeram a provocação? Não foram todos os que saíram do Egito graças a Moisés? E contra quem se indignou ele durante quarenta anos? Não foi acaso contra os que pecaram, e cujos cadáveres caíram no deserto? E a quem, senão aos rebeldes, jurou ele que não entrariam no seu repouso?� ().
Palavras compostas sonoras: misqapodosia, (2.2; 10.35; 11.26) euperi,statoj(12.1).
Perífrase (1.14; ).
Interposição de diversas palavras entre o artigo ou pronome e o substantivo:
diaforwteronpar� autou.j keklhro,nomken o;noma()
ouvk a;n peri. a;llhj evla,lei meta. tau/ta hme,raj()
ta.j auta.j polla,kij prosfe,rwn qusi,aj()
mi,an upe.r amartiw/n prosene,gkaj qusi,aj()
Poliptotos:150 �Que mais devo dizer? Não teria tempo de falar com pormenores de Gideão, Barac, Sansão, Jefté, Davi, Samuel e os profetas. Estes,
149 Cf. J. ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 102. 150 Poliptotos são acumulações, variações e gradações que produzem ornamento e animam o debate: ��Pois nem Pélopes, nem Cadmos, nem Egitos, nem Dânaos, nem outros bárbaros de nascimento que habitam conosco, mas nós mesmos, gregos sem mistura com bárbaros, habitamos aqui...� Pois, naturalmente, os fatos nos chegam ao ouvido com mais pompa, quando os nomes são assim amontoados como um rebanho. Mas certamente, deve-se reservar esse
61
pela fé, conquistaram reinos, exerceram a justiça, viram se realizar as promessas, amordaçaram a boca de leões, extinguiram o poder do fogo, escaparam do fio da espada, recobraram saúde na doença, mostraram-se valentes na guerra, repeliram exércitos estrangeiros...� (Hb )
Dramaticidade (Hb ).151
Dramaticidade produzida pela mudança de pessoas, a fim de fazer o ouvinte pensar quase estar em meio dos perigos narrados:152 �Vós não vos aproximastes de realidade palpável: o fogo ardente, a escuridão, as trevas, a tempestade, o som da trombeta e o clamor das palavras cujos ouvintes suplicaram não se lhes falasse mais� (; cf. )
Amplificação por comparação (Quintiliano, Instituciones Oratórias. 8.4.1-2):
�Quem transgride a Lei de Moisés é condenado à morte, sem piedade, com base em duas ou três testemunhas. Podeis, então, imaginar que castigo mais severo ainda merecerá aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança no qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça?� (; entre outros textos).
2.6.Eclesiologia política
Após ter inventariado o material da composição retórica de Hebreus, ficamos convencidos
de que o autor de Hebreus apresenta uma Eclesiologia orgânica e bem elaborada, em que o
modelo Cidade-Estado foi o seu referencial, por isso propomos o nome de �Eclesiologia
Política�. Deve-se enfatizar que essa temática apresentava um desafio à cidadania celestial de
seus leitores a fim de viver o �hoje� sem desligar-se do que viria. Organizamos os conteúdos
de uma �Eclesiologia Política� conforme os resultados colhidos em nosso estudo até aqui.
Tomamos Hb 11.8-9 como texto inicial. A figura de Abraão era modelar para os
leitores, pois ele também foi peregrino, sem cidadania, habitando em tendas juntamente com
seus descendentes, patriarcas do povo de Deus (11.8-9). Os termos �peregrino�, �estrangeiro�,
�morando em tendas� eram altamente eloqüentes (para usar um termo retórico) e calaria
profundamente no coração dos leitores, os pais (já mencionados em 1.1) foram como eles,
sem cidadania, sem residência fixa. Também habitaram em moradias (em certa medida)
procedimento aos casos em que o assunto admite a jactância, ou a abundância, ou a hipérbole, ou a paixão, ou um ou vários desses procedimentos; pois pendurar sinos por toda parte é coisa de sofista� (Longino, Do Sublime, 13.1,4). 151�Quando representas fatos pertencentes ao passado como atuais e presentes, teu discurso não será uma narração, mas uma ação dramática� (Longino, Do Sublime, 25). 152 Longino, Do Sublime 16.1,2.
62
provisórias já pelo caráter de �sem-terras� � a terra, como vimos, era o aspecto importante
para os aristocratas. O pai Abraão �esperava a cidade sem fundamentos, cujo arquiteto e
construtor é o próprio Deus� (11.8). Digna de nota e quase despercebida (a Bíblia de
Jerusalém remete o leitor a Ap 21.10-20), a cidade da esperança de Abraão, da qual o autor
declarou, foi fundada pelo próprio Deus. Lembremos que Cícero entendia que Rômulo,
fundador de Roma, possuía algo de divino.153 O autor pretenderia sobrepujar os autores seus
contemporâneos com sua cidade ideal ao mencionar o caráter singular da mesma. Uma
edificação foi de especial menção, tratava-se da �casa� arquitetada por Deus, cujo servo,
mordomo fiel se destacaria, Moisés, e cuja �casa somos nós, se mantivermos a confiança�
(Hb 3.6). O arquiteto dessa casa é o arquiteto do universo (3.4).
A Carta aos Hebreus tomou os lugares públicos (espaços e edificações) ora
positivamente, ora negativamente. Tais espaços eram necessários para a constituição de um
povoamento digno de ser chamado de cidade:
Querônea está a vinte estádios de Panopeu, cidade dos fócios, se é que é lícito atribuir o nome de cidade a quem não possui escritórios de governo, nem ginásio, nem teatro, nem agora, nem água canalizada numa fonte; eles vivem em casas despojadas, mais parecidas com os barracos plantados às margens dos pricipícios (Pausânias, Descrição da Grécia 10.4.1).
Usou de metáforas envolvendo os lugares públicos em vários momentos da carta. Em
10.32 fez alusão ao ginásio quando disse que seus leitores suportaram �um combate
doloroso� (pollh,n aqlesin) e um �certame que nos é proposto� (trecwmen ton prokeimenon hmin
agwna) em 12.4. Aludira também ao teatro em 11.33, quando disse que os crentes foram
�apresentados como espetáculo� (qeatrizo,menoi) no tribunal em que alguns foram injuriados
(oneidismoij); a praça em que suportaram as �tribulações� (qli,yeij) dos filósofos itinerantes, e
prisão (toi/j de,smioij), conforme 10.33-34. Em todos esses textos, Hebreus apresentou a
negatividade das experiências dos leitores transformadas positivamente.
O Pomerion era o nome do espaço em que se situava a cidade. Espaço sagrado. Por
isso, os suplícios e combates aconteciam extra-muros: �Jesus, para santificar o povo por seu
próprio sangue, sofreu do lado de fora da porta� (13.12). Aliás, com referência aos combates,
153 Aqui cabe uma nota de destaque quanto a Hb 11.4. Aí, Abel é mencionado e louvado por ter oferecido sacrifício melhor que Caim. O leitor lembraria que este assassinou aquele (Gn 4.8) e posteriormente fundou uma cidade (Gn 4.17), levando a maldição consigo, que se revela na falta de lei e a crescente violência em seu descendente representativo Lamec: �Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caím é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes� (Gn 4.24). Uma comparação entre os dois irmãos Rômulo e Remo e o assassinato deste por aquele provavelmente não escaparia da mente do leitor.
63
a metáfora apareceu em 12.4: �Vós ainda não resististes até o sangue em vosso combate
contra o pecado!�
À função de magistrados se aludira na forma contrária, isto é, servidores ()
em 1.7 quando mencionou os anjos,154 bem como os dirigentes e guias em 13.7,17. Orígenes
observaria mais tarde:
Da mesma forma, comparando o conselho da Igreja de Deus com o senado de cada cidade, verificaremos que certos membros do Conselho da Igreja, se for uma cidade de Deus no universo, merecem nele exercer o poder, ao passo que os senadores de toda parte nada apresentam em seus costumes que os torne dignos da autoridade maior pela qual eles parecem dominar os cidadãos. Da mesma forma enfim, devemos comparar o chefe da igreja de cada cidade com o governante político, para observarmos que até entre os membros do conselho e os chefes da igreja que, por sua vida indolente, são inferiores aos mais ativos, podemos discernir em geral um progresso em direção das virtudes que supera os costumes dos senadores e governantes das cidades (Orígenes, Contra Celso, 3.30).
Em Hb 12.22-24, o autor recorreu a uma série de orações coordenadas sindéticas:
Mas vós vos aproximastes do monte Sião e da Cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da assembléia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Jesus, mediador de nova aliança, e do sangue da aspersão mais eloqüente que o de Abel.
Nestes três versos, o autor expusera à realidade supra-terrena da qual os leitores
experimentariam desde então, a expressão verbal �aproximastes� (proselhlu,qate) que se
encontra no perfeito do indicativo ativo, e como verbo principal apresenta os efeitos
resultantes de sua confissão, isto é, as declarações que se seguem.
Mas, o mais importante para nós é o fato de que as declarações eram típicas das
instituições cívicas da Cidade-Estado, ainda que expressas em vocabulário judaico: Cidade,
anjos, assembléia, aliança, juiz, sacerdócio e sacrifício. Retoricamente o autor falou de duas
dimensões (terreno-celeste), usando o vocabulário judaico (Sião, Jerusalém) numa tela greco-
romana (assembléia, censo). A Jerusalém celeste é a cidade �que tem fundamentos�, à qual
pertenciam os leitores da Carta aos Hebreus (Hb 11.8). Tratava-se de �uma pátria melhor�
(11.16-17), um �reino inabalável� (11.28). Mas ainda por realizar-se completamente (11.39).
Os leitores viviam numa cidade que não lhes dá acesso aos direitos de cidadania, ao
contrário, eram �peregrinos�, �estrangeiros� (11.13), descendentes de Abraão, o arameu
errante (2.16). A cidade celeste seria a grandeza que esperavam, conforme o autor, os fiéis
destinatários de Hebreus.
154 Estudaremos com mais vagar o termo aplicado aos anjos no capítulo seguinte.
64
Entretanto, os recipientes enfrentavam a coerção de seu meio-ambiente social: desistir
da fé cristã (10.36). Esta coerção foi expressa em atos concretos: Os destinatários foram
ridicularizados como num espetáculo teatral (10.33), no despojamento de seus bens e no
encarceramento (10.33-34). Outros foram afligidos porque foram �companheiros� do Cristo
humilhado (3.14; 11.26).
Embora aproximados da cidade de Deus, e conquanto sua concretização esteja no
futuro, já se propôs uma Eclesiologia baseada nas associações típicas do mundo
Mediterrâneo de seu tempo. A respeito de tais agremiações Adolph Harnack diz:
O sistema de associações, naturalizada entre os gregos alguns séculos antes, desenvolveu-se sob a pressão social e política do império, e foi grandemente estendida pela troca de idéias morais e religiosas. As uniões livres, que, como regra, tinham um elemento religioso e foram estabelecidas para auxílio mútuo, apoio, ou edificação, sustentavam-se em certa medida devido a fenda social prevalente por uma organização democrática livre. Elas davam a muitos indivíduos em pequeno círculo os direitos que não possuíam no mundo maior, e freqüentemente serviam para estabelecer novos cultos.155
Os cidadãos possuíam inicialmente o direito de se reunir em agremiações (collegia) de
categorias tanto da mesma profissão bem como de caráter religioso, até escravos, libertos e
estrangeiros participavam. Podiam constituir um patrono, um deus protetor, reunir-se
freqüentemente para um banquete comum.
Em geral, eram os mais pobres que se organizavam assim, buscando um patrono que
seria homenageado pela categoria para patrocinar os banquetes e outras atividades. Por sua
vez, o patrono seria homenageado, saudado e suprido de votos necessários para o seu
interesse. Ambos, a agremiação e o clientelismo resultante disto não teriam a aprovação de
Aristóteles, que via certo perigo no ajuntamento de trabalhadores manuais (A Política, ).
Com o tempo o próprio imperador passou a desconfiar de tais confrarias devido aos
possíveis motivos para a formação de núcleos de poder.156 Tal fenômeno participativo se
explica devido a necessidade das pessoas sentirem calor humano, trocar idéias e sendo da
mesma profissão, os assuntos por si só já eram um tema para conversar (Cícero, Dos Deveres,
). A amizade era muito considerada no mundo greco-romano e o próprio Cícero escreve
a respeito do tema: �A mim parece, com efeito, que a natureza nos moldou para viver em
sociedade e tais laços se estreitam na medida em que estamos mais próximos dos outros� (Da
Amizade, ).
155 History of Dogma, vol. 1, p. 121. 156 Paul VEYNE, O império romano, in: P. ARIÈS/G. DUBY, A história da vida privada, vol. 1, p. 184.
65
Outrossim, as associações também podiam hospedar viajantes do mesmo ofício e até
estrangeiros, caso os associados fossem de poucos recursos. As pessoas que eram boas
hospedeiras são bem lembradas como diz Teofastro citado por Cícero:
Corretamente, também a hospitalidade foi elogiada por Teofrasto, pois é muito decoroso, segundo me parece, abrir as casas de homens ilustres a homens ilustres, e também um ornamento para a república que estrangeiros, graças a esse tipo de liberalidade, não passem privações entre nós. E é ainda mais útil, para aqueles que desejam honestamente obter recursos e favor, recorrer a hóspedes escolhidos entre os povos estrangeiros. Na verdade, Teofrasto escreve que Címon, em Atenas, hospedou todos os seus compatriotas da Lácia; dispôs e instruiu seus caseiros a que tudo aprestassem para qualquer deles que se dirigisse à sua casa de campo (Cícero, Dos Deveres, )
As associações tinham por referencial a �assembléia dos homens livres� (cidadãos),
uma miniatura da instituição citadina em seus próprios termos capaz de fornecer um lenitivo
num mundo excludente. Encontramos tal modelo perpassando toda a Carta aos Hebreus
apesar do termo aparecer somente duas vezes (2.12; 12.23). Nesta �assembléia� o
primogênito de Deus não se envergonha de seus membros, ao contrário, chama-lhes de
�irmãos� (2.11-13). Os recipientes foram contados no rol de primogênitos inscritos nos céus
(12.23). Lembremos que as listas censitárias dos primogênitos eram feitas para fins de
cobrança de impostos, fins eleitoreiros, para distribuição de benefícios, para verificação do
número de cidadãos e exclusão dos fraudadores. Por sua vez, os membros da assembléia dos
destinatários de Hebreus foram contados pelo próprio Deus. Nela, os pequenos, os
excluídos do mundo Mediterrâneo, os fiéis seguidores do Cristo humilhado se tornaram
aspirantes de uma �pátria melhor� (11.16), neutralizando diante �do seu Deus� a opinião
pública corrente, pois se tratava de gente da qual �o mundo não era digno� (11.38). Como
outras associações, ela possuía um rito de iniciação (6.2), cujos membros receberiam a
iluminação espiritual (6.4). Participavam de doutrinação educativa (5.11-6.1; 12.5).
Cultuavam a Deus mediante os méritos de seu patrono, Jesus (13.15,20-21). Ofereceriam
sacrifícios e fidelidade a Deus ao confessar o seu nome (13.15).
Chama atenção o fato da Carta aos Hebreus mencionar diversas vezes no texto os
vocábulos �morte� (qa,natoj, ), �morrer� (avpoqnh,skw, 7.8;
9.27; 10.28; 11.4,13,21,37), �mortos� (nekro,j, 6.1,2; 9.14,17; 11.19,35; 13.20). Ora, discursos do
gênero demonstrativo, os panegíricos também eram pronunciados, como foi dito, não
somente em solenidades festivas, mas também por ocasião das cerimônias fúnebres. Algum
membro da família ou algum amigo fazia o discurso diante da imagem do falecido a fim de
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evocar os mais nobres sentimentos e exercitar a memória de outros. Vejamos alguns
exemplos em Hebreus:
Vemos, todavia, Jesus que foi feito, por um pouco menor que os anjos, por causa dos sofrimentos da morte... provou a morte em favor de todos os homens. (2.9) (...) a fim de destruir pela morte o dominador da morte... e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte. (2.14-15) É ele que, nos dias de sua vida terrestre, apresentou pedidos e súplicas, com veemente clamor e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte... (5.7) E como é fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento... (9.27)
A nota constante se encaixa muito bem no gênero retórico epidíctico. Somado a isto, e
por causa disto, as associações eram também organizadas tendo em vista prover um funeral
digno para seus membros. Veja-se o seguinte estatuto:
Seja esta (Deusa Diana) propícia, [dando] felicidade e saúde ao Imperador César Trajano Adriano Augusto e à toda casa imperial, a nós, aos nossos e à nossa sociedade, e que possamos ter feito os preparativos apropriados e cuidadosos para fornecer obséquios na partida da morte. Portanto, precisamos todos concordar contribuir fielmente, de modo que nossa sociedade seja apta a continuar existindo por um longo tempo. Tu, que desejas entrar para esta sociedade como um novo membro, primeiro leia o estatuto cuidadosamente antes de entrar, de modo que não aches razão para queixas mais tarde ou então legar um litígio para teu herdeiro. 157
O autor de Hebreus teve o cuidado de confortar seus leitores continuamente, o que
poderia indicar um possível martírio: �Vós ainda não resististes até o sangue em vosso
combate contra o pecado!� (12.4). De fato, tais palavras enquadram-se numa moldura
martirológica, e se não for assim, ainda possuía força devido à natureza de tais associações.
Hebreus também pode ainda exercer a força de �estatuto� para a comunidade (2.1),
fazendo-a lembrar-se de que a vitória sobre a morte mediante o �iniciador� de sua salvação
(Hb 12.14) requeria fidelidade e perseverança:
De fato, é de perseverança que tendes necessidade, para cumprirdes a vontade de Deus e alcançardes o que ele prometeu. Porque ainda um pouco, muito pouco tempo, e aquele que vem, chegara e ele não tardará. O meu justo viverá pela fé, mas se esmorecer, nele não encontrarei mais nenhuma satisfação. Nós não somos desertores, para a perdição. Somos homens da fé, para a conservação da nossa vida (Hb 10.36-37).
157 Robert L. WILKEN, The Christians as the Romans saw them, p. 37.
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De modo que, negligenciar tão grande salvação seria incorrer na retribuição mais fatal que à
da antiga aliança (2.3; 12.25). Tais pessoas ficariam sem possibilidade de uma nova
conversão, de retorno ao status adquirido pela salvação (6.6).
A hora crítica pela qual passavam os leitores levou o autor a exortá-los a buscar
socorro junto a Jesus (2.18). A hora crítica era semelhante a que Jesus suportou. �É ele que,
nos dias de sua vida terrestre, apresentou pedidos e súplicas, com veemente clamor e
lágrimas, àquele que o podia salvar da morte; e foi atendido� (5.7). A permanência na fé
Cristã lhes garantia a recompensa (10.35; 11.1).
Outrossim, os panegíricos eram pronunciados diante das imagens de outros heróis.
Políbios escreve:
Por ocasião da morte de qualquer homem ilustre ele é levado em seu funeral com toda a pompa até o Fórum, perto dos chamados Rostros, algumas vezes bem à vista em posição vertical, e mais raramente reclinado. Ali, com todo o povo de pé em volta, um filho crescido, se ele deixou algum que esteja presente em Roma, ou se não outro parente, sobe aos Rostros e pronuncia um discurso alusivo às suas qualidades e aos seus sucessos e feitos ao longo da vida. Conseqüentemente toda a multidão, e não apenas quem teve alguma participação nesses feitos mas também quem não teve, quando os fatos são relembrados e postos diante de seus olhos comove-se e é levada a tal estado e empatia que a perda parece não se limitar somente a quem chora o morto e ser extensiva a todo o povo. Em seguida, após o enterro e a realização das cerimônias usuais, coloca-se uma imagem do defunto no lugar mais visível de sua casa, numa espécie de tabernáculo de madeira. Essa imagem consiste numa máscara reproduzindo com notável fidelidade a tez e as feições do morto. (...). Além disso, o orador incumbido de falar sobre o homem prestes a ser enterrado, após pronunciar-se a respeito do defunto evoca os sucessos e feitos dos outros... (Polibios, História, ).
Diante isto, entendemos o �encômio� de Hb 11. Elogio aos antepassados já apareceu em
Eclesiástico 44-50. Não obstante, no elogio aí feito não há referências à morte. Por sua vez em
Hb 11 a menção da morte é contínua:
[Abel] depois de morto, ainda fala! (v. 3) [Abraão] marcado pela morte... (v. 12) [Abraão, Isaac e Jacó] todos estes morreram... (v. 13) Ofereceu Isaac ... Deus é capaz de ressuscitar os mortos (v. 19) [José] deu ordens a respeito de seus restos mortais (v. 22) Algumas mulheres reencontram seus mortos pela ressurreição (v. 35) Outros foram torturados, recusaram o resgate para chegar a uma ressurreição melhor (v. 35) Outros (...) foram serrados e morreram assassinados com golpes de espada (v. 37)
Sofrimento, provação e morte se entrelaçavam no enfrentamento diário da gente fiel,
incluindo Jesus (12.2-4). Desta gente os leitores eram co-participantes (12.1).
Na assembléia dos destinatários diferentemente da assembléia da Cidade-Estado,
participavam homens, mulheres (11.35), idosos (11.11-12), muitos anti-heróis (11.36-38),
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escravos (José; os descendentes de Jacó no Egito, 11.23; Jesus, o crucificado, 12.2), libertos
(2.15; 11.27-29), trabalhadores manuais (o povo, força trabalhadora do Egito; Barac, que era
lavrador), peregrinos e estrangeiros, ainda que todos os seus membros fossem assim
considerados (11.13).
Além destes, duas figuras merecem destaque: Raab e Jefté (11.31-32). Raab era
�prostituta� e Jefté, bastardo, filho de prostituta (Jz 11.1). Categorias sem qualquer honra nas
cidades do mundo Mediterrâneo. As prostitutas surgiam como vítimas da miséria, o que
forçou muitas mães a propor a atividade às filhas:
Crobila: Escuta-me, vou te dizer o que deves fazer e como te comportar com os homens. Pois não temos outros meios para viver, filhinha, e tu não podes saber como vivemos miseravelmente desde que teu pai � que os deuses cuidem de sua alma! � morreu há dois anos. Quando ele vivia, tínhamos tudo o que necessitávamos. Era ferreiro e muito reputado no Pireu; ainda hoje, todo mundo diz que não haverá jamais melhor ferreiro que Filinos. Depois de sua morte, comecei por vender por duas minas suas ferramentas, sua bigorna, seu martelo; e isso bastou para vivermos sete meses. Depois, evitei com dificuldade que morrêssemos de fome, tecendo e fiando. Alimentei-te, minha filha, aguardando que minha que minha esperança se realizasse... Calculei que, quando tivesses a idade que tens agora, te seria fácil me alimentar e proporcionar a ti mesma a fortuna, as vestes de púrpura e servas. Corina: Como? O que queres dizer? Crobila: Indo ao encontro de jovens, bebendo com eles e com eles dormindo em troca de dinheiro. Corina: Tal como Lira, a filha de Dáfnis? Crobila: Sim. Corina: Mas ela é uma prostituta! Crobila: E daí? Isso não é nada terrível! Serás rica como ela e terás muitos amantes. Por que choras, Corina? Tu não vês como as prostitutas são muito procuradas, e como ganham dinheiro? Que Nêmese me proteja, vi essa filha de Dáfnis coberta de andrajos, quando era pequenina; e vê agora o ar que ela tem, com suas jóias, suas vestes de várias cores e suas quatro servas (Luciano, Diálogo das cortesãs, 6).
Este exemplo mostra a dura realidade de tais pessoas. Quanto aos bastardos, estes podiam
até ser filhos de nobres com escravas, ou libertas, contudo, não eram reconhecidos como
filhos por seus pais. A menção das figuras bíblicas Raab e Jefté, exibiria a continuidade
histórica da grandeza acolhedora do povo de Deus.
Relacionado à morte de um patrício, como já vimos, estava a leitura do testamento.
Este é outro tema desenvolvido em Hebreus. Em Hb 9.17 lemos: �O testamento, de fato, só
tinha valor no caso de morte. Nada valia enquanto o testador estiver vivo�. No mundo
Mediterrâneo a herança era o marco para uma vida mais livre, sem as injunções e diretivas
paternas. E no desejo de antecipar a sua aquisição, certos filhos também antecipavam a morte
de seus pais.158 Como um manifesto, o testamento era a declaração dos desejos do defunto, a
oportunidade para se expressar como benfeitor da cidade, dos cidadãos, dos filhos, dos
158 Paul VEYNE, História da vida privada, vol. 1, p. 42.
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libertos e dos escravos. Cada qual recompensado com uma fração da herança, o que fazia
crescer sua estima entre os nomeados.159 O momento também era próprio para o insulto �post
mortem aqueles a quem havia detestado secretamente�.160 Oportunidade social, a leitura do
testamento era um evento grandioso, �do qual todos se orgulhavam tanto, que muitos
dificilmente resistiam ao desejo de iniciar a leitura depois de beber, para agradar de antemão
os legatários e se fazer estimar�.161 Hebreus descreveu a promulgação da primeira aliança
por Moisés mediante o sangue de novilhos e a segunda por Jesus, herdeiro de todas as coisas
(1.2), mediante seu próprio sangue (9.18-24), legando assim a salvação aos que abraçaram a
fé (10.1). Tal salvação se concretizaria plenamente num futuro muito próximo (10.25,35-39;
11.39-40). A linguagem de herança continuou em outros textos:
Pois aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa os que o procuram (11.6) [Noé] condenou o mundo, tornando-se o herdeiro da justiça que se obtém pela fé (11.7) [Abraão] obedeceu e partiu para uma terra que devia receber como herança... (11.8) [Moisés] considerou a humilhação de Cristo uma riqueza maior do que os tesouros do Egito, por ter os olhos fixos na recompensa (11.26)
Esta herança recebida era da mesma medida que recebeu o primogênito das famílias (1.6;
11.28). Por isso, a apostasia equivaleria a desprezar o valor da primogenitura, como fez Esaú
(12.16-17).
A cidadania no mundo Mediterrâneo dava acesso ao privilégio do �ócio�, um
repouso digno do cidadão. É verdade que somente os cidadãos ricos podiam desfrutar desse
repouso enquanto que aos escravos e aos pobres cabia-lhes a luta diária sem descanso por
sua sobrevivência.
A economia romana comportava um importante setor servil; havia também a prisão por dívidas, em que um credor seqüestrava o devedor com a mulher e os filhos para fazê-los trabalhar; e um setor do Estado em que os condenados, os escravos do Fisco (ou seja, de inumeráveis domínios imperiais) penavam sob as chibatadas dos guardas; muitos cristãos conheceram tal destino.162
159 Ibid., p. 43. 160 Ibid., p. 43. 161 Ibid., p. 43. 162 P. VEYNE, História da vida privada, vol. 1, p. 124.
70
Já uma cidade romana era reconhecida como tal pela presença de uma �classe ociosa�, a dos
notáveis.163 Cícero manifesta a sua opinião sobre o ócio nos seguintes termos:
Muitos há e houve que, buscando a serenidade de que falo, retiraram-se dos negócios públicos e refugiaram-se no ócio. Cito entre eles os nobilíssimos filósofos � de longe, os primeiros � e alguns homens severos e graves que não puderam suportar os costumes nem do povo nem dos dignitários, a isso preferindo viver no campo e fruir seu patrimônio. Esses acalentaram o mesmo propósito que os reis: não carecer de nada, não obedecer a ninguém e gozar de completa liberdade, isto é, viver como queira. Semelhante atitude é própria dos que cobiçam o poder tanto quanto, como eu disse, se entregam ao ócio; uns se julgam capazes de alcançar essa tranqüilidade se possuírem riquezas, outros se contentarem não só com o seu, mas com o seu pouco (Cícero, Dos deveres, 1.69-70)
Como se vê, somente os abastados podiam usufruir do repouso, chamado de �ócio�. A Carta
aos Hebreus explora a temática do �repouso� como recompensa dos migrantes escravizados
do Egito (3.7-4.11), a contraparte do ócio romano. Desta vez, os destinatários fiéis seriam os
que desfrutariam do repouso de Deus: �Nós, porém que abraçamos a fé, entraremos no
repouso...� (4.3), contanto que ouvissem a sua voz (4.11).
Citamos ainda outro tema, o do governo desta �assembléia de Deus�. Enquanto os
dignitários eram chamados de magistrados, em Hb 13.7,17 os líderes comunitários eram os
�dirigentes� (oi` hgou,menoi) como Aristóteles na Constituição de Atenas, 12.2:
E ainda, [Sólon] ao revelar o modo por que se deve lidar com a multidão: O povo assim melhor seguiria os seus chefes () nem demasiadamente solto nem forçado, pois o excesso gera insolência quando grande prosperidade alcança homens que têm mentes ajustadas.
No texto acima, Sólon aconselhou como os governantes deveriam dirigir o povo. Em
Hebreus, o autor ao exortar seus leitores mencionou a tarefa de seus líderes: �porque velam
pessoalmente sobre as vossas almas� (11.17). O verbo agrupne,wexpressa a idéia de pastoreio
do rebanho, do qual Jesus é o �grande pastor� (13.20).
Finalmente, a pertença à cidade ou à associação exigia certos deveres de seus
membros, a cidade celeste ou sua assembléia também exigia os seus. Baseado no binômio
�honra e vergonha� apresentou-se uma lista de deveres para seus recipientes. Como nas
assembléias públicas e associativas, os membros deveriam ser fiéis participantes, assíduos e
pontuais (4.1,11; 10.25). Deveriam praticar o serviço mútuo (6.9), o estímulo às boas obras e o
pastoreio mútuo (10.24). Deveriam manter a unidade interna da assembléia (12.14-15), dar
atenção à palavra de Deus (12.25). O amor fraterno, que já era praticado (6.10), deveria ser
163 Ibid., p. 124.
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constante (13.1); a castidade e a fidelidade eram virtudes honradas (13.4). A liderança
merecia respeito e deveria ser modelar (13.7,17). Os prisioneiros não foram esquecidos, pois
sofriam pelo �Nome� (10.32-34; 13.3). Nem deveria ser esquecido que Deus e o Benfeitor da
comunidade fossem louvados (13.15, 20-21). A hospitalidade foi comparada à recepção de
anjos (13.2), e como bons cidadãos não deviam omitir a beneficência (13.16). Em suma, estes e
outros seriam os deveres de cidadãos que estavam à �procura da cidade que está por vir�
(13.14).
2.7. Conclusão
Os resultados da análise retórica e da leitura da intertextura cultural de Hebreus nos
auxiliam a perceber o quadro ambiental em que se inseria a sua mensagem. Autor e
recipientes se moviam numa sociedade estratificada que não lhes dava direito à cidadania,
pelo contrário perseguia, infringia seqüestro de bens, aprisionava, ridicularizava e os cobria
de injúrias. Somava-se a isto tudo, o mais grave, isto é, o desprezo a Jesus, o crucificado,
fazendo pouco do apóstolo de Deus, mediador da criação e da salvação. Que, além disso,
haveria pouca probabilidade de uma polêmica em torno da angelologia bíblica ou extra-
bíblica no seio da comunidade, mas que, as menções aos anjos no escrito funcionaram antes
como referencial para a amplificação do Filho de Deus entronizado, superior a toda a
Criação. O próprio lugar das referências aos anjos na estrutura do discurso Epidíctico não
caberia polêmica alguma; se houvesse, esta deveria vir no centro, ou seja, na �prova�
(Probatio). A exaltação de Jesus tanto acima dos anjos e de quaisquer outros personagens
objetivou fundamentar todas as assertivas da argumentação central feita pelo autor de
Hebreus, e não de uma polêmica per se.
O autor revelou grandes habilidades retóricas das quais destacamos a inventio, ou
seja, o inventário de temas, materiais e estratégias concernentes ao objetivo de sua persuasão:
Enaltecer a Jesus e exortar seus leitores a manter a fidelidade na provação (figurada na
caminhada no �deserto�, mas que levaria à Cidade de Deus, a Jerusalém Celeste). Com
efeito, o autor de Hebreus explorou as instituições da Cidade-Estado e transformando-as
positivamente em benefício dos recipientes. Estes temas entrelaçados (cidadania,
peregrinação, escravismo, liberdade, sacerdócio etc...) faz com que a carta se harmonize com
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o título que recebeu: �Hebreus�164. Hebreus são todos aqueles crentes em Jesus Cristo que
estão de passagem por este éon, buscando uma cidadania superior, cujo arquiteto é o mesmo
que fez o universo.
Contra este pano de fundo, o discurso da Carta aos Hebreus funcionaria como uma
constituição de uma sociedade alternativa, ideal, à que estava aí. Destarte, Atributos dos
cidadãos de pleno direito, dos magistrados, do imperador, negados ao ser humano
�comum�, anônimo e sem berço, foram dados tanto ao Cristo crucificado, como ao ser
humano que confiou em seu nome. Tal �manifesto cristão� por si mesmo constituía uma
agressão ao sistema opressor do império que nivelava os outros sempre para baixo, como
servos �inúteis� frente à bazófia dos �inscritos� pela Cidade-Estado do mundo greco-
romano. Este pano de fundo cultural fornece uma chave de compreensão do porque o Jesus
confessado pela comunidade de Hebreus não poderia ser menos que divino, pois se assim
fosse, não seria o Salvador do povo.
O que tratamos aqui ajuda-nos a perceber que o autor escreve dialogicamente com o
seu meio-ambiente sócio-cultural e de seus destinatários. A proposta da Cidade, bem como o
tecido sobre o qual se entrelaçaram os seus fios, requer a presença e participação do primeiro
cidadão, isto é, o princeps entronizado. Jesus é o primeiro cidadão desta cidade, cuja casa
(assembléia) seria (é) a comunidade dos leitores (3.6).
Dito isto, nossa próxima tarefa será descortinar as tradições judaicas que
possibilitaram a expressão da Cristologia desse exemplar do Cristianismo primitivo.
Abordaremos os textos de Hb 1-14; 2.5-18, uma Cristologia Exaltada que entendeu a Jesus
como divino, sem contudo lesar a confissão do monoteísmo de Israel. No próximo capítulo
trataremos da contribuição das tradições angelomórficas fizeram para a referida Cristologia.
164 Descuramos o título �Hebreus� não pela origem étnica de seus leitores, mas do teor da mensagem em si.
73
Capítulo 3
ANJOS, FIGURAS HIPOSTÁTICAS E JESUS
(Hebreus 1.1-14; 2.5-18)
No capítulo anterior estudamos o plano retórico da Carta aos Hebreus a fim de reconstruir o
seu auditório diante do seu meio ambiente sócio-cultural ao mesmo tempo em que buscamos
identificar o gênero do discurso empregado pelo autor. Os resultados colhidos nos ajudaram
a reconstruir a sua proposta eclesiológica.
Diante disto surge à necessidade de se buscar uma abordagem cristológica coerente
com sua eclesiologia. Propomos que o autor trabalhou sua Cristologia de duas maneiras
interdependentes: (1) impulsionado pelo motivo da trajetória do herói do mundo greco-
romano, retirou os seus conteúdos fundantes da confissão cristã e das Escrituras de Israel
que lhe foram outorgadas; e (2) que subjazendo a expressão do Cristo exaltado estariam
presentes tradições angelomórficas muito similares às encontradas nos escritos
pseudepígrafos dos quais recebeu influência. Tais tradições angelomórficas foram colhidas e
remodeladas de acordo com seus objetivos cristológicos. Cabe aqui a observação de que
embora não houvesse uma polêmica angelológica na comunidade de Hebreus, isto não o
impediu de lançar mão de seus elementos, mas ao contrário, o autor se valera seletivamente
dos conteúdos angelomórficos do povo judeu, modificando-os conforme seus postulados.
Neste capítulo, estudaremos o texto de Hb 1-2 em seu contexto e em seguida sob a
ótica da História Comparada das Religiões. Neste caso, delimitamos os motivos
angelomórficos que se apresentam em Hb 1.1-4 para o nosso estudo, ainda que nem todos
sejam contemplados neste capítulo, ou seja, os temas do sacerdócio e da salvação ficam para
o próximo capítulo.
3.1. O herói greco-romano como modelo
O discurso do gênero epidíctico, como vimos, atendia aos propósitos de louvar/censurar,
sendo comumente utilizado para enaltecer os deuses, os heróis, os soberanos e para
homenagear os defuntos nos ofícios fúnebres. Quanto ao discurso que celebrava um herói,
Quintiliano diz:
74
Adiciona-se honra aos deuses os pais de que tiveram origem, como ser um filho de Júpiter. A antiguidade, como o haver tido princípio do caos. Os filhos, como Diana e Apolo, que foram filhos de Latona. Em alguns se deve louvar os de terem nascidos imortais, em outros o haver conseguido a imortalidade pelos próprios méritos, como a conseguiu a piedade de nosso príncipe do século presente (Inst. Or. 3.7.2).
A comparação de Jesus aos heróis do panteão greco-romano seria mencionada por
Justino de Roma em sua Apologia 1.21.1-3:
Também quando dizemos que o Verbo, primeiro rebento de Deus, nasceu sem relação carnal, isto é, Jesus Cristo, nosso Mestre, e que ele foi crucificado, morreu e, depois de ressuscitado, subiu ao céu, não apresentamos nada de novo se se levam em conta os que chamais de filhos de Zeus (ênfase minha). De fato, sabeis bem a quantidade que os vossos estimados escritores atribuem a Zeus: Hermes, o Verbo intérprete e mestre de todos; Asclépio, que foi médico e que, depois de ter sido fulminado, subiu ao céu; Dioniso, depois que foi esquartejado; Heracles, depois de se atirar ao fogo para fugir dos trabalhos; os Dióscoros, filhos de Leda, Perseu de Dânae e Belerofonte, nascido de homens, sobre o cavalo Pégaso. Para que ainda falar de Ariadne e dos que, semelhante a ela, se diz que são colocados nas estrelas? Passo por alto também vossos imperadores mortos, aos quais tendes sempre como dignos da imortalidade e nos apresentais algum infeliz que jura ter visto César incinerado subir da pira ao céu.
Hebreus apresentaria Jesus mediante o modelo heróico.165 A seqüência deste modelo
�é ritmado pela alternância nascimento-morte-renascimento/apoteose.�166 Grosso modo, o
herói era de natureza divina, isto é, filho de um deus e uma mulher humana. Surgiria
publicamente depois de um período de ocultação, então realizaria diversos trabalhos
maravilhosos.167 Depois chegaria o dia em que enfrentaria a morte, devido a sua
humanidade, mediante a qual subiria aos céus, ou seja, sua apoteose.168 Apolodoro descreveu
a apoteose de Héracles:169
Quando Dejanira soube o que ocorreu, enforcou-se. Heracles, logo encomendou a Hilo, o filho mais velho que tivera com Dejanira, que quando se fez homem se casara com Yole; foi ao monte Eta, que pertence aos traquinios e ali fez uma pira, subiu nela e ordenou que a incendiassem. Porém como ninguém queria fazê-lo, Peante, que passava procurando seus rebanhos, ateou fogo; por isso Heracles lhe presenteou com seu arco. Enquanto se consumia a pira, conta-se que uma nuvem se pôs debaixo e trovejando o levou ao céu. Desde então, alcançou a imortalidade e se reconciliou com Hera, casando-se com sua filha Hebe, da qual lhe nasceram Alexiares e Aniceto.
165 David E. AUNE, Heracles and Christ: Heracles imagery in the Christology of early Christianity, in: David L. BALCH (Ed.), Greeks, Romans, and Christians, p. 3.; Adele Yarbro COLLINS, Apotheosis and resurrection, in: Peder BORGEN/Sören GIVERSEN (Ed.), The New Testament and hellenistic judaism, p. 96. 166 Philippe SELLIER, Heroísmo, o modelo � da imaginação, in: Pierre BRUNEL (org.), Dicionário de mitos literários, p. 468. 167 Ibid., p. 468. 168 Ibid., p. 468. 169 Biblioteca Mitológica, 2.159-160. O envenenamento de Héracles.
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Em Hebreus, Jesus é pré-existente e seu pai é o Deus de Israel (1.1-4). Por ocasião de
sua introdução ao mundo é declarado filho de Deus (1.5-6). Nada é dito de seus pais carnais.
Quanto à sua palavra, esta foi acompanhada de sinais, prodígios e vários milagres (2.3-4).
Nos dias de sua humanidade foi provado por várias tentações, mas manteve-se obediente até
o fim (5.7-9). Foram dois os seus trabalhos: �... destruir pela morte o dominador da morte,
isto é, o diabo; e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da
morte� (2.14-15). Jesus cumpriu estas funções mediante sua morte, que o fez a um só tempo
sacrifício e sacerdote (9.28). Não se fala de sua ressurreição, mas de sua ascensão ao céu (9.24;
13.20), onde, entronizado, realiza contínua intercessão pelos fiéis (10.19).170
Mas o autor, ainda que use do modelo heróico, partiu da tradição cristã que professa
a morte e ascensão de Jesus Cristo. Dependeu também das tradições angelomórficas, apesar
de não explicitá-la, para apresentar o Jesus exaltado à direita de Deus.
A seguir apresentamos os motivos angelomórficos que servirão de fator norteador de
nosso estudo.
3.2. Tradições fundantes do mediador angelomórfico
Em geral, as características angelomórficas de um mediador seriam adquiridas em sua
ascensão ao céu, como recompensa por uma vida justa e exemplar.171 O mediador em questão
se encontraria no limiar de duas existências, de duas dimensões distintas, da terrena e da
celeste. No caso do Cristianismo das origens, sua convicção é a de que Jesus é o mediador
definitivo entre Deus e a humanidade. Como mediador divino, a confissão proposta por
Hebreus é uma Cristologia sacerdotal e angelomórfica, isto é, que tem no sofrimento e
exaltação de Jesus sua maior expressão.
Hebreus 1.1-14; 2.5-18 forneceu-nos os elementos para o estudo dos aspectos
angelomórficos da Cristologia da carta. Elencamos mais uma vez os motivos típicos da
morfologia de vice-regência angelomórfica propostos por Nathaniel Deutsch:172 (1) Função
demiúrgica, (2) Guardião do portal (a habitação de Deus), (3) Governante (de seres humanos
e ou angélicos), (4) Juiz, (5) Sacerdote, (6) Forma paradigmática do homem primordial, (7)
170 A ascensão em uma nuvem tem seus paralelos na literatura do Judaísmo do período do Segundo Templo. 171 Martha HIMMELFARB, Revelation and rapture, in: John J. COLLINS/James H. CHARLESWORTH (Ed.), Mysteries and revelations, p. 85. 172 Guardians of the gate, Angelic vice regency in late antiquity, p. 14.
76
Ontologia compósita (tem a uma só vez características de Deus, de seres humanos e de
anjos). Tais motivos são ligados entre si pela �colagem� do tema da mediação.173
3.2.1. Dois motivos paradigmáticos: �O Anjo do Senhor� e �A Assembléia Divina�
Os anjos174 não são estranhos à literatura do Antigo Testamento. O termo $lm (mal´ak) ocorre
213 vezes no AT e pode se referir tanto a mensageiros humanos como divinos175. A LXX usa o
termo a;ggeloj para ambos. Já a Vulgata preferiu fazer distinção entre mensageiro humano e
mensageiro divino. Para tanto usou o termo angelus para este e nuntius para aquele176.
Os mensageiros humanos podiam ser pessoais, no entanto, estes aparecem somente 4
vezes (Gn 32,3.6; Jó 1,14; Pr 13,7; Is 18,2). Além de que o termo mal´ak também é encontrado
referindo-se a enviados políticos177 (cf. Js 7.22; Jz 11,17), e enviados divinos que podem ser
profetas178 (cf. 2 Cr 36,15s; Is 44,26), sacerdotes179 (Ml 2,6s; Ec 5,1-7) e anjos. Para esta última
categoria se usa denominar mal´ak yhwh (´ädönäy) e mal´ak ´élöhîm.180 Estas duas expressões é
que nos interessam. Inicialmente veremos os conteúdos bíblicos referentes ao mal´ak yhwh
(Anjo do Senhor), um anjo totalmente distinto de todos os outros. Posteriormente,
apresentaremos o tema da Assembléia Divina que, juntamente com aquele, são
paradigmáticos e recorreremos a ambos muitas vezes nesta pesquisa.
3.2.1.1. O Anjo do Senhor
Onde aparece o mal´ak yhwh no AT, ele se torna o foco da atenção. Há consenso de que as
tradições de sua figura são bastante antigas.181 Chama a atenção o fato de algumas vezes o
mal´ak yhwh ser identificado com o próprio Deus e outras vezes ser distinto dele. Quando
identificado com Deus passa a ser não somente um mensageiro, mas uma manifestação da
173 Ibid., p. 14. 174 Charles A. GIESCHEN define assim a palavra �anjo�: �Mensageiro, significa um espírito ou ser celestial que faz mediação entre as esferas humanas e divinas�. In: Angelomorphic Christology, Antecedents and Early Evidence, p. 27. 175 Ialm FREEDMAN-WILLOUGHBY. Ialm in: TDOT, vol. VII, p. 308. 176 Ibid., p. 309. 177 cf. 1 Sm 23,27; 2 Sm 11,19.22.23.25; 1 Rs 20,2; 2 Rs 16,7; 17,4; 19,9 etc. 178 cf. Jr 1,4-10; Ez 30,9; Ag 1,3; 13. 179 Ialm FREEDMAN-WILLOUGHBY, p. 316s. 180 Ibid.,, p. 317. 181 Gerhard von RAD escreve: �Até onde os materiais permitem, em Gênesis 16,7ss; 21,17ss; 22,11ss; 31;11ss; Êxodo 3 2ss; Juizes 11,1ss, nós temos tradições muito antigas (isto é, pré Javistas e pré-Israelitas), que registram a aparição de um numen. Elas foram absorvidas para o estoque de tradições de Israel e adaptadas à sua fé pela formação de histórias contadas de uma aparição do anjo de Javé da deidade estrangeira (Canaanita)�. In: Old Testament Theology, vol. 1, p. 286.
77
deidade, uma hipóstase de Deus. Para isso, há alternância entre os termos �Deus� e �Anjo do
Senhor� como em Gn 21.17-18 e Jz 6.11s,14. Vejamos, por exemplo, a comparação desses
textos.
Gênesis 21.17-18 Deus (´élöhîm) porém, ouviu a voz do menino; e o anjo de Deus (mal´ak ´élöhîm) chamou do céu a Hagar e lhe disse: Que tens Hagar? Não temas; porque Deus (´élöhîm) ouviu a voz do menino, daí onde está. Ergue-te, levanta o rapaz, segure-o pela mão, porque eu farei dele um grande povo.
Juizes 6.11s.14 Então veio o Anjo do Senhor (mal´ak yhwh) e assentou debaixo do carvalho, que está em Ofra, que pertencia a Joás, abiezrita; e Gideão, seu filho, estava malhando o trigo no lagar, para o por a salvo dos midianitas. Então o Anjo do Senhor (hwhy ialm) lhe apareceu e lhe disse: O Senhor é contigo (yhwh), homem valente. (...). Então se virou o Senhor (yhwh) para ele e disse: Já que estou contigo, ferirás os midianitas; por ventura eu não te enviei?
Observe-se que em Gn 21.17-18 a alternância se dá entre mal´ak ´élöhîm e ´élöhîm. Mas em
Juizes 6.11s,14 é mal´ak yhwh e yhwh. O importante nisso é que os textos são considerados,
nessas porções, unitários, sem glosas ou coisa do tipo. A coerência se caracteriza no fato de
que, se inicialmente aparecer o termo ´élöhîm, o Anjo será designado de mal´ak ´élöhîm. E se o
termo é yhwh, o Anjo é designado de mal´ak yhwh .
Também é digno de nota que o Anjo do Senhor se manifeste em forma humana. Isto
se infere claramente do texto de Juizes. Não há surpresa alguma, inicialmente, de Gedeão
diante da figura do Anjo (v. 13); ao se referir ao Senhor o faz como se fosse uma terceira
pessoa (v. 13). Em dúvida, pede ao interlocutor que o espere enquanto prepara um cabrito
para dar de comer ao Anjo (v. 18s). Gedeão percebe que se trata do Anjo do Senhor quando
este tocou com o cajado na carne e nos bolos, que são consumidos (v.21s). Então o medo se
apoderou de Gedeão que exclama como Isaías diante de sua visão-vocação:
Viu Gedeão que era o Anjo do Senhor, e disse: Ai de mim, Senhor Deus, pois vi o Anjo do Senhor face a face (Kî|-`al-Kën rä´îºtî mal´ak yhwh Pänîm ´el-Pänîm). (Juizes 6,22) Então disse eu: Ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio dum povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos! (hammeºlek yhwh(´ädönäy)
cübä´ôt) (Isaías 6,5)
Numa cena e noutra, a sensação da morte é decorrente e imediata. Quem vê o Senhor,
morrerá. Por isso, Deus conforta Gedeão: �Não temas! Não morrerás!� (Jz 6,23). Em Isaías 6 é
um Serafim que conforta o profeta: �A tua iniqüidade foi tirada e perdoado o teu pecado� (v.
7). Também há diferenças de lugar. Gedeão vê o Anjo de Yahweh no campo, isto é, o anjo
78
vem ao seu encontro. Isaías vê, num êxtase, Yahweh entronizado como rei em seu santuário.
A impressão de Isaías é mais imediata da que de Gedeão por se achar no ambiente de Deus e
sua visão ser gloriosa. Gedeão está no campo, o Senhor parece indistinto de qualquer ser
humano. Mas para nossos propósitos é bom salientar que a identificação do Anjo do Senhor
com o Senhor nos textos de Gênesis e Juizes se torna evidente.182
Outra passagem importante da manifestação do mal´ak yhwh é a de Gn 18,1-19,1-20, a
aparição dos seres celestes anunciando e levando a cabo a destruição de Sodoma e Gomorra.
O texto inicia dizendo que yhwh apareceu a Abraão (18,1), e na continuação diz que Abraão
viu �três homens de pé� (18,2). Dos três, um é claramente distinguido dos outros dois como
yhwh (18,20.26). Os outros dois são chamados de ´élöhîm (Gn 19,1) e se declaram enviados
por yhwh (19,13). No entanto, surpreende que na conversa com os anjos, Ló se expresse
como se estivesse falando ao próprio yhwh (19,18-19), todavia, paira a incerteza. A esse
respeito Gordon Wenham escreve:
�Não, Senhor� (´al-nä´ ´ádönäy) (...) adonai é a maneira própria de se dirigir a Deus (cf. 18,3), e a subseqüente intercessão de Ló é dirigida a Deus. Se a narrativa está sugerindo que o Senhor se reuniu aos anjos fora da cidade, ou se Ló está apenas sendo muito polido, é obscuro. Poderia ele saber realmente a quem falava na escuridão antes da alvorada? O mistério é provavelmente deliberado183.
Gerhard von Rad entende que o conteúdo das palavras de Ló diz respeito a Deus: �Quando
um homem recebe livramento do juízo, trata-se de assunto de Deus somente�184.
Em Gn 22.11, o mal´ak yhwh do céu chama a Abraão. Sua fala, uma vez mais é
entendida como a do próprio Deus, e é assim entendido por Abraão (22,14). Já os versos 15 e
16 desse mesmo capítulo poderiam deixar dúvidas se agora o anjo é o próprio yhwh ou se
distingue dele, mas jurar por si mesmo parece ser um indicativo de que a afirmação é feita
por Deus. Tanto em Gn 18.1-19.20 e 22.11, o relacionamento de Abraão e Yahweh é sem
qualquer cerimonial. Abraão não teme diante de Yahweh (seu anjo) e nem precisa fazer
confissão de pecados. Isto influiria na literatura pos-exílica a seu respeito.
Na narrativa da busca de uma noiva para Isaque, em Gn 24,7, o anjo se distingue de
yhwh : �O Senhor, Deus do céu, ... ele enviará o seu anjo, que te há de preceder�. De igual
modo os mal´ak hä´élöhîm da visão Jacó em Betel se distinguem de Deus (Gn 28,12s), sendo
182 cf. tb. Gn 16,7-14 183 Gordon WENHAM, Genesis 16-50, p. 58. 184 G. von RAD, Gehrard von. Genesis, p. 220.
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que, mais adiante, quem fala dessa visão é o mal´ak yhwh (Gn 31,11ss): �E o Anjo de Deus
(mal´ak hä´élöhîm) me disse... Eu sou o Deus (´él) de Betel...�
Em Gn 32, à noite, Jacó luta com um homem (´î�, v. 25). Este é revelado ser o próprio
Deus (´élöhîm, v. 28), e disso Jacó, agora de nome novo (Israel), passa a ter certeza, pois viu a
Deus (la, v. 30). Aqui o termo mal´ak não está expresso, mas parece lhe dizer respeito. O
relato enfatiza os nomes Israel (yiSrä´ël) e Peniel (Pünî´ël). O primeiro significa �Deus luta� e o
segundo �Face de Deus�,185 deveras uma teofania etiológica. A respeito desse evento, da luta
de Jacó com Deus, o livro de Os 12,3-4 diz: �... no vigor de sua idade lutou com Deus
(´élöhîm), lutou com o anjo (mal´ak), e prevaleceu; chorou, e lhe pediu mercê; em Betel achou
a Deus (lit.: �o achou�) e ali falou conosco�. Na primeira parte é dito que Jacó lutou com
Deus, na segunda que lutou com o anjo (i.é., um parallelismus membrorum), faz-se evidente a
compreensão do autor a respeito de tal tradição186, declarando como �anjo� o homem que
lutou com Jacó, dado que falta na narrativa do Gênesis.
No cena de seu testamento, Jacó abençoa seus filhos em Gn 48,15s com as palavras:
... O Deus, em cuja presença andaram meus pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou durante a minha vida até este dia, o Anjo que me tem livrado de todo mal, abençoe estes rapazes...
Novamente se percebe o paralelismo dos vocativos que colocam as expressões no mesmo
nível (�O Deus...�, �o Deus�, �o Anjo�), para depois apresentar a súplica (�abençoe estes
rapazes...�). Não fazendo distinção entre Deus e o Anjo.
O mal´ak yhwh também aparece a Moisés. Em Ex 3,2 o Anjo do Senhor está �numa
chama de fogo do meio duma sarça�. Da sarça sai uma voz �Moisés, Moisés� (3,4), da mesma
maneira que Abraão foi chamado pelo Anjo (Gn 22,11: �Abraão, Abraão�), a resposta de
Moisés também é análoga: �Eis-me aqui!� (Gn 22,1.11, cf. 1 Sm 3,4; Is 6,8). Parece ser a típica
resposta à teofania. E novamente o mal´ak se apresenta: �...Eu sou o Deus...� (´élöhîm, Ex 3,6)
e apresenta o tetragrama sagrado yhwh em 3,15. Não há distinção nessa perícope entre o Anjo
e o Senhor.
Na saída do Egito, em Ex 13, 21, é o próprio yhwh que segue adiante do povo na
coluna de nuvem de dia, e na coluna de fogo à noite. Então em Ex 14,19 é dito que o mal´ak
está na coluna de nuvem e no verso 24 faz menção de yhwh novamente. À promessa da terra,
185 Gordon WENHAM, Gênesis 16-50, p. 295 186 É sobremodo importante que Oséias cite essa tradição visto endereçar seus discursos ao reino do Norte.
80
Deus envia �um anjo� diante do povo (Ex 23,20). Chama o povo à obediência a esse anjo,
pois seu nome estaria sobre ele (Ex 23,21). John I. Durham nota que:
A referência ao mensageiro a quem Yahweh envia, aqui como em outros lugares no AT, é uma referência a uma extensão da própria pessoa e da Presença de Yahweh. É de fato uma reafirmação da promessa e prova do tema da Presença que domina a narrativa de Êxodo 1-20. O �assistente� ou o �mensageiro� (mal´ak) exercerá a direção, protegendo, instruindo, introduzindo funções que as colunas da nuvem e do fogo de Yahweh e do assistente de Yahweh, e providenciando a Presença que tem sido realizada nos textos mais antigos. (...). Eles não precisavam �se ressentir� ou �se magoar� contra a direção e conselho do �mensageiro�, porque fazer assim traria punição autorizada por Yahweh, cujo �nome� (�üm
�Presença�) está �sobre ele� (BüqirBô). Esta última declaração é virtualmente uma declaração de equivalência: o �mensageiro� = Yahweh.187
Surpreendentemente é feita uma clara distinção entre Deus e seu anjo em Êxodo 32 em
diante, depois da idolatria ao bezerro de ouro. Deus só estaria no meio de seu povo por meio
de seu Anjo (cf. Ex 33,3.4). Só a Moisés seria permitida a sua presença (33,14).
Provavelmente seja o próprio Deus como mal´ak Pänäyw (Anjo da Presença) descrito em Is
63,9.
Na literatura deuteronomista pode acontecer que o Anjo do Senhor não seja referido,
como no caso de Deuteronômio. As passagens que nos livros anteriores o Anjo do Senhor é
nomeado, aí são apresentadas como ações de yhwh (exemplo: Dt 4,37). No livro de Josué
aparece uma figura guerreira, o Príncipe do Exército do Senhor (Sar-cübä´ yhwh, Js 5,13-15),
que repete as mesmas palavras referidas a Moisés na visão da sarça ardente: �Descalça as
sandálias de teus pés, porque o lugar em que estás é santo� (Js 5,15; cf. 3,5), e de modo algum
rejeita a adoração que Josué lhe presta (v. 14). Pode suceder também que o Anjo do Senhor
seja referido do mesmo modo que nos textos do tetrateuco acima citados (ex: Jz 2,1-5; 6,11-14,
já contemplado anteriormente).
Finalmente, Zc 1,12-13 em que há clara distinção entre o mal´ak yhwh e yhwh mesmo:
�Então o Anjo do Senhor respondeu: Ó Senhor dos Exércitos, até quando não terás
compaixão de Jerusalém e das cidades de Judá...�. �Respondeu o Senhor com palavras boas,
palavras consoladoras, ao anjo que estava comigo�. Inicialmente parece tratar-se de um anjo,
angelus interpres (anjo intérprete), distinto de Deus, mas no capítulo 3 lemos:
Depois, o Senhor me fez ver Josué, o sumo sacerdote, de pé diante do anjo do Senhor: à sua direita postava-se o Satã para acusá-lo. O anjo do Senhor disse ao Satã: �Que o Senhor te reduza ao silêncio, Satã: sim, que o Senhor te reduza ao silêncio, ele que escolheu Jerusalém�. (Zc 3,1-2)
187 John I. DURHAM, Exodus, p. 335.
81
E em seguida:
Josué, de pé, diante do anjo, estava vestido com vestes sujas. Tornou o anjo e disse aos que estavam diante dele: �Tirai-lhe as vestes sujas.� Em seguida disse a Josué: �Vê, desembaracei-te do teu pecado e revestir-te-ão de trajes de festa.� E prosseguiu: �Que lhe ponham na cabeça um turbante limpo�. Puseram-lhe na cabeça um turbante limpo e revestiram-no com vestes. O anjo do Senhor mantinha-se ali. (3,3-5)
No primeiro texto Josué está diante do anjo do Senhor e não ao seu lado. Do lado direito
estava o Satã (haSSä�än). O Satã atua como advogado de acusação, mas o anjo faz o papel de
juiz. Ele declara Josué absolvido no texto seguinte quando diz: �Desembaracei-te do teu
pecado� (v.4). É verdade que é uma função de mediador, mas no segundo texto lemos o anjo
sempre falando de moto próprio, dando a entender que se trata do próprio Senhor que dirige
a palavra. David L. Petersen escreve:
O mal�ak é quem está claramente no controle do conselho divino, responde à situação anterior ao usar a linguagem padrão de �resposta� como as que ocorrem nas outras visões (1,10.11; 4,4). E expressa um comando para aqueles que estão diante dele, a terceira vez que esta frase particular �diante dele� é usada, um uso sem dúvida desenhado para escorar a autoridade do mal�ak no conselho. Aqueles que se colocam diante dele, deidades menores do conselho divino, são encarregados de remover a vestes sujas que Josué vestia188.
O anjo do Senhor também exerce uma autoridade muito clara na assembléia divina.
Por enquanto basta frisar que sua autoridade é indistinta da de yhwh (cf. Salmo 82).
Resta ainda dizer que o mal´ak yhwh encontra várias explicações na pesquisa bíblica
de quem ele é e de sua atuação. Cito inicialmente a (1) teoria do Logos (já abandonada), que
�vê no o mal´ak yhwh uma revelação do Logos, isto é, do Filho de Deus preexistente (autores
cristãos antigos)�189. (2) A teoria da Interpolação que �assevera que a figura do mal´ak yhwh
foi adicionada pelos redatores para suavizar os antropomorfismos ousados de muitas das
antigas tradições textuais que apresentava Deus aparecendo em forma de um homem�190. (3)
A teoria da Identidade que �afirma que o mal´ak yhwh é uma manifestação de Deus, isto é,
Deus mesmo que, sendo invisível, se apresenta visivelmente e age em certas circunstâncias
no seu anjo�191. (4) A teoria da Hipóstase, �liderada por Helmer Ringgren, sustenta que o
anjo de o mal´ak yhwh é um aspecto da personalidade de Deus que é apresentada numa
188 David L. PETERSEN, Haggai and Zechariah 1-8, p. 194. 189 J. MICHL, Anjo In: Dicionário de Teologia Bíblica, p. 69. 190 Chales A. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 54. 191 J. MICHL, Anjo, In: Dicionário de Teologia Bíblica p. 69.
82
identidade distinta, mas não separada�192. A resolução de uma teoria definitiva ainda está
por vir. O que fica claro de todas as elaborações sugeridas por esses quatro pontos de vista é
a complexidade da figura do mal´ak yhwh . Mas uma coisa é fato: As teofanias de Yahweh
nas tradições mais antigas do Antigo Testamento apresentam-no com �traços
angelomórficos�, ou seja, Deus como um anjo, o Anjo.
3.2.1.2. A Assembléia Divina
Para se ter uma idéia do desenvolvimento da crença em anjos, há de se tomar conhecimento
da noção de Assembléia Divina que lhe subjaz. Lemos no Salmo 82.1.6s:
Deus (´é|löhîm) levantou-se na assembléia divina (`ádat-´ël), no meio dos deuses (Büqeºreb ´élöhîm), ele julga: Até quando julgareis injustamente favorecendo os culpados? (...). Eu o declaro: vós sois deuses (´élöhîm), sois todos filhos do Altíssimo (bünê `elyôn), e no entanto morrereis como humanos, caíreis exatamente como os príncipes.
As expressões-chave do texto acima são: Deus (´é|löhîm) assembléia divina (`ádat-´ël), deuses
(´élöhîm) e filhos do Altísimo (bünê `elyôn). Esse é o mundo de Yahweh, um mundo repleto de
poderes celestes. As figuras celestes elencadas no Salmo 82 têm a função de administrar a
justiça, mas elas que eram promotoras de justiça, se tornam agora, rés e culpadas (cf. Salmo
82,6s). Claramente se percebe a soberania de Deus sobre esses entes divinos. Estes devem
prestar contas de seus atos. De onde vem essa noção? No texto em tela se expressa a
representação de um Conselho de Deuses. Esta concepção pode ser devida às influências do
entorno religioso-mitológico sírio-cananeu193. Tal conselho se reunia para determinar os
destinos do cosmos194. Ao mencionar o conselho, o AT objetiva apresentar o poder e a
autoridade de Yahweh195. Nos materiais ugaríticos, os membros do conselho são designados
como deuses196. O épico Keret, El é descrito à frente da assembléia divina e se reporta aos
deuses por sete vezes se endereça aos deuses, chama-os de deuses e meus filhos, pedindo que
curem Keret:197
192 C. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 55. 193 Hans JOACHIM-KRAUS, Teologia de Los Salmos, p. 62; Christopher ROWLAND, Open Heaven, p. 79. 194 E. Theodore MULLEN Jr., Divine Assembly, in: ABD, vol. II, p.214. 195 Ibid., p. 214. 196 Ibid., p. 215. 197 James B. PRITCHARD (Ed.), ANET, p. 148.
83
Uma segunda vez [...] , uma terceira vez [... Então falou] o Benevolente, [El benigno: �Quem] entre os deuses pode [remover a doença], extirpando a m[oléstia?� Ninguém entre os deuses] lhe respondeu. [Uma quarta vez El] disse: �Quem entre [os deuses pode remover] a doença, ex[tirpando a moléstia]?� Ninguém entre os deuses l[he respondeu]. Uma quinta vez ele disse: �[Quem entre os deuses] pode remover a doença, ex[tirpando a moléstia]?� Ninguém entre os deuses lh[e respondeu]. Uma sexta, uma sétima vez ele diz: �[Quem] entre os deuses pode remover a doença, extirpando a moléstia?� Nenhum dos deuses lhe responde. Então falou o Benevolente, El Benigno: �Assentai-vos, meus filhos, sobre vossos lugare[s], sobre vos[sos] tronos de principados. Eu farei uma mágica e certamente alcançarei a remoção da doença, extirpando a moléstia.�- Com argila [sua mão] enche, com vistosa argila [seus dedos]. Ele...
Em suma, nos materiais de Ugarit as divindades maiores e menores do panteão se reúnem
sob a presidência de El para deliberarem a respeito dos destinos do cosmos. Os temas mais
recorrentes são os de soberania, templo e progenitura concernente ao conselho.198 Tércio
Machado Siqueira em seu estudo do Salmo 82, escreve:
O Salmo 82 reflete o entendimento que os povos do Antigo Oriente Médio possuíam a respeito da ordem do mundo. Para eles, havia uma ordem no mundo que foi criada e, desde então, sustentada pelos deuses. As antigas mitologias politeístas do Oriente Médio sustentavam, ainda que com algumas variações, a idéia da existência de um panteão cujo líder era conhecido sob o nome de �o deus altíssimo�. Na Suméria, ele era chamado Anu. Na Babilônia, Marduk. El, entre os cananeus. Atum, Rê, no Egito. E Taru, entre os hititas. (...). Embora Israel seja considerado um grande assimilador de costumes, a verdade é que todo processo de agregação de idéias ou costumes, à tradição javista, passava pelo crivo da fé israelita. Decididamente, o Salmo 82 descreve o momento da transição dessa concepção politeísta para a perspectiva monoteísta199.
Em Israel sucede algo análogo. As referências a seres divinos constituintes de uma
assembléia ou conselho divino são várias. Veja-se por exemplo o Sl 89.6-9:200
6 O céu celebra a tua maravilha, Yahweh, por tua verdade, na assembléia dos santos.(Biqhal qüdö�îm) 7 E quem, sobre as nuvens, é como Yahweh ? Dentre os filhos dos deuses (Bibnê ´ëlîm), quem é como Yahweh? 8 Deus é terrível no conselho dos santos (Büsôd-qüdö�îm), grande e terrível com todos os que o cercam. 9 Yahweh, Deus dos Exércitos (yhwh ´élöhê cübä´ôt), quem é como tu? És poderoso, Yahweh, e tua verdade te envolve!
O texto acima apresenta várias expressões com o mesmo significado: �assembléia dos
santos�; �filhos dos deuses�, �conselho dos deuses� e �Deus dos exércitos�. Esse material do
AT descreve Yahweh rodeado de sua corte celeste, ou seja, as deidades menores de seu
séqüito. Apesar de todas as referências à corte celeste, no entanto, não se apresenta
desenvolvimento algum na expressão de figuras individuais. Outro texto chamativo nesse
sentido é o 1 Reis 22.19-23:
198 Ibid., p. 215. 199 O Salmo 82, in: Estudos Bíblicos, n. 2, p. 12. 200 cf. Sl 29.1; 97.7.
84
Miquéias lhe disse: �Pois bem! escuta a palavra do Senhor. Vi o Senhor sentado em seu trono e todo o exército celeste (`al-Kis´ô wükol-cübä´) de pé junto dele, à sua direita e à sua esquerda. O Senhor disse: �Quem seduzirá Acab, para que ele suba e pereça em Ramot-de-Guilead?� Um falava de um modo, outro de modo diferente. Então um espírito (rûªH) adiantou-se, apresentou-se diante do Senhor e disse: �Eu o seduzirei�. Perguntou o Senhor: �De que maneira?� Ele respondeu: �Irei e serei um espírito de mentira (rûªH
�eºqer) na boca de todos os seus profetas�. O Senhor lhe disse: �Tu o seduzirás; aliás, tens poder para tanto. Vai, e faze assim�. Portanto, se o Senhor pôs um espírito de mentira (rûªH �eºqer) na boca de todos os teus profetas, é porque ele próprio decretou a tua perda�.
O texto em tela é deveras esclarecedor a respeito da concepção de um conselho celeste como
parte do arcabouço de crenças de Israel. Ao profeta Miquéias é concedido o privilégio de
vislumbrar o que acontece atrás dos bastidores dos eventos terrestres. Ele vê a Yahweh
rodeado de divindades menores, chamadas aqui de exército, e um componente individual
chamado de espírito. Yahweh é apresentado sentado sobre um trono e seu exército em pé
diante dele, demonstra-se com isso sua superioridade sobre os que o rodeiam. Além disso,
seu séqüito está a seu serviço a ponto de surgir um voluntário para agir em prol dos
interesses do conselho.201 A descrição do que acontece na sala do trono celeste encontra sua
contraparte na descrição do ambiente dos tronos terrestres (uma espécie de paródia do que
há encima) que aparece nos versículos 10-12 do mesmo capítulo:
O rei de Israel e Josafat, rei de Judá, em trajes de grande cerimônia, sentaram cada um no seu trono, na esplanada, à entrada da porta de Samaria, e todos os profetas entraram em transe para profetizar diante deles. Sedecias, filho de Canaãá, tendo feito para si chifres de ferro, disse: �Assim fala o Senhor: Com estes chifres derrotarás Aram até exterminá-lo�!� Todos os profetas profetizavam do mesmo modo, dizendo: �Sobe a Ramot-de-Guilead, e vencerás! O Senhor entregará a cidade nas mãos do rei�.
Outro dado importante é o fato de o destino de Acab já estar traçado no conselho divino. É lá
que é decretada a sua derrocada. O mesmo profeta diz: �Portanto, se o Senhor pôs um
espírito de mentira na boca de todos os teus profetas, é porque ele próprio decretou a tua
perda� (1 Reis 22,23). O conceito de as coisas terrenas serem determinadas nas regiões
celestes será amplamente utilizado pela literatura intertestamentária e pela do Novo
Testamento (exemplo: Efésios 1.3-6). Ao seu modo, as Escrituras do AT apresentam as coisas
sendo decididas e determinadas no ambiente celeste, fazendo com que o patamar de cima
seja superior ao debaixo.
201 cf. tb. Jó 1.6; 2.1.
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Georg Fohrer apresenta a seguinte explicação da concepção de uma corte celeste
tomando parte nas crenças veterotestamentárias202:
A noção de Yahweh como o Deus do céu está ligada àquela de figuras que pertencem ao mundo celestial (...). Na condição de grupo, elas fazem alusão ao adat el, �o conselho divino� (Salmo 82,1) (...). Originalmente, deuses estranhos ao javismo foram, pouco a pouco, dentro do javismo, tornando-se seres totalmente subordinados a Yahweh, constituindo parte de sua corte e de seus exércitos.
Segundo Christopher Rowland: �Assim, desde os inícios da religião israelita, a
habitação dos deuses e o conhecimento das discussões que acontecem nela, tiveram sua
parcela de atuação no desenvolvimento da religião israelita�203. Seja como for, a crença numa
corte celeste criaria as bases para a desenvoltura da compreensão religiosa de tempos
posteriores.
Listemos os caracteres angelomórficos que coletamos da exposição acima. Em
primeiro lugar, o Anjo do Senhor é paradigmático para as descrições de seres angélicos nas
Escrituras e na literatura do Judaísmo do Período do Segundo Templo. Mesmo que seja em
grau menor, o Anjo do Senhor é o referencial para o imaginário angelológico. Em segundo
lugar, o Anjo do Senhor é identificado com a própria pessoa de Yahweh, e ao mesmo tempo
distinto dele. Fazendo-o um prolongamento de sua personalidade, uma hipóstase divina.
Como figura hipostática, ainda que gloriosa, é por intermédio dele que Deus se revela
visualmente, como um ser humano. E apesar do temor que muitas vezes sucede aos seus
interlocutores, estes não sofrem dano físico algum ou a morte. Quanto ao temor, pode variar
de interlocutor para interlocutor. Pode acontecer que o destinatário da visão não seja capaz
de discernir a divindade do Anjo, como no caso de Gedeão e Hagar. Para outro, há uma
nítida necessidade de ser informado de sua sacralidade, como no caso do encontro do Anjo e
Josué. Nesses episódios elencados, o Anjo do Senhor assume visivelmente a figura de um
homem, o que provoca certa confusão nos interlocutores. Abraão tem familiaridade com o
Anjo e nada é dito de qualquer sentimento de temor. Abraão é um amigo de Deus. A
representação do Anjo do Senhor com traços humanos é uma acomodação da Divindade à
capacidade do ser humano de suportar a sua visão e contato. A natureza compósita do Anjo
do Senhor de anjo e homem coloca-o na intersecção que será idealizada posteriormente
fundamentando as expectativas de uma transformação celestial do justo. Em terceiro lugar, o
202 G. FOHRER, História da religião de Israel,, p. 210. 203 C. ROWLAND, Open heaven, p. 79.
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Anjo do Senhor pode se apresentar em fenômenos meteorológicos ou naturais, na coluna de
nuvem, na coluna de fogo, na chama da sarça ardente. Este imaginário que em outros
panteões é distribuído em diversas divindades, inicialmente atribuído ao Anjo do Senhor,
será atribuído aos anjos posteriormente. Em quarto lugar, o Anjo do Senhor é o detentor do
Nome Sagrado de Deus, o que representa a própria divindade no meio do povo. Esta
informação é muito importante para a função do sumo sacerdote, que o faz o equivalente do
mediador divino. Em quinto lugar, o Anjo do Senhor preside a Assembléia Divina. Esta
presidência do Anjo deixa campo aberto para sua identificação ora como um anjo específico,
ora como um ser humano angelomórfico.
Nosso próximo passo é vislumbrar o texto de Hebreus em seus próprios termos,
inventariar os indícios de angelomorfismos e depois buscar as tradições que os perfazem.
3.3. Configuração de Hebreus 1.1-4
A primeira parte do proêmio começa solenemente (Hb 1.1). De estilo elegante, comparável
ao hino do Evangelho de João 1.1-18, Hebreus, desde o início, mostra o seu caráter
laudatório. A respeito do gênero epidíctico, C. Perelman diz que �é o único gênero que,
imediatamente faz pensar na literatura, o único que poderíamos comparar com o libreto de
uma cantata�.204 Não se inicia com um vocativo, próprio das homilias dos padres
apostólicos,205 mas com três advérbios. Aliás, quanto ao vocativo típico �avdelfoi,.�, o
primeiro de quatro só aparecerá em 3.1 (cf. 3.12; 10.19; 13.22).206 Quanto ao seu final, o que
parece ser uma ampla opinião, as edições da GNT4 e NTG27 propõem que se delimite em
1.4.207 Difere disto Raymond E. Brown, que faz uma cesura em 1.3, porque estrutura o texto
tematicamente, apesar de entender que 1.1-4 formam uma unidade gramatical.208 Nossa
proposta de delimitação entende que 1.4 não pode ser desligado de 1.3 por ser uma oração
subordinada, percebe-se isto com mais clareza na estrutura.
204 Chaïm PERELMAN/Lucie OLBRECHTS-TYTECA, Tratado da argumentação, p. 57. 205 Ver, por exemplo, os sermões de Leão Magno, in: Patrística, vol. 6. 206 Paulo o emprega bastante e a Epístola de Tiago pode ser um demarcador das perícopes (ex.: Tiago 1,2.16; 2,1.14). 207 Segue esta proposta entre outros: Barnabas LINDARS, The Theology of the Letter to the Hebrews, p. 29; William L. LANE, Hebrews, p. 3. 208 An Introduction to the New Testament, p. 684.
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O tema da �Mediação� perfaz todo o proêmio (1.1-4). No entanto, esse tema é
subjacente ao da �Filiação Divina�, o fator organizador deste pequeno bloco literário.209 Aí
vemos a comparação entre os profetas e o Filho (1.1), (filho) herdeiro (1.2b), agente pré-
existente e sustentador da criação (1.2c, 1.3b), imagem perfeita de Deus (1.3a), vice-regente
(função sacerdotal e real; 1.3de) e superior aos anjos e detentor de um nome inefável (1.4).
3.3.1. O Filho, o mensageiro dos últimos dias (Hebreus 1.1-2b)
Muitas vezes e de muitas maneiras, havendo Deus falado, antigamente, aos Pais mediante os profetas; neste final dos tempos, falou-nos mediante (o) Filho... (Hb 1.1-2b)
A primeira atividade mediadora do Filho é de portador da Palavra de Deus, que se dá na
esfera terrena dos ouvintes. �Deus falou� mediante visões, sonhos, símbolos, urim thummim,
anjos, eventos naturais, êxtases, a coluna de nuvem ou fogo, e ocasionalmente face a face.210
No entanto, o v. 1 ao registrar a mediação dos profetas infunde a continuidade das tradições
de Israel. Esta continuidade visa legitimar a identidade de seu auditório, seja este formado
de judeus cristãos ou de gentios cristãos. Se formado só destes, o autor transfere-lhes as
tradições de Israel, dando-lhes uma nova identidade. Assim, as constantes citações do
Antigo Testamento, as referências às narrativas históricas e as atualizações apropriadas às
parêneses são estratégicas desse ponto de vista. Supondo que parte de sua audiência seja de
judeus cristãos (ou só destes), o v. 1 alinhavado ao v. 2 procura persuadi-los de que não há
rompimento das antigas tradições, mas completude, cumprimento (cf. Hb 11). Também para
isto serve o arcabouço escriturístico usado pelo autor.
Uma comparação entre Hb 1.1 e 1.2b ajuda-nos a captar melhor o artifício usado pelo
autor para salientar a superioridade do Filho diante dos profetas:211
209 W. R. G. LOADER, The apocaliptic model of sonship, JBL 97, p. 543. 210 George W. BUCHANAN, To the Hebrews, p. 3. 211 Os advérbios modificadores do particípio lalh,saj enfatizam a quantidade (polumerw/j �Muitas vezes�), variedade (polutro,pwj �de muitas maneiras�), e o tempo (pa,lai �antigamente�). Por sua vez, os substantivos complementam a ação verbal com dativo, ou seja, a quem (toi/j patra,sin �aos pais�); e o dativo instrumental preposicionado, por quem (evn toi/j profh,taij �pelos profetas�). Sujeito do ato de falar é Deus (o` qeo,j). Deus falou, esta obviedade resultante, no entanto, funciona como uma confissão de fé e ao mesmo tempo sugere continuidade com a tradição de povo eleito. Por um lado, mais adiante, dirá que a palavra de Deus é afiada e cortante, capaz de proezas cirúrgicas (4,12 �divide alma e espírito, juntas e medulas�). Por outro lado, ao longo de todo o discurso citará trechos da tradição da palavra de Deus. Tem por assentado sua plena autoridade. O autor não quer somente o deleite de seus ouvintes para um bom discurso, mas apresenta bem cedo a gravidade da mensagem. No entanto, deixa claro que a palavra divina foi expressa anteriormente e com parcimônia. O advérbio pa,lai dá impressão de tempos antanho ao modificar o particípio aoristo. Trata-se de um falar pulverizado e acabado (note a ação pontual do aoristo). Para fazer frente a isso, compõe o contraste: �neste final
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v. 1 v. 2b Muitas vezes, de muitas maneiras, Neste final dos tempos
Antigamente,
Havendo Deus falado (Deus) falou
Aos pais212 a nós
Mediante os profetas mediante o Filho
A declaração �No fim destes dias Deus falou mediante o Filho� pode sugerir o tema
do Profeta Escatológico. Sua base é a Dt 18.18: �Suscitar-lhes-ei um profeta do meio de seus
irmãos, semelhante a ti, em cuja boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará em meu
nome tudo o que eu ordenar.� Devemos atentar à expressão semelhante a ti, ou seja,
semelhante a Moisés. Em 1 Macabeus 4.46 e em 14.41 menciona-se a espera de um profeta
fiel. Em Sirácida 48.10s, a idéia centra-se em Elias. É uma tradição aparente nos Evangelhos.213
Em IV Esdras 6.26 lemos: �E eles verão os homens que foram tomados, que desde o seu
nascimento não provaram a morte...�, provavelmente alusão a Elias (ou a Enoc) e, em certa
medida, a Moisés.
3.3.2. Papel angelomórfico dos profetas:
Os profetas são os anjos terrenos de Deus (cf. 2 Cr 36.15s; Is 44.26). Um detalhe não se deve
deixar nos escapar, trata-se da evidência de que profetas puderam contemplar uma reunião
da Assembléia Divina. Claramente Micaías em 1 Rs 22.13-28, Isaías em Is 6.1-13, e Ezequiel
em Ez 1; 10. Nestes três textos um mesmo esquema de motivos constituintes pode ser visto:214
(1) Yahweh como rei, sentado sobre um trono, (2) criaturas celestes ao seu redor, (3) o profeta
viu �Deus�, (4) o profeta ouviu (um debate; uma interpelação), e (5) um tempo determinado.
Outros profetas como Amós (Am 9.1s), Jeremias (Jr 26.2,4) e o profeta anônimo do Dêutero-
dos tempos nos falou pelo filho� (v. 2). É um falar escatológico, definitivo. O verbo evlalh,sen é um aoristo constativo e contempla na sua totalidade no passado sem nenhuma referência ao seu início ou fim. 212 cf. Hebreus 11. 213 As duas figuras �Moisés e Elias� são apresentadas nos relatos da transfiguração (Mc 9.2-8 e paralelos), sendo que a voz proveniente da nuvem enfatiza a superioridade a respeito de Jesus: �... a ele ouvi� (Mc 9.7). Raymond E. BROWN afirma: �Os Samaritanos não esperavam um Messias no sentido de um rei ungido da casa Davídica. Esperavam um Taheb, pelo que aparenta o Profeta como Moisés (...). Um mestre da Lei, mesmo que apesar da designação judaica mais familiar ser colocada na boca da mulher. The Gospel according to John I-XI, p.172. 214 The prophets and the council of Yahweh, in: JBL, p. 281-283.
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Isaías (Is 40.1,6) não apresentam todos os motivos listados acima, mas (3) o profeta viu
�Deus�; (4) o profeta ouviu; (5) um tempo determinado, o que indica o acesso à Assembléia
Divina. Conforme Edwin Kingsbury:215
Uma experiência no conselho de Yahweh poderia ter dado o surgimento a todos os �Assim disse Yahweh� dos profetas. Talvez essa experiência se repetisse. No mínimo, os profetas reivindicavam partilhar uma experiência no conselho de Yahweh; reivindicavam ouvi-lo decidir os destinos, reivindicavam que retransmitiam o que ouviram dele dizer.
Deste modo, os profetas podiam ouvir e mesmo serem colocados no papel de mensageiros
da parte de Yahweh e serem igualados a algum enviado celestial (1 Rs 22.21). O acesso ao
conselho celeste faria do profeta um ser humano privilegiado que na qualidade de
mensageiro apresentava de algum modo traços angelomórficos (cf. Ml 3.1). Corrobora com
isto o texto de 2 Cr 36.15s em que os profetas são equivalentes dos anjos diante de Yahweh:216
Yahweh, Deus de seus pais, enviou-lhes sem cessar mensageiros (mal´äkäyw), pois queria poupar seu povo e sua Habitação. Mas eles zombavam dos enviados de Deus (Bümal´ákê hä´élöhîm), desprezavam suas palavras, caçoavam dos profetas (Binbì´äyw), até que a ira de Yahweh contra o povo chegou a tal ponto que já não havia mais remédio.
Os profetas como mediadores seriam assim, a contraparte terrestre dos anjos nos céus,
mensageiros de Yahweh a serviço do seu povo (cf. Hb 1.13). Portanto, Hb 1.1 ao mencionar a
palavra anunciada pelos profetas, parte de uma instituição iniciada com Moisés (Ex 3.14s) e
que é superada pelo envio do Filho de Deus (avpo,stoloj: Hb 3.1). Mas vale recordar que os
profetas apresentavam em certa medida caracteres angelomórficos, e poderiam como Moisés,
contemplar a Glória de Deus e por vezes, participar do Conselho Divino e refletir o
resplendor da divindade, como Moisés.
O próximo atributo que veremos do Filho é o de herdeiro de todas as coisas.
3.3.3. O Filho de Deus, herdeiro de todas as coisas (Hebreus 1.2c)
O substantivo �herdeiro� (klhrono,moj) e seus derivados, em suas 47 ocorrências no Novo
Testamento, 09 estão em Hebreus.217 Mas é somente em Hb 1.2 que �herdeiro� se refere a
Jesus enquanto que as outras vezes o termo (ou derivados) é usado para expressar uma
215 Ibid., p. 286. 216 Charles A. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 161. 217 Klhronome,w (1,4.14; 6,12; 12,17); klhronomi,a (9,15; 11,8); klhrono,moj (1,2; 6,17; 11,7).
90
herança prometida; para o Filho, como o mais velho de entre os muitos irmãos (Hb 2.10),218 a
herança já está em vigor.
No Antigo Testamento, �herdeiro� se refere à possessão permanente da terra
prometida a Abraão (Ex 32.13; Nm 26.52-56; cf. Hb 6.17; 11.8). Durante o período do Exílio a
promessa é expandida para a retomada da terra (Ez 47.14; Dt 30.5). Expande-se mais ainda e
no período pós-exílico se torna escatológica (Dn 12.13), possuída somente pelos justos (Sl
37.9) como lemos em 1 Enoc 39.7-8:
Vi sua morada sob a égide do Senhor dos espíritos, e todos os justos e escolhidos resplandeciam diante dele como luz de fogo, e suas bocas estavam cheias de bênção e seus lábios louvavam o nome do Senhor dos espíritos. A justiça diante dele não se esgotava, nem a verdade cessava junto dele. Ali eu quis morar, e desejou meu espírito tal mansão, onde já tinha parte, pois assim me foi designada ante o Senhor dos espíritos.
Hebreus adota esse significado e se refere a ele como �herança prometida�, eterna é a
salvação como herança (6.12; 9.15; 1.14). O Filho, contudo, é quem possibilita a posse de tal
herança dos crentes (5.9). Mas em que sentido, então, ele é herdeiro? Hebreus 1.3 diz que o
Filho é herdeiro �de todas as coisas� (pa,ntwn). Texto que guarda semelhanças com Hb 1.2b é
o de Cl 1.15. Mas o termo é outro, �primogênito� como em Hb 1.6 (prwto,tokoj; no qual lemos
�prwto,tokoj pa,shj kti,sewj�). Assim, em Hb 1.2b o Filho está sobre todas as coisas criadas.
Em Dn 7.13s, o Filho do Homem se apresenta ao Ancião e recebe a herança, ou seja,
aquilo que é formalmente do domínio de Deus:
Ele adiantou-se até ao Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgado o poder, a honra e o reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu império é império eterno que jamais passará, e seu reino jamais será destruído.219
Na qualidade de Filho gerado de Deus (1.5), Jesus também é o Primogênito. A Oração
de José é muito evidente a respeito do Primogênito como uma figura angelomórfica:
Eu, Jacó, que fala contigo, também sou Israel, um anjo de Deus e um espírito regente. Abraão e Isaac foram criados antes de qualquer obra. Mas, eu, Jacó, a quem os homens chamam Jacó, mas cujo nome é Israel, sou aquele a quem Deus chamou Israel que significa, um homem que vê a Deus, pois eu sou o primogênito de todas coisas viventes às quais Deus dá vida. E quando eu estava subindo da Síria Mesopotâmia, Uriel, o anjo de Deus, chegou e disse que �Eu [Jacó-Israel] havia descido à terra e que havia tabernaculado entre os homens e que eu havia sido chamado pelo nome de Jacó.� Ele me enviou e lutou comigo e
218 Em Gn 32.5, 18-22, Jacó chama a Esaú, o irmão mais velho de �Senhor� (´dönî lü`ëSäw); cf. G. W. BUCHANAN, To the Hebrews, p. 5. 219 Mais a frente verificaremos os traços angelomórficos contidos nesta passagem.
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contendeu comigo dizendo que seu nome e o nome que está diante de todo anjo devia estar acima do meu. Eu lhe perguntei seu nome e de qual posição ele se encontrava entre os filhos de Deus. �Não és tu Uriel, o oitavo depois de mim? E eu, Israel, o arcanjo do poder de Deus e o principal capitão de entre os filhos de Deus. Não sou Israel, o primeiro ministro diante da face de Deus?� E eu fui chamado por meu Deus pelo nome inextinguível.
Os atributos de Israel (Jacó) descritos acima são impressionantes: �anjo de Deus�, �espírito
regente�, �homem que vê a Deus�, �primogênito�220 da criação, que desceu ``a terra�, �o
arcanjo do poder de Deus�,�primeiro no ranking angélico�, �principal capitão� angélico, �o
primeiro ministro diante da face de Deus�, e �portador do nome� de Deus. O texto expressa
que Jacó é a encarnação do anjo Israel. Baseado no episódio da luta de Jacó com o anjo (Gn
32.24-31), desenvolve-se uma querela entre Israel e o anjo Uriel a respeito da posição no rank
angelical.221 O nome Israel é portado pela natureza angélica, já o nome Jacó é portado pela
humana.222
Filo em De Confusione Linguarum 146 também escreve a respeito do �Primogênito� em
termos angelomórficos:
E mesmo se não houvesse alguém que fosse digno de ser chamado filho de Deus, todavia, pelo seu labor veemente deve ser adornado de acordo com seu logos primogênito, o mais velho de seus anjos, como o grande arcanjo de muitos nomes; pois ele é chamado, a autoridade, e o nome de Deus, e o Logos, e o homem conforme a imagem de Deus, e aquele que vê Israel. 223
Filo entrelaça expressões angelomórficas uma após outra: �Filho de Deus�, �Primogênito�,
�Presbítero Angélico�, �Grande Arcanjo�, �Nome de Deus�, �Logos�, �Imagem de Deus�,
�Aquele que vê Israel�. Entre outras expressões, digno de nota é �Primogênito� (prwto,gonoj)
que se situa dentro do mesmo campo de significado de Hb 1.6 (prwtotoko,j).
Jarl Fossum opina que não há relação de prwtotoko,j ao de Cl 1.15, conseqüentemente
também de Hb 1.6, com o prwto,gonoj de Filo.224 Mas deve-se levar em conta que Filo conhecia
bem a LXX, e sua base é a mesma para o autor da Oração de José, isto é, Ex 4.22, em que se lê:
�Porém, tu dirás a Faraó: Assim diz o Senhor: Meu filho primogênito é Israel� (su. de. evrei/j
tw/| Faraw ta,de le,gei ku,rioj ui`o.j prwto,toko,j mou Israhl). Portanto, se Filo escolhe prwto,gonoj
220 Em 4 Esdras 6.58 a nação de Israel é o primogênito. 221 J. Z. SMITH, Prayer of Joseph, in: OTP, v. 2, p. 699. 222 Ibid., p. 701. 223 The Works of Philo, trad. C. D. YONGE, p. 247. 224 The image of the invisible God, p. 25.
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ao invés de prwtotoko,j, não se deve à razão de falar de outra idéia distinta de Hb 1.6, mas
talvez por uma questão de estilo.
O autor também afirma a participação do Filho de Deus na Criação, isto é, seu papel
demiúrgico.
3.3.4. Papel demiúrgico do Filho (Hb 1.3c)
O autor de Hebreus declara em Hb 1.3 que o Filho (Jesus) possui o papel de mediador da
Criação e que sua palavra é sustentadora do universo (cf. Hb 11.3; Sl 33.4-7). Ao fazer isto,
enfatiza seu aspecto divino e pré-existente. Sua assertiva encontra fundamentação na
Sabedoria como hipóstase divina.
3.3.4.1. A Sabedoria, hipóstase de Deus
A declaração de o Filho como mediador da criação nos remete aos textos da �sabedoria
hipostatizada�. Em textos como os de Provérbios 8.22-31; Sirácida 1.1; 24.3, 9, a Sabedoria se
se apresenta como extensão de Deus. A ela é atribuída função ativa na Criação. Visto que a
literatura de Sabedoria ultrapassa os limites geográficos de Israel (já era cultivada na
Mesopotâmia e Egito no terceiro milênio A.E.C.)225, ao personificá-la com papel criador,
atribui-se a Yahweh o senhorio das nações. O profeta Jeremias, quando enviado ao rei de
Moabe, Amom, Tiro e Sidom, usando correias e canzis, pronuncia a palavra de que deveriam
se submeter ao rei Nabucodonosor, porque Yahweh seu criador assim decretou:
Eu fiz a terra, o homem e os animais que estão sobre a face da terra, com o meu grande poder e com o meu braço estendido, e os dou àquele a quem for justo. Agora, eu entregarei todas estas terras ao poder de Nabucodonosor, rei da Babilônia, meu servo; e também lhe dei os animais do campo para que o sirvam. Todas as nações o servirão a ele, a seu filho e o filho de seu filho, até que também chegue a vez da sua própria terra, quando muitas nações e grandes reis o fizerem seu escravo (Jr 27.5-7).
Este texto expressa o princípio norteador que capacita o profeta a dirigir a palavra a nações
estrangeiras. Não sobre a base da aliança com Israel, mas na apresentação de Yahweh como
criador da terra. Por sua vez, a Sabedoria, que tem seus inícios na interlocução com as(Hb
3.1-6) nações estrangeiras (por ex.: Egito), passa a ser hipóstase do Deus de Israel. Conforme
se expressa William Holladay:
225 Anthony R. CERESKO, A Sabedoria no Antigo Testamento, p. 14; cf. tb. William McKANE, Proverbs, p. 351.
93
Criação, conseqüentemente, é uma categoria teológica que pode cruzar fronteiras. Nós podemos ligar a sabedoria com a criação e com um alcance internacional: se a sabedoria era a busca de como o mundo de Deus funciona, então haverá fortes laços entre sabedoria e criação; e a sabedoria era a categoria de material religioso no Antigo Testamento mais aberta à partilha internacional.226
Além disso, nessa partilha internacional está o aspecto apologético, ou seja, defender a
soberania de Yahweh sobre o cosmos. Em tempo, pede a nossa atenção o fato de a
hipostatização da Sabedoria ser enunciada no período pós-exílico (Is 51.9; Pr 1-9; Sirácida 24;
Baruc 3.9-4.4; Sabedoria 7-9), que deu expressão a pré-existência.
3.3.4.2. A Sabedoria pré-existente
Começamos com Provérbios 8.22-31. Podemos estruturá-lo do seguinte modo:
A. A preeminência da Sabedoria (vv. 22-23)
B. Sua antiguidade sobre a criação (vv. 24-26)
B�. Sua participação na criação (vv. 27-30a)
A�. A intimidade da Sabedoria com o Criador (vv. 30b-31)
Os temas da estrutura são característicos de sua hipostatização: Preeminência, antiguidade,
participação e intimidade. O v. 22 já fora motivo de debates acirrados na Grande Igreja.
Jerônimo traduz �O Senhor criou-me� (ku,rioj e;ktise,n me) por �O Senhor adquiriu-me�
(Dominus possedit me), evitando assim o desconforto resultante quando atribuída a Cristo
como criatura de Deus. Com efeito, a Sabedoria foi criada, adquirida ou gerada? Ainda que
pareça ser criada, ela possui uma pré-existência diante da criação, e mesmo esta foi
organizada e cujo funcionamento é efetuado pela Sabedoria.227 Na opinião de Von Rad:
No tempo de Provérbios 3.19 e 8.22ss, e mesmo no de Jesus ben Sirac, o assunto ainda poderia ser abordado de várias maneiras e com a ajuda de diferentes conceitos, e em cada uma dessas expressões ainda seria um aventura corajosa. Assim, até mesmo o conceito de Sabedoria como uma pessoa, e de que tomá-la como um �princípio,� lado a lado. Contudo, parece que se as coisas mais profundas que Israel disse acerca da Criação de Deus foram dadas em Pr 8.22ss � o mundo e o homem são alegremente abarcados pela Sabedoria. Talvez possamos captar algum significado se dissermos que por sua grandiosidade e sabedoria de seu design de toda a Criação, transcende a si mesma apontando na direção de Deus.228
226 Long ago God spoke, p. 234. 227 Raymond C. VAN LEEUWEN, The book of Proverbs, in: NIB, vol. 5, p. 92. 228 Old Testament theology, vol. 1, p. 448.
94
O autor de Provérbios 8.22-31 enaltece a Sabedoria ao afirmar a sua pré-existência em
relação a Criação. O tradutor do texto grego refere-se à antiguidade da Sabedoria mediante
uma série de �antes de�:
Antes da eternidade (pro. tou/ aivw/noj) me estabeleceu no princípio, antes da terra existir (pro. tou/ th.n gh/n poih/sai) e antes dos abismos existirem (pro. tou/ ta.j avbu,ssouj poih/sai), antes de brotarem os mananciais de água (pro. tou/ proelqei/n ta.j phga.j tw/n u`da,twn), antes da montanha ser assentada (pro. tou/ o;rh e`drasqh/nai), e antes de todas as colinas, eu fui gerada (pro. de. pa,ntwn bounw/n genna/| me).
Destarte, a discussão de Provérbios 8.22 deve levar em conta o dado de que a Sabedoria �foi
gerada� antes de toda a Criação (v. 25). Sua presença se dá em cada ato criativo de Deus (v.
27-29); era seu �mestre-de-obras� (v. 30a), nada é feito sem sua participação. A perícope
termina referindo-se à intimidade da Sabedoria com Deus, que é descrita como um pai
orgulhoso de seu rebento (v. 30b). Ela brinca em sua presença e na Criação alegrando os
homens (v. 30-31) além participar na Assembléia divina e no Templo.
3.3.4.3. A Sabedoria na Assembléia Divina e no Templo
Em Sirácida 24, a Sabedoria tece o seu próprio elogio. Ao se descrever, apresenta-se como
participante da assembléia divina e ao mesmo tempo em que se destaca ao fazer seu
relatório: �Na assembléia do Altíssimo abre a boca, ela se exalta diante do seu poder�
(Sirácida 24.2). Descreve-se como emanação de Deus (24.3); é pré-existente e eterna (24.9).
Difícil é não pensar na glória (Kübôd) que sai do templo e pousa sobre os exilados (Ez 10.18-
22). Só que em Sirácida, a Sabedoria não vai para o estrangeiro, mas pousa sobre o templo em
Jerusalém (24.11). Ali faz as vezes de sacerdote: �Na Tenda santa, em sua presença, oficiei
(evn skhnh/| a`gi,a| evnw,pion auvtou/ evleitou,rghsa), deste modo, estabeleci-me em Sião�
(24.10). Cumpre funções de sacerdote e regente: �Armei a minha tenda nas alturas e meu
trono era coluna de nuvens� (24.4), e exerce seu domínio em Jerusalém (24.12). Obediente,
recebe Israel por herança dada pelo próprio Criador (24.8,12). Sua permanência sobre
Jerusalém é comparada a uma árvore bem enraizada; recorre-se às plantas dos melhores
lugares para compará-la: cedro do Líbano, cipreste do Hermon, palmeira de Engadi, roseira
de Jericó, oliveira da planície, canela, plátano, mirra (24.12-17).
Trataremos a seguir do atributo angelomórfico da Sabedoria.
95
3.3.4.4. Sabedoria angelomórfica
Com o intuito de salientar a procedência e o caráter divinos da Sabedoria, o autor de
Sabedoria de Salomão lança mão do angelomorfismo:
Tudo conheço, oculto ou manifesto, pois a Sabedoria, artífice do mundo, mo ensinou! (Sabedoria 7.21s) A Sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra. Ela é eflúvio do poder de Deus, uma emanação puríssima da glória do Onipotente (avpo,rroia th/j tou/ pantokra,toroj do,xhj), pelo que nada de impuro nela se introduz. Ela é reflexo da luz eterna (avpau,gasma ga,r evstin fwto.j avi?di,ou), espelho nítido da atividade de Deus e imagem de sua bondade (eivkw.n th/j avgaqo,thtoj auvtou/) (...). Ela é mais bela que o sol, supera todas as constelações: comparada à luz do dia, sai ganhando, pois a luz cede lugar à noite ao passo que sobre a Sabedoria não prevalece o mal. Ela se estende com vigor de um extremo ao outro do mundo e governa o universo com bondade. Ela é iniciada na ciência de Deus, ela é quem decide o que ele faz (Sabedoria 7.24-8.1,4). Foi ela que protegeu o primeiro modelado, pai do mundo, que fora criado em solidão; levantou-o de sua queda e lhe deu o poder de tudo dominar (Sabedoria 10.1). Aos santos deu a paga de suas penas, guiou-os por um caminho maravilhoso: de dia, serviu-lhes de sombra e à noite, de luz de astros (Sabedoria 10.17).
Os textos grifados indicam sua atividade demiúrgica, de regência, de reflexo da imagem de
Deus, a emanação da glória e seu poder de decisão. As ações da Sabedoria são as de Deus. A
sombra da nuvem e a luz da coluna de fogo (Ex 13.21-22). Além disso, a Sabedoria atribui a si
papel salvífico (Sabedoria 9.18).
De Sabedoria 11 até o final, o autor enuncia as obras de Deus, a Sabedoria deixa de ser
seu foco. Mas importa frisar que ao apresentar as obras de Deus na história de seu povo, a
Sabedoria é sua agente, lugar-tenente tanto na Criação como no Êxodo dos hebreus, ao
capacitar Moisés com sua presença (Sabedoria 11.1-3).
Em suma, a reflexão contínua sobre a Sabedoria faria dela uma hipostatização
personificada de Deus, descrita com atributos angelomórficos.
A seguir, cuidaremos da temática da efulgência gloriosa do Filho de Deus.
3.3.5. O Filho, efulgência da Glória divina (Hebreus 1.3a)
O termo �Glória� como atributo divino se conecta com a declaração de vice-regência do
Filho. Em Hb 1.3 lemos:
O qual sendo o resplendor da glória (v. 3a) o]j w'n avpau,gasma th/j do,xhj Sentou-se à direita da Majestade nas alturas (v. 3d) evka,qisen evn dexia/| th/j megalwsu,nhj evn u`yhloi/j
96
Parte do v. 3a será visto com mais detalhes mais à frente. Por enquanto, nos deteremos no
termo �Glória� (do,xa) e sua conexão com o trono celeste.
3.3.5.1. Teofania e Glória Divina
O termo hebraico kabhod (glória) é fortemente associado à literatura de caráter cultual, muito
ligada ao templo de Jerusalém.229 No entanto, já no deserto ela se faz presente sobre o
tabernáculo (Ex 40.34s). E também na inauguração do templo (1 Rs 8.10s). G. von Rad
observa:
Se compararmos estes relatos de aparição da kübôd de Yahweh na dedicação do templo de Salomão, surpreender-nos-emos pela concepção muito mais concreta da que é encontrada em P. Por um lado lemos indefinidamente a respeito de uma nuvem impedindo o acesso ao templo, por outro, da clara distinção entre a nuvem envolvente e a kübôd resplandecente. No caso da última, a kübôd não é um fenômeno meteorológico, pois a nuvem cobre até certo ponto parte da kübôd. A kübôd é uma manifestação da glória de Deus.230
Pleno de santidade e glória, Yahweh se manifesta ao ser humano na teofania. Walter
Brueggemann destaca duas teofanias, uma pública e outra pessoal.231 Mais uma vez, aqui
falaremos sobre a primeira, quanto à segunda, nos será útil mais adiante.
No Sinai, a teofania (Ex 19.9-25 e culminação em Ex 24.9-18) se apresenta como
teofania imediata. O lugar escolhido é a montanha do Sinai (Ex 19.11). De fato, a montanha
carrega um profundo significado para a teofania, funciona como o eixo na cosmologia
tripartida da antiguidade. Localizada na terra, seu topo toca o céu e suas fundações alcançam
o submundo. É também a conexão entre as duas esferas de existência, a terrena (humana) e a
celeste (da divindade).232 Outras manifestações de Deus serão representadas tendo lugar
numa variedade de montanhas (Dt 33.2-5,26-29; Jz 5; Hc 3.3,7; Sl 68.8-9,18-19). Porém, a mais
marcante é a do Sinai a ponto de imprimir-se como referência: �Os montes vacilaram diante
do Senhor, e até o Sinai, diante do Senhor, Deus de Israel� (Jz 5.5; cf. Sl 68.8,14,17). Não é só o
lugar que é importante, mas a forma da manifestação.233 A escolha de Yahweh em Êx 19,9-25
é o da tempestade. A nuvem escura (v. 19) representando a carruagem de Deus (Ez 1,4), os
229 Horst Dietrich PREUSS, Old Testament theology, vol. 1, p. 167. 230 �Doxa� in: TDNT, v. 2, p. 240. 231 Theology of the Old Testament, p. 568. 232 Theodore HIEBERT, Theophany in the OT, ABD VI, p. 506. 233 Ibid., p. 508.
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trovões como a sua voz (vv. 16.19; cf. Sl 18,13) e os raios e flechas incandescentes (ausentes
no texto; cf. Hc 3,11; Sl 18,15). A explicação da escolha da tempestade para a teofania
residiria no elemento natural mais marcante à sociedade agrária canaanita.234 A fartura e a
calamidade resultam dela e nada pode contê-la.
3.3.5..2. A Glória e a mediação
Tal manifestação da Glória de Yahweh requer restrições necessárias para salvaguardar a
integridade das pessoas (Êx 19.10-15). A proximidade é liberada apenas para Moisés (Êx
19.20) e Arão (Ex 19.24). Quando o monte é envolvido em nuvens ao clangor de trombetas,
fogo, fumaça e tremor, trovões e relâmpagos, tudo ao mesmo tempo (Êx 19.16-19), o povo no
sopé fica aterrorizado (Êx 19.16-17). O próprio autor de Hebreus faz menção da plasticidade
terrificante dessa teofania, destacando o pavor de Moisés (Hb 12.18-21). O sentimento de
temor já fora visto em outros lugares (cf. Gn 28.10ss; Jz 5), mas no monte é contagioso, todo o
povo se atemoriza. Não suportando essa manifestação, o povo faz uma proposta a Moisés,
conseqüente dessa experiência:
Todo o povo presenciou os trovões, e os relâmpagos, e o clangor da trombeta, e o monte fumegante; e o povo, observando, se estremeceu e ficou de longe. Disseram a Moisés: Fala-nos tu, e te ouviremos; porém não fale Deus conosco, para que não morramos (Êx 20.18-19).
Oficialmente, surge aí a figura do mediador235 na história do relacionamento do povo de
Israel com Deus.236 Uma necessidade sentida pela comunidade. Desta forma, Israel consegue
combinar a incomensurabilidade de Deus e a sua mutualidade com os seres humanos.237
Pelos mediadores, Deus se faz próximo, se faz disponível. O mediador representa os homens
diante de Deus e ao mesmo tempo Deus diante daqueles. E assim uma série de mediadores
234 Theodore HIEBERT, Theophany in the OT, ABD VI, p. 506. 235 Outros mediadores existiram antes disso (Noé, Abraão, Isaque, Jacó), mas aqui o momento é decisivo, Yahweh só se revelará por mediadores. 236 É uma certeza das tradições de Israel: Deus deseja a mutualidade. Mas tal mutualidade esbarra num inconveniente, a própria alteridade de Deus. Ele é aquele que habita nos altos céus cheio de santidade. A respeito do paradoxo temor e confiança, Georg FOHRER diz: �Temor e confiança são experiências religiosas fundamentais para Israel. Em todo o Antigo Testamento, pode ser encontrada uma clara consciência da grande distância existente entre Deus e o homem. São contínuas as referências a isso (cf. Ez 28.2.9; Is 31.3; Os 11.8) quando se fala da experiência da pequenez, insignificância do homem diante do Deus poderosíssimo e santo. O temor e o medo também são expressos em usos e normas concretos, como, por exemplo, as medidas de precaução para ingressar no santuário, a fim de impedir que algo cultualmente impuro, profano e dessagrado seja levado à presença do Deus santo, e até mesmo a lei de ingresso no santuário, como no caso do Sl 15, exige pureza ético-religiosa dos visitantes do santuário.� In: História da religião de Israel, p. 229. 237 W. BRUEGGEMANN, Theology, p. 568.
98
aparecerá por todo o Antigo Testamento. Eles serão juízes, profetas, reis, sábios e sacerdotes,
homens, mulheres e anjos. Liga-se a isto, sua relação com o culto.
3.3.5.3. A Glória Divina e o Culto
Isaías 6.3 indica que a Glória (kübôd/do,xa) de Yahweh poderia ser experimentada no templo
de Jerusalém, de um modo que sugere o lado externo de sua santidade.238 Sua glória não
somente enche o céu, mas também a terra (Sl 57.6, 12; 66.1s). A linguagem da glória é
tipicamente cúltica jerusalemita, os Salmos são testemunhas disso (cf. Sl 24.7-10; 26.8; 57.6;
63.2ss; 66.2; 72.19; 96.3; 97.6; 102.16s; 138.5; 145.5).
No culto terreno, bem como no celeste (Sl 29), e também na natureza (Sl 19), a kübôd de Deus é experimentada e então louvada. Não é surpresa, portanto, que esta glória de Yahweh presente e ativa no culto não seja mencionada em livros como Gênesis, Amós, Oséias, Miquéias e Jeremias. Deuteronômio também é silente acerca da linguagem teológica da �glória de Yahweh�, que é original a Jerusalém e que é o sinal e instrumento de sua presença (Dt 5.24 é secundário), assim como a arca em Dt não é mais sinal da presença de Yahweh, mas se torna o receptáculo das tábuas da lei.239
A ausência do tema da Glória de Yahweh nesses textos aponta para a situação religiosa
crítica denunciada pelos profetas.240
Seguimos com o tema da Glória, enfatizando seu papel diante de Yahweh
entronizado.
3.3.5.4. A Glória e Yahweh angelomórfico entronizado
Exemplo de uma teofania pessoal se encontra em Ez 1. A Glória de Yahweh é descrita com
elementos da teofania do Sinai, ou seja vento tempestuoso, nuvem, fogo, claridade,
relâmpagos associados ao trono carruagem, e novos elementos são acrescentados (rodas
flamejantes, querubins resplandecentes, som de muitas águas, som de asas, arco-íris). Todo
este envoltório fascinante descreve Yahweh como rei. Citamos os Salmo 97.1-6 (LXX 96.1-6) e
99.1 (LXX 98.1) respectivamente, nos quais os motivos teofânicos se entrelaçam:
Yahweh é rei! Que a terra exulte, as ilhas numerosas fiquem alegres! Envolvem-no Trevas e Nuvens, Justiça e Direito sustentam seu trono. A frente dele avança o fogo, devorando seus adversários ao redor; seus relâmpagos iluminam o mundo e, vendo-os, a terra estremece. As montanhas se derretem como cera frente ao Senhor da terra inteira; o céu proclama sua justiça e os povos todos vêem sua glória.
238 Hans Dietrich PREUSS, Old Testament Theology, vol. 1, p. 167. 239 Ibid., p. 167. 240 Como o templo não existia no tempo dos patriarcas, a Glória não aparece como descrita nos textos que se preocupam com o culto.
99
Yahweh é rei: os povos estremecem! Ele se assenta em querubins: a terra se abala!
Trevas e nuvens, fogo devorador (cf. Hb 12.29), relâmpagos, abalos sísmicos, erupções
vulcânicas (cf. Hb 12.18-21) e a menção do trono sobre querubins perfazem uma
manifestação cheia de esplendor de sua glória. Yahweh é rei que executa a justiça. Assim,
Yahweh é rei e juiz. O resultado: os povos se abalam.
Na visão de Ezequiel, o mais notável é que há uma figura humana sentada no trono,
melhor, �uma forma com aparência humana� (Ez 1.26). A constatação do profeta é que �era
algo semelhante à Glória de Yahweh� (1.28). O profeta não resiste e cai com o rosto em terra.
Isto já fora sentido por Isaías por ocasião de sua vocação, quando tem a visão do Yahweh
sentado no trono (Is 6.4s). Em ambos percebemos indícios sacerdotais e reais. Isaías durante
o culto no templo no ano da morte do rei Uzias vê Yahweh entronizado, a casa cheia de
fumaça, o que faz lembrar a nuvem (Is 1.1,4); Ezequiel, sacerdote/profeta (Ez 1.3), vê Yahweh
cheio de glória sentado num trono que está anexado aos querubins (1.25). Na visão de
Ezequiel, o trono não é estático, ou seja, possui rodas para ligar-se ao evento que se dá em Ez
10.18-22; 11.22-25, a retirada da Glória para o leste, junto ao povo exilado. Mas um dia a
Glória de Yahweh deveria retornar ao templo (Ez 43.1-9).
Um olhar mais próximo dos textos de Ezequiel revela mais. Em Ez 1.27-28, após a
longa descrição das rodas, ele dá alguns detalhes do trono e da pessoa aí sentada (v. 26). A
aparência do trono se assemelha à pedra de safira; bem no alto e sobre ele uma forma de
aparência humana. Esta figura humana possui um envoltório de âmbar (LXX hvle,ktron), fogo,
brilho e arco-íris. Em suma, a figura é cheia de glória, �Glória de Yahweh�. O texto deixa
entender que se trata do próprio Yahweh (2.1-8). Se isto não é suficiente, o autor nos
esclarece em 3.22-27. Destacamos a estrutura 3.23-24 como proposta por Ronald M. Hals:
Presença da Glória de Yahweh v. 23
1. Ali estava a Glória de Yahweh
2. A mesma vista no rio Cobar
Reação: Prostrar-se com o rosto em terra
Capacitação para a comunicação v. 24
1. A entrada do Espírito
2. Ficar em pé
100
A Glória é hipóstase de Yahweh, daí a �fórmula do mensageiro� (Kò ´ämar ´ádönäy yhwh)
estar em paralelo com a fala do Espírito e da Glória (v. 27).
A descrição da figura humana sentada é mais uma vez feita em Ez 8.2s. A parte
inferior do corpo é de fogo, a superior é de âmbar. O profeta é suspenso por sua mão (cf.
2.9s). No v. 3s a Glória se mescla com Yahweh. Um �homem vestido de linho� descrito como
escriba que faz uma espécie de censo surge na visão de Ezequiel (v. 3ss). Depois lhe é
ordenado tomar das brasas de entre os querubins e espalhá-las pela cidade (10.1). O homem
vestido de linho entra no santuário, no meio da nuvem (10.3) e segue-se que o resplendor da
Glória de Yahweh (´et-nöºgah Kübôd yhwh/fe,ggouj th/j do,xhj kuri,ou) enche o templo (10.4). A
proximidade do homem vestido de linho frente à Glória de Yahweh é notável, no entanto, é
suficiente dizer que se trata de um anjo.241 À frente, no bloco dos cap. 40-48, de novo, um
homem vestido de linho, cujo aspecto era de bronze, conduz Ezequiel pelas dependências do
templo ao mesmo tempo em que mede e transmite ordenanças de Yahweh (40.3s). Walther
Eichrodt entende que essa figura seja um mensageiro celestial, um anjo.242
Portanto, no texto de Ezequiel, ora Yahweh se manifesta no trono envolto em glória,
ora é na própria Glória que Yahweh se encontra. Por vezes é distinto da Glória a ponto de
narrar a Ezequiel o que está para fazer enquanto aquela entra no templo. Quanto à figura do
homem vestido de linho, trata-se de um ser sobrenatural, que em Ez 40.3 é descrito apenas
como um anjo de Deus.
Voltamo-nos, a seguir, à próxima perícope, Hebreus 1.5-14.
3.4. Configuração de Hebreus 1.5-14
Quanto à delimitação de Hb 1.5-14, o texto é claro, trata-se do desenvolvimento do motivo da
superioridade do Filho sobre os anjos (1.4). Visto que o texto anterior constitui-se em
contexto próximo anterior bem delimitado, resta saber quais os elementos que caracterizam
esta perícope (1.5-14) como uma unidade.
Hb 1.5-14 exprime perguntas retóricas iniciais e finais:
De fato, a qual dos anjos disse Deus jamais (Ti,ni ga.r ei=pe,n pote tw/n avgge,lwn\): Tu és meu Filho, eu hoje te gerei? Ou ainda: Eu lhe serei pai, e ele me será Filho? (1.5)
241 Christopher ROWLAND, Open heaven, p. 96. 242 Ezekiel, pp. 130.541.554.
101
A qual dos anjos disse ele jamais (pro.j ti,na de. tw/n avgge,lwn ei;rhke,n pote\): Senta-te à minha direita, até que reduza teus inimigos a escabelo dos teus pés? Porventura, não são todos eles espíritos servidores, enviados ao serviço dos que devem herdar a Salvação? (1.13s)
Os dois textos formam um inclusio, uma moldura que dá o início e o término do enunciado
completo. Ainda Hb 1.5-14 é marcado pela cadeia de 07 citações-prova do Antigo
Testamento243 com intervenções do autor (�ou ainda�; �E ao introduzir o Filho no mundo,
diz novamente�; �A respeito dos anjos, porém, ele declara�, etc.) para costurá-las a fim de
fazer sentido em sua argumentação. A função da perícope é descrever como o Filho é
superior aos anjos.
Aqui podemos aventar que o autor teria em vista alguma doutrina angelológica que
situaria os anjos num patamar superior ao Filho, contrariando a Cristologia recebida.244 Mas
dado que, ao nosso ver como exposto no capítulo anterior, a Carta aos Hebreus não possui
qualquer tipo de argumentação do tipo polêmico, parece mais proveitoso ver a função de
anjos dentro de Hebreus como a contraparte celeste do âmbito político do Estado terrestre.
3.4.1. O Filho de Deus é superior aos anjos (Hebreus 1.14)
Os anjos em Hb 1.14 �são espíritos servidores� (eivsi.n leitourgika. pneu,mata), �ministros
enviados� (diakoni,an avpostello,mena) por Deus. No Judaísmo do Período do Segundo
Templo, o interesse em figuras angélicas cresceu grandemente. Enquanto que na literatura
bíblica canônica, como vimos, há poucas referências a nomes de anjos e suas atividades, e até
expressa uma certa relutância (cf. Dn 8-12; Gn 32.29), a literatura pseudepígrafa mostra
grande interesse por esse assunto. Tal interesse é atribuído à convicção crescente da
transcendência divina, fazendo aumentar, assim, o papel dos anjos como seres
intermediários entre Deus e o mundo.
Nessa literatura os anjos aparecem sob diversos designativos. São chamados de (a)
�filhos do céu� (1 Enoc 6,2; 13.8; 14.3), �Santos� (Jubileus 17.11; 31.14; 33.12; 1Enoc 1,9;
Testamento de Levi 3.3), (b) �Vigilantes� (Jubileus 4.15,22; 7.21; 8.3; 10.5; 2 Enoc 18.1,3; 35.2;
Testamento de Rúben 5.6; Testamento de Neftali 3.5), �os que não dormem� (1 Enoc 39.12s; 40.2),
(c) �espíritos� (Jubileus 15,31; 1 Enoc 15.4,6,8,10), �gloriosos� (2 Enoc 21.1,3). Esses
243 James MOFFATT, Hebrews, p. 9.; Harold W. ATTRIDGE, Hebrews, p. 50 diz: �Seguindo esta introdução elaborada, vem uma cadeia de sete citações escriturísticas, primariamente dos Salmos, construídas como declarações para ou a respeito do Filho.� 244 H. ATTRIDGE, Hebrews, p. 51.
102
designativos se relacionam com (a) sua contigüidade a Deus, (b) suas funções e (c) suas
propriedades. Nesta tríplice classificação não se pretende que um aspecto exclua outro, pois
os aspectos são interligados, mas simplesmente com objetivos didáticos.
O autor de Hebreus não desconhece as especulações acerca da hierarquia angelical, os
seus diferentes nomes e funções. Mas o que talvez possa parecer certo descaso para tais
figuras, não é mais que (1) amplificar o Cristo e sua filiação divina, o que é muito claro; (2)
evitar em se ocupar a respeito das gradações celestiais, como contraparte da Cidade-Estado
faz; (3) distinguir o papel dos anjos frente ao dos magistrados romanos: estes agem como
senhores, os anjos como servidores; (4) expor que os crentes não são inferiores aos seres
celestiais, coisa que sabiam na prática o que era viver assim no império romano, mas
assemelhados ao Filho de Deus que compartilhou de sua condição humana e eles
compartilharão de sua condição gloriosa, pois ele é vice-regente de Deus.
3.4.2. Vice-regência do Filho de Deus (Hebreus 1.3e)
O Filho �sentou-se nas alturas à direita da Majestade� (1.3e). Esta mesma confissão será feita
em 8.1: �O tema mais importante da nossa exposição é este: temos tal sacerdote que se
assentou à direita do trono da Majestade nos céus�. Mas deve-se observar que
�entronização�, �nome superior� são atribuídos ao Filho por ter realizado a purificação dos
pecados.
O Salmo 2.7 é um texto-prova bastante usado pelo Cristianismo das origens. Texto de
caráter messiânico descrevia anteriormente o significado da investidura real:
As palavras de investidura dirigidas ao rei de Jerusalém � consideradas fenomenologicamente � ficam entre a concepção do Egito e da Mesopotâmia. A acentuação da condição de que o rei tem de ser filho de Deus (cf. Sl 89.27s; 2 Sm 7.13,14; 1 Cr 28.6) mostra afinidade com o costume egípcio de aplicar ao rei este nome de filho de Deus, porém sem semelhança alguma, não obstante, enquanto idéia mítica de uma procriação física. Não, senão que o rei do A.T. chega a ser �filho de Deus� mediante a vocação e a prometida consagração. Neste aspecto, o processo de entronização em Jerusalém se parece ao ritual da Mesopotâmia (especialmente ao ritual sumérico). Porém se anexa um importante ponto de vista: a condição de filho, do rei de Jerusalém, se baseia num processo de adoção. Per adoptionem o soberano é declarado �filho de Deus� num ato jurídico de caráter sagrado.
103
De fato, se em sua função original o Salmo 2.7 declarava a adoção do rei como filho de Deus,
o Cristianismo dos padres apostólicos vê envolvido neste tipo de expressão cristológica, o
adocionismo.245
Nosso autor desenvolve sua Cristologia com esse texto para fundamentar a divindade
de Jesus e não somente o seu status. A fusão com 2 Sm 7.14: �Eu lhe serei pai, e ele me será filho�
se dá propositalmente, pois no texto anterior os verbos estão no presente (ei=) e no perfeito
do indicativo (gege,nnhka,) acompanhado de um enfático pronome pessoal. O que dá a idéia
de um ato contínuo resultante de um momento no passado, ou seja, o �hoje� de Deus. No
segundo texto, os verbos se encontram no futuro (evgw. e;somai - auvto.j e;stai), o que compõe
com o primeiro texto uma filiação eterna.
Porém, ainda mais extraordinário é a citação do Sl 45.7s (LXX 44.7s) em Hb 1.8s:
O teu trono, ó Deus (o` qro,noj sou o` qeo.j), é para os séculos dos séculos; o cetro da retidão é o cetro de sua realeza. Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade , por isso, ó Deus (o` qeo.j), te ungiu o teu Deus (o` qeo,j sou) com o óleo da alegria como a nenhum dos teus companheiros.
Por duas vezes, no Sl 45.7s, o rei é chamado de Deus (o` qeo.j/ ´élöhîm). Na terceira menção,
�o teu Deus� (o` qeo,j sou/ ´élöhÊkä) é referência ao Senhor. Propositadamente, o Salmo não
utiliza Yahweh para se referir a Deus, permitindo o significado de que o rei é de algum
modo elevado ao patamar dos anjos, acima do da humanidade.246 C. H. T. Fletcher-Louis
pede nossa atenção para os textos de 1 Sm 29.9; 2 Sm 14.17,20; 19.7; Is 9.5 (LXX); Zc 12.8, nos
quais o rei é comparado a um anjo.247
3.4.3. O Filho de Deus como detentor do Nome superior ao dos anjos
O Nome do Filho é então revelado em Hb 2.9: �Jesus�. Como em Mt 1.21, Lc 1.31, Jo 1.12,17;
20.31 o nome �Jesus� é enfatizado em Hebreus.248 �Não era um fato desconhecido do meio
245 M. SIMONETTI, Adocionistas, in: Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, p. 43 escreve:�Com este nome os estudiosos modernos indicam os monarquianos que faziam de Cristo um mero homem, adotado como Filho de Deus por seus méritos (o latim adoptiani é muito tardio). Teódoto de Bizâncio, chamado �o Curtidor�, difundiu esta doutrina em Roma, no fim do séc. II. Ele afirmava que Jesus for a um homem nascido da Virgem por vontade do Pai e tinha vivido como os outros homens, de modo mais piedoso, pelo que, no batismo do Jordão, a pomba desceu sobre ele para significar o espírito divino que ele recebera, sendo chamado pelo nome de Cristo superior. Só a partir desse momento Jesus Cristo começou a operar prodígios. Alguns adocionistas colocavam nesse momento a deificação de Jesus, outros, após a ressurreição. Eles fundamentavam escrituristicamente sua doutrina sobre passagens evangélicas, das quais se podia deduzir que Jesus era apenas um homem.� 246 John J. COLLINS, The Scepter and the Star, p. 23. 247 All the Glory of Adam, p. 9. 248 Cf. At 2.36,38; 3.20; 4.17; Rm 10.9; Fp 2.6-11; 1 Ts 1.9 etc.
104
ambiente cultural para se falar dos �nomes� de uma deidade como sinal de sua presença.�249
O tema do Nome superior ao dos anjos (1.4) tem sua matriz na revelação do Nome em Êxodo
23.20-23:250
Eis que vou enviar um anjo diante de ti para que te guarde pelo caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. Respeita a sua presença e observa a sua voz, e não lhe sejas rebelde, porque não perdoará a vossa transgressão, pois nele está o meu Nome (�ümî). Mas se escutares fielmente a sua voz e fizeres o que eu te disser, então serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários. O meu anjo irá adiante de ti, e te levará aos amorreus, aos heteus, aos ferezeus, aos cananeus, aos heveus e aos jebuseus, e eu os exterminarei.
O Nome (�üm) de Deus indica para própria presença de Deus. A presença do Anjo sobre
quem o nome de Deus repousa é o sinal de que Yahweh está no meio do seu povo, análogo à
coluna de nuvem (Ex 33.7-11). Em Ex 23.20ss, o anjo guia e guarda. Porque o nome de
Yahweh está sobre ele, obedecer-lhe é obedecer ao Senhor. E assim, o mensageiro pode
perdoar e reter pecados.
C. A. Gieschen nota que Jubileus, 36.7 e 1 Enoc, 69.14-21, 25 como evidência pré-cristã
da hipostatização do nome de Yahweh:251
E agora eu te farei jurar pelo grande juramento � porque há nenhum juramento maior que este, pelo glorioso e honrado e grande e esplendido e maravilhoso e poderoso nome que criou os céus e a terra e tudo mais � que tu o temas e o cultue. Jubileus, 36.7 Esta era a tarefa de Kasbeel, chefe do juramento, que o revelou aos santos quando morava no alto, na glória; seu nome era Beqa. Este disse a Miguel, o santo, que lhes ensinara o nome oculto para o pronunciassem em juramento, para tremessem diante deste nome e juramento os que haviam mostrado aos filhos dos homens tudo o que era oculto. Esta é a força deste juramento, pois é forte e poder, e pôs este juramento, Akae, na mão do santo Miguel. Estes são os segredos deste juramento... e são fortes em seu juramento... e o céu foi moldado antes de ser criado o mundo e até a eternidade nele. E por ele a terra se assentou sobre a água, e de montes ocultos chegaram águas formosas, desde a criação do mundo até a eternidade. Por este juramento foi criado o mar e se pôs o fundamento de areia para a hora de sua fúria, e não passará desde a criação até a eternidade. Neste juramento os abismos se firmaram e se elevaram e não se moveram de seu lugar desde a criação do mundo até a eternidade. Por este juramento, o sol e a lua completam sua órbita e não violam sua noma desde a (criação) do mundo até a eternidade (...). Todos eles confessam e louvam o Senhor dos Espíritos e elogiam e exaltam o nome do Senhor dos Espíritos pelos séculos. 1 Enoc 69.14-21, 24.
Atenção maior devemos dar ao texto de 1 Enoc 69.27, pois este conecta o Nome inefável como
o nome do Filho do Homem:
E eles bendisseram, glorificaram e exaltaram (o Senhor) por conta do fato de que o nome desse (Filho do) Homem lhes fora revelado. (...). Daí por diante nada que é corruptível será achado; porque o Filho do
249 H. D. PREUSS, Old Testament Theology, vol. 1, p. 170. 250 cf. Dt 12.11, 21; 14.23s; 16.2, 11; 26.2; Ne 1.9; Sl 74.7; Is 18.7; Jr 3.17; 7.10-14, 30. 251 Angelomorphic Christology, p. 75; Darrell D. HANNAH, Michael and Christ, p. 51.
105
Homem se manifestou e sentou-se sobre o trono de sua glória; e todo o mal desaparecerá de diante de sua face; ele irá e falará a esse Filho do Homem, e o fortalecerá diante do Senhor dos Espíritos.
O Nome inefável de Deus é revelado a Moisés em Ex 3.14-15:
Moisés disse a Deus (´élöhîm): �Quando eu for aos israelitas e disser: �O Deus de vossos pais (´élöhê
´ábôtêkem) me enviou até vós�; e me perguntarem: �Qual é o seu nome?�, que direi?� Disse Deus (´élöhîm) a Moisés: �Eu sou aquele que é� (´e|hyè ´á�er ´e|hyè). Disse mais: �Assim dirás aos israelitas: �EU SOU (´e|hyè ´á�er ´e|hyè) me enviou até vós.�� Disse Deus (´élöhîm) ainda a Moisés: �Assim dirás aos israelitas: �Yahweh (yhwh), o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó me enviou até vós (´élöhê ´ábötêkem ´élöhê ´abrähäm ´élöhê yicHäq wë´löhê ya`áqöb). É o meu nome para sempre, e é assim que me invocarão de geração de geração.��
Yahweh é substituído por ku,rioj na Septuaginta. No entanto, George Howard.252 nota que de
cinco fragmentos da Bíblia grega encontrados nas cavernas de Qumran, três em que aparece
o nome divino (4QLXXNum [=Nm 3.30-4.14]; 4QLXXLeva [Lv 26.2-16]; 4QLXXLevb
[fragmentos de Lv 2-5]), não se utiliza ku,rioj, mas IAW, o que se conclui que o �tetragrama
sagrado� não era traduzido por ku,rioj na LXX no I século.253 Isto também levanta a
possibilidade de que nas citações ao Antigo Testamento no Novo Testamento ocorra o
mesmo artifício ao se referir ao Nome sagrado.254 Por conta disso, podemos supor que o
nome �Jesus� (VIhsou/j) em Hb 2. 9 teria mais significado como o nome superior ao dos anjos
(1.4) do que �Filho�, além de que �Filho� não é nome e sim condição. Sendo esse o caso,
parece-nos sintomático que em Hb 11.30 não apareça o nome de Josué, mas negativamente
em Hb 4.8: �Pois se Josué lhes deu repouso� (eiv ga.r auvtou.j VIhsou/j kate,pausen). E o nome
de Josué é VIhsou/j, como o é na LXX .255 Em Hebraico percebe-se que as três primeiras letras
de Josué são as três primeiras de Yahweh (yhw), o que pode sugerir que a confissão cristã
entendia que o Nome superior ao dos anjos, seeria o próprio nome de Yahweh. Corrobora
para isso a opinião de Justino, de Roma, em seu diálogo com Trifão (113.1):
Eu digo o seguinte: Foi Moisés quem pôs o nome de Jesus àquele que antes se chamava Ausés, como já disse tantas vezes, e que foi enviado junto com Caleb para explorar a terra de Canaã. Tu, porém, não queres averiguar por que fez isso, não é dificuldade para ti, não te interessas em perguntar. Desse modo, Cristo permanece ignorado por ti. Lendo não entendes, e nem mesmo agora, ao ouvir que Jesus é o nosso Cristo, não consideras que não foi sem motivo e por acaso que lhe foi dado esse nome.
252 George HOWARD, The tetragrama and the New Testament, in: JBL 9/1 (1977), p. 65. 253 Já nos textos em hebraico e aramaico onde aparece o nome de Deus, segue-se o padrão de transcrevê-lo �yhwh�. Cf. 1QpHab 10.6-7 (Hc 2.13: hálô´ hinnË më´ët yhwh(´ädönäy) cübä´ôt wüyî|g`û `ammîm Büdê-´ë� ûlü´ummîm
Büdê-rîq yì`äºpû) 254 Ibid., p. 82. 255 Por exemplo, Js 8.3: kai. avne,sth VIhsou/j.
106
Com efeito, o Nome inefável de Deus é posto sobre o Anjo do Senhor, protetor do povo e
hipóstase de Yahweh, e que o tema do nome perpassa também as tradições angelológicas
judaicas, pode muito bem ser o caso de que o nome sublime de Jesus seja uma alusão a Ex
23.21. Contudo, ainda permanece uma questão aberta.
A seguir, nos ocuparemos da próxima perícope, Hb 2.5-18.
3.5. A estruturação de Hebreus 2.5-18
O contexto próximo anterior de Hebreus 2.5-18, ou seja, Hb 2.1-4, é de caráter parenético,
com seu foco sobre os leitores.256 O autor aproveita da sua exposição anterior para fazer a
primeira aplicação em que recorda os inícios da comunidade (2.3s). Parte do menor para o
maior em forma de pergunta. A razão de ser é que a segunda revelação foi feita pelo próprio
Filho de Deus, mediador final e absoluto da salvação: �como escaparemos nós, se
negligenciarmos tão grande salvação?� (2.3). Ao mesmo tempo em que exorta, o texto
funciona como prospecto de 2.5-18, pois desenvolverá o tema da encarnação e do sofrimento
vicário de Jesus. O autor também usa ali o recurso do inclusio delimitando o tema e
posteriormente passa para o tema da superioridade Jesus sobre Moisés (Hb 3.1-6). Aqui
também faz uso de vários textos-prova extraídos do Antigo Testamento.
Vejamos o inclusio::
Não foi a anjos que ele sujeitou o mundo futuro (Ouv ga.r avgge,loij u`pe,taxen th.n oivkoume,nhn th.n me,llousan), de que falamos. (2.5) Pois não veio ele ocupar-se com anjos (ouv ga.r dh,pou avgge,lwn evpilamba,netai), mas sim com a descendência de Abraão. (2.18)
O temário em Hb 2.5-18 é a sujeição dos inimigos do Cristo, principalmente o diabo
(2.14). O âmbito universalista da salvação é iluminado pela menção da ascendência comum
de toda a humanidade (2.9,11) e da descendência de Abraão (2.16), um indício do caráter
misto de seu auditório. O texto, ainda que cite os seres angélicos, pouco se diz deles. O
argumento do autor segue na direção da vitória de Jesus sobre a morte (v. 14) e da
conseqüente libertação dos crentes (v. 15). No entanto, os anjos fazem parte necessária da sua
exposição. Apesar do interlúdio parenético (Hb 2.1-4), Hb 1.5-14 e 2.5-18 não estão
256 Nesta perícope, o autor menciona de passagem o título �Senhor�, sem revelar seu nome.
107
desligados entre si. Sem o interlúdio (2.1-4) percebemos que o autor não perde o fio da
meada. Somando-se ao tema dos anjos vêm os temas da filiação divina, da encarnação, da
entronização, da vitória sobre os inimigos, e da salvação.
3.6. Jesus, paradigma do homem primordial (Urmensch)
Hebreus 2.5-18 avança mais um degrau na exposição do Filho de Deus exaltado. A realização
do Primogênito no eón terreno é descrita em duas negativas, uma no início e outra no fim da
perícope:
Pois, não submeteu a anjos o mundo vindouro, a respeito do qual falamos. (2.5) Ouv ga.r avgge,loij u`pe,taxen th.n oivkoume,nhn th.n me,llousan( peri. h-j lalou/men. Pois, certamente não ocupa-se com anjos, mas ocupa-se com a descendência de Abraão. (2.16) ouv ga.r dh,pou avgge,lwn evpilamba,netai avlla. spe,rmatoj VAbraa.m evpilamba,netaiÅ
Hb 2.5 recorda o conteúdo de 1.5-14 em que é dito que tudo foi reduzido a escabelo de seus
pés (v. 13). Assim, o autor liga o Sl 8.6 (LXX: 8.7) ao Sl 110.1, como faz Ef 1.22. Em 1 Co 15.27
também encontramos a temática da �Cristologia Adâmica� (Sl 8.6) ligada a do �Governo de
Cristo� (Sl 110.1; cf. 1 Pe 3.22), o que se deve considerar como uma tradição cristã bem
estabelecida. Mas Hb 2.5-18 vai mais longe. Pois embora nem tudo ainda lhe esteja
submetido, o Filho de Deus já se encontra triunfante, ligando a encarnação à exaltação:
�coroado de honra e de glória� (v. 9).257 Trata-se do resultado de ter experimentado a morte
�em favor de todos os homens�. A exaltação do Filho se encontra no paradoxo da
humilhação (vv. 5-9). O Salmo 8 é o foco da primeira parte da perícope em questão (vv. 5-9).
Ao citar o Salmo, o autor usa de ambivalência em sua interpretação, levando o leitor/ouvinte
a pensar tanto na humanidade (ben-´ädäm), como em Jesus, o que dá espaço para refletir a
respeito do ser humano idealizado por Deus.
Que é o homem, para que dele te lembres? Ou o filho do homem (ûben-´ädäm), para que o visites? ti, evstin a;nqrwpoj o[ti mimnh,|skh| auvtou/ h' ui`o.j avnqrw,pou o[ti evpiske,pth| auvto,n hvla,ttwsaj auvto.n bracu, ti parV avgge,louj do,xh| kai. timh/| evstefa,nwsaj auvto,n
Certamente o autor pensava no ser humano ideal e sua descendência (ben-´ädäm/ui`o.j
avnqrw,pou). Arthur Weiser a esse respeito escreve:
257 David PETERSON, Hebrews and perfection, p. 52.
108
O soberano do mundo confiou ao próprio homem a função divina de dominar; pouco deixou faltar para que a posição do homem fosse igual a de Deus. O rei do mundo estabeleceu o homem rei da terra, coroou-o com o ornamento real da �majestade e glória�, que no fundo é a forma de manifestação de Deus. Neste sentido pode-se falar aqui de �imagem de Deus� (cf. Gn 1.26-28; 2.19s). Segundo a fé veterotestamentária, o homem não conquistou o poder sobre a natureza numa revolta titânica contra a divindade, mas recebe o domínio sobre �as obras das suas mãos� como tarefa dada por Deus, e é por vontade e poder de Deus que tudo lhe está subordinado.258
No entanto, optando por uma reserva de sentido, o autor de Hebreus faz uma interpretação
cristológica do Salmo, enfatizando o anthropos divino, Jesus, o nome revelado no v. 9.
Para o autor de Hebreus, a encarnação do Filho de Deus cumpre um objetivo muito
preciso, resgatar a humanidade da clausura e do sentimento horripilante da morte (v. 15).
Para isso, o Filho de Deus é ao mesmo tempo �Filho do Homem�, o que parece muito
adequado para o tema do sofrimento e exaltação. �Filho de Deus� em Hebreus expressa sua
qualidade de ser divino, em comunhão com Deus, em seu status exaltado, isto é, sentado à
destra do Pai, vice-regente de todo o universo, e Filho do Homem diz respeito a capacidade
de sofrer como qualquer ser humano.
EXCURSO I: O Filho do Homem em Daniel 7.13s Em Hebreus 2.6-8 é o Filho do Homem, um dos poucos textos fora dos Evangelhos em que
Jesus é assim nomeado. Portanto, importa nos determos um pouco na figura do Filho do
Homem descrito em Daniel 7.13s.
Os pesquisadores têm atribuído ao texto de Ezequiel a matriz tanto para o livro de
Daniel 7.9-14 e 10.5s (ainda que não sem dificuldades) como para a literatura a respeito de
Enoc.259 Em Dn 7.9-10 na visão do Ancião de Dias, tronos são preparados, e aquele se assenta
em um destes. O trono aqui baseia-se no da visão de Ez 1, e é tão fulgurante como aquele.
Do Ancião de Dias é dito que �suas vestes são brancas como a neve; e os cabelos de
sua cabeça, alvos como lã� (Dn 7.9). Diante dele milhares de seres celestiais o servem e livros
são abertos (7.10). Quanto ao Filho do Homem, em Dn 7.13s lemos:
Eu continuava contemplando, nas minhas visões noturnas, Quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho de Homem.
258 Os Salmos, p.100. 259 John J. COLLINS, Daniel, p. 306; C. ROWLAND in: Open heaven, p. 97 diz: �A similaridade que existe entre Ez 8.2 e Dn 7.13 está no fato de que ambos os versos se refiram a figuras celestiais e falam delas em termos quase divinos.�
109
Ele adiantou-se até ao Ancião e foi introduzido à sua presença. A ele foi outorgada autoridade, glória e o governo, E todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu poder é poder eterno que jamais passará, E seu reino jamais será destruído.
O aspecto glorioso do Filho do Homem é caracterizado pelas nuvens sobre às quais ele vem.
Com livre acesso ao Ancião de Dias (Yahweh), torna-se vice-regente. As três últimas linhas
dizem como isso se dá (7.14).
A identidade do Filho do Homem angelomórfico em Daniel 7.13s
Muito material foi escrito sobre a figura do Filho do Homem; quem é ele? Três são as
possibilidades: (1) um ser humano; (2) um símbolo coletivo do povo de Deus e (3) um ser
celestial, neste sentido Miguel e, em alguma medida, Gabriel são os candidatos.260 A favor de
uma figura angélica, possivelmente Miguel, C. Roland observa que a resposta para Dn 7.9,13
está em Dn 10.5s lido com Ez 1.26s.261 Para termos uma idéia apresentamos uma sinopse de
Ez 1.26s e Dn 10.5s:
Por cima da abóboda que ficava sobre suas cabeças havia algo que tinha a aparência de uma pedra de safira em forma de trono, e sobre esta forma de trono bem alto, havia uma forma com aparência humana. Vi um brilho como de electro, uma aparência como de fogo junto dele, e em redor dele, a partir do que pareciam ser os quadris e daí para baixo , vi algo que tinha a aparência de fogo e um brilho em torno dele. E vi: Um homem revestido de linho, com os rins cingidos de ouro puro, seu corpo tinha a aparência do crisólito e seu rosto o aspecto do relâmpago, seus olhos como lâmpada de fogo, seus braços e suas pernas como o fulgor do bronze polido, e o som de suas palavras como o clamor de uma multidão.
Os dois textos apresentam várias similaridades. Mas além disso, falta no texto de Ez o linho
que reveste a figura humana de Dn. O �homem vestido de linho� aparece na outra figura de
Ez 9.2s. Quanto ao �som de suas palavras� de Dn, pode ser comparado com o som
produzido pelo bater de asas dos querubins (Ez 1.24; 10.5). O crisólito que aparece Dn está
em Ez 10.9.
Pela comparação percebemos que elementos do imaginário divino para Yahweh de
Ez migram para o arcanjo de Dn 105s e agora compõem a sua aparência.262 Quanto à
proposta de que é o arcanjo Miguel e não Gabriel, J. J. Collins apresenta uma boa
argumentação: 260 C. ROWLAND, Open heaven, p. 97. 261 Ibid., p. 99. 262 C. ROWLAND, Open heaven, p. 99.
110
Uma variante da interpretação Angélica identificaria �um como Filho do Homem� com Gabriel ao invés de Miguel. (...). É mais plausível, contudo, traçar esta referência a Dn 7.16, onde Daniel pede a �um dos que estavam ali presentes� por uma interpretação. Gabriel serve como intérprete em 8.15 e 9.21, assim, ele provavelmente seria também identificado como o intérprete no capítulo 7. Miguel, o príncipe de Israel é o mais apropriado recipiente do reino.263
O livro de José e Asenet, transmitido em mais de uma dezena de manuscritos,
certamente contribui para um quadro mais completo do anjo Miguel como proposto acima.264
Em forma de novela, José e Asenet, datado c. I A.E.C.- I E.C., conta o casamento de José com a
filha do sacerdote de Heliópolis (cf. Gn 41.45) e a conversão da mesma ao Judaísmo. Julga-se
que foi escrito no Egito e sua finalidade era proselitista.265 No capítulo 14, após fazer uma
longa oração, Asenet vê a estrela da manhã surgindo no céu e entende que sua oração foi
atendida pelo Senhor (v. 1). Uma luz fulgurante surge e Asenet cai de rosto em terra (v. 4).
Uma voz chama seu nome e ela responde: �Eis-me aqui, Senhor� (v. 7). Então Asenet narra o
que viu:
E o homem me disse: �Eu sou o príncipe da casa do Senhor e comandante de todas as hostes do Altíssimo.� (...) E Asenet levantou a cabeça e viu um homem em todo o aspecto similar a José, pela veste e a coroa do escalão real, exceto que sua face é luminosa, e seus olhos como a luz do sol, e os cabelos de sua cabeça como a chama de fogo de uma tocha ardente, e as mãos e pés brilhantes como ferro em brasa, e faíscas caíam de suas mãos e pés. E Asenet o viu e caiu com a face sob seus pés sobre a terra. E Asenet ficou com muito medo e todos os seus lombos tremiam. E o homem lhe disse: �Coragem e não tenha medo, mas levanta-te e fique em pé, e eu te direi o que tenho a dizer.� (José e Asenet 14.8-12)
O texto acima descreve o homem que fala com Asenet como mensageiro celeste: (1) a
referência à estrela da manhã prepara o ambiente para a epifania e procedência do homem;
(2) o brilho intenso inicial e a visão da figura luminosa fazem Asenet prostrar-se; (3) face,
olhos, cabelos, mãos e pés luminosos como o fogo e como o metal incandescente; e (4)
portando coroa e bordão real. Comparável a José por causa das vestes, da coroa e bordão, o
mensageiro é a contraparte daquele no céu, o segundo em autoridade. O quadro se completa
com a auto-apresentação do homem: �Eu sou o príncipe da casa do Senhor e comandante de
todas as hostes do Altíssimo.�
263 Daniel, p. 310. 264 C. ROWLAND, A man clothed in linen: Dn 10.5-9 and Jewish Angelology, in: JSNT 24 (1985), p. 33. 265 G. A. PÉREZ, Apócrifos do Antigo Testamento, in: Literatura Judaica e Intertestamentária, p. 367.
111
Seu nome, no entanto, não é declarado embora Asenet o tenha pedido (José e Asenet
15.12). A resposta do anjo ecoa a do Anjo do Senhor na visão de Manoá em Jz 13.18. O anjo
responde a Asenet:
Por que pedes o meu nome, Asenet? Meu nome está nos céus no livro do Altíssimo, escrito pelo dedo de Deus no início do livro e antes de todos os outros, porque eu sou príncipe da casa do Altíssimo. E todos os nomes escritos no livro do Altíssimo são impronunciáveis, e a homem nenhum é permitido pronunciar nem ouvi-los neste mundo, porque estes nomes sãos excessivamente grandiosos e maravilhosos e louváveis (15.12).
Mas diferindo do Anjo do Senhor, este anjo frisa sua função na casa do Altíssimo, ou seja, ele
é um príncipe. Corrobora com isto o fato de não declarar seu nome, que além de elevado,266 é
o primeiro da lista escrita por Deus. Em Js 5.13-15 uma figura celeste aparece a Josué267.
Apresenta-se como �Chefe do Exército de Yahweh�, recebe adoração de Josué e diz as
mesmas palavras ditas na visão da sarça ardente a Moisés (Ex 3.5). A seguir é dito que
Yahweh é que fala a Josué (Js 6.1). Por fim, em José e Asenet o anjo é distinto de Yahweh.
3.6.1. A irmandade do Filho de Deus (Hebreus 2.10-16)
A obra efetuada pelo Filho de Deus visa a formação de uma nova sociedade. Esta sociedade
se caracteriza pela restauração da humanidade como imagem de Deus, expressa no homem
pré-lapsariano. Por isso, a descida do pré-existente Filho de Deus é a sua identificação com os
seres humanos, mas principalmente, daqueles que receberam a mensagem de salvação.
A nova humanidade participa da assembléia divina da qual o Filho de Deus é seu
presidente (Hb 2.11-13). O texto utilizado pelo autor para expressar essa nova realidade
salvífica é o Sl 22.23 (cf. tb. Is 8.17s) em que o Filho de Deus declara:
Anunciarei o teu nome a meus irmãos (toi/j avdelfoi/j mou); no meio da assembléia (evn me,sw| evkklhsi,aj) te louvarei; e mais: Porei nele a minha confiança; Eis-me aqui com os filhos que Deus me deu. Uma vez que os filhos têm em comum carne e sangue, por isso também ele participou da mesma condição, a fim de destruir pela morte o dominador da morte, isto é, o diabo, e libertar os que passaram toda a vida em estado de servidão, pelo temor da morte.
266 O Anjo do Senhor diz que seu nome é �inefável� em Jz 13.18. 267 A descrição bélica dos anjos será feita também em 2 Macabeus 11.6-8.
112
O quiasmo é perceptível nas duas declarações iniciais:
(A) Anunciarei o teu nome
(B) a meus irmãos;
(B�) no meio da assembléia
(A�) te louvarei.
A intenção do texto é: �Anunciar o Nome� e �te louvar�, que são correspondentes, da mesma
forma que �no meio da assembléia� e �a meus irmãos�.
O Sl 22.12-22 apresenta um cenário em que a proximidade da morte é o assunto
central. Além disso, o imaginário animal pode representar figuras demoníacas.268 O salmista
se descreve rodeado por formas de mal, cuja única conseqüência é a morte.269 Mais
sintomático ainda é que o Sl 22 faz referências a Yahweh entronizado (v. 28s) e a assertiva
�Sim, só diante dele todos os poderosos da terra se prostrarão� (v. 29). Morte, animais,
vitória, assembléia e descendência de Israel (v. 24) são temas que aparecem em Hb 2.12-16
(aqui: �animais = diabo�; �descendência de Israel = descendência de Abraão�).
A assembléia (Hb. 2.12) é formada dos �irmãos� com quem o Filho partilha a mesma
condição de �carne e sangue�, mas que pode abarcar também os anjos (Hb 12.22-24). Deveras
este texto (12.22ss) ilumina Hb 2.10-16 ao apresentar o resultado último da obra salvífica de
Jesus, uma �assembléia dos justos perfeitos� (12.23).270
Dito isto, podemos entender que �Filho do Homem� além de propiciar o seu
sofrimento, também indica o homem ideal, perfeito, imagem de Deus, o aperfeiçoador dos
seres humanos que nele confiam. A perfeição do ser humano proposta por Hebreus deriva
da encarnação e morte voluntária do Filho (cf. Hb 10.5-7). Criação e salvação estão
alinhavadas no Filho. Porque o Filho participou da condição humana, os seres humanos
podem agora participar da sua condição divina:
Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem, querendo conduzir muitos filhos à glória (e;prepen ga.r auvtw/|( diV o]n ta. pa,nta kai. diV ou- ta. pa,nta( pollou.j ui`ou.j eivj do,xan avgago,nta to.n avrchgo.n th/j swthri,aj auvtw/n dia. paqhma,twn teleiw/saiÅ). Hb 2.10
268 J. Clinton McCANN, Jr., The book of Psalms, in: NIB, vol. IV., p. 763. 269 Ibid., p. 763. 270 A �Assembléia dos justos aperfeiçoados� em Hebreus contrapõe-se a �assembléia dos cidadãos� do mundo Mediterrâneo do I séc. Ali só os arrolados por direitos adquiridos mediante os antepassados (�carne e sangue�) são os de pleno direito. Lá todos os que confessam e permanecem �firmes na profissão de fé� em Jesus Cristo (Hb 4.14).
113
A �glória e a honra� atribuídas ao Filho são partilhadas com os �muitos filhos�, levados à
perfeição. A imagem desta perfeição está em Jesus, �feito, por um pouco, menor que os
anjos� (2.9). Jesus é assim o Urmensch, o homem primordial por excelência, o paradigma de
uma nova humanidade liberta do detentor da morte (Hb 2.14).
Esse detentor é o diabo, designativo do inimigo da humanidade. Para melhor
entendermos essa relação, precisamos nos deter a seguir no imaginário que envolve a
humanidade e os anjos, e finalmente, na expectativa desse imaginário focado em sua
restauração.
3.6.2. A humanidade e os anjos
A relação entre homens e anjos inicialmente é, de acordo com as tradições do A.T. e do
Judaísmo do Período do 2° Templo, acidentada. Já em Gn 6.2: �os filhos de Deus viram que
as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres todas as que lhes agradaram�
(wayyir´û bünê-hä|´élöhîm ´et-Bünôt hä|´ädäm Kî �öböt hëºnnâ wayyiqHû lähem nä�îm miKKöl ´á�er
BäHäºrû). Esta passagem é esquadrinhada pelo 1 Enoc 6-8 como explicação da origem da
iniqüidade no seio da sociedade humana. Aí, como na narrativa bíblica, porém com mais
detalhes, os filhos dos céus (anjos) se enamoram das filhas dos homens. Então, esses anjos
fazem um acordo sob um juramento de levar a efeito o plano de possuírem as filhas dos
homens. Caso algum não participe, fica sob maldição (1 Enoc 6.1-6). Ironicamente, a lealdade
mútua não elimina a punição divina conseqüente do ato (1 Enoc 10). De acordo com Gn 6.4, a
união dos anjos com seres humanos gesta uma raça híbrida de gigantes, homens renomados
dos tempos de antanho (oi` avpV aivw/noj oi` a;nqrwpoi oi` ovnomastoi,), semelhantes aos
heróis gregos. Em 1 Enoc 7, tais �heróis� são devoradores e antropofágicos, que passam a
dizimar a raça humana:
E as mulheres engravidaram e deram à luz grandes gigantes, cuja altura era de trezentos cúbitos. Estes (gigantes) consumiram o produto de todo o povo a ponto do povo não dar mais conta de alimentá-los. Então, os gigantes se voltaram contra (o povo) para devorá-los. E começaram a pecar contra as aves, as bestas selvagens, os répteis e peixes. E devoraram-se mutuamente, e beberam sangue. E então, a terra instaurou uma acusação contra os opressores.
O resultado é que o meio-ambiente da humanidade se deteriora porque os anjos ensinaram
às mulheres encantamentos e artes mágicas, e ao povo a confecção de instrumentos bélicos.
114
3.6.3. A restauração da imagem do homem primordial (Urmensch)
No livro da Vida de Adão e Eva 11-13 narra-se o porquê do diabo causar tantas vicissitudes ao
casal de seres humanos:
Ó diabo desgraçado. Por que nos agride por coisa nenhuma? O que tu tens a ver conosco? O que te fizemos para que nos persiga com enganos? Por que tua malícia cai sobre nós? Roubamos tua glória e o fizemos ficar sem honra? Ó inimigo, por que traiçoeiramente e invejosamente tu nos persegue de todo jeito para a morte? E o diabo suspirou e disse: Ó Adão, toda minha inimizade e inveja e infortúnio concernente a ti, pois por tua causa eu fui excluído e privado de minha glória que tinha nos céus no meio dos anjos, e por sua causa eu fui jogado na terra. Adão respondeu: O que eu fiz para ti, e qual é a minha culpa para contigo? Pois nem te prejudicamos e nem fostes ferido por nós, por que nos persegue? O diabo replicou: Adão, o que estás me dizendo? É por tua causa que fui enxotado de lá. Quando tu foste criado, eu fui expulso da presença de Deus e fui retirado da companhia dos anjos. Quando Deus soprou em ti o hálito de vida e tua imagem e semelhança foram feitas à imagem de Deus, Miguel te trouxe e (nos) fez te adorar à vista de Deus, e o Senhor disse: Ó Adão! Eu te fiz à nossa imagem e semelhança. E Miguel saiu e chamou todos os anjos, dizendo: Adorai a imagem do Senhor Deus, como o Senhor ordenou. E Miguel mesmo o adorou em primeiro lugar, e chamou-me e disse-me: Adore a imagem do Deus, Yahweh. E eu respondi: Não adorarei Adão. E quando Miguel me forçava a adorar, eu lhe disse: Por que me impele? Não adorarei alguém inferior e subseqüente a mim. Eu sou anterior a ele na criação; fui feito antes dele, eu já estava feito. Ele é que deve me adorar.
Os temas �imagem e semelhança de Deus�, �honra e glória�, �culto�, �preeminência e
status� na ordem criada aparecem entrelaçados. Uma coisa explica a outra. Perder a glória é
ser destituído do caráter angélico ou da imagem de Deus. O diabo perde seu status angélico
e Adão o de humanidade perfeita. Torna-se mais notável ainda que o temário seja claramente
expresso em Hebreus 2.5-18 numa perspectiva triunfalista. Jesus, em sua encarnação, foi feito
menor que os anjos, mas depois coroado de glória e honra. Alvo de provações, derrota o
diabo,271 detentor da morte, e por isso é �capaz de socorrer os que são provados.� É a um só
tempo iniciador e santificador da salvação de �seus irmãos�, isto é, a raça humana, fazendo
jus ao seu nome de Filho de Deus, �Jesus�. Note-se que na Vida de Adão e Eva 11-13, como
também em Hb 2.14, o causador das vicissitudes da raça humana é o diabo. E que Jesus é o
protótipo do ser humano ideal, caracterizado com traços angelomórficos de �glória e honra�.
Compare-se o texto de Hebreus ao de 1 Enoc 6-10. Veja-se que a vinda do Filho de
Deus ao mundo é diferente da dos anjos (vigilantes) rebeldes. Tanto na intenção como no
agir. Estes descem pela busca de satisfação da sensualidade ao possuir as filhas dos homens;
aquele busca a santidade dos seres humanos assumindo os sofrimentos que levam à
salvação. Ainda, contrariando sua própria natureza, os anjos se contaminam com sangue,
tornando-se impuros (1 Enoc 9.8-10). Jesus, de sua parte, santifica e aperfeiçoa os homens (Hb
271 Hb 1.14 é a única referência ao diabo na carta toda.
115
2.10). Enquanto Enoc sobe aos céus e se ocupa dos anjos caídos (1 Enoc 11-16); Jesus desce e
ocupa-se da �descendência de Abraão� (Hb 2.17). Desta maneira, ainda que antiteticamente,
os temas se correspondem.
No Apocalipse de Adão, exprime-se a gloriosa realidade do homem pré-lapsariano:
Ouça as minhas palavras, Set meu filho. Quando Deus me criou da terra juntamente com Eva sua mãe, eu costumava ir com uma glória que ela viu no eon vindouro. Ela me ensinava uma palavra de conhecimento do Deus Eterno. E nós éramos como anjos eternos, pois éramos os mais orgulhosos que o Deus que nos criou e os poderes que estavam com ele, os quais não conhecíamos. Então Deus, o governante dos eons e dos poderes, cheio de iracúndia, nos separou. Então nos tornamos dois eons, e a glória em nossos corações nos abandonou, a mim e à Eva sua mãe, junto com o conhecimento que costumava soprar em nosso interior. E a glória fugiu de nós, entrando em outros grandes [eons] e outra grande [raça].
Há cópias desse texto na biblioteca gnóstica de Nag Hammadi. No entanto, G. McRae propõe
que o Apocalipse de Adão possui material mais primitivo que se situa por volta do final do I
século.272 Se realmente este for o caso, temos aqui uma forte sugestão da existência humana
pré-lapsariana, uma existência angelomórfica (�anjos eternos�). Também o termo �glória�
indica o aspecto angelomórfico do primeiro casal humano. De qualquer modo, parece
sugestivo que uma geração posterior do cristianismo compreendesse uma existência humana
aperfeiçoada e gloriosa como angelomórfica.
Adão é descrito no Testamento de Abraão 11.4-5,8-9:
E a aparência daquele homem era terrificante, como a do Mestre. E eles viram muitas almas sendo conduzidas pelos anjos e sendo levadas pelo amplo portal, e viram que outras poucas almas levadas pelos anjos entrando pelo portal estreito. (...). Meu senhor comandante, quem é este homem maravilhoso, que está adornado de tal glória... E o ser incorpóreo disse: �Este é o primeiro formado, Adão que está em tal glória e olha para o mundo, pois todos procedem dele.
Compare-se a aparência de Adão com a do Mestre, o que sugere que ele seja a imagem e
semelhança de Deus. P. B. MANOA III mostra que o texto acima é derivado de Dn 7.9-10, em
que é apresentado o Ancião de Dias, e pede a nossa atenção para os dois textos.273 Tanto
Adão como o Ancião de Dias estão entronizados e acompanhados de anjos. Mas o Ancião de
Dias é assistido pelos anjos; Adão meramente vê os anjos conduzindo as almas aos portões.
No segundo trono de aparência de cristal exuberante, que lança fachos como fogo
(Testamento de Abraão 12.6), está Abel, que é chamado de Filho de Adão (13.2s). Sua aparência
272 Apocalypse of Adam, in: OTP, vol. 1, p. 708. 273 Four powers in heaven, p. 7.
116
é gloriosa como o sol, como um filho de Deus (12.7). Abel é encarregado de julgar toda a
criação �examinando ambos, justos e pecadores� (13.3). A figura gloriosa de Abel deriva da
do Filho do Homem de Dn 7.13-14. Menciona-se o papel das doze tribos e de Deus no juízo,
mas não se detém em pormenores, somente que há três instâncias até o veredicto final, para
cumprir a exigência de três testemunhas (13.8). Fala-se de anjos assistentes, mas não diz de
quem são. Para nós basta saber a sua aparência: o da direita é radiante como o sol e se chama
Dokiel274 e o outro sem misericórdia é Purouel (Uriel?). A morte que, posteriormente, visita
Abraão, também se transforma em uma aparência luminosa e com vestes radiantes, rosto
brilhante como o sol, um anjo mais belo que qualquer filho dos homens (16.6). Porém, após a
morte, Abraão é conduzido aos céus por Miguel acompanhado de uma multidão de anjos,
onde viverá eternamente (20.9-14).
Finalmente, citamos o texto do Apocalipse de Sofonias 8.1-4 que ilustra de modo
especial o anelo por uma humanidade angelomórfica:
� Eles me auxiliaram e me colocaram no barco. Milhares de milhares e miríades de miríades de anjos à minha frente louvavam. Eu mesmo vesti um traje angélico. E vi todos aqueles anjos orando. Eu mesmo orei junto com eles, eu conhecia sua linguagem, dos que falavam comigo.
Obtemos a descrição do traje angélico do visionário de sua visão do anjo Yeremiel no próprio
livro de Apocalipse de Sofonias 6.11-15 como já foi transcrito anteriormente. �Vesti um traje
angélico�, ou seja, �sofri uma metamorfose�.
A Carta aos Hebreus possui um tema recorrente que perpassa tudo: �Perfeição�. O
objetivo de tão grande salvação (2.3) é a perfeição da humanidade (2.10). Perfeição,
conseqüentemente, é sinônimo de imortalidade (2.15). Imortalidade é um traço angélico, de
acordo com 1 Enoc 15.5-8, os anjos são imortais e os homens são mortais. Devido a esta
mortalidade, a raça humana é preservada mediante o gerar filhos, enquanto os anjos não
precisam disto. Tomar das filhas dos homens e gerar filhos é violação de uma ordem
estabelecida pela Divindade. Por sua vez, o sacrifício vicário de Jesus purifica os seres
humanos de seus pecados (1.3; 9.27s; 10.10, 20ss), trazendo-lhes uma nova esperança, uma
perfeição eterna (9.28). A plenitude da perfeição é a �ressurreição�. Mas é notável como
Hebreus se isenta em discorrer sobre esse tema (11.19, 35). A menção mais direta à
ressurreição é feita em Hb 6.2 e é classificada como matéria de catecumenato, no entanto, a 274 E. P. SANDERS, in: OTP, vol. 1, p. 890 cita a proposta de K. SCHMIDT de que �Dokiel� era originalmente ceDeqiel, �justiça de Deus.�
117
referência mais forte à ressurreição dos santos está em 11.35, na segunda vez que é
mencionada neste texto. O autor prefere apresentar a ascensão de Jesus como paradigma da
esperança do Cristão. De fato, com isso, o autor harmoniza sua mensagem plenamente com a
situação dos leitores em seu meio-ambiente social. Assim, a esperança de perfeição liga-se a
um �descanso� por se realizar (4.1-11) e a uma cidade celestial (12.22; 13.14). Aí os justos
aperfeiçoados serão como anjos: que possuem entrada franca à presença de Deus (10.19s),
que podem ver a Deus (12.14), que louvam-no perpetuamente (13.15), que cultuam o Deus
vivo (9.14), que lhe são submissos (12.28; 13.20). São aperfeiçoados por que esperam �uma
ressurreição melhor� (11.35), uma metamorfose angelomórfica.
3.7. Avaliação
No fim deste capítulo, cabe-nos fazer um balanço dos resultados alcançados para o nosso
escopo. Os temários de Hb 1.1-4 que são desenvolvidos em 1.5-2.18 mostram um
conglomerado de tradições angelomórficas do judaísmo de seus dias. Mesmo sem citar
explicitamente tais tradições, as alusões e ecos a este cabedal de tradições revelam que o
angelomorfismo foi de muita utilidade na composição da Cristologia de Hebreus.
Ao iniciar com os profetas, o autor parte de bem assentada confissão da comunicação
mediadora de homens que falaram a palavra de Deus. Tais homens tinham acesso ao
Conselho Divino e eram a contraparte dos anjos no ambiente terrestre. Sua função de
mensageiros da parte da Deidade inspirou muita reflexão a respeito de outros subirem ao
céu e habitar na companhia dos anjos e de Deus. Enquanto que os profetas são provenientes
da esfera da humanidade, o Filho, como mensageiro último da revelação é o mensageiro da
esfera celestial.
Imagem perfeita de Deus, Jesus figura como o Adão primevo, o Urmensch sem pecado.
Sua morte vicária resulta em sua glorificação celeste. Consoante ao princípio de que o ser
humano pecador não pode habitar no céu, sua glória é a mesma disposta por Yahweh
apresentada tanto nas teofanias como nas angelofanias. Os anjos são descritos participando da
condição divina, algumas vezes sendo confundidos com Yahweh, o que os levava a retificar
o mal entendido dos visionários. Sua beleza e resplendor são derivações do Anjo do Senhor,
a manifestação angelomórfica de Deus.
Ao conceder a glória a Jesus, Deus concede que os seres humanos partilhem da
imortalidade por ele conseguida. Enquanto o Adão primevo falhou em legar aos seus
118
descendentes a imortalidade, o Filho de Deus a realiza e a partilha não com filhos seus, mas
com seus semelhantes chamados de irmãos. O contraste também é diante dos anjos que
desceram para gerar filhos imortais, mas que resultou em prejuízo tanto para si como para a
raça humana. Segundo a expressão do autor, Jesus contrasta com os heróis do mundo greco-
romano que conseguiam a imortalidade mediante feitos maravilhosos, mas somente para si,
incapazes de garantir aos seus devotos.
Já pré-existência de Jesus Cristo é derivada da Sabedoria como agente da criação. No
entanto, a Sabedoria é pintada com caracteres divinos que são marcadamente angelomórficos:
�pré-existente�, �resplendor da glória�, �primogênese�, �função sacerdotal�, �eternidade�,
�vice-regência�, �gloriosa�, �torá�, �participante da Assembléia Divina�. Este temário lança
mão de um certo grau de angelomorfismo, no sentido de que a caracterização angélica é
melhor expressão para sua função demiúrgica.
A vice-regência de Jesus, isto é, sua entronização à mão direita de Deus, faz dele um
vizir de Yahweh, o segundo na corte divina. Esse papel foi interpretado e atribuído a
diversas figuras angélicas ou a humanos angelomórficos descritos nas tradições do Judaísmo
do 2º Templo, sejam das Escrituras ou não. Ora o Anjo do Senhor, ora alguma outra figura
angelomórfica, foi entronizada. Devido a uma certa indefinição, o lugar à direita da Deidade
provocou a composição de candidatos elegíveis. Esta composição foi fruto da concepção da
santidade e alteridade de Deus, portanto, para preencher as qualidades necessárias à figura
do justo metamorfoseado em semelhança de um anjo era a melhor solução. O justo, deste
modo, encarnaria a esperança de meros mortais de habitarem na dimensão divina, a
possibilidade da imortalidade.
A posse do nome inefável já havia sido sugerida pelo Anjo do Senhor. Visto que
algumas figuras angélicas se assemelhavam a ele, surgiram as especulações em torno delas.
O Nome sagrado de Yahweh como prolongamento da divindade e de sua autoridade
também motivou expectativas angelomórficas. Ao atribuir o Nome inefável a Jesus, o autor
de Hebreus é devedor a tais expectativas.
Mas uma impossibilidade é expressa em Hebreus, que esvazia qualquer outro
candidato para tanto: O Filho como gerado pelo próprio Deus. Nisto reside o fator
diferenciador de tudo, isto é, não meramente uma declaração de status alcançada por Jesus,
119
mas um mistério que demandaria muita reflexão da Cristandade posterior frente aos seus
detratores.
3.8. Conclusão
Em suma, é inegável que o autor de Hebreus, como outros no Novo Testamento, é devedor
às tradições angelomórficas para expressar a crença no Jesus Cristo glorificado. Ao fazer isso,
encerra qualquer disputa ao lugar no trono à direita de Yahweh (pelo menos no
Cristianismo). Por outro lado, escancara a porta de entrada para que os pequenos deste
mundo façam parte da �grande nuvem de testemunhas� formada de anjos e justos no fim de
sua peregrinação, o descanso prometido.
No próximo capítulo nos ocuparemos do sumo sacerdócio angelomórfico de Jesus
segundo e de Melquisedec.
120
Capítulo 4
JESUS E MELQUISEDEC
(Hebreus 7.1-10)
O autor de Hebreus em 5.11 já declarara que teria muito a dizer e �de difícil interpretação�
(dusermh,neutoj le,gein). Referia-se principalmente à proposição do verso anterior: �tendo
recebido de Deus o título de sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedec� (5.10). Assunto
espinhoso de tratar, explicar como alguém pode ser sumo sacerdote sem pertencer a uma
linhagem designada para isso, com o agravante de haver sofrido uma morte desonrosa.
A via escolhida pelo autor para apresentar o evento salvífico realizado por Jesus é a
do sumo sacerdócio. Com este motivo, fundamenta e interpreta a sua morte de cruz. A
exposição feita no capítulo 7 também atende o exercício da função tão necessária para a
felicidade da Cidade, a do sumo sacerdote (sumo pontifex). Visto que a Carta aos Hebreus
desenvolve a proposta de uma caminhada para a �Cidade do Deus vivo, a Jerusalém
Celeste� (12.22), o sacerdócio é um item sine qua non.
Neste capítulo, nossa atenção se volta ao sumo sacerdócio de Jesus, ofício que
encontra em Melquisedec sua fundamentação. Pretendemos descortinar as tradições que
evidenciam uma compreensão angelomórfica a respeito do sumo sacerdote e que lancem luz
sobre a Cristologia Exaltada expressa em Hebreus. Para tanto, nosso intuito é buscar os
traços angelomórficos representados em textos do Judaísmo do período do 2º Tempo
comparados aos de Hebreus 7.1-10. Destarte, a figura de Melquisedec nas tradições de 2 Enoc
e, de modo especial, a de Qumran em 11QMelquisedec são de suma importância.
Damos de início um quadro de referência considerando brevemente o céu como
santuário celeste, do qual o Tabernáculo é cópia, e o Sacerdócio como princípios norteadores
subjacentes à religiosidade como entendida no ambiente de Hebreus. Queremos com isso
detectar os matizes sacerdotais que propiciam a Cristologia Angelomórfica da carta.
4.1. Santuário e sacerdócio
A importância do santuário, do sacerdócio, e do culto para o judaísmo do I séc. da E.C. não
pode ser subestimada no estudo da Cristologia das origens, como mostrada pela Carta aos
Hebreus. Se considerarmos que, em sua grande maioria, a religiosidade do mundo
121
Mediterrâneo do século I não pode ser imaginada sem um santuário e, conseqüentemente, de
todo um grupo de oficiantes e uma maquinaria adequada, compreenderemos a preocupação
de nosso autor em legitimar a relevância do Cristianismo primitivo sob a ótica do sumo
sacerdócio de Jesus. Trata-se de uma explicação necessária visto que o Cristianismo por ele
professado é uma religião que exercita um culto que prescinde de um sacerdócio visível e
sem uma prática sacrificial aparente (cf. por ex.: Jo 4.21-24; At 7.49-50; Rm 12.1).
Deve-se lembrar que o Santuário de Jerusalém fora concebido como o lugar em que a
Terra toca o Céu, onde a Divindade transcendente se manifestaria. Por conseguinte, o
Santuário é uma réplica da Criação, que leva em conta principalmente o Céu. Mircea Eliade
escreveu:275
A simples contemplação da abóboda celeste é suficiente para desencadear uma experiência religiosa. O Céu revela-se infinito, transcendente. É por excelência o ganz andere diante do qual o homem e seu meio ambiente pouco representam. A transcendência revela-se pela simples tomada de consciência da altura infinita. O �muito alto� torna-se espontaneamente um atributo da divindade. As regiões superiores inacessíveis ao homem, as zonas siderais, adquirem o prestígio do transcendente, da realidade absoluta, da eternidade. Lá é a morada dos deuses; é lá que chegam alguns privilegiados, mediante ritos de ascensão; para lá se elevam, segundo as concepções de certas religiões, as almas dos mortos. O �muito alto�é uma dimensão inacessível ao homem como tal; pertence de direito às forças e aos Seres sobre-humanos. Aquele que se eleva subindo a escadaria de um santuário, ou a escada ritual que conduz ao Céu, deixa então de ser homem: de uma maneira ou de outra, passa a fazer parte da condição divina. Não se trata de uma operação lógica, racional. A categoria transcendental da �altura�, do supraterrestre, do infinito revela-se ao homem como um todo, tanto à sua inteligência como à sua alma. É uma tomada de consciência total: em face do Céu, o homem descobre ao mesmo tempo a incomensurabilidade divina e sua própria situação no Cosmos. O Céu revela, por seu próprio modo de ser, a transcendência, a força, a eternidade. Ele existe de uma maneira absoluta, pois é elevado, infinito, eterno, poderoso. (...). E, visto que o Céu existe de maneira absoluta, um grande número de deuses supremos das populações primitivas são chamados por nomes que designam a altura, a abóboda celeste, os fenômenos meteorológicos; ou são chamados muito simplesmente de �Proprietários do Céu�, ou �Habitantes do Céu�.
Destaque-se principalmente os elementos que levam o ser humano diante da imensidão
celeste à consciência do transcendente, isto é, �o muito alto�, o inacessível. É lá que habitam
os deuses, a que somente alguns privilegiados chegam, não sem preencher certos quesitos.
Por conta dessa tomada de consciência e da concepção de um imaginário divino, o ser
humano intenta superar sua humanidade e contactar a deidade; quer superar sua limitação e
contemplar o ilimitado; subir ao céu, se é impossível à primeira vista, então, aproximar o céu
da terra. O santuário terrestre possui esta função, fazer disponível o indisponível. Mediante
uma arquitetura interpretativa, ritos e pessoal especializado, o ser humano busca
275 O Sagrado e o Profano; a essência das religiões, p. 100.
122
experimentar o habitat da deidade. Entende-se que encontrar a Deus é encontrar a si mesmo,
descobrir-se, recuperar a sua identidade perdida.
O santuário jerusalemita atende às essas prerrogativas (embora o autor de Hebreus
opte pelo Tabernáculo). Deus tem seu habitat no céu. Junto dele estão os seus servidores
celestes, os anjos. Apesar de transcendente, o ser humano deseja chegar à presença de Deus,
pois, com Ele está a vida. Viver eternamente é viver diante de Deus, viver diante dele é ser
considerado justo. Por conseguinte o santuário terrestre abre a porta do celeste, aí é o limiar
da intersecção entre terra e céu. Mas nenhum ser humano pode entrar em sua presença
imediata, a menos que atenda um programa ritualístico. E mesmo assim, tal aproximação é
fugaz, só acontece uma vez por ano e somente a uma pessoa é permitida, ao sumo sacerdote.
Essa aproximação se faz mediante sua entrada na área mais sagrada do santuário, após
derramamento de sangue de uma vítima sacrificial, garantia de não ser morto ele mesmo na
presença da deidade.
4.1.1. Santuário Terrestre espelho do Santuário Celeste
Tradicionalmente, o universo era concebido como tripartido, ou seja, céu, terra e regiões
inferiores. O céu é o lugar da habitação de Deus, a terra é o da habitação da humanidade e as
regiões inferiores é o lugar dos mortos (cf. Sl 115.16-17). Embora o imaginário varie entre
uma �tenda� e uma �barreira� que retém as águas superiores,276 nos ateremos ao céu como
um santuário, do qual o terreno é réplica.
Flávio Josefo descreve a relação entre o céu e o tabernáculo (Antiguidades Judaicas
3.7.179-187):
Pode-se maravilhar dos prejuízos que os homens nos causam, e que professam perceber o nosso descaso para com a Deidade que eles pretendem honrar; pois se alguém considerar o fabrico do tabernáculo, e observar o vestuário do sumo sacerdote, e daqueles vasos que fazemos uso em nossa ministração sagrada, achará que somos injustamente reprovados por outrem: pois se alguém sem prejuízo, e com juízo, contempla estas coisas, perceberá que cada uma foi feita de modo a imitar e representar o universo. Quando Moisés dividiu o tabernáculo em três partes, e deixou duas delas aos sacerdotes, lugar acessível e comum, ele denotava a terra e o mar, estes sendo de geral acesso a todos; mas ele separou a terceira divisão para Deus, porque o céu é inacessível aos homens. E quando ordenou doze pães para estarem sobre, ele denotava o ano, como é dividido em muitos meses. Ao ampliar o candelabro em setenta braços, ele secretamente imitava o Decani, ou setenta divisões dos planetas; e como as sete lâmpadas sobre os castiçais, ele se referiam ao curso dos planetas, de que esse é seu número. (...).
Segue-se as significações dos componentes do vestuário do sumo sacerdote:
276 J. Edward WRIGHT., The Early History of Heaven, p. 54.
123
Já a vestimenta do sumo sacerdote sendo feita de linho, significava a terra; o azul denotava o céu, sendo como relâmpagos as suas romãzeiras, e no barulho dos cincerros se assemelhava ao trovão. E o efod mostrava que Deus fez o universo de quatro [elementos]; e para o ouro entrelaçado, suponho que se relacionava ao esplendor de todas as coisas que são iluminadas. Ele também indicou que o peitoral devia ser colocado no meio do efod, para se parecer com a terra, porque ela está no centro do mundo. E o cinturão que estava em volta do sumo sacerdote, significava o oceano, porque ele rodeia e inclui o universo. Cada sardônica nos apresenta o sol e a lua; eu entendo que era a natureza dos botões sobre os ombros do sumo sacerdote. E para as doze pedras, se entendemos que sejam os meses, ou se entendermos que seja o número dos signos daquilo que os gregos chamam de Zodíaco, não estaremos errados em seu significado. E a mitra, que era de cor azul, parece-me significar o céu; pois como poderia o nome de Deus ser escrito sobre ela! Isto também era ilustrado pela coroa, também de ouro, por causa desse esplendor com que Deus é agradado.
Os dois textos acima fazem parte da ampla descrição de toda aparelhagem cultual araônica.
No primeiro texto, digno de nota é a declaração que o �céu�� é inacessível aos homens. No
segundo, percebe-se a relação de culto e criação sugerida por Gn 1. Quanto ao nome de Deus
escrito sobre a mitra do sacerdote (cf. Ex 28.36-37; Lv 8.9), conforme Jubileus 36.7, Deus criou
o universo por intermédio do seu Nome. As formulações representativas do céu
fundamentam a tese de que a celebração do culto, principalmente o �Dia da Expiação�, era
de alguma forma a restauração do universo que foi maculado pelo pecado.277 Por sua vez, o
��céu�� que é inacessível passa a ser acessível atendidas às prescrições cultuais. Por conta
disso, o Templo de Jerusalém é o lugar utilizado por Deus para santificação da Terra (Jubileus
25.26).
Mas há um dado ulterior, no período do Judaísmo do Período do 2º Templo o céu
também é concebido como um Templo, conforme demonstrou Martha Himmelfarb.278 Ocorre
uma alteração, isto é, gradativamente o imaginário do templo foi-se deslocando para o
âmbito celeste. Enquanto Isaías ainda vê Yahweh sentado sobre um elevado trono fixado em
Jerusalém (Is 6.1), Jeremias, mais tarde, se torna capaz de fazer a ousada declaração da crença
no Templo como inexpugnável: �Não vos fieis em palavras mentirosas dizendo: �Este é o
Templo de Yahweh, Templo de Yahweh, Templo de Yahweh!�� (Jr 7.4). Em Ez 10.18-22, a
Glória Divina sai do Templo no trono móvel para o povo exilado. Esses dois profetas eram
sacerdotes (Jr 1.1; Ez 1.3), o que de certo modo, surpreende tal postura em relação ao Templo.
O Trito-Isaías vai além ao declarar: �Assim diz Yahweh: O céu é meu trono, e a terra o
escabelo dos meus pés. Que casa me haveis de fazer, que lugar para o meu repouso?� (Is
277 Margareth BARKER, Atonement: The rite of healing, p. 1. 278 Ascent to heaven in Jewish and Christian apocalypses, p. 10.
124
66.1). Portanto, uma reflexão que relativiza o templo terrestre estaria na base da expressão da
literatura do período, que permite viajar ao céu, o verdadeiro Templo de Deus.
O Segundo Templo nunca será apto a emergir da sombra retirada da Glória de Deus. A arca e os Querubins se foram. No período do Segundo Templo, sob a influência de Ezequiel, aqueles que estão insatisfeitos com o comportamento do povo e especialmente de seus sacerdotes encaram o templo não o lugar próprio para a habitação de Deus, o lugar onde o céu encontra a terra, mas antes como uma mera cópia do verdadeiro templo localizado no céu. É esta dessacralização do templo terreno em favor do celeste que abre o caminho para a subida de Enoc no Livro dos Vigilantes. A primeira ascensão na literatura judaica é deste modo uma viagem ao verdadeiro templo.279
Exemplo dessa representação do céu como santuário (tabernáculo/templo),
arquitetado sobre o terrestre, se acha no 1 Enoc 14. Neste, narra-se a viagem de seu herói ao
céu, onde contempla duas casas.280 A primeira é ao mesmo tempo quente e gélida. Deus está
na segunda casa. Enoc, trêmulo e cheio de temor, contempla �a Grande Glória� sobre um
trono sublime, cuja descrição visa provocar reverência. Diante dele nenhum anjo, dos
milhões que existem ali, ousa se aproximar. Tal texto se constrói à base do que se sabe do
santuário terrestre, mas também de modo que o santuário seja entendido ser o modelo
daquele. Depois de contemplar o trono divino, prosternado, Enoc não ousa levantar os olhos.
Então, recebe uma ordem de Deus para que se aproxime. Enoc é chamado por Deus de
�homem justo� e �escriba de justiça� (1 Enoc 14.8-15.1). O caráter templário do céu só admite
à presença de Deus quem for por ele autorizado, seja anjo, seja humano. A declaração de
Deus a Enoc de que ele é ��homem justo�� (alusão a Ez 14.14,20) nos conduz a outro aspecto
decorrente, o consentimento divino que fundamenta sua permanência diante dele. Esse
consentimento é a evidência de que Enoc é feito sumo sacerdote. Ele tipifica a o exercício de
um sacerdócio celeste, concepção em voga no judaísmo do I séc. Portanto, ocorre uma
inversão na visão comum do santuário inspirado na contemplação do céu, ou seja, o céu é o
verdadeiro templo, e o templo terreno é a contraparte daquele.
EXCURSO II: O Sacerdócio cívico da Religião Imperial281
Há diversas similaridades do sacerdócio israelita e do sacerdócio cívico do império romano.
A função sacerdotal na religião cívica era exercida por homens oriundos das classes
279 Martha HIMMELFARB, Ascent to heaven in Jewish and Christian apocalypses, p. 13. 280 Há ainda uma terceira câmara externa conforme 1 Rs 6.3; Josefo, Guerra Judaica, 5.207-19. 281 O que segue é baseado in: Mary BEARD/John NORTH/Simon PRICE, Religions of Rome, vol. 1.
125
aristocráticas e filiados a tribos específicas. O detentor do cargo de sumo sacerdote (flâmine)
era eleito por tempo determinado e era uma espécie de magistratura que cuidava
principalmente dos aspectos legais ligados ao serviço religioso, dado que o exercício político
era impensável sem a religião. Sua representatividade na comunidade era evidente, pois a
ele um lugar especial na Assembléia era reservado. Cabia-lhe além do ofício e administração
sacrificial, também a interpretação de presságios, leitura do vôo dos pássaros e a palavra
favorável ou não às campanhas militares. Ao mesmo tempo cabia-lhe limitações referentes à
posição ocupada como a de que não podia sair dos limites da Cidade; não podia tocar em
cadáveres, nem ir ao cemitério (este se localizava extra-muros), pois a cidade é o lugar dos
vivos. Não fazia juramentos, pois não representava a si mesmo, mas as divindades. Não
portava quaisquer nós em seu vestuário e nem em sua casa, que estava, senão anexa, muito
próxima do Templo e era uma continuidade deste. Seu casamento atendia a prescrições ao
respeito da pureza, não se casava com mulher desvirginada ou divorciada. Se divorciasse,
abandonaria o ofício, o que era altamente vergonhoso. O caráter sagrado ligava-se a sua
pessoa, por isso, se algum escravo fugitivo ou criminoso se abraçasse ao seu corpo, tal pessoa
era perdoada no mesmo instante, ou tinha a pena aliviada. Um cardápio especial lhe era
prescrito do que comer e não comer. Os pés de sua cama eram revestidos com uma fina
camada de lama da própria Cidade simbolizando sua relação com a mesma. Quando andava
pelas ruas, o silêncio imediato e obrigatório se fazia, e mesmo em casa predominava um
ambiente tranqüilo por causa de sua sacralidade pessoal. Indumentária, ritos de purificação,
observação de calendário festivo, também faziam parte de seu cotidiano. O imperador, desde
Augusto, recebia o título de Pontifex Maximus, que era ao mesmo tempo divinizado em sua
morte. Banquetes, liturgias complicadas e dias especiais, como o 1º de maio, compunham a
religiosidade cívica e cabia ao sacerdote supervisioná-las. O sumo sacerdote era considerado
um duplo dos deuses, uma espécie de estátua viva da divindade. Os cultos domésticos
funcionavam como um culto em miniatura, em que o pai, caso fosse o primogênito, era o
sacerdote diante do �lar� (a lareira sagrada). O ofício sacerdotal ligava-se ao império na
sustentação ideológica, seja como propaganda imperial, seja legitimando a razão das coisas
serem assim como eram, feitas e conduzidas pelo império. Portanto, quanto a comunidade
cristã recipiente da Carta aos Hebreus não possuía como referência somente o culto israelita,
estabelecida na diáspora, o culto cívico também era um realidade em seu cotidiano. Assim, o
126
autor pode, como dissemos, fazer uma leitura em espelho de toda instituição cúltica israelita,
e seus ouvintes/leitores fariam sua atualização em seu cotidiano, levando-se em conta o
aparato religioso imperial, como o desafio de manter sua confissão em Jesus. Sua abordagem
atende às duas expressões étnicas, judaica e gentílica.
4.1.2. O sumo sacerdote celeste
A Carta aos Hebreus enfatiza que o tabernáculo terrestre (com seu pessoal e equipamento) é
cópia do templo celeste (Hb 8.2; 9.19-23) a fim de salientar a superioridade deste e do sumo
sacerdócio de Jesus. Assim sendo, interessa-nos preferentemente a expressão de uma
expectativa sumo sacerdotal angelomórfica no A.T.
Em Zc 3.1-7 descreve-se uma cena que se passa na Assembléia Divina. Aí estão o
Anjo de Yahweh, o sumo sacerdote Josué e Satã à sua direita. Trata-se de um tribunal. Josué
se acha inicialmente vestido de roupas sujas (Zc 3.3). Satã o acusa, mas é repreendido pelo
Anjo do Senhor que o defende (Zv 3.2). Redimido, Josué recebe um novo vestuário
�suntuoso�, e uma �tiara limpa� lhe é colocada sobre a cabeça (Zc 3.4-5). A descrição é a de
uma investidura sacerdotal diante da Assembléia Divina (cf. Lv 8.2), que poassui traços no
Testamento de Levi 5. Depois da purificação de Josué, segue-se o anúncio do Anjo:
Então o anjo de Yahweh fez a Josué esta declaração: ��Assim disse Yahweh dos Exércitos: Se andares pelos meus caminhos e guardares os meus preceitos, então tu governarás a minha casa e administrarás os meus pátios e eu te darei acesso entre os que estão aqui de pé.��
O exercício do sumo sacerdócio neste contexto de tribunal se estende numa palavra oracular
a Josué. Sua recém santificação e, conseqüentemente, a irrepreensibilidade renovada,
garantem-lhe a autoridade para promover a justiça, mas a manutenção deste estado de
santidade é de responsabilidade pessoal. E se torna uma condição ao direito de participar da
Assembléia Divina (cf. Test. Levi 4). O sumo sacerdócio possui uma função dúplice: governo
e administração da justiça na casa do Senhor. Se exercida fielmente, seu prêmio será o
atributo angelomórfico, fazer parte da Assembléia Divina, o privilégio de se assentar junto
aos Elohim. Destarte, Zc 3.1-7 é um texto fundamental para a casta sacerdotal na expressão
da expectativa angelomórfica de seu ofício.
O livro de Sirácida também se envolve na temática do sacerdócio e culto. Escrito
originalmente em hebraico por volta de 190 A.E.C., teve sua primeira tradução para o grego
127
em 132 A.E.C. por seu neto que vivia no Egito.282 Sua preocupação é a harmonia entre
piedade e sabedoria. O texto de Sirácida 7.29-31 revela o prestígio que gozava o sacerdote
nesse período:
De todo o teu coração teme ao Senhor
E venera (qau,maze = �admire�) os seus sacerdotes. Com todas as tuas forças ama o que te criou E não abandones os seus ministros (leitourgoi). Teme ao Senhor e honra (do,xason = �glorifique�) o sacerdote E dá-lhe a sua parte, como é prescrito: Primícias, sacrifício de reparação, a oferenda das espáduas, O sacrifício de santificação e as primícias das coisas santas.
O �temor do Senhor� nos conduz ao ambiente da Sabedoria israelita (cf. Provérbios 1.7;
Sirácida 1.14)283, mas aqui, o �temor do Senhor� se expressa no conceito que se tem do
sacerdote. O paralelismo entre o �Senhor� e o(s) �sacerdote(s)� é notável. Ao Senhor tributa-
se temor, ao(s) sacerdote(s) admiração e honra, sem se esquecer de sua côngrua. Chamamos
a atenção ao fato de que a relação do israelita fiel com o Senhor se estampa na veneração ao
sacerdote. Outrossim, os temas criação e sacerdócio se entrelaçam como em outros lugares
(cf. Gn 1). Se no texto de Zc 3.7 é prometido um lugar entre os Elohim da asssembléia divina,
em Sirácida 7.29-31, o (sumo) sacerdote é o duplo de Deus, é mesmo divino, ao ponto de
estima se confundir com veneração.
Voltemos mais uma vez a nossa atenção a Enoc. Desta vez consideramos o texto de 1
Enoc 12.3-6:
E eu, Enoc, comecei a bendizer ao Senhor dos poderosos e o Rei do universo. Nesse momento, os vigilantes me chamaram. E disseram: �Enoc, escriba de justiça, vá e faça saber aos Vigilantes do céu que abandonaram o céu elevado, o santo e eterno lugar, que se macularam com mulheres, cujos feitos alteraram os filhos do mundo, e que tomaram esposas para si: Eles se fizeram impuros com grande impureza sobre a terra; não haverá paz para eles e nem o perdão do pecado. Pois seus filhos se deleitam em ver o assassino de seus amados. Mas eles gemerão e mendigarão para sempre o cessar a destruição de seus filhos, e não lhes haverá paz eternamente.
Faz algum tempo que Enoc reside oculto nos céus em companhia dos anjos (1 Enoc 12.1-2).
Procurado pelos Vigilantes que não pecaram, torna-se mediador entre anjos. No episódio
282 M. GILBERT, Wisdom literature, in: STONE, Michael E., Jewish Writings of the Second Temple Period, p. 291. 283 Veja-se também Gn 31.42: �Temor de Isaac� aplicado a Yahweh.
128
acima exerce a função de mensageiro (anjo). Após entregar a mensagem, Azazel, um de seus
chefes, roga-lhe que escreva uma oração de confissão para ser levada ao Senhor dos Céus,
pois eles mesmos não podem fazê-la diretamente (1 Enoc 13.6). Enoc consente, e entrega a
mensagem ao Senhor. Por este feito, Enoc se torna mediador entre os Vigilantes e Deus (1
Enoc 15.2), apesar de não ser atendido, pois são os anjos que devem interceder pelos
humanos, e não os humanos interceder pelos anjos (1 Enoc 15.2). A negativa do Senhor a
Enoc ecoa Ez 14.14, em que apesar de sua justiça, sua intercessão não livraria Israel do juízo
divino, e agora nem pelos anjos.
1 Enoc, em suas diversas tradições, apresenta um cosmografia de apenas um céu.284 O
céu é o lugar da habitação de Deus e dos anjos, a terra é o lugar da habitação dos seres
humanos. A transgressão da linha divisória pelos anjos torna a terra imunda. Quanto aos
seres humanos, só podem transcender sua situação com a descida de um mensageiro divino
(angelus interpres) para pontear os dois mundos.
Uma vez mais citamos 2 Enoc (recensão A) 22.6-10:285
Enoc! Não tenhas medo! Levante-se e fique em pé diante da minha face para sempre. E Miguel, o maior dos arcanjos do Senhor, tomou-me e colocou-me diante da face do Senhor. E o Senhor se pronunciou aos seus servos. O Senhor disse: Que suba Enoc e se coloque de pé diante de minha face para sempre! E os gloriosos obedeceram e disseram: Que ele suba! O Senhor disse a Miguel: Tome a Enoc e retire (dele) as vestes terrenas. E ungi-lhe com o óleo deleitoso e ponha(-o) em vestes de glória. E Miguel tirou-me de minhas vestes. Ungiu-me com óleo que é mais brilhante que a maior luz, sua unção é como bálsamo doce, e sua fragrância como mirra; e seu brilho como o sol. E contemplei-me pasmado, e eu me tornei como dos gloriosos, e não havia nenhuma diferença observável.
Este texto descreve a metamorfose ocorrida em Enoc. Despido e depois revestido com vestes
gloriosas, ungido com óleo deleitoso, torna-se semelhante aos anjos e nota que em si não há
nenhuma diferença observável. As vestes resplandecentes é um motivo recorrente de
angelomorfismo.286 Deve-se notar que as referidas vestes referem-se a indumentária
284 Edward J. WRIGHT, J., The Early history of heaven, p. 140. 285 2 Enoc (A) é a recensão mais curta. 286 Em textos narrativos, os traços angelomórficos possuem uma plasticidade mais tangível. Por exemplo, na transfiguração de Jesus em Mc 9.2-8, traços angelomórficos se apresentam: lugar: montanha; vestes resplandecentes; heróis do passado, Moisés que experimentou um estado de glória no Sinai e Elias que foi arrebatado ao céu, tanto um como outro eram taumaturgos; nuvem que desce como no Sinai ou no tabernáculo; voz celeste e a declaração de filiação; reação das testemunhas: espanto e medo; retorno à realidade humana. Digno de nota é que outra epifania, menos detalhada, acontecerá em Mc 16.3-8, um jovem vestido com túnica branca e o espanto e medo das mulheres. Visto que o Evangelho de Marcos se encerra em 16.8, conclui-se que não se narra como é o Jesus ressuscitado, daí é necessário recorrer à transfiguração para se ter uma idéia de como é o Jesus glorificado, além de que o Senhor recomenda silêncio do que se passou na montanha até a sua ressurreição.
129
sacerdotal. De igual modo, o óleo deleitoso e a investidura sumo sacerdotal, que também
parecem resultar em sua aparência luminescente. Este aperfeiçoamento repleto de �glória�
indica o caráter angelomórfico de sua nova existência.
1 Enoc 104.1s, apesar de não descrever uma transformação de Enoc, no entanto, ela é
sugerida, o que lembra Dn 12.3, a prometida ressurreição dos justos.
Eu juro a ti que no céu os anjos recordarão de ti para o bem diante da glória do Grandioso. Tende esperança, pois antes havíeis sido escarnecidos com maldades e aflições, porém agora brilhareis como as luminárias do céu. Brilhareis e sereis vistos, e as portas do céu se abrirão.
Consideremos Moisés. Ele é mais uma figura humana exaltada nos moldes
angelomórficos. Em Siracida 45.1-5 se diz:
Equiparou-o em glória aos santos e tornou-o poderoso para o terror dos inimigos. Pela palavra de Moisés fez cessar os prodígios e glorificou-o na presença dos reis; deu-lhe mandamentos para o seu povo e fez-lhe ver algo de sua glória. Na fidelidade e doçura ele o santificou, escolheu-o entre todos os viventes; fez-lhe ouvir a sua voz e o introduziu nas trevas; deu-lhe face a face os mandamentos, uma lei de vida e de inteligência, para ensinar a Jacó suas prescrições e seus decretos a Israel.
�Glória aos santos� (w`moi,wsen auvto.n do,xh| a`gi,wn) refere-se à glória dos anjos, que
também aparece em Ex 4.16.287 No caso de Moisés, trata-se de uma referência à sua face
resplandecente devido à permanência diante de Yahweh (Ex 34.29-35). A glória de Yahweh
refletida no rosto de Moisés provoca medo semelhante ao das visões de anjos, embora
Moisés tivesse visto somente parte da glória (Ex 33.18-23). A santidade diz respeito à sua
separação e designação mediadora para falar da parte de Deus e a competência para chegar
diante de Yahweh (entrar nas nuvens; Ex 19.10-14,24). Ver Yahweh �face a face� é um
superlativo usado pelo autor.288
Outra conexão que se percebe com o tema da transfiguração é que logo a seguir se narra um embate
entre Jesus e um espírito impuro (Mc 9.14-29). Análogo a esta sucessão é a argumentação paulina em 1 Co 15.20-28. Paulo faz uma exposição do significado da ressurreição, e recorrendo à tradição do Jesus exaltado, menciona-se a vitória sobre os poderes sobrenaturais hostis (15.24s), e sobre a morte personificada (v. 26). Após, discorre sobre a condição glorificada dos ressurretos (v. 49: �E, assim como trouxemos a imagem do homem terrestre, assim também traremos a imagem do homem celeste�), o que sugere e muito a expressão angelomórfica dos justos (15.35-53). Assim, temos uma amálgama de motivos: derrota das potestades inóspitas, destruição da morte, metamorfose angelomórfica, retorno à presença de Deus, instauração de um novo mundo. cf. tb. Paulo A. S. NOGUEIRA, Visionary elements in the Transfiguration narrative, in: C. ROWLAND/J. BARTON, Apocalyptic in history and tradition, p. 143. 287 James L. CRENSHAW, in: The book of Sirach, NIB, vol. 5, p. 842, diz que a expressão do,xh| a`gi,wn não é a mais adequada para o texto, pois deve-se levar em conta o Sl 8.5 que emprega aggeloj para élöhîm. Ver também Larry W. HURTADO, in: One God, One Lord, p. 56. 288 L. W. HURTADO, One God, One Lord, p. 57.
130
Outro texto importante é o de Ezequiel, O Trágico. Esta obra foi escrita em grego, c. II
A.E.C., por um poeta judeu chamado Ezequiel.289 Trata-se de uma peça que se preocupa com
a libertação do povo judeu do Egito narrada em Ex 1-15. Nas linhas 68-89, Moisés relata um
sonho ao seu sogro. Diz:
Sobre o pico do Sinai, eu vi o que parecia um trono de altura tão grande que tocava as nuvens dos céus. Sobre ele estava sentado um homem de semblante nobre, coroado, e com um cetro numa mão, enquanto que com a outra ele acenava para mim. Eu me aproximei e fiquei em pé diante do trono. Ele estendeu o cetro e convidou-me para subir ao trono, e deu-me a coroa; então ele mesmo se retirou do trono. Eu vislumbrei a terra inteira e ao redor; as coisas debaixo dela e acima dos altos céus. Então aos meus pés uma constelação de estrelas se curvavam e seu número contei. Elas passavam por mim como fileiras de homens armados. Então acordei aterrorizado do sonho. Seu sogro interpreta o sonho como se segue: Meu amigo, Deus te deu isto como um sinal para o bem. Pudesse eu viver para ver estas coisas acontecerem. Pois tu serás a razão do surgimento de um poderoso trono, e tu mesmo reinará e governará os homens, sustentando todos os povos da terra, e as coisas debaixo e as coisas acima do domínio de Deus: coisas do presente, do passado e do futuro tu verás.
No sonho, retrata-se Moisés exaltado por Deus. Parece um relato de ascensão celestial. O
pico do Sinai é o lugar escolhido para que a terra toque os céus, isto é percebido quando o
texto diz que dali se contempla a terra e os céus. A menção das nuvens demarca o começo do
outro espaço. Mas é o trono o elo entre o que está acima e o que está abaixo.290 A descrição de
Deus como rei se baseia na menção do cetro e da coroa. Moisés, o mediador e libertador do
povo de Israel, é entronizado pelo próprio Deus, até mais, Deus cede-lhe o lugar. Torna-se
um vizir de Deus. É reverenciado pelas hostes celestiais que desfilam diante dele como um
exército em revista. Recebe onisciência por estar no trono e dali contempla todas os
mistérios, acima, abaixo e ao redor.291
O Testamento de Moisés, datado c. I séc., também faz descrição de aspectos
angelomórficos atribuídos a Moisés.292 Fletcher-Louis indica os seguintes textos relevantes
dessa obra:
Mas ele designou-me e planejou-me; (fui) preparado desde o início do mundo para ser o mediador de sua aliança. (1.14)
289 L. W. Hurtado, Ibid, p. 57. 290 Em Mt 5.34s encontramos uma analogia para tal: �...Não jureis em hipótese nenhuma nem pelo céu, porque é o trono de Deus, nem pela terra, porque é o escabelo dos seus pés, nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande rei.� Os elementos são semelhantes: (1) céu e trono, (2) terra e escabelo dos pés, (3) Jerusalém, cidade sobre o monte, e (4) Deus, o grande rei. 291 Christopher ROWLAND, Open Heaven, p. 76. 292 Crispin H. T. FLETCHER-LOUIS, All the glory of Adam, p. 31.
131
Então seu reino aparecerá por toda a sua criação. Então o diabo terá um fim. Sim, o lamento será retirado com ele. Então encherá as mãos do mensageiro, que está indicado no lugar mais alto. (10.1s) Contudo, quando os reis dos Amorreus ouvirem (de sua morte), crendo que não está mais conosco o espírito sagrado, digno do Senhor, múltiplo e incompreensível, mestre dos líderes, fiel em todas as coisas, o profeta divino para a terra inteira, o mestre perfeito do mundo, agora crentes que podem arrasar-nos, eles dirão: Subamos contra eles. Se os inimigos têm, até agora, por uma única vez, agiram impiedosamente contra o seu Senhor, agora não há mais nenhum defensor para eles que informará ao Senhor em seu favor ao modo de Moisés que era o grande mensageiro. Ele, a cada hora, dia e noite, tinha seus joelhos fixados à terra, orando e olhando constantemente para aquele que governa a terra inteira com misericórdia e justiça, lembrando o Senhor da aliança ancestral e o juramento resoluto. (11.16s)
Em Testamento de Moisés 1.14, Moisés declara que é pré-existente (�desde o início do
mundo�). E em 10.1s é designado sacerdote (desde que encher as mãos é termo técnico para
ordenação ao sacerdócio)293 e anjo vingador nos moldes de Miguel (cf. Dn 10.13, 21; 12.1; 1 En
20.5; 1QM 9.15s; 17.6s). 294 Porém, o segundo texto no livro se desconecta dos outros. O que
gera uma incerteza em atribuir a Moisés o papel da figura exaltada no Salmo do capítulo 10
de Test.Mois. Entretanto, é mais ajuizado entender que se trata de alguém do gênero humano
exaltado celestialmente, isto é, com caracteres angelomórficos. Sobre isto vale a observação:
Este sacerdote celestial é um sacerdote humano que é celestial, ou um anjo supra-humano que é sacerdotal? (...). Em nenhum lugar em textos contemporâneos ouvimos a respeito de anjos (supra-humanos) experimentando uma ordenação para um novo ofício. Diferente de anjos que são criados para ser anjos, a linguagem de ordenação combina com seres humanos a quem transferência de status autoridade é necessário.295
Os dois primeiros textos devem ser lidos pela ótica do terceiro. Testamento de Moisés 11.16s é
parte da instrução de Moisés a Josué sobre o que sucederá depois de sua morte. Os
Amorreus entenderam que os filhos de Israel estão desamparados, vulneráveis a um ataque
final. Moisés é detentor do espírito sagrado, mestre e profeta divino. Mas principalmente era
o grande mensageiro (anjo-nuntius), o mediador entre o povo e Deus.
O Apocalipse de Sofonias 6.11-16 é uma descrição vívida do arcanjo Eremiel com
tonalidades sacerdotais:296
Então eu me levantei e fiquei de pé, e vi um grande anjo postado diante de mim, sua face era brilhante como os raios do sol em sua glória, e daí sua face ser como aquela que é aperfeiçoada em glória. E ele estava cingido como se um cinturão dourado estivesse sobre o seu peito. Seus pés eram como bronze que é apurado pelo fogo. E quando eu o vi, regozijei-me, pois pensara que o Senhor Todo-Poderoso
293 Roland DE VAUX, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 385. 294 J. PRIEST, in: OTP, vol. 1, p. 932. 295 C. H. T. FLETCHER-LOUIS, All the glory of Adam, p. 31. 296 A data de composição varia de 100 A.E.C. a 175 E.C., in: O. S. WINTERMUTE, OTP, p. 500.
132
viera visitar-me. Prostrei-me sobre minha face, e o adorei. Ele falou-me: �Tome tento. Não me adore. Eu não sou o Senhor Todo-Poderoso, mas sou o grande anjo Eremiel, que cuida do abismo e do Hades, aquele em que todas as almas estão aprisionadas desde o fim do Dilúvio, que veio sobre a terra, até este dia�.
O texto evoca imagens componentes da Cristofania de Apocalipse de João 1.12-18, sendo que
esta possui mais elementos e o Cristo não rejeita a adoração do vidente (v. 17). Mas o que nos
interessa do texto acima é a descrição do arcanjo. Trata-se de um �grande anjo�, ou seja, de
dimensões gigantescas. Anjos de grande estatura parecem derivar da visão de Ez 1. 26-28.
Temas recorrentes angelomórficos são �face brilhante como os raios do sol em sua glória�,
�pés como bronze apurado pelo fogo�. Contudo, notemos o �cinturão dourado no peito do
anjo�, referência ao vestuário sacerdotal (cf. Lv 8.7; Sirácida 45.10). As vestes angélicas são
dadas ao vidente em Apocalipse de Sofonias 8.1-4: �Milhares de milhares e miríades de
miríades de anjos davam louvor diante de mim. Eu mesmo vesti um vestuário angélico. Vi
todos aqueles anjos louvando. Eu mesmo louvei junto com eles, eu conhecia sua linguagem,
que falavam comigo�. Ocorre, assim, uma metamorfose no vidente, ele passa a figurar como
um ser angelomórfico.
Por fim, um texto deveras revelador como representante do anelo dos qumranitas por
uma existência angelomórfica na presença de Deus em 1QSb iv
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Que ele se agrade com os pas[sos de] seus [pé]s e [...] de homem e dos santo[s...] 2 que ele possa contar [consigo para] formar uma parceria com ele. E a co[roa... de hom]em e nos prazere[s dos filhos de homem...] 3 Que [eter]nas bênçãos sejam a coroa de tua cabeça, sant[a...] tuas mãos ... [...] 4 ...[...]...[...]...[...] 5-19 [...] 20 [...] provar [...] 21 [...ac]erca dele em frente [de...] [...]... e que lhe justifique de todo ...[...] ele te escolheu [...] 23 para levantar acima da cabeças dos santos, e contigo para [...]... de tua mão 24 os homens do conselho de Deus e não pela mão do príncipe de ...[...] um para seu companheiro. Que tu possas ser 25 como um anjo da presença na santa morada para a glória do Deus dos Exércit[os...est]ar ao redor, servindo no templo do 26 reino, elencando o lote com os anjos da presença e o Conselho da Comunidade [...] por tempo eterno e por todos os períodos perpétuos. Pois 27 [todos] seus [jul]gamentos [são verdadeiros.] E que ele te faça san[to] no meio de seu povo, como um luminar [...] pois o mundo no conhecimento, e para brilhar sobre a face de Muitos 28 [... E que ele faça de ti] um diadema do santo dos santos, por causa [de ti será feito san]to para ele e glorificará seu nome e suas coisas santas.
Texto provavelmente de um único rolo contendo uma série de bênçãos sobre os membros do
grupo, os seus conteúdos exprimem o anelo por uma existência angelomórfica. No entanto,
não como qualquer anjo, mas como �um anjo da presença� (iv.25). Em outras palavras, um
ministro que pode estar o mais próximo possível de Deus. Assim, um anjo da presença
exerce o serviço sacerdotal celestial (iv.25); como membro do Conselho Divino (iv.26); como
escriba que arrola o lote dos santos (iv.26); como uma estrela de destaque no meio dos anjos
(iv.21, 27); e alguém em que o Nome de Deus seja escrito (iv.28). A luminosidade e
imortalidade indicam a metamorfose ocorrida, ou seja, uma existência angelomórfica.
Cremos que seja o suficiente. Passamos a seguir à figura de Melquisedec.
4.1.3. O Santuário celeste na Carta aos Hebreus
O autor de Hebreus e seus destinatários compartilham o quadro referencial acima. Deus
habita os lugares altos e aí está o seu trono (1.3). A abóboda celeste é o véu que separa a
realidade terrestre da divina (6.19), o verdadeiro tabernáculo (8.2; 9.24). O santuário terreste
é cópia do celeste (8.5; 9.23), cuja segunda tenda representa o ambiente da divindade (9.7), à
qual a humanidade não tem acesso se a primeira tenda não for removida (9.8, 11). Mas que
pode se aproximar mediante sacrifício e representação do sumo sacerdote (10.19-22).
134
4.2. Melquisedec e o Jesus sumo sacerdote celestial
O autor de Hebreus defende a tese de que Jesus é o sumo sacerdote perfeito que desfez a
primeira tenda, atravessou o véu propiciado por seu próprio sacrifício, perfeito, eficaz e final.
E por isso, sentou-se à direita de Deus, sendo ao mesmo tempo vice-regente e salvador dos
que nele crêem. Sua tese enunciada desde Hb 1.3 e repisada várias vezes (Hb 2.17; 4.14, 15;
5.1, 5, 6, 8, 10, 6.19-20), desenvolve-se principalmente em Hb 7. O autor, ou melhor, pregador,
cria certa expectativa em seu auditório. E como o tema do sacerdócio segue gradativamente
agregando elementos, só a partir em Hb 5.6 explicita o seu fundamento, isto é o Sl 110.4. Ao
captar a atenção, interrompe seu discurso com uma parênese (5.11-6.12), para retornar a
seguir mencionando Abraão, que será novamente muito importante para Hb 7.1-10 devido
sua relação com Melquisedec .
A respeito de Melquisedec tem-se gerado uma grande quantidade de literatura. Esse
personagem bíblico, que no A.T. aparece somente em Gn 14.18-20 e no Sl 110.4, será foco de
literatura judaica, cristã e gnóstica. O assunto que provoca muito debate e um despertamento
na pesquisa dos últimos decênios é o de 11QMelquisedec e sua contribuição para o estudo de
Hb. Em nosso estudo, recorreremos, via de regra, aos que contribuem para o tema da
Cristologia Angelomórfica.
4.2.1. Melquisedec em Gênesis 14.17-20
A primeira menção de Melquisedec nas Escrituras se encontra em Gn 14.17-20.297 Segue-se
nossa tradução do texto da LXX:
17 evxh/lqen de. basileu.j Sodomwn eivj suna,nthsin auvtw/| meta. to. avnastre,yai auvto.n avpo. th/j koph/j tou/ Codollogomor kai. tw/n basile,wn tw/n metV auvtou/ eivj th.n koila,da th.n Sauh tou/to h=n to. pedi,on basile,wj 18 kai. Melcisedek basileu.j Salhm evxh,negken a;rtouj kai. oi=non h=n de. i`ereu.j tou/ qeou/ tou/ u`yi,stou 19 kai. huvlo,ghsen to.n Abram kai. ei=pen euvloghme,noj Abram tw/| qew/| tw/| u`yi,stw| o]j e;ktisen to.n ouvrano.n kai. th.n gh/n 20 kai. euvloghto.j o` qeo.j o` u[yistoj o]j pare,dwken tou.j evcqrou,j sou u`poceiri,ouj soi kai. e;dwken auvtw/| deka,thn avpo. pa,ntwn
297 Ainda que Fred HORTON, in: The Melchizedek tradition, p. 48ss, nos informe que há um questionamento na pesquisa do A.T. se o texto do Sl 110.4 seria mais antigo, fazendo Gn 14.17-20 depender daquele. Para os nossos objetivos isso não é relevante, visto que nossa preocupação se atém ao fato de o autor de Hebreus haver conhecido os textos na ordem em que se encontram na LXX.
135
21 ei=pen de. basileu.j Sodomwn pro.j Abram do,j moi tou.j a;ndraj th.n de. i[ppon labe. seautw/| 22 ei=pen de. Abram pro.j basile,a Sodomwn evktenw/ th.n cei/ra, mou pro.j to.n qeo.n to.n u[yiston o]j e;ktisen to.n ouvrano.n kai. th.n gh/n 23 eiv avpo. sparti,ou e[wj sfairwth/roj u`podh,matoj lh,myomai avpo. pa,ntwn tw/n sw/n i[na mh. ei;ph|j o[ti evgw. evplou,tisa to.n Abram 24 plh.n w-n e;fagon oi` neani,skoi kai. th/j meri,doj tw/n avndrw/n tw/n sumporeuqe,ntwn metV evmou/ Escwl Aunan Mambrh ou-toi lh,myontai meri,da
(17) Então, saiu o rei de Sodoma ao seu encontro após seu retorno da matança de Cordolaomor e dos reis seus aliados para o vale de Save, isto é, a planície do rei. (18) E Melquisedec, rei de Salém, trouxe pães e vinho, de modo que era sacerdote do Deus Altíssimo. (19) E abençoou a Abrão e disse: �Abençoado (seja) Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra. (20) E bendito (seja) o Deus Altíssimo que entregou os teus inimigos nas tuas mãos.� E lhe deu o dízimo de tudo. (21) Então disse o rei de Sodoma a Abrão: Dá-me os homens e toma um cavalo para ti.� (22) E disse Abrão ao rei de Sodoma: �Estenderei a minha mão ao Deus Altíssimo que fez o céu e a terra (23 ) se de um cordãozinho de couro de uma sandália eu tomar de todas as tuas coisas para que não digas: �enriqueci a Abrão.�� (24) Exceto do que comeram os jovens e da porção dos homens que vieram comigo, Escol, Aunan, Mambré, estes receberão uma parcela.�
A estrutura proposta por Gordon J. Wenham revela alguns pormenores:298
(A) v. 17 � Saída e chegada do rei de Sodoma
(B) v. 18 � Melquisedec, rei de Salém, traz pães e vinho
(B�) v. 19s � Melquisedec fala
(A�) v. 21 � O rei de Sodoma fala
v. 22 � Abraão responde
Gênesis 14.1-16 narra que, entre outros, o rei de Sodoma e seu povo foram servos de
Codorlaomor por treze anos. Um ano depois, junto com outros, se revoltou contra ele e seus
aliados. Derrotados fugiram. Os bens e alimentos de Sodoma foram tomados. Porque o seu
sobrinho Ló fora também vitimado, Abrão reuniu uma tropa de 318 homens e foi resgatar Ló
com seus bens. Vitorioso, Abraão retorna.
Gênesis 14.17-22 relata o encontro de Abraão com os dois reis. A estrutura quiástica
enfatiza as incoerências do encontro. O rei de Sodoma chega antes de Melquisedec (v. 17),
298 Genesis 1-15, vol. 1, p. 315.
136
mas só fala depois deste (v. 21). Não traz nada. Melquisedec, ao contrário, traz pães e vinho
(v. 18), abençoa a Abrão e bendiz a Deus (v. 19s). Abraão por sua vez mostra sua
generosidade e dá o dízimo (v. 20). Na LXX, quando fala o rei de Sodoma, exige e oferece a
Abraão �um cavalo� (v. 21). A resposta de Abraão surpreende, nada reterá para si, a não ser
o que foi consumido por seus homens e parte deles, visto que não pode falar pelos outros (v.
22).
A narrativa visa enaltecer a Abraão ao mostrar sua generosidade e a sovinice do rei
de Sodoma, talvez de antemão informando o leitor a respeito do caráter de sua gente
representado no rei. Salienta a generosidade de Melquisedec que traz alimento e bênção.
Assim, palavras e atos se põem em relevo.299 Sobre Melquisedec é dito que é �sacerdote do
Deus Altíssimo� (i`ereu.j tou/ qeou/ tou/ u`yi,stou). Por quatro vezes �Deus Altíssimo� é
mencionado. Ligado a Deus está a declaração de que ele �criou o céu e a terra�, que coaduna
com o livro de Gênesis (cf. Gn 1-2). O tema da bênção é recorrente em Gênesis e Gn 14.17-20
torna-se exemplar depois de 12.2s. Mas não só isso, o exercício do sacerdócio se relaciona à
Criação, visa recuperar um caminho perdido.
O tema da �justiça� perpassa a perícope de que nos ocupamos. Melquisedec é rei de
justiça e ao abençoar Abraão reconhece que o Deus Altíssimo esteve com ele em sua luta pela
libertação de Ló (Gn 14.12-16). Os atos e palavras de Abraão revelam sua justiça e finalmente
a resposta dada ao rei de Sodoma (v. 23).300 O rei de Sodoma é a antítese de tudo isso. Quanto
a Melquisedec, sua importância é sugerida por seu ofício e por seus atos e palavras
abençoadoras para com Abraão. Depois disso desaparece da cena.
A pesquisa sugere que Melquisedec, por conta da palavra �Salém�, foi ligado a
Jerusalém e ao sacerdócio ali fixado bem antes da conquista de Davi.301 Mais digno de nota é
que o ceºdeq de seu nome pode sugerir uma certa referência a �Sadoc� (cädôq), um dos
sacerdotes de Davi (2 Sm 8.17) de quem, muitos puristas, farão questão de descender para
exercício do ofício.302 Robert A. Kluger demonstrou em seu estudo do Testamento de Levi
Aramaico, que o campo das dissensões acerca da legitimidade sacerdotal não se resumia só ao
299 Gordon J. WENHAM, Genesis, p. 321. 300 Terence E. FRETHEIM, The book of Genesis, NIB, vol. I, p. 440. 301 cf. Fred L. HORTON Jr., The Melchizedek tradition, p. 48ss; G. J. WENHAM, Genesis, p. 316. 302 G. W. BUCHANAN, Hebrews, p. 94.
137
fator da linhagem de Sadoc, havia outras correntes e outros interesses no judaísmo do
período do 2º templo.303
Enfim, cumpre destacar o encontro de Abraão e Melquisedec em que havia um
sacerdote do Altíssimo em seu tempo, e que este, representando a Deus, abençoou e sinalou
a justiça do patriarca.
4.2.2. Melquisedec no Salmo 110.4
Melquisedec está ligado a Jerusalém por conta do Sl 110.2,4. É a segunda menção de
Melquisedec na Escritura. Quanto à data do Salmo várias são as propostas.304 Porém, uma
interessante é a de que o Sl 110 fora produzido no período dos Hasmoneus, no de Simão
mais propriamente, a fim de legitimar seu governo no acúmulo das funções sacerdotais e
reais. Conforme Josefo, João Hircano I incorporava três funções em si, �governo da nação,
sumo-sacerdote e profecia� (Guerras, 1.68).305 Além de um acróstico do nome �Simão� poder
ser obtido .306 Corrobora para isso o escopo bélico do Salmo:
O Senhor está à tua direita, ele despedaçou os reis no dia da sua ira. Ele julgará as nações, amontoará cadáveres, despedaçará cabeças por muitos lugares da terra. (v. 5s) ku,rioj evk dexiw/n sou sune,qlasen evn h`me,ra| ovrgh/j auvtou/ basilei/j krinei/ evn toi/j e;qnesin plhrw,sei ptw,mata sunqla,sei kefala.j evpi. gh/j pollw/n.
O caráter oracular307 do v. 4 do Sl 110 é manifesto: �Yahweh jurou e jamais desmentirá: �Tu és
sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec� (cf. Am 4.2; 6.8). O texto de Gn
14.17-20 viabiliza a possibilidade de que na Jerusalém (=Salém) pré-israelita o rei da cidade
era também sacerdote. O Salmo 110 seria uma testemunha da vigência de tal tradição
assimilada pelos reis judaítas.308 Desta forma, os papéis real e sacerdotal são unidos, o que
vai ser de muito proveito para o autor de Hebreus.
Um ponto merece nossa atenção. No v. 1, o rei é chamado de �meu senhor� (la|´dönî
/tw/| kuri,w| mou) e convidado para se sentar à direita de Yahweh. No v. 5 (como no v. 2),
303 From patriarch to priest, p. 224s. 304 Status Quaestionis acerca da data cf. Leslie C. ALLEN, Psalms 105-150, p. 83. 305 Compare-se 1 Macabeus 14.41: �E que os judeus e seus sacerdotes haviam achado por bem que Simão fosse o seu chefe e sumo sacerdote para sempre (kai. o[ti oi` Ioudai/oi kai. oi` i`erei/j euvdo,khsan tou/ ei=nai auvtw/n Simwna h`gou,menon kai. avrciere,a eivj to.n aivw/na), até que surgisse um profeta fiel.� 306 Michael ASTOUR, Melchizedek, in: ABD, vol. IV, p. 687. 307 Arthur WEISER diz: �Dois oráculos divinos constituem o cerne do salmo (vv. 1 e 4), que são anunciados ao rei de Jerusalém, certamente por um profeta da corte.�, in: Os Salmos, p. 536. 308 Hans Joachim KRAUS, Salmos 60-150, p. 516.
138
(ku,rioj evk dexiw/n sou/ ´ádönäy `al-yümî|nkä), a expressão �Senhor� dá a entender que a
declaração agora é feita no estilo profético ao rei. Yahweh está à direita do rei, chamado aqui
de Senhor. H. J. Kraus comenta: �Se no v. 1 o rei terreno é chamado de ´ádönäy, agora é
Yahweh que é chamado de ´ádönäy.�309 Isto reforça o papel de lugar-tenente do rei, visto que
é Yahweh que exerce e realiza a justiça, a defesa e as vitórias do monarca (vv. 6s). Destarte,
realeza e sacerdócio são conectados.
A seguir, nossa atenção se volta para a descrição do Melquisedec em 2 Enoc.
4.3. Melquisedec em 2 Enoc
Conhecido também por �Enoc Eslavo� e �Os Segredos de Enoc�, 2 Enoc é um texto de origem
judaica proveniente do I séc. pouco antes da destruição do templo de Jerusalém.310 Deve ter
sido escrito originalmente em grego, sobrevivendo somente em línguas eslavas.311 Embora,
seja firmado nas tradições de 1 Enoc, difere em suas preocupações. Trata de três assuntos
principais: (1) Enoc sobe aos céus, transformado em um anjo, recebe a revelação dos segredos
celestes (cap. 1-34); (2) desce à terra, onde revela os segredos aos seus filhos e os instrui
moralmente (cap. 35-68); (3) foco sobre o sacerdócio pré-deluviano de Melquisedec (69-73).
Em seus capítulos 71-72, narra-se a origem e nascimento de Melquisedec. Sopanim,
esposa do sacerdote Nir, irmão de Noé. De idade avançada, próxima de sua morte, sem a
concorrência de seu marido, engravida-se (2 Enoc 71.1-3). Envergonhada, oculta-se. Nir
depois de algum tempo vai ter com Sopanim, sua gravidez já tem 282 dias. Ao encontrá-la,
Nir, indignado, discute com ela, e a repudia apesar das suas justificativas. Então, ela cai
morta aos pés de Nir. Este, cheio de culpa, chama seu irmão Noé, e juntos resolvem sepultá-
la secretamente a fim de evitar o escândalo da gravidez (2 Enoc 71.1-16). Deixam-na sobre
cama e vão cavar uma sepultura. Nesse meio tempo, vem à luz uma criança, que senta-se ao
lado da morta. Ao retornar, admirados, vêem a criança ao lado direito de Sopanim, limpando
sua roupa.
Noé e Nir ficaram aterrados, com muito medo, pois a criança era completamente desenvolvida fisicamente como uma de três anos. Ele falava por sua própria boca e bendizia ao Senhor. Noé e Nir observaram-no e viram que havia um emblema sacerdotal em seu peito e que tinha um aspecto glorioso. E exclamaram: �Eis que Deus renova o sangue sacerdotal depois de nós, segundo seu beneplácito.�
309 Salmos 60-150, vol. II, p. 517; cf. José BORTOLINI, Conhecer e rezar os Salmos, p. 458. J. Clinton McCANN, Jr., The book of Psalms, NIB, vol. IV, p. 1130; James KURIANAL, Jesus our High Priest, p. 39. 310 Gonzalo Aranda PÉREZ, (Ed.) Literatura judaica intertestamentária, 262. 311 M. E. STONE, Apocalyptic Literature, in: Jewish Writings of the Second Temple Period, p. 406.
139
Apressaram-se Noé e Nir e lavaram o menino, pondo-lhe as vestiduras sacerdotais, oferencendo-lhe o pão santo � e ele comeu � e lhe deram o nome de Melquisedec. (2 Enoc 71.17-21)
O texto acima revela traços surpreendentes atribuídos a Melquisedec. Pode-se perceber que
sua concepção sobrenatural explora a falta de genealogia em Gn 14.17-20. O autor de 2 Enoc
71.17-21 o faz a favor da continuidade e perenidade do sacerdócio colocando as palavras nos
lábios de Noé e Nir, que dizem: �Eis que Deus está renovando o sacerdócio de sangue
concernente a nós, assim como lhe apraz.� A continuidade é mais uma vez referida no
ocultação de Melquisedec no Éden por intermédio do arcanjo Miguel (2 Enoc 71.28-35).
Kevin P. Sullivan rejeita classificar de angelomórficos os traços salientes e peculiares
em Melquisedec nos episódios de 2 Enoc 71-72. Ele entende que, por não haver o registro do
termo �anjo� atribuído a Melquisedec (e a qualquer outra figura), não pode considerá-lo
como angelomórfico.312 Porém, se rende ao fato de que de algum modo, por seu status
exaltado, Melquisedec seria de alguma maneira angélico:
Finalmente, a evidência a respeito de Melquisedec não é clara. Não diz explicitamente se referir a ele como um anjo, mas parece que ele desfruta de um status especial que sugere que ele possa ter sido considerado de alguma maneira angélico.313
Charles A. Gieschen, diametralmente oposto, enfatiza que o episódio de Melquisedec em 2
Enoc deve ser lido contra o pano de fundo em que se encontra.314 O mundo se encontra às
vésperas do Dilúvio (2 Enoc 71.28s; 72.1s), a pecaminosidade aumentava (2 Enoc 71.23),
devido à sua concepção não ser fruto de uma relação sexual pecaminosa e nem experiência
com sangue (que pode ser uma referência ao estado corrompido do sacerdócio), ele pode
expiar os pecados.315 Outros dados são o emblema sacerdotal, sua aparência gloriosa, e sua
ocultação feita pelo arcanjo Miguel compõem os traços angelomórficos de Melquisedec.316
A face �radiante� poderá se manifestar no futuro, quando a criança exercer o
sacerdócio. Aventamos isto devido ao fato de o próprio sacerdote Metusalém ser descrito
com a face iluminada: �E Metusalém subiu ao altar do Senhor, e sua face era radiante, como
o sol ao meio dia, quando se levanta...� (2 Enoc 69.10).317 O louvor que profere seria uma
312 Wrestling with angels, p. 96. 313 Ibid. p. 98. 314 Angelomorphic Christology, p. 172. 315 C. A. GIESCHEN, Angelomorphic Christology, p. 173. 316 Ibid. p. 173. 317 Rescensão �A� lê: �como a estrela da manhã quando surge�.
140
alusão ao Salmo 8.2, tão perfeito quanto ao dos anjos. E seu tamanho fora das medidas para
sua idade, que pode ser confundido com um �gigante�, filho dos anjos (1 Enoc 106.5).
Comer o �pão santo� alusão a Gn 14.18 e ao rito de sagração sacerdotal em Ex 29.31-
33. O nome �Melquisedec� indica ao mesmo tempo para sua justiça contraposta à geração de
Noé e para o seu reinado, substituindo Adão, no Éden (�centro da Terra�), e como cabeça de
todos os �santos sacerdotes� (2 Enoc 71.28-30, 35). O tema da ocultação de Melquisedec tem o
precedente no episódio bíblico da trasladação de Enoc (Gn 5.24).
Passaremos, agora, ao documento extra-canônico mais importante para nossa
pesquisa em que Melquisedec é o protagonista, 11QMelquisedec.
4.4. Melquisedec em 11QMelquisedec
11QMelquisedec compõe-se de 13 fragmentos descobertos em 1956 e publicados pela
primeira vez por A. S. van der Woude publicou em 1965.318 Provavelmente redigido na
segunda metade do séc. I A.E.C. (ou no I séc. E.C.), 11QMelquisedec é um pesher temático,
isto é, diferente dos pesharim que se ocupam de livros, o pesher temático �é um comentário
sobre uma seleção de textos do Antigo Testamento, unidos num propósito teológico�.319
11QMelquisedec, como chegou a nós, trata do ano do jubileu, o ano da remissão das dívidas
dos israelitas. Encadeia-se vários textos (Lv 25.13; Dt 15.2; Is 61.1; Lv 25.10; Sl 82.1; Sl 7.8-9; Sl
82.2; Is 52.7; Lv 25.9), sendo interpretados ou sopesando a interpretação, que é pontuada pela
expressão P�r (pesher=�interpretação�) em 11QMelquisedec ii.4.7.12.17.20; iii.1.
De caráter escatológico, 11QMelquisedec é interpretação da história, ou seja, tem
como referencial a época da Comunidade de Qumran, a partir de que lê as profecias bíblicas
como mistérios desvelados.320
Para os nossos propósitos, o texto de 11QMelquisedec exprime como a comunidade
de Qumran entendia a figura de Melquisedec e, ao mesmo tempo, concorre para
vislumbrarmos parte da especulação de sua figura nos círculos judaicos do I séc. Dito isto,
passamos à apresentação do texto aramaico e a tradução feita pela edição brasileira de
Florentino Garcia-Martinez: 321
318 Paul J. KOBELSKY, Melchizedek and Melchiresa, p. 1. 319 Ibid., p. 1; cf. José ADRIANO FILHO, Melquisedec, um redentor celestial e juiz escatológico, p. 48. 320 Ibid., p. 49. 321 Textos de Qumran, p. 180.
141
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Col. II 1[...] teu Deus ... [...] 2 [...] E o que diz: �Neste ano de jubileu [voltareis cada qual à sua respectiva propriedade�, como está escrito: �Esta é] 3 a maneira (de fazer) [a remissão: todo credor fará remissão do que tiver emprestado [ao seu próximo. Não premerá o seu próximo nem o seu irmão quando se tiver proclamado] a remissão 4 para Deus.� [Sua inter]pretação para os últimos dias se refere aos cativos, dos quais diz: �Para proclamar aos cativos a libertação.� E fará prisioneiros 5 os seus rebeldes [...] e da herança de Melquisedec, pois [...] e ele que 6 os fará retornar a eles. Ele proclamará para eles a libertação para libertá-los d[a dívida] de todas as suas iniqüidades. E isto suce[derá] 7 na semana primeira do jubileu que segue os no[ve] jubileus. E o dia [das expiaçõ]es é o final do jubileu décimo 8 no qual se expiará por todos os filhos de [Deus] e pelos homens do lote de Melquisedec. [E nas alturas] ele se pronun[ciará a seu] favor segundo os seus lotes; pois 9 é o tempo do �ano de graça� para Melquisedec, para exal[tar no pro]cesso os santos de Deus pelo domínio do juízo, como está escrito 10 sobre ele nos cânticos de Davi que diz: �Elohim se ergue na assem[bléia de Deus], em meio aos deuses julga�. E sobre ele diz: �Sobre ela 11 retorna às alturas, Deus julgará os povos�. E o que di[z: �Até quando jul]gareis injustamente e guardareis consideração aos malvados? Selah.� 12 Sua interpretação concerne a Belial e aos espíritos de seu lote, que foram rebeldes [todos eles] apartando-se dos mandamentos de Deus [para cometer o mal.] 13 Porém Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus [nesse dia, e eles serão libertados das
143
mãos] de Belial e das mãos de todos os es[píritos de seu lote.] 14 Em sua ajuda (virão) todos �os deuses de [justiça�; ele] é que[m prevalecerá nesse dia sobre] todos os filhos de Deus, e ele pré[sidirá a assembléia] 15 esta. Este é o dia d[a paz do qual] falou [Deus desde antigamente pelas palavras de Isa]ías o profeta, que disse: �Que] belos são 16 sobre os montes os pés do proclamador que anuncia a paz, do pro[clamador do bem que anuncia a salvação,] dizendo a Sião: �teu Deus [reina��.] 17 Sua interpretação: Os montes são os profe[tas...] 18 E o proclamador é [o un]gido do espírito do qual falou Da[niel... e o proclamador do] 19 bem que anuncia a salva[ção é aquele do qual está escrito que [ele o enviará �para consolar os aflitos�, sua interpretação:] para instruí-los em todos os tempos do mun[do...] 21 em verdade. [...] 22 [...] Ela foi apartada de Belial e ela [...] 23 [...] nos juízos de Deus como está escrito sobre ele: �Dizendo a Sião: �teu Deus reina��. [�Si]ão, é 24 [a congregação de todos os filhos de justiça, os] que estabelecem a aliança, os que evitam andar [pelo ca]minho do povo. �Teu Deus�, é 25 [... Melquisedec, que os livra]rá da mão de Belial. E o que diz: �Fareis soar o chi[fre em to]do o país�. Col. III 1 [Sua interpretação...] 2 e conheceis [...] 3 Deus [...] 4 e muitos [...] 5 [...] ... Melquisedec [...] 6 a lei para eles [...] a mão [...] 7 consumirão Belial com fogo [...] Belial, e se rebelarão [...] 8 os desejos de seus corações [...] ... [...] 9 as muralhas de Judá [...] as muralhas de Je[rusalém...] 10-20 (restos mínimos).
4.4.1. Melquisedec multifacetário
O protagonista de 11QMelquisedec é Melquisedec. Seu nome aparece várias vezes no texto
(ii.5, 8, 9, 13, [25]; iii.5). A ele são atribuídas funções de �redentor�, �mensageiro�, �messias�,
�ungido�, �o príncipe�, �anjo� e o �ungido do espírito�.
4.4.1.1. Melquisedec como redentor celeste
A função de redentor se realiza na �primeira semana do último jubileu� (ii.7). Para 1QS
i.18,23; ii.19 e em outros lugares, a presente era é do domínio de Belial, que é inimigo do
Príncipe da Luz e da Comunidade. Em 11QMelquisedec o tempo de seu domínio chega ao
fim, no último ano do décimo jubileu: �consumirão Belial com fogo� (ii.7). Os filhos da luz
juntos de seu príncipe farão guerra contra os filhos das trevas liderados pelo Príncipe das
Trevas, isto é, Belial (1QM i.1). O período de dez jubileus inspira-se em Lv 25.8 associado a
Dn 9.2, 24-27, que tem por base Jr 25.11, 12; 29.10. Sabe-se que um jubileu acontece a cada 49
anos, conforme Lv 25.8, que resulta em 490 anos, este perfaz o período de tempo do cativeiro
dos �filhos da justiça�.
144
O Dia das Expiações (Büyôm haKKiPPùrîm),322 conforme ii.8s, sugere a atividade sumo
sacerdotal, mas um sumo sacerdote celestial. Concorre ainda para a remissão a representação
dos santos de Deus na Assembléia Divina mediante o cumprimento do direito conduzido
por Melquisedec (ii.11). Adicione-se a isto o papel de paladino da justiça ao realizar a
vingança expedida por Deus para libertá-los �das mãos de Belial� (ii.13).
4.4.1.2. Melquisedec na Assembléia Divina
Como vimos no cap. III desta tese, a Assembléia Divina é presidida por Deus no Sl 82. O
nome de Deus (yhwh) não aparece, mas ´élöhîm (cf. Sl 82.1,8), embora `elyôn
(�Altíssimo�)esteja expresso no v. 6. Apesar disto, o Salmo deixa lugar para que um possível
´élöhîm (=anjo) se destaque de outros ´élöhîm (=anjos). O autor de 11QMelquisedec
aproveitou-se dessa possibilidade e atribuiu a presidência a Melquisedec que está acima de
todos os outros ´élöhîm (v. 1) e acima das nações na referência ao Salmo 7.6-8 precedida pela
fórmula de citação: �E sobre ele diz: �Sobre ela retorna às alturas, Deus (´élöhîm) julgará os
povos�� (ii.10-11). O Sl 7.6-8 no TM difere do texto de Qumran. O TM lê yhwh, enquanto que
11QMelquisedec lê ´élöhîm (LXX: ku,rioj). �. No entanto, há os que acham que Melquisedec
seja o próprio Yahweh. Ao refutar o parecer de Franco Manzi,323 que defende que
Melquisedec é Yahweh, J. Kurianal argumenta a favor da sua função mediadora.324 De igual
modo, Florentino Garcia-Martinez expressa que os argumentos de Manzi não se sustentam
diante de 11QMelquisedec ii.13 �Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus�
salienta a distinção entre Deus e Melquisedec.325 Melquisedec é aquele que �proclamará para
eles a libertação para libertá-los d[a dívida] de todas as suas iniqüidades� (ii.6). Então,
encontrar em Melquisedec, manifestamente um mediador, epíteto de Yahweh, parece
exceder ao próprio texto de 11QMelquisedec. Quanto aos outros ´élöhîm, em
11QMelquisedec ii.12 são os �Belial e os es[píritos de seu lote.]�. Melquisedec é, portanto,
322 A versão brasileira traduz Büyôm haKKiPPùrîm por �o dia das expiações� ao invés de �dia da expiação� da versão inglesa. 323 Melchisedek e l�angelologia nell�Epistola agli Ebrei e a Qumran, p. 51. 324 Jesus our High Priest, p. 176: �as qualificações de Melquisedec como �o arauto� (ii.16 duas vezes, 18 duas vezes) e o �ungido do espírito� (ii.18) fazem improváveis que Melquisedec e Yahweh seja a um só tempo uma e mesma pessoa neste documento. O título �arauto� não se refere ao originador da mensagem, mas a alguém que proclama a mensagem. Portanto, desde que Melquisedec seja um �arauto�, o originador da mensagem não é ele mesmo, mas outro, Yahweh.� 325 F. GARCÍA-MARTINEZ, Las tradiciones sobre Melquisedec em los manuscritos de Qumrán, p. 73.
145
uma figura celeste e potente, também atestado em 1Q401.xi.1-3, conforme a reconstrução de
C. Newsom:326
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1 [...] ... sacerdote[s de ...] 2 [... d[euses do conhecimento e [...] 3 [... Melqui]sedec, sacerdote na assembléia de Deus ...].
4.4.1.3. Melquisedec e Belial
Capaz de liderar as hostes angélicas como faz Miguel em 1QM xvii.6-7, um �duplo� do
Príncipe da Luz desde que o comandante dos exércitos celeste possui três nomes (4Q544 iii.1-
2) assim como o Príncipe das trevas: �e um dos nomes de quem �domina sobre todas as
trevas� é Melquiresha, antônimo perfeito de Melquisedec.�327
Oposto a Melquisedec, Belial (�Beliar� em Testamento de Levi 19.1)328 junto aos outros
espíritos de seu lote se tornaram rebeldes a Deus. Belial (büliyyaº`al) é a personificação da
impiedade e da morte. Quanto a isto, diz-se expressamente no paralelismo sinonímico do Sl
18.5: �As ondas da morte me envolviam, as torrentes de Belial me aterravam.�329 Seus crimes
vinculam-se a indivíduos que incentivam a idolatria (Dt 13.14), ao perjúrio (Pv 19.28), à
violação da hospitalidade (Jz 19.22), de lesa-majestade (1 Sm 10.27), à embriaguez feminina (1
Sm 13-17), à usurpação (2 Sm 16.7s), ao sacrilégio (1 Sm 2.12-17) e, digna de nota, à retenção
do direito à remissão do ano sabático em Dt 15.9s:
Fica atento a ti mesmo, para que não surja em teu coração um pensamento vil (büliyyaº`al), como o dizer: �Eis que se aproxima o sétimo ano, o ano da remissão�, e o teu olho se torne mau para com o teu irmão pobre, nada lhe dando; ele clamaria a Yahweh contra ti, e em ti haveria um pecado. 10 Quando lhe deres algo, não dês com má vontade, pois, em resposta a este gesto, Yahweh teu Deus te abençoará em todo teu trabalho, em todo empreendimento da tua mão.
As palavras de Dt 15.1-11 em seu campo semântico (ano de remissão; más intenções;
injustiça; Deus como juíz) parecem ecoar tanto a Gn 14.17-20 como a 11QMelquisedec, isto é, 326 Ibid.,. p. 70. 327 F. GARCIA-MARTINEZ, Las tradiciones sobre Melquisedec em los manuscritos de Qumrán p. 74. 328 Outros nomes também se referem à mesma entidade: �Mastema� (1QM 13.11; cf. Jubileus 10.8); �Satã� (1QH iv.6; Vida de Adão e Eva 9-16). 329 Belial também é transliterado em Dt 13.13; Jz 19.22; 1 Sm 1.16; 2.12; 10.27; 25.17; 2 Sm 16.7; Na 1.15. Outros lugares em que aparece o nome �Belial� são: 2 Co 6.15; Jubileus 1.20; 15.33; Oráculos Sibilinos ii.167; iii.63,67; Ascensão de Isaías 1.8-9.
146
a restauração de bens e pessoas (Gn 14.16), liberalidade e generosidade (de Abraão e de
Melquisedec: Gn 14.18-20) e bênção (Gn 14.19s) contrapostas às palavras do rei de Sodoma,
uma espécie de gente de Belial (Gn 14.21; cf. Gn 18.17-21). Estes temas, ainda que
indiretamente, seriam re-aproveitados e re-configurados em 11QMelquisedec?
Visto que Melquisedec age como lugar-tenente de Yahweh; seu opositor, Belial, é
inimigo à sua altura.330 Belial não é comparável a Yahweh, mas aos anjos da presença (ex.:
Miguel). Vejamos 1QM xiii.11-14:331
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11Tu criaste Belial para a fossa, anjo de hostilidade; seu [domí]nio são as trevas, seu conselho é para o mal e a iniqüidade. 12Todos os espíritos de seu lote, anjos de destruição, andam nas leis das trevas; para elas vai seu único desejo. Porém nós, no lote de tua verdade, regozijemo-nos em tua mão poderosa, 13exultemos em tua salvação, alegremo-nos em tua ajuda e em tua paz. Quem como tu na força, Deus de Israel? 14Tua mão poderosa está com os pobres! E que anjo ou príncipe é como tu na ajuda?
Para 1QS i.18,23; ii.19 e em outros lugares, a presente era é do domínio de Belial, que é
inimigo do Príncipe da Luz e da Comunidade. Em 11QMelquisedec o tempo de seu domínio
chega ao fim, no último ano do décimo jubileu: �consumirão Belial com fogo� (ii.7). Os filhos
da luz juntos de seu príncipe farão guerra contra os filhos das trevas liderados pelo Príncipe
das Trevas, isto é, Belial (1QM i.1). Por exercer a justiça na Assembléia Divina e vingança
contra Belial, Melquisedec proclamar a paz de Yahweh (ii.16)
4.4.1.4. Melquisedec como Messias celestial
Como Messias, a Melquisedec cabe restaurar o povo de Deus e consolá-lo com a instrução
divina (ii.17-25). Em 11QMelquisedec ii. 24fine e 25 lemos:
330 José ADRIANO FILHO, Melquisedec, um redentor celestial e juiz escatológico, in: Paulo Augusto S. NOGUEIRA (Ed.), Estudos de Religião 19, p. 55. 331 Texto que faz alguma alusão ao Sl 89.6-9.
147
�Teu Deus�, é [... Melquisedec, que os livra]rá da mão de Belial. E o que diz: �Fareis soar o chi[fre em to]do o país�.
Apesar de ser uma reconstituição ao identificar Melquisedec com �Teu Deus�, tal
reconstituição tem a seu favor a continuação que menciona �Belial�, que já foi apresentado
como o seu inimigo derrotado (ii.12-13). C. H.T. Fletcher-Louis sugere que em
11QMelquisedec ii.25 o autor substitui o tetragrama sagrado (yhwh) usado no TM (LXX:
kuri,oj) para Isaías 61.2 por Melquisedec.332 Seu argumento baseia-se em 11QMelquisedec
ii.9: �é o tempo do �ano de graça� para Melquisedec...�, que é lido em Is 61.2: �proclamar um
ano aceitável a Yahweh...�. Por sua vez, J. Adriano Filho lê como �provável que Elohim aqui
tenha sido interpretado como Melquisedec.�333 A favor deste está o fato de que Melquisedec
é chamado de �Elohim� em 11QMelquisedec ii.10 na citação do Sl 82.1. A favor daquele é o
texto de Isaías. Ao se referir a �Deus� (yhwh) para Melquisedec aventamos ainda que nos
vv. 1, 6, 8 do Salmo 82, a palavra usada para �Deus� é ´élöhîm, mas na segunda parte do v. 6
aparece a expressão ûbünê `elyôn (�filhos do Altíssimo�), que claramente se refere a Yahweh.
Sintomático é que em Gn 14.18 Melquisedec seja apresentado como köhën lü´ël `elyôn
(�sacerdote do Deus Altíssimo�) e que em 11QMelquisedec ligue-se o Sl 82.1 a Melquisedec,
ou seja, o próprio Gn deu ensejo à atribuição divina ao sacerdote de Salém.
A citação do Sl 7.8s (11QMelquisedec ii.11) é pertinente para o aspecto judicial e real
de Melquisedec, mas lido em conexão com o Sl 82.1 (ii.9-10a) como faz 11QMelquisedec.
Assim, ao citar Sl 82.1 em 11QMelquisedec ii.9-10a se lê: �Elohim se ergue na assem[bléia de
Deus]...�. Tanto em seu lugar original como aqui, Elohim se levanta para mostrar indignação
diante dos juízos da Assembléia dos Elohim. Já o texto de 11QMelquisedec ii. 11 se lê: �Sobre
ela retorna às alturas, Deus julgará os povos�. No TM, o Sl 7.8s fala do retorno de Deus
(Yahweh) às alturas para julgar. Em 11QMelquisedec, Melquisedec é que julga. Exerce-se o
julgamento sentado num trono como em Dn 7.9-10:
Eu continuava contemplando, quando foram preparados alguns tronos e um Ancião sentou-se. Suas vestes eram brancas como a neve; e os cabelos de sua cabeça, alvos como a lã. Seu trono eram chamas de fogo com rodas de fogo ardente. Um rio de fogo corria, irrompendo diante dele. Mil miríades o serviam, e miríades de miríades o assistiam. O tribunal tomou assento e os livros foram abertos.
332 All the Glory of Adam, p. 216. 333 Melquisedec, um redentor celestial e juiz escatológico, p. 60.
148
As partes grifadas manifestam os preparativos para o exercício de julgamento formal.
Corrobora para isto o ato do Ancião se sentar, e após ele, o tribunal também se senta. O
julgamento se inicia com a abertura dos livros.
Melquisedec senta-se para julgar e seu posicionamento em relação aos �filhos de
Deus� revela seu status exaltado. Assentar-se acima da Assembléia (11Q13 ii.14) aponta para
o seu caráter elevado.334 Desde que o imaginário da Assembléia Divina se apresenta na
Bíblia como uma reunião em recinto da realeza335 e de que é daí que Deus preside as
deliberações, podemos entender que Melquisedec se apresenta no documento de Qumran
como entronizado, o que faz sentido desde que ele é um �rei� (Gn 14.18).
Enviado por Deus, o proclamador é o �ungido do espírito� (11Q13 ii.16-18). O profeta
era visto como participante da Assembléia Divina e recebia o encargo de entregar as
comunicações ali deliberadas (1 Rs 22.19; Is 6.1, 1 Enoc 1.9; 12.1-6). Na confluência de Dn 9.25
com Is 52.7 Melquisedec é a um só tempo mensageiro da salvação e Messias que traz
conforto, justiça e paz. Por ele �Deus reina� em Sião (11Q13 ii.23-25). Os atributos de
Melquisedec de rei, sacerdote e profeta são ampliados ao máximo a fim de esboçar as
expectativas da Comunidade de Qumran a respeito de seu Redentor Celestial.
4.4.1.5. Sumário: Melquisedec angelomórfico
Chamamos a atenção para os traços que favorecem os aspectos angelomórficos de
Melquisedec em 11QMelquisedec. A Melquisedec atribui-se uma �herança� constituída dos
�filhos de Deus� e pelos �homens� de seu lote (ii.5-6) e sobre quem governa e protege (ii.14),
pois fazem parte dela . Toma partido destes na Assembléia Divina (ii.9,11) e repreende os
asseclas de Belial (ii.12) e os condena conforme os juízos de Deus (iii.7). Aqui vale lembrar a
atribuição divina a Melquisedec para presidir a Assembléia Divina (ii.10) e para não haver
dúvidas, segue-se a interpretação: �Teu Deus�, é [... Melquisedec, que os livra]rá da mão de
Belial� (ii.25). Melquisedec também age como redentor dos de seu lote (ii.5-8,25), pois foi
enviado por Deus para trazer o consolo e a instrução (ii.19). Ainda que nestes fragmentos
não se mencione336 Gn 14.17-20 e Sl 110, o caráter �real� de Melquisedec é salientado pela
citação e interpretação de Is 52.7 e pela menção de Sião (ii.23). Podemos perceber que
334 Nas cerimônias públicas dos romanos, o magistrado sentava-se num trono posto sobre um estrado, o que o colocava numa situação mais elevada diante de outrem. cf. AYMARD, A./AYBOYER, J., Roma e seu império, p. 157. 335 Martha HIMMELFARB, Ascent to heaven in jewish apocalypses, p. 14. 336 O que poderia ter sido feito em partes anteriores ou posteriores perdidas do documento.
149
Melquisedec a ênfase que o apresenta características de Messias celestial (ii.18; cf.
4QApocalipse Messiânico 2.ii). O Melquisedec de 11QMelquisedec possui, desse modo,
atribuições: divinas, angélicas e humanas. Esta última presente na reminiscência de seu
nome337 (Gn 14.18), o que o torna paradigmático para a comunidade sacerdotal de Qumran
em seu anelo de uma existência angelomórfica expresso em 4QShir-Shab (401.xi.1-3).
Melquisedec de 11QMelquisedec possui afinidades com o �Filho do Homem� de
Daniel 7.13, de que nos ocuparemos a seguir.
4.4.2. Melquisedec, O Filho do Homem e Jesus: O sumo sacerdócio angelomórfico
Em seu estudo a respeito de Melquisedec e Melquiresha, Paul J. Kobelski tem dedicado um
capítulo que trata do tema do �Filho do Homem� em Dn 7.13 e sua relação com
11QMelquisedec.338 Ele propõe que 11QMelquisedec é elaborado com base nas tradições do
Filho do Homem, principalmente a de Dn 7. Seu estudo é pertinente ao nosso, pois procura
lançar luz à Cristologia de Hebreus.
Das cerca 90 referências ao ��Filho do Homem�� no N.T., somente 4 não se encontram
nos Evangelhos Sinóticos: Jo 5.27; Hb 2.6; Ap 1.13; 14.14. As duas passagens de Ap são
alusões a Dn 7.13, sendo que Jo 5.27 é a única citação que aplica diretamente Dn 7.13 a Jesus.
Quanto a Hb 2.6, Kobelski descarta, pois entende que o autor cita o Sl 8.5 ��de uma maneira
que huios anthropou pode nem se referir a Jesus mesmo��.339 Dado que sustenta a tese de que a
expressão ��Filho do Homem� é proveniente de Jesus. Por conta disto, faz-se a pergunta: Já
havia uma compreensão estabelecida que entendia o ��Filho do Homem�� atribuída a uma
figura anterior ao NT?340 Em sua discussão sobre o tema, o ponto de partida é Dn 7.9-13, pois,
ainda que a expressão ��Filho do Homem�� esteja presente no livro das Similitudes de Enoc (1
Enoc 37-71), devido às certas dificuldades, Kobelski considera Daniel mais adequado.
Leve-se em conta que a proposta bem aceita é a de que o ��Filho do Homem��
possivelmente seja um anjo dar sustentação de que Melquisedec em 11QMelquisedec é
identificado com Miguel.341 Os paralelos inventariados por Kobelski são: (1) Tanto Dn 7 (vv.
10, 14) como 11QMelquisedec tem como ambientação o fim dos tempos ao referirem-se a um
337 cf. tb. C. H. T. FLETCHER-LOUIS, All the glory to Adam, p. 220. 338 Melchizedek and Melchiresa, pp. 130-137. 339 Ibid., p. 130. 340 Ibid., p. 132. 341 Paul J. KOBELSKI, Melchizedek and Melchiresa, p. 133.
150
julgamento e à derrota bélica do inimigo; Miguel é apresentado em Dn 12.1 com tonalidades
judiciais e bélicas empenhado em libertar o povo, e Melquisedec possui os mesmo traços em
11QMelq ii.9-14, 25; ambos são exaltados nas alturas (Dn 7.9, 13; 11QMelquisedec ii.10-11);
triunfam sobre o poder do oponente (Dn 7.23-27; 12.1; 11QMelq ii.13-16, 25); são reis (Dn
7.14; 11QMelquisedec ii.7-8, 16, 23-25); (2) ainda mais digno de nota é a relação dos dois
textos com o Salmo 110, o qual o autor de Daniel teria em mente ao compor um com �Filho
do Homem��, dado que Melquisedec é mencionado no v. 4 e ao mesmo tempo que no v. 1 é
dado o privilégio de alguém se sentar à direita do Senhor, já que em Dn 7.9 faz referência ao
Ancião de Dias (=Deus) e a tronos, possuindo autoridade para reinar e receber o louvor do
povo (Sl 110.3 cf. Dn 7.14); a figura exaltada do Sl 110 pode ser encontrada em Melquisedec
na Assembléia Divina (11QMelquisedec ii.9-11), em sua vitória sobre Belial e seus asseclas
(11QMelquisedec ii.12-14; iii.7); a pessoa exaltada como rei em Sl 110.2 em Melquisedec como
Elohim que é rei.342
Todavia, a tese de Kobelski pode em um ponto ser alterada, ou seja, na identificação
do ��Filho do Homem�� como o anjo Miguel. Antes de nos determos na provável alteração,
convém apresentar a proposta de Miguel como ��Filho do Homem�� de acordo com seus
promotores mais expoentes.
4.4.3. O Filho do Homem como sumo sacerdote
Como vimos acima, a solução da identidade do Filho do Homem é bastante enigmática. A
conclusão de se identificá-lo com Miguel parte das descrições disponíveis na tradição do
judaísmo do período do 2º templo. No entanto, Miguel não é o único candidato para isso.
Outros foram sugeridos: Enoc, Noé, Melquisedec, Jacó, Moisés. Chama a atenção o fato de se
propor uma figura humana, deveras exaltada, mas humana.
C. H. T. Fletcher-Louis recentemente fez uma proposta alternativa (na verdade, uma
re-elaboração da tese de André Lacoque)343 a de que o ��Filho do Homem�� seria um sumo
sacerdote. Sua proposta merece atenção, pois, possui elementos que corroboram para nossa
tese. Apresentamos os pontos mais importantes da argumentação.
Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que já havia tradições angelomórficas que
visavam determinados indivíduos exaltados à estatura angélica (Nm 24.17; 2 Sm 14.17, 20;
342 Ibid., p. 135. 343 The high priest as divine mediator in the Hebrew Bible: Dan 7.13 as a Test Case, pp. 161, 169.
151
19.27; Is 9.5; Zc 12.8; Ml 2.7) anteriores à crise Macabéia. Assim, o autor de Daniel tinha à
mão certa quantia de material que lhe proporcionava condições de dar expressão a uma
figura que se torna um vizir de Deus.
O quadro referencial histórico de Dn 7.13 também é importante para a construção da
identidade do ��Filho do Homem��. Em sua presente forma, o livro de Daniel trata de um
conflito entre o Deus de Israel acompanhado de seus anjos e as forças demoníacas
incorporadas no reino macedônico, e o triunfo final de Deus.344 A ameaça representada por
Antíoco IV é descrita nos cap. 7-12 de Daniel. Tal crise centrava-se sobre à profanação do
culto do Templo de Jerusalém (Dn 8.10-14; 11.30-31; 12.10-13).
Uma possível resposta à pergunta pela identidade de Daniel é oferecida no acréscimo
ao livro, no cap. 14.2 de Daniel na LXX (��Bel e o Dragão��) se diz que Daniel era sacerdote.
Soma-se ainda o fato de que o caráter apocalíptico do livro segue a tradição de Ez e Zc 1-6,
que eram profetas-sacerdotes. O rigorismo legal com que Daniel é descrito também pode ser
um indício que ele era um sacerdote, visto que, as observações caem no âmbito da
comensalidade (cf. Dn 1.8), além de que dele foi requerido que fosse �sem defeito algum�
(Dn 1.4), requisito importante para o ofício sacerdotal.
Outrossim, o livro como um todo faz contínuas referências ao Templo de Jerusalém.
Exemplos da primeira parte, encontram-se em Dn 3, o edito do rei de se prestar culto a uma
estátua de ouro; a constante glorificação do Senhor (Dn 2.20-23, 47; 3.17-18, 28, 31-33; 4.23-24,
28-29, 34; 6.26-29); a profanação das taças do santuário por Baltazar (Dn 5.1-6.1); a resistência
de Daniel diante do culto ao rei (Dn 6.2-25). Na segunda parte temos, a condenação das
bestas, e em especial da quarta besta porque pronunciava palavras arrogantes (Dn 7.11-12,
23-27; 8.9-11); a menção do sacrifício perpétuo, o abominável da desolação e o sacrifício
perpétuo do santuário (Dn 8.13; 11.31, 36-38; 12.11); a purificação do santuário (Dn 8.14; 9.17,
24, 27), sendo no santuário que o nome de Deus é invocado (Dn 9.18-19; Dt 12.11; Sirácida
50.20).
Observe-se também que a expressão �nossos príncipes� (duna,staj h`mw/n/Särêºnû)
em Dn 9.6 se utiliza após �nossos reis� (basilei/j h`mw/n/müläkêºnû) e antes de �nossos pais�
(pate,raj h`mw/n/´ábötêºnû), numa ordem que se refere a �reis, sacerdotes e anciãos�; note-se
344 O livro de Daniel tem os cap. 1-6 ambientado no exílio de Babilônia, mas procedente do período persa ou helenístico. Enquanto que os cap. 7-12 procedem do início do II séc. A.E.C. e descrevem os eventos durante a crise desatada por Antíoco IV.
152
ainda Dn 9.25, o �Príncipe ungido� (Lv 8.11). Visto que a monarquia havia desaparecido
depois do exílio, o autor se refere à autoridade que a um só tempo sustenta tanto o poder
político e religioso do período dos macabeus, isto é, o sumo sacerdote.
Sua oração parece ter como pano de fundo Lv 26.14-46 e Daniel ao fazer uma oração
do tipo sacerdotal, isto é, a que o sacerdote faz em nome do povo: �Nós pecamos, cometemos
iniqüidades, agimos impiamente e rebelamo-nos (...). A ti, Senhor, a justiça; e a nós a
vergonha no rosto, como acontece hoje para os homens de Judá, Jerusalém, todo o Israel�
(Dn 9.5, 7).
Daniel no papel de vidente tem garantido um lugar de destaque nos impérios
babilônico e persa. A primeira evidência é a de Dn 2.48-49, texto que trouxe dificuldades aos
intérpretes, tanto judeus como cristãos.345 Após decifrar qual era o sonho de Nabucodonosor,
Daniel se torna alvo de veneração, ao ponto de o imperador ordenar que lhe oferecessem
��oblação e sacrifício de agradável odor��. A cena lembra a de Alexandre Magno ao prestar
veneração diante do sumo sacerdote Jaddua (Antiguidades Judaicas 11.331). Além dessa
dignidade, Daniel recebe outra, a de magistrado, ele e seus amigos. Em Dn 5.29, Batazar
oferece-lhe a dignidade de ser o terceiro em seu reino, Daniel rejeita. Porém, no reinado de
Dario, Daniel é o segundo em poder de comando (Dn 6.2-5). Isto talvez sugira uma chave
para a interpretação de Dn 7.14, em que ��um como Filho de Homem�� recebe poder e reino.
Chama também a nossa atenção a descrição de �um homem revestido de linho� (Dn
10.5-6), que conforme C. Rowland (vide acima), é a descrição do �arcanjo Miguel�. Note-se
que a figura está mais para sacerdote do que para rei. Vejamos a comparação de três textos:
Sirácida 50.5-11 (O sumo sacerdote Onias) Como ele era majestoso, cercado de seu povo, quando saía de detrás do véu, como a estrela da manhã em meio às nuvens, como a lua cheia, como o sol radiante sobre o Templo do Altíssimo, como o arco-íris brilhando nas nuvens de glória, como a rosa na primavera, como o lírio junto à fonte, como um broto do Líbano no verão, como o fogo e o incenso no incensório, como vaso de ouro maciço, ornado de pedras preciosas, como a oliveira carregada de frutos, como o cipreste elevando-se até as nuvens.
O texto acima é composto de uma série de metáforas, todas referentes ao sumo sacerdote
quando saía do �Santo dos Santos� no �Dia da Expiação� (cf. Lv 16). O tertius comparationis
não está no vestuário, mas na sua pessoa. Os elementos �estrela da manhã�, �nuvens�, �lua
cheia�, �sol radiante�, �arco-íris�, etc., destacam um tipo de transformação ocorrida dentro
345 John J. COLLINS, Daniel, p. 171.
153
do �Santo dos Santos�. Já Sirácida 50.11-12 descreve o vestuário de gala, que ao contrário do
vestuário despojado, de linho branco usado no �Dia da Expiação�, era muito ornamentado e
vistoso.
�Nuvens�, �arco-íris�, �sol radiante� são componentes, via de regra, das
manifestações divinas, por exemplo Ez 1 e 10. Veja-se também o cântico de louvor do Sirácida
42.15-43-33, em que o autor lista muitos elementos aqui elencados e outros (sol, lua, estrelas,
arco-íris, nuvens, neve) em sua representação à Glória de Deus. Na descrição do sumo
sacerdote pelo Sirácida dois componentes são expressivos para Dn 7.14, ��as nuvens�� que ali
também se encontram; e o sumo sacerdote como o ser humano que pode se aproximar de
Deus, isto é, o protótipo de humanidade perfeita, inspirado em Gn 1, cuja tradição é
sacerdotal (P).
São fortes indícios que sustentariam toda a especulação angelomórfica no período de
que tratamos. Contudo, se o Filho do Homem de Dn 7.13 for Miguel ou um sumo sacerdote,
o fato é que o Filho do Homem apresenta expressões angelomórficas a ponto de ser
confundido com um anjo.
Podemos agora fixar nossa atenção na Carta aos Hebreus.
4.5. Síntese de Hebreus 7.1-29
O texto de Hb 7 é considerado um �midrash� homilético sobre o Sl 110.4 e Gn 14.17-20,
assim, são interpretados detalhes com vistas a expressão de realidades superiores.346 Uma
distinção entre midrash exegético e midrash homilético pode não ser tão evidente, desde que
tais gêneros podem ser mesclados; contudo, enquanto o primeiro oferece uma interpretação
versículo a versículo, palavra a palavra, o segundo oferece um comentário edificante sobre
um versículo ou tema principal.347 Grosso modo, a estrutura básica de um midrash pode ser
disposta em citação da Escritura e comentário, o qual lança mão de subformas, como por
exemplo o encadeamento de textos ordenados da Lei, Profetas e Escritos.348 De modo que,
�midrash é um tipo de literatura, oral ou escrita, que tem seu ponto inicial num fixado texto
346 Victor C. PFIZTNER, Hebrews, p. 104; José ADRIANO FILHO, Peregrinos neste mundo, p. 132. 347 H. L. STRACK/G. STEMBERGER, Introducción a la literature talmúdica y midrásica, p. 328. 348 James L. BAILEY/Lyle D. VANDER BROEK, Literary forms in the New Testament, p. 42.
154
canônico, considerado palavra de Deus revelada pelo midrashista e por sua audiência, em
que o texto é citado ou aludido.�349
Hebreus 7.1-29 é delimitado por 6.19-20 e por 8.1s. Nestes dois textos os temas a
serem desenvolvidos são anunciados: �sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec� e �o
santuário celeste� respectivamente. Em termos de retórica, trata-se de provas extrínsecas, isto
é, �provas independentes da arte� (Aristóteles, Arte Retórica, 1.15.1). Em geral, a
argumentação parte de cinco tipos de provas: (1) as leis, (2) as testemunhas, (3) os contratos,
(4) as confissões, (5) o juramento (Aristóteles, Arte Retórica 1.15.1).350 O autor se utiliza dos
cinco tipos, vejamos alguns exemplos:
(1) Hebreus 7.1-10 trata do testemunho acerca da superioridade do
sacerdócio de Jesus. Observe-se o v. 8 em que se encontra o particípio
presente marturou,menoj (testificando; cf. v. 17).
(2) Em 7.11-19 o assunto é a mudança da lei. Mas 7.1-10 também faz
referência à lei (v. 5: kata. to.n no,mon), o mesmo se dá em 7.28 (meta. to.n
no,mon).
(3) Juramento (meta. o`rkwmosi,aj) como tipo de prova é o assunto de 7.20-
28 na discussão da �ordem de Melquisedec� (cf. 6.13).
(4) As alianças (contratos), a antiga e a nova aliança são discutidas a partir de
Hb 8.1 (cf. 8.7: diaqh,kh).
(5) Confissão é aquela feita pela comunidade crente, comunidade
confessante, já mencionada em Hb 3.1 (avrciere,a th/j o`mologi,aj
h`mw/n).
No primeiro bloco, o autor se ocupa de apresentar os itens que classificam o
sacerdócio levítico como inferior ao sacerdócio de Jesus. Visto que Jesus não descende da
tribo de Levi, mas de Judá (Hb 7.14), o assunto se torna de �difícil explicação� (Hb 5.10-11).351
Para seus objetivos, o autor recorre à figura de Melquisedec. O tema de Melquisedec vem
349 Gary G. PORTON, Midrash, in: ABD, IV, p. 819. 350 �São em número de cinco: as leis, as testemunhas, os contratos, as confissões obtidas pela tortura, o juramento�. 351 À reprimenda expressa em Hb 5.11-14 encontra-se fundamentada em Quintiliano, Inst. Orat. que atribui ao ouvinte a responsabilidade de ser atencioso.
155
sendo aludido em Hb 1.3; 2.17-18; 3.1; 4.14-16 e claramente anunciado em Hb 4.14-16,
recebendo em Hb 6.20 o título temático: �...nomeado sumo sacerdote perpétuo na linha de
Melquisedec�.
Hebreus se interessa por dois temas neste bloco (Hb 7.1-10), a bênção de Melquisedec
e o dízimo de Abraão, estes são os dois argumentos utilizados pelo autor para fundamentar
o testemunho de tal superioridade, em que se deterá com mais vagar em Hb 7.11-28. Neste, a
atenção do autor se volta para a superioridade de seu sacerdócio a partir do Sl 110.4. De Hb
7.11 em diante, o autor interpreta o Salmo 110.4. Aí seu tema passa a ser a superioridade do
�Sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec�, expressão que aparece três vezes no texto
(vv. 11, 17, 21 ). Sendo que a sua explicação se inicia na segunda metade do verso: �Segundo
a ordem de Melquisedec� (v. 11); na segunda vez utiliza-se do verso inteiro: �Tu és sacerdote
para sempre, segundo a ordem de Melquisedec� (v.17); e finalmente, explica a primeira
metade do mesmo (v. 21), ficando estruturalmente assim: B AB A. Mais um dado, os vv. 11 e
28 fazem uma inclusão mediante a expressão �perfeição� (telei,wsij/ teteleiwme,non).
O assunto é expresso no v. 11 mediante a pergunta: �Que necessidade ainda de outro
sacerdócio?� Aí dois tipos de sacerdócio são expostos: �o levítico� e �outro sacerdócio�. Este
é da ordem de Melquisedec, aquele da ordem araônica. Nota-se um paralelismo invertido:
(A) �sacerdócio levítico� (B) �ordem de Melquisedec�, (B) �sacerdócio diferente�, (A�)
�ordem araônica�.
De cara trata da questão de como conciliar em termos aceitáveis o sacerdócio de Jesus
e a Lei. Ora, o sacerdócio segundo a Lei de Moisés é atribuição da tribo de Levi, respeitando
a linhagem de Araão. Hb 7.11-14 faz a proposição dessa problemática. Ao responder,
apresenta ousadamente as fraquezas da instituição anterior vigente sob a lei pelas palavras:
Porque torna sem efeito o mandamento anterior por causa de sua fraqueza e inutilidade, pois a lei nada aperfeiçoou, é desta sorte uma oferta de maior esperança mediante a qual nos aproximamos de Deus (Hb 7.18-19).
Então, o autor mostra um princípio do agir Divino, do qual há inteira concordância, para
fundamentar sua argumentação em Hb 7.15-19. A base é o �juramento� feito por Deus (7.20-
25). Esta estratégia retórica do autor foi antecipada em Hb 6.13-18, ao falar da fidelidade
Divina no cumprimento de sua promessa a Abraão, ratificada pelo seu �juramento� pessoal:
�Abraão foi perseverante e viu a promessa realizar-se� (Hb 6.15), conectando promessa e
156
juramento (Hb 6.18). Em outras palavras, o juramento pessoal de Deus é superior à
prescrição legal, que por ele é tornada sem efeito. O argumento da superioridade do sumo
sacerdócio de Jesus chega ao final num sumário da perícope (Hb 7.26-28) em que os motivos
são elencados em comparação à instituição levítica.
Após este breve panorama, nossa atenção estará especialmente Hb 7.1-10,352 visto que
trate mais diretamente da figura de Melquisedec.
4.5.1. Texto grego e tradução de Hebreus 7.1-10
Apresentamos o texto grego e uma tradução pessoal de Hebreus 7.1-10. Procuramos
apresentar na tradução a plasticidade visual do texto, dado que os teóricos imaginavam o
descurso retórico tanto sonoramente, como visualmente.
Ou-toj ga.r o` Melcise,dek( basileu.j Salh,m( i`ereu.j tou/ qeou/ tou/ u`yi,stou( o` sunanth,saj VAbraa.m u`postre,fonti avpo. th/j koph/j tw/n basile,wn kai. euvlogh,saj auvto,n( 2 w-| kai. deka,thn avpo. pa,ntwn evme,risen VAbraa,m( prw/ton me.n e`rmhneuo,menoj basileu.j dikaiosu,nhj e;peita de. kai. basileu.j Salh,m( o[ evstin basileu.j eivrh,nhj( 3avpa,twr avmh,twr avgenealo,ghtoj( mh,te avrch.n h`merw/n mh,te zwh/j te,loj e;cwn( avfwmoiwme,noj de. tw/| ui`w/| tou/ qeou/( me,nei i`ereu.j eivj to. dihneke,jÅ 4 Qewrei/te de. phli,koj ou-toj( w-| Îkai.Ð deka,thn VAbraa.m e;dwken evk tw/n avkroqini,wn
o` patria,rchjÅ 5kai. oi` me.n evk tw/n ui`w/n Leui. th.n i`eratei,an lamba,nontej evntolh.n e;cousin avpodekatou/n to.n lao.n kata. to.n no,mon( tou/tV e;stin tou.j avdelfou.j auvtw/n( kai,per evxelhluqo,taj evk th/j ovsfu,oj VAbraa,m\ 6o` de. mh. genealogou,menoj evx auvtw/n dedeka,twken VAbraa.m kai. to.n e;conta ta.j evpaggeli,aj euvlo,ghkenÅ 7 cwri.j de. pa,shj avntilogi,aj to. e;latton u`po. tou/ krei,ttonoj euvlogei/taiÅ 8 kai. w-de me.n deka,taj avpoqnh,|skontej a;nqrwpoi lamba,nousin( evkei/ de. marturou,menoj o[ti zh/|Å 9 kai. w`j e;poj eivpei/n( diV VAbraa.m kai. Leui. o` deka,taj lamba,nwn dedeka,twtai\ 10 e;ti ga.r evn th/| ovsfu,i? tou/ patro.j h=n o[te sunh,nthsen auvtw/| Melcise,dekÅ
(1) Pois, este Melquisedec, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo, que se encontrou com Abraão
quando retornava da matança dos reis e o abençoou, (2) a quem também Abraão deu o dízimo de tudo,
primeiro sendo interpretado rei de justiça e depois rei de Salém, que é rei de paz.
(3) Sem pai, sem mãe,
352 Mas à medida da necessidade, mencionaremos esta outra perícope.
157
sem genealogia, sem princípio de dias, nem da vida tendo fim, e assemelhado ao filho de Deus, permanece sacerdote eternamente. (4) Vede, pois, quão grande este, a quem Abraão,
o patriarca, deu o dízimo dos espólios.
(5) E, por um lado, dos filhos de Levi,
os do sacerdócio, uma ordenança têm: receber o dizimo do povo segundo a lei, isto é, dos seus irmãos,
embora saído dos lombos de Abraão!
(6) Entretanto, o que não tem genealogia da parte deles, recebeu o dízimo de
Abraão e ao que tinha as promessa,
abençoou. (7) Mas sem qualquer discussão: o inferior pelo superior é abençoado. (8) e aqui, por um lado, homens mortais recebem dízimos, mas ali,por outro lado, testificando porque vive. (9) e por assim dizer, mediante Abraão também Levi,
o que recebe os dizimos, dizimou!
(10) Pois, nos lombos do pai estava quando lhe encontrou Melquisedec.
4.5.2. Sumário histórico (Hebreus 7.1-2)
O autor elabora o argumento que atende a orientação aristotélica: �Chamamos testemunhas
antigas os poetas e as demais personagens em destaque, cujos depoimentos são bem
conhecidos... (...). Os testemunhos desta espécie invocam acontecimentos passados� (Arist.
Arte Retórica, 1.15.13.14). Melquisedec e Abrãao são essas testemunhas.
Melquisedec é uma das figuras mais enigmáticas das Escrituras do Antigo
Testamento. Além dele, Enoc (Gn 5.24), Moisés (Dt 34.6) e Elias (2 Rs 2.11) despertaram a
imaginação dos literatos do período do Judaísmo do 2º Templo. Enoc e Elias porque foram
arrebatados ao céu (este por um torvelinho, aquele por abdução) e Moisés porque não se
sabe a localização de seu sepulcro. Ao fazer uso da figura de Melquisedec, nosso autor não
está sozinho, mas faz parceria com Filo, 2 Enoc, os Targumim, 11QMelquisedec.
158
Ao recorrer à narrativa do encontro de Melquisedec com Abraão, Hebreus não se
ocupa de cada detalhe da narrativa de Gênesis, mas dos que lhe são úteis. O episódio é
narrado sumariamente. Abraão voltava da �matança dos reis� (Gn 14.17). Nada é dito do rei
de Sodoma, ele não é necessário à questão.353
Por um lado, Hb 7.1s frisa a apresentação de Melquisedec (a) como rei de Salém e
sacerdote do Deus Altíssimo; (b) na interpretação de seu nome: rei de Justiça; e (c)
proveniência: Salém. Contudo aqui, não se preocupa de conectar Salém com Jerusalém, mas
com �älôm, �paz�. Etimologia de nomes era um lugar retórico comum, usada mais para
acréscimo subliminar do que uma prova completa (Quintiliano, Instituciones Oratorias 5.9).
Por outro lado, o autor se concentra nos elementos (a) da antiguidade do evento (tempo do
patriarca), (b) na realeza do sacerdócio de Melquisedec, apesar de não desenvolvê-la, mas
que lhe dá sustentação ao alinhavar a tribo de Judá com o sacerdócio (7.14) e na (c) bênção e
dízimo.354 Estes elementos servirão de fundamento para sua argumentação.
4.5.3. Natureza do sacerdócio de Melquisedec
O conteúdo de 7.3 apresenta fortes elementos retóricos:
Sem pai, avpa,twr Sem mãe, avmh,twr Sem genealogia, avgenealo,ghtoj( Sem princípio de dias, mh,te avrch.n h`merw/n Nem tendo fim de existência, mh,te zwh/j te,loj e;cwn( Mas feito como o Filho de Deus, avfwmoiwme,noj de. tw/| ui`w/| tou/ qeou/( Permanece sacerdote para sempre. me,nei i`ereu.j eivj to. dihneke,jÅ
Um rápido olhar na coluna do texto grego percebe-se quatro termos iniciados com �alfa� e
três com �mü" (isocolon, assíndeto, assonância e quiasmo).355 Cinco negativas e duas
afirmativas. De Gênesis 14.17-20 estão cinco negações, das quais se derivam as duas
aplicações úteis ao seu pensamento.
As genealogias possuíam um papel importante para o mundo Mediterrâneo do séc. I
E.C., como vimos no capítulo 2 deste trabalho. Quintiliano elenca em primeiro lugar na
elaboração da argumentação a referência à �linhagem�, porque �comumente os filhos devem
353 Ainda que pudesse ser proveitosa à questão do testemunho a interlocução de Abraão com o rei de Sodoma. Conforme Aristóteles: �que o verossímil não se pode deixar corromper pelo dinheiro e que nunca foi colhido em flagrante delito de falso testemunho� (Arte Retórica, 1.15.3.17). 354 Deborah W. ROOKE, Jesus as royal priest, in: BIBLICA 81, pp. 81-94. 355 Harold W. ATTRIDGE, Hebrews, p. 189.
159
ser parecidos aos que os geraram, e ainda disto tomam, digamos, as primeiras sementes ou
para a virtude ou para o vício� (Instituciones Oratórias, 5.9). Na Palestina, principalmente
para o sacerdócio levítico, isso não era diferente. A construção de uma genealogia é critério
para a função sacerdotal. Por sua vez Filo de Alexandria se utiliza o princípio do silêncio,
mas focaliza Melquisedec de outro ângulo.
Contudo, Deus fez Melquisedec, o rei de paz, isto é, de Salém, por que esta é a interpretação de seu nome, �seu próprio sumo sacerdote�, sem ter previamente mencionada qualquer ação particular sua, mas meramente porque ele o havia feito rei e um amante da paz, e especialmente digno de seu sacerdócio. Por que ele é chamado de rei justo, e um rei é o oposto de um tirano, pois um é o intérprete da lei e o outro contraventor (Legum Allegoriae, 3.25.79).
Note-se o circunlóquio de Filo ao não mencionar explicitamente a falta de genealogia de
Melquisedec, ainda que se refira de passagem ao seu sacerdócio. O artifício de Filo é sopesar
o aspecto real em contraponto ao do tirano. Mas mesmo com esta preocupação, pode-se ver
os pontos de interesse com Hebreus, como a interpretação de Salém: �rei de paz, isto é
Salém�, similar à interpretação de Hebreus; a interpretação do nome Melquisedec (�seu
próprio sumo sacerdote�), divergente de Hebreus, podendo, de um certo ponto de vista,
enfatizar a unicidade de seu sacerdócio; sua aparição súbita na narrativa é registrada (�sem
ser previamente mencionada qualquer ação particular sua�); alusão à lei (ainda que com
outro interesse); enfoque em uma de suas atribuições, neste caso, sua realeza.
Paradoxalmente, o autor de Hebreus não hesita em lançar mão da ambigüidade da
ausência genealógica de Melquisedec. Termos tais como avpa,twr e avmh,twr eram usados
para (1) crianças abandonadas, de pais desconhecidos, (2) filhos ilegítimos, (3) pessoas de
baixa origem e (4) deidades sem a participação masculina, como Apolo.356 Certamente nosso
autor não pretende nenhuma das três primeiras possibilidades, porém a quarta, devido a
constatação �Mas feito como o Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre.� Seu
argumento, segundo uma ampla parcela de pesquisadores,357 baseia-se no princípio do
�silêncio�, isto é, visto que o texto não menciona sua origem e destino, o intérprete pode
lançar mão deste expediente hermenêutico a seu favor. De modo que, o v. 3 �é um exemplo
clássico de um elegante e denso estilo de falar como efeito retórico�.358
356 James MOFFATT, Hebrews, p. 93. 357 G. BUCHANAN; F. B. CRADDOCK; W. L. LANE, Philip E. HUGHES, A commentary on the Epistle to the Hebrews, p. 248; F. F. BRUCE, The Epistle to the Hebrews, p. 159; J. ADRIANO FILHO, 358 Fred B. CRADDOCK, Hebrews, p. 86.
160
Um sacerdócio sem genealogia teria causado certo desconforto a muitos, que os
targumim parecem sugerir. Vejamos junto à versão da Bíblia de Jerusalém as feições de
alguns targumim da passagem de Gn 14.18-20:
Bíblia de Jerusalém (17) Quando Abrão voltou, depois de ter derrotado Codorlaomor e os reis que estavam com ele, o rei de Sodoma foi ao seu encontro no vale de Save (que é o vale do Rei). (18) Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho; ele era sacerdote do Deus Altíssimo. (19) Ele pronunciou esta bênção: Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra, (20) e bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus inimigos em tuas mãos.� E Abrão lhe deu o dízimo de tudo. Tg Onqelos (17) Então o rei de Sodoma foi ao seu encontro depois que [Abrão] retornou da matança de Codorlaomor e dos reis que estavam com ele para a planície vazia, que é a pista de corridas do rei. (18) Então Melquisedec, rei de Jerusalém, trouxe pão e vinho, pois ele ministrava diante do Deus Altíssimo. (19) E o abençoou e disse: �Bendito seja Abrão diante do Deus Altíssimo, cujas possessões são céus e terra. (20) E bendito seja o Deus Altíssimo que lhe tem livrado das mãos de seus inimigos�. E lhe deu um dízimo de tudo. Tg. Ps.-J. (17) Quando ele retornou de derrotar Codolaomor e os reis que estavam com, o rei de Sodoma veio ao seu encontro na planície aterrada, que é a pista de corridas do rei. (18) E o rei justo - ele é Sem, o filho de Noé � o rei de Jerusalém, veio ao encontro de Abrão e trouxe-lhe pão e vinho; e naquele tempo ele estava ministrando diante do Deus Altíssimo. (19) Ele o abençoou e disse: �Bendito seja Abrão [diante] do Deus Altíssimo que por amor do justo criou céu e terra. (20) E bendito seja Deus Altíssimo que fez de seus inimigos como um escudo que recebe um revés�. E ele lhe deu um dízimo de tudo que tinha recuperado. Tg. Neof. (17) E o rei de Sodoma veio ao seu encontro, depois que retornou da matança de Codolaomor e dos reis que estavam com ele, no vale dos Jardins, isto é, o vale do rei. (18) E Melquisedec, o rei de Jerusalém � ele é Sem, o grande � trouxe pão e vinho, pois era um sacerdote ministrando no sumo-sacerdócio diante do Deus Altíssimo. (19) E ele o abençoou e disse: �Bendito é Abrão diante do Deus Altíssimo que em sua Memra fez os céus e a terra. (20) E bendito é o Deus Altíssimo que dispersou seus inimigos diante de ti�. E lhe deu um dízimo de tudo.
Destaquemos:
(1) A cidade de Melquisedec é �Jerusalém� em todos os targumins ao invés de Salém da
tradução da Bíblia de Jerusalém (Tg. Onq.; Ps.-J.;Tg. Neof.). Melquisedec é o sacerdote
que �ministrava �diante de Deus ao invés de declarar que �é sacerdote� (Tg. Onq.;
Ps.-J.; Neof.).
(2) Melquisedec não é um nome, mas um título adjetivado: �rei justo�, e seu nome é
�Sem, filho de Noé.� (Tg. Ps.-J.).
161
(3) Melquisedec é �Sem, o grande� e sumo-sacerdote (Tg. Neof.).
As alterações revelam a transformação dada ao texto para efeitos de precisão da �cidade� do
culto (Jerusalém). Percebe-se a preocupação de interpretar Salém como Jerusalém, o que
valida o �lugar que Yahweh vosso Deus houver escolhido para fazer habitar o seu nome� (Dt
12.11). Chega a parecer natural que �Salém� adquira o sentido de �Jerusalém� como uma
interpretação conseqüente da sua sonoridade. O autor de Hebreus pode saber dessa
possibilidade, mas omite uma preocupação maior com a sua localização. Simplesmente
interpreta o sentido da palavra �Salém�, o que é mais útil ao objetivo. Por sua vez, a
apropriação de Melquisedec de oficiante sacerdotal em Jerusalém confere antiguidade ao
culto de Yahweh. �Ministrava diante de Deus� salienta o papel de sumo sacerdote.
A especulação a respeito do nome de Melquisedec, �rei justo�( Tg. Ps.-J.), pode ser
para fins de legitimar o reinado hasmoneu. E ao prover uma genealogia a Melquisedec de
alguma maneira não eternizaria o sumo sacerdócio em sua pessoa, isto é, desencadearia uma
sucessão, além de ser um exemplar da convergência de duas funções, rei e sacerdote, útil aos
seus partidários.
O nome de Sem ligado a Melquisedec surpreende, fazendo-o ter uma longevidade tal
(600 anos) que sobrepuja até a morte de Abraão.359 Mas também faz-se, desse modo, uma
ligação com o sacerdócio levítico, o que elimina a decontinuidade com Melquisedec, ao
mesmo tempo que provê a sucessão, de que nada é dito no texto de Gênesis 14.17-20. Assim,
conforme os targumim, a utilização do recurso ao �silêncio� da narrativa não é tão evidente,
visto a necessidade de expressar progênese e sucessão a Melquisedec. Antes o ponto focal da
perícope era Abrãao, agora é Melquisedec. Toda essa especulação é feita a favor do
sacerdócio de Jerusalém. Em outras palavras, Melquisedec não extingue o sacerdócio por sua
morte.
O autor de Hebreus difere quanto ao tópico da genealogia de Melquisedec dos
targumim, a ausência de qualquer menção genealógica abre a precedência para a divindade
de Jesus. Mas existe alguma similaridade aos objetivos do autor de Hebreus, ou seja, um
sacerdócio alternativo ao fixado pela lei, ainda que o peso esteja mais no elemento da realeza
conjugada com sacerdócio.
359 Martin Mc NAMARA, Melchizedek: in Gen. 14.18-20, p. 13.
162
Portanto, notamos os sinais usados por Hebreus para compor sua elevada Cristologia.
�Melquisedec permanece continuamente um sacerdote por conta de sua aparição na
narrativa bíblica�.360 Não é dizer que Melquisedec seja divino, mas que é um �duplo� de
Jesus, a sua contraparte terrena.
4.5.4. Dízimos de Abraão e bênção de Melquisedec (Hebreus 7.4-10)
O imperativo presente de Hb 7.4 funciona como vocativo e prepara o terreno para a
argumentação da superioridade de Melquisedec sobre Levi. A grandeza de Melquisedec é
colocada diante de Abraão mediante o designativo �o patriarca� (o` patria,rchj), o pai
fundador da nação (cf. Gn 12.1). O tema é assim anunciado: �Quão grande [é] este a quem
Abraão, o patriarca, deu o dízimo�. Para ressaltar a superioridade de Melquisedec, o autor
conduz os leitores/ouvintes à menção da arrecadação do dízimo como é exercida pelos
descendentes de Abraão.
Os filhos de Levi, mediante o sacerdócio, recebem o dízimo dos descendentes dos
seus irmãos. Não obstante todos sejam irmãos (�saídos dos lombos de Abraão�), por força de
lei, os filhos de Levi se tornam superiores ao receber o dízimo do restante dos irmãos.361 A
importância dos levitas é super enfatizada pelo Testamento dos Doze Patriarcas:
Eu vos digo: rivalizareis com os filhos de Levi e procurareis superá-los, mas não sereis aptos, porque Deus atuará em seu favor, e vós morrereis uma morte ruim, pois Deus deu a Levi a autoridade, e a Judá com ele para serem governantes. Por esta razão é que vos ordeno a obedecer a Levi, porque ele conhecerá a lei de Deus e instruirá a respeito da justiça e do sacrifício por Israel até a consumação dos tempos; ele é o sacerdote ungido de quem o Senhor falou (...). Aproximai-vos de Levi com humildade de vossos corações a fim de receberdes a bênção de sua boca. Pois ele abençoará Israel e Judá devido a ser mediante ele que o Senhor escolheu para reinar na presença de todo o povo. Prostrai-vos diante de sua autoridade, porque (sua posteridade) morrerá em vosso favor em guerras visíveis e invisíveis. E ele será entre vós um rei eterno (Testamento de Rubem 6.5-12)
O mesmo tipo de enaltecimento será encontrado nos testamentos dos outros patriarcas (cf.
Testamento de Simeão 5.4; 7.1; Testamento de Judá 21.1-4; Testamento de Issacar 5.5; Testamento de
Dan, 5.4, 7; etc.). Percebe-se, assim, a estatura do sacerdócio levítico. A pretensão do autor de
Hebreus é fornecer elementos que fundamentam o sacerdócio de Jesus e exaltá-lo. Por isso, a
menção de Abraão pagar o dízimo é um ponto fraco na instituição levítica, é o �calcanhar de
Aquiles� do sacerdócio. A grandeza de Abraão é superada pela de Melquisedec, o que deixa
360 F. F. BRUCE, The Epistle to the Hebrews, p. 160. 361 O �dízimo� não caracteriza uma espécie de �salário�, o que faz do sacerdócio inferior, mas se caracteriza um imposto.
163
os sacerdotes levitas sem possibilidade de superar o entrave, desde que Abraão é morto.
Quanto a esse desconforto, digna de nota é a passagem do Testamento de Levi 9.3s:
Quando nós chegamos em Betel, meu pai, Jacó, teve uma visão a meu respeito de que eu deveria estar no sacerdócio. Ele se levantou cedo e pagou dízimos ao Senhor por meu intermédio.
A cena de Abraão pagar o dízimo a Melquisedec é refeita, dentro do possível. Dado que o
episódio de Gn 14 não pode ser apagado, compõe-se um outro evento em que Jacó, pai dos
doze patriarcas, é descrito no papel de Abraão e Levi no de Melquisedec. Esta tradição
denuncia que o tema de Abraão pagar o dízimo precisava ser superado mediante uma nova
leitura da narrativa.362 Como é Jacó que dizima, este se torna inferior ao filho Levi, que ao
mesmo tempo supera seus irmãos. Apesar dessa empresa, o ponto fraco permanece, e o
autor de Hebreus o explora a seu favor: �Abraão pagou o dízimo a Melquisedec� (7.4).
De sua parte, Melquisedec abençoou a Abraão, que é outra prerrogativa do
sacerdócio de Levi (Hb 7.6), o abençoador é abençoado. A bênção sobre o povo era tão
estimada ao ponto de o livro de Sirac 50.20-21 mencioná-la cheio de exultação. Contudo, o
expediente utilizado pelo autor de Hebreus 7.7 apresenta certa dificuldade, conforme Jacob
Neusner: A despeito da Carta aos Hebreus 7, um inferior pode abençoar um superior, bem
como um superior abençoar um inferior. 363
Quando alguém de status inferior abençoa outro de status superior, ele está elogiando os benefícios recebidos, como por exemplo, Judite é abençoada (Judite 14.7; 15.9,12) por libertar o povo. (...). Em Qumran à refeição da comunidade, o Mestre (maskil) pronuncia bênçãos sobre os participantes, os sacerdotes e o príncipe da congregação (1QSb).364
Ainda que pareça uma falácia do autor,365 o próprio J. Neusner, no texto acima, sugere uma
resposta. No mundo Mediterrâneo do I séc., a dobradinha �honra e vergonha�, conforme já
foi dito, regulava as relações entre superior-inferior, inferior-superior, e iguais. O superior
não pede, ordena. O inferior não ordena, pede, �elogia�, e entre iguais �troca-se�. A base da
superioridade de Melquisedec sobre Abraão também é enfatizada no ato de receber os
dízimos (Hb 7.8), e por isso, ele é superior, por conseguinte ele abençoa, não elogia. E o texto
362 Jubileus 31.11-20 apresenta Levi e Judá abençoando a Isaac. Levi está ao lado direito de Isaac e Judá ao lado esquerdo. Quem pronuncia primeiro a bênção é Levi e em seguida Judá, o que expressa claramente a predileção por Levi. 363 Dictionary of Judaism in the Biblical Period, p. 98. 364 Ibid., p. 98. 365 David DeSILVA, Perseverance in gratitude, p. 267.
164
de Sirácida 7.29-31, que vimos mais acima, dá-nos um quadro do prestígio e dignidade que
gozava o sacerdócio. Além do mais, o autor aduz que, enquanto os filhos de Levi
�morrerão�, Melquisedec permanece: �de quem se declara que vive� (7.8).
4.5.5. Jesus, sumo sacerdote angelomórfico
Neste ponto, podemos fazer um balanço dos conteúdos de Hb 7.1-10 frente aos resultados
colhidos das tradições usadas neste capítulo a respeito de Melquisedec.
O sumo sacerdócio é de importância vital na relação do �ser humano� com a
�Divindade�. Vital pois se entende que a mediação do sumo sacerdote garante a manutenção
da vida. Todo o aparato cultual visa alcançar o perdão de Deus e o acesso à sua presença, a
fim de se atingir a vida que dá sustentação à ordem criada. Pois, a Criação e o perdão dos
pecados se conectam desde o começo de Hebreus: �(ele) sustenta o universo (lit.: �todas as
coisas�) com o poder de sua palavra; e depois de ter realizado a purificação dos pecados...�
(1.3). De modo que, a perenidade do universo se baseia sobre a santificação resultante da
purificação dos pecados. Em outras palavras, o poder criativo precisa superar o �caos� que a
morte provoca, faz-se isso mediante uma morte vicária, vida que vem pela morte. Isto é
senso comum, compartilhado pelos diversos grupos dentro do judaísmo do período do
segundo Templo. Por conseguinte, o sumo sacerdote é o representante humano, que após o
sacrifício de uma vítima substitutiva, ao entrar no recinto do santíssimo lugar, experimenta a
imediata presença de Deus, e o fato de sair dali sem sofrer qualquer dano é devido ao fato de
que sua oferta foi aceita, a morte não o alcançou. Disso tudo resulta a necessidade de
�perfeição� do sumo sacerdote, e perfeição é melhor expressa em termos divinos, daí o
angelomorfismo ser a melhor sintaxe de perfeição.
Partindo-se do fato de o próprio Deus, inicialmente, por uma via ter-se revelado ao
ser humano como o Anjo do Senhor, que representa a divindade diante do homem; o próprio
Anjo do Senhor, que também é antropomórfico, por outra via, representa o ser humano que
pode se apresentar diante de Deus, conseqüentemente daí o sumo sacerdote ser idealizado
com tonalidades angelomórficas.
A interpretação do autor de Hebreus acerca do sumo sacerdócio de Jesus não
prescinde de um sacrifício vicário, este dado não é omitido, mas cumprido. A morte de Jesus
por crucificação é confessada como fator determinante para seu ofício sacerdotal, mas ao
contrário das vítimas anteriores, sua morte é voluntária:
165
�Por isso, ao entrar no mundo, ele afirmou: Tu não quiseste sacrifício e oferenda. Tu, porém, formaste-me um corpo. Holocaustos e sacrifícios pelo pecado não foram do teu agrado. Por isso eu digo: Eis-me aqui, -- no rolo do livro está escrito a meu respeito � eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade (Hb 10.5-7).
Sua vida de ser humano sem pecado (9.14), vida do Filho de Deus, manifestada no fim dos
tempos (9.26, 27), derrama-se como sacrifício único e cabal (9.26; 10.18-20). Após a morte,
Jesus ascende aos céus (13.20), atravessa o véu, isto é, o próprio céu, e como sumo sacerdote
glorioso se assenta no trono ao lado direito da Divindade (1.3; 8.1).
Com efeito, Melquisedec exerceu grande interesse no que toca ao sumo sacerdócio
idealizado. A antigüidade, os significados de seu nome e lugar, seu ofício sacerdotal, sua
impressiva presença, seu contato com Abraão, a falta de genealogia, tudo isso deu margem
para especulações visando compreender o significado de sua abrupta aparição e saída de
cena. Mesmo estas deram aso ao imaginário para o tema de sua ocultação temporária no
paraíso (2 Enoc 71). Por ser uma figura humana recebe muita atenção e foi elevado a estatura
angélica, indo mais longe, superando os anjos, liderando anjos e homens, fazendo expiação
por seus pecados e chamado de divino por seu colegiado (11QMelquisedec).
O Melquisedec visto pelo autor de Hebreus apresenta uma reserva de sentido que
também supre os elementos angelomórficos de Jesus. Porém, isso é feito de uma outra
maneira. Melquisedec não é a contraparte celeste de Jesus, como o é para os sectários de
Qumran. Mas Melquisedec é a contraparte terrena do Jesus celeste:
Sem pai, sem mãe, sem genealogia, nem princípio de dias nem fim de vida! É assim que se assemelha ao Filho de Deus, e permanece sacerdote eternamente (Hb 7.3).
Melquisedec é o duplo da Pré-existência e imortalidade de Jesus, bem como de seu
sacerdócio perene. Os temas relacionados no início de Hebreus 1.1-4 podem ser vistos
entrelaçados na figura de Melquisedec como duplo. Podemos começar pela Criação da qual
o Filho é o feitor, que encontra-se na bênção impetrada sobre Abraão (7.7). E vistoque a
indumentária e o próprio ofício sacerdotal são embasados na promoção da Criação Divina,
como temos visto, tanto na expiação de pecados pelo povo, como na reparação do universo
criado, uma espécie de manutenção do cosmos.
A dúplice função rei-sacerdote de Melquisedec é proveitosa para a Cristologia de
Hebreus, em que dois ungidos são incorporados em um só. Como rei proveniente da tribo de
Davi não há necessidade de uma exposição a este respeito, porém, desde que o rei nas
166
tradições monárquicas de Israel/Judá (e nos arredores) é declarado Filho de Deus, mais uma
vez Melquisedec funciona como anti-tipo de Jesus, pois se ele é entronizado em Salém, Jesus
é entronizado nos céus (1.3; 8.1).366 E esta filiação divina não foi privilégio de anjo algum,
pois mesmo os anjos surgiram de sua ação criadora. Ainda, quanto à filiação, leve-se em
conta a humanidade de Melquisedec que o capacita a interceder por outros humanos
estampados em Abraão que se submete ao seu ministério (7.2, 7), que igualmente capacita a
Jesus também ser mediador em favor da humanidade.
Melquisedec vai ao encontro de Abraão como um portador de boas-novas quando o
abençoa, isto lhe dá uma atribuição profética. O �evangelista�(euvaggelisth,j) é o
�proclamador de oráculos�.367 Tal proclamador anunciava as boas-novas de vitória (Is 52.7;
61.1; cf. Ml 1.7). Jesus igualmente anunciou a salvação aos descendentes de Abraão (2.16) e
de todos os homens (2.9).
Tanto o rei, como o sacerdote são designados para exercer justiça e paz entre os
homens (Dt 17.16-20; Sl 72; Zc 6.13; Ml 2.3-5). Melquisedec faz isso ao abençoar Abraão com o
que avaliza sua ação de libertação e promoção de paz.
11QMelquisedec descreve um Melquisedec angelomórfico. Não se discute o motivo
de sua �ordem�, nem muito menos o encontro com Abraão, simplesmente o autor apreende
sua figura e a transfigura. O interesse não reside na figura histórica de Melquisedec, mas no
Melquisedec exaltado. Embora não explicitamente citado, pode-se pensar que o texto que faz
o transfundo é o do Salmo 110. Deste modo, a figura de Melquisedec expressa no Sl 110
também torna-se ponto de partida para uma nova configuração de seu personagem.
Por um lado, Melquisedec é o paradigma do anelo sacerdotal por uma existência
celestial dos qumranitas. Os textos aventados em sua descrição são utilizados em outros
lugares do NT para Jesus Cristo. Porém, já havia notado Kobelsky, há várias similaridades
entre o Jesus de Hebreus e o Melquisedec. Jesus, em seus dias terrenos, anunciou a
�Salvação� (2.13), pois veio para libertar a humanidade do pavor da morte, sujeitos à
escravidão (Hb 2.14-15). Melquisedec também é portador de �boa-nova� de libertação aos
cativos de suas iniqüidades (11QMelquisedec ii.1-7). Jesus possui um �lote� de filhos de
Deus, isto é, os cristãos (Hb 2.11-13), que anteriormente estavam sob o domínio do �Diabo�,
366 Em Malaquias 1.6, os sacerdotes são considerados como filhos de Deus. 367 G. STRECKER, euvaggelisth,j, in: EDNT, vol. 2, p. 70.
167
detentor da morte (Hb 2.11). Melquisedec também possui um lote dos �filhos de Deus�, os
quais liberta da �mão de Belial� (11QMelquisedec ii.13, 24-25). O �sacrifício� vicário efetuado
por Jesus �ao se cumprirem os tempos� (Hb 9.26) relaciona-se com o do dia da expiação (Hb
9.23-28). O �Dia da Expiações� é a marca do fim do décimo jubileu, Melquisedec expiará por
todos os filhos de Deus (11QMelquisedec ii.7-9), �é o tempo do ano da graça para
Melquisedec� (ii.9). Jesus se manifesta �no meio da assembléia� em favor dos �irmãos (Hb
2.11-13); de igual forma Melquisedec presidirá �a assembléia� dos filhos de Deus em favor
de seu lote (ii.9, 14). Jesus é superior aos anjos e estes estão a serviço dos que herdarão a
salvação (Hb 1.4, 14). Melquisedec também é superior aos deuses de justiça, prevalece sobre
todos os filhos de Deus (ii.14). Os crentes são os que chegaram �ao monte Sião e a cidade do
Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à assembléia universal, e à
assembléia dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos
justos aperfeiçoados� (Hb 12.22-23). Em 11QMelquisedec �Sião é a congregação de todos os
filhos de justiça, os que estabelecem a aliança, os que evitam andar pelo caminho do povo�
(ii.23-24). Hebreus trata da �desobediência� da geração da caminhada no deserto (Hb 4.11);
11QMelquisedec menciona �os rebeldes� (ii.4), isto é, �Belial e os espíritos de seu lote�, que
incluem os anjos caídos e os homens, �todos eles apartando-se dos mandamentos de Deus
para cometer o mal�(ii.12). A Jesus se designa de �Deus�: �mas acerca do Filho: �O teu trono,
ó Deus, é para todo o sempre� (Hb 1.8). De igual forma, 11QMelquisedec lança mão de um
texto escriturístico para declarar que Melquisedec é Deus: �Dizendo a Sião: �teu Deus reina��.
(...). �Teu Deus�, Melquisedec que os livrará da mão de Belial� (ii.24-25). Jesus é o �Cristo�:
�Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre� (Hb 13.8). 11QMelquisedec diz
o mesmo de Melquisedec: �E o proclamador é o ungido do espírito que falou Daniel...�(ii.18).
Melquisedec se manifesta para consolar (instruir) os aflitos (ii.20), também Jesus consola os
seus (Hb 4.14-16; 5.1-3). Nada se diz de Melquisedec ter feito ofertas por seus pecados (pelo
que nos chegou, nada sabemos), nem Jesus precisa fazer pelos seus (Hb 9.25 ). Digna de nota
é o caso de que quando se fala de Melquisedec �nas alturas se pronunciará a seu favor
segundo os seus lotes�, fala-se após a expiação (ii.8), o que é igualmente dito de Jesus (Hb
9.24-25).
Por outro lado, quanto ao tema da �pré-existência� (Hb 1.1-3), 11QMelquisedec não
faz menção, pelo menos no fragmento que foi preservado. O status angelomórfico de
168
Melquisedec parece derivar do Salmo 110.1 nos moldes da LXX: �Disse o Senhor ao meu
senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo de teus pés�
(ei=pen o` ku,rioj tw/| kuri,w| mou ka,qou evk dexiw/n mou e[wj a'n qw/ tou.j evcqrou,j sou
u`popo,dion tw/n podw/n sou). Entende-se que se trata de Melquisedec devido ao v. 4: �Tu és
sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec�. E o aspecto vingador de
Melquisedec (como instrumento de justiça de Deus) em 11QMelquisedec se encontra nos v.
5-6 do mesmo Salmo: �O Senhor, à tua direita, no dia da sua ira, esmagará os reis. Ele julga
entre as nações; enche-as de cadáveres; esmagará cabeças por toda a terra�. Quanto à função
de juiz de Melquisedec procede do Salmo 82, como o próprio 11QMelquisedec diz (ii.10-13).
De outro lado, de 11QMelch não se infere qualquer auto-sacrifício pelos pecados dos fiéis,
que é imprescindível para Hebreus (Hb 9.11-14), muito menos uma expiação derradeira; nem
há qualquer referência ou justificação de uma morte ultrajante de sua parte, e, por
conseqüência, nenhum registro da exaltação derivada disso. Melquisedec de
11QMelquisedec é triunfalista por completo. É dito, sim, que Melquisedec fará expiação
pelos filhos de Deus (ii.8). Nada se diz de uma filiação divina de Melquisedec; �filhos de
Deus� é genérico e é empregado para outros (ii.14); quanto a Jesus, �Filho de Deus� é o tema
predominante em Hb 1. É verdade que no segundo, Melquisedec não é explicitamente
declarado �Filho de Deus� como se faz em Hebreus. O caráter enigmático de sua pessoa é
que parece ser a matriz para lhe conceder que seja um redentor angelomórfico. Por isso,
pensamos que sua exaltação está mais para os moldes de Enoc, numa mescla que conflui as
descrições dos mesmos textos utilizados pelo autor de 11QMelch: Lv 25.13; Dt 15.2; Is 61.1;
Lv 25.10; Sl 82.1; Sl 7.8-9; Sl 82.2; Is 52.7; Lv 25.9.
4.6. Conclusão
No texto de Hb 7.1-10 predomina o objetivo principal de fundamentar a atribuição e
superioridade do sumo sacerdócio a Jesus. Diante disso, não surpreende que todos os
motivos agrupados em 11QMelquisedec não estejam presentes em Hb 7.1-10. Pelas
evidências que temos, não é possível afirmar que o autor foi dependente textualmente de
uma concepção de 11QMelquisedec. Os dois textos não dependem um do outro.
Todavia, como vimos, as similaridades entre as figuras de Jesus em Hebreus em sua
totalidade e Melquisedec em 11QMelquisedec são evidentes. As similaridades dos motivos
entre o Jesus sumo sacerdotal angelomórfico de Hebreus e o Melquisedec angelomórfico de
169
11QMelch derivam-se de preocupações comuns. O anelo por um redentor celestial em que
convergem as funções de rei e sumo sacerdote, redentor, promotor da justiça e da paz, que
encarne ao mesmo tempo o triunfo sobre as forças do mal e uma divinização do humano,
resultante de uma comunhão com o Senhor estavam na ordem do dia. Destarte, o motivo do
sumo sacerdócio celestial era bastante difundido nas reflexões do Judaísmo do período do 2º
Templo, e por isso mesmo, o autor de Hebreus se encontrava a vontade, num terreno muito
fértil de tradições acerca de Melquisedec para a sua formulação de Cristo Jesus exaltado à
direita de Deus.
170
CONCLUSÃO
O Jesus exaltado da Cristologia da Carta aos Hebreus compartilha a mesma confissão
expressa em quase todos os outros documentos do Novo Testamento. Mas o elemento
distintivo é o seu enfoque claramente no tema do sumo sacerdócio celestial de Jesus Cristo.
Isto não quer dizer que os outros textos do N.T. não façam alusão ao sacerdócio de Jesus,
mas que Hebreus o expressa enfaticamente.
A exaltação de Jesus ao lado direito de Deus como vice-regente angelomórfico
incorpora as diversas funções deste e, principalmente, a de sumo sacerdote celestial
prefigurada em Melquisedec (Hb 7.1-10). Destarte, o autor de Hebreus partilha e refaz as
considerações presentes em tradições angelomórficas de um mediador glorificado na
presença de Deus. Enquanto tais tradições especulam em torno de diversas figuras exaltadas,
como Miguel e algum outro anjo, Melquisedec ou outro patriarca, ou ainda o Messias
Araônico da Comunidade de Qumran, o autor de Hebreus não titubeia em confluir e atribuir
esse status a Jesus Cristo expressando o binitarismo do Cristianismo das origens.
Hebreus não inventa um novo modelo de messianismo em sua confissão cristológica,
mas partilha das considerações contemporâneas a respeito do sumo sacerdote exaltado. O
enfático interesse na figura do sumo sacerdote como encarnação das esperanças apocalípticas
deve muito ao seu próprio momento histórico e ao meio-ambiente cultural sócio-religioso do
Mediterrâneo do século I. O sumo sacerdote incorpora as atenções e expectativas religiosas
tanto no Judaísmo como também no mundo gentílico. Desde séculos atrás o sumo sacerdote
foi galgando mais atenção no terreno político-religioso da Palestina, suplantando até mesmo
a figura da instituição monárquica. Não surpreende que as funções de rei e sumo sacerdote
sejam confluídas em uma só pessoa, e que todo um arcabouço literário, ora a favor, ora
contra, tenha surgido nesse período. Como qualquer liderança humana, o sumo sacerdote
era alvo de aprovação e de rejeição, constituindo-se nos motivos de uma expectativa,
superior, exaltada e final. O sumo sacerdote na história do Judaísmo do período do Segundo
Templo fora capaz de substituir o rei em muitos momentos cruciais do povo, granjeando
tamanha autoridade e riqueza. Diante de suas conquistas e falhas, construiu-se um volumoso
171
corpo de tradições que a despeito de seus pecados, e mesmo por conta dos pecados, em que
um mediador celeste surge como o depositário de tantas esperanças. Também a religião civil
do império romano possuía uma razoável concentração no sumo pontifex que era ao mesmo
tempo um magistrado e sacerdote prestigiado da cidade ideal.
No caso do Judaísmo, o sumo sacerdote perfeito é idealizado em caracteres
angelomórficos, e mesmo os anjos são descritos em tons sacerdotais de tal modo que, no
imaginário angélico, os arcanjos são concebidos como a contraparte celeste do sumo
sacerdócio terrestre ou vice-versa. Daí a massiva literatura da Comunidade de Qumran
testemunhar seu interesse e expressar de modo inegável tal ideal no Melquisedec de
11QMelquisedec, sumo sacerdote angelomórfico, vice-regente, redentor e juiz escatológico.
Os sacerdotes da Comunidade já assumiam sua identidade celestial nas confecções de textos
litúrgicos em que se viam como parte das hostes angélicas (cf. Os Cânticos do Sacrifício
Sábatico).
Mas o sumo sacerdote não encarnava essas expectativas somente devido ao prestígio
adquirido por sustentar a identidade nacional do Judaísmo do período do Segundo Templo.
Acrescente-se que a personagem do sumo sacerdote é além de paradigma de salvador
celeste, também é o paradigma do homem primordial (Urmensch), o ser humano perfeito, que
reabilitado em suas relações com Deus, pode usufruir de sua presença imediata e gozar da
imortalidade, típica dos anjos.
Todo esse arcabouço de esperanças foi passo a passo sendo construído, influenciado
inicialmente pelas elucubrações da aquisição de imortalidade, de uma esperança pos-mortem,
que só aumentou desde o período do exílio babilônico e na constante interação com as
culturas do entorno do Mediterrâneo do século I. Para alguns, como por exemplo, o império
romano, a possessão da imortalidade era a recompensa devida aos atos heróicos realizados
pelos mandatários provenientes das altas elites. Para outros (de uns poucos), a imortalidade
era fruto de uma vida bem-aventurada vivida em justiça, ou devido ao martírio como marca
de fidelidade ao compromisso da aliança do povo com Deus.
Contra esse pano de fundo cultural e sócio-religioso, a Carta aos Hebreus revela certa
simbiose quando encaixada nesse quadro referencial. Há uma cultura dominante que
privilegia o imperador romano como o salvador do mundo, mas que na prática sustenta uma
maquinaria opressora que faz dos seres humanos meros servidores do estado, massa de
172
manobra, instrumentos do bem estar de poucos, que se sentem no direito de escravizar. Ou
seja, um Estado que desclassifica e exclui os seres humanos de seu direito básico, o da
existência em sociedade com seus plenos direitos de usufruir a felicidade, que segundo
Aristóteles, é o objetivo primeiro e último do Estado. Há também uma sub-cultura proposta
pelo judaísmo que se opõe ao império em termos religiosos, mas que lhe dá a mão como seu
aliado na impostura de seus próprios interesses. Nega-se, assim, o evento salvífico
estampado na caminhada do povo rumo à terra que mana leite e mel. Reagindo a isto, os
partidários de Qumran (e talvez, outros grupos subjacentes à literatura pseudepígrafa) se
afastam dos centros urbanos e refugiando-se no deserto da Judéia, não para se alienarem,
porém, muito mais para uma rearticulação estratégica com projeções bélicas contra o
opressor. Dá-se, então, que coletando abundante material, espera-se uma liderança
messiânica, ainda que dupla, com ênfase num idealizado sumo sacerdote angelomórfico que
redimirá os filhos de Deus e executará a sua vingança final. A cultura concorrente
representada e assumida pela comunidade de Hebreus, que expressa suas certezas e
esperança na Cristologia Angelomórfica do Jesus exaltado, desafia o pensamento dominante
no império romano, fazendo dos deserdados e reprovados, seja por questões de sangue, seja
de pureza ou socialmente, o verdadeiro povo de Deus. Contrariando abertamente qualquer
política de retaliação, o autor de Hebreus propõe aos seus leitores não abandonarem a
esperança adquirida por Jesus, e mesmo que a situação seja sufocante, exorta seus leitores a
não abandonar o estilo de vida de uma nova sociedade mesmo que isto custe à própria vida.
Este povo tem seu sumo sacerdote, Jesus, que é ao mesmo tempo o Filho de Deus e o
crucificado, que morre a morte de escravos e desclassificados, mas torna-se exaltado à direita
gloriosa de Deus, garantindo uma nova existência aos seus fiéis seguidores, a quem chama
de irmãos. A cidadania, que lhes é negada no plano terreno, é assegurada no plano celeste,
expressão de muito mais honra que a terrena, fazendo deles companheiros dos anjos e santos
do passado, habitantes da Jerusalém Celestial. Por enquanto, esses mesmos são peregrinos,
recém libertados da escravidão, caminhantes para o repouso divino assegurado não por
Josué (=Jesus), mas por Jesus Cristo. Mas que desde já fazem parte de uma comunidade
celeste formada dos primogênitos, justos transformados e elencados no livro da vida,
companheiros dos anjos de Deus.
A estratégia retórica do autor, vista desse modo, abarca tanto os ideais da existência
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greco-romana como a expectativa judaica por uma vida transformada. Acrescente-se a isso o
fato dos recentes eventos da destruição do Templo de Jerusalém e da instituição sacerdotal,
que são levados em conta na elaboração de seu discurso para uma comunidade crente que
enfrenta o desânimo e o cansaço provocados pela constante agressão à sua existência
humana, que a desfigura como mero material de sustentação de uma sociedade agressiva e
arrogante. O gênio do autor de Hebreus o faz coletar amplo material nas tradições israelitas
de resistência diante de outros momentos similares, mesmo momentos contemporâneos, a
fim de �exortar� seus leitores a permanecerem firmes em sua �confissão�. Não nega o
momento crucial vivenciado pelos leitores, mas relembra de outro tão difícil quanto o seu, o
da caminhada no deserto, que foi cheia de tentações para muitos. Tentações que podem fazer
perder a sua confiança no grande pastor das ovelhas frente à aflição do tipo de uma fome
momentânea, trocando o direito de �primogenitura� por um prato de lentilhas. Tal exemplo
medíocre deve ser contraposto ao do Cristo crucificado. Que apesar de pré-existente e sem
culpa alguma, sofreu um sofrimento terrível e vergonhoso, pois sabia que seu trabalho não
seria vão, conduzindo muitos irmãos à vida, resgatados do detentor da morte e da subvida.
A caminhada da Comunidade de Hebreus neste tempo é similar àquela do povo do
deserto até em sua própria identidade de um grupo de escravos que esperam uma cidadania
possível mediante a promessa de Deus. Hebreus faz, assim, uso da memória a tradição da
libertação de Israel e atualizando-a para a situação dos leitores.
O tema da vice-regência angelomórfica da Cristologia de Hebreus precisa ser vista
contra o pano de fundo do meio-ambiente sócio-cultural contemporâneo dos leitores. Jesus é
o herói supra-terreno que enfrentou a morte, mas que reina e intercede por seus irmãos no
Santuário Celeste. Ele pode ser cultuado, pois sem agredir os conteúdos da fé monoteísta, é
concebido como aquele que sustenta toda a ordem criada, ontem, hoje e sempre. Sua
exaltação encontra alguns paralelos na figura do herói greco-romano, que é imortalizado por
ter cumprido os trabalhos prescritos pelos deuses. Mas no contexto da sociedade
circundante, Jesus é o anti-herói, o não-cidadão. Para os leitores, porém, pessoas
desclassificadas socialmente, Jesus incorpora a sua própria identidade, pois o Filho Pré-
Existente de Deus deixa seu status elevado para se tornar semelhante aos seus irmãos, não
vivencia o cotidiano como um anjo, mas como um ser humano que partilha as mesmas
fraquezas dos que receberam a salvação em seu nome.
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