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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE.
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES.
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA DA UFRN.
UMA ANLISE DO TERMO XNOS EM O SOFISTA E O POLTICO
Miguel Pereira Neto
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MIGUEL PEREIRA NETO
UMA ANLISE DO TERMO XNOS EM O SOFISTA E O POLTICO
Dissertao de mestrado apresentada ao Pro-grama de Ps Graduao em Filosofia da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte soba orientao do Prof. Dr. Markus Figueira daSilva.
Novembro de 2012.
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MIGUEL PEREIRA NETO
UMA ANLISE DO TERMO XNOS EM O SOFISTA E O POLTICO
Dissertao de mestrado apresentada ao Pro-grama de Ps Graduao em Filosofia da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte soba orientao do Prof. Dr. Markus Figueira daSilva.
BANCA
Presidente da banca Prof. Dr. Markus Figueira da Silva.
Prof Dr. Srgio Luis Rizzo Dela Savia
Prof Dr. Maria das Graas de Moraes Augusto
Prof. Dr. Jos Gabriel Trindade Santos (suplente)
Novembro de 2012.
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Dedico essa dissertao a minha esposa,
Larissa, que tanto me ajudou a compreen-
der um pouco mais sobre as belezas da
arte e da vida.
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AGRADECIMENTOS
Ao princpio que rege a ideia de promover o bem acima de tudo com inteligncia e es-
foro para tornar o mundo melhor, que alguns mencionam como DEUS, sou grato.
Aos meus pais que contriburam de modos que vo alm do que possvel mencionar
para este texto aos quais agradeo muito.
Aos organizadores de compilaes dos textos gregos que tanto difundiram pelo mundo
o conhecimento dos antigos como o Projeto Perseu, o Projeto Digenes e o Projeto Thesaurus.
Ao Prof. Dr. Markus Figueira da Silva por seu acompanhamento que vem mesmo des-
de antes do mestrado contribuindo para o amadurecimento das idias aqui trabalhadas.
Ao Prof. Dr. Anastcio Borges de Arajo Jnior pela receptividade ao meu incio na
Filosofia.
Aos meus colegas de Ps Graduao, em especial ao grande amigo Voltaire Ribeiro
Vianna Filho por sua prestatividade e amizade sinceras que tanto me inspiraram.
Ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte pela oportunidade.
Capes, pelo apoio financeiro da pesquisa.
E aos demais parceiros que contriburam para minha formao como cidado e ser so-
cial.
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Il a dit quelques mots que je n'ai pas entendus et m'a demand
trs vite si je lui permettais de m'embrasser : Non , ai-je rpondu.
Il s'est retourn et a march vers le mur sur lequel il a pass sa main
lentement : Aimez-vous donc cette terre ce point ? a-t-il murmu-
r. Je n'ai rien rpondu. Albert Camus. L'tranger. p. 95.
Ele disse algumas palavra que eu no tinha entendido e me pediu rapidamente se
poderia me abraar: No, eu respondi. Ele retornou a caminhar atravs de muro sobre o
qual ele passou sua mo lentamente: Voc ama esta terra a este ponto ele murmurou.
Eu no respondi nada.
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SUMRIO
RESUMO 05
INTRODUO 06
1. ESTRANGEIRO, CONCEITO OU PERSONAGEM? 14
1.1 Termos para nomear estrangeiro: brbaro, meteco, sofista e xnos 14
1.2 O estrangeiro como problema na obra de Plato, especialmente nos dilogos
O Sofista e O Poltico. 38
2. O SOFISTA: PARADIGMA DA DIFERENA 49
3. O POLTICO: PARADIGMA DA CONCILIAO 66
4. FILSOFO: PARADIGMA DA RELAO 79
CONCLUSO 88
BIBLIOGRAFIA 94
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RESUMO
Neste trabalho abordaremos o hspede como personagem e mtodo na obra platnica,com destaque para os dilogos O Sofista e O Poltico de Plato, e como essa noo dehspede conduz ao inqurito do que seria um sofista, um poltico e um filsofo.Comearemos com a teorizao dos possveis significados para estrangeiro aos quaishspede pode estar ligado ou no, mostrando como o problema da recepo das diferenaspode ser pensado na obra platnica pelo prisma do estrangeiro. Analisaremos especificamenteo dilogo O Sofista, apresentando a proposta do dilogo enquanto uma busca pelasdiferenas, tanto no ramo ontolgico quanto na definio do sofista. Da mesma forma,analisaremos o dilogo O Poltico, mostrando as relaes que esse dilogo guarda com o seuanterior (O Sofista), no sentido de continuar uma investigao e mostrar como o poltico deveser uma figura de conciliao dos problemas. Apresentaremos uma proposta visando pensar oltimo termo da investigao lanada em O Sofista: o Filsofo como uma proposta que Platodemonstra atravs de relaes durante toda a sua obra e no apenas num dilogo, concluindoo trabalho com as relaes que os textos nos deixaram para pensar o Filsofo a partir doprisma da hospitalidade.
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INTRODUO
Para o homem sbio toda a terra acessvel, pois o mundo inteiro ptria da alma boa. De-
mcrito fragmento 217
Nosso trabalho pretende analisar o estrangeiro enquanto um conceito e um
personagem, dentre as abordagens da obra platnica a abordagem de hspede que percebemos
e destacamos est nos livros O Sofista e O Poltico. Tambm demonstraremos as outras
concepes de estrangeiro para destacar como elas se relacionam ao entendimento da questo
da hospitalidade e da recepo das diferenas culturais para o universo conceitual do grego.
As maiores inspiraes iniciais esto nos escritos de Franois Hartog e principalmente
o Memria de Ulisses que primeiro motivou pensar na nossa experincia acadmica a
importncia do estrangeiro para o grego, numa leitura em que os limites foram escritos
principalmente pela proposta de uma literatura que fortaleceu o sentido de unidade da hlade.
Durante o processo da pesquisa Henrique Murachco mostrou uma antecipao de sua
traduo atual de O Sofista, na qual apresentou alguns motivos expressos no texto para
entendermos como deveramos traduzir para contemplar o sentido de hspede que procuramos
ver nas demais tradues e no contemplamos1. Por fim, o trabalho decisivo de Marcelo
Pimenta Marques, no qual ele analisa principalmente uma bibliografia sobre ontologia em
contraste com a noo de uma viso antropolgica de Plato, expe uma viso da importncia
do estrangeiro e das diferenas como principal caracterstica que define O Sofista em Plato:
o pensador da diferena; pensar a diferena seria um passo basilar na anlise de O Sofista
para compreender o motivo de uma definio do sofista passar pela definio da Ontologia:
possvel uma pesquisa sobre o no ser?
A pesquisa que empreendemos busca compreender como o estrangeiro aparece na obra
platnica, primeiramente fazendo uma exposio de alguns termos-conceitos do que pode ser
entendido como estrangeiro na Atenas Clssica: brbaro, xnos, meteco e sofista.1 PLATO. O Sofista. Trad. Juvino Maia e Henrique Murachco. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2012.
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Apresentaremos as diferenas e as contribuies das diferentes concepes de estrangeiro e de
como elas interferem na noo geral daquilo que vem a ser um estrangeiro. Depois
aprofundaremos o olhar sobre como Plato aplica o uso do termo xnos que est ligado
hospitalidade no caso especfico do Xnos de Eleia.
Buscaremos mostrar o uso do termo xnos dentro dos dilogos de Plato, com
destaque para o dilogo O Sofista como iniciador e mtodo de uma problemtica e o dilogo
O Poltico como continuao dessa problemtica, a saber: a natureza do sofista, do poltico e
do filsofo orientados pelo mtodo dialgico de um xnos. Pensar como relacionar as
diferenas e as funes do filsofo diante dos sofistas e polticos, quando esses assumem
alguns papis que deveriam caber ao filsofo nos dilogos O Sofista e O Poltico.
Precisaremos, para cumprir tal proposta, analisar os dilogos por vrias chaves
argumentativas: pela compreenso de uma lxis dos dilogos; pela compreenso dos dilogos
em sua dramaticidade com a importncia desses termos para a trama; pelas inter-relaes que
os dilogos travam entre si e pelos modelos de conhecimento que eles expressam. Trataremos
do estrangeiro/hspede como problema na obra de Plato, principalmente na produo dos
dilogos O Sofista e O Poltico e como possibilidade argumentativa diferenciada, permitindo
a fluidez de uma Filosofia das diferenas em Plato.
O modelo que destacamos no dilogo O Sofista o da superao das diferenas,
apresentado que todas as perspectivas que se estabelecessem so outras que ainda no foram
contempladas. Um modo de compreender a dialtica platnica, num processo constante de
compreenso do papel do filsofo entre os objetos de estudo que aparecem nos dilogos O
Sofista e O Poltico, a saber: as teorias que orientam o saber dos sofistas com destaque para a
teoria do ser e do no ser e a teoria da cincia da boa poltica em relao dos saberes do
sofista e do poltico com o papel da Filosofia. Buscamos essa compreenso por visualizarmos
uma unidade entre os dois dilogos no que se refere a mtodos e dialtica nos quais termos
importantes surgem por: constante separao; identificao e contraste; analogias, nas quais
as ideias principais do texto so relacionadas em relaes aos mitos e o modo como os
homens poderiam se portar e com relaes entre a natureza; bem como dos homens e dos
animais domesticados caados e principalmente em relaes entre os personagens que
revelam pontos importantes da tentativa argumentativa que est sendo expressa. Todos pontos
em que percebemos o filsofo ao questionar sobre os personagens sofista e poltico.
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Perceberemos a ausncia de nome, alm da provenncia, para o personagem e a
referncia constante a Protgoras e a Parmnides como uma possibilidade de compreender o
modelo epistemolgico relativista do sofista, teorizando o no-ser contra um modelo
identitrio forte da disputa do ser do poeta representados por personagem partidrio de ambos
por suas colocaes. As disputas, contribuies e trocas que os textos nos quais figuram o
xnos de Elia vo relacionar, resumem as disputas filosficas e polticas da gesto pelo
conhecimento poca de Plato. O uso do estrangeiro/hspede, que aparece sem nome, um
recurso dramtico que amplia a percepo das diferenas por estar fora dos campos que um
indivduo poderia alcanar em suas crticas e alm dos limites daquilo que a definio do
personagem poderia abarcar.
A definio com a qual atentaremos e a aceitao do pensamento do hspede que
percebemos como ponto difcil de definir. Nosso termmetro o quanto o xnos bem visto
em suas opinies pelo prprio Scrates, que comea contrrio ao hspede. A aparente
hostilidade inicial parece ser o motivo que percebemos para fortalecer a opinio que a maioria
das tradues do texto no Brasil e mesmo nas tradues mais antigas francesas e at inglesas
defendam uma traduo de xnos: estrangeiro. Como definiremos logo frente, o termo
ligado hospitalidade e poderia ser traduzido tambm como hspede ou visitante. Ao traduzir
como estrangeiro, estamos forando uma concepo das ideias do convidado como vindas de
um campo outro que o de Scrates e corroborando com a noo de uma verdade vinda de
fora; portanto este texto vai se permitir o modo de enunciar como estrangeiro, mas
explicitando que as tradues poderiam pensar a noo de hspede.
A noo de hspede que defendemos a partir dos dilogos, e na traduo citada
anteriormente, vai se pautar nas aparies e usos dos termos de referncia com o seguinte
intuito: na tentativa de mostrar que Plato vai usar a noo-conceito-personagem hspede-
estrangeiro para explicitar orientaes filosficas, por considervel parte de sua obra, de
personagens que aparecem para mudar o paradigma filosfico do senso comum. Podemos
simplificar aqui na nossa concepo, ainda com lacunas de compreenso, mas que vislumbra
os dilogos a partir de quatro principais modos de lidar com o estrangeiro: da fase socrtica2
expondo o estrangeiro como um modo de falar estranho; numa fase de crtica aos sofistas que
2 Compreenso da Plato entendido em fases de sua obra que compreenderia o Plato Socrtico como uma primeira etapa de produo em que a figura de Scrates tem papel preponderante como personagem cujo drama de vida se confunde ao drama da Filosofia ateniense.
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aparecem nos dilogos com nomes de sofistas3 como rivais importantes para a Filosofia; a
fase da diversificao dos termos em que aparecem como brbaros e sofistas menos propensos
ao dilogo em A Repblica e que ganham espao de pertencimento como personagem central
na construo dos dilogos com aparies curtas, mas de importncia fundamental como
Diotima; Por fim ao patamar de personagem central dos dilogos de velhice e, se analisarmos
as Cartas, a figura do prprio Plato se tornando estrangeiro na Carta VII.
No pretendemos expor um modelo em que a Filosofia seja projetada para o
estrangeiro, mas ao contrrio: que ela resultado de contribuies estrangeiras e tambm deve
ser partilhada e pensada por todos os modelos dos que outrora pensaram e hoje pensam a
Filosofia, no mais apenas os atenienses da poca clssica, mas todos que pretendem
contribuir para o pensamento. O dilogo O Sofista evidenciar que todas as diferenas que
poderamos qualificar como no-ser, esto contidas dentro dos cinco gneros supremos: o ser,
o movimento, o repouso o mesmo e outro, evidenciando-se apenas como outro que o ser e no
mais o no-ser.
As evidncias dessas alteridades que podem surgir, do entendimento das diferenas
como partes do todo, norteiam pensar que o estrangeiro ou o hspede um recurso para
hospedar as diferenas e mostrar o quanto elas so importantes no processo de
conhecimento. Mesmo o grande filsofo da obra platnica (Scrates) teve que se calar para
acompanhar o raciocnio desse enigmtico pensador da diferena, pois o desafio maior foi
lanado: definir aquilo que vem a ser o sofista, o poltico e o filsofo, dado que os prprios
dilogos mostram esses objetos de pesquisa como entrelaados por funes semelhantes e
esferas de participaes sociais bem prximas ou comuns: interferirem na educao das
pessoas e ordenar os processos poltico-administrativos da cidade.
Pretendemos apresentar, aps a explicao do problema do conceito-personagem
xnos e de como ele aparece nos textos platnicos, uma anlise acompanhada dos textos que
chamaremos de: O SOFISTA: PARADIGMA DA DIFERENA; O POLTICO:
PARADIGMA DA CONCILIAO e FILSOFO: PARADIGMA DA RELAO.
Em O SOFISTA PARADIGMA DA DIFERENA, privilegiaremos uma abordagem
do dilogo O Sofista acompanhando os passos do texto e mostrando como atravs da riqueza
3 Dilogos como Hpias Maior, Hpias Menor, Lsias, Protgoras e Grgias.
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de temas diversos reconfigurada a noo de que pode se falar sobre o no-ser: primeiro
mostrando a caa sofstica de jovens pelo mtodo de analogia com o caador/pescador; depois
mostrando que os sofistas operam a noo de no-ser para capturar os incautos; por fim
atravs de suas tcnicas de persuaso, principalmente atravs da produo de imagens que
tomam os nomes das coisas como um todo se tratando apenas de imagens falsas. O sofista
mostra em vrios pontos o quanto o filsofo tambm trabalha de modo semelhante e, por
vrias vezes na relao do sofista com seu objeto de estudo, a definio que aparece a do
filsofo.
Como a proposta enunciada no dilogo O Sofista como sendo de definio de trs
personagens, continuaremos analisando como em mais um dilogo aparece tendo como
principal o Xnos de Elia e pode se perceber a recepo que a reviso de Parmnides ou o
parricdio do pai de Elia vai ter para Scrates que se silenciou durante todo o dilogo
subsequente: O Poltico.
O captulo O POLTICO: PARADIGMA DA CONCILIAO continua o dilogo
anterior de vrios modos e procuramos compreend-lo nos moldes principais adotados na
anlise do anterior: uma abordagem que visa pensar a hospitalidade e principalmente nesse
caso as estratgias de abrigo, onde o lar o espao da conciliao das diferenas. O dilogo O
Poltico mostra evidenciando ainda mais com relaes aos animais funo de compreender a
natureza que cada um possui e de que a reta gesto dessas diferenas, que foram enunciadas
em dilogo anterior, passam pela gesto de necessidades simples que todos possuem.
Ao analisar uma figura distante do filsofo, pois a poltica acaba sendo dominada
pelos homens mais desprovidos de natureza filosfica, aparecem tambm atribuies de
pensar a sociedade e criar redes de pertencimento que poderiam ser otimizadas por algum
com afinidade pelo saber. O saber visto como modo de orientao dos homens, ou seja, o
melhor poltico tambm deve ter natureza filosfica. O mais curioso que um estrangeiro
analisa os homens como animais e expe que as nossas diferenas e caractersticas so
minimizadas, ao ponto de se reduzirem ao entrosamento conciliao de um rebanho bem
servido nas mos do poltico. Para essa afinidade do poltico em tecer redes de participao
que o texto apresenta a alegoria da atividade de tecelagem, onde o bom poltico sabe tecer do
modo mais completo a vida de seus governados.
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O sofista se confunde em alguns pontos com o poltico e parecem fazer um papel
conjunto no qual o sofista produz os artifcios para a alma se sentir bem e introduz os
ensinamentos para que a classe poltica possa tomar por fora o governo sobre os homens.
A reta gesto dos mecanismos de produo do conhecimento e a reta gesto dos
homens esto acima dos modelos de governo nesse dilogo. A democracia que a tradio
Ocidental apresenta como o modo mais justo de governo, aparece descreditada, pois qualquer
estilo de governo pode ter boas funes se pessoas com naturezas filosficas e respeito s
necessidades dos governados assumirem o poder. O papel do bom governante, mesmo
daqueles que produzem as redes de conhecimento que nos controlam e educam, perpassa pela
reta ordenao entre os elementos constituintes das aes humanas. Na adequao dos
homens aos critrios maiores, que Plato apresenta como divinos, apresenta o melhor dos
pastores como inalcanvel para os homens.
Em nossa anlise dos dilogos em foco percebemos que o filsofo est o tempo todo
presente como aquele que busca a adequao e o equilbrio entre os personagens que
organizam o pensar e o agir da plis: o sofista e o poltico, mas no foi definido como tema
central de uma fala por parte do hspede como foi solicitado que o fizesse. Criamos um
captulo antes da concluso para pensar esse silncio dos textos sobre esse problema: e o
filsofo, como aparece? Para tanto apresentaremos o teor de cada captulo.
FILOSFO: PARADIGMA DA RELAO surge como o comentrio/comparao
daquilo que percebemos das tradies argumentativas de Plato sobre a inexistncia de um
dilogo que completaria a trilogia: Sofista, Poltico Filsofo ou a tetralogia: Teeteto, Sofista,
Poltico e Filsofo. Pensamos que o resultado principal est na relao entre os elementos dos
dois dilogos anteriormente comentados e por isso revisamos alguns passos recomentando. A
chave interpretativa de pensar o hspede que um passo importante para a Filosofia, pois nos
far vislumbrar como o constante dilogo das diferenas promove noes claras sobre
assuntos tipicamente filosficos de compreender as diferenas. O filsofo est nos intervalos
de reflexo e pensamento sobre as coisas que dirigem as aes dos homens, revelando suas
incoerncias sobre os mais diversos assuntos e expondo os sentidos nos quais participamos
como estranhos em questes como a poltica.
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Concluiremos apresentando o modelo de anlise na sua relao com os trs objetivos
de investigao, a saber: afinal em que o estrangeiro foi importante para o entendimento do
sofista, do poltico e do filsofo? Mostrando como esse modo de interpretar pode auxiliar na
compreenso do problema geral que o estrangeiro ou o hspede.
O modo de interpretao que temos pensa o escrito por uma relao com suas heranas
e tambm de uma noo de reviso do pensamento platnico como puramente socrtico, que
tem nuances e transformaes decisivas atravs de novos personagens e da realocao de
personagens anteriormente protagonistas como Scrates. Para a tradio Ocidental, o texto
fundamenta pensar aquilo que nos estranho e diferente como parte do processo de filosofar.
Uma teoria em que nos reconhecemos por critrios parmendeos e reconhecemos as
diferenas que surgem com os confrontos sofsticos da crescente disputa por tcnicas
polticas, que se expandem pela hlade na poca de Plato, que resultariam numa
diversificao das noes daquilo que estrangeiro, hspede e daquilo que o heleno
citadino.
Pensamos tambm em quais conceitos Plato se embasou historicamente e
filosoficamente, ao apresentarmos os usos do conceito de brbaro e das noes de estrangeiro
ou hspede. Postulamos que essa abordagem fundamental para compreender o processo de
construo platnico dos dilogos pelo conhecimento grego, bastante descrito como o
processo da formao da Paidia grega. No desvinculamos o processo de conhecimento das
disputas que envolviam o produto da cultura grega e percebemos que Plato tambm no, por
usar dos conceitos dos hspedes como chaves para compreender o mundo antigo.
A inteno de mostrar um Plato que no tenha receio em mostrar como as
diferenas podem ser teis para o processo de conhecimento e como devemos dar espao para
que o novo surja, pela recepo dos diferentes lados da questo por diferentes pessoas e
diversos conjuntos tericos. O cenrio grego em que cada cidade-estado se entendia, como
tendo deuses prprios e poltica prpria, incentivou uma viso de concorrncia entre as
cidades. Cada cidade poderia possuir cultura prpria e dialetos prprios ao ponto de
acontecerem conflitos entre cidades. Diante desse cenrio que os sofistas chamaram ateno
ao pensar que a ideia de unificao dos povos ganha fora com os gregos, para lutarem contra
os brbaros.
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As propostas unificadoras que a poltica do mundo antigo pensou, como as defendidas
por Grgias de um Pan-Helenismo, no visavam minimizar as diferenas, mas usar os
diversos saberes para melhorar a antiga estrutura das cidades helnicas com saberes
purificadores e prticas polticas funcionais. A renovao dessas tcnicas advm
exatamente dos dilogos de diferentes tradies gregas que se encontram misturadas na poca
clssica, que encontraram na erstica/retrica seu lugar de legitimao. Plato apresenta como
o entendimento que os sofistas mostram sobre as teorias de origem distorcido, as teorias
sobre o ser e as principais vertentes do conhecimento do mundo helnico so indevidamente
desconfiguradas e mal tratadas pelos pensadores que definiram as origens.
O dilogo O Sofista vai comear problematizando pelo clssico personagem Scrates
se indagando das diferenas entre um ateniense e seus colegas, ou dos estrangeiros que nos
cercam? No, vai usar o recurso de um hspede para tornar claro como essas diferenas no
esto devidamente delimitadas, pois mesmo o personagem no possui nome. O estrangeiro
apenas um conceito, apenas o hspede de um local diferente ou um filsofo? Dentro da
nossa proposta ele corresponde a todos estes termos em locais diferentes na obra platnica
que detalharemos a frente.
Inicialmente colocamos as seguintes questes: o estrangeiro um conceito ou um
personagem? Estrangeiro uma noo adequada para compreender o termo xnos? Existem
conceitos diferentes de estrangeiro na obra platnica? Acreditamos que todas as respostas
para essas perguntas se resguardam na ambiguidade de compreender aspectos diferentes de
cada perspectiva como apresentaremos a seguir.
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1. ESTRANGEIRO, CONCEITO OU PERSONAGEM?
1.1 Termos para nomear estrangeiro: brbaro, meteco, sofista e xnos
Pretendemos investigar o sentido das expresses que so usadas para designar a ideia
de estrangeiro no lxico platnico. A importncia de entender os possveis significados para
estrangeiro que a cultura grega forjou a de fomentar um entendimento daquilo que Plato
conceituou atravs dos dilogos de relao com as diferenas, especificamente o pensar a
diferena atravs do texto O Sofista4, bem como de desenvolvimento de compreenses do
plano ideal atravs das tenses possibilitadas pela relao com as diferenas.
Analisando as ocorrncias do termo xnos, a principal ocorrncia surge na Ilada na
passagem em que Diomdes e Glauco entrariam em combate:
Portanto sou seu amigo e anfitrio (xeinos philos) no coraode Argos, tu s o meu em Lcia, quando eu vou a tua ptria. Vamosevitar nossas lanas mtuas ... Mas permutemos nossas armaduraspara que esses outros possam saber de que modo alegamos serhspedes e amigos desde os dias de nossos pais (Xeinos patroioi).5
A passagem na Ilada parece ser a grande referncia quando se busca a origem dos
usos de xnos na literatura grega, a mesma referncia poderia ser feita ao Anne
Defoumantelle convida Jacques Derrida a falar de hospitalidade6 e ao Plato pensador
4 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
5 HOMERO. Iliada. 6.224-31. Trad. Lattimore 1951. Apud KONSTAN, David. A amizade no mundo clssico. Odysseus: Cambridge, 2005. P.48-49.
6DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade . Trad.Antonio Romane. So Paulo: Escuta, 2003. Livro em que Derrida acaba mostrando como a hospitalidade umponto central para o grego e algo que precisamos entender hoje para realizar uma sociedade adequada com seusprincpios.
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da diferena7. Konstan ainda enumera mais usos do termo e se destaca por fazer uso da ideia
de anfitrio:
Os termos xe()nos, traduzindo aqui como amigo e anfitrio,ou hspede e amigo, significa mais comumente em Homero umdesconhecido. Em grego clssico, xnos significa estrangeiro, isto, um habitante de uma plis ou pas diferente, ou um visitante noresidente, em oposio a um concidado (asts sympolites). O termotambm pode designar um amigo estrangeiro: o lexicgrafo Hesquio(c. sculo V d.C. ) define xenos (s.v.) como um amigo [phlos] deuma terra estrangeira [xne, sb. g]. Assim, em Alceste de Eurpides,Heracles o xnos de Admeto (540,554), que tambm pode serchamado de phlos (562, 1011). Os conterrneos de Admeto,entretanto, so simplesmente phloi (369, 935, 960; cf. phloi, 212),nunca xnoi. Para ser uma plis ... uma comunidade tinha quedistinguir formalmente entre membros e no membros (Manville1990:82).8
A ideia de xnos ligado a uma comunidade diferente, mas pensar o amigo (phlos) em
alguns usos mostra o paradoxo da noo do que o estrangeiro na literatura grega. Pensar
como o estrangeiro aparece mostra os limites dos concidados em seu conhecimento de
mundo e a forma como os gregos encaravam os diferentes.
A presente pesquisa nasceu da anlise de um texto traduzido pelo professor Jacyntho
Lins Brando e escrito por Franois Hartog: Memrias de Ulisses. Este texto demonstra
como os gregos fizeram seus primeiros ensejos de contemplao do mundo, a partir da anlise
daqueles que deveriam ser reconhecidos como irmos e daqueles que deveriam ser
reconhecidos como inimigos e diferentes. O principal dos ensejos de cartografia do mundo
grego est nos escritos atribudos a Homero, por exemplo, a guerra que descrita na Ilada:
povos de crenas semelhantes so postos em combate por paixes roubadas de um povo para
outro e isso rene os principais grupos que formavam a hlade numa investida contra a
inexpugnvel Tria. Como se no bastasse a Ilada descrever as correntes de povos que
7 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte:Editora da UFMG, 2006. Texto em que antes da retomada do hteron, as referncias a Ilada so realizadas comorastreamento do problema do que o estrangeiro para o modo de produzir platnico dentro de O Sofista.
8 KONSTAN, David. A amizade no mundo clssico. Odysseus: Cambridge, 2005. P. 49.
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compe os gregos, na Odisseia, a viagem de volta circunscreve a geografia grega e os
estranhos monstros que Ulisses, na tentativa de retorno ao lar, precisa confrontar.
Ulisses o primeiro a descrever o espao dos limites e tentar conhecer as diferenas.
Nas origens histricas dos povos gregos, muitas teorias de povoamento se amontoam e
atribuem cada vez mais mrito para uma concepo de origens egpcias, sem negar algumas
influncias mesopotmicas, mas, sobretudo mediterrnicas e semitas nas origens do
povoamento da hlade com destaque para os grupos oriundos da sia Menor. Pretendemos
com essa explicao, estabelecer que desde os primrdios a literatura grega fizesse nexos com
culturas estrangeiras que so basilares na formao da prpria identidade grega. No se pode
pensar na existncia dos gregos como isolados na imensido de relaes comerciais, religiosas
e culturais que eles mantinham para com seus vizinhos.
Basta para tanto lembrar que a prpria lngua grega tratada pelos manuais de
lingustica como uma apropriao do alfabeto fencio, com a insero de caracteres que
chamamos de vogais. Hecateu de Mileto mostrou a reverncia que o povo grego sempre teve
que reservar aos povos egpcios pela ancestralidade e por serem os senhores de cultos que so
considerados importados na Grcia como o culto dedicado a Dionsio.
fundamental entender a importncia para compreender o que se pretende aqui de
trabalhos como a Paidia de Jeger9 e a A Cultura Grega e as Origens do Pensamento
Europeu de Snell10, que fundamentaram pensar as heranas platnicas de um modelo de
educao e civilizao que foi perpassado por toda a tradio literria grega. A reviso
conceitual que tais autores promoveram foi centrada principalmente na explicao de uma
identidade grega moldada pela aret como base educacional:
A palavra aret no se refere a vida moral, mas indicanobreza, capacidade, xito e imponncia. Com essas expresses,porm, j nos aproximamos da moral, j que elas no se indicamcomo felicidade e utilidade algo que sirva apenas ao interesseindividual, mas sim que tem um valor mais amplo: aret significabravura e capacidade, o que se espera de um homem bom,ativo, de um aner agaths. Visto que essas palavras, de Homero em
9 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidia: A formao do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3. ed. So Paulo:Martins Fontes, 1994.10 SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. So Paulo: Perspectiva, 2005.
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diante at Plato e mesmo depois deste, servem para indicar o valordo homem e de sua ao, sua mudana de significado ndice detransformao de valores no curso da histria grega.11
Como j foi comentado aqui, o conceito de estrangeiro remonta aos primrdios da
literatura grega com Homero. Porm, o processo dos conceitos de viso de mundo que
interferem no modo de ver o que estrangeiro e o que grego possui grande relao com o
avano de outros estilos literrios, como a tragdia grega. A sofstica era teorizada como uma
etapa prvia a Scrates que contemplaria uma cultura cheia de problemas de valores morais
ou inaptides conceituais que era imposta para a Atenas.
Os termos para estrangeiro contemplariam tambm uma noo de hspede de outro
lugar da hlade, portanto um membro da comunidade grega, mas de outras participaes e
relaes de pertencimento cultural, haja vista a grande disputa de dialetos; como o exemplo da
relao do dialeto drico e do dialeto inico, que tem em Atenas e Esparta os rivais histricos
pela hegemonia grega. Os helenos teriam posturas de estranhamento tambm entre si, que
intensificariam as diferenas naturais dos diferentes povos e a pluralidade de modelos
econmicos e polticos da Grcia. Mas a sofstica seria um grande passo desde Grgias na
tentativa da unificao da hlade, sobre a proposta de confrontar o estrangeiro de fato: o
Persa.
O processo educacional comentado por Jeger e Snell em que o conceito de nobreza
era o conceito que foi trabalhado por Plato como definio de homem bom, passa aqui por
um dilema: possvel um homem bom que provenha de uma outra cultura e que talvez no
pactue do padro de excelncia da cultura de referncia? Os valores foram em grande medidas
alterados na poca de Plato pelo crescimento da sofstica e por vrias crises que se
alastravam pelos modelos gregos, os quais a literatura d grande testemunho e a grande
ferramenta para educar as pessoas conforme os padres que vo surgindo.
Se a literatura comps o primeiro ramo de produo e difuso dos saberes na Histria
da Grcia, Plato usa toda essa tradio na composio de sua Filosofia. A Filosofia platnica
discute com a literatura e com a sofstica, empregando seus mtodos e personagens, bem
como seus compositores fazendo parte dos dilogos. O estilo de Plato tambm montado
11 SNELL, Bruno. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. So Paulo: Perspectiva, 2005.. p. 168.
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num esquema teatral, herdado inclusive do modelo grego de exposio das tragdias, mas
uma exposio que fosse aprazvel e instrutiva ao mesmo tempo sem esquecer seu
comprometimento como difusor de padres.
A aproximao com o termo estrangeiro ao invs da aproximao direta com a anlise
ontolgica vislumbra as tenses e as diferenas do plano fsico, com as tenses das relaes
das pessoas com os estrangeiros, e atenta para um sentido de gnero como uma relao de
provenincia. A provenincia, contudo, repensada em seu papel de mera origem estranha, mas
no papel de pensamento sobre origem e alteridade. Se as palavras gregas que designam
famlia e que designam pertencimento social so relacionadas gnos, o uso de um
estrangeiro, portanto de outro gnos, para falar de teorias deslocadas uma possibilidade para
que as relaes dos diversos locais que os atenienses participaram; fortalecido por uma
comunho dos gneros no sentido de participao da Filosofia, como um saber alm de seu
espao citadino.
No se pretende dizer que o plano do inteligvel diretamente modificvel pelas coisas
que os homens estabelecem, como Protgoras defendia no seu homem medida de todas as
coisas, mas que o conhecimento pode ser percebido em suas relaes e conceitos tambm a
partir dos estranhamentos gerados por vises diferentes que apresentam vrios lados; sem cair
no relativismo de que tudo possvel aos homens em seus modos culturais. Intencionamos
esboar que atravs do contraste das diferenas que se percebe a possibilidade de
entendimentos alm das referncias locais, da cultura do local ou voltada para um grupo, para
se chegar a noes mais gerais e que contemplem com mais equidade a multiplicidade dos
conceitos de que somos participantes.
No sentido daquilo que aprendemos, o enunciado falso tambm um passo que ajuda
a elucidar aquilo que inteligvel, e nos fora a pensar as relaes que acreditamos mais
ajustadas com mais preciso. Buscamos mostrar que a reviso da sofstica em seus princpios
um modo de usar as diferenas em seus problemas principalmente para mostrar os caminhos
que o filsofo deve combater e os conceitos que deve acompanhar.
O texto platnico, assim como os vrios textos da literatura grega em seus mais
variados estilos (tragdia, comdia, pico etc...), tocou em pontos problemticos na estrutura
da convivncia das pessoas, mostrando as diferenas e disputas do povo grego. No caso dos
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textos de referncia do trabalho, destacamos o modo como os gregos viam os diferentes. O
processo de anlise das diferenas possibilitou a reviso dos critrios da mitologia/literatura e
principalmente da sofstica na busca de uma educao ideal para os propsitos polticos,
comerciais e imperialistas da hlade, cada vez mais participante do mundo antigo. Como frisa
Marcel Detienne12, Plato tem um propsito ao reinventar a mitologia, que repensar a cidade
e mesmo defend-la, no sentido de expurgar todo o processo que no seja devidamente
raciocinado de suas proposies para a sociedade. A mitologia de Plato, no entanto, no
uma mitologia xenfoba. Plato compreende as diferenas e explicita as contribuies dos
supostos tempos de reinados outros, como o tempo de Chronos para o modo como o tempo
corre ou poderia correr em ciclos que compreendem o maior grau de maturidade com o mais
elevado grau do poder de mobilizao.
Para Aristteles, a formao de uma sociedade que contemplou funes alm daquelas
que se destinam a suprir necessidades bsicas, fomentou o cio necessrio para estudos de
ordem mais terica como a matemtica; isso foi possvel primeiramente no Egito13 e a
tradio cultural grega no cessou de fazer referncias para estrangeiros e tambm se
reconhece neles como continuao das tradies culturais. O prprio Plato, dentre muitos
outros pensadores da Antiguidade, teria feito viagens ao Egito com fim de aprender as teorias
dos estrangeiros. Mesmo na constituio composta no dilogo As Leis, Plato entende que o
dilogo com o estrangeiro no deve ser cerceado para aqueles que buscam o saber, mesmo
quando se deve pensar em questes capitais da legislao da prpria cidade. Neste trecho
Gerson Pereira Filho comenta sobre caractersticas do Conselho Noturno:
Estar sempre aberto a adaptar suas funes, seguindosugestes positivas extradas at de legislaes estrangeiras, mantendoum trabalho permanente de observao e relacionamento exterior,como uma espcie de embaixada estrangeira, que possui o dever detransmitir ao Conselho novas e interessantes idias sobre legislao eeducao (As Leis, 952 a-c).14
12 DETIENNE, Marcel. A inveno da mitologia. Trad. Andr Telles, Gilza Martins Saldanha da Gama. Rio deJaneiro: Jos Olympio/Braslia: UnB, 1992.13 ARISTTELES. Metafsica. Livro I, 981 220-2814 PEREIRA FILHO, Gerson. Uma Filosofia da Histria em Plato: O percurso histrico da cidade platnica de As Leis. So Paulo: Paulus, 2009. p. 191
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A necessidade de pensar as relaes com os outros se d pela perspectiva de
compreenso dos modelos que dialogam com o prprio e dos modelos que divergem com o
prprio modelo de kosmos grego, numa clara referncia a um modelo heracltico de kosmos.
O mundo conceitual de Plato tambm inserido num kosmos Heracltico, como disse
Gregory Vlastos15 ao apresentar a enorme quantidade de teorias sobre a ordenao das coisas
e principalmente numa viso baseada no dilogo O Timeu. A referncia de Plato se insere
num amlgama de referncias das escolas que geraram a Filosofia e a Literatura por todo um
territrio conhecido por Hlade e at por heranas culturais egpcias. Dentro da mistura e da
confusa relao de saberes que a Filosofia teria que abarcar, boa parte dos argumentos mais
importantes para a Filosofia at Plato provinha do estrangeiro: nas relaes da matemtica
egpcia que Pitgoras redefiniu, nos conceitos dos italiotas que redesenhavam a ideia dos
conceitos da hlade continental e da parte da regio da Jnia que sofria muita influncia da
Babilnia e at dos Persas na composio de pensamento.
O estrangeiro para a cultura grega, uma grande referncia em termos de saber e
muito complexo para ser definido num nico termo. Tentando entender a importncia dessa
multiplicidade e da polissemia da diferena no estrangeiro, o analisaremos tendo em vista
ilustrar essas diferenas polissmicas e outras dentro da lngua e depois nos dilogos de Plato
em que figura o xnos.
A peculiaridade do xnos que se pretende abordar o retrato da possibilidade de
convivncia com as diferenas que Plato esboa ao falar de um estrangeiro. Na lngua grega,
encontram-se vrios termos que podem ser relacionados com estrangeiro, mas nos
restringiremos aos termos: brbaro, meteco, sofista e xnos. Tais termos revelam uma
multiplicidade de entendimentos geogrficos e ideolgicos do mundo grego, bem como
possibilidades interpretativas dos dilogos platnicos de forma bastante elucidativa quando o
crivo do que Plato pode entender pelos presentes termos.
Analisar a ideia que o grego forjou de brbaro analisar a histria do conceito de
heleno; pois o termo se referia inicialmente ao uso que aqueles, de sotaque estranho ao grego
faziam ao tentar balbuciar o grego: o recurso onomatopeico do bar, bar. Quem no falava
15 VLASTOS, Gregory. O Universo de Plato. Trad. Maria Luiza Monteiro Salles Coroa. Braslia: EditoraUniversidade de Braslia, 1987. p. 12.
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adequadamente o grego, era o brbaro. A primeira definio de falar estrangeiro que
tratarmos, enquanto aquele que no partilha da mesma lngua, expressa no texto Apologia
de Scrates por exemplo:
O fato que, embora tenha setenta anos, a primeira vez queme apresento perante a corte. Sou, portanto, um completo estrangeiroem relao ao tipo de linguagem que utilizada aqui. Assim, tal comocertamente, se eu fosse realmente um estrangeiro, me desculpareis seeu falasse no dialeto na maneira em que fora educado...16
A noo de diferena lingustica que Scrates apresenta a de um dialeto diferente do
dialeto praticado na corte. Uma noo de educao que altera o pertencimento lingustico
mesmo entre habitantes da mesma cidade o primeiro estranhamento que pontuamos, no
sentido de mostrar Scrates tratado como estranho entre seus iguais e como a hospitalidade
das diferenas mostrada de modo claro, pois se algum grego falasse de modo diferente seria
desculpado de tal fato se foi educado em outra forma. Scrates na passagem acima intensifica
o carter de diferena entre os costumes dos homens das leis da cidade e estabelece a
Filosofia ou o modo como foi educado como prtica estrangeira para o grupo que o acusa.
Scrates aparece em certo sentido como um xnos:
Compartilhando com poetas e sofistas a impossibilidade defaz-la viver, Scrates ao mesmo tempo em que aponta para umaenigmtica semelhana, pois atravs de sua vida, se mostra e se diz,de um certo modo, xnos" , instaura uma diferena, desafiando seusconvivas, bem como a ns, a perceb-la17.
Mas no nessa definio primordial de dialeto que Plato pensa o brbaro no dilogo
A Repblica, e sim na definio criada depois das guerras mdicas, que revela o universo
complexo dos gregos em contraste ao universo dos brbaros. O brbaro no compreenderia de
16 Apologia de Scrates 17d. In: Plato. Dilogos III: Fedro/Eutfron/Apologia de Scrates/Crton/Fdon.Trad. Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2008.17 SCHALCHER, Maria da Graa Franco Ferreira. MITO E PARTICIPAO NO TIMEU DE PLATO. In:KLOS N.1: 157-165, 1997. p.160.
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modo algum o pensamento grego e em especial as estratgias associao e de atuao social.
Por isso responderia atravs da batalha ao invs do dialogo, por no poder dialogar e por no
compreender o modo como os helenos pensam duas aes.
Desde a leitura do livro Histria de Herdoto, o mundo helnico conta com uma
definio mais concreta do mundo brbaro e comea a fundamentar a hbris de modelos
injustos no modelo que contraria a viso do grupo pan-helnico to reforado por vrios
pensadores, dentre eles, mesmo os sofistas como Grgias favoreceram em discursos a unio
da hlade contra os brbaros que ameaavam a autonomia das crenas e das famlias gregas
em seus discursos18.
O prprio Herdoto foi reconhecido em Atenas por seus prstimos para a cidade-
estado, por circunscrever as possibilidades que os inimigos possuam e por elogiar o
modelo democrtico ateniense. Foi com Tucdides, tambm com seu tratado de Histria, que
Herdoto foi vencido em termos de mtodo e que o prisma da centralidade grega comeou a
ser priorizado em detrimento de uma abordagem mais geral que compreenda as diferenas do
entorno19.
Os gregos, que preferiam uma Histria das prprias guerras que no contasse com
fontes orais de pouco crdito chegando a descrever o mundo como algo maravilhoso ou
espantoso, thaumadzen, encontraram em Plutarco, sculos depois, a crtica que colocaria
Herdoto como um philobrbaro. Essa noo est prxima da ideia que Momigliano analisa
ao pensar os modelos de historiografia philobrbara e autctone de Herdoto contra Tucdides
a qual ela diagnostica Hecateau com Niebuhr e Herclito com Hegel no sentido de dois
grupos: os conservadores no gostam dos pesquisadores empricos por terem vises mais
liberais e desfigurantes dos ideais dos conservadores. Hecateau retirava o direito de
reinvindicar descendncia divina dos gregos e talvez por isso ele seja conhecido como um
philo-barbaro20.
18 DHERBEY, Gilbert Romeyer. Os Sofistas. Lisboa: Edies 70, 1999. 35-36.19 Abordagem de Tuccides ao falar de uma Histria que se preocupe como reestabelecimento dos fatosbuscando fontes mais claras e que foi popularizada pela abordagem de Plutarco ao criticar a Histria deHerdoto como Philobrbaro. Para um histrico dessas querelas consultar: MOMIGLIANO, Arnaldo. As razesclssicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
20 MOMIGLIANO, Arnaldo. As razes clssicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz BorbaFlorenzano. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p .59.
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Plato no se encontra neutro nessa busca de compreender quem o adversrio do
modelo grego em suas buscas pela justia. Se o brbaro j foi representado de modo muito
caricatural desde Herdoto como capaz de mandar aoitar os mares e cometer diversos atos de
hbris, o brbaro o adversrio natural do grego. Na disputa sofstica por reconhecimento
contra os sofistas e por adequar uma postura tica a uma postura frente ao conhecimento,
Plato precisa recriminar as desmedidas, por isso naturaliza o conflito com o brbaro numa
passagem do dilogo A Repblica:
Por conseguinte, diremos que, quando os Gregos combatemcom os brbaros e os brbaros com os Gregos, esto em guerra, e queso inimigos por natureza, e que a esta inimizade se deve chamarguerra. Ao passo que, quando os Gregos fizerem tal coisa aos Gregos,diremos que so amigos por natureza, que tal conjuntura a Grcia estdoente, e em discrdia civil, e essa inimizade chamaremos sedio (ARepblica 470c)21.
Como a passagem deixa evidente, as disputas entre os gregos so tratadas como
pequenas dissidncias, e as disputas contra os brbaros so tratadas como disputas dotadas de
naturalidade na disputa por espaos. O brbaro no um elemento muito analisado dentro do
contexto do dilogo A Repblica, mas encontra amplo respaldo em seu relacionamento com
a ideia de tirano. O prprio Herdoto (um dos responsveis pela naturalizao da ideia de
brbaro) no se refere aos persas como brbaros, mas se refere aos atos de tirania tomados
pelos persas.
Ao se imprimir uma poltica imperialista, tentado dominar o espao helnico, os persas
travam uma batalha contra a possibilidade de realizao que Plato expe que pode se realizar
na plis governada pelo filsofo e construda no lgos. No pode haver compulsoriedade das
funes, mas respeito s liberdades e caractersticas dos cidados e aos espaos que foram
manifestados atravs dos tempos em relao aos gregos. importante frisar que a liberdade
em Plato diz respeito s possibilidades de realizao do indivduo dentro da sua plis,
atuando conforme a educao de origem orientou na construo de aes de cidadania e de
justia para com os muitos. Ao contrrio da ideia de um indivduo plenipotencirio que pode
21 PLATO. A Repblica. Trad. Eleazar Magalhes Teixeira. Fortaleza: Edies UFC, Banco do Nordeste,2009.
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dominar vastos terrenos e subjugar as massas pela fora, o esforo de realizao dos
indivduos est na insero deles nas aes das massas.
O brbaro ento o tirano e o tirano algum que deve estar longe da plis, bem
como um termo dedicado s pessoas que no participam do modelo de cidade que o heleno
ateniense entende que deve acontecer. Na cidade construda no lgos, no h espao para
muitas pessoas: poetas que no se adquam a uma poesia que ensinem modelos bons e
prescrevam verdades para as crianas, tiranos e pessoas de ndole tirnica e, portanto m, bem
como no h espao descrito para estrangeiros. Mas teria Plato fundamentado um espao
argumentativo em que estrangeiros no seriam consultados, referenciados ou considerados?
Tambm no dilogo A Repblica, aparece um personagem bastante ilustrativo de
outro termo que revela tenses na Atenas de Plato: um meteco. Um comerciante
especializado que de origem estrangeira, mas que no exerce poder poltico direto na polis.
Em Atenas, eles habitavam um espao marginal em relao s praas e a acrpole da cidade
conhecido como a regio do Pireu, o porto.
O meteco que descrito de nome Cfalo, um comerciante de escudos num espao de
culto estrangeiro a uma deusa Trcia chamada Bndis que se relaciona deusa grega rtemis.
Scrates participa desse espao e tem uma postura de receptividade para com os estrangeiros,
ainda que eles sejam agressivos e persuasivos de forma indevida para com Scrates.
Para que o meteco possa exercer algum poder dentro das estruturas da polis, o dinheiro
que o comrcio promove fomenta a criao de uma cultura sofstica, relacionando assim como
no dilogo do Livro I do dilogo A Repblica os sofistas aos comerciantes e aos ricos.
Meteco tambm tem uma ligao lingustica com um conceito metafsico de Plato herdado
do pitagorismo: o conceito de participao (methxis), a participao a instncia receptiva
da qual todos partilhamos.
Um tratado especfico sobre esse conceito de participao trabalho que vai muito
alm da proposta que desenvolvemos, mas fundamental entender que ela faz parte de pensar
o estranhamento. A Filosofia sempre de um estrangeiro das ideias buscando participar do
sistema compreendendo seus problemas no limite de sua percepo e atuao, mas aquilo
que temos como o melhor caminho para nos desenvolvermos: atuarmos a partir das coisas que
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realizamos melhor e com bons propsitos, bem como nos agruparmos com aqueles que
promovem as coisas que valorizamos.
Sofista outro termo que normalmente ligado a um entendimento daquilo que
provem de outra cidade-estado da Grcia, dado que os sofistas em sua maioria no se
estabeleciam num lugar e viviam ensinando disciplinas de retrica por onde fossem. Este
comportamento tido como uma postura estrangeira, sobretudo em Atenas. Se cada cidade-
estado possua seus estatutos prprios e era governada de forma prpria, as cidades possuam
tambm sotaques prprios da lngua helnica e desdobramentos prprios de cultos e estruturas
de pensamento que no davam espao para o dilogo com posturas no pragmticas.
Numa viso lanada principalmente desde Kerferd22 a sofstica foi revista enquanto
uma unidade que discutia a relatividade dos discursos, mas foi lanada como possibilidade
argumentativa por Plato para diferenciar o discurso desses pensadores sobre o logos. Muitas
crticas nos foram legadas por Plato ao modelo da educao sofstica:
Ora, h quem diga que no era este o projeto da sofstica e defato no podemos reduzir a contribuio dos sofistas ao mau uso quefizeram dos seus pensamentos. Entretanto tal perigo sempre existiu.Para os sofistas gregos na Antiguidade Clssica, a produo dosdiscursos, o uso e o domnio da tchne discursiva eram criativos,agradveis, pois, segundo eles mesmos, produziam subjetividadesfelizes e bem logradas. A subverso da sofstica pelo uso do poderpoltico e a subjetividade produzida por esse poder sedimentaram adesvalorizao da inteligncia, intimidaram a criao e produziram,por meio da educao sistemtica e teleolgica, o til ignbil coletivoe o domnio poltico da ignorncia. O maior temor de Plato realiza-sesculo aps sculo, em ordem crescente. A espcie humana vive esonha com bens teis, inerentes caverna.23
A crtica ao utilitarismo do emprego dos conhecimentos da sofstica algo que
percebemos de modo premente quando a proposta dos sofistas comparada aos modelos de
funes manuais, as crticas da sofstica so expostas para proveito de lucros, durante o
22 KERFERD, G. B. O Movimento Sofista. Trad. Margarida Oliva. So Paulo: Edies Loyola, 2003.23 SILVA, Markus Figueira da. Seduo e Persuso: os deliciosos perigos da sofstica. Cadernos Cedes: AFilosofia e seu ensino, v. 24, n.64, dez. 2004. P. 07.
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primeiro grande exerccio de divises no texto O Sofista. O processo nocivo em que os
Sofistas participaram em Atenas est ligado perda da identidade local em detrimento de uma
identidade forjada pela ao educativa para persuaso poltica. O esfacelamento gradual de
Atenas possibilitou um crescimento da interferncia estrangeira destruindo as definies a
partir de teorias relativistas que legitimavam a fora da imposio retrica.
No se pode reduzir a experincia da sofstica como parte negativa, ao formular
tcnicas de uso da lngua e aproveitamento dos recursos para obteno de sucesso poltico e
econmico. As inovaes foram agradveis e produziram modos de viver e agir bem aceitos,
que conduziram o modelo poltico democrtico de modo bastante ativo entre os discpulos dos
sofistas. As quebras sucessivas da economia ateniense, em conflito com os espartanos e na
manuteno do sistema democrtico frente aos monrquicos como o dos Persas, favoreceram
uma situao de crise na qual as pessoas passaram a atribuir culpa aos estrangeiros ou ideias
que quebravam com os modelos anteriores da religiosidade e manuteno das tradies na
cidade.
Para Moses Finley, Scrates sofre de uma pena que era tambm determinada para os
sofistas que exerciam funes de perverso da juventude em seus hbitos citadinos. As
massas no percebiam concretamente a diferena entre Scrates e os sofistas ou outros sbios
que pregavam seus preceitos em Atenas24. A massa no sabia diferenciar adequadamente
pessoas como Scrates de sofistas, que pervertiam o entendimento das instituies polticas
atravs do incentivo de educao que favorecesse estrangeiros descomprometidos com as
tradies da plis.
Sofista um termo que nasce na confluncia de sbios, mas com Plato que o termo
toma o sentido que temos hoje: especificar os que trabalham com teorias de cunho relativista
da linguagem, ou mais focados na retrica como sada para compreender as coisas de forma a
gerar aes polticas voltadas para a realidade pragmtica da obteno de poder. Cassin
apresenta esses argumentos mostrando como Plato tambm forjou essa apresentao para
legar aos sofistas a um papel diferente e secundrio na Histria do pensamento25.
Pelos termos apresentados at aqui o estrangeiro no era bem visto, mas Plato e a
cultura grega apresentam elementos de receptividade para com os estranhos no sentido da
24 FINLEY, Moses I. Aspectos da Antiguidade: descobertas e controvrsias. Lisboa: Edies 70, 1990.p. 70.25CASSIN, Brbara. O efeito sofstico: sofstica, filosofia, retrica, literatura. Trad. Ana Lcia de Oliveira,Maria Cristina Franco Ferraz e Paulo Pinhairo. So Paulo: Ed.34, 2005.
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hospitalidade. As aparies de sofistas nos dilogos platnicos esto aladas na percepo da
hospitalidade grega. Os estrangeiros eram recebidos como hspedes de grandes financiadores
que fomentavam a participao pblica desses pensadores retricos. Da pensar a ligao dos
sofistas como xnos e tentar entender como Plato se apropria do xnos como estratgia de
reviso e de avano dialtico de suas propostas.
Mesmo Kerferd demonstra que, ainda que se tenha uma crtica da sofstica iniciada por
Plato, este no afirma que a sofstica deve ser um caminho expurgado. Se existe um processo
de purificao na construo do conhecimento platnico, esse caminho passa em vrios
momentos da filosofia platnica. Tomando o modo de ver os sofistas analisamos as etapas do
seguinte modo: ao se falar com sofistas na fase socrtica com as primeiras divergncias
destacadamente contra Grgias, ao se constatar que as teorias sofsticas so inadequadas para
plis no dilogo A Repblica no conflito contra Trasmaco e a fase de maturidade com a
constante reviso baseada em Protgoras nos dilogos O Teeteto e O Sofista.
Os espartanos, por exemplo, venceram os atenienses no intervalo posterior ao que
dramatizado no dilogo A Repblica e instituiu um regime conhecido como o dos Trinta
Tiranos em Atenas, regime que espoliou, expulsou ou matou muitos estrangeiros que residiam
na cidade. A maior dificuldade a de definir qual o lugar social dos estrangeiros quando a
cidade est em decadncia, pois quando estrangeiros dominam a cidade ela exposta a
perversos regimes de seus conquistadores, como foi o caso da Atenas em questo.
Quando, nas lnguas modernas ocidentais, se pretende referir ao receio de
determinados pases para com membros estrangeiros exercendo funes em seus territrios,
usa-se a acusao de xenofobia. Teriam os gregos o receio de receber hspedes ou visitantes
que temos configurado nas sociedades contemporneas?
Xnos est ligado cultura grega da hospitalidade, como descreve Jacques Derrida26
num compromisso de recepo dos homens daqueles que chegam e se comprometem a
identificar-se, que no so hostis ao modelo heleno e que solicitam auxlio por no terem
condies de subsistncia em terreno novo ou em ambiente de guerra.
As tradues do dialogo O Sofista e do dilogo O Poltico no Brasil costumam se
apoiar na traduo francesa que entende o termo como trangere, mas a traduo de Nicholas
26 DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade . Trad.Antonio Romane. So Paulo: Escuta, 2003.
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P. White elucida a ideia de hospitalidade ao traduzir o termo por visitor. A noo de visitante
ou de hspede a mais adequada para expor um indivduo que comparece por convite e por
quem os colegas de Scrates vo demonstrar admirao por seu potencial de buscar a
Filosofia.
Continuando a analisar as formas de traduo, destacamos tambm a verso alem
com o uso Frendem27, termo que em alemo est ligado a uma noo de estrangeiro ao invs
de hspede, mas que em alemo est amparada por estar ligada ao radical de amizade como
sendo ligado s terminologias de turismo. Em espanhol aparece extranjero, novamente
ratificando nosso vcio de traduo por estrangeiro ao invs de hspede ou visitante.
Para Jean Pierre Vernant, os gregos possuam um culto especfico para o deus dos
estrangeiros, que deveriam receber auxlio dos gregos, sob pena de punio do prprio Zeus
Xnios se no respeitassem as prticas de hospitalidade28. No caso de Atenas isso ainda era
mais forte pela tradio de um Zeus Polieus e o texto deixa clara a referncia instncia
divina que guarda os estrangeiros.
Diante do imperativo de receber esses sofistas e de acolher suas concepes, o que
aconteceria se um estrangeiro viesse de uma regio com cultura distinta? Regio dos que so
herdeiros, no to bem vistos por Plato, das teorias de Herclito e ao contrrio o estrangeiro
fosse algum da escola de Elia, ou um dissidente da escola de Elia?
A capacidade de recepcionar um hspede, com opinies dspares das costumeiramente
apresentadas em Atenas, aparece nos dilogos O Sofista e O Poltico com um personagem
que qualificado como um filsofo sem nome mas com destaque para a provenincia; mas
que vai ter que reconhecer que suas origens epistmicas no velho Parmnides precisam ser
revistas. A construo dramtica permite uma situao inusitada e rica em diferenas que no
eram costumeiramente contempladas nos dilogos anteriores pela prpria esfera de
pertencimento dos personagens no ter um estrangeiro, como o eleata criado por Plato. Sobre
os personagens:
27 Plato. Der Sophist: Griechisch-deutsch. Trad. Felix Meiner Verlag Philosophische Bibliothek Band: 1985.
28 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religio na Grcia antiga. Trad. Constana Marcondes Csar. Campinas, SP: Papirus, 1992. p. 41.
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Os personagens criados por Plato, mais do que simplesrecursos de expresso, constituem um esforo para tornar explcitas einteligveis atitudes ticas e posies tericas fundamentaisdetectveis entre os cidados, artesos, homens polticos, poetas epensadores de sua poca, de modo que a inveno de personagensconstitui uma dinmica na qual retrica e filosofia so inseparveis. Amesma estratgia retrica, que consiste em fazer falar os outros,estrutura os dilogos, com algumas variaes: encontramospersonagens nomeados e annimos, aluses mais ou menos diretas aindivduos histricos, personagens puramente fictcios, simplesremisses a algum que no est presente, e ainda personagens-tipo oumesmo argumentos personificados. Ao fazer falar estes outros,Plato os assimila para produzi-los ou reproduzi-los enquantopersonagens que dialogam entre si. O que nico e fundamental queele s fala e pensa dessa maneira. Nunca encontramos um discurso emprimeira pessoa do prprio autor dos dilogos. Plato nos aparece,assim, como um ventrloquo, mgico dos discursos, imitador dehomens e de caracteres sempre presente, sempre ausente; semprepressuposto e visado, sempre evadindo-se. Para sabermos o que dizPlato, preciso interpretar, preciso contrapor e avaliar as diferenasque significam as personagens e, neste confronto, tentar construir suaidentidade. De modo que s a encontramos atravs de um processocomplexo de progressiva construo do autor. O autor, sempre virtual, necessariamente o resultado de uma composio operada pelo leitor.Proponho caracterizar esse recurso retrico-filosfico fundamental,utilizado por Plato, que consiste em falar e pensar atravs depersonagens, como uma retrica da diferena, um processo depermanente alterizao de si ao pensar e escrever.29
Na condio de personagem, o que se busca entender o hspede seguindo os moldes
expressos acima: mais do que um recurso de expresso, um esforo de aproximar do
entendimento posturas ticas e posies tericas de diferentes camadas atravs de um
personagem annimo. Personagem este que faz referncia a indivduos histricos sendo ao
mesmo tempo uma remisso a algum e uma fico, bem como um argumento personificado,
a saber: das diferenas que dialogam entre si nos trs personagens centrais para o processo de
inovao tecnolgica da Grcia: o sofista, o poltico e o filsofo. Compreendemos o
personagem em questo na medida em que contrapomos essa figura a Scrates para um
entendimento mais apurado dos contrastes da retrica da diferena, na medida em que
percebemos uma postura platnica que caracterizada como tpica dos dilogos de
maturidade de abandonar as posturas de Scrates na composio dramtica da maioria de seus
dilogos dessa etapa da produo platnica.29 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. p.40
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Devemos destacar ainda:
O estilo literrio de Plato possui uma caracterstica quemuitas vezes deixa o leitor atnito: o filsofo trata em uma mesmaobra de vrios assuntos paralelamente, desenvolvendo e resolvendo-os, quando resolve, todos ao mesmo tempo, ora privilegiando umproblema ora outro, de sorte que bem difcil saber qual o maisimportante. O Sofista seguramente um exemplo mpar desse estilo.Percorrendo os meandros de sua argumentao, o leitor poder terdificuldade em determinar o tema ou problema principal da discusso,aqueles secundrios e a ordem hierrquica que possam configurar30.
O hspede estabelece uma viso com distncia conceitual e com experincia em
outras formas de governo que os atenienses ainda no tinham tanto contato quanto o
personagem eleata. Se Diotima no dilogo O Banquete contempla que o crescimento
intelectual daquilo que vem a ser o belo passa pelas coisas sensveis que se pode chegar
prximo, avana pela vastido das formas que participam do belo no alm-mar at se chegar a
experincia de entendimento daquilo que vem a ser o belo em si, pela experincia do dilogo
com a diversidade31; Diotima tambm uma hspede e segundo a fala de Scrates foi sua
mestra nas artes de ros:
E para vocs eu deixarei agora; com o discurso que sobre o Amor euouvi um dia, de uma mulher de Mantinia, Diotima, que nesse assuntoe em muitos outros era entendida32.
Deixando claras suas tcnicas de dilogo como: Xene anakrinousa dieei (hspede
passou ao inqurito)33, a hspede mostrou para Scrates os sentidos de pensar as coisas de
ros numa personagem que aparece como uma remisso a um dilogo anterior narrado dentro
30 SILVA, Jos Loureno da. Sobre o mtodo dialtico da diviso por espcies no Sofista. Dissertao de mestrado. Campinas, 2000. p. 07.
31 Possibilidade apresentada detalhadamente como uma ascese na compreenso do belo que figura no passo 210 a 210 e do Banquete.32 Banquete 201 d- , ' ,
33 Banquete 201 e.
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de uma dilogo. A maior parte da discusso no Banquete acontece quando dois personagens
se recordam de uma ocasio em que Scrates participou de um banquete e Scrates por sua
vez se lembra das colocaes que Diotima fez outrora.
O hspede figura como uma possibilidade de apresentar noes das teorias
platnicas atravs do dilogo com as diferenas, se analisarmos que o termo aparece entre
personagens com destaque para pontos bastante avanados no entendimento de alguns
dilogos, a saber; O Sofista, O Poltico, O Banquete e As Leis para ficarmos entre os mais
decisivos de nossas citaes. Essas diferenas que buscam uma unidade nas questes
filosficas: o saber sobre o ser e o no ser, as formas de governo em sua reta ordenao aos
governados, a reta noo do amor e a constituio mais adequada para a cidade no sentido de
relacionarem aos demais os conhecimentos que podem ser estranhos aos citadinos de Atenas.
Interpretamos como esses usos demonstram uma participao das diferenas no uno, e
que so propostas possveis atravs da hospitalidade ao modo de ver dos estranhos que
tenham natureza filosfica. Se evidenciarmos que a principal apario de Parmnides na
conjuntura dos dilogos platnicos exatamente para discutir o Uno que as possibilidades
que Plato lana so possveis pelo contraste entre o Uno e o Mltiplo: pensar o papel do
estrangeiro mais um recurso para pensar o fazer Filosofia.
Como um tributo da proposta aqui arquitetada, o modelo de pensar Plato no seu
esforo de compreender as diferenas enfim uma herana da leitura que realizamos e
adaptamos de Marcelo Pimenta Marques ao descrever o processo daquilo que Plato teorizou
no dilogo Sofista como o dilogo da diferena34. Ele analisa a partir do lxico sobre
diferena no dilogo O Sofista e explicita sua opinio modelando as vises de diferena no
dilogo O Sofista. Dentre essas vises, destaco aqui o primeiro captulo de seu livro Plato,
pensador da Diferena em que as referncias a Homero so retomadas no quesito da xnia
como primeiro ponto das diferenas que o texto vai ressaltar na possibilidade argumentativa
seguinte: entender a proposta do texto como um olhar sobre a diferena nos mais variados
vieses da argumentao sobre o ser.
34 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte:Editora da UFMG, 2006.
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Outra abordagem importante encontra-se na traduo que nos foi apresentada com
antecipao ao prprio livro pelo professor Henrique Graciano Murachco35. Nessa traduo do
dilogo O Sofista para o portugus lanada a ideia de traduzir xnos por hspede e
demonstrou que tratar o personagem de elia como um mero estrangeiro no condiz com o
contexto de um dilogo amigvel e sereno sobre problemas seriamente discutidos por seus
participantes. Esse modo de traduzir conflita com as tradues disponveis que observam
como um estrangeiro, fato que nos inquietou e fez pensar o impacto que essa leitura teve para
analisar os dilogos em que xnos aparece.
H uma outra perspectiva de anlise do dilogo O Sofista que destaca a casca do
dilogo:
Se, para definirmos o escopo ou assunto dominante queunifica as diversas discusses particulares deste dilogo, dssemosouvidos apenas a fortuna crtica, haveramos de admitir serem tantosos objetivos do Sofista quantas so as suas interpretaes. Mesmo atradio aceita desde Th. Gomperz no pde determinar o problemacentral da discusso filosfica, embora pretenda integrar as duaspartes componentes do dilogo pela metfora da casca e do fruto:aquela representando as definies do sofista e este a demonstrao dapossibilidade de erro, fundada, por sua vez, na proposio daexistncia do no-ser. A impresso que nos deixa, que compete acada leitor decidir a questo36.
A conciliao entre a casca e o fruto algo que pretendemos analisar aqui e talvez
uma das formas de anlise em que Heidegger tenha sido um dos primeiros:
Claramente, Heidegger tem tido o imenso mrito de pensar OSofista como um todo, de sublinhar a dimenso dialtica dasdefinies e preliminares do Sofista e de estabelecer que esta dialticainterroga na direo da coisa ela mesma, A saber o ser, que oprincpio de enlace dos quatro gneros determinantes do mundo comoda linguagem, o movimento e o repouso, o mesmo e o outro37.
35 PLATO. O Sofista. Trad. Juvino Maia e Henrique Murachco. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2012.36 SILVA, Jos Loureno Pereira da. Sobre o Mtodo dialtico da diviso por espcies no Sofista.Unicamp: Dissertao de mestrado, 2000.
37 MATTI, Jean Franois. La subversion sophistique chez Platon. In: Noesis. N. 2. 1998. p. 83. En clair,Heidegger a eu l'immense mrite de penser le Sophiste comme un tout, de souligner la dimension dialectique des
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Como sublinha Matti, devemos a Heidegger, em seu curso de inverno, o pensamento
do dilogo O Sofista como um todo e numa perspectiva que vai redefinir o fruto do dilogo,
mas talvez a proposio que aqui lanamos sirva para repensar a ideia de casca do dilogo:
reapresentando o problema inicial e repensando como enfrent-lo. Pensando nesse sentido
que sublinhamos o trabalho de Noburo Notomi38 que em seu resumo afirma que os filsofos
tm estado tmidos para discutir o tema central do dilogo que para ele o confronto entre o
Filsofo e o Sofista.
Pretendemos esboar nossa busca com a originalidade de apenas tratar da ideia de
alteridade ou de diferena analisando o personagem central. Assim descreveremos o maior
recurso para Plato esboar essa diferena e como isso se liga proposta que une
dramaticamente os dilogos de velhice que participam dos modelos lanados pelo eleata.
Como uma parte que revela elementos do todo, compreender a transformao do sentido de
estrangeiro de um conceito de estranheza para um personagem hospedado, essa mudana
estilstica revela mudanas de proposta e abertura para a diferena e principalmente na busca
dos conceitos: Sofista, Poltico e Filsofo.
Interessante perceber que o fato de o estrangeiro no ter nome e seguir num dilogo
srio com as teorias do no-ser, que foram discutidas pelos sofistas e at apresentadas no
dilogo anterior na discusso sobre as possibilidades do saber O Teeteto, d margem para
compreender heranas para com vrias figuras filosficas nas compreenses lanadas no
dilogo O Sofista. As heranas de outros pensadores so descritas nos seguintes pensadores:
Protgoras, Antstenes, Parmnides, Herclito, Grgias e outros sofistas como cita Eliane
Christina ao comentar a importncia do argumento desses vrios filsofos para se
compreender a dinmica do dilogo O Sofista39.
A multiplicidade de abordagens sofsticas que aparecem no tocante interferncia das
teorias sobre o ser no dilogo O Sofista esto calcadas na possibilidade platnica de um
dfinitions pralables du sophiste, et d'tablir que cette dialectique interroge en direction de la chose elle-mme , savoir l'tre, qui est le principe d'enlacement des quatre genres dterminants du monde comme dulangage, le Mouvement et le Repos, le Mme et l'Autre.
38 NOTOMI, Noburo. The Unity of Platos Sophist. Between the sophiste and the philosopher. Cambridge: CUP, 1999.
39 SOUZA, Eliane Christina. Discurso e Ontologia no Sofista. Iju: Ed. Uniju, 2009
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personagem outro ou diferente, que demostre toda a multiplicidade dos argumentos e procure
se posicionar de modo intermedirio entre a sofstica e os parmendeos. A concluso de Eliane
Christina caminha para pensar num eleata que vislumbra o discurso sofstico e a ontologia
parmendea ao mesmo tempo conciliados atravs do modelo de Antstenes. Discordamos
nesse sentido da valorizao de Antstenes por entendermos, assim como Cornford40 , que h
uma continuidade do modelo epistmico do dilogo O Teeteto para o dilogo O Sofista,
principalmente revisitado pela anlise das teorias de Protgoras. Defendemos que a partir das
contradies e retomadas crticas do modelo de Protgoras e de Grgias ao estudar o logos
que devem ser as grandes bases do modelo platnico de pensar a contradio dos termos,
apresentando as incoerncias e contribuies que os pensadores do no-ser nos legam. No
sentido de representao dos personagens em suas caractersticas para a composio
dramtica, como j foi exposto, pensamos o lugar diferenciado dentre os sofistas no
posicionamento platnico tambm pela representao constante de Protgoras, seja como
personagem em algum dilogo ou pela releitura e constate citao que feita sobre seu
pensamento, notadamente nos dilogos: Protgoras, O Teeteto, e O Sofista.
O personagem pode ser pensado como um recurso do fazer filosfico platnico na
medida em que pode ser caracterizado como diferena a ser seguida no modelo do dilogo
como esboa Mario Vegeti:
Os dilogos no so captulos de um tratado, e o que neles exposto no um sistema fechado de doutrinas filosficas. Osdilogos representam, ao contrrio, a encenao da pesquisa filosfica,de seus problemas, de seus argumentos; o autor est presente em todosos seus personagens, nas teses filosficas e nas formas de vida queeles representam [...]41
Pela perspectiva de Mario Vegeti, pretende-se pensar a hiptese de enunciar
significados com o personagem enigmtico mostrando: como ele se insere na pesquisa
filosfica platnica, como ele trata os problemas que vai discutir, como o autor discute os
temas antes tratados e os renova atravs do prisma de um novo personagem e de como
40 CORNFORD, Francis MacDonald. Plato's Theory Of Knowledge. Paris: Routledge & Kegan Paul,1957.41 VEGETI, Mario apud PEREIRA FILHO, Gerson. Uma Filosofia da Histria em Plato: O percurso histricoda cidade platnica de As Leis. So Paulo: Paulus, 2009. P. 27.
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importante contemplar questes (a prpria atitude de teorizar) atravs de vieses e lugares
diferentes para se aproximar de entendimentos mais puros. A ideia de Mario Vegeti apresenta
uma viso de que os significados que Plato pretendia imprimir vo alm dos personagens ou
apenas da opinio vencedora, contemplam a diversidade da construo dialgica de sua obra.
O formato do dilogo possibilita pensar numa construo filosfica em que todos os
elementos conduzem a modelos de entendimento que se reinventam pelas prprias
caractersticas do inqurito incessante que a reflexo filosfica precisa.
Outro ponto que acordamos com Mario Vegeti a importncia do dilogo ao no
expor sistemas fechados de doutrinas filosficas ou como captulos de tratados, a escrita
filosfica em Plato possui uma dinmica constante, no sentido de se permitir percorrer
caminhos distintos dos propostos inicialmente e quebrar os limites de uma exposio para
reinventar pesquisas e modos de vislumbrar as questes que aparecem. Por essa perspectiva,
cada apario dos conceitos possui sua importncia na compreenso da totalidade das
abordagens e deve se compreender os contrastes como pontos importantes ainda no tratados
das questes filosficas.
Analisando a partir do recurso: ao entender o personagem e aplicao do termo
hspede, buscamos elucidar como a recepo das diferenas pode ser interpretada no contexto
do que Plato produziu e de algum modo com essa noo que se altera durante a obra.
Pensando em termos da cronologia dos dilogos platnicos, uma dos marcos mais claros na
ordem de exposio dos dilogos est exatamente em pensar o Plato da velhice como
representado no dilogo O Sofista. O marco j citado fica claro pelo fato do comeo do
dilogo tratar de um engajamento anterior discusso sobre o ser que de algum modo
antecipado com a questo da busca pelo conhecimento no dilogo O Teeteto; por sua vez O
Sofista seria sucedido pelo dilogo O Poltico que continuaria a problemtica apresentada em
O Sofista e ficaria a lacuna de um dilogo perdido que deveria ser chamado O Filsofo, uma
tentativa de resposta ao problema investigativo lanado desde o dilogo O Sofista que
continuando no dilogo O Poltico.
Refletindo sobre o modo como os dilogos se estabelecem, Corlett analisa um ponto
comum entre os pensadores que ele designa como da vertente que busca uma teoria platnica
e os pensadores que buscam uma teoria socrtica:
interessante notar que h um campo comum entre intrpretesteorticos e socrticos de Plato. Alguns dos pontos gerais so o
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mtuo acordo deles nos pontos que seguem: (1) Plato escrevedilogos, no tratados, (2) Existem certos pontos de vista propostospor certos personagens dos dilogos no corpus platnico; (3) Platoescreve dilogos por um propsito, ou um conjunto de propsitos, umo qual guiar os leitores para as filosficas e objetivas verdades; (4)Plato de fato tem pontos de vista, guardados no entanto portentativas; e (5) existem melhores e piores caminhos para ler osdilogos platnicos .42
Segundo o contexto comum dos interpretes que consta no texto que acabamos de citar:
a escrita platnica no uma escrita de tratados, portanto no so abordagens sistemticas
sobre um nico tema, mas textos que conduzem a entendimentos da pesquisa filosfica;
determinados personagens so propositivos de determinadas formas de avaliar problemas ou
tem posies prprias; a escrita possui um propsito ou vrios e dentre esses propsitos o de
guiar os leitores para verdades filosficas objetivas; Plato possui vises filosficas
resguardadas pelas tentativas de seus constantes questionamentos e existem melhores e piores
maneiras de ler os dilogos platnicos. Esses entendimentos nos conduzem a pensar quais
vises os personagens, o enredo e as principais questes dos dilogos de anlise podem
revelar.
No se pretende negar as vrias possibilidades argumentativas que a escrita ou a
ordenao distinta da proposta desses dilogos ainda guarda; suscitando muitos problemas de
interpretao e ganhando novas teorias segundo os usos de termos, estilos, ordem sequencial
dos fatos e concatenaes possveis do conjunto terico platnico. O ganho dessas
interpretaes auxilia a ver critrios do texto que no se evidenciam de outros modos, mas a
base conceitual do dilogo O Sofista seguido pelo dilogo O Poltico um dos principais
marcos dentro da cronologia platnica nas amostragens de Leonard Brandwood43, sendo
textos reconhecidos como de sequncia estilstica e dramtica.
Se no dilogo As Leis a possibilidade de pensar um conjunto de normas sociais surge
dos dilogos entre estrangeiros ou hspedes no espao estrangeiro nas falas do ateniense, do42 CORLETT, J. Angelo. Interpreting Platos dialogues. Great Britain: Classical Quarterly, 1997. Vol. 47, No.2. p.425. It is of interest to note that there is a common ground amongst theoretical and Socratical interpretersof Plato. Some of the general points of mutual agreement between them seem to be following: (1) Plato writesdialogues, not treatises, (2) There are certain views propounded by certain dialogical characters in the Platoniccorpus; (3) Plato writes dialogues for a purpose, or a set of purposes, one of which is to guide readers to aphilosophical and objective truths; (4) Plato indeed has philosophical views, held however by tentatively; and(5) there are better and worse ways to read Platos dialogues
43 BRANDWOOD, Leonard. Stylometry and chronology. In: KRAUT, Richard (Ed.). The CambridgeCompanion to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. P. 90-120.
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lacedemnio e de Clnias. A possibilidade de contemplar a comunidade dos costumes surge
ao questionar a provenincia dos costumes percebendo uma identidade que os cerca nas
manifestaes pertinentes s divindades e a educao, portanto maiores do que os mortais em
suas identidades citadinas:
Ateniense: Prefervel a divindade a este homem, hspede, parareceber o uso de tal disposio dos costumes.Clnias: Divindade, hspede, Divindade, de onde vem a justiaseno de Zeus? Talvez dos lacedemnios, os quais brilham comesse pressgio luminoso de Apolo. 44
Na Carta VII o recurso empregado para compreender o processo de conhecimento
no mais se ancora no uso de um personagem estrangeiro ou na produo de dilogo, mas no
se fazer estrangeiro e entrar em conflito com as possibilidades que habitar Siracusa podem
fornecer: a experincia de orientar as pessoas de modo justo construindo uma cidade com a
ordem filosfica. O estrangeiro uma etapa na compreenso do modelo platnico assim como
poderia ser o caso de pensar a posio de Scrates. O posicionamento que est sendo deixado
para estrangeiros o de tornar os leitores estranhos aos seus costumes em suas prprias terras,
para analisarem atravs da Filosofia a possibilidade de contemplar modelos diferentes.
Em Epinomis, um eplogo para o dilogo As Leis de autoria bastante incerta, existe
um entendimento que os grandes temas daquilo que deveria ser o fazer filosfico reaparecem
com as trs provenincias descritas no dilogo As Leis : O ateniense, Megilo o lacedemnio e
Clnias o cretense. Nesse caso os trs personagens se tratam como hspedes-estrangeiros e
contrastam os seus modelos de sociedade para pensar a proposta final de Plato.
Tornar o estrangeiro uma problemtica envolve pensar uma teoria da recepo e do
pensamento das alteridades em Plato; um prottipo de modelo baseado no lugar de onde se
fala e a quem e o que a voz que est falando pretende representar. Para analisar a
concatenao da problemtica que se pretende investigar do hspede (o personagem) como
elo entre os dilogos O Sofista e O Poltico e da busca por responder a uma problemtica
44 As Leis 624 a {.} , , {.} , , , , ,
, .
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comum dividida principalmente em O Sofista na forma de ver a questo do no ser e em O
Poltico nas formas de ver os modos de governo, se faz necessrio proceder em anlises da
sequencia dramtica dos textos centrais para fomentar o entendimento possvel da
problemtica que at aqui foi esboada.
1.2 O estrangeiro como problema na obra de Plato, especialmente nos dilogos O
Sofista e O Poltico.
O objetivo deste captulo expor em que sentido a compreenso dos usos de
estrangeiro podem nos auxiliar a pensar a diferena em Plato. Como esse recurso se
reinventa e se mostra profcuo a produo dramtica e filosfica. Analisando a posio de
Joly, Pimenta Marques comenta:
A novidade no pensamento do outro em Plato consistiria narequalificao lgica e ontolgica de um hteron que aparece comouma categoria plurifuncional, um no-ser que pode acender, atravsda congruncia total com o outro, dignidade de uma categoria deser45.
A chave interpretativa do personagem ganha maior conciso ao pensarmos o papel que
o personagem xnos ocupa dentro da estrutura dos dilogos pensada por Benoit:
Trs herdeiros do logos socrtico o substituiro aqui, e em certosentido, para sempre: o jovem Teeteto, semelhante a elefisicamente; o jovem Scrates, semelhante pelo nome; e oEstrangeiro de Elia, semelhante pelo mesmo pai conceitual,Parmnides, o filsofo do Ser46.
45 MARQUES, Marcelo Pimenta. Plato, pensador da diferena: Uma leitura do sofista. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. p. 31.
46 BENOIT, Hector A . Scrates: o nascimento da razo negativa. So Paulo: Moderna, 1996. p.87.
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Essa chave interpretativa, tambm presente na Tetralogia dramtica do pensar, em
especial em A Odissia dramtica de Plato47 revela um modo dramtico do pensamento
platnico que discutido, mas que na citao acima encontra um posicionamento definido.
Scrates substitudo por outros trs que participam com ele das diferentes formas de
pertencimento da identidade: a forma, o nome e o pertencimento inteligvel. Nesse argumento,
at esses personagens formariam uma tetralogia do saber implcita na proposta.
Analisando a relao do modo como os personagens atuam nos