Universidade Federal do Rio de Janeiro
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
2016
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Clássicas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em
Letras Clássicas.
Orientador: Prof. Dr Anderson de Araújo Martins
Esteves
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Clássicas.
Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 2016
_____________________________________________________________________
Orientador, Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves - UFRJ
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Amós Coelho da Silva – UERJ
_____________________________________________________________________
Profª. Drª Arlete José Mota – UFRJ
_____________________________________________________________________
Profª. Drª. Fernanda Messeder de Moura – UFRJ, Suplente
_____________________________________________________________________
Profª. Drª Regina Maria da Cunha Bustamante - UFRJ, Suplente
Agradeço
A Deus;
Aos meus pais Maria e Oscar, minha irmã Barbara, minha tia Maria do Socorro e demais familiares pelo constante apoio;
Aos amigos que fiz na faculdade, que são também familiares;
A todos os professores que me ajudaram a chegar até aqui, desde a infância;
A Anderson Martins, que me orientou na Academia e na vida;
À UFRJ por tudo o que me proporcionou;
Aos professores da banca, pela paciência;
Àqueles que minha memória falha em reconhecer, mas não meu coração.
Pereira, Braulio Costa
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita
Caesarum, de Suetônio / Braulio Costa Pereira. - Rio de
Janeiro: UFRJ, 2016.
vii, 114 f. ; 30 cm.
Orientador: Anderson de Araújo Martins Esteves.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas, 2016
Referências bibliográficas: f. 122-124.
1. Suetônio. De Vita Caesarum Liber IIII – Tradução para
o Português. I. Esteves, Anderson de Araújo Martins. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.
III. Título.
RESUMO
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Clássicas.
O presente trabalho apresenta uma proposta de tradução e comentários da Vida de
Calígula, biografia que faz parte do conjunto de doze biografias escritas por Suetônio
no século II d.C., conhecidas como De Vita Caesarum. Além da tradução e dos
comentários, são apresentadas reflexões a respeito do contexto histórico e literário de
produção da biografia e a respeito da biografia enquanto gênero literário na Roma
Antiga.
Palavras Chave: De Vita Caesarum, Suetônio, Calígula, Biografia, Tradução
ABSTRACT
A commented translation of the Life of Caligula from Suetonius’ De Vita Caesarum
Braulio Costa Pereira
Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Clássicas.
ABSTRACT
This work presents a translation and comments proposition of the Life of Caligula, part
of the twelve biographies written by Suetonius on the II century A.D., known as De
Vita Caesarum. Other than the translation and the comments, reflections on the
historical and literary context of this biography and on the biography as a genre in
Ancient Rome are presented.
Keywords: De Vita Caesarum, Suetonius, Caligula, Biography, Translation
8
SUMÁRIO
1 Introdução...................................................................................................................................9
2 O contexto histórico da obra de Suetônio..................................................................................12
2.1 O Império Romano e o sistema do Principado........................................................................13
2.2 Suetônio..................................................................................................................................20
3 A biografia enquanto gênero literário.......................................................................................25
3.1 Gêneros textuais na Antiguidade Clássica.............................................................................25
3.2 Historiografia e biografia em Suetônio: fronteiras entre gêneros..........................................32
4 Texto e tradução........................................................................................................................45
5 Conclusão................................................................................................................................118
6 Referências Bibliográficas.......................................................................................................122
9
1 Introdução
No presente trabalho, nos propusemos a fazer uma tradução com comentários da
biografia de Calígula, parte integrante do conjunto de doze biografias de líderes romanos
escritas por Suetônio no século II d.C., e conhecidas em português como “Vidas dos Doze
Césares” – De Vita Caesarum, no original.
A relevância desse trabalho reside nas questões que são levantadas através das
reflexões feitas sobre o estilo do texto, pouco dado a malabarismos literários. Assim, ao
longo da tradução da vida de Calígula, procurou-se sempre manter o estilo mais próximo
daquilo que Suetônio tentou utilizar em latim – uma linguagem simples, seca, sem
rebuscamentos, mas nem por isso chã ou desprovida de ornamento. A tradução tentou
simular a maneira como Suetônio parece tentar apagar as marcas de sua própria escrita,
deixando que os fatos se apresentem, sumarizando o ocorrido quase sem fazer uso das
estruturas típicas de um texto narrativo. As rubricas de que o autor faz uso, ao colocar um
substantivo relevante logo no início das seções de anedotas que tratam de determinado
assunto, também foram respeitadas, mas é preciso ter em mente que a liberdade de
posicionamento das palavras em língua portuguesa não é tão grande quanto a que existe
em língua latina, o que muitas vezes exigiu algumas adaptações. Em nosso trabalho
também foram consultadas outras traduções, não somente em língua portuguesa, como
também em francês e inglês. Lembramos que a última tradução brasileira do De Vita
Caesarum foi a de Sady-Garibaldi, datada de 1937, que apresentou várias reedições.
Os comentários acrescentados à tradução possuem diversas motivações. Em
primeiro lugar, procurou-se fornecer explicações ligadas ao uso de vocábulos incomuns
na língua portuguesa, geralmente relacionados a realidades sociais e históricas que já não
fazem parte do cotidiano das pessoas no século XXI, e que podem acabar trazendo ao
texto um caráter enigmático que Suetônio não pretendia lhe conferir. Assim, forneceram-
se explicações sobre estruturas governamentais, eventos sociais, objetos ligados ao dia a
dia dos romanos do período imperial, termos ligados a práticas religiosas que já não são
facilmente reconhecidos pelos leigos, e principalmente sobre o vocabulário técnico de
que Suetônio parece muitas vezes abusar ao longo do texto.
10
Além disso, a própria natureza erudita do autor fez com que ele buscasse não se
tornar repetitivo. Assim, como a vida de Calígula é o quarto texto de uma série de doze,
algumas referências que foram devidamente explicadas em biografias anteriores como a
de Tibério acabaram sendo suprimidas pelo autor na biografia de Calígula. Uma vez que
esse trabalho não se propõe a apresentar a tradução das doze biografias, alguns
esclarecimentos se fazem necessários.
Por fim, Suetônio também aparenta ter em mente o tipo de leitor que vai se
interessar por sua obra: sendo ele um membro da ordem equestre, um dos integrantes do
círculo literário de Plínio, que incluiu os principais autores de renome da época como o
historiador Tácito, e, à época da publicação do De Vita Caesarum, já um autor
devidamente estabelecido e experimentado, ele sabia que seu público leitor seria
constituído por membros da ordem senatorial e da ordem equestre – a aristocracia romana.
Esses leitores já teriam tido acesso a um nível de educação e envolvimento nas esferas
políticas e sociais de Roma que dispensaria a explicação, muitas vezes até mesmo a
menção a fatos históricos de importância. Mas o que antes era lugar-comum na Roma
Antiga, acaba por se tornar obscuro no século XXI. Esses comentários também tem a
função de preencher as lacunas deixadas por Suetônio de que o leitor não teria como saber
mesmo tendo lido as doze biografias. Suetônio é talvez um dos autores cuja tradução
exige ser comentada, sob a pena de o texto traduzido e desprovido de aparato crítico
fornecer ao leitor a falsa impressão de que a matéria tratada é um assunto para iniciados,
quando na verdade o autor tentou fazer com que seu texto fosse o mais simples possível
a falar daqueles mesmos assuntos, sobretudo se comparado a escritores de outros gêneros
como a historiografia.
A partir da tradução, foi impossível não se questionar a singular natureza das
biografias de Suetônio dentro do contexto histórico e literário em que se inserem. Por
exemplo, o fato de, não muito tempo antes da publicação dos primeiros livros do De Vita
Caesarum, Tácito ter publicado também textos pertencentes ao gênero historiográfico que
tratavam quase exatamente do mesmo período, leva-nos a questionar a relação de
contraste que pode ter sido formada entre os dois textos, e mesmo entre os dois autores,
pela necessidade que Suetônio teve de tornar seu trabalho diferente daquilo que Tácito já
11
havia logrado escrever. Basicamente, a relação que se formou entre o trabalho do
historiógrafo e o trabalho do biógrafo.
Com isso, foi necessário buscar outros exemplos de biografia ao longo do
processo de constituição desse gênero na literatura latina para entender que tipo de
expectativas foram confirmadas ou subvertidas na escrita do De Vita Caesarum e como
essas expectativas dialogam com o cânone literário da antiguidade – uma análise que se
torna ainda mais complexa e interessante pelo fato de o gênero biográfico não ser
reconhecido formalmente como tal por nenhum dos autores da antiguidade clássica, tanto
grega quanto latina, cujos textos se dedicaram a tratar de gêneros literários.
Também o contexto histórico apresenta uma óbvia relevância para a obra de
Suetônio. Tendo ocupado cargos públicos de importância ao longo dos governos de
Trajano e Adriano, e fazendo parte do círculo literário de Plínio, que apresentava fortes
opiniões sobre a maneira adequada de governar o Império, ele não teria como ficar isento
de uma certa carga ideológica que pode transparecer em muitas de suas biografias,
principalmente aquelas que assumem um tom crítico mais acentuado. Muito embora
Suetônio não se subscreva à tradição de escrita biográfica filosófica (baseada nas ideias
dos filósofos peripatéticos), cujas principais aspirações incluíam fazer uma crítica moral
dos biografados, parece-nos que o uso de estruturas anedóticas para a melhor exposição
do caráter dos imperadores derivaria das práticas empregadas por essa mesma tradição.
Assim, o tom superficialmente imparcial de Suetônio não impede que se veja nas
entrelinhas uma opinião geral que o autor apresenta sobre os assuntos tratados. Esperamos
que a biografia de Calígula consiga demonstrar essa hipótese de maneira satisfatória.
O presente trabalho foi resultado de uma pesquisa que na verdade se iniciou antes
mesmo de meu curso de mestrado, uma vez que comecei a me interessar pela biografia
de Calígula ainda durante a graduação. Os primeiros resultados da pesquisa foram
essenciais para o desenvolvimento do que agora se segue. A tradução foi feita com base
no texto latino estabelecido por Henri Ailloud na edição Les Belles Lettres de 1931.
12
2 O Contexto histórico da obra de Suetônio
Qualquer análise que se pretenda séria sobre uma obra literária tem de lidar com
o problema do contexto. Independentemente da posição teórica da qual se parte, nenhum
estudioso pode ficar alheio ao fato de que a obra literária não existe no vácuo, e que,
embora análises que se limitam apenas ao texto sejam perfeitamente possíveis, e em
alguns casos até mesmo recomendadas, algumas obras parecem exigir que se leve em
consideração o contexto de produção, o contexto de recepção e as implicações que esses
contextos podem trazer à leitura.
No caso de um texto da literatura latina, marcado antes de qualquer coisa pela sua
distância no eixo temporal em relação a nós, parece temerário debruçar-se sobre as obras
sem uma tentativa prévia de compreender o contexto que as ajudou a produzir. É leviano
achar que as mentes do século XXI são capazes de compreender os conflitos sociais da
República Romana, ou o drama do esfacelamento do Império, ou as relações familiares
entre senhores e escravos sem que haja um estudo razoavelmente aprofundado daquilo
que norteia as aflições das pessoas que viveram essas épocas. Apesar de sermos, enquanto
membros da civilização ocidental, os descendentes desses indivíduos, e ainda
carregarmos em nossas mentes muitas das questões que não foram respondidas por seus
pensadores originais (ou que foram respondidas diversas vezes, de maneiras diferentes),
a distância temporal nos impede de alcançar com propriedade aquilo que buscamos: o
outro. Toda tentativa de nos identificarmos com esse outro está fadada ao fracasso – o
que não nos escusa de tentar.
Pensando nessas questões, não seria possível iniciar uma análise da obra de
Suetônio sem antes tentar caracterizar, minimamente, o ambiente em que sua obra se
desenvolveu. Essa análise, é claro, não pode ser exaustiva, pois, do contrário, pode correr
o risco de perder o seu foco. Assim, tendo em conta que Suetônio foi um autor do século
II d. C., um cavaleiro romano, e que sua obra procura compreender e definir o
comportamento de diversos líderes políticos que foram chamados de ‘Césares’, é
necessário entender o que um homem do século II d. C., com acesso a uma educação que
poucos tiveram em seu tempo, entendia quando falava de um ‘César’. Seria o César um
13
imperador? Mas o que é um imperador, afinal? No que ele difere de um ditador ou de um
rei do oriente? Como funciona a estrutura do seu governo? Até onde se estende sua
autoridade (política e geograficamente)? Mais do que isso, o imperador sempre foi o
mesmo? Será que Calígula, cuja biografia vamos traduzir, tinha os mesmos direitos e
deveres, tinha de lidar com as mesmas expectativas que os governantes da época de
Suetônio, como Trajano e Adriano?
E quais seriam os interesses de Suetônio em trazer à tona as biografias desses
líderes? Seria um simples exercício de erudição? Poderíamos falar aqui numa obra de
propaganda? Talvez numa obra que procura ser didática, apresentando exemplos do que
se deve ou não fazer quando se chega ao poder como imperador? Aliás, será que os futuros
imperadores leriam sua obra?
Todas essas questões serão abordadas nas linhas que seguem. Espera-se, com isso,
recriar o contexto de produção da obra de Suetônio, de modo a deixar mais claro aquilo
de que falaremos durante a tradução da Vida de Calígula.
2.1 O Império Romano e o Sistema do Principado
Levando em conta que a obra de Suetônio não só foi produzida no contexto
histórico do Império, mas também se dedica a trabalhar com a própria noção de César,
cabe aqui tentar compreender o que foi esse sistema de governo e como defini-lo. A
definição ideal para a análise da obra de Suetônio seria aquela que o próprio Suetônio nos
fornecesse. Mas, infelizmente, não fazia sentido para ele buscar uma definição de Império
ou uma definição de César. Tais categorias estavam relativamente claras no pensamento
do homem romano, sobretudo na época em que Suetônio viveu, quando o governo dos
Césares já era reconhecido como o poder oficial havia quase dois séculos. Falar dos
Césares era algo comum, tido como natural. Não havia necessidade de buscar uma
definição teórica para o assunto.
Isso faz com que nós, estudiosos do século XXI, tenhamos de nos valer de
trabalhos teóricos sobre o assunto que procurem esclarecer o que o senso comum dos
14
homens daquela época entendia por Império, e como um César poderia ser reconhecido
legitimamente como tal.
Não é surpresa para ninguém o fato de que uma tentativa de definição sobre uma
categoria tão abstrata quanto o “Império” cause perplexidade: para começar, o termo
apresentava definições diversas para os próprios romanos1. Consultando o Dictionnaire
Etymologique de La Langue Latine, de Ernout & Meillet, é possível compreender de
maneira mais clara a evolução dos diferentes significados do termo:
Imperium designa o poder soberano (por exemplo, o do pai de família sobre
seus filhos, do senhor sobre seus escravos), imperare quer dizer “comandar
como senhor”. Daí, na linguagem política, o sentido de imperium “comando,
poder soberano de tomar todas as medidas de utilidade pública, mesmo fora
das leis2 (ERNOUT&MEILLET, 1951: 74)
Com essa definição, já é possível deixar de lado os usos mais corriqueiros de
imperium enquanto “ordem”, “comando”, que não nos servem para trabalhar com o termo
do ponto de vista político. A noção de comando militar é menos facilmente deixada de
lado, mas também é menos importante no momento. Cabe aqui entender o imperium como
o poder soberano exercido na esfera política, um poder tão absoluto que poderia até
mesmo ignorar as leis. Mas, para nossa frustração, essa definição ainda é muito vaga, e
não nos explica como esse sistema de governo funcionaria em suas estruturas mais
profundas, nem como o povo se permitia convencer da legitimidade de um governante
que recebesse um poder tão grande.
Além da confusão derivada da própria polissemia do termo imperium em latim,
não se pode esquecer que esse termo deu origem a palavras análogas nas mais diversas
línguas. Com a diferença de que palavras como “Império” ou “Empire” designam
1 Mesmo os dicionários mais concisos oferecem um número relativamente elevado de definições para o
termo imperium. Por exemplo, o Dicionário de Latim-Português/Português-Latim da Porto Editora, que
contém cerca de 26000 entradas em latim, oferece as traduções: poder; autoridade; ordem; mando; poder
supremo; hegemonia; soberania; comando militar; magistratura; Estado; Império. (PORTO EDITORA,
2012: 230) 2 “Imperium désigne le pouvouir souverain (par ex. du père de famille sur ses enfants, du mâitre sur ses
esclaves), imperare veut dire “commander en mâitre”. De lá, dans la l. politique, le sens de imperium
“commandement, pouvouir souverain de pendre toutes mesures d’utilité publique, même en dehors des
lois”.
15
realidades que, embora análogas, reúnem diferenças fundamentais em relação ao tipo de
Império de que se fala quando estamos tratando da Roma Antiga. E as semelhanças entre
os sistemas de governo do Império Romano e o governo do Império Brasileiro, por
exemplo, em lugar de auxiliar o pesquisador, podem levá-lo ao engano.
Essa é uma preocupação expressa por diversos teóricos, como se pode observar
nesta afirmação feita por Patrick Le Roux, que observa os riscos de se tomar uma postura
anacrônica ao tratar do fenômeno político que foi o Império Romano como algo
essencialmente idêntico aos outros sistemas de governo que foram chamados de impérios
ao longo da História:
A expressão “o Império Romano” admite diversas definições parciais, e
teremos de combinar elementos de cada uma delas, caso queiramos nos
aproximar de um conceito mais completo. Todos acreditam saber do que estão
falando, mas captar esse conceito em sua totalidade é um verdadeiro desafio.
Antes de mais nada, para estabelecermos uma conceituação precisa, será
necessário libertá-la de todas as semelhanças enganosas que vem sendo
encontradas com o Império Britânico ou o Império Francês. Hoje em dia, se
pretendermos estabelecer qualquer comparação com o Império Americano,
seremos novamente levados a cair na armadilha de um anacronismo. (LE
ROUX, 2010: 7-8)
Alguns dos pontos de divergência entre esses diversos sistemas de governo saltam
aos olhos quando se faz uma observação mais detida. Há, por exemplo, a questão da
escolha do novo líder após a morte do atual. Enquanto em regimes mais modernos se
pode afirmar que essa escolha era baseada única e exclusivamente em critérios familiares,
sendo o governante legitimado por ser um descendente direto de seu sucessor, no Império
Romano isso não ocorria exatamente da mesma forma.
Se admitimos que o primeiro princeps foi Otávio Augusto, cujo governo durou de
27 a.C. a 14 d.C., fica claro que, embora o critério de parentesco seja relevante tanto para
a escolha do próprio Augusto como para a escolha de seu sucessor, ele não é determinante
ao ponto de que apenas aqueles reconhecidos como descendentes diretos sejam elegíveis
para o comando. Augusto recebeu o poder de Júlio César – que, apesar de seu comando
absoluto sobre Roma, nunca chegou a ser um imperador, governando sob as alcunhas de
cônsul e, mais tarde, ditador – que não era seu pai biológico. Ainda que pertencessem a
16
um mesmo clã, a gens Iulia, seu grau de parentesco era originalmente mais afastado – o
então chamado Caio Otávio era sobrinho-neto de César. No entanto, ele foi adotado em
testamento por César, passando a ser seu filho de fato e assumindo o nome de seu pai
adotivo, e, por fim, após a derrota de Marco Antônio, o título de Augusto.
Quanto ao sucessor de Augusto, Tibério, não se pode afirmar sequer que pertencia
originalmente ao mesmo clã do pai adotivo. Pelo contrário, sua família vinha fugindo de
Otaviano quando ele próprio era ainda uma criança, já que sua mãe, Lívia Drusila tivera
como marido um aliado de Marco Antônio, Tibério Cláudio Nero, seu pai biológico.
Augusto, no entanto, acabou se apaixonando por Drusila e Tibério, quando da morte de
seu pai adotivo, terminou por assumir o governo.
Com apenas esses dois exemplos, é possível notar que, primeiramente, o
parentesco existente entre o imperador e seu sucessor não era necessariamente sanguíneo:
a adoção era vista como uma maneira legítima de se manter o comando do Império dentro
do mesmo clã. Em segundo lugar, não havia a necessidade de manter uma mesma família
no controle, bastando que o sucessor pertencesse de alguma forma ao mesmo clã, ou
melhor, à mesma gens de seu antecessor.
A verdade é que a legitimidade do imperador não era determinada,
ideologicamente, pelo seu parentesco. Ou, pelo menos, não somente por ele. Na teoria, o
imperador era apenas mais um cidadão como qualquer outro, ao qual eram fornecidos
poderes para administrar o Império. Tornar-se imperador era assumir uma
responsabilidade, quase como tomar um fardo muito pesado de garantir o bom
funcionamento de Roma e de suas províncias. Cabia a ele cuidar bem da república – sim,
porque a noção de república não se perdia no governo dos Césares.3 O que o fazia ser
reconhecido como tal era um consenso entre os membros da sociedade de que aquele
indivíduo seria capaz de cumprir sua árdua tarefa. A questão do parentesco, da
3 Como afirma Veyne: “No Império, a palavra república não deixará de ser pronunciada em momento algum
– e não se trata de uma ficção hipócrita. Sob o Antigo Regime, o indivíduo estava a serviço do rei; um
imperador, ao contrário, servia à República. Ele não reinava para a própria glória, como um rei, mas para a
glória dos romanos; suas conquistas e vitórias, celebradas nas moedas que cunhava, visavam única e
exclusivamente ao benefício da gloria Romanorum ou da gloria rei publicae. (...) O regime imperial não
mantinha sua fachada republicana por meio de uma ficção, mas à custa de um compromisso; o príncipe não
podia nem desejava abolir a república, pois esta lhe era imprescindível – sem a ordem senatorial, sem os
cônsules, os magistrados e promagistrados, o Império, destituído de sua coluna vertebral, ruiria. (VEYNE,
2009a: 8-9)
17
hereditariedade do Império, era simplesmente uma maneira de tornar a sociedade mais
receptiva ao novo governante – não podemos esquecer que, para o romano, as virtudes de
um homem eram muitas vezes hereditárias, sendo mais fácil acreditar que um indivíduo
será um governante eficiente se ele for membro de uma gens na qual outros indivíduos já
se haviam provado capazes de fazer o mesmo4.
Esse consenso existente entre as diversas camadas da população não pode ser visto
como uma votação popular. Na verdade, como nos lembra Veyne, ele era muito mais uma
ferramenta ideológica, na qual diferentes setores da sociedade eram “representados” por
alguns indivíduos em particular que atuavam como a voz de camadas populares muito
mais numerosas.5 Basicamente, cabia ao senado e ao exército determinar quem era ou não
elegível para exercer a soberania, e com o reconhecimento destas duas forças, o imperador
era considerado legítimo.
Mas ainda assim, talvez ainda por influência da aristocracia existente já desde os
tempos da República, embora o imperador pudesse teoricamente ser qualquer um, havia
uma clara preferência por aqueles que faziam parte do mesmo clã. Assim foi que se
constituiu, com a passagem do governo de Augusto para Tibério, a primeira dinastia de
imperadores que Roma conheceu – a dinastia júlio-claudiana. Os primeiros imperadores
eram todos descendentes de Otávio Augusto, fossem eles de fato membros da família ou
simplesmente adotados pela gens Iulia. Assim ocorreu com Tibério (14-37 d. C.), que,
como já dissemos, não era seu filho legítimo, mas sim de um casamento anterior de
Drusila. Há um consenso entre os historiadores de nossa época e da própria antiguidade
de que Augusto não tinha grandes expectativas para Tibério6, mas, encurralado,
4 O mesmo também vale para os vícios, no entanto. Suetônio afirma que a filha de Calígula, ainda bebê, já
demonstrava traços da ferocidade do pai, chegando até mesmo a atacar as crianças que brincavam perto
dela. (Cal, XXV, 8). 5 “Como alguém se tornava imperador? Aqui, para compreendermos a questão, é preciso abrir mão de
buscar um direito público, regras, fundamentação legal; só havia um jogo de forças. O êxito, as
demonstrações de força e a submissão eram encobertos, após a vitória, pela ficção de um consenso de todos
os cidadãos.” (VEYNE, 2009a: 5). 6 Como afirma Grimal, Augusto pretendia deixar o governo para um de seus netos, Lúcio ou Caio, filhos
de Júlia e Vipsânio Agripa, mas: “Infelizmente esses dois jovens, que foram, desde a infância, cumulados
de honras e que todos consideravam sucessores do príncipe, morreram aos 20 anos. Lúcio pereceu primeiro,
em 2 d.C.; e Caio logo o seguiu. Augusto precisou resignar-se a buscar um sucessor entre os filhos de Lívia.
Dos dois irmãos, nesse momento, só o mais velho sobrevivera, Tibério (...) Augusto não sentia nenhuma
simpatia por ele. Só o escolheu porque não havia nenhum outro membro de sua casa capaz de assegurar,
melhor ou pior, a sobrevivência de sua obra.” (GRIMAL, 2011: 132).
18
precisando de um herdeiro que pudesse cuidar de seu legado sem esfacelá-lo, foi
necessário que ele concedesse o poder a seu filho adotivo, mesmo a contragosto.
Entre Tibério e Calígula (37-41 d.C.), as relações não eram menos animosas. Basta
lembrar que, como se verá na tradução da vida de Calígula, o jovem que viria a ser o
terceiro imperador mais de uma vez se vangloriou de ter chegado perto de cometer
parricídio, matando seu familiar e então imperador, Tibério. Mais do que isso, a crença
geral era a de que Calígula havia chegado a perpetrar o ato, o que era escandaloso, mas
não necessariamente inesperado. Calígula mataria ou enviaria para o exílio ainda outros
membros mais próximos de sua família, e não seria o único imperador a fazê-lo. Essa
acabava se tornando praticamente uma exigência para os governantes desse regime
recém-instaurado, pois cada familiar que se destacava, ou que conseguia ser mais popular
que o próprio imperador, era um candidato a substituí-lo, e tão legitimamente elegível
quanto seu parente. O próprio Tibério percebeu isso, aparentemente, quando mandou
envenenar – de acordo com Suetônio – o pai de Calígula, Germânico, um excelente
general e homem extremamente carismático. Dessa forma, acabou abrindo caminho para
Calígula. E o processo de sucessão foi visto com legitimidade também pelo fato de
Calígula ser membro do clã: era sobrinho-neto de Tibério.
O sucessor de Calígula foi seu tio, Cláudio (41-54 d. C.), o penúltimo membro da
dinastia júlio-claudiana. É conhecida a narrativa de como os guardas pretorianos
responsáveis pela morte de Calígula foram até Cláudio, sempre retratado como um
homem de personalidade fraca, e praticamente exigiram que ele assumisse o poder. Prova
da importância do pertencimento ao clã para a legitimidade do governante: mesmo um
indivíduo reconhecido por todos como um idiota era um candidato qualificado por ser um
dos poucos membros restantes da gens. Depois dele, Nero (54-68 d. C.), outro sobrinho
de Cláulio, assumiu o poder. Em princípio uma figura de pouco destaque, Nero era
aconselhado por seu mestre, Sêneca. Não tardou, porém, para que seus delírios de
grandeza e sua paranoia o fizessem se voltar contra seu tutor, que acabou sendo morto
por sua ordem. O assassinato de Nero marcaria o fim da dinastia e o início de uma guerra
civil, já que não havia um consenso sobre quem deveria assumir o poder, uma vez que
Nero não deixara herdeiros. Começava o ano dos quatro imperadores, um período de
anarquia em que a ausência de herdeiros legítimos fez com que diversas figuras políticas
19
tentassem sua sorte para alcançar a soberania. Galba, Oto e Vitélio tiveram sucesso, mas
por períodos de tempo extremamente curtos.
Depois disso uma nova dinastia, a dos Flavianos, foi instaurada por Vespasiano
(69-79 d. C.), continuada por Tito (79-81 d. C.), e encerrada com a morte de Domiciano
(81-96 d. C.). A narrativa da Vida dos Doze Césares, de Suetônio, se encerra com a vida
de Domiciano, e esse dado é importante para compreendermos o que pode ter motivado
esse recorte. Depois de encerrada a dinastia dos Flavianos, para evitar uma nova guerra
civil e mais um período de anarquia militar, o senador Nerva (96-98 d. C.) foi escolhido
como governante. Um homem já de idade avançada, considerado muito sábio pelos seus
pares, Nerva comprovou sua fama ao fazer uma escolha cuidadosa para seu sucessor:
Trajano (98-117 d. C.), um jovem soldado cujas virtudes ele havia reconhecido. Estava
fundada uma nova dinastia, a dos Antoninos, que seria caracterizada pelo fato de seus
membros escolherem os sucessores com base em suas virtudes pessoais, fazendo com que
o critério de escolha com base no pertencimento ao clã se tornasse menos importante.
Todos os imperadores dessa dinastia foram escolhidos pelos seus antecessores como
homens de grande valor pessoal e por eles adotados, para então assumirem o comando.
Os Antoninos, que por esse motivo ficaram conhecidos como os imperadores adotivos,
também não faziam parte das aristocracias romanas locais – alguns deles, como o próprio
Trajano, que era espanhol, vinham de províncias romanas relativamente distantes.
Sob o governo dos Antoninos, o Império prosperou de maneira nunca antes vista,
e também atingiu sua máxima expansão territorial. Sob o governo de Trajano, os romanos
conquistaram territórios na Ásia, frutos de conflitos bem-sucedidos com o Império Parta.
Em 116 d.C., Roma compreendia praticamente toda a Europa Ocidental (com exceção
dos territórios dos germanos, deixados em paz desde os tempos de Augusto), parte
considerável do norte da África e havia conseguido chegar ainda mais longe em direção
ao Oriente, numa tentativa de imitar as conquistas de Alexandre. O sucessor de Trajano,
Adriano (117-138 d. C.) pôs um fim ao impulso expansionista romano, por reconhecer
que o Império, conquistando ainda mais territórios do que aqueles que já administrava,
corria o risco de se esfacelar. Pacífico, intelectual e fascinado pela cultura grega, Adriano
seria lembrado como um grande líder pela maioria dos romanos. Mas, para Suetônio, ele
20
acabaria sendo um fardo. Ao cometer uma falta contra Adriano que ainda hoje não fica
muito clara, Suetônio perdeu os cargos políticos que exercia.
É esse o período do Império Romano relevante para entender a obra de Suetônio.
Os primeiros césares até Domiciano foram biografados por ele, enquanto que sua carreira
política e a publicação de sua obra ocorreram durante os governos dos antoninos,
especificamente de Trajano e Adriano.
2.2 Suetônio
E como isso se aplica ao próprio Suetônio? O De Vita Caesarum se estende apenas
até o governo de Domiciano, muito embora Suetônio tenha vivido durante os governos
posteriores de Nerva, Trajano e Adriano. O recorte feito pelo autor foi provavelmente
motivado pela necessidade de não trazer à tona anedotas inconvenientes aos governantes.
Em alguns momentos das vidas mais recentes do De Vita Caesarum, Suetônio demonstra
já ter algum material polêmico a respeito dos imperadores que não biografou. Por
exemplo, na vida de Domiciano, ele conta que esse imperador poderia ter entretido
comércio sexual com Nerva, que governaria depois dele (Dom. I, 1). Ainda na mesma
biografia, num dos raros momentos em que parece assumir um tom elogioso em relação
ao biografado, Suetônio fala de como os magistrados posteriores a Domiciano não eram
tão justos e moderados quanto foram durante o governo rigoroso do mesmo:
Magistratibus quoque urbicis prouinciarumque praesidibus coercendis tantum
curae adhibuit, ut neque modestiores umquam neque iustiores extiterint; e
quibus plerosque post illum reos omnium criminum uidimus. (Dom. VIII, 2)7
Narrativas como essa podem ser feitas com alguma segurança a respeito dos
imperadores que morreram há mais de um século, mas certamente não daqueles cuja
influência ainda pode ser sentida.
7 E teve tanto cuidado para conter os magistrados das cidades e os governadores das províncias que eles
nunca mais foram tão honestos e justos; eles que, depois de seu governo, vimos em grande número como
réus de todo tipo de crime.
21
No entanto, o fato do governo de Domiciano ser recente não impede Suetônio de
vituperá-lo. Na verdade, Suetônio dá a ele o mesmo tratamento dispensado a Calígula no
que diz respeito às expectativas criadas com seus primeiros feitos no governo: Domiciano
inicia seu mandato como um homem virtuoso, para então ceder, por medo, à avareza e
sobretudo à crueldade. Em Calígula, essa percepção é ainda mais acentuada, ficando mais
evidente no trecho em que o autor, tendo já narrado os prima acta do jovem imperador,
diz que “Até aqui se falou de um príncipe – deve-se agora falar de um monstro” (Cal.
XXII, 1). Seja como for, a crueldade dos dois príncipes é análoga.
O que permite a Suetônio maldizer tão veementemente um imperador cujo
governo ele até mesmo presenciou, ainda pequeno? O fato de ele não ser o único a fazê-
lo. Há toda uma tradição hostil às figuras de determinados imperadores, sobretudo de
Calígula, Nero e Domiciano. Autores oriundos da ordem senatorial, como Sêneca (4 a.C.
– 68 d.C.) e Tácito (56 – 117 d.C.) tinham uma opinião muito forte e não muito elogiosa
dos imperadores que tentaram diminuir o poder da aristocracia. Embora Sêneca
obviamente não tenha tido a oportunidade de tecer uma opinião sobre o governo de
Domiciano, não é difícil imaginar que o autor não o aprovaria. Já Tácito demonstrou por
via indireta na biografia de seu sogro Agricola que apenas os homens mais virtuosos
conseguiriam ser bem-sucedidos no governo de Domiciano sem se deixar corromper.
Pode-se pensar, então, numa espécie de ideologia que cercava as opiniões dos autores
sobre o comportamento e o governo de determinados imperadores particularmente
problemáticos. Mas, visto que Suetônio não pertencia à ordem senatorial, ainda é preciso
empreender uma análise de sua vida para termos a certeza de que ele se subscreve a esse
mesmo conjunto de ideias que pareceu nortear a opinião de autores daquela ordem.
Suetônio nasceu provavelmente no ano de 69 d.C., ou talvez 70. As principais
fontes que fornecem dados sobre sua vida são, tradicionalmente, o próprio Suetônio (que
acaba fazendo pequenos comentários em seus textos biográficos que revelam detalhes de
sua própria vida), a Suda bizantina e as correspondências trocadas entre Suetônio e Plínio,
bem como outras cartas de Plínio destinadas a terceiros mas que mencionam o autor.
Através dessas fontes, pôde-se reconhecer a filiação de Suetônio ao círculo literário de
Plínio (o que também se confirma pelo fato de o autor ter dedicado o De Vita Caesarum
a Septicius Clarus, outro membro desse grupo de intelectuais), a data aproximada de seu
22
nascimento, o fato de ter vivido em Roma na maior parte de sua vida, e ter ocupado uma
série de cargos públicos (como os de responsável a studiis, a bibliothecis e ab epistulis,
que lhe deram acesso a muitos documentos históricos importantes).
Outra fonte ainda oriunda da Roma Antiga foi a Historia Augusta, que menciona
o fato de Suetônio e Septicius Clarus terem caído em desgraça durante o governo de
Adriano, talvez por um ato de indiscrição relacionado à imperatriz Sabina. Mais
recentemente, no século XX, uma inscrição encontrada na cidade de Hippo Regius no
norte da África lançava mais luz sobre a vida do autor: primeiramente por fazer menção
a outros cargos públicos ocupados por ele dos quais ainda não se tinha notícia; mas
principalmente por levantar a hipótese de que aquele mesmo lugar seria o local de
nascimento de Suetônio, e não Roma, como antes se pensava (muito embora a inscrição
não fale especificamente de um local de nascimento, não podendo ser considerada uma
prova irrefutável contra a hipótese original).
No que diz respeito aos familiares de Suetônio, pouco se sabe. As cartas de Plínio
informam que ele teria recebido o Ius Trium Liberorum, reservado, como o nome sugere,
aos cidadãos que tenham três filhos, mas que teria sido dado a ele de maneira excepcional
– posto que ele não tivera filhos. A vida de seus antepassados também é contemplada por
alguns comentários. Na vida de Calígula, que traduzimos, é interessante a passagem em
que Suetônio apresenta uma explicação para a construção da ponte entre Puteoli
(Puzzuoli) e Baiae (Baías), obra que marca o início das excentricidades de Calígula:
Sed auum meum narrantem puer audiebam, causam operis ab interioribus
aulicis proditam, quod Thrasyllus mathematicus anxio de successore Tiberio
et in uerum nepotem proniori affirmasset non magis Gaium imperaturum quam
per Baianum sinum equis discursurum. (Cal. XIX, 3)8
Algumas coisas podem ser ditas a respeito desse trecho. Primeiramente, ele ilustra
a riqueza de fontes a que Suetônio recorre para relatar os fatos que selecionou. Essa
8 Mas ouvi de meu avô, quando eu era menino, que a razão de tal obra, contada pelos seus cortesãos, era o
fato de o astrólogo Trasilo ter dito a Tibério – quando este se encontrava preocupado com seu sucessor e
se mostrava propenso a escolher o neto – que “Caio tinha tantas chances de ser Imperador quantas de
atravessar a cavalo o Golfo de Baías”.
23
passagem é ilustrada não só pela opinião de seu avô, mas também por outras opiniões
correntes à época (e cujas fontes Suetônio não identifica) de que o ato seria uma tentativa
de emular Xerxes ou de aterrorizar a Bretanha e a Germânia. Mas, além disso, também
se identifica aqui uma certa relutância de Suetônio ao tratar de seu avô. Ao dizer que o
avô soube desse motivo através dos cortesãos de Calígula, pode-se inferir que Suetônio
acaba dando testemunho de uma origem mais humilde desse antepassado. Como explica
Esteves, que se refere ao avô de Suetônio como Maior:
Poderíamos esperar que se Suetônio Maior fosse um aulicus, este detalhe não
escaparia ao relato do neto biógrafo. Entretanto, a questão não é tão simples,
já que a função de aulicus está carregada pelo estigma do estatuto civil da
escravidão – os cortesãos eram, sobretudo na dinastia júlio-claudiana, ou
escravos, ou libertos da casa do princeps. (ESTEVES, 2015: 3)
Essa preocupação demonstra que Suetônio, embora tenha sido ele mesmo, assim
como o pai, um membro da ordem equestre, tinha antepassados menos louváveis, e que a
menção às condições sociais desses antepassados era um assunto delicado. Nessa pequena
hesitação seria possível enxergar uma insegurança que viesse a exigir de Suetônio que ele
próprio se reafirmasse enquanto cavaleiro em outras situações sociais.
Já se falou do contato que Suetônio tivera com Plínio. Pode-se dizer que Suetônio
foi seu protegido tanto na esfera política como na literária, e o próprio Plínio era também
um cavaleiro. A influência dele sobre a obra de Suetônio pode ser percebida em algumas
de suas cartas, quando pede ao autor que não se demore a publicar uma das obras que já
havia concluído (Ep. 5,10). Pode-se supor que sua influência política não tenha sido
menor, e que as ideias políticas de Plínio tenham sido assumidas também por Suetônio,
não só pela amizade existente entre os dois, mas também pela necessidade que Suetônio
tinha de se firmar na figura política mais consolidada que era Plínio. Se podemos falar
numa tal influência, então fica suficientemente explicada a facilidade com que Suetônio
fala mal de Domiciano, uma vez que seu padrinho também havia demonstrado pouca
simpatia por ele ao fazer o elogio de Trajano, onde a comparação entre os dois
imperadores era clara, e tendia a colocar em contraste as virtudes de Trajano e os vícios
de Domiciano.
24
Assim, os detalhes da vida de Suetônio se tornam importantes para o entendimento
do tipo de tom que pode assumir a sua biografia, ainda que indiretamente, quando trata
de imperadores cujo posicionamento político obscurecia o papel do senado ou que se
comportaram de uma maneira análoga àquela como Domiciano se comportou. Podemos
esperar que seu relato da vida de Calígula, portanto, apresente um tom moralizante.
25
3 A biografia enquanto gênero literário
3.1 Gêneros textuais na Antiguidade Clássica
Ao analisarmos os escritos deixados por Suetônio, uma problematização bastante
comum é aquela que diz respeito ao estatuto de gênero literário das biografias. Essa
questão surge de uma preocupação em evitar anacronismos durante o trabalho de análise,
o que pode ocorrer quando se classifica o texto através de critérios que pertencem às
sociedades modernas, mas não aos romanos ou gregos. Nossas definições de gênero
literário e de gênero textual são hoje mais amplas e complexas do que as definições da
Antiguidade Clássica (ou ao menos é o que nos levam a crer os esquemas de separação
dos gêneros presentes em autores como Aristóteles e Quintiliano), justamente porque elas
abarcam não só as noções já trazidas da Antiguidade Clássica pela tradição ocidental, mas
também uma série de gêneros que ainda não existiam na literatura ocidental anteriormente
ao medievo, ou que foram incluídos em nosso arcabouço literário através do contato com
culturas cuja literatura jamais alcançou os pensadores antigos. Além disso, o retorno
constante à literatura grega e latina, com renovado pensamento e inspiração intelectual,
nos fez enxergar categorias que, embora tornem mais acessível e inteligível o trabalho de
análise dos textos, não encontram (ou, ao menos, não aparentam encontrar)
correspondência imediata nas categorias reconhecidas pelos próprios autores desses
textos. Em resumo: os textos da Antiguidade que falavam sobre gêneros literários não
parecem reconhecer a biografia como um gênero em si. Utilizar a noção de biografia
como gênero literário para abordar os textos de Suetônio não seria, portanto, atribuir às
categorias de gênero literário da Antiguidade uma complexidade que não lhes pertence?
Não que essas categorias não apresentassem suas próprias complexidades, é claro.
Na verdade, é possível argumentar que muito das complexidades ali presentes não nos é
acessível, por não terem chegado até nossos dias textos que tratassem do gênero literário
de maneira mais aprofundada. Para melhor ilustrar esse ponto, observemos algumas das
classificações de gêneros literários que a Antiguidade Clássica nos oferece.
Em língua grega, A República, de Platão e a Poética de Aristóteles são as obras
nas quais a tradição ocidental se baseia para reconhecer uma primeira divisão entre os
gêneros literários. Ao justificar o seu conhecido ato de expulsar os poetas da república
26
ideal, Platão, na voz de Sócrates, acaba por fazer uma reflexão a respeito dos diferentes
assuntos e dos diferentes modos de se representar encontrados na prática dos diferentes
poetas. Assim, o poeta é excluído porque, em seus trabalhos, aborda temáticas que não
condizem com os valores morais que se deve buscar na educação dos cidadãos. Quando
os valores que se pretende fazer prevalecer entre os cidadãos incluem a coragem diante
da morte, o apreço pela liberdade e o asco em relação à escravidão, ter no seio da
República poetas que cantam os horrores presentes no Hades e os sofrimentos que
aguardam as almas dos que morrem pode ser muito prejudicial. Logo:
Palavras como estas e todas as outras da mesma espécie, pediremos vênia a
Homero e aos outros poetas para que não se agastem se as apagarmos, não que
não sejam poéticas e doces de escutar para a maioria; mas, quanto mais
poéticas, menos devem ser ouvidas por crianças e por homens que devem ser
livres, e temer a escravatura mais do que a morte. (Plat. Rep, III, 387b)9
Quanto à maneira pela qual os poetas reproduzem o que foi dito ao longo de suas
narrativas, também aí o filósofo encontra motivos para censurá-los. Reconhecendo que
só o que fazem os poetas é narrar acontecimentos passados, presentes ou futuros, ele
delimita três modos de representação: a narrativa pura (ἁπλή διήγησις), na qual apenas se
narram os acontecimentos; a imitação (μίμησις), em que se reproduz a fala dos
personagens, em lugar de apenas contar o que foi dito; e ainda um terceiro modo, o misto,
em que o autor se utiliza ora de um recurso, ora de outro. Quando o poeta faz a imitação,
seja em sua forma pura ou em sua forma mista, corre o risco de se tornar prejudicial à
cidade, pois acaba por imitar não só os homens superiores, mas também os inferiores, que
jamais deveriam servir de exemplo a quem quer que fosse. Mas o que mais interessa aqui
é que a essa distinção entre modos de representação se aplica uma divisão entre gêneros,
já que Sócrates e Adimanto reconhecem em seu diálogo que:
(...) em poesia e em prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes
que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta – é nos
ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por
9 Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
27
ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos outros gêneros, se
estás a compreender-me. (Plat. Rep, III, 394c)
A partir daqui, portanto, a tradição reconheceu uma divisão entre gêneros que
incluiria a tragédia – utilizando a representação puramente mimética – a epopeia –
utilizando a representação mista – e o ditirambo – utilizando a representação narrativa
pura.
Tal distinção influenciaria fortemente Aristóteles. Sobretudo no que diz respeito
ao modo de representação através da imitação, que viria a se tornar, para Aristóteles, um
traço distintivo comum à toda poesia, modificando sensivelmente a conceituação de
mímesis feita por seu antecessor. Assim, logo no início da Poética, o filósofo afirma que:
A poesia épica e a trágica, bem como a cômica, a ditirâmbica e a maioria da
interpretação com flauta e instrumentos de cordas dedilhados são todas,
encaradas como um todo, tipos de imitação. (Arist. Poet, 1447a)10
Repare-se que os “gêneros” que Platão havia separado de acordo com os modos
de representação estão todos agrupados agora sob a rubrica da imitação – mesmo o
ditirambo, do qual quase nada nos restou, mas que Platão havia considerado como o
representante principal, na verdade o único por ele citado, da narrativa pura.
Para distinguir esses gêneros, portanto, ele precisa se utilizar de outros critérios.
Investigando, pois, as diferentes manifestações da imitação artística, Aristóteles parece
reconhecer, num primeiro momento, três maneiras de diferenciá-las: primeiramente,
através dos meios de imitação, em que se podem reconhecer os diferentes suportes através
dos quais se faz a imitação (sendo que esta é uma maneira de diferenciar as imitações que
Aristóteles negligencia ao longo de sua obra, dando ênfase às duas seguintes); a segunda
maneira seria através dos objetos de imitação, criando-se aqui uma divisão entre a
imitação de homens superiores à média, de homens inferiores à média e de homens que
são “tal como somos” (Arist. Poet, 1448a). Desta última categoria de objetos também não
10 Tradução de Edson Bini.
28
se voltará a falar profundamente, mas as duas primeiras são usadas por Aristóteles para
distinguir, através dos objetos de imitação, a Comédia e a Tragédia, sendo a primeira
dedicada à imitação dos homens inferiores e a segunda à dos homens superiores; por fim,
ainda é possível fazer uma distinção entre os diferentes modos de imitação, em que cabe
diferenciar as obras que se utilizam da narração ou da performance direta dos papéis –
Aristóteles não se esquece de salientar que Homero apresenta uma postura mista neste
ponto, ora fazendo uso da narração direta, ora assumindo as falas de um personagem. A
cada um desse modos (sendo deixado de lado o modo misto de Homero) pode-se chamar
de narrativo o que se utiliza da narração direta e de dramático o que se utiliza da
performance direta.
Somente se pode falar em gêneros na Poética de Aristóteles, no entanto, a partir
do momento em que se juntam esses diferentes critérios. Com isso, exclui-se,
primeiramente, a diferenciação entre os meios de imitação, restando apenas a separação
por duas instâncias superiores, os modos de imitação (em que o modo misto ficaria
excluído, restando apenas o narrativo e o dramático) e os objetos de imitação (em que
não se tratará da imitação dos homens médios, apenas dos homens superiores e dos
homens inferiores). Assim, quando se une o modo de imitação dramático e o objeto de
imitação homens superiores, tem-se a tragédia; dentro do mesmo modo de imitação, mas
tendo como objeto os homens inferiores, encontra-se a comédia; o modo de imitação
narrativo, quando aplicado aos homens superiores, dá origem à epopeia; por último, se
esse modo de imitação é aplicado aos homens inferiores, tem-se aí a origem das paródias
(um gênero bem menos determinado que os anteriores, sobretudo porque as obras que
Aristóteles cita como exemplos do mesmo não chegaram até nós).
Isso foi uma leitura resumida e superficial de alguns dos pontos principais das
duas obras. Por ser superficial, ela também ignora alguns problemas presentes nos textos
originais e, sobretudo, nas interpretações que esses textos receberam de teóricos ao longo
dos séculos. Por exemplo, percebe-se que as distinções entre gêneros apresentadas por
Platão e Aristóteles não servem para a análise da obra biográfica de Suetônio, tarefa a que
se propõe este trabalho, simplesmente porque em momento algum os dois filósofos se
referem à biografia enquanto gênero literário. No entanto, o mesmo poderia ser dito a
respeito da poesia lírica: o texto de Platão se limita a uma poesia representativa, o que
29
não inclui o lírico. Também Aristóteles parece desprezá-lo (a não ser que se tenha
aprofundado nele ao longo da parte perdida de seu texto). A verdade é que, apesar daquilo
que durante muitos séculos a tradição ocidental afirmou, a famosa tripartição dos gêneros
em épico, lírico e dramático não parece ser uma criação da Antiguidade Clássica, já que,
como se viu, o lírico não é abordado por Platão nem por Aristóteles.
Um autor que trabalhou com esse tipo de questionamento sobre as fontes clássicas
da divisão entre gêneros literários reconhecida pelos teóricos do ocidente é Gérard
Genette que, abordando o mesmo assunto em sua obra Introdução ao Arquitexto,
desconstrói a tripartição dos gêneros, atribuindo-a a uma projeção da tradição romântica
sobre os textos clássicos, sobretudo a Poética de Aristóteles, da qual diz que:
(...) não se renuncia de moto fácil a projetar no texto fundador da poética
clássica uma articulação fundamental da poética moderna – de fato, como é
costume e como veremos, sobretudo romântica; e não talvez sem
consequências teóricas importunas, pois, ao usurpar essa longínqua filiação, a
teoria relativamente recente dos três gêneros fundamentais não somente se
atribui uma antiguidade, logo uma aparência ou presunção de eternidade, e
portanto de evidência: desvia, em proveito das suas três instâncias genéricas,
um fundamento natural que Aristóteles, e Platão antes dele, tinham, e talvez
mais legitimamente, estabelecido para alguma coisa de completamente
diversa. (GENETTE, 1986: 20-21)
Com isso, pretende-se apenas afirmar que, apesar de não serem mais do que uma
projeção, as análises literárias que se basearam nessa tripartição como se fossem de fato
um conceito clássico original não são por isso menos interessantes, nem menos
pertinentes. O próprio Genette, em seu livro, cita diversos autores que de alguma forma
se basearam nesse persistente engano, e entre eles encontram-se nomes muito
importantes, por exemplo, Northrop Frye. Isso poderia servir como uma desculpa para
afirmar que a biografia é reconhecida como um gênero literário sem buscar verificar se
ela figura ou não nas obras clássicas de poética. Mas tal argumento seria muito raso. Seria
mais conveniente tentar demonstrar que, na verdade, as obras poéticas dos autores
clássicos apresentam classificações que são, via de regra, feitas ad hoc, e que tomá-las
como uma classificação de caráter mais geral é um erro. Isso, esperamos, já foi
30
suficientemente demonstrado para as obras de Platão e Aristóteles com o que foi afirmado
até aqui.
Vamos agora voltar-nos às obras da literatura latina com o mesmo espírito. Dentre
os autores que influenciaram nossa maneira de enxergar os gêneros literários, destacam-
se Horácio e Quintiliano.
Em sua Arte Poética, Horácio estabeleceu alguns dos princípios que norteariam
muitos dos movimentos classicistas surgidos posteriormente. Principalmente no que diz
respeito à adequação da forma do poema àquilo de que ele trata. Segundo esse princípio,
não caberia falar de coisas trágicas usando uma métrica típica de textos cômicos, ou vice-
versa. Singula quaeque locum teneant sortita decentem 11, diz o poeta ao falar dos versos.
Não é verdadeiro poeta aquele que não respeita essa adequação. Esse respeito, porém,
acaba por ignorar a existência de uma poesia de natureza mais híbrida.
O texto horaciano parece bastante consciente de que está construindo um tratado
de estética. Mas essa primeira impressão pode não ser inteiramente verdadeira. Para
começar, Ars Poetica é apenas um dos títulos pelos quais ficou conhecido. Já era assim
chamado por Quintiliano, mas, na verdade, tratava-se de uma das cartas escritas pelo
autor, sob o nome de Epistulae ad Pisones. Não seria tão absurdo imaginar que esse texto
não tivesse pretensões tão ambiciosas, mas ocorre que a posteridade, e mesmo uma
posteridade não muito tardia, encarou essa como uma obra que seguia os mesmos
caminhos das obras fundadoras dos gregos.
Mas é Quintiliano aquele dentre os autores romanos que mais nos interessa, por
uma série de fatores. Sobretudo, por sua carreira: tendo sido um Rethor, um professor de
retórica, ele tinha interesse em escrever de maneira didática, buscando uma clara
descrição dos gêneros que pretendia abordar. Os gêneros reconhecidos por ele ao longo
do livro X de sua Institutio Oratoria são os seguintes: a epopeia, a poesia elegíaca, a
poesia iâmbica, a poesia lírica, a poesia dramática, a história, a eloquência, a filosofia e a
sátira. Eis uma classificação que parece ser mais exaustiva e abrangente do que aquelas
feitas pelos filósofos gregos.
11 “Que tenham cada um o lugar que lhes convém” (Ars. 92). A tradução é minha, tanto aqui como em
outros trechos citados em latim, salvo nota em contrário.
31
No entanto, seria um erro aplicar essa classificação à toda a literatura latina. Basta
para isso que se olhe com mais cuidado para o título da obra de Quintiliano: Institutio
Oratoria poderia ser traduzido como “A educação oratória”, ou “A educação do orador”.
Como já foi dito, Quintiliano foi um professor de retórica, preocupado com a formação
dos oradores de seu tempo, que havia, aparentemente, decaído bastante se comparada à
formação dos oradores na época de Cícero. Como afirma Zélia de Almeida Cardoso:
A oratória superficial e ornamentada que dominou o período júlio-claudiano,
e da qual temos suficientes exemplos nas Suasórias e Controvérsias de Sêneca,
o Rétor, vai encontrar um forte opositor em Quintiliano (...) Como Rétor e
mestre de alunos ilustres (...) Quintiliano se notabilizou tanto por ter procurado
reconduzir a oratória às suas dimensões legítimas, colocando-a a serviço da
pátria e do direito, como por ter-se preocupado sobremodo com questões de
ordem moral. (CARDOSO, 2011: 165 e 166)
Essa preocupação com a formação do orador romano é, talvez, o ponto principal
da Institutio Oratoria, e por isso mesmo permeia todos os pontos do texto, inclusive sua
classificação dos gêneros literários. De tal forma que, em diversos pontos, é possível
perceber que os gêneros por ele delimitados não são, na verdade, uma sistematização de
toda a literatura latina e grega, mas simplesmente uma sistematização dos gêneros que
um orador deveria ler e conhecer, em nome de sua melhor formação. Veja-se por
exemplo, esta passagem:
Nobis autem copia cum iudicio paranda est uim orandi non circulatoriam
uolubilitatem spectantibus. Id autem consequemur optima legendo atque
audiendo. (Quint. Inst. X, 1,8)12
Na qual Quintiliano censura aqueles que decoram listas de sinônimos no intuito
de terem um vocabulário amplo, sem considerar com cuidado o tipo de palavras que estão
memorizando. Para ele, é somente através da leitura dos bons autores (sobretudo de outros
12 “Devemos preparar um arcabouço (de palavras) com discernimento, pois buscamos a força do orador,
não a torrente de palavras do charlatão. Isto conseguimos lendo e escutando as melhores obras.”
32
oradores) que se pode adquirir um bom vocabulário. Ainda com o mesmo raciocínio, ele
afirmará mais adiante, pouco antes de começar a tratar de cada um dos gêneros:
Sed nunc genera ipsa lectionum, quae praecipue conuenire intendentibus ut
oratores fiant, existimem, persequar. (Inst. X, 1, 45)13
Note-se que Quintiliano deixa muito claro que vai tratar dos gêneros que julga ser
mais convenientes (quae praecipue conuenire... ...existimem), dando a entender, portanto,
que haveria outros menos recomendáveis. E recomendáveis para quem? Para os que
querem se tornar oradores, especificamente. Poderia haver outros gêneros que, apesar de
suas qualidades inerentes, não seriam recomendáveis para um estudante de oratória. Nem
por isso seu estatuto de gêneros textuais estaria ameaçado.
Assim, fica claro que uma tentativa de buscar nas obras da Antiguidade Clássica
uma definição ou uma separação clara entre gêneros literários, embora seja muito
pertinente para este trabalho, de maneira alguma encerra a questão sobre a biografia.
Embora as obras mais conhecidas a tratarem do tema não a incluam no rol dos gêneros, a
própria natureza fragmentária dessas obras ou seu escopo menos generalista do que se
imagina não permitem tirar quaisquer conclusões sobre o estatuto de gênero do texto
biográfico.
3.2 Historiografia e biografia em Suetônio: fronteiras entre gêneros
Visto que não há como determinar se a biografia é ou não um gênero literário da
Antiguidade apenas com o que se viu a esse respeito nos textos clássicos, faz-se necessária
uma mudança de abordagem. Já não se pode apenas recorrer aos textos teóricos da
Antiguidade, é preciso procurar por textos que falem sobre a biografia ainda que en
13 “Mas agora vou expor os gêneros de textos que eu penso serem mais convenientes àqueles que pretendem
se tornar oradores.”
33
passant. Talvez os autores que escreveram biografias na Antiguidade possam nos oferecer
o material necessário para debater as fronteiras entre gêneros.
Por onde começar, então? Seria interessante fazer um histórico, não da biografia
em si, mas sim dos textos que podem, de alguma maneira, assumir um caráter biográfico.
O que já leva a um outro problema: uma infinidade de textos se encaixaria nesse grupo.
Se entendermos caráter biográfico como uma narrativa que tem como base a vida de um
determinado personagem, então seremos forçados a admitir que textos tão antigos quanto
a Odisseia – que, afinal, narra a vida de Odisseu – fazem parte do conjunto de textos
biográficos da Antiguidade. Diversos textos narrativos se debruçam sobre aquilo que se
poderia chamar de “material biográfico”, posto que seu assunto está intimamente ligado
à vida de determinados personagens. E mesmo que se procure limitar esse conjunto
apenas aos textos que falam de personagens cuja realidade histórica é comprovada, seria
muito difícil separar a narrativa biográfica daquilo que se encontra em textos pertencentes
ao gênero historiográfico – as narrativas sobre a vida de Nero nos Annales, de Tácito,
sem dúvida poderiam ser consideradas material biográfico, mas trata-se de um gênero
textual diferente.
É preciso, portanto, começar definindo o que é texto biográfico, em oposição a
material biográfico. Essa definição tende a ser bastante intuitiva, como se pode ver na
breve explanação de Momigliano:
Um relato da vida de um homem do nascimento até a morte é o que eu chamo
de biografia. (MOMIGLIANO, 1993: 11)14
Tal critério já eliminaria a Odisseia, mas ainda é muito abrangente. Talvez a melhor opção
neste momento seria fazer uso da oposição construída por Stadter, na introdução de seu
capítulo sobre biografia e história:
Primeiramente, no entanto, é necessário distinguir biografia de interesse ou
material biográfico. (…) Biografia eu hesitantemente defino como um relato
14 “An account of the life of a man from birth to death is what I call biography.”
34
autossuficiente do tipo de vida vivido por um personagem histórico que
também avalia o caráter, objetivos e as conquistas do sujeito. (STADTER,
2011: 529)15
A partir daí, tem-se que as verdadeiras biografias são em número bem mais
reduzido. Utilizando esse critério, alguns dos primeiros textos biográficos da Antiguidade
seriam os de Xenofonte (430-364 a.C.). Junto com os Diálogos, de Platão, que também
buscam retratar a vida de Sócrates, textos desse autor podem ser considerados a primeira
produção legitimamente biográfica da Antiguidade: Anabasis, tem um tom
autobiográfico, além de contar com as biografias de alguns combatentes, entre eles Ciro,
o Jovem, homônimo de Ciro, o Grande; deste último, Xenofonte escreveu também uma
biografia (Cyropaedia), de cunho mais filosófico, em que a vida do governante persa foi
relatada de maneira a apresentar as virtudes necessárias a outros homens que se pretendem
bons governantes. Foi o primeiro texto biográfico a conter uma clara finalidade
moralizante, e também o primeiro a retratar a vida de uma figura política de destaque.
Outro texto de natureza semelhante desse mesmo autor foi o encômio dedicado ao rei
espartano Agesilau.
Tais obras acabam por se tornar uma espécie de modelo para a biografia da
Antiguidade. Como afirma Stadter:
Em Xenofonte especialmente se vê os antecedentes da biografia como gênero:
tratamento (quando possível) da vida inteira do nascimento até a morte,
avaliação prática e moral do caráter e das conquistas e sua inter-relação,
atribuição do louvor e da culpa, uso da anedota ilustrativa, e uma tentativa de
constituir o retrato com detalhes verossímeis. (STADTER, 2011: 529)16
Após Xenofonte, houve um outro momento da produção biográfica grega que
influenciou fortemente os biógrafos da posteridade: a escola dos peripatéticos, discípulos
15“First, however, it is necessary to distinguish biography from biographical interest or material.(…)
Biography I tentatively define as a self-sufficient account of the kind of life led by a historical person that
also evaluates the subject’s character, goals and achievements.” 16 “In Xenophon especially one sees the antecedents of biography as a genre: treatment (when possible) of
the whole life from birth to death, practical and moral evaluation of character and achievements and their
interrelation, assignment of praise and blame, use of illustrative anecdote, and a willingness to flesh out the
portrait with verisimilar detail.”
35
de Aristóteles, no século IV a.C., cunharam uma maneira particular de fazer biografias,
partindo do princípio de que o caráter das pessoas (ethos), imutável desde o nascimento,
revelava-se aos poucos através de suas ações (práxeis) ao longo da vida. Esse caráter
poderia ser revelado pelo biógrafo através de uma seleção de anedotas referentes à vida
do biografado. Embora não nos tenha restado qualquer das biografias desse grupo, pode-
se entrever o espírito de sua proposta na obra de Teofrasto, o sucessor de Aristóteles no
Liceu, que escreveu uma obra chamada Characteres, descrevendo uma série de
personalidades da sociedade e os traços típicos que revelavam seu caráter.
Houve também uma outra “escola” de biografia formada entre os eruditos de
Alexandria. Eles buscavam fazer biografias resumidas dos poetas cuja obra queriam
reeditar, à guisa de introdução aos seus textos. O caráter resumido e erudito desses textos
demonstra que não tinham pretensões literárias, ao contrário das biografias que se estuda
aqui. Talvez por isso mesmo, muito pouco desses textos chegou a ser conservado –
embora tenham provavelmente inspirado outras biografias de poetas com pretensões
literárias mais ambiciosas.
Além disso, um terceiro tipo de biografia que precede tanto alexandrinos quanto
peripatéticos é o costume, partilhado por gregos e romanos, de produzir textos
encomiásticos em honra de seus parentes falecidos. Nesse tipo de produção, retomam-se
os principais momentos da vida do indivíduo, chegando obviamente até o momento de
sua morte, mas com a distinta intenção laudatória que compromete sua imparcialidade. É
também nesse grupo que se encaixaria o trabalho de Xenofonte.
Esses seriam os três principais tipos de produção biográfica da Antiguidade
Clássica até a época da República romana, seguindo a divisão feita por Ronald Mellor no
capítulo dedicado à biografia romana em The Roman Historians. Ainda segundo o autor,
em se tratando de textos biográficos, o período da República romana não oferece
propriamente qualquer biografia à posteridade, muito embora alguns textos de oradores
como Cícero possam ser considerados algumas das primeiras formas biográficas em
Roma que chegaram até nós:
36
Já que não sobrevive nenhuma biografia propriamente dita da República
romana, as longas passagens nos discursos de Cícero que descrevem os
antecedentes de seu cliente podem ser encaradas como os escritos biográficos
romanos mais antigos a sobreviver. (MELLOR, 1999: 136)17
Esses textos servem de modelo às biografias posteriores. Para não demorar mais
do que o necessário explicando que tipos seriam esses, vai-se usar aqui a útil divisão feita
por Stadter, feita com base no objeto e no propósito dos textos biográficos. Assim, tem-
se os seguintes tipos de biografia: a biografia filosófica (philosophical biography), que
se dedica a biografar filósofos, muitas vezes mantendo o foco do texto nos ensinamentos
deles; a biografia literária (literary biography), que, da mesma forma, se prestava a
biografar poetas e oradores; as biografias escolares e de referência (school and
reference biographies), de caráter enciclopédico; encômios (encomia); vidas dos recém-
falecidos (lives of those recently departed); autobiografias, comentários e memórias
(autobiographies, commentaries and memoirs); e, finalmente, a biografia
histórica/política (historical/political biography).
É o último tipo de biografia que mais interessa a este capítulo, justamente pela
facilidade com que ele se confunde com o gênero historiográfico. Também encontramos
nesse grupo os principais autores de biografia da Roma Antiga. É nele que vamos nos
concentrar para analisar as fronteiras entre esses gêneros, fazendo um recorte que inclua
os principais autores de biografia da literatura latina.
Retomando o ponto em que Mellor afirma não ter restado nenhuma biografia
romana do período republicano, basta seguirmos um pouco adiante na história de Roma
para encontrarmos um contemporâneo de Cícero que se dedicou a escrita biográfica:
Cornélio Nepos (100-24 a.C.). Conhecido pela dedicatória que Catulo faz a ele em seu
poema I, Cornélio foi um autor que se dedicou a escrever historiografia e também
biografou diversas personalidades romanas, gregas, persas e até mesmo cartagineses.
Tinha uma preocupação particular de “apresentar” o mundo civilizado, principalmente o
grego, ao povo romano que não falava nada além do latim. Por isso, ele acabou
escrevendo centenas de pequenas biografias que serviam como uma referência rápida a
17 “Since no proper biographies survive from the Roman Republic, the long passages in Cicero’s speeches
that describe his client’s background may be regarded as the earliest extant Roman biographical writing.”
37
personagens importantes da História. O conjunto dessas biografias (mais de trezentas ao
todo, embora muito poucas tenham sido conservadas) foi chamada De viris illustribus.
Ao longo das biografias de Nepos que chegaram até nós, observa-se claramente a
preocupação do autor em educar o povo romano a respeito dos vultos históricos de maior
importância. Numa delas em particular, há também a preocupação de que seu trabalho
não se confunda com o do historiador:
Pelopidas Thebanus, magis historicis quam uulgo notus. Cuius de uirtutibus
dubito quem ad modum exponam, quod uereor, si res explicare incipiam, ne
non uitam eius enarrare, sed historiam uidear scribere, sin tantummodo
summas attigero, ne rudibus Graecarum litterarum minus dilucide appareat,
quantus fuerit ille uir. (Nep. Pel, 1, 1)18
Pode-se perceber que Nepos reconhece que uma biografia deveria conter os fatos
mais relevantes da vida do personagem (muito embora, no caso da biografia de Pelópidas,
isso pudesse resultar na dificuldade por parte dos leitores que não conhecem a cultura
grega em enxergar a grandeza daquele personagem). O que, na verdade, não vai muito
além daquilo que já havia sido visto até então. O valor da reflexão de Nepos para este
estudo reside principalmente no fato de encontrar-se no trecho citado uma menção clara
do termo latino utilizado para descrever a biografia, Vita, além da preocupação de manter
essa mesma “vida” num campo de produção textual diferente daquele ao qual pertencem
os textos dos historiadores (textos aos quais ele se refere usando o termo historia). É
importante lembrar que Nepos foi também um historiador, além de ter feito a biografia
de outros historiadores, o que faz com que ele tenha tido a necessidade de mostrar aos
seus leitores as diferenças entre essas duas maneiras de produzir textos.
Outro autor que também se dedicou tanto à historiografia quanto à biografia foi
Tácito (55-120 d.C.). Ele fez a biografia do próprio sogro, Agricola, na qual são narrados
muitos dos feitos militares do biografado. A diferença é que Tácito foi muito mais
18 “Pelópidas, o Tebano, é mais conhecido pelos historiadores que pelo vulgo. Hesito quanto ao modo como
devo apresentar suas virtudes, pois temo que se eu começar a contar os fatos, não estaria narrando sua vida,
mas sim pareceria antes estar escrevendo história; se pelo contrário eu tocar somente os fatos mais
importantes, temo que seja menos claro aos que não conhecem as letras gregas o quão grande foi aquele
homem.”.
38
historiador do que biógrafo: ele narra fatos que muitas vezes se encaixariam melhor numa
obra historiográfica, por exemplo, ao fazer a descrição da Bretanha do ponto de vista
geográfico, além de descrever os combates entre as tropas de Agrícola e Calgacus (líder
militar da Bretanha) com tal riqueza de detalhes que chega até mesmo a reproduzir os
discursos de ambos aos seus homens. Assim, essa que foi uma das primeiras obras de um
futuro historiador, já dá sinais de como suas obras historiográficas serão estruturadas.
Por fim, o próprio Suetônio precisa ser devidamente analisado sob a luz da
comparação entre os dois gêneros. Não que ele tenha sido um historiador, apesar de sua
obra ter abarcado os mais diversos assuntos da antiguidade.19 Mas acontece que ele foi
contemporâneo de Tácito, e os dois autores publicaram suas obras em períodos de tempo
muito próximos. Quando da publicação dos primeiros livros do De Vita Caesarum (as
doze uitae foram publicadas em oito volumes, com os seis primeiros contendo apenas
uma uita cada, e os dois últimos contendo três uitae), Tácito já havia publicado suas
Historiae, que tratavam do período entre os governos de Nero e Domiciano e já se
preparava para publicar uma obra que trataria do período imediatamente anterior, o dos
júlio-claudianos. Assim, muito embora as duas primeiras biografias de Suetônio, a de
César e a de Augusto, não encontrassem correspondência imediata na obra de Tácito -
que viria a iniciar seus Annales pelo governo de Tibério - Suetônio sabia que suas uitae
corriam um grande risco de se tornarem redundantes se comparadas aos relatos de Tácito.
Sendo ele um erudito e não um historiador, e “competindo” com as obras de um
colega que foi sem dúvida o maior historiador do período, o estilo e a estrutura da obra
de Suetônio tiveram de se adaptar a essa realidade. Para começar, Suetônio fugiu do tipo
peripatético de escrita biográfica, que buscava se utilizar da vida do personagem
biografado para daí derivar lições de moral filosóficas, dando preferência ao estilo mais
enxuto e erudito das biografias alexandrinas (caminho inverso ao feito pelo Agricola, de
Tácito, que tinha inclusive um claro tom encomiástico). Nem por isso, no entanto, o seu
19 Segundo Mellor: “Suetônio escreveu uma grande variedade de livros sobre assuntos linguísticos, de
antiquário e biográficos, embora em sua maioria apenas os títulos tenham sobrevivido. Ele foi obviamente
um erudito de grande alcance, uma vez que escreveu livros sobre tópicos tão diversos quanto o ano romano,
o calendário, os nomes dos mares e as vidas de prostitutas famosas.” (Suetonius wrote a wide range of
books on linguistic, antiquarian, and biographical subjects, though for most only the titles survive. He was
obviously a scholar of great range, since he wrote books on such diverse topics as the Roman year, the
calendar, the names of seas, and the lives of famous prostitutes.) (MELLOR, 1999: 147)
39
trabalho deixou de ter pretensões literárias: ele soube se utilizar do esquema de escrita
biográfica dos peripatéticos ao trabalhar com uma série de narrativas anedóticas sobre
seus biografados, a partir das quais se poderia chegar a uma conclusão sobre o caráter do
mesmo. A diferença entre essa prática e aquela presente nos trabalhos dos peripatéticos é
que Suetônio não tinha – ou aparentava não ter – a intenção de apresentar suas próprias
conclusões sobre a conduta dos imperadores. Como um verdadeiro erudito, ele
apresentava os fatos e deixava que o leitor tirasse suas próprias conclusões.
O que não o impede, é claro, de oferecer ao leitor narrativas anedóticas que o
deixem mais propenso a julgar cada imperador de um modo particular. Quem quer que
tenha conhecido Calígula exclusivamente através de Suetônio não terá dúvidas de que se
tratava de um homem cruel, egoísta, covarde, pervertido e provavelmente insano. A
realidade, no entanto, pode ser diferente, e muito embora Suetônio possa ser desculpado
por seus relatos difamatórios por conta do período de tempo que separa sua escrita do
governo de Calígula, algumas afirmações que o autor faz não deveriam ser levadas em
consideração por alguém que se considera um erudito e tenta escrever de maneira
imparcial. Por exemplo, a respeito das práticas sexuais incestuosas de Calígula,
Winterling afirma que:
A afirmação de que o imperador cometeu incesto com suas três irmãs é uma
informação imprecisa que vem à tona pela primeira vez em Suetônio. Sua
falsidade é facilmente comprovada: os dois contemporâneos do imperador,
Sêneca e Fílon, que eram familiares aos círculos aristocráticos em Roma e bem
informados, acumulam injúrias contra o imperador e dificilmente falhariam em
mencionar tal acusação se ela estivesse em circulação naquele tempo. Mas
claramente eles não sabiam nada a respeito. (WINTERLING, 2011: 3)20
Assim, Suetônio assume uma postura particular em sua escrita que o coloca ao
mesmo tempo distante das produções biográficas vistas até então em Roma e em contraste
com aquilo que Tácito vinha escrevendo sobre os mesmos períodos históricos em que ele
20 “The claim that the emperor committed incest with his three sisters is misinformation that surfaces for
the first time in Suetonius. Its hollowness is easily proved: The emperor’s two contemporaries Seneca and
Philo, who were both familiar with aristocratic circles in Rome and well informed, heap invective on the
emperor and would hardly have failed to mention such a charge had it been in circulation then. But clearly
they know nothing about it.”
40
se concentrou. Para melhor ilustrar como isso se deu, observemos a separação feita por
Hadrill entre as Vitae de Suetônio e a historiografia.
Hadrill separa o De Vita Caesarum das obras historiográficas com base em três
critérios: estrutura, objeto de estudo e estilo. No que diz respeito à estrutura, ele afirma
primeiramente que a historiografia em Roma tinha uma estrutura cronológica e narrativa.
Cronológica, por influência dos Anais Pontificais, em que os sacerdotes registravam as
atividades diárias da cidade nas mais diversas esferas do governo e da religião. Sobre esse
costume de registro dos fatos se acrescentou a característica narrativa, derivada dos
grandes clássicos da literatura grega – as epopeias homéricas. Quanto às biografias, de
maneira geral, elas mantêm esses dois aspectos da estrutura historiográfica, com a
diferença de que sua cronologia não é derivada da mera passagem dos anos, mas sim
demarcada pelas fases da vida do biografado: sua família, local de nascimento, a narrativa
de sua morte, etc. Essa cronologia também é refinada pela vida social do biografado, e
grande ênfase é dada aos cargos políticos ocupados por ele.
Nas uitae de Suetônio, a diferença se faz ainda maior: ele busca renunciar à
narrativa. Obviamente seria impossível renunciar a ela por completo sem transformar seu
trabalho numa estranha versão dos Anais Pontificais, mas o processo de tessitura do texto
das uitae de Suetônio se dá, segundo Hadrill, por uma análise de um determinado fato
relevante, do qual são retirados todos os detalhes não essenciais (narrativos, em sua
maioria), e que depois é reconstituído a partir dos detalhes mais relevantes. É assim que,
na biografia de Júlio César, ao tratar das conquistas militares do imperador, ele não vai
fazer uma narrativa das batalhas pelas quais César teve de passar durante o período em
que esteve na Gália, mas vai simplesmente resumir todos os seus sucessos e revezes
durante as guerras gaulesas num único parágrafo. O objetivo de Suetônio é evitar fazer
uso de uma narrativa que se encontraria presente também numa obra historiográfica. Em
lugar de narrar as batalhas, portanto, ele se debruça sobre a personalidade de César
enquanto general e líder. As conquistas de César, além disso, são de conhecimento
comum, tendo restado inclusive a narrativa do próprio general que expõe esse assunto.
Seria desnecessário se demorar na narrativa de um material tão fartamente documentado.
No entanto, através desse processo de análise e eliminação dos detalhes ele
também acaba por eliminar alguns pontos do contexto que poderiam levar o leitor a uma
41
interpretação diferente. Por exemplo, a famosa passagem em que Calígula teria dito que
pretendia tornar cônsul seu cavalo favorito, Incitato, poderia ganhar uma interpretação
bem diferente daquela que Suetônio oferece de maneira pretensamente imparcial, caso
outros detalhes do contexto político de seu governo tivessem sido incluídos junto à
anedota. Por exemplo, o fato de Calígula estar assumindo um forte posicionamento de
oposição aos aristocratas de sua corte. Segundo Winterling:
Não há como saber se todos em Roma entenderam essa piada. Nem podemos
dizer se Suetônio a entendeu posteriormente ou – o que parece mais provável
– falhou em entendê-la de propósito, já que faz uso dela para apresentar o
imperador como insano. (...) Chegar ao consulado permanecia o objetivo mais
importante da carreira de um aristocrata. Equipar o cavalo do imperador com
uma propriedade suntuosa e destiná-lo ao consulado satirizava o objetivo
principal das vidas dos aristocratas e o deixava exposto ao ridículo. Calígula
colocou seu cavalo no mesmo nível dos membros de mais alto escalão da
sociedade – e por implicação igualou-os a um cavalo. (WINTERLING, 2011:
103)21
Fora de seu contexto, o fato apresentado ganha uma interpretação bastante diversa.
No entanto, não há como dizer que Suetônio faltou com a verdade ao narrar essa anedota.
Ele apenas omitiu detalhes importantes, situando a anedota do cavalo em meio a outras
tantas que procuravam pintar uma imagem de Calígula como um imperador
completamente louco: o episódio do cavalo fecha o capítulo LV, em que Suetônio fala de
como Calígula “Quorum uero studio teneretur, omnibus ad insaniam fauit.” (Cal, LV,
1)22. Logo, o leitor será induzido a acreditar que Calígula fez o que fez por ser louco, e
não como provocação a seus adversários políticos.
Quanto ao objeto de estudo, Hadrill reconhece que a historiografia clássica tem
como objeto a pólis, os conflitos internos e externos que lhe dizem respeito (no campo
21 “There is no way to know whether everyone in Rome got this joke. Nor can we tell whether Suetonius
understood it later or – as seems more likely – failed to understand it on purpose, since he makes use of it
to present the emperor as insane. (…) Achieving the consulship remained the most important goal of an
aristocrat’s career. To equip the emperor’s horse with a sumptuous household and to destine it for the
consulship satirized the main aim of aristocrat’s lives and laid it open to ridicule. Caligula placed his horse
on the same level as the highest-ranking members of society – and by implication equated them with a
horse.”
22 “Cuidava daqueles que tinha em grande estima até o ponto da loucura.”
42
militar) e a vida política de seus cidadãos. Já a biografia teria como objeto a vida de um
único homem, sua personalidade e suas conquistas.
Já as uitae de Suetônio fazem um distanciamento mais radical do objeto de estudo
da historiografia. Segundo Hadrill, Suetônio consegue atingir esse distanciamento de
maneira negativa e de maneira positiva: negativamente ao reduzir ao mínimo tudo o que
diz respeito à guerra e à política. Novamente, seria impossível abrir mão por completo
desses elementos, mas Suetônio tenta apresentar apenas aquilo que é mais essencial a
essas passagens e, como já se viu, eliminando sempre que possível a narrativa
historiográfica – mesmo quando se vê forçado a narrar uma ação militar específica, ele
não narra as batalhas em si, mas somente aquilo que é essencial, via de regra uma anedota,
para melhor traçar a personalidade do biografado; positivamente, ele procura se
concentrar naquilo que não é histórico – a vida privada do imperador é seu foco principal,
e mesmo quando abordar a vida pessoal é impossível sem falar também em política, ele
se mantém no campo das relações pessoais. Assim, as relações presentes na família do
imperador, que obviamente influenciam não só o governo presente, mas também definem
o que será feito do governo futuro, são tratadas como meras relações interpessoais. As
grandes maquinações políticas que tinham como objetivo destronar o imperador não
passam de desentendimentos entre familiares. Quanto ao trabalho do imperador em si,
por evitar mostrar os trabalhos mais “históricos” dos imperadores, como grandes
conquistas militares e políticas, ele prefere oferecer ao leitor uma visão do imperador em
seu dia-a-dia, o que é um ponto-de-vista muito interessante para os historiadores atuais,
mas que seria desprezado pelos historiadores clássicos como algo indigno da
historiografia.
É por isso que na vida de Calígula se encontram passagens bastante demoradas
que tratam da maneira como o imperador exerceu sua prodigalidade, oferecendo presentes
em dinheiro ao povo, grandes banquetes aos senadores, organizando diversos jogos, etc.
Suetônio chega até mesmo a falar das obras públicas que Calígula planejou, mas não
conseguiu realizar, como sua intenção de cortar o istmo da província da Acaia (Grécia),
que unia a Grécia continental à Península do Peloponeso, obra que facilitaria a passagem
de navios mercantes na região.
43
Por fim, quanto ao estilo, Hadrill aponta para a necessidade existente na
historiografia de adequar seu estilo de escrita à natureza de seu objeto de estudo. Uma
vez que se trata de assuntos muito elevados, os mais importantes fatos políticos e militares
de um determinado período, o estilo precisa ser elevado ao mesmo patamar. Tem-se,
portanto, uma escrita muito trabalhada, que muitas vezes abusa de recursos literários para
embelezar o texto.
As uitae de Suetônio definitivamente não fazem uso desses recursos. Seu estilo é
seco, sem adornos, típico de um erudito. Embora não se possa dizer que ele tenha escrito
sem pretensões literárias, há muito pouco de literário no seu estilo de escrita. Do uso de
anedotas, deriva em Suetônio uma clara separação por tópicos ao longo do texto (o que
Hadrill chama de rubricas), que mais se assemelha a um catálogo do que à narrativa das
ações de um personagem.
Há três práticas da escrita de Suetônio que tornam clara sua postura como autor
erudito, afastando-o do rebuscamento literário dos historiógrafos: primeiramente, o uso
de vocabulário técnico. É o que aparece, por exemplo, em muitas das vezes em que se faz
menção a um gladiador. Ao longo da vida de Calígula, Suetônio cita diversos tipos de
gladiadores, mas nem sempre se referindo a eles pelo vocábulo gladiator, e sim utilizando
o vocábulo que melhor os descreve de acordo com sua função. Assim, no capítulo XXXII
ele fala no Murmulio, que usava um elmo adornado com a figura de um peixe; no capítulo
XXXV aparecem menções ao Thraex, o gladiador trácio, conhecido por usar as armas
típicas daquele povo; ao Hoplomachus, um gladiador que, ao contrário do que era
costume, usava uma armadura completa; e ao Essedarius, que lutava sobre um carro.
Outra prática bastante comum no estilo de Suetônio é o uso de citações em grego.
Para além de palavras isoladas, ele reproduz muitas vezes a fala de um personagem em
momentos cruciais. A famosa fala de César, “Até tu, Brutus, meu filho?”, dirigida a seu
antigo aliado pouco antes de sua morte, teria sido proferida pelo moribundo em grego
("καὶ σύ, τέκνον”, no capítulo LXXXII). Calígula também parece ter uma tendência a
44
citar em grego textos clássicos, como quando faz uso do texto homérico para pôr fim a
uma discussão entre reis do oriente: “Εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς.”23.
Por fim, Suetônio também faz citações completas de documentos, fato que deriva
de sua posição particular na administração imperial durante os governos de Trajano e de
Adriano, e que lhe conferiu acesso a uma série de documentos que poucos privilegiados
poderiam consultar. Essa prática o torna uma fonte muito importante de documentação
histórica dos governos dos imperadores, em particular das correspondências de seus
biografados.
Tendo em vista o que foi apresentado até aqui, é possível observar que não há um
texto teórico oriundo da Antiguidade Clássica que reconheça a biografia como um gênero
literário. No entanto, não se deve considerar esse fato como uma afirmação de que a
biografia não é um gênero, já que os textos teóricos da Antiguidade, via de regra,
apresentavam classificações que não se destinavam a abarcar a totalidade das produções
literárias.
Ao observarmos as afirmações feitas por autores da literatura latina a respeito da
biografia e da historiografia, sua preocupação em se manter dentro de um esquema textual
específico que caracterizaria a biografia, fica claro que, se a biografia não foi reconhecida
formalmente como gênero literário, é ao menos uma categoria textual reconhecida pelos
escritores da época, que a opõem ao gênero historiográfico. Assumindo que esses
escritores não produziriam um texto sem antes refletir sobre o gênero a que ele pertence,
não seria absurdo considerar que a biografia foi, de fato, um gênero literário na
Antiguidade Clássica.
Por fim, mesmo que se possa questionar a última afirmação, fica óbvio que
Suetônio, ao escrever o De Vita Caesarum, estava consciente da necessidade de opor sua
obra aos textos historiográficos, e se dedicou a criar um contraste entre eles e suas
biografias de líderes romanos.
23 “Um só tenha o posto supremo; Um seja o rei.” (Cal. XXII). Calígula cita a Ilíada. A tradução é de
Carlos Alberto Nunes.
45
4 Texto e tradução
LIBER IIII
C. CALIGVLA
I. 1Germanicus, C. Caesaris pater, Drusi et
minoris Antoniae filius, a Tiberio patruo
adoptatus, quaesturam quinquennio ante
quam per leges liceret et post eam
consulatum statim gessit, missusque ad
exercitum in Germaniam, excesso Augusti
nuntiato, legiones uniuersas imperatorem
Tiberium pertinacissime recusantis et sibi
summam rei p. deferentis incertum pietate
an constantia maiore compescuit atque
hoste mox deuicto triumphauit. 2Consul
deinde iterum creatus ac prius quam
honorem iniret ad componendum Orientis
statum expulsus, cum Armeniae regem
deuicisset, Cappadociam in prouinciae
formam redegisset, annum agens aetatis
quartum et tricensimum diuturno morbo
Antiochiae obiit non sine ueneni
suspicione. 3Nam praeter liuores, qui toto
corpo erant, et spumas, quae per os
fluebant, cremati quoque cor inter ossa
incorruptum repertum est: cuius ea natura
LIVRO IIII
C. CALÍGULA
I – 1Germânico, pai de Calígula, filho de
Druso e de Antônia, a jovem, adotado pelo
tio paterno Tibério, assumiu o cargo de
questor cinco anos antes do que era
permitido por lei e imediatamente depois
o consuladoI. Foi enviado ao exército da
Germânia e, anunciada a morte de
Augusto, conteve todas as legiões que se
voltavam pertinazmente contra o
imperador Tibério e ofereciam a ele
mesmo o poder supremo, não se sabe se
por maior piedade ou firmeza de caráterII;
pouco depois de derrotar o inimigo,
recebeu o triunfo. 2Foi feito cônsul depois,
pela segunda vez, e antes de receber o
cargo foi enviado de Roma com a missão
de pacificar o Oriente. Depois de derrotar
completamente o rei da Armênia,
submeteu a Capadócia como província e,
contando trinta e quatro anos de idade,
morreu na Antioquia de uma doença de
longa duração, não sem suspeita de
envenenamento. 3Pois, além das manchas,
que cobriam todo o corpo, e da espuma
I O trecho inicial (os primeiros sete capítulos) da vida de Calígula funciona, na verdade, como uma pequena
biografia de seu pai, Germânico (15 a.C. – 19 d.C.). II Os termos usados nessa passagem para descrever as virtudes de Germânico são pietas e constantia. Pode-
se traçar aqui um paralelo entre a piedade de Germânico em relação a seu pai adotivo Tibério e o futuro
comportamento de Calígula em relação à mesma figura (Calígula admite ter pensado em matar Tibério).
46
existimatur, ut tinctum, ueneno igne
confici nequeat.
que lhe saía da boca, também foi
encontrado intacto entre os seus ossos o
coração do cremado: órgão que se
considera de natureza tal que, se repleto de
veneno, não pode ser destruído pelo fogo.
II. Obiit autem, ut opinio fuit, fraude
Tiberi, ministerio et opera CN. Pisonis,
qui sub idem tempus Syriae praepositus,
nec dissimulans offendendum sibi aut
patrem aut filium, quasi plane ita necesse
esset, etiam aegrum Germanicum
grauissimis uerborum ac rerum
acerbitatibus nullo adhibito modo adfecit;
propter quae, ut Romam rediit, paene
discerptus a populo, a senatu capitis
damnatus est.
II – Morreu, porém, como se acreditou,
por crime de Tibério, por trabalho e obra
de Cneu Pisão, que naquele mesmo tempo
comandava a Síria, e não escondendo que
ele tinha quase a necessidade de ofender
ou o pai ou o filho, indispôs o doente
Germânico com gravíssimas ofensas de
palavras e de gestos, sem qualquer
mesuraIII; razão pela qual, retornando a
Roma, tendo sido quase despedaçado pelo
povo, foi condenado à morte pelo Senado.
III. 1Omnes Germanico corporis animique
uirtutes, et quantas nemini cuiquam,
contigisse satis constat: formam et
fortitudinem egregiam, ingenium in
utroque eloquentiae doctrinaeque genere
praecellens, beniuolentiam singularem
conciliandaeque hominum gratoae ac
promerendi amoris mirum et efficax
studium. 2Formae minus congruebat
III – 1Consta que Germânico tinha todas as
virtudes do corpo e do espírito, e ninguém
as tinha em tão grande nívelIV: aparência e
força notáveis, talento extraordinário em
ambos os tipos de eloquência e
aprendizado, singular benevolência, e um
admirável e poderoso esforço de granjear
as boas graças dos homens e obter sua
afeiçãoV. 2As pernas magras não se
III Tácito acrescenta a isso ainda o uso de imprecações místicas contra Germânico (Tac. Ann. II.69.5). IV Como se pode notar, essa pequena biografia possui um acentuado caráter encomiástico. V Essas são as principais virtudes de germânico: forma (sua beleza física), fortitudo (sua robustez, uma
força que pode ser entendida no sentido físico e no moral), eloquentia (a eloquência, facilidade de
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gracilitas crurum, sed ea quoque paulatim
repleta assidua equi uectatione post
cibum. 3Hostem comminus saepe
percussit. 4Orauit causas etiam
triumphalis; atque inter cetera studiorum
monimenta reliquit et comoedias Graecas.
5Domi forisque ciuilis, libera ac foederata
oppida sine lictoribus adibat. Sicubi
clarorum uirorum sepulcra cognoscerent,
inferias manibus dabat. 6Caesorum clade
Variana ueteres ac dispersas reliquas uno
tumulo humaturus, colligere sua manu et
comportare primus adgressus est.
7Obtrectatoribus etiam, qualescumque et
quantacumque de causa nanctus esset,
lenis adeo et innoxius, ut Pisoni decreta
sua rescindenti, clientelas diuexanti non
prius suscensere in animum induxerit,
quam ueneficiis quoque et deuotionibus
impugnari se comperisset; ac ne tunc
quidem ultra progressus, quam ut
amicitiam ei more maiorum renuntiaret
mandaretque domesticis ultionem, si quid
sibi accideret.
harmonizavam com a aparência, mas ele
conseguiu repará-las gradualmente
montando a cavalo com frequência após as
refeições. 3Ele frequentemente matava o
inimigo em combate corpo-a-corpo.
4Defendia causas mesmo depois de ter
recebido o triunfo. E, entre outras
lembranças de seus estudos, deixou
também comédias gregas. 5Modesto
dentro e fora de casa, visitava as cidades
livres e as aliadas sem ser precedido por
litores. Se, em algum lugar, reconhecesse
os túmulos de homens ilustres, fazia
sacrifícios aos Manes. 6Quando estava
para enterrar em um único túmulo as
relíquias antigas e dispersas dos que
caíram durante a destruição de Varo, foi o
primeiro a tentar recolhê-los e reuni-los
com suas próprias mãos. 7Até mesmo com
seus inimigos, quem quer que fossem e
por grande que fosse o motivo de serem
seus desafetos, a tal ponto era brando e
inofensivo, que, enquanto Pisão anulava
seus decretos e maltratava sua clientela,
não conseguiu se convencer a se indispor
com ele antes que se descobrisse atacado
com venenos e maldições. E mesmo então
não foi além de renunciar a sua amizade
de acordo com os costumes dos
antepassados e de recomendar a vingança
expressar-se) e o que se costuma entender por civilitas (sua sociabilidade, cortesia e modéstia). Tudo isso
faz contraste com os defeitos de Calígula, com a possível exceção da eloquência.
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aos de sua casa, na eventualidade de algo
lhe acontecer.
IV. Quarum uirtutum fructum uberrimum
tulit, sic probatus et dilectus a suis, ut
Augustus (omito enim necessitudines
reliquas) diu cunctatus and sibi
successorem destinaret, adoptandum
Tiberio dederit; sic uulgo fauorabilis, ut
plurimi tradant, quotiens aliquo adueniret
uel sicunde discederet, prae turba
occurentium prosequentiumue
nonnumquam eum discrimen uitae adisse,
e Germania uero post compressam
seditionem reuertenti praetorianas
cohortes uniuersas prodisse obuiam,
quamuis pronuntiatum esset, ut duae
tantum modo exirent, populi autem
Romani sexum, aetatem, ordinem omnem
usque ad uicesimum lapidem effudisse se.
IV – Dessas virtudes ele colheu o fruto
mais fértil, pois era tão amado e estimado
pelos seus, que Augusto – omito, pois, os
demais parentes -, tendo hesitado por
longo tempo em fazê-lo seu sucessor, fez
com que fosse adotado por TibérioVI. Era
tão querido pelo povo que, como muitos
registram, todas as vezes que chegava a
algum lugar ou saía de lá, frequentemente
corria perigo de vida por conta da
multidão dos que iam ao encontro dele ou
dos que o seguiam. Enquanto voltava da
Germânia depois de ter contido a revolta,
todas as coortes pretorianas foram
encontrá-lo no caminho, ainda que se
tivesse decidido que apenas duas
poderiam ir, e os cidadãos romanos de
todas idades, classes e sexos foram até a
vigésima pedra miliar para recebê-lo.
V. 1Tamen longe maiora et firmiora de eo
iudicia in morte ac post mortem extiterunt.
2Quo defunctus est die, lapidata sunt
templa, subuersae deum arae, Lares a
V – 1E, no entanto, demonstraram-se ainda
maiores e mais seguros testemunhos de
estima por ele em sua morte e depois de
sua morte.VII 2No dia em que morreu, os
VI Os historiadores afirmam que Augusto não nutria grande estima por Tibério (GRIMAL, 2011, p.132). VII Novamente, cria-se um contraste entre a atitude do povo quando da morte de Germânico e sua aparente
indiferença quando da morte de Calígula (segundo Suetônio, o povo achou que Calígula estava simulando
a própria morte).
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quibusdam familiares in publicum abiecti,
partus coniugum expositi. 3Quin et
barbaros ferunt, quibus intestinum
quibusque aduersus nos bellum esset,
uelut in domestico comunique maerore
consensisse ad indutias; regulos quosdam
barbam possuísse et uxorum capita rasisse
ad indicium maximi luctus; regum etiam
regem et exercitatione uenandi et conuictu
megistanum abstinuisse, quod apud
Parthos iustiti instar est.
templos foram apedrejados, os altares dos
deuses foram derrubados, alguns lançaram
para fora de suas casas os deuses lares, e
expuseram os recém-nascidos.VIII 3E
dizem que até mesmo os povos bárbaros,
estando em guerra fosse conosco, fosse
entre si, como se estivessem sofrendo uma
tristeza doméstica e comum, fizeram uma
trégua. Alguns jovens reis tiraram a barba
e fizeram raspar as cabeças de suas
esposas em sinal de máximo luto. E até
mesmo o Rei dos ReisIX se absteve das
caças e dos banquetes, o que entre os
Partos é o equivalente ao luto público.
VI. 1Romae quidem, cum ad primam
famam ualitudinis attonita et maesta
ciuitas sequentis nuntios opperiretur, et
repente iam uesperi incertis auctoribus
conualuisse tandem percrebruisset, passim
cum luminibus et uictimis in Capitolium
concursum est ac paene reuolsae templi
fores, ne quid gestientis uota reddere
moraretur, expergefactus e somno
Tiberius gratulantium uocibus atque
undique concinentium:
VI – 1Em Roma, pois, quando a cidade
triste e consternada pelos primeiros boatos
de sua saúde aguardava as notícias
seguintes, e de repente, à tarde, se
espalhou o boato, de fonte duvidosa, de
que ele havia enfim se recuperado, o povo,
vindo de todas as direções, correu ao
Capitólio com vítimas e tochas, e quase
destruíram as portas do templo para que
nada impedisse os impacientes de
pagarem suas promessas. Tibério foi
despertado de seu sono pelas vozes dos
VIII Essa curiosa forma de protesto não era de todo incomum. Segundo VEYNE, 2009b: 23, quando da
morte de Agripina por Nero, um cidadão teria abandonado seu filho, pondo sobre ele um cartaz que dizia
“não te crio com medo de que mates tua mãe”. IX Título dado ao rei dos Partos, povo que habitava regiões do Oriente Médio que se estendiam pelos
territórios dos atuais Irã e Síria.
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Salua Roma, salua patria, saluus est
Germanicus.
2Et ut demum fato functum palam factum
est, non solaciis ullis, non edictis inhiberi
luctus publicus potuit durauitque etiam
per festos Decembris mensis dies. 3Auxit
gloriam desideriumque defuncti et
atrocitas insequentium temporum, cunctis
nec temere opinantibus reuerentia eius ac
metu repressam Tiberi saeuitiam, quae
mox eruperit.
que agradeciam e que cantavam por toda
parte:
‘Está salva Roma, está salva a pátria, pois
Germânico está salvo!’
2Mas, quando enfim se soube que ele
havia morrido, nenhum consolo, nenhum
édito pôde conter o luto público, que se
estendeu até mesmo pelos dias festivos de
dezembroX. 3A atrocidade dos tempos
seguintes aumentou a fama e a saudade do
falecido, pois todos acreditavam que a
crueldade de Tibério, que logo se mostrou,
estava sendo contida por medo e respeito
à sua figura.
VII. Habuit in matrimonio Agrippinam,
M. Agrippae it Iuliae filiam; ex ea nouem
liberos tulit: quorum duo infants adhuc
rapti, unus iam puerascens insigni
festiuitate, cuius effigiem habitu
Cupidinis in aede Capitolinae Veneris
Liuia dedicauit, Augustus in cubiculo suo
positam, quotiensque introieret,
exosculabatur; ceteri supérstites patri
fuerunt, tres sexus feminini, Agrippina
Drusilla Liuilla, continuo Trienio natae;
totidem mares, Nero et Drusus et C.
VII – Casou-se com Agripina, filha de M.
Agripa e Júlia, que lhe deu nove filhos;
dos quais dois morreram ainda crianças, e
um, conhecido por sua alegria, quando
estava se tornando rapaz, e cuja estátua
com trajes de cupido foi posta por Lívia no
templo de Vênus Capitolina, e Augusto
tinha outra em seu quarto, e sempre a
beijava ao entrar. Os demais viveram mais
que o pai, AgripinaXI, Drusila e Livila,
nascidas sucessivamente em três anos, e o
mesmo número de meninos, Nero, Druso
X As Saturnalia, festas em honra de Saturno, que se realizavam entre 17 e 23 de dezembro. XI A futura mãe do imperador Nero.
51
Caesar. Neronem et Drusum senatus
Tiberio criminante hostes iudicauit.
e C. César. O Senado julgou inimigos a
Nero e Druso, sob acusação de TibérioXII.
VIII. 1C. Caesar natus est pridie Kal. Sept.
patre suo et C. Fonteio Capitone coss. 2Vbi
natus sit, incertum diuersitas tradentium
facit. 3CN. Lentulus Gaetulicus Tiburi
genitum scribit, Plinius Secundus in
Treueris uico Ambitaruio supra
Confluentes; addit etiam pro argumento
aras ibi ostendi inscriptas << ob
Agrippinae puerperium>>. 4Versiculi
imperante mox eo diuulgati apud hibernas
legiones procreatum indicant:
In castris natus, patriis nutritus in armis,
Iam designate principis omen erat.
5Ego in actis Anti editum inuenio.
6Gaetulicum refellit Plinius quasi
mentitum per adulationem, ut ad laudes
iuuenis gloriosique principis aliquid etiam
ex urbe Herculi sacra sumeret, abusumque
audentius mendacio, quod ante annum
fere natus Germanico filius Tiburi fuerat,
appelatus et ipse C. Caesar, de cuius
amabili pueritia immaturoque obitu supra
VIIIXIII – 1Caio César nasceu na véspera
das calendas de setembroXIV, sob o
consulado de seu pai e de C. Fonteio
Capito. 2O lugar onde nasceu é incerto,
devido ao desacordo entre os que o
narram. 3Cn. Lêntulo GetúlicoXV escreve
que ele nasceu em TiburXVI; Plínio, o
Jovem, diz que ele nasceu em TréverisXVII,
no vilarejo de Ambitárvio, ao norte de
Coblença; e acrescenta como prova um
altar lá erigido com a inscrição “ao parto
de Agripina”. 4Os versos divulgados
pouco depois de ele se tornar Imperador
indicam que ele teria nascido nos
acampamentos de inverno das legiões:
‘Nascido nos acampamentos, nutrido
pelas armas do pai,
Já era o presságio de ser destinado ao
Império.’
XII O próprio Suetônio narra o fato com maiores detalhes na vida de Tibério (Suet. Tib. LIV). XIII Tem início a narrativa do nascimento e dos primeiros anos de vida de Calígula. É o começo de sua
biografia propriamente dita. XIV Em 31 de agosto do ano 12 d.C. XV Contemporâneo de Calígula, que foi executado por ordem do mesmo em 39 d.C. XVI Atual Tívoli, comuna italiana da região do Lácio. XVII Atual Trier, na Alemanha
52
diximus, 7Plinium arguit ratio temporum.
Nam qui res Augusti memoriae
mandarunt, Germanicum exacto consulatu
in Galliam missum consentiunt iam nato
Gaio. 8Nec Plini opinionem inscriptio arae
quicquam adiuuerit, cum Agrippina bis in
ea regione filias enixa sit, et qualiscumque
partus sine ullo sexus discrimine
puerperium uocetur, quod antiqui etiam
puellas pueras, sicut et pueros puellos
dictitarent. 9Extat et Augusti epistula, ante
paucos quam obiret menses ad
Agrippinam neptem ita scripta de Gaio
hoc (neque enim quisquam iam alius
infans nomine pari tunc supererat):
<<Puerum Gaium XV Kal. Iun., si dii
uolent, ut ducerent Talarius et Asillius,
heri cum iis constitui. Mitto praeterea cum
eo ex seruis meis medicum, quem scripsi
Germanico si uellet ut retineret. Valebis,
mea Agrippina, et dabis operam ut ualens
peruenias ad Germanicum tuum.>>
10Abunde parere arbitror non potuisse ibi
nasci Gaium, quo prope bimulus demum
perductus ab urbe sit. 11Versiculorum
quoque fidem eadem haec eleuant et eo
facilius, quod ii sine auctore sunt.
12Sequenda est igitur, quae sola [autor]
restat et publici instrumenti auctoritas,
praesertim cum Gaius Antium omnibus
5Eu mesmo encontrei nos Atos oficiais
que ele nasceu em ÂncioXVIII. 6Plínio
refuta Getúlico, como se ele houvesse
mentido com o intuito de bajular, para
acrescentar ao elogio de um príncipe
jovem e sedento de glória o fato de ter
nascido numa cidade consagrada a
Hércules, e mais audacioso foi no uso da
mentira porque quase um ano antes um
filho de Germânico havia nascido em
Tibur, também chamado Caio César de
cuja doce infância e morte prematura
falamos anteriormente. 7Contra Plínio
pesa o argumento do tempo. Pois aqueles
que ficaram encarregados das memórias
de Augusto consentem que Germânico foi
enviado à Gália depois de seu consulado,
quando Caio já havia nascido. 8E a
inscrição do altar em nada ajuda o
argumento de Plínio, pois Agripina teve
duas filhas naquela região, e o termo
“puerperium” designava qualquer tipo de
parto, sem distinção de sexo, já que os
antigos chamavam também às meninas de
“pueras”, assim como aos meninos de
“puellos”. 9Há também uma carta de
Augusto, escrita à sua neta Agripina
poucos meses antes da morte daquele,
sobre este Caio (pois naquele tempo não
lhe restava nenhuma outra criança com
XVIII Essa interessante passagem demonstra o espírito erudito de Suetônio. Ao longo deste capítulo, o maior
da biografia, ele irá apresentar uma série de provas documentais que contestam as afirmações de Tácito e
de Plínio.
53
semper locis atque secessibus praelatum
non aliter quam natale solum dilexerit
tradaturque etiam sedem ac domicilium
imperii taedio urbis transfere eo
destinasse.
este nome): “Combinei ontem com
Talário e Asílio que eles levarão o menino
Caio, se os deuses permitirem, no décimo
quinto dia antes das calendas de junho.
Envio com ele, além disso, um de meus
médicos, sobre o qual escrevi a Germânico
que pode ficar com ele, se quiser. Fica
bem, minha Agripina, e esforça-te por
chegar saudável ao teu Germânico”.
10Julgo ser bastante evidente que Caio não
poderia ter nascido lá, já que somente
quando tinha quase dois anos, foi levado
para lá de Roma. 11Estes mesmos
argumentos retiram também a
legitimidade dos versos com a mesma
facilidade, visto que os mesmos são
anônimos. 12Deve-se seguir, portanto, o
único testemunho que resta e a autoridade
do arquivo público, sobretudo porque
Caio sempre preferiu Âncio a todos os
lugares e refúgios, da mesma maneira
como se prefere o solo natal e diz-se que,
cansado de Roma, quis transferir para lá a
sede e a morada do Império.
54
IX. 1Caligulae cognomen castrense ioco
traxit, quia manipulario habitu inter
milites educabatur. 2Apud quos quantum
praeterea per hanc nutrimentorum
consuetudinem amore et gratia ualueri,
máxime cognitum est, cum post excessum
Augusti tumultuandis et in furorem usque
praecipites solus haud dubie ex conspectu
suo flexit. 3Non enim prius destiterunt,
quam ablegari eum ob seditionis
periculum et in proximam ciuitatem
demandari animadiuertissent; tunc
demum ad paenitentiam uersi reprenso ac
retento uehiculo inuidiam quae sibi fieret
deprecati sunt.
IX. 1O sobrenome “Calígula” se deve a
uma brincadeira dos soldados, pois ele foi
criado entre os militares vestindo um
uniforme de soldado rasoXIX. 2Essa criação
valeu-lhe em grande medida, entre outras
coisas, a dedicação e o amor junto às
tropas. Isso se viu sobretudo quando,
depois da morte de Augusto, por si só –
inegavelmente – abrandou os que haviam
sido levados à revolta somente com sua
aparição. 3Não deixaram a revolta, pois,
antes de perceberem que ele seria
afastado, por medo da sedição, e mandado
a uma cidade próxima; então, tomados de
remorso, tendo parado e detido seu carro,
imploraram que fossem poupados de tal
ofensa.
X. 1Comitatus est patrem et Syriaca
expeditione. 2Vnde reuersus primum in
matris, deinde ea relegata in Liuiae
Augustae proauiae suae contubernio
mansit; quam defunctam praetextatus
etiam tunc pro rostris laudauit. 3Transitque
ad Antoniam auiam et undeuicensimo
aetatis anno accitus Capreas a Tiberio uno
atque eodem die togam sumpsit
barbamque posuit, sine ullo honore qualis
X. 1Acompanhou também o pai na
expedição à Síria. Tendo voltado de lá,
permaneceu primeiro junto à mãe e,
depois que esta foi exilada, junto à bisavó,
Lívia Augusta. 2Da qual, depois de morta,
fez o elogio junto aos rostros,XX ainda
vestindo a toga pretextaXXI. 3Depois,
passou a morar com a avó Antônia e,
contando dezenove anos de idade, foi
trazido a CapriXXII por Tibério e no mesmo
XIX Caligula é o diminutivo de caliga, espécie de bota utilizada pelos soldados romanos. XX Tribuna utilizada pelos oradores romanos, ornada com os rostros dos navios dos povos conquistados. XXI Toga com uma faixa púrpura usada pelos patrícios até os 17 anos de idade, quando era substituída pela
toga viril. XXII Ilha do Golfo de Nápoles, no mar Tirreno.
55
contigerat tirocinio fratrum eius. 4Hic
omnibus insidiis temptatus elicientium
cogentiumque se ad querelas nullam
umquam occasionem dedit, perinde
obliterato suorum casu ac si nihil cuiquam
accidisset, quae uero ipse pateretur
incredibili dissimulatione transmittens
tantique in auum et qui iuxta erant
obsequii, ut non immerito sit dictum
<<nec seruum meliorem ullum nec
deteriorem dominum fuisse.>>
dia vestiu a toga e raspou a barba, sem
qualquer das honras que acompanharam o
noviciado de seus irmãosXXIII. 4Lá, mesmo
tentado pelas armadilhas dos que o
aliciavam, não reclamou em nenhuma
ocasião, completamente obliteradas as
lembranças das desgraças dos seus, como
se nada tivesse acontecido a ninguém.
Aquilo que em verdade sofria, o escondia
com incrível dissimulação, e tamanha era
a submissão ao avô e aos que o
acompanhavam, que não sem mérito se
disse “não haver melhor escravo nem pior
senhor”.
XI. 1Naturam tamen saeuam atque
probrosam ne tunc quidem inhibere
poterat, quin et animaduersionibus
poenisque ad supplicium datorum
cupidissime interesset et ganeas atque
adulteria capillamento celatus et ueste
longa noctibus obiret ac scaenicas saltandi
canendique artes studiosissime appeteret;
facile id sane Tiberio patiente, si per has
mansuefieri posset ferum eius ingenium.
2Quod sagacissimus senex ita prorsus
perspexerat, ut aliquotiens praedicaret
XI. 1Nem então conseguia esconder a
natureza cruel e ultrajanteXXIV. Pelo
contrário, assistia com grande interesse
aos castigos e penas dos condenados, à
noite, frequentava as orgias e aos
adultérios, disfarçado com uma peruca e
uma veste longa, e dedicava-se com
grande esforço às artes do teatro, da dança
e do canto. Tibério tolerava essas coisas
com facilidade, na esperança de que,
através delas, pudesse abrandar seu gênio
feroz. 2O sagaz ancião tão profundamente
XXIII Honras que levaram Tibério a acusá-los e o Senado a julgá-los como inimigos públicos, resultando em
suas mortes. XXIV Nessa passagem é possível notar claramente a postura de Suetônio com relação à questão da fixidez
do caráter. Seguindo a mesma crença dos biógrafos peripatéticos, ele demostra que Calígula foi cruel desde
sempre, muito embora seu grande talento para a dissimulação o tenha permitido assumir a aparência de um
governante justo e generoso no início de seu governo.
56
exitio suo omniumque Gaium uiuere et se
natricem [serpentis id genus] P.R.,
Phaethontem orbi terrarum educare.
o compreendera, que disse algumas vezes
que “Caio vivia para sua ruína e de todos”
e que ele criava “uma hidra para o povo
romano e um Faetonte para o mundoXXV”.
XII. 1Non ita multo post Iuniam
Claudillam M. Silani nobilissimi uiri F.
duxit uxorem. 2Deinde augur in locum
fratris sui Drusi destinatus, prius quam
inauguraretur ad pontificatum traductus
est insigni testimonio pietatis atque
indolis, cum deserta desolataque reliquis
subsidiis aula, Seianoque tunc suspecto
mox et opresso, ad spem successionis
paulatim admoueretur. 3Quam quo magis
confirmaret, amiss Iunia ex partu, Enniam
Naeuiam, Macronis uxorem, qui tum
praetorianis cohortibus praeerat,
sollicitauit ad stuprum polliticus et
matrimonium suum, si potitus imperio
fuisset; deque ea re et iure iurando et
chirographo cauit. 4Per hanc insinuatus
Macroni ueneno Tiberium adgressus est,
ut quidam opinantur, spirantique adhuc
XII.1Assim, não muito tempo depois
desposou Júnia Claudila, filha de M.
Silano, homem nobilíssimo. 2Então,
designado como áugure em lugar de seu
irmão Druso, antes de ocupar o cargo, foi
elevado por Tibério ao pontificado –
testemunho insigne de seu caráter e
piedade – que, como visse a corte deserta
e desprovida de seus apoios, e suspeitasse
de SejanoXXVI, que em breve seria
esmagado, aos poucos o guiava, na
esperança de que o sucedesse. 3Calígula,
para garantir isso, quando perdeu Júnia,
morta no parto, seduziuXXVII Ênia Névia,
esposa de MacrãoXXVIII, que então
comandava a guarda pretoriana e
prometeu casar-se com ela, se alcançasse
o Império, o que proveu com juramento e
com um documento escrito de seu próprio
XXV A Hidra de Lerna era uma serpente aquática muito perigosa que tinha a capacidade de se regenerar:
quando sua cabeça era cortada, duas outras cresciam. Já Faetonte, o filho de Apolo, convenceu o pai a lhe
deixar dirigir o carro que levava o sol através dos céus, mas perdeu o controle e teria incendiado a terra se
Zeus não o tivesse matado com um raio. É interessante que Calígula seja comparado a dois desastres ligados
a elementos opostos, o fogo e a água. XXVI Líder da guarda pretoriana e antigo aliado de Tibério, que permaneceu em Roma depois que o
imperador se mudou para Capri e viria a ser visto como um inimigo e executado, conforme Suetônio relata
aqui. XXVII No original, “sollicitauit ad stuprum”. É preciso lembrar que a palavra “stuprum” tinha um sentido
bastante lato, podendo ser usada para designar qualquer relação sexual ilícita, mesmo quando houvesse o
consentimento das partes envolvidas. XXVIII Sucessor de Sejano na guarda pretoriana.
57
detrahi anulum et, quoniam suspicionem
retinentis dabat, puluinum iussit inici
atque etiam fauces manu sua oppressit,
liberto, qui ob atrocitatem facinoris
exclamauerat, confestim in crucem acto.
5Nec abhorret a ueritate, cum sint quidam
autores ipsum postea etsi non de perfecto,
at certe de cogitato quondam parricidio
professum; gloriatum enim assidue in
commemoranda sua pietate, ad
ulciscendam necem Tiberii dormientis et
misericordia correptum abiecto ferro
recessisse; nec illum, quanquam sensisset,
aut inquirere quicquam aut exequi ausum.
punho. 4Através dela se insinuou a
Macrão, envenenou Tibério, segundo
pensam alguns, retirou-lhe o anel
enquanto este ainda respirava e, como
suspeitava de que Tibério o retinha,
mandou que lhe fosse jogada uma
almofada e com sua própria mão o
sufocou. Um liberto que havia protestado
contra a atrocidade do crime, foi
imediatamente mandado à cruz. 5E isto
não está longe da verdade, uma vez que há
autores que afirmam que ele comentou, se
não ter cometido, ao menos ter pensado
em cometer tal parricídio; vangloriava-se
frequentemente de que sua piedade
deveria ser lembrada, que tinha entrado no
quarto de Tibério, com um punhal,
enquanto este dormia, para vingar a morte
da mãe e dos irmãos, e que, tomado de
misericórdia, jogou a arma fora e saiu de
lá; e que nem Tibério, mesmo notando sua
presença, não ousou acusá-lo nem o
castigar.XXIX
XIII. 1Sic imperium adeptus, P.R., uel
dicam hominum genus, uoti compotem
fecit, exoptatissimus princeps maximae
parti prouincialium ac militum, quod
XIII. 1Tendo assim chegado ao poder,
alcançou o desejo do povo romano, ou
antes de toda a humanidade, sendo ele o
príncipe desejado não só pela maior parte
XXIX Perceba-se o contraste entre a piedade de Calígula e a de Germânico. Mesmo a narrativa do próprio
Calígula é dúbia: vingar os parentes mortos seria um ato de piedade, mas para isso era preciso matar Tibério.
O dilema lembra o de Orestes. Seja como for, segundo Suetônio, Calígula só usava esse fato para contar
vantagem.
58
infantem plerique cognouerant, sed et
uniuersae plebi urbanae ob memoriam
Germanici patris miserationemque prope
afflictae domus. 2Itaque ut a Miseno mouit
quamuis lugentis habitu et funus Tiberi
prosequens, tamen inter altaria et uictimas
ardentisque taedas densissimo et
laetissimo obuiorum agmine incessit,
super fausta nomina <<sidus>> et
<<pullum>> et <<pupum>> et
<<alumnum>> appelantium.
dos habitantes das províncias e dos
militares, dos quais muitos o tinham
conhecido ainda criança, mas também de
toda a plebe de Roma, por conta da
memória de seu pai, Germânico, e das
desgraças de sua casa, quase
despedaçadaXXX. 2Por isso, quando partiu
de Miseno, embora estivesse vestido de
luto e seguindo o funeral de Tibério, ainda
assim, entre altares, vítimas e tochas
ardentes, atravessou uma multidão densa e
felicíssima dos que vinham ao seu
encontro, e que o chamavam com nomes
auspiciosos, como ‘astro’, ‘menino’,
‘rapazinho’ e ‘pupilo’.
XIV. 1Ingressoque urbem, statim
consenso senatus et irrumpentis in curiam
turbae, inrita Tiberi uoluntate, qui
testamento alterum nepotem suum
praetextatum adhuc coheredem ei dederat,
ius arbitriumque omnium rerum illi
permissum est tanta publica laetitia, ut
tribos proximis mensibus ac ne totis
quidem supra centum sexaginta milia
uictimarum caesa tradantur. 2Cum deinde
paucos post dies in proximas Campaniae
insulas traiecisset, uota pro redita suscepta
XIV. 1Tendo chegado a Roma, o Senado,
em acordo com a turba que irrompia pela
cúria, e malgrado a vontade de Tibério –
que em seu testamento deixara como
coerdeiro outro neto seu, já vestido da
pretextaXXXI – deu a ele direito e governo
de todas as coisas. Tamanha foi a alegria
do povo, que nos três meses seguintes, e
um pouco mais, segundo consta, foram
sacrificadas mais de cento e sessenta mil
vítimas. 2Como, então, depois de poucos
dias, ele tivesse ido para as ilhas próximas
XXX Fica claro que o apreço do povo por Calígula se deve antes à sua família, seja pelo prestígio de
Germânico, seja pela tragédia famíliar, do que aos seus próprios méritos. XXXI Tiberius Gemellus (o “gemeozinho”) , filho de Druso, primo de Calígula que seria adotado por ele e
depois morto, sob acusações de planejar uma traição.
59
sunt, ne minimam quidem ocasionem
quoquam omittente in testificanda
sollicitudine et cura de incolumitate eius.
3Vt uero in aduersam ualitudinem incidit,
pernoctantibus cunctis circa Palarium, non
defuerunt qui depugnaturos se armis pro
salute aegri quique capirta sua titulo
proposito uouerent. 4Accessit ad
immensum ciuium amorem notabilis
etiam externorum fauor. 5Namque
Artabanus Parthorum rex, odium semper
contemptumque Tiberi prae se ferens,
amicitiam huius ultro petiit uenitque ad
colloquium legati consulares et
transgressus Euphraten aquilas et signa
Romana Caesarumque imagines adorauit.
à Campânia, fizeram-se votos pelo seu
retorno, sem que ninguém se omitisse,
nem pelo mais breve momento, de fazer
testemunhar sua solicitude e cuidado na
conservação de Calígula. 3E, na verdade,
quando ele adoeceu, todos passaram a
noite ao redor do Palatino, e não faltaram
os que prometeram pegar em armas ou que
ofereceram suas cabeças pela saúde do
doenteXXXII. 4Acresce ao imenso amor dos
cidadãos também o notável favor dos
estrangeiros. 5Pois Artabano, rei dos
Partos, que sempre declarou seu ódio e
desprezo por Tibério, solicitou a amizade
de Calígula, uma entrevista com o legado
consular e, tendo atravessado o Eufrates,
prestou culto às águias e estátuas romanas
e às imagens dos Césares.
XV. 1Incendebat et ipse studia hominum
omni genere popularitatis. Tiberio cum
plurimis lacrimis pro contione laudato
funeratoque amplissime confestim
Pandateriam et Pontias ad transferendos
matris fratrisque cineres festinauit,
tempestate turbida, quo magis pietas
emineret, adiitque uenerabundus ac per
semet in urnas condidit; 2nec minore
XV. 1Ele próprio inflamava a devoção dos
homens com todo tipo de medidas
popularesXXXIII. Tendo feito as últimas
homenagens a Tibério e o elogiado
grandemente com muitíssimas lágrimas
diante do povo reunido, logo em seguida,
para ressaltar sua piedade, apressou-se a ir
a Pandatária e a PônciaXXXIV para trazer,
em meio a uma tempestade, as cinzas da
XXXII Um exagero retórico que viria a se mostrar arriscado: Calígula aparentemente fazia honrar a palavra
daqueles que prometiam morrer em troca de sua saúde. XXXIII Neste ponto se inicia o relato dos primeiros atos de Calígula como imperador. A partir daqui, nota-se
que ele também era capaz de se fazer querido pelo povo sem depender em demasia da memória de seu pai. XXXIV Como afirma Lindsay (2002, p. 79) estas ilhas eram o destino costumeiro dos exilados.
60
scaena Ostiam praefixo in biremis puppe
uexillo et inde Romam Tiberi subuecto per
splendidissimum quemque equestris
ordinis médio ac frequenti die duobus
ferculis Mausoleo intulit inferiasque is
annua religione publice instituit, et eo
amplius matri circenses carpentumque
quo in pompa traduceretur. 3At in
memoriam patris Septembrem mensem
Germanicum appelauit. 4Post haec
Antoniae auiae, quidquid umquam Liuia
Augusta honorum cepisset, uno senatus
consulto congessit; patruum Claudium,
equitem R. ad id tempus, collegam sibi in
consulatu assumpsit; fratrem Tiberium die
uirilis togae adoptauit appelauitque
principem iuuentutis. 5De sororibus auctor
fuit, ut omnibus sacramentis
adiceretur:<<Neque me liberosque meos
cariores habebo quam Gaium et [h] ab eo
sorores eius>>; item relationibus
consulum:<<Quod bonum felixque sit. C.
Caesari sororibusque eius.>> 6Pari
popularitate damnatos relegatosque
restituit; criminum, si quae residua ex
priore tempore manebant, omnium
gratiam fecit; commentarios ad matris
fratrumque suorum causas pertinentes ne
cui postmodum delatori aut testii maneret
mãe e do irmão, chegando até elas
respeitosamente e depositando-as em
urnas ele mesmo. 2E não sem menor
pompa as transportou para Óstia, numa
birreme com um estandarte à popa e de lá
para Roma, através do Tibre, e as fez levar
ao MausoléuXXXV, em duas liteiras, em
pleno dia e diante de muitos, determinou
que fossem feitos sacrifícios públicos a
eles todos os anos e além disso jogos em
homenagem à mãe, aos quais sua imagem
seria levada num carro, com toda a pompa.
3E em memória do pai, deu ao mês de
Setembro o nome de Germânico. 4Depois
disso, concedeu a sua avó Antônia, através
de um decreto do Senado, todas as honras
que haviam sido concedidas a Lívia
Augusta. Ao tio paterno Cláudio, naquele
tempo um cavaleiro romano, fez com que
assumisse o consulado como seu colega.
Ao irmão Tibério chamou “Príncipe da
Juventude”, quando este assumiu a toga
viril e o adotouXXXVI. 5Quanto às suas
irmãs, foi responsável por fazer com que a
todos os juramentos se acrescentasse esta
fórmula: “Não colocarei a mim mesmo e
nem aos meus acima de Caio e de suas
irmãs”. E, da mesma forma, nas
deliberações dos cônsules: “Bem e
XXXV Trata-se do Mausoléu construído por Augusto, de que Suetônio fala em Aug. C XXXVI Por irmão, frater, deve-se entender aqui “primo” (Suetônio omite parte da expressão frater patruelis,
significando primo pelo lado paterno). Trata-se do mesmo Tiberius Gemellus, que se mostrava desde já um
forte candidato ao governo, e que Calígula provavelmente quis manter por perto desde o início.
61
ullus metus, conuectos in fórum, et ante
clare obstestatus deos neque legisse neque
attigisse quicquam, concremauit; libellum
de salute sua oblatum non recepit,
contendens << nihil sibi admissum cur
cuiquam inuisus esset>>, negauitque se
delatoribus aures habere.
prosperidade a Caio César e suas
irmãs”XXXVII. 6Com igual intenção de
agradar ao povo, restituiu condenados e
exilados. Perdoou todos os crimes que
datavam do governo anterior. Queimou os
comentários pertinentes aos processos de
sua mãe e de seus irmãosXXXVIII, que
haviam sido levados ao fórum e, para que
nenhum delator ou testemunha o temesse,
jurou diante dos deuses que não havia lido
nem tocado nenhum deles. Recusou-se a
receber uma lista que tratava de sua
segurança, dizendo “não ter feito nada
para ser odiado por ninguém”XXXIX, e
negou dar atenção aos delatoresXL.
XVI. 1Spintrias monstrosarum libidinum
aegre ne profundo mergeret exoratus, urbe
submouit. 2Titi Labieni, Cordi Cremuti,
Cassi Seueri scripta senatus consultis
XVI. 1Expulsou da cidade os espíntriasXLI,
de monstruosas perversões, a muito custo
convencido de não os afogar. 2Permitiu
que os escritos de Tito LabienoXLII, Cordo
XXXVII Esta seção descreve o amor e apreço de Calígula pela própria família (o que se subverterá mais à
frente na narrativa), mostrando a reparação feita à honra de seus familiares mortos e o cuidado com os que
ainda viviam. XXXVIII Como se verá mais à frente, Calígula na verdade fez cópias desses documentos antes de queimá-los. XXXIX Ou seja, uma lista com os nomes de supostos conspiradores, que Calígula não imaginava serem reais,
já que ele não teria feito mal a ninguém para ser merecedor de ódio. XL Os delatores eram um problema muito grave na Roma Imperial, principalmente quando abusavam das
denúncias de crime contra a maiestas (por exemplo, falar mal do imperador). Nos Annales de Tácito consta
o episódio ocorrido no governo de Tibério em que quatro delatores da ordem senatorial, buscando ascender
socialmente por prestar serviços a Sejano, o guarda pretoriano, teriam convidado um homem de mesmo
status para o jantar e, tendo iniciado uma conversa difamatória a respeito de Sejano, aguardaram que esse
homem se juntasse aos comentários pouco elogiosos. Quando ele o fez, os outros o denunciaram, já que
três deles tinham ficado escondidos no teto para servir de testemunhas do “crime” (Tac. Ann. 4.69). XLI Homens que se prostituíam, e que teriam sido protegidos de Tibério em Capri. XLII Orador que viveu na época de Augusto, conhecido por atacar diversas figuras públicas em seus
discursos. Cometeu suicídio depois que o Senado ordenou que seus livros fossem queimados.
62
abolita requiri et esse in manibus
lectitarique permisit, quando maxime sua
interesset ut facta quaeque posteris
tradantur. 3Rationes imperii ab Augusto
proponi solitas sed a Tiberio intermissas
publicauit. 4Magistratibus liberam iuris
dictionem et sine sui appellatione
concessit. 5Equites R. seuere curioseque
nec sine moderatione recognouit, palam
adempto equo quibus aut probri aliquid
aut ignominiae inesset, eorum qui minore
culpa tenerentur nominibus modo in
recitatione praeteritis. 6Vt leuior labor
iudicantibus foret, ad quattuor prioris
quintam decuriam addidit. 7Temptauit et
comitiorum more reuocato suffragia
populo reddere. 8Legata ex testamento
Tiberi quamquam abolito, sed et Iuliae
Augustae, quod Tiberius suppresserat,
cum fide ac sine calumnia repraesentata
persoluit. 9Ducentesimam auctionum
Italiae remisit; multis incendiorum damna
suppleuit; ac si quibus regna restituit,
adiecit et fructum omnem uectigaliorum et
reditum medii temporis, ut Antiocho
Commageno sestertium milies
confiscatum. 10Quoque magis nullius non
CremúcioXLIII e Cássio SeveroXLIV –
abolidos por um decreto do Senado –
fossem pesquisados, distribuídos e lidos
“uma vez que tinha grande interesse em
informar a posteridade acerca de tudo”.
3Fez a publicação das contas do governo,
que era comum no governo de Augusto,
mas que Tibério interrompera. 4Concedeu
aos magistrados total jurisdição, sem que
fosse necessário apelar a ele mesmo.
5Examinou os cavaleiros romanos com
severidade e escrutínio, mas não sem
moderação, e privou publicamente do
cavalo aqueles contra os quais havia algo
de infâmia ou ignomínia, e daqueles que
eram culpados de crimes menores,
simplesmente absteve-se de citar o nome
durante a chamada. 6Para tornar mais leve
o trabalho dos juízes, acrescentou às
quatro decúrias anteriores uma quintaXLV.
7Tentou até mesmo devolver ao povo o
direito de voto, trazendo de volta o
costume das assembleias de romanos para
a eleição de magistradosXLVI. 8Pagou
fielmente aos herdeiros designados de
Tibério, e sem fraude, embora o
testamento de Tibério tivesse sido
XLIII Historiador que foi acusado por Sejano de crime contra a maiestas e obrigado a tirar a própria vida. XLIV Professor de Retórica e amigo de Labieno, foi condenado ao exílio (onde viria a morrer depois de vinte
e cinco anos) pelas mesmas acusações que o colega. XLV Havia três decúrias de juízes no período republicano. Augusto acrescentou uma quarta durante seu
governo. XLVI Tais assembleias eram conhecidas como comitia, os “comícios”, e segundo o próprio Suetônio,
Augusto já havia pensado em retomar esse costume (Aug, XL).
63
boni exempli fautor uideretur, mulieri
libertinae octingenta donauit, quod
excruciata grauissimis tormentis de
scelere patroni reticuisset. 11Quas ob res
inter reliquos honores decretus est ei
clipeus aureus, quem quotannis certo die
collegia sacerdotum in Capitolium ferrent,
senatu prosequente nobilibusque pueris ac
puellis carmine modulato laudes uirtutum
eius canentibus. Decretum autem ut dies,
quo cepisset imperium, Parilia uocaretur,
uelut argumentum rursus conditae urbis.
anulado, e também aos de Júlia Augusta,
embora Tibério os tivesse suprimido.
9Restituiu à Itália o imposto de meio por
cento nas vendas em hasta pública;
reparou muitos danos causados por
incêndios; e, se restituía a alguém o
reinado, acrescentava todo produto dos
impostos e rendimentos públicos
coletados neste ínterim, como fez a
Antíoco, rei de Comagena, a quem
devolveu cem milhões de sestércios
confiscados. 10E para que parecesse ainda
mais o promotor de bons exemplos, deu
oitenta mil sestércios a uma liberta que,
tendo sofrido gravíssima tortura, não
denunciou nenhum dos crimes de seu
patrono. 11Razões pelas quais, entre as
demais honras, foi-lhe concedido o escudo
douradoXLVII, que todo ano o colegiado
dos sacerdotes levava ao Capitólio,
seguidos pelo senado e por meninos e
meninas da nobreza que entoavam o
elogio de suas virtudes com um canto
cadenciado. Também se decretou que o
dia em que ele ascendera ao poder seria
chamado de PariliaXLVIII, sob o argumento
XLVII Semelhante ao clipeus aureus concedido a Augusto, que comemorava suas quatro virtudes, clementia,
iustitia, pietas e uirtus. Não há como saber se foram essas mesmas as virtudes comemoradas no escudo de
Calígula, no entanto. XLVIII Festas em homenagem ao deus Pales, ligado à vida pastoril (às vezes representado como uma
divindade feminina). Acreditava-se que Roma havia sido fundada durante o festival dedicado a esse deus,
em 21 de abril.
64
de que neste dia a cidade fora fundada uma
segunda vez.
XVII. 1Consulatus quattuor gessit,
primum ex Kal. Iul. per duos menses,
secundum ex Kal. Ian. per XXX dies,
tertium usque in Idus Ian., quartum usque
septimum Idus easdem. 2Ex omnibus duos
nouissimos coniunxit. 3Tertium autem
Luguduni iniit solus, non ut quidam
opinantur superbia neglegentiaue, sed
quod defunctum sub Kalendarum diem
collegam rescisse absens non potuerat.
4Congiarium populo bis dedit trecenos
sestertios, totiens abundantissimum
epulum senatui equestrique ordini, etiam
coniugibus ac liberis utrorumque;
posteriore epulo forensia insuper uiris,
feminis ac pueris fascias purpurae ac
conchylii distribuit. 5Et ut laetitiam
publicam in perpetuum quoque augeret,
adiecit diem Saturnalibus appellauitque
Iuuenalem.
XVII. 1Exerceu quatro consulados, o
primeiro iniciado nas calendas de julho,
por dois meses, o segundo iniciado nas
calendas de janeiro por trinta dias, o
terceiro até os idos de janeiro, o quarto até
o sétimo dia antes dos idos daquele mesmo
mês.XLIX 2Dentre todos esses, os dois
últimos foram consecutivos. 3O terceiro,
porém, inaugurou sozinho, em LugdunoL,
não por sua soberba ou negligência, como
muitos pensam, mas porque, estando
ausente, não tinha como saber que seu
colega havia falecido durante as calendas
daquele mês. 4Duas vezes deu de presente
ao povo a quantia de trezentos sestércios
para cada um, mesmo número de vezes em
que deu farto banquete à ordem dos
senadores e dos cavaleiros, bem como às
esposas e aos filhos de seus membros. No
último destes, distribuiu também trajes
públicos aos homens e faixas de púrpura
às mulheres e às crianças. 5E para
aumentar a alegria do povo em caráter
permanente, acrescentou um dia às
XLIX Lindsay (2002, p. 88) afirma que Calígula recebeu do Senado uma oferta de consulado perpétuo, logo
que assumiu o poder. Sua dispensa dessa oferta pode ser vista como parte da chamada recusatio, em que o
imperador ritualmente recusava o poder que lhe era investido, como respeito à república. Depois dessa
recusa inicial, no entanto, Calígula atuou como cônsul em todos os anos de seu governo. L Atualmente Lyon, na França.
65
Satunálias, ao qual chamou “Dia da
Juventude”.
XVIII. 1Munera gladiatoria partim in
amphitheatro Tauri partim in Saeptis
aliquot edidit, quibus inseruit cateruas
Afrorum Campanorumque pugilum ex
utraque regione electissimorum. 2Neque
spectaculis semper ipse praesedit, sed
interdum aut magistratibus aut amicis
praesidendi munus iniunxit. 3Scaenicos
ludos et assidue et uarii generis ac
multifariam fecit, quondam et nocturnos
accensis tota urbe luminibus. 4Sparsit et
missilia uariarum rerum et panaria cum
obsonio uiritim diuisit; qua epulatione
equiti R. contra se hilarius auidiusque
uescenti partes suas misit, sed et senatori
ob eandem causam codicillos, quibus
praetorem eum extra ordinem designabat.
5Edidit et circenses plurimos a mane ad
uesperam interiecta modo Africanarum
uenatione modo Troiae decursione, et
quosdam praecipuos, minio et chrysocolla
constrato circo nec ullis nisi ex senatorio
ordine aurigantibus. 6Commisit et subitos,
cum e Gelotiana apparatum circi
XVIII. 1Ofereceu jogos de gladiadoresLI,
fosse no Anfiteatro de Tauro, fosse na
cerca das eleiçõesLII, aos quais introduziu
grupos de lutadores da África e da
Campânia, os melhores de ambas as
regiões. 2E nem sempre presidiu ele
mesmo aos espetáculos, mas, às vezes,
confiava este papel aos magistrados ou a
amigos. 3Promoveu muitas peças de teatro
de variado gêneroLIII, certa vez durante a
noite, iluminando toda a cidade.
4Distribuiu também presentes de vários
tipos, que ele lançava ao povo, e deu a
cada pessoa cestos com víveres. Durante o
banquete, deu sua parte a um cavaleiro
romano que estava à frente dele e que
comia com alegria e avidez. Pelo mesmo
motivo, deu a um senador um documento,
através do qual o designava como pretor
extraordinário. 5Também instituiu jogos
circenses, que duravam da manhã até a
tarde, em cujo intervalo eram realizadas
caçadas africanas ou corridas troianas. Em
alguns jogos especiais, teve o circo
LI Pode-se notar aqui uma nova rubrica: Suetônio falará do tratamento dado por Calígula aos jogos. LII Saepta, que pode ser entendido como uma área cercada. Neste contexto, trata-se provavelmente de uma
grande área fechada localizada no Campo de Marte, onde o povo se reunia para votar, e onde se
encontravam várias lojas.
LIII É preciso lembrar que por jogos (ludi) os romanos entendiam não só o combate entre gladiadores, mas
também os jogos do circo (ludi circenses) e as peças de teatro (ludi scaeneci).
66
prospicientem pauci ex proximis
Maenianis postulassent.
coberto por vermelhão e malaquitaLIV e
não permitiu que subisse às bigas quem
não fosse da ordem senatorial. 6Instituiu
até mesmo jogos improvisados, visto que,
enquanto observava do Palácio Gelociano
as estruturas do circo, algumas pessoas
dos balcões das casas vizinhas o pediram
que fizesse.
XIX. 1Nouum praeterea atque inauditum
genus spectaculi excogitauit. Nam
Baiarum medium interuallum [ad]
Puteolanas moles, trium milium et
sescentorum fere passuum spatium, ponte
coniunxit contractis undique onerariis
nauibus et ordine duplici ad ancoras
conlocatis superiectoque terreno ac
derecto in Appiae uiae formam. 2Per hunc
pontem ultro citro commeauit biduo
continenti, primo die phalerato equo
insignisque quercea corona et caetra et
gladio aureaque chlamyde, postridie
quadrigario habitu curriculoque biiugi
famosorum equorum, prae se ferens
Dareum puerum ex Parthorum obsidibus,
comitante praetorianorum agmine et in
essedis cohorte amicorum. 3Scio
XIX. 1Criou, além disso, um novo tipo de
espetáculo. Pois construiu, no espaço
entre Baías e o quebra-mar de Puzzuoli -
uma distância de quase três mil e
seiscentos passosLV – uma ponte, que foi
feita com navios de carga trazidos de toda
parte e postos, ancorados, numa fila dupla,
sobre a qual se colocou terra, moldando-a
até parecer com a Via Ápia. 2De imediato,
pôs-se a ir e vir, de lá para cá, durante dois
dias.LVI No primeiro dia, num cavalo
coberto de insígnias militares, usando uma
coroa de folhas de carvalho, um pequeno
escudo, uma espada e uma clâmide
dourada, e no dia seguinte, vestido como
um piloto de quadriga, num carro puxado
por dois cavalos célebres, levando à sua
frente Dário, um jovem refém do Império
LIV Esses materiais teriam dado ao circo uma decoração baseada nas cores vermelha e verde, e pode ser uma
referência às facções do circo (times de pilotos que participavam das corridas). A facção vermelha e a
facção verde eram as preferidas da plebe, e Calígula em particular torcia pelos verdes. LV Cerca de 2.95 km. LVI Essa é a primeira grande demonstração de excentricidade por parte de Calígula depois de assumir o
governo.
67
plerosque existimasse talem a Gaio
pontem excogitatum aemulatione Xerxis,
qui non sine admiratione aliquanto
angustiorem Hellespontum
contabulauerit; alios, ut Germaniam et
Britanniam, quibus imminebat, alicuius
inmensi operis fama territaret. 4Sed auum
meum narrantem puer audiebam, causam
operis ab interioribus aulicis proditam,
quod Thrasyllus mathematicus anxio de
successore Tiberio et in uerum nepotem
proniori affirmasset non magis Gaium
imperaturum quam per Baianum sinum
equis discursurum.
Parta, acompanhado de uma tropa de
guardas pretorianos e uma companhia de
amigos que vinham em carros de
guerraLVII. 3Sei que muitos pensaram que
a idealização de tal ponte por Caio era uma
tentativa de rivalizar Xerxes, que, não sem
produzir considerável admiração, cobriu o
Helesponto, mais estreito. Outros acharam
que o fizera para aterrorizar a Germânia e
a Bretanha, que então ameaçava de guerra,
com o boato de tão imensa obraLVIII. 4Mas
ouvi de meu avô, quando eu era menino,
que a razão de tal obra, contada pelos seus
cortesãos, era o fato de o astrólogo Trasilo
ter dito a Tibério – quando este se
encontrava preocupado com seu sucessor
e se mostrava propenso a escolher o neto
– que “Caio tinha tantas chances de ser
Imperador quantas de atravessar a cavalo
o Golfo de Baías”LIX.
XX. Edidit et peregre spectacula, in Sicilia
Syracusis asticos ludos et in Gallia
Luguduni miscellos; sed hic certamen
quoque Graecae Latinaeque facundiae,
quo certamine ferunt uictoribus praemia
uictos contulisse, eorundem et laudes
XX. Também deu espetáculos fora de
Roma: em Siracusa, na Sicília, jogos
locaisLX; em Lugduno, na Gália, jogos
diversos. Mas em Lugduno ofereceu um
concurso de eloquência grega e latina, no
qual, dizem, os vencidos deveriam
LVII Essa representação o deixava parecido com um general triunfante. LVIII O ato poderia ser ameaçador para a Bretanha porque deixava claro que uma fronteira aquática não era
o bastante para fazer parar o imperador. LIX Essa passagem ilustra a variedade de fontes a que Suetônio recorre para compor seus relatos. Desde
documentos oficiais até os comentários de seus próprios familiares. LX Astici Ludi, jogos celebrados em honra a Baco.
68
componere coactos; eos autem, qui
maxime displicuissent, scripta sua spongia
linguaue delere iussos, nisi ferulis
obiurgari aut flumine proximo mergi
maluissent.
conceder os prêmios aos vencedores, e
eram obrigados a fazer-lhes o elogio. Aos
que tinham se saído particularmente mal,
cabia, porém, apagar seus escritos com
uma esponja ou com a própria língua, se
não quisessem ser açoitados com varas ou
lançados a um rio próximoLXI.
XXI. 1Opera sub Tiberio semiperfecta,
templum Augusti theatrumque Pompei,
absoluit. 2Incohauit autem aquae ductum
regione Tiburti et amphitheatrum iuxta
Saepta, quorum operum a successore eius
Claudio alterum peractum, omissum
alterum est. 3Syracusis conlapsa uetustate
moenia deorumque aedes refectae.
4Destinauerat et Sami Polycratis regiam
restituere, Mileti Didymeum peragere, in
iugo Alpium urbem condere, sed ante
omnia Isthmum in Achaia perfodere,
miseratque iam ad dimetiendum opus
primipilarem.
XXI. 1Completou as reformas do templo
de Augusto e do teatro de Pompeu, que
não tinham sido terminadas no governo de
TibérioLXII. 2Deu início, além disso, à
construção do aqueduto na região de Tibur
e ao anfiteatro junto à cerca das eleições,
obras que foram, umas completadas,
outras abandonadas por seu sucessor,
Cláudio. 3Em Siracusa, reconstruiu as
muralhas e os templos dos deuses,
destruídos pelo tempoLXIII. 4Tinha também
planejado reconstruir o palácio de
Polícrates, em Samos, terminar o templo
de Apolo Didimeu, em Mileto, construir
uma cidade no cume dos Alpes, mas, antes
de tudo, cortar o istmo em AcaiaLXIV - e já
LXI Primeira demonstração de interesse pela retórica. Também se vê aqui um pouco da crueldade futura que
marcaria o governo de Calígula, de acordo com o relato de Suetônio. LXII Esse é o último trecho em que Suetônio tratará de Calígula como um bom governante. Aqui ele fala de
algumas de suas obras públicas. LXIII Segundo Lindsay, tais obras poderiam ter sido feitas em agradecimento à cidade por ter sido a primeira
a reconhecer a divindade de sua irmã Drusilla, depois de sua morte. LXIV Istmo em Corinto que une a Grécia continental à Península do Peloponeso. Calígula pensava em
construir um canal nessa pequena faixa de terra, que facilitaria a navegação no litoral do Peloponeso.
Tentada sem sucesso muitas vezes ao longo da Antiguidade, essa obra só veio a ser realizada no final do
século XIX.
69
tinha mandado um centurião para fazer as
medidas necessárias à obra.
XXII. 1Hactenus quasi de principe, reliqua
ut de monstro narranda sunt.
2Compluribus cognominibus adsumptis –
nam et "pius" et "castrorum filius" et
"pater exercituum" et "optimus maximus
Caesar" uocabatur – cum audiret forte
reges, qui officii causa in urbem
aduenerant, concertantis apud se super
cenam de nobilitate generis, exclamauit:
Εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς.
Nec multum afuit quin statim diadema
sumeret speciemque principatus in regni
formam conuerteret. 3Verum admonitus et
principum et regum se excessisse
fastigium, diuinam ex eo maiestatem
asserere sibi coepit; datoque negotio, ut
simulacra numinum religione et arte
praeclara, inter quae Olympii Iouis,
apportarentur e Graecia, quibus capite
dempto suum imponeret, partem Palatii ad
forum usque promouit, atque aede
Castoris et Pollucis in uestibulum
transfigurata, consistens saepe inter fratres
deos, medium adorandum se adeuntibus
XXII. 1Até aqui se falou de um príncipe -
deve-se agora falar de um monstroLXV.
2Tendo assumido diversos nomes (pois era
chamado “pio”, “filho dos acampamentos
militares”, “pai do exército” e “César
Ótimo Máximo”), como certa vez tivesse
escutado um grupo de reis, que tinham
vindo à Roma numa visita cerimonial,
discutindo entre si sobre a nobreza de suas
estirpes, disse:
‘Um só tenha o posto supremo;
Um, seja o rei’LXVI
e por pouco não tomou a coroa naquele
momento, convertendo em realeza a falsa
aparência de principado. 3No entanto,
como o tivessem dito que ele havia
superado o mais alto grau dos príncipes e
dos reis, começou a atribuir a si mesmo a
majestade divina. E, tendo dado a ordem
de que fossem trazidas da Grécia as
estátuas de deuses mais distintas pela
devoção e pela arte, entre elas uma de
Júpiter Olímpico, às quais, retiradas as
cabeças, acrescentou sua própria imagem,
LXV Tem-se aqui a clara separação entre os dois principais momentos do texto: Suetônio inicia o relato das
anedotas que ilustram o mau caráter de Calígula, começando por seu orgulho e crueldade. LXVI Calígula cita Homero: εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς (Il, II, 204). A tradução é de Carlos Alberto
Nunes.
70
exhibebat; et quidam eum Latiarem Iouem
consalutarunt. 4Templum etiam numini
suo proprium et sacerdotes et
excogitatissimas hostias instituit. 5In
templo simulacrum stabat aureum
iconicum amiciebaturque cotidie ueste,
quali ipse uteretur. 6Magisteria sacerdotii
ditissimus quisque et ambitione et
licitatione maxima uicibus comparabant.
7Hostiae erant phoenicopteri, pauones,
tetraones, numidicae, meleagrides,
phasianae, quae generatim per singulos
dies immolarentur. 8Et noctibus quidem
plenam fulgentemque lunam inuitabat
assidue in amplexus atque concubitum,
interdiu uero cum Capitolino Ioue secreto
fabulabatur, modo insusurrans ac
praebens in uicem aurem, modo clarius
nec sine iurgiis. 9Nam uox comminantis
audita est:
Ἤ μ᾽ ἀνάειρ᾽ ἤ ἐγὼ σέ,
donec exoratus, ut referebat, et in
contubernium ultro inuitatus super
templum Diui Augusti ponte transmisso
Palatium Capitoliumque coniunxit.
10Mox, quo propior esset, in area
Capitolina nouae domus fundamenta iecit.
ele fez com que uma parte do palácio se
estendesse até o Fórum e, transformando o
templo de Castor e Pólux num vestíbulo,
se punha frequentemente entre as imagens
dos deuses irmãos, e se oferecia à
adoração dos visitantes. E houve aqueles
que o saudassem como “Júpiter do Lácio”.
4E até consagrou um templo dedicado a
seu nume, com sacerdotes e vítimas muito
bem escolhidas. 5Nesse templo havia uma
estátua dourada sua, em tamanho natural,
que era vestida todos os dias com vestes
semelhantes às que ele mesmo utilizava.
6Os cidadãos mais ricos tentavam garantir
os cargos de sacerdotes desse templo,
alternadamente, com grande esforço e
com as ofertas mais altas. 7As vítimas
eram flamingos, pavões, tetrazes, galinhas
da Numídia, galinhas-d’Angola, faisões,
que eram imoladas uma espécie a cada dia.
8E de fato, à noite, convidava a lua cheia e
brilhante a abraçá-lo e a deitar-se com ele,
enquanto durante o dia conversava em
segredo com Júpiter Capitolino, às vezes
cochichando e prestando ouvidos a ele, às
vezes em voz alta, e não sem discutir.
9Ouviu-se, pois, a sua voz ameaçar:
‘Ou me levanta ou a ti faça eu o
mesmo’LXVII
LXVII Novamente uma citação de Homero: ἤ μ᾽ ἀνάειρ᾽ ἢ ἐγὼ σέ (Il, XXIII, 724). A tradução é de Carlos
Alberto Nunes.
71
Tendo-o persuadido, por fim, segundo ele,
foi convidado pelo deus a habitar com ele,
e uniu o Palatino ao Capitólio através de
uma ponte que passava sobre o templo de
Augusto. 10Mais tarde, para que ficasse
ainda mais perto, ergueu as bases de um
novo palácio no Capitólio.LXVIII
XXIII. 1Agrippae se nepotem neque credi
neque dici ob ignobilitatem eius uolebat
suscensebatque, si qui uel oratione uel
carmine imaginibus eum Caesarum
insererent. 2Praedicabat autem matrem
suam ex incesto, quod Augustus cum Iulia
filia admisisset, procreatam; ac non
contentus hac Augusti insectatione
Actiacas Siculasque uictorias, ut funestas
p. R. et calamitosas, uetuit sollemnibus
feriis celebrari. 3Liuiam Augustam
proauiam "Vlixem stolatum" identidem
appellans, etiam ignobilitatis quadam ad
senatum epistula arguere ausus est quasi
materno auo decurione Fundano ortam,
cum publicis monumentis certum sit,
Aufidium Lurconem Romae honoribus
functum. 4Auiae Antoniae secretum
petenti denegauit, nisi ut interueniret
XXIII. 1Não permitia que se acreditasse
nem que se dissesse que ele era neto de
Agripa, por conta de sua baixa origem, e
se irritava se alguém, numa representação
em verso ou em prosa, o colocava entre os
ancestrais dos CésaresLXIX. 2Proclamava
que sua mãe havia nascido de um incesto
que Augusto houvera cometido com sua
filha Júlia. Não contente com esse insulto
a Augusto, proibiu que fossem celebradas
com festas solenes as vitórias nas batalhas
de Ácio e da Sicília, alegando que haviam
sido funestas e desastrosas ao povo
romano. 3Chamava a bisavó Lívia
Augusta de “Ulisses de estola”LXX, e
ousou declarar numa carta ao Senado sua
baixa origem, como se tivesse por avô
materno um decurião de Fondi, quando os
documentos públicos afirmam
LXVIII O culto a Calígula é usado por Suetônio como uma maneira de fazer o contraste entre a aparente
humildade do imperador no início do governo e seu verdadeiro caráter. LXIX Aqui Suetônio volta a falar das relações familiares de Calígula. LXX A estola era uma roupa tipicamente feminina (seria o equivalente de chamá-la “Ulisses de saias”). A
figura de Ulisses sempre foi ambivalente para os romanos. Apesar de ser um herói importante, sua esperteza
era vista com desconfiança.
72
Macro praefectus, ac per istius modi
indignitates et taedia causa exstitit mortis,
dato tamen, ut quidam putant, et ueneno;
nec defunctae ullum honorem habuit
prospexitque e triclinio ardentem rogum.
5Fratrem Tiberium inopinantem repente
immisso tribuno militum interemit,
Silanum item socerum ad necem
secandasque nouacula fauces compulit,
causatus in utroque, quod hic ingressum se
turbatius mare non esset secutus ac spe
occupandi urbem, si quid sibi per
tempestates accideret, remansisset, ille
antidotum oboluisset, quasi ad
praecauenda uenena sua sumptum, cum et
Silanus impatientiam nauseae uitasset et
molestiam nauigandi, et Tiberius propter
assiduam et ingrauescentem tussim
medicamento usus esset. 6Nam Claudium
patruum non nisi in ludibrium reseruauit.
seguramente que fora Aufídio Lurco,
homem que exercera magistraturas em
Roma. 4Negou-se a ter um encontro
particular com a avó Antônia sem ser
acompanhado de Macrão, comandante da
guarda pretoriana, e através de afrontas e
desgostos deste tipo foi que causou sua
morte, embora há quem diga que lhe teria
dado veneno. E nem lhe prestou, morta, as
honras fúnebres, meramente observando
do triclínio sua pira funerária acesa.
5Mandou matar o desavisado irmão
Tibério por um tribuno militar. Da mesma
forma obrigou o sogro Silano a se matar
cortando a garganta com uma navalha.
Deu como motivo para essas mortes o fato
de Silano não o ter seguido quando entrou
no mar tempestuosoLXXI e ter permanecido
em terra, na esperança de governar Roma,
se algo lhe acontecesse por conta das
tempestades, e de Tibério ter tomado um
antídoto, como se estivesse se precavendo
de seu envenenamento – quando, na
verdade, Silano tinha permanecido em
terra para evitar a náusea e o enjoo da
navegação e Tibério havia tomado um
medicamento por conta de sua tosse
frequente que se agravava. 6Quanto ao seu
LXXI Isto é, quando foi buscar os restos mortais de seus parentes, logo no início do governo.
73
tio paterno Cláudio, o manteve apenas
porque era motivo de risoLXXII.
XXIV. 1Cum omnibus sororibus suis
consuetudinem stupri fecit plenoque
conuiuio singulas infra se uicissim
conlocabat uxore supra cubante. 2Ex iis
Drusillam uitiasse uirginem praetextatus
adhuc creditur atque etiam in concubitu
eius quondam deprehensus ab Antonia
auia, apud quam simul educabantur; mox
Lucio Cassio Longino consulari
conlocatam abduxit et in modum iustae
uxoris propalam habuit; heredem quoque
bonorum atque imperii aeger instituit.
3Eadem defuncta iustitium indixit, in quo
risisse lauisse cenasse cum parentibus aut
coniuge liberisue capital fuit. 4Ac
maeroris impatiens, cum repente noctu
profugisset ab urbe transcucurrissetque
Campaniam, Syracusas petit, rursusque
inde propere rediit barba capilloque
promisso; nec umquam postea
quantiscumque de rebus, ne pro contione
quidem populi aut apud milites, nisi per
XXIV. 1Teve frequentes relações
incestuosasLXXIII com todas as suas irmãs,
e em pleno banquete, as colocava abaixo
de si, uma de cada vez, enquanto sua
esposa ficava por cima. 2Dentre elas,
acredita-se que tenha tirado a virgindade a
Drusila, enquanto ele ainda vestia a toga
pretexta, e foi pego deitando-se com ela
pela avó Antônia, que os havia criado;
mais tarde, a tomou do consular Lúcio
Cássio Longino, com quem ela havia se
casado, e a tratou abertamente como sua
esposa legítima. Quando ele ficou doente,
a escolheu como herdeira de seus bens e
do Império. 3Quando ela morreu, instituiu
um luto oficial, no qual quem risse, se
banhasse, jantasse com a família ou o
cônjuge, era condenado à morte. 4E,
incapaz de suportar a dor, partiu de Roma
à noite, repentinamente, atravessou a
Campânia e chegou a SiracusaLXXIV, de
onde voltou rapidamente com a barba e o
LXXII Suetônio afirma na biografia de Cláudio que este era sempre o último dentre os homens de status
consular a falar no senado (Claud. IX.2) LXXIII Novamente, o uso do termo stuprum nessa passagem não indica que as relações tenham ocorrido
necessariamente sem o consentimento das partes envolvidas. Além disso, segundo Winterling (2011, p.3),
é pouco provável que tais relações incestuosas tenham ocorrido de fato, já que Fílon e Sêneca não chegam
a mencionar nada a respeito. LXXIV Cf. nota LXIII.
74
numen Drusillae deierauit. 5Reliquas
sorores nec cupiditate tanta nec dignatione
dilexit, ut quas saepe exoletis suis
prostrauerit; quo facilius eas in causa
Aemili Lepidi condemnauit quasi
adulteras et insidiarum aduersus se
conscias ei. 6Nec solum chirographa
omnium requisita fraude ac stupro
diuulgauit, sed et tres gladios in necem
suam praeparatos Marti Vltori addito
elogio consecrauit.
cabelo crescidos. E depois disso, não
importando a grandeza do assunto, nem
mesmo diante do povo reunido ou dos
soldados, não fez juramentos senão ao
nume de Drusila. 5Não amava as outras
irmãs com tanto desejo ou respeito, já que
frequentemente as prostituíra com os
jovens devassos. E com facilidade as
condenou no processo contra Emílio
Lépido, como adúlteras e cúmplices das
tramas que haviam sido planejadas contra
ele mesmo. 6E não só publicou todas as
cartas manuscritas de suas irmãs, através
de fraude e de desonra, como consagrou a
Marte Vingador as três espadas preparadas
para matá-lo, acrescentando-lhes uma
inscrição.
XXV. 1Matrimonia contraxerit turpius an
dimiserit an tenuerit, non est facile
discernere. 2Liuiam Orestillam C. Pisoni
nubentem, cum ad officium et ipse
uenisset, ad se deduci imperauit intraque
paucos dies repudiatam biennio post
relegauit, quod repetisse usum prioris
mariti tempore medio uidebatur. 3Alii
tradunt adhibitum cenae nuptiali
mandasse ad Pisonem contra
accumbentem: "Noli uxorem meam
premere," statimque e conuiuio abduxisse
XXV. 1Quanto a seus casamentosLXXV, é
difícil dizer se foi maior afronta tê-los
contraído, terminado ou mantido.
2Quando Lívia Orestila se casou com C.
Pisão, como ele próprio comparecesse à
cerimônia, ordenou que ela lhe fosse dada
como esposa e dentro de poucos dias a
dispensou, e dali a dois anos a exilou,
porque parecia que tinha retornado ao
marido anterior naquele meio tempo.
3Outros dizem que ele, tendo sido
convidado ao banquete do casamento,
LXXV Suetônio trata dos casamentos de Calígula nesta rubrica.
75
secum ac proximo die edixisse:
“matrimonium sibi repertum exemplo
Romuli et Augusti.” 4Lolliam Paulinam,
C. Memmio consulari exercitus regenti
nuptam, facta mentione auiae eius ut
quondam pulcherrimae, subito ex
prouincia euocauit ac perductam a marito
coniunxit sibi breuique missam fecit
interdicto cuiusquam in perpetuum coitu.
5Caesoniam neque facie insigni neque
aetate integra matremque iam ex alio uiro
trium filiarum, sed luxuriae ac lasciuiae
perditae, et ardentius et constantius
amauit, ut saepe chlamyde peltaque et
galea ornatam ac iuxta adequitantem
militibus ostenderit, amicis uero etiam
nudam. 6Vxorio nomine [non prius]
dignatus est quam enixam, uno atque
eodem die professus et maritum se eius et
patrem infantis ex ea natae. 7Infantem
autem, Iuliam Drusillam appellatam, per
omnium dearum templa circumferens
Mineruae gremio imposuit alendamque et
instituendam commendauit. 8Nec ullo
firmiore indicio sui seminis esse credebat
quam feritatis, quae illi quoque tanta iam
tunc erat, ut infestis digitis ora et oculos
simul ludentium infantium incesseret.
mandou como recado a Pisão, que se
sentava à sua frente: “Não te deites com
minha esposa.”, e imediatamente a levou
consigo de lá e no dia seguinte afirmou
“ter contraído um matrimônio a exemplo
de Rômulo e de Augusto”LXXVI.
4Convocou repentinamente de sua
província Lólia Paulina, casada com C.
Mêmio, consular que comandava os
exércitos, depois de alguém ter comentado
que sua avó havia sido uma mulher muito
bela, e a tirou do marido, casou-se com
ela, e pouco tempo depois a mandou
embora, tendo-a proibido para sempre de
deitar-se com qualquer outro. 5Amou
Cesônia de modo ardente e com
perseverança, embora ela não fosse nem
bonita, nem jovem, e já mãe de três filhas
com outro homem, além de perdida de
devassidão e lascívia. Frequentemente a
exibia aos soldados vestida de clâmide,
peltaLXXVII e elmo, cavalgando ao seu
lado, e até mesmo nua, aos amigos. 6Deu-
lhe o nome de esposa quando ela teve um
bebê, e num único e mesmo dia disse ser
seu marido e pai do filho que dela nascera.
7Essa criança, porém, que foi chamada de
Júlia Drusila, ele levou aos templos de
todas as deusas e a deixou no colo de
LXXVI Rômulo, o lendário primeiro rei de Roma, teria ordenado o sequestro das esposas dos Sabinos para
que os primeiros romanos tivessem mulheres com as quais casar. Já Augusto era reconhecidamente dado
ao adultério, muito embora o fizesse sobretudo por razões políticas (Suet. Aug. LXIX.1). LXXVII Pequeno escudo trácio em formato e meia-lua.
76
Minerva, a quem recomendou que a
criasse e alimentasse. 8E nenhum indício
de que era sua filha lhe pareceu mais
convincente do que a ferocidade da
menina, que já naquele momento era tão
grande que ela tentava atacar com os
dedos violentos os olhos e a boca das
crianças que brincavam perto delaLXXVIII.
XXVI. 1Leue ac frigidum sit his addere,
quo propinquos amicosque pacto
tractauerit, Ptolemaeum regis Iubae
filium, consobrinum suum – erat enim et
is M. Antoni ex Selene filia nepos – et in
primis ipsum Macronem, ipsam Enniam,
adiutores imperii; quibus omnibus pro
necessitudinis iure proque meritorum
gratia cruenta mors persoluta est. 2Nihilo
reuerentior leniorue erga senatum,
quosdam summis honoribus functos ad
essedum sibi currere togatos per aliquot
passuum milia et cenanti modo ad pluteum
modo ad pedes stare succinctos linteo
passus est; alios cum clam interemisset,
citare nihilo minus ut uiuos perseuerauit,
paucos post dies uoluntaria morte perisse
mentitus. 3Consulibus oblitis de natali suo
XXVI. 1Seria frívolo e trivial acrescentar
qualquer coisa ao modo como tratava seus
amigos e pessoas próximasLXXIX.
Ptolomeu, filho do rei Juba, seu primo
(era, também, neto de Marco Antônio,
pela mãe Selene) e, em particular, o
próprio Macrão e a própria Ênia, que o
ajudaram a chegar ao poder: todos eles
receberam como recompensa por seu
parentesco e pelos seus méritos uma morte
sangrenta. 2Não foi mais respeitoso ou
gentil em relação ao SenadoLXXX, cujos
membros que haviam ocupado os cargos
mais importantes ele deixou correr
vestidos de toga, junto a seu carro, por
alguns milhares de passos e ficar ora junto
de seu leito, enquanto jantava, ora junto de
LXXVIII Mais um indício da opinião de Suetônio sobre a natureza cruel de Calígula, que chega até mesmo a
ser hereditária. LXXIX Mais um indicativo da opinião pessoal de Suetônio sobre o assunto tratado. LXXX Aqui Suetônio relata o tratamento dispensado por Calígula às diferentes ordens sociais.
77
edicere abrogauit magistratum fuitque per
triduum sine summa potestate res p.
4Quaestorem suum in coniuratione
nominatum flagellauit ueste detracta
subiectaque militum pedibus, quo firme
uerberaturi insisterent. 5Simili superbia
uiolentiaque ceteros tractauit ordines.
6Inquietatus fremitu gratuita in circo loca
de media nocte occupantium, omnis
fustibus abegit; elisi per eum tumultum
uiginti amplius equites R., totidem
matronae, super innumeram turbam
ceteram. 7Scaenicis ludis, inter plebem et
equitem causam discordiarum ferens,
decimas maturius dabat, ut equestria ab
infimo quoque occuparentur. 8Gladiatorio
munere reductis interdum flagrantissimo
sole uelis emitti quemquam uetabat,
remotoque ordinario apparatu tabidas
feras, uilissimos senioque confectos
gladiatores, proque paegniariis patres
familiarum notos in bonam partem sed
insignis debilitate aliqua corporis
subiciebat. 9Ac nonnumquam horreis
praeclusis populo famem indixit.
seus pés, usando vestes de linhoLXXXI;
outros foram mortos em segredo, e ele
insistia em chamá-los como se ainda
estivessem vivos, e poucos dias depois,
mentia dizendo que haviam cometido
suicídio. 3Quando os cônsules se
esqueceram de fazer uma proclamação
pública de seu aniversário, ele os afastou
de seus cargos, e deixou o estado sem sua
magistratura suprema durante três dias.
4Flagelou seu questor que havia sido
citado numa conjuração, tirando suas
vestes e colocando-as sob os pés dos
soldados, para que os que iam castigá-lo
pudessem firmar melhor os pés. 5Tratou as
outras ordens com semelhante violência e
soberba. 6Incomodado com o barulho de
algumas pessoas que vinham durante a
noite garantir seus lugares gratuitos no
circo, os expulsou a todos com bastões; na
confusão, foram pisoteados mais de vinte
cavaleiros romanos, o mesmo tanto de
matronas, e outras pessoas em grande
número. 7Nas peças de teatro, tentando
provocar a discórdia entre os cavaleiros e
a plebe, fez distribuir as décimasLXXXII
mais cedo que o normal, para que os
lugares dos cavaleiros fossem ocupados
pela ralé. 8Nos jogos de gladiadores, por
vezes ele mandava que se retirassem os
LXXXI Vestimenta que era associada à condição de escravo. LXXXII Termo usado para se referir a um presente concedido pelos governantes ao povo.
78
toldos, num sol escaldante, e proibia a
quem quer que fosse de ir embora. Então,
retirado o equipamento comum, o
substituía por animais lânguidos, pelos
gladiadores mais baratos e acabados pela
velhice, e, como falsos gladiadores, pais
de família conhecidos [em boa medida]
mas acometidos de alguma doença. 9Às
vezes, ele anunciava a fome ao povo,
tendo fechado os celeiros.
XXVII. 1Saeuitiam ingenii per haec
maxime ostendit. 2Cum ad saginam
ferarum muneri praeparatarum carius
pecudes compararentur, ex noxiis
laniandos adnotauit, et custodiarum
seriem recognoscens, nullius inspecto
elogio, stans tantum modo intra porticum
mediam, "a caluo ad caluum" duci
imperauit. 3Votum exegit ab eo, qui pro
salute sua gladiatoriam operam
promiserat, spectauitque ferro dimicantem
nec dimisit nisi uictorem et post multas
preces. 4Alterum, qui se periturum ea de
causa uouerat, cunctantem pueris tradidit,
uerbenatum infulatumque uotum
reposcentes per uicos agerent, quoad
praecipitaretur ex aggere. 5Multos honesti
ordinis deformatos prius stigmatum notis
ad metalla et munitiones uiarum aut ad
XXVII. 1A crueldadeLXXXIII de seu caráter
se faz mostrar particularmente pelo que
segue: 2como tivesse achado muito caro
comprar gado para alimentar as feras
preparadas para os espetáculos, designou
dentre os criminosos alguns que deveriam
ser devorados e, inspecionando as celas,
sem conferir nenhum dos registros
criminais, mas simplesmente parando no
meio do pórtico, mandou que fossem
levados “cabeça por cabeça”. 3Exigiu o
cumprimento da promessa a um homem
que havia jurado, por sua saúde, lutar
como gladiador e o assistiu lutar com
espada em punho, e nem o dispensou até
que ele conseguisse a vitória, e só depois
de muitas súplicas. 4De um outro, que pela
mesma causa havia jurado se matar, mas
que hesitara, disse a seus escravos que
LXXXIII Nesta rubrica Suetônio trata especificamente da saeuitia, a crueldade de Calígula.
79
bestias condemnauit aut bestiarum more
quadripedes cauea coercuit aut medios
serra dissecuit, nec omnes grauibus ex
causis, uerum male de munere suo
opinatos, uel quod numquam per genium
suum deierassent. 6Parentes supplicio
filiorum interesse cogebat; quorum uni
ualitudinem excusanti lecticam misit,
alium a spectaculo poenae epulis statim
adhibuit atque omni comitate ad
hilaritatem et iocos prouocauit.
7Curatorem munerum ac uenationum per
continuos dies in conspectu suo catenis
uerberatum non prius occidit quam
offensus putrefacti cerebri odore.
8Atellanae poetam ob ambigui ioci
uersiculum media amphitheatri harena
igni cremauit. Equitem R. obiectum feris,
cum se innocentem proclamasset, reduxit
abscisaque lingua rursus induxit.
“conduzissem-no pelas ruas adornado
com ínfulas e com ramos sagrados,
pedindo a todos que o juramento se
cumprisse, até que se precipitasse de uma
colina”LXXXIV. 5Muitas pessoas de alta
ordem foram primeiro desfiguradas com
marcas de ignomínia e depois condenadas
a trabalhar nas minas, ou na construção
das estradas ou foram jogadas às feras, ou
colocadas em jaulas, obrigadas a
permanecer de quatro, como animais ou
cortadas ao meio com uma serra. E tudo
isso não por motivos graves, mas por
terem falado mal de seus espetáculos ou
por nunca terem jurado pelo seu nume.
6Obrigava os pais a assistirem à morte dos
filhos, enviando uma liteira a um deles
quando disse que não poderia comparecer
por estar doente, e convidando um outro
para um banquete depois de assistir à
execução, tentando provocar-lhe o riso
com todo tipo de amabilidade. 7Um
administrador de jogos e de caçadas foi
espancado com correntes diante dele por
vários dias, e não morreu antes que ele se
incomodasse com o cheiro de seu cérebro
putrefato. 8Um compositor de
atelanasLXXXV foi queimado vivo no
anfiteatro, no meio da arena, por conta de
um versinho jocoso de duplo sentido. 9Um
LXXXIV Cf. nota XXXII. LXXXV Peças cômicas surgidas na cidade de Atela, na Campânia.
80
cavaleiro romano que havia sido jogado às
feras, como tivesse gritado que era
inocente, foi trazido de volta, teve a língua
cortada e foi novamente jogado às feras.
XXVIII. 1Reuocatum quendam a uetere
exilio sciscitatus, quidnam ibi facere
consuesset, respondente eo per
adulationem: "Deos semper oraui ut, quod
euenit, periret Tiberius et tu imperares,"
opinans sibi quoque exules suos mortem
imprecari, misit circum insulas, qui
uniuersos contrucidarent. 2Cum discerpi
senatorem concupisset, subornauit qui
ingredientem curiam repente hostem
publicum appellantes inuaderent,
graphisque confossum lacerandum ceteris
traderent; nec ante satiatus est quam
membra et artus et uiscera hominis tracta
per uicos atque ante se congesta uidisset.
XXVIII. 1Quando perguntou a um homem
retornado do exílio o que fazia enquanto
ainda era exilado, ele lhe respondeu, para
bajulá-lo: “Pedia sempre aos deuses para
que acontecesse de Tibério morrer e tu te
tornares imperador.”. Achando, então, que
aqueles que ele próprio havia exilado
também pediam pela sua morte, mandou
soldados às ilhas para executar todos eles.
2Como quisesse que um senador fosse
partido em pedaços, subornou alguns
deles para que se lançassem sobre ele de
repente, quando entrava na cúria,
chamando-o de inimigo público, ferindo-o
com seus estilosLXXXVI, e que o levassem
aos demais para ser destroçado. E não
ficou satisfeito enquanto não viu os
membros e vísceras dele serem levados
pelas ruas e empilhados diante de si.
XXIX. 1Immanissima facta augebat
atrocitate uerborum. 2Nihil magis in
natura sua laudare se ac probare dicebat
XXIX. 1Os seus atos mais desumanos ele
agravava com a monstruosidade de suas
palavras. 2Dizia que a coisa mais
LXXXVI Objeto pontiagudo, geralmente feito de metal, usado pelos romanos para escrever sobre tábuas
cobertas com cera.
81
quam, ut ipsius uerbo utar, ἀδιατρεψίαν,
hoc est inuerecundiam. 3Monenti
Antoniae auiae tamquam parum esset non
oboedire: "Memento," ait, "omnia mihi et
in omnis licere." 4Trucidaturus fratrem,
quem metu uenenorum praemuniri
medicamentis suspicabatur: "Antidotum,"
inquit, "aduersus Caesarem?" 5Relegatis
sororibus non solum insulas habere se, sed
etiam gladios minabatur. 6Praetorium
uirum ex secessu Anticyrae, quam
ualitudinis causa petierat, propagari sibi
commeatum saepius desiderantem cum
mandasset interimi, adiecit necessariam
esse sanguinis missionem, cui tam diu non
prodesset elleborum. 7Decimo quoque die
numerum puniendorum ex custodia
subscribens rationem se purgare dicebat.
Gallis Graecisque aliquot uno tempore
condemnatis gloriabatur Gallograeciam se
subegisse.
admirável na sua natureza era, para usar
suas próprias palavras, sua
ἀδιατρεψίανLXXXVII, ou seja, sua falta de
vergonha. 3À avó Antônia, que lhe dava
então conselhos, como se já não fosse o
bastante não a obedecer, disse: “Lembra-
te que posso fazer o que eu quiser a quem
eu bem entender.”. 4Quando estava para
matar o irmão, de quem suspeitava ter-se
munido de um antídoto, por medo de ser
envenenado, disse: “Existe antídoto contra
César?”. 5Ameaçava as irmãs exiladas
escrevendo-lhes que “não tinha apenas
ilhas, mas também espadas”. 6Depois de
ter mandado matar a um pretor que pedia
frequentemente que se estendesse seu
retiro em Anticíra, aonde tinha ido para
cuidar da saúde, acrescentou “que era
necessária uma sangria, a quem não pode
aproveitar tão longo tratamento com
heléboroLXXXVIII”. 7Quando assinava, a
cada dez dias, a lista de prisioneiros que
seriam executados, dizia estar “fechando a
conta”. 8Tendo condenado de uma só vez
vários prisioneiros gauleses e gregos,
gabou-se de “ter conquistado a
Galogrécia”.
LXXXVII “Adiatrepsia”, um conceito relacionado ao estoicismo, que diz respeito à atitude de imobilidade
diante dos fatos da vida. LXXXVIII Planta medicinal muito utilizada na antiguidade para o tratamento de doenças mentais.
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XXX. 1Non temere in quemquam nisi
crebris et minutis ictibus animaduerti
passus est, perpetuo notoque iam
praecepto: "Ita feri ut se mori sentiat."
2Punito per errorem nominis alio quam
quem destinauerat, ipsum quoque paria
meruisse dixit. 3Tragicum illud subinde
iactabat:
Oderint, dum metuant.
4Saepe in cunctos pariter senatores ut
Seiani clientis, ut matris ac fratrum
suorum delatores, inuectus est prolatis
libellis, quos crematos simulauerat,
defensaque Tiberi saeuitia quasi
necessaria, cum tot criminantibus
credendum esset. 5Equestrem ordinem ut
scaenae harenaeque deuotum assidue
proscidit. 6Infensus turbae fauenti
aduersus studium suum exclamauit:
"Vtinam P. R. unam ceruicem haberet!"
7Cumque Tetrinius latro postularetur, et
qui postularent, Tetrinios esse ait. 8Retiari
tunicati quinque numero gregatim
dimicantes sine certamine ullo totidem
secutoribus succubuerant; cum occidi
iuberentur, unus resumpta fuscina omnes
uictores interemit: hanc ut crudelissimam
caedem et defleuit edicto et eos, qui
spectare sustinuissent, execratus est.
XXX. 1Não admitia que qualquer um fosse
executado senão por meio de pequenos e
numerosos golpes, continuamente
expressando a conhecida ordem: “Mata-o
de modo que ele se sinta morrer.”. 2Tendo
um homem diferente daquele que
designara sido punido por uma confusão
entre nomes, ele disse que o próprio
merecia semelhante castigo.
3Frequentemente dizia estes versos
trágicos:
“Que me odeiem, desde que me
temam.LXXXIX”
4Frequentemente se voltava a todos os
senadores, chamando-os de clientes de
Sejano, de delatores de sua mãe e seus
irmãos, trazendo à tona os documentos,
que ele fingira ter queimadoXC, e defendia
a crueldade de Tibério como se fosse
necessária, em vista de quantos o
acusavam de ser cruel. 5Muitas vezes
atacou a ordem equestre, dizendo serem
devotos da arena e do palco. 6Irritado com
a turba que favorecia a um opositor, ele
disse: “Quem dera o povo romano tivesse
um só pescoço!”. 7Como o bandido
Tetrínio tivesse sido processado, ele disse
que “também os que o acusaram são
Tetrínios”. 8Um grupo de cinco retiários
LXXXIX Fragmento de uma peça de Ácio, autor do período republicano. XC Cf. nota XXXVIII.
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vestidos de túnicasXCI, lutando em grupo
contra o mesmo número de
perseguidoresXCII foram vencidos em
combate sem qualquer resistência; quando
se mandou que fossem mortos, um deles,
pegando novamente o tridente, matou
todos os vencedores: Calígula lamentou
este fato como uma crudelíssima matança
através de um édito e lançou imprecações
contra aqueles que haviam assistido ao
espetáculoXCIII.
XXXI. Queri etiam palam de condicione
temporum suorum solebat, quod nullis
calamitatibus publicis insignirentur;
Augusti principatum clade Variana, Tiberi
ruina spectaculorum apud Fidenas
memorabilem factum, suo obliuionem
imminere prosperitate rerum; atque
identidem exercituum caedes, famem,
pestilentiam, incendia, hiatum aliquem
terrae optabat.
XXXI. Costumava lamentar-se também
publicamente do estado das coisas de seu
tempo, que não era marcado por quaisquer
grandes calamidades, que o principado de
Augusto tinha sido marcado pelo desastre
de VaroXCIV, o de Tibério fora feito
memorável pelo desmoronamento do
anfiteatro em FidenasXCV, enquanto o seu
ameaçava ser esquecido por conta da
prosperidade. E repetidamente desejava o
massacre dos exércitos, a fome, a peste,
incêndios ou algum terremoto.
XCI Os retiarii tunicati eram aparentemente prisioneiros de caráter efeminado, destinados a servir de “alívio
cômico” durante as lutas. Numa sátira de Juvenal, Graco, um personagem da nobreza, luta como um desses
gladiadores, e é vituperado pelo autor (Juv. VIII, 200). Como os retiarii originais, usavam a rede e o tridente
como suas principais armas, além de uma manga de metal que lhes cobria o braço. Lutavam com a face à
mostra. XCII Os secutores eram um tipo de gladiador armado de espada, escudo, capacete e grevas. XCIII É difícil explicar a revolta de Calígula com o ocorrido, mas ela possivelmente deriva do papel atribuído
aos retiarii tunicati: eles não deveriam vencer os combates de que participavam. XCIV Referência ao episódio da perda das três legiões (XVII, XVIII e XIX) sob comando de Públio Quintílio
Varo, que foram massacradas na floresta de Teutoburgo, na Germânia. XCV Relatado por Suetônio em Tib. XL, esse desastre teria ceifado a vida de vinte mil pessoas.
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XXXII. 1Animum quoque remittenti
ludoque et epulis dedito eadem factorum
dictorumque saeuitia aderat. 2Saepe in
conspectu prandentis uel comisantis seriae
quaestiones per tormenta habebantur,
miles decollandi artifex quibuscumque e
custodia capita amputabat. 3Puteolis
dedicatione pontis, quem excogitatum ab
eo significauimus, cum multos e litore
inuitasset ad se, repente omnis
praecipitauit, quosdam gubernacula
apprehendentes contis remisque detrusit in
mare. 4Romae publico epulo seruum ob
detractam lectis argenteam laminam
carnifici confestim tradidit, ut manibus
abscisis atque ante pectus e collo
pendentibus, praecedente titulo qui
causam poenae indicaret, per coetus
epulantium circumduceretur.
5Murmillonem e ludo rudibus secum
battuentem et sponte prostratum confodit
ferrea sica ac more uictorum cum palma
discucurrit. 6Admota altaribus uictima
succinctus poparum habitu elato alte
malleo cultrarium mactauit. 7Lautiore
conuiuio effusus subito in cachinnos
consulibus, qui iuxta cubabant, quidnam
rideret blande quaerentibus: "Quid,"
XXXII. 1Mesmo enquanto relaxava, e se
dedicava aos jogos e aos banquetes, ainda
mostrava a mesma crueldade nos atos e
nas palavras. 2Frequentemente questões
sérias eram respondidas através de tortura
diante dele, enquanto jantava ou se
entregava a orgias, e um soldado
especialista em decapitações cortava as
cabeças de todos os prisioneiros. 3Durante
a inauguração da ponte em Putéoli, que
dissemos ter sido planejada por ele, como
chamasse para si muitas pessoas que
estavam à margem, de repente as fez cair
ao mar, e as empurrou com varas e remos
enquanto elas se agarravam ao leme.
4Durante um banquete público em Roma,
levou um escravo imediatamente ao
carrasco por ter roubado de dentre os leitos
uma bandeja de prata e fez com que ele
circulasse entre os que se banqueteavam
com as mãos decepadas em frente ao
peito, penduradas ao pescoço, precedido
de um escrito que indicava a causa de sua
punição. 5Atravessou com um punhal de
ferro um mirmilãoXCVI do colégio dos
gladiadores que lutava com ele usando
espadas de madeira, quando este se jogou
ao chão de propósito, e começou a correr
com a palma na mão, à maneira dos
XCVI O murmillo era um gladiador que se utilizada de um elmo adornado com a figura de um peixe. Era
muitas vezes colocado para lutar com o retiarius, criando-se assim uma representação da atividade de pesca.
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inquit, "nisi uno meo nutu iugulari
utrumque uestrum statim posse?"
vencedores. 6Tendo sido levada ao altar
uma vítima, ele, vestido como popaXCVII,
erguendo bem alto o martelo, sacrificou o
cutileiroXCVIII. 7Durante um banquete mais
luxuoso, começou a rir de repente e sem
parar. Como os cônsules que estavam ao
seu lado tivessem perguntado
educadamente por que ele ria, respondeu:
“Pelo que mais, se não pelo fato de que,
com um aceno de minha cabeça, cada um
de vocês pode ser degolado?”
XXXIII. 1Inter uarios iocos, cum assistens
simulacro Iouis Apellen tragoedum
consuluisset uter illi maior uideretur,
cunctantem flagellis discidit conlaudans
subinde uocem deprecantis quasi etiam in
gemitu praedulcem. 2Quotiens uxoris uel
amiculae collum exoscularetur, addebat:
"tam bona ceruix simul ac iussero
demetur." Quin et subinde iactabat
exquisiturum se uel fidiculis de Caesonia
sua, cur eam tanto opere diligeret.
XXXIII. 1Dentre seus variados
gracejosXCIX, certa vez, colocando-se ao
lado de uma estátua de Júpiter, perguntou
a um ator trágico chamado Apeles qual
dos dois lhe parecia maior. Como ele
hesitasse, mandou rasgá-lo com chicotes,
em seguida elogiando sua voz enquanto
ele suplicava, como se fosse agradável
mesmo quando ele gemiaC. 2Todas as
vezes em que beijava o pescoço da esposa
ou das amantes, dizia: “Tão bela cabeça
será cortada, assim que eu tiver dado a
ordem”. 3Mais do que isso,
frequentemente dizia “que procuraria
XCVII Popa, sacerdote encarregado de matar as vítimas com um golpe na cabeça. XCVIII Cultrarius, o ajudante do popa, era responsável por cortar a garganta das vítimas com uma lâmina. XCIX Nesse trecho vê-se como Calígula temperava suas crueldades com uma espécie de humor pervertido. C Há uma piada cruel subentendida aqui: “Apeles” pode ser entendido como o “sem-pele” (a+pellis).
Calígula ordenou que sua pele fosse rasgada com os flagelos.
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descobrir até mesmo com tortura de sua
amada Cesônia por que a amava tanto”.
XXXIV. 1Nec minore liuore ac
malignitate quam superbia saeuitiaque
paene aduersus omnis aeui hominum
genus grassatus est. 2Statuas uirorum
inlustrium ab Augusto ex Capitolina area
propter angustias in campum Martium
conlatas ita subuertit atque disiecit ut
restitui saluis titulis non potuerint,
uetuitque posthac uiuentium cuiquam
usquam statuam aut imaginem nisi
consulto et auctore se poni. 3Cogitauit
etiam de Homeri carminibus abolendis,
cur enim sibi non licere dicens, quod
Platoni licuisset, qui eum e ciuitate quam
constituebat eiecerit? 4Sed et Vergili ac
Titi Liui scripta et imagines paulum afuit
quin ex omnibus bibliothecis amoueret,
quorum alterum ut nullius ingenii
minimaeque doctrinae, alterum ut
uerbosum in historia neglegentemque
carpebat. 5De iuris quoque consultis, quasi
scientiae eorum omnem usum aboliturus,
saepe iactauit se mehercule effecturum ne
quid respondere possint praeter eum.
XXXIV. 1E com invejaCI e malignidade
não menor que sua soberba e crueldade,
lançou-se contra os homens de todos os
tempos. 2De tal forma destruiu e inutilizou
as estátuas de homens ilustres que haviam
sido levadas da praça do Capitólio para o
Campo de Marte por Augusto, por falta de
espaço, que elas não puderam ser
reconstituídas com suas inscrições
inteiras. E proibiu que dali em diante se
fizesse qualquer estátua ou imagem de
qualquer pessoa ainda viva, sem consulta
e ordem dele. 3Pensou até mesmo de abolir
os poemas de Homero, dizendo “Por que
não me será permitido fazer o que foi
permitido a Platão, que o expulsou da
cidade que ele havia idealizado?”. 4E por
pouco não removeu os escritos e imagens
de Virgílio e Tito Lívio de todas as
bibliotecas, os quais repreendia dizendo
que o primeiro não tinha qualquer gênio
ou instrução, e que o segundo era prolixo
e negligente com a história. 5Quanto aos
jurisconsultos, quase como se estivesse
para abolir todo o uso do conhecimento
deles, frequentemente dizia “por Hércules,
CI Aqui serão relatados os atos ligados à inveja que Calígula sentia da glória alheia, mesmo daqueles que já
haviam morrido.
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farei com que não possam dar consultas
que sejam contrárias a mim”.
XXXV. 1Vetera familiarum insignia
nobilissimo cuique ademit, Torquato
torquem, Cincinnato crinem, Cn. Pompeio
stirpis antiquae Magni cognomen.
2Ptolemaeum, de quo rettuli, et arcessitum
e regno et exceptum honorifice, non alia
de causa repente percussit, quam quod
edente se munus ingressum spectacula
conuertisse hominum oculos fulgore
purpureae abollae animaduertit. 3Pulchros
et comatos, quotiens sibi occurrerent,
occipitio raso deturpabat. 4Erat Aesius
Proculus patre primipilari, ob egregiam
corporis amplitudinem et speciem
Colosseros dictus; hunc spectaculis
detractum repente et in harenam deductum
Thraeci et mox hoplomacho comparauit
bisque uictorem constringi sine mora
iussit et pannis obsitum uicatim
circumduci ac mulieribus ostendi, deinde
iugulari. 5Nullus denique tam abiectae
condicionis tamque extremae sortis fuit,
XXXV. 1Ele retirou as velhas insígnias de
família dos homens mais nobres: o colar a
TorquatoCII, a cabeleira a CincinatoCIII, e o
sobrenome Magno a Cneu PompeuCIV,
que pertencia a essa antiga linhagem.
2Matou de repente a Ptolomeu, de quem já
falei, que ele havia mandado trazer de seu
reino e recebido com honras, por nenhuma
outra causa que não o fato de que, quando
entrou num anfiteatro em que oferecia
jogos públicos, percebeu que os olhos das
pessoas se voltaram a ele por causa do
fulgor de seu manto púrpura. 3Sempre que
encontrava homens belos e com belas
cabeleiras, tornava-os feios raspando-lhes
a parte de trás da cabeçaCV. 4Havia um
homem, filho de centurião, chamado Ésio
Próculo, conhecido como
“Colosseros”CVI, por sua aparência e pelo
tamanho de seu corpo; a este, arrastado de
seu lugar na plateia, e levado à arena,
CII Tito Mânlio Torquato venceu um gaulês em combate singular e retirou-lhe o colar de ouro como prêmio,
assumindo o sobrenome Torquatus, “aquele que carrega um colar”, que foi passado aos seus descendentes. CIII Lúcio Quinto Cincinato, ditador romano do V século a.C., ficou conhecido por sua falta de ambição
pessoal e virtude cívica, por ter renunciado à ditadura quando esta já não era mais necessária, efetivamente
renunciando ao governo absoluto de Roma. Cincinnatus significa “de cabelos anelados”. CIV Cneu Pompeu Magno foi aliado de Júlio César e mais tarde, durante as guerras civis, seu rival. Suas
conquistas militares lhe renderam o sobrenome Magnus, “grande”. CV A tradição diz que Calígula sofreu de calvície. CVI “Colosso” e “Eros” ao mesmo tempo. Tratava-se de um homem grande e belo.
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cuius non commodis obtrectaret.
6Nemorensi regi, quod multos iam annos
poteretur sacerdotio, ualidiorem
aduersarium subornauit. 7Cum quodam
die muneris essedario Porio post
prosperam pugnam seruum suum
manumittenti studiosius plausum esset, ita
proripuit se spectaculis, ut calcata lacinia
togae praeceps per gradus iret,
indignabundus et clamitans dominum
gentium populum ex re leuissima plus
honoris gladiatori tribuentem quam
consecratis principibus aut praesenti sibi.
Calígula fez confrontar um trácioCVII e em
seguida um hoplómacoCVIII, e mandou,
quando ele venceu os dois combates, que
fosse amarrado imediatamente, coberto de
trapos, conduzido por todas as ruas e
mostrado às mulheres, e depois degolado.
5Não houve ninguém de condição tão
abjeta ou de tão má sorte, que ele não
tenha atacado por inveja de seus
privilégios. 6Contratou um adversário
mais forte para matar o rei do BosqueCIX,
uma vez que este já ocupava o cargo havia
muitos anos. 7Quando certo dia, durante os
jogos, o essedárioCX Pório, que libertara
seu escravo depois de uma luta favorável,
tinha sido aplaudido com muito
entusiasmo, ele se arrancou da plateia tão
repentinamente que, pisando na aba da
toga, caiu pelos degraus de cabeça para
baixo, gritando e cheio de indignação
“contra o povo, senhor das gentes, que
pela coisa mais leve concedia mais honras
a um gladiador do que aos príncipes
divinizados e a ele próprio ali presente”.
CVII O Thraex era um tipo de gladiador que se utilizada de escudo e punhal semelhantes àqueles utilizados
pelo povo trácio. CVIII O Hoplomachus era um gladiador que usava armadura completa (normalmente os gladiadores só
usavam algumas partes de armadura, cobrindo a cabeça e ora os braços, ora as pernas). CIX O rex nemorensis era o sumo-sacerdote de Diana de Arícia, deusa que era cultuada no bosque sagrado
(nemus) de Arícia. Segundo o costume, qualquer um poderia ocupar este cargo, desde que fosse um escravo
fugitivo e matasse seu antecessor. CX O essedarius era um gladiador que combatia sobre um carro de guerra.
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XXXVI. 1Pudicitiae neque suae neque
alienae pepercit. 2M. Lepidum,
Mnesterem pantomimum, quosdam
obsides dilexisse fertur commercio mutui
stupri. 3Valerius Catullus, consulari
familia iuuenis, stupratum a se ac latera
sibi contubernio eius defessa etiam
uociferatus est. 4Super sororum incesta et
notissimum prostitutae Pyrallidis amorem
non temere ulla inlustriore femina
abstinuit. 5Quas plerumque cum maritis ad
cenam uocatas praeterque pedes suos
transeuntis diligenter ac lente mercantium
more considerabat, etiam faciem manu
adleuans, si quae pudore submitterent;
quotiens deinde libuisset egressus
triclinio, cum maxime placitam
seuocasset, paulo post recentibus adhuc
lasciuiae notis reuersus uel laudabat palam
uel uituperabat, singula enumerans bona
malaue corporis atque concubitus.
6Quibusdam absentium maritorum
nomine repudium ipse misit iussitque in
acta ita referri.
XXXVI. 1Não respeitou nem seu pudor,
nem o de outrosCXI. 2Diz-se que M.
Lépido, o pantomimo MnesterCXII, e
alguns reféns foram seus amantes em
mútua relação desonrosa. 3Valério
CatuloCXIII, jovem de uma família
consular, vociferou que tinha mantido
relações com Calígula e que seus flancos
estavam cansados de tanto se deitar com
ele. 4Além das relações incestuosas com as
irmãs e sobretudo com a prostituta
Pirálide, não se absteve de modo algum de
quaisquer das mulheres mais ilustres. 5As
quais, várias vezes, quando eram
chamadas para jantar junto com seus
maridos, avaliava diligentemente como
um mercador enquanto passavam junto ao
seu leito, até mesmo erguendo suas faces
com a mão, se alguma delas a abaixava por
pudor; e sempre que queria, ele deixava o
triclínioCXIV, chamando aquela que mais
havia lhe agradado e, voltando pouco
depois com sinais de recente lascívia,
abertamente elogiava ou criticava,
enumerando cada um dos pontos fortes e
fracos do corpo e do desempenho da
mulher. 6Para algumas mandou ele próprio
CXI Trata-se aqui da impudicícia de Calígula. CXII A pantomima não era uma arte bem vista pelos romanos, tanto por ser de origem grega como por seu
caráter efeminado. CXIII Possível descendente do poeta Catulo, e, segundo o próprio Suetônio, ele mesmo um autor, só que de
mimos. CXIV Salão de banquetes onde eram realizados os convivia. Era mobiliado com três leitos, sobre os quais se
deitavam os convivas, em número máximo de nove.
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uma carta de repúdio em nome dos
maridos ausentes, e mandou que constasse
nas atas públicas.
XXXVII. 1Nepotatus sumptibus omnium
prodigorum ingenia superauit, commentus
nouum balnearum usum, portentosissima
genera ciborum atque cenarum, ut calidis
frigidisque unguentis lauaretur,
pretiosissima margarita aceto liquefacta
sorberet, conuiuis ex auro panes et
obsonia apponeret, aut frugi hominem
esse oportere dictitans aut Caesarem.
2Quin et nummos non mediocris summae
e fastigio basilicae Iuliae per aliquot dies
sparsit in plebem. 3Fabricauit et deceris
Liburnicas gemmatis puppibus,
uersicoloribus uelis, magna thermarum et
porticuum et tricliniorum laxitate
magnaque etiam uitium et pomiferarum
arborum uarietate; quibus discumbens de
die inter choros ac symphonias litora
Campaniae peragraret. 4In exstructionibus
praetoriorum atque uillarum omni ratione
posthabita nihil tam efficere
concupiscebat quam quod posse effici
negaretur. 5Et iactae itaque moles infesto
XXXVII. 1Sua extravagânciaCXV em
relação às despesas superou os talentos
dos homens mais pródigos, tendo
inventado um novo uso para os banhos, e
tipos extravagantes de jantares e refeições,
banhando-se em óleos perfumados frios e
quentes, bebendo pérolas preciosíssimas
dissolvidas em vinagreCXVI, colocando
diante de seus convidados pães e outros
alimentos feitos de ouro, dizendo que ‘um
homem ou deve ser sóbrio ou ser César’.
2E durante alguns dias até jogou para a
plebe, do alto da basílica Júlia, uma
considerável soma de moedas. 3Também
fabricou navios libúrnicosCXVII de dez
fileiras de remos, com popas recobertas de
pedras preciosas, velas de cores variadas,
com grandes espaços para banhos, galerias
e triclínios, e ainda com grande variedade
de vinhas e árvores frutíferas, navios nos
quais ele, entre concertos e danças,
reclinava-se durante o dia enquanto
percorria as praias da Campânia. 4Nas
CXV É preciso entender as diferenças que Suetônio traz à tona entre liberalitas e nepotatus. A primeira é
uma virtude dos imperadores, que devem ser pródigos, dispostos a gastar dinheiro com seu povo. A segunda
é a extravagância, um vício, o gasto excessivo com aquilo que só diz respeito a si mesmo. CXVI A tradição atribui essa prática primeiramente à Cleópatra, que teria feito uma aposta com Marco
Antônio sobre quanto dinheiro ela poderia gastar num único banquete. CXVII Originários da Libúrnia, na Ilíria.
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ac profundo mari et excisae rupes
durissimi silicis et campi montibus aggere
aequati et complanata fossuris montium
iuga, incredibili quidem celeritate, cum
morae culpa capite lueretur. 6Ac ne
singula enumerem, immensas opes
totumque illud Ti. Caesaris uicies ac
septies milies sestertium non toto uertente
anno absumpsit.
edificações de palácios e de casas de
campo, desprezando toda contabilidade,
nada mais desejava fazer do que aquilo
que se dizia ser impossível. 5E assim
foram colocados diques no mar profundo
e hostil, destruídas as rochas mais duras,
igualados em altura os campos aos
montes, com aterro, e terraplanados os
cumes dos montes, com escavações, numa
velocidade verdadeiramente incrível, já
que o atraso era punido com a morte. 6E,
para não falar de cada gasto, esgotou em
menos de um ano imensas riquezas, e
todos os dois bilhões e setecentos milhões
de sestércios de Tibério.
XXXVIII. 1Exhaustus igitur atque egens
ad rapinas conuertit animum uario et
exquisitissimo calumniarum et auctionum
et uectigalium genere. 2Negabat iure
ciuitatem Romanam usurpare eos, quorum
maiores sibi posterisque eam
impetrassent, nisi si filii essent, neque
enim intellegi debere "posteros" ultra hunc
gradum; prolataque Diuorum Iuli et
Augusti diplomata ut uetera et obsoleta
deflabat. 3Arguebat et perperam editos
census, quibus postea quacumque de
causa quicquam incrementi accessisset.
4Testamenta primipilarium, qui ab initio
XXXVIII. 1Estando, pois, exaurido e
necessitado, voltou sua atenção à
pilhagemCXVIII, com variado e requintado
gênero de calúnias, leilões e impostos.
2Não permitia gozar o direito da cidadania
romana àqueles cujos antepassados o
haviam conquistado para si e para sua
posteridade, a não ser que fossem os filhos
destes, e dizia que não se devia entender
‘posteridade’ como nada para além desse
grau; e quando alguém lhe apresentava
documentos do Divino Júlio e do Divino
Augusto, desprezava-os como antigos e
obsoletos. 3E também acusava de terem
CXVIII Nessa rubrica, Suetônio fala das rapinae de Calígula.
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Tiberi principatus neque illum neque se
heredem reliquissent, ut ingrata rescidit;
item ceterorum ut irrita et uana,
quoscumque quis diceret herede Caesare
mori destinasse. 5Quo metu iniecto cum
iam et ab ignotis inter familiares et a
parentibus inter liberos palam heres
nuncuparetur, derisores uocabat, quod
post nuncupationem uiuere perseuerarent,
et multis uenenatas matteas misit.
6Cognoscebat autem de talibus causis,
taxato prius modo summae ad quem
conficiendum consideret, confecto
demum excitabatur. 7Ac ne paululum
quidem morae patiens super quadraginta
reos quondam ex diuersis criminibus una
sententia condemnauit gloriatusque est
expergefacta e somno Caesonia quantum
egisset, dum ea meridiaret. 8Auctione
proposita reliquias omnium
spectaculorum subiecit ac uenditauit,
exquirens per se pretia et usque eo
extendens, ut quidam immenso coacti
quaedam emere ac bonis exuti uenas sibi
inciderent. 9Nota res est, Aponio
Saturnino inter subsellia dormitante,
monitum a Gaio praeconem ne praetorium
uirum crebro capitis motu nutantem sibi
praeteriret, nec licendi finem factum,
quoad tredecim gladiatores sestertium
nonagies ignoranti addicerentur.
declarado falsamente sua riqueza aqueles
que, depois de o terem declarado, tivessem
acrescentado o que quer que fosse de
aumento sob qualquer justificativaCXIX.
4Os testamentos dos centuriões, que nada
deixaram a ele ou a Tibério desde o início
do principado deste, anulou sob pretexto
de ingratidão; e da mesma forma anulou o
testamento das demais pessoas, sob
pretexto de serem vazios e sem efeito, se
houvesse alguém que dissesse que elas
haviam designado César como seu
herdeiro. 5Razão pela qual, provocado o
medo, já era nomeado abertamente como
herdeiro pelos estranhos entre seus amigos
íntimos e pelos pais entre seus filhos, os
quais ele chamava de aduladores, porque
insistiam em continuar vivos depois de
nomeá-lo, e a muitos enviou guloseimas
envenenadas. 6Ele instruía o processo de
tais causas, tendo já estabelecido
previamente a soma que considerasse que
se deveria atingir, e somente depois de
atingida tal soma ele se retirava. 7E para
que não se demorasse nem um pouco,
certa vez condenou quarenta réus
acusados de crimes diferentes à mesma
sentença, e se vangloriou dizendo a
Cesônia, despertada do sono, ‘o quanto ele
havia feito, enquanto ela dormia’.
8Organizando um leilão, ele expôs e
CXIX O que lhe dava o direito de confiscar as propriedades dos supostos criminosos.
93
vendeu as coisas que restavam de todos os
espetáculos, solicitando os preços ele
mesmo, e aumentando-os a tal ponto, que
alguns que foram coagidos a comprar
algumas coisas por um preço imenso e
tiveram seus bens esgotados cortaram as
próprias veias. 9É conhecida a história de
Apônio Saturnino, que cochilava nos
bancos. Caio tinha avisado ao pregoeiro
que não deixasse de lado o pretor que lhe
acenava frequentemente com a cabeça, e o
leilão não chegou ao fim até que fossem
atribuídos ao pretor desavisado treze
gladiadores vendidos por nove milhões de
sestércios.
XXXIX. 1In Gallia quoque, cum
damnatarum sororum ornamenta et
supellectilem et seruos atque etiam
libertos immensis pretiis uendidisset,
inuitatus lucro, quidquid instrumenti
ueteris aulae erat ab urbe repetiit,
comprensis ad deportandum meritoriis
quoque uehiculis et pistrinensibus
iumentis, adeo ut et panis Romae saepe
deficeret et litigatorum plerique, quod
occurrere absentes ad uadimonium non
possent, causa caderent. 2Cui instrumento
distrahendo nihil non fraudis ac lenocinii
XXXIX. 1Também na Gália, depois de ter
vendido os ornamentos, móveis, escravos
e até mesmo os libertos de suas irmãs
condenadas por imensas quantiasCXX,
incitado pelo lucro, mandou trazer da
cidade tudo o que havia de material do
antigo palácio, tomando veículos alugados
e os jumentos dos moinhos para o
transporte, de modo que, por vezes, faltou
pão a Roma, e muitos perderam a causa de
seus processos, porque não podiam
comparecer às suas obrigações. 2E para
vender esse material não fez uso de nada
CXX Desde o período republicano, a propriedade dos condenados era confiscada pelo ditador e mais tarde
pelo imperador. Esse processo, no entanto, era muitas vezes visto com desconfiança.
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adhibuit, modo auaritiae singulos
increpans et quod non puderet eos
locupletiores esse quam se, modo
paenitentiam simulans quod principalium
rerum priuatis copiam faceret.
3Compererat prouincialem locupletem
ducenta sestertia numerasse uocatoribus,
ut per fallaciam conuiuio interponeretur,
nec tulerat moleste tam magno aestimari
honorem cenae suae; huic postero die
sedenti in auctione misit, qui nescio quid
friuoli ducentis milibus traderet diceretque
cenaturum apud Caesarem uocatu ipsius.
além de fraudes e janotice, ora censurando
cada um dos compradores de não se
envergonharem de serem mais ricos do
que ele, ora fingindo ter pena de tornar em
objetos de particulares as coisas que
pertenceram ao príncipe. 3Tinha sido
informado de que um rico provincial tinha
oferecido duzentos mil sestércios aos seus
escravos, para que fosse admitido em seu
banquete clandestinamente, e não achou
ruim que alguém tivesse em tão alta estima
a honra de estar presente ao seu jantar; no
dia seguinte, fez com que este mesmo
homem, que estava num leilão, pagasse
duzentos mil sestércios por qualquer coisa
de frívolo e lhe disse que jantaria com
César, a convite do próprio.
XL. 1Vectigalia noua atque inaudita
primum per publicanos, deinde, quia
lucrum exuberabat, per centuriones
tribunosque praetorianos exercuit, nullo
rerum aut hominum genere omisso, cui
non tributi aliquid imponeret. 2Pro
edulibus, quae tota urbe uenirent, certum
statumque exigebatur; pro litibus ac
iudiciis ubicumque conceptis
quadragesima summae, de qua litigaretur,
nec sine poena, si quis composuisse uel
donasse negotium conuinceretur; ex
XL. 1Cobrou impostos novos e jamais
vistosCXXI, primeiro pelos publicanos, e
daí, como o lucro era abundante, pelos
centuriões e tribunos pretorianos, sem
deixar de lado nenhum gênero de coisa ou
pessoa a quem não tivesse imposto um
tributo. 2Aos comestíveis, que vinham de
toda a cidade, exigia-se uma cobrança fixa
e estabelecida; nos litígios e processos
judiciais, onde quer que fossem
realizados, exigia-se a quadragésima parte
da soma em disputa, e não sem punições
CXXI Esta nova rubrica, ainda ligada às rapinae, trata dos impostos injustos de Calígula.
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gerulorum diurnis quaestibus pars octaua;
ex capturis prostitutarum quantum
quaeque uno concubitu mereret;
additumque ad caput legis, ut tenerentur
publico et quae meretricium quiue
lenocinium fecissent, nec non et
matrimonia obnoxia essent.
para aqueles que ficasse comprovado
terem entregado ou deixado de lado a
causa; exigia-se a oitava parte dos ganhos
diários dos carregadores; dos proveitos
das prostitutas, o quanto cada uma delas
conseguia a cada encontro; havia um
acréscimo à lei, para que fossem
enquadrados nesse imposto público
aqueles que já tivessem trabalhado como
prostitutas ou proxenetas, e também os
casamentos ficavam submetidos a ele.
XLI. 1Eius modi uectigalibus indictis
neque propositis, cum per ignorantiam
scripturae multa commissa fierent, tandem
flagitante populo proposuit quidem legem,
sed et minutissimis litteris et angustissimo
loco, uti ne cui describere liceret. 2Ac ne
quod non manubiarum genus experiretur,
lupanar in Palatio constituit, districtisque
et instructis pro loci dignitate compluribus
cellis, in quibus matronae ingenuique
starent, misit circum fora et basilicas
nomenculatores ad inuitandos ad
libidinem iuuenes senesque; praebita
aduenientibus pecunia faenebris
appositique qui nomina palam
subnotarent, quasi adiuuantium Caesaris
reditus. 3Ac ne ex lusu quidem aleae
XLI. 2Anunciados desse modo os
impostos, mas não afixados, como muitas
infrações tivessem sido cometidas por
ignorância do texto, afixou a cobrança a
pedido do povo, mas em letras minúsculas
e num lugar escondido, para que ninguém
as pudesse copiar. 2E para que não
deixasse de experimentar todo tipo de
pilhagem, construiu um prostíbulo no
palácio, com diversos cômodos separados
e mobiliados de acordo com a dignidade
do lugar, nos quais se encontravam
matronas e rapazes jovens, e enviou seus
escravosCXXII pelos fóruns e basílicas para
convidar os jovens e os velhos à
libertinagem. Oferecia dinheiro
emprestado aos que vinham e mandava
CXXII Esses escravos são chamados por Suetônio de nomenculatores, um tipo de escravo de companhia cujo
dever era lembrar aos seus senhores o nome das pessoas.
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compendium spernens plus mendacio
atque etiam periurio lucrabatur. Et
quondam proximo conlusori demandata
uice sua progressus in atrium domus, cum
praetereuntis duos equites R. locupletis
sine mora corripi confiscarique iussisset,
exultans rediit gloriansque numquam se
prosperiore alea usum.
que seus nomes fossem anotados
abertamente, como se fossem
contribuintes da renda de CésarCXXIII. 3E
não desprezando mesmo o lucro dos jogos
de dados, ainda por cima ganhava por
meio da mentira e até mesmo do perjúrio.
E certa vez, dando a vez a um jogador que
estava perto dele, saiu ao átrio da casa e
viu dois cavaleiros romanos ricos, os quais
sem demora mandou que fossem presos e
tivessem seus bens confiscados, e voltou
ao jogo exultante, e gabando-se de que
‘nunca tinha tido tamanha sorte nos
dados’.
XLII. 1Filia uero nata paupertatem nec iam
imperatoria modo sed et patria conquerens
onera conlationes in alimonium ac dotem
puellae recepit. 2Edixit et strenas ineunte
anno se recepturum stetitque in uestibulo
aedium Kal. Ian. ad captandas stipes, quas
plenis ante eum manibus ac sinu omnis
generis turba fundebat. 3Nouissime
contrectandae pecuniae cupidine incensus,
saepe super immensos aureorum aceruos
patentissimo diffusos loco et nudis
pedibus spatiatus et toto corpore
aliquamdiu uolutatus est.
XLII. 1Nascida sua filhaCXXIV, queixando-
se de sua pobreza e não apenas das
despesas de governante, mas também das
de pai, aceitou contribuições para o
sustento e para constituir o dote da
menina. 2Também divulgou que receberia
presentes de ano novo, e ficou de pé na
entrada das casas no primeiro dia de
janeiro para receber o pagamento, que a
turba de todo tipo de gente diante dele lhe
jogava com as mãos cheias ou tirando da
toga. 3Por fim, aceso pelo desejo de tocar
o dinheiro, muitas vezes caminhou de pés
CXXIII Dião Cássio faz um relato diferente: segundo ele, esses membros da aristocracia não foram
prostituídos, mas apenas forçados a viver no palácio pagando uma quantia exorbitante em troca, embora,
segundo o próprio autor, alguns o tenham feito espontaneamente (Dio. LIX. 21) CXXIV Júlia Drusila, a filha de Cesônia.
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descalços sobre montes de moedas de ouro
espalhadas num vasto espaço ou rolou
sobre elas com todo o corpoCXXV.
XLIII. 1Militiam resque bellicas semel
attigit neque ex destinato, sed cum ad
uisendum nemus flumenque Clitumni
Meuaniam processisset, admonitus de
supplendo numero Batauorum, quos circa
se habebat, expeditionis Germanicae
impetum cepit; 2neque distulit, sed
legionibus et auxiliis undique excitis,
dilectibus ubique acerbissime actis,
contracto et omnis generis commeatu
quanto numquam antea, iter ingressus est
confecitque modo tam festinanter et
rapide, ut praetorianae cohortes contra
morem signa iumentis imponere et ita
subsequi cogerentur, interdum adeo
segniter delicateque, ut octaphoro
ueheretur atque a propinquarum urbium
plebe uerri sibi uias et conspergi propter
puluerem exigeret.
XLIII. 1Teve apenas uma experiência
militarCXXVI, e não de propósito
deliberado, mas quando tinha ido à
MevâniaCXXVII para ver o bosque e o rio de
Clitumno, advertido de que deveria
completar o número de soldados
batavosCXXVIII, que trazia ao seu redor,
tomou o impulso de fazer uma expedição
à Germânia; 2e sem fazer diferença, reuniu
legiões e tropas auxiliares vindas de toda
parte, recrutados em todo lugar e
conduzidos com grande rigor, e arrecadou
mantimentos de todo tipo em quantidade
jamais vista, pôs-se a caminho e saiu com
tanta pressa e rapidez que as coortes
pretorianas puseram suas insígnias sobre
os jumentos – o que era contrário ao
costume – e assim foram obrigadas a
acompanhá-lo. Às vezes era tão lento e
vagaroso, que se fazia transportar numa
liteira carregada por oito homens e exigia
do povo das cidades próximas que
CXXV Esse é um dos indícios da insanidade de Calígula apresentados por Suetônio. CXXVI Nessa rubrica, Suetônio trata dos militia, os feitos militares de Calígula. CXXVII Hoje Bevagna, na Itália. CXXVIII Oriundos da Batávia, hoje correspondente, em parte, ao território da Holanda.
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varressem as estradas para ele e as
aspergissem para evitar a poeiraCXXIX.
XLIV. 1Postquam castra attigit, ut se
acrem ac seuerum ducem ostenderet,
legatos, qui auxilia serius ex diuersis locis
adduxerant, cum ignominia dimisit; at in
exercitu recensendo plerisque
centurionum maturis iam et nonnullis ante
paucissimos quam consummaturi essent
dies, primos pilos ademit, causatus senium
cuiusque et imbecillitatem; ceterorum
increpita cupiditate commoda emeritae
militiae ad senum milium summam
recidit. 2Nihil autem amplius quam
Adminio Cynobellini Britannorum regis
filio, qui pulsus a patre cum exigua manu
transfugerat, in deditionem recepto, quasi
uniuersa tradita insula, magnificas
Romam litteras misit, monitis
speculatoribus, ut uehiculo ad forum
usque et curiam pertenderent nec nisi in
aede Martis ac frequente senatu
consulibus traderent.
XLIV. 1Depois de chegar aos
acampamentos, para se mostrar um
general cruel e severo, dispensou com
ignomínia os embaixadores que haviam
trazido as tropas auxiliares de diversas
localidades com atraso; e ao fazer a revista
do exército retirou do comando da
primeira companhia muitos dos centuriões
mais velhos - e alguns já a pouquíssimos
dias de cumprir seu tempo de serviço – sob
o pretexto de sua velhice e fraqueza de
espírito; acusando a avareza dos outros,
reduziu o estipêndio dos soldados
veteranos à soma de seis mil
sestérciosCXXX. 2E não conseguiu nada
mais do que a rendição de Admínio, filho
de Cunobelino, rei da Bretanha, que tinha
sido expulso pelo pai e fugira com uma
pequena tropa. E mandou cartas suntuosas
a Roma, como se houvesse capturado toda
a ilha, aconselhando aos batedores que
fossem num carro até o Fórum e a cúria, e
não entregassem a mensagem antes de
CXXIX Nota-se como Suetônio evita fazer quaisquer comentários sobre as possíveis batalhas travadas nessa
campanha. Ele se limita a usá-la para melhor traçar a personalidade de Calígula. CXXX O texto original fala em ‘sescentorum milium’, ou seja, seiscentos mil. No entanto, trata-se
provavelmente de um erro, já que, de acordo com Dion Cássio (Dio. LV. 23), o valor na época de
Augusto seria de doze mil sestércios.
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chegar ao Campo de Marte e diante do
senado e dos cônsules.
XLV. 1Mox deficiente belli materia
paucos de custodia Germanos traici
occulique trans Rhenum iussit ac sibi post
prandium quam tumultuosissime adesse
hostem nuntiari. 2Quo facto proripuit se
cum amicis et parte equitum
praetorianorum in proximam siluam,
truncatisque arboribus et in modum
tropaeorum adornatis ad lumina reuersus,
eorum quidem qui secuti non essent
timiditatem et ignauiam corripuit, comites
autem et participes uictoriae nouo genere
ac nomine coronarum donauit, quas
distinctas solis ac lunae siderumque specie
exploratorias appellauit. 3Rursus obsides
quosdam abductos e litterario ludo
clamque praemissos, deserto repente
conuiuio, cum equitatu insecutus ueluti
profugos ac reprehensos in catenis
reduxit; in hoc quoque mimo praeter
modum intemperans. Repetita cena
renuntiantis coactum agmen sic ut erant
loricatos ad discumbendum adhortatus est.
Monuit etiam notissimo Vergili uersu
"durarent secundisque se rebus seruarent."
5Atque inter haec absentem senatum
populumque grauissimo obiurgauit edicto,
quod Caesare proeliante et tantis
XLV. Pouco tempo depois, faltando-lhe
motivo para a guerra, mandou que alguns
poucos reféns germanos atravessassem o
Reno e se escondessem, e que se
anunciasse a ele com grande tumulto,
depois do jantar, que o inimigo estava
perto. Razão pela qual se arrancou com
alguns companheiros e parte da cavalaria
pretoriana para uma floresta próxima, e
depois de cortar algumas árvores e adorná-
las como troféus, retornou com archotes e
censurou os que não o haviam seguido por
sua covardia e indolência, mas aos seus
companheiros e participantes da vitória
presenteou-lhes com coroas de um novo
tipo e novo nome, as quais chamou
‘exploradoras’, e que eram adornadas com
a imagem do sol, da lua e dos astros. Outra
vez sequestrou reféns de uma escola e os
mandou secretamente à sua frente, depois
do que ele repentinamente abandonou um
banquete e os perseguiu com o auxílio de
uma cavalaria como se fossem foragidos e
os trouxe de volta acorrentados.
Excessivamente desregrado também nesta
encenação, depois que voltou ao jantar,
exortou os soldados que vinham informá-
lo de que o exército estava reunido a se
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discriminibus obiecto tempestiua
conuiuia, circum et theatra et amoenos
secessus celebrarent.
sentarem à mesa do jeito que estavam,
vestidos com suas armaduras. E também
os aconselhou com o conhecido verso de
Virgílio para que ‘resistissem e
esperassem dias melhores’CXXXI. E,
enquanto isso, repreendeu o senado e o
povo ausentes em Roma com um édito
muito severo, pois ‘enquanto César lutava
e era objeto de tantos perigos, celebravam
banquetes suntuosos, aproveitando os
jogos circenses, teatros e retiros amenos’.
XLVI. Postremo quasi perpetraturus
bellum, derecta acie in litore Oceani ac
ballistis machinisque dispositis, nemine
gnaro aut opinante quidnam coepturus
esset, repente ut conchas legerent
galeasque et sinus replerent imperauit,
"spolia Oceani" uocans "Capitolio
Palatioque debita," et in indicium
uictoriae altissimam turrem excitauit, ex
qua ut Pharo noctibus ad regendos nauium
cursus ignes emicarent; pronuntiatoque
militi donatiuo centenis uiritim denariis,
quasi omne exemplum liberalitatis
supergressus: "abite," inquit, "laeti, abite
locupletes."
XLVI. Por fim, como se estivesse para pôr
um fim a uma guerra, levou o exército às
margens do Oceano e armou catapultas e
máquinas de guerra, sem que ninguém
soubesse ou pudesse imaginar o que ele
faria, e de repente mandou que fossem
recolhidas conchas e que os soldados
enchessem os bolsos e os capacetes,
chamando-as de ‘espólios do Oceano,
devidas ao Capitólio e ao Palatino’, e
ergueu uma altíssima torre em sinal de
vitória, da qual, como em Faros,
brilhariam luzes para guiar o caminho dos
navios durante a noite; e anunciando ao
exército uma recompensa de cem denários
para cada homem, como se tivesse
ultrapassado todo exemplo de
CXXXI Calígula cita uma passagem da Eneida (I, 207).
101
generosidade, disse-lhes: ‘Ide em alegria!
Ide enriquecidos!’CXXXII.
XLVII. 1Conuersus hinc ad curam
triumphi praeter captiuos ac transfugas
barbaros Galliarum quoque
procerissimum quemque et, ut ipse
dicebat, ἀξιοθριάμβευτον, ac nonnullos ex
principibus legit ac seposuit ad pompam
coegitque non tantum rutilare et
summittere comam, sed et sermonem
Germanicum addiscere et nomina
barbarica ferre. 2Praecepit etiam triremis,
quibus introierat Oceanum, magna ex
parte itinere terrestri Romam deuehi.
3Scripsit et procuratoribus, triumphum
appararent quam minima summa, sed
quantus numquam alius fuisset, quando in
omnium hominum bona ius haberent.
XLVII. 1Voltando-se ao cuidado do seu
triunfo, além dos cativos e dos fugitivos
bárbaros, escolheu os mais eminentes de
cada uma das Gálias e, como ele mesmo
dizia, ‘os mais dignos de triunfo’, e alguns
dentre os príncipes e os reservou à
cerimônia, coagindo-os não somente a
tingir de vermelho os cabelos e a deixá-los
crescer, mas também a aprender a língua
dos germanos e adotar nomes bárbaros.
2Instruiu também que se trouxessem para
Roma as trirremesCXXXIII nas quais ele
havia adentrado o Oceano, e isso foi feito
na maior parte pelo caminho terrestre. 3E
também escreveu aos procuradores ‘que
preparassem um triunfo com o menor
gasto, mas maior do que jamais houvera,
pois tinha autoridade sobre os bens de
todos os homens’CXXXIV.
XLVIII. 1Prius quam prouincia decederet,
consilium iniit nefandae atrocitatis
XLVIII. 1Antes de deixar a província,
planejou a nefanda atrocidade de destruir
CXXXII Essa passagem pode ter sido, segundo Winterling (2011: 118), o resultado de um motim por parte
das tropas que acompanhavam Calígula, que teriam se recusado a atravessar o mar até a Bretanha. O gesto
de Calígula de fazer com que recolhessem conchas como espólios e dar a eles uma recompensa minúscula
poderia ser uma tentativa de ridicularizá-los por sua covardia. CXXXIII Embarcação de guerra que dispunha de três ordens de remos. CXXXIV Possível tentativa de fazer pouco do triunfo, que era uma instituição regulada pelo Senado, com
quem Calígula parecia indisposto.
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legiones, quae post excessum Augusti
seditionem olim mouerant, contrucidandi,
quod et patrem suum Germanicum ducem
et se infantem tunc obsedissent, uixque a
tam praecipiti cogitatione reuocatus,
inhiberi nullo modo potuit quin decimare
uelle perseueraret. 2Vocatas itaque ad
contionem inermes, atque etiam gladiis
depositis, equitatu armato circumdedit.
3Sed cum uideret suspecta re plerosque
dilabi ad resumenda si qua uis fieret arma,
profugit contionem confestimque urbem
petit, deflexa omni acerbitate in senatum,
cui ad auertendos tantorum dedecorum
rumores palam minabatur, querens inter
cetera fraudatum se iusto triumpho, cum
ipse paulo ante, ne quid de honoribus suis
ageretur, etiam sub mortis poena
denuntiasset.
as legiões que outrora haviam promovido
uma sedição depois da morte de Augusto,
porque assediaram tanto a seu pai e
comandante deles, Germânico, quanto a
ele mesmo, ainda meninoCXXXV. E com
dificuldade foi dissuadido de tão
precipitado pensamento, mas não se pôde
convencê-lo de modo algum a desistir de
dizimá-los. 2Depois que, desarmadas, elas
foram chamadas à reunião, e até mesmo já
com as espadas depostas, cercou-as com
uma cavalaria armada. 3Mas, vendo que
muitos, suspeitando, escapavam-se para
recuperar as armas caso houvesse
contenda, fugiu da reunião e
imediatamente voltou para Roma,
despejando todo o ódio sobre o
senadoCXXXVI, que ameaçava abertamente
para distrair dos rumores de tantas
vergonhas, alegando entre outras coisas
que fora privado de seu justo triunfo,
quando ele próprio, pouco antes, havia
proibido sob pena de morte que se fizesse
algo a respeito de suas honras.
XLIX. 1Aditus ergo in itinere a legatis
amplissimi ordinis ut maturaret orantibus,
quam maxima uoce: "ueniam," inquit,
XLIX. 1Tendo sido encontrado no
caminho por um membro daquela distinta
CXXXV Como afirma Winterling (2011, 119) é muito pouco provável que os soldados daquele tempo ainda
fizessem parte das legiões depois de quase trinta anos. O mais plausível seria imaginar que Calígula
pretendia castigar os responsáveis por um novo motim. CXXXVI Sêneca afirma que Calígula planejava destruir todo o senado. (Sen. De Ira III.19.2).
103
"ueniam, et hic mecum," capulum gladii
crebro uerberans, quo cinctus erat. 2Edixit
et reuerti se, sed iis tantum qui optarent,
equestri ordini et populo; nam se neque
ciuem neque principem senatui amplius
fore. 3Vetuit etiam quemquam senatorum
sibi occurrere. 4Atque omisso uel dilato
triumpho ouans urbem natali suo
ingressus est; intraque quartum mensem
periit, ingentia facinora ausus et aliquanto
maiora moliens, siquidem proposuerat
Antium, deinde Alexandream commigrare
interempto prius utriusque ordinis
electissimo quoque. 5Quod ne cui dubium
uideatur, in secretis eius reperti sunt duo
libelli diuerso titulo, alteri "gladius," alteri
"pugio" index erat; ambo nomina et notas
continebant morti destinatorum. 6Inuenta
et arca ingens uariorum uenenorum plena,
quibus mox a Claudio demersis infecta
maria traduntur non sine piscium exitio,
quos enectos aestus in proxima litora
eiecit.
ordemCXXXVII, que lhe pedia que
apressasse seu retorno, respondeu-lhe em
alto e bom som: ‘Voltarei, sim, e isto aqui
estará comigo’ e batia na ponta do cabo da
espada, que lhe pendia da cintura. 2E
mandou dizer que ‘retornava, mas
somente para aqueles que desejavam seu
retorno, o povo e a ordem equestre, pois
ele não mais seria concidadão nem
príncipe do senado’. 3Até mesmo proibiu
que qualquer membro do senado fosse até
ele. 4E, tendo atrasado ou desistido do
triunfo, entrou na cidade no dia de seu
aniversário em meio a uma ovação; e
dentro de quatro meses morreu, tendo
ousado cometer crimes enormes, e
planejando cometer outros ainda maiores,
visto que pretendia se mudar para
ÂncioCXXXVIII, e depois para
AlexandriaCXXXIX, depois de matar os
mais importantes membros de cada
ordem. 5E para que quanto a isto não
pareça haver dúvida a quem quer que seja,
em seus documentos particulares foram
encontrados dois livrinhos com títulos
diferentes: um chamado ‘espada’, e o
CXXXVII Ou seja, da ordem senatorial. Esse trecho dá ainda mais indícios da relação conturbada entre
Calígula e a aristocracia romana. CXXXVIII Outro indício de que esta seria a localidade natal de Calígula. CXXXIX Desde os tempos de Augusto, que criticava a aproximação entre Marco Antônio e Cleópatra, tornou-
se um lugar-comum que os governantes que não recebiam aprovação da aristocracia fossem acusados
posteriormente de tentar “orientalizar” o Império. Pode-se supor que isso também se encaixa com as
alegações de relações incestuosas entre Calígula e suas irmãs (que seriam mais naturais no Egito) e o
estabelecimento de um culto ao seu próprio nume.
104
outro ‘punhal’CXL; ambos continham
nomes e marcas distintivas dos que
estavam destinados à morte. 6Também foi
encontrada uma imensa arca cheia de
vários venenos, os quais, dizem,
contaminaram os mares, não sem matança
de peixes, que as ondas lançaram, mortos,
nas praias próximas depois que Cláudio
jogou seu conteúdo na água.
L. 1Statura fuit eminenti, colore expallido,
corpore enormi, gracilitate maxima
ceruicis et crurum, oculis et temporibus
concauis, fronte lata et torua, capillo raro
at circa uerticem nullo, hirsutus cetera.
2Quare transeunte eo prospicere ex
superiore parte aut omnino quacumque de
causa capram nominare, criminosum et
exitiale habebatur. 3Vultum uero natura
horridum ac taetrum etiam ex industria
efferabat componens ad speculum in
omnem terrorem ac formidinem.
4Valitudo ei neque corporis neque animi
constitit. Puer comitiali morbo uexatus, in
adulescentia ita patiens laborum erat, ut
tamen nonnumquam subita defectione
ingredi, stare, colligere semet ac sufferre
uix posset. 5Mentis ualitudinem et ipse
L. 1Era de alta estatura, cor pálida, corpo
enorme, mas com pescoço e pernas
extremamente magros, têmporas e olhos
côncavos, testa larga e ameaçadora, cabelo
ralo e calvo no topo da cabeça, mas com
um corpo peludo. 2Razão pela qual era
considerado crime e motivo de pena
capital falar em bodes, sob qualquer
pretexto, ou olhá-lo de cima quando ele
passava. 3Seu rosto já naturalmente feio e
horrendo ele tornava ainda mais bestial,
treinando diante do espelho todo tipo de
terror e espantoCXLI. 4Não era saudável
nem de corpo, nem de espírito. Quando
menino, fora acometido por epilepsia, e
durante a juventude suportava sofrimento
tal que, muitas vezes, tomado por súbito
desfalecimento, mal conseguia caminhar,
CXL Que seriam carregados por um liberto seu, Protógenes. CXLI Este retrato de Calígula entra em contraste com o de Germânico. De acordo com as tradições de
fisiognomia da Antiguidade, o fato de ter um corpo grande e membros magros era sinal de sua feiura. A
palidez era vista como sinal de covardia. Os olhos de Calígula davam a impressão de estupidez. (LINDSAY,
2002, p. 153).
105
senserat ac subinde de secessu deque
purgando cerebro cogitauit. 6Creditur
potionatus a Caesonia uxore amatorio
quidem medicamento, sed quod in
furorem uerterit. 7Incitabatur insomnio
maxime; neque enim plus quam tribus
nocturnis horis quiescebat ac ne iis
quidem placida quiete, sed pauida miris
rerum imaginibus, ut qui inter ceteras
pelagi quondam speciem conloquentem
secum uidere uisus sit. 8Ideoque magna
parte noctis uigiliae cubandique taedio
nunc toro residens, nunc per longissimas
porticus uagus inuocare identidem atque
expectare lucem consuerat.
ou ficar de pé, se recompor ou se sustentar.
5Ele próprio tinha tomado consciência de
sua saúde mental, e pensou
frequentemente de se retirar e limpar seu
cérebro. 6Acredita-se que tenha sido
envenenado pela esposa Cesônia com
algum filtro de amor, mas que se
transformara em loucuraCXLII. 7Era
atormentado sobretudo pela insônia; pois
não descansava mais do que três horas
durante a noite, e não eram essas horas de
um repouso plácido, mas sim aterrado por
imagens terríveis, de modo que, entre
outras coisas, pareceu-lhe, certa vez, ver a
si mesmo conversando com o espírito do
mar. 8E, por isso, durante a maior parte da
noite, cansado de permanecer deitado sem
dormir, tinha o costume de ora sentar-se
no leito, ora, vagando através de muitos
pórticos, invocar e esperar
incessantemente pela luz do dia.
LI. 1Non inmerito mentis ualitudini
attribuerim diuersissima in eodem uitia,
summam confidentiam et contra nimium
metum. 2Nam qui deos tanto opere
contemneret, ad minima tonitrua et
fulgura coniuere, caput obuoluere, at uero
maiore proripere se e strato sub lectumque
LI. 1Eu posso atribuir não injustamente à
sua saúde mental os dois muito diferentes
vícios nele presentes, uma petulância
exacerbada e, por outro lado, uma
covardia demasiada. 2Pois aquele que
tanto desprezava os deuses costumava, ao
perceber o menor trovão ou raio, fechar os
CXLII Embora a tradição tenha sempre considerado Calígula um governante louco, a maioria dos
especialistas de hoje discorda dessa hipótese. (WINTERLING, 2011: 6).
106
condere solebat. 3Peregrinatione quidem
Siciliensi irrisis multum locorum
miraculis repente a Messana noctu
profugit Aetnaei uerticis fumo ac
murmure pauefactus. 4Aduersus barbaros
quoque minacissimus, cum trans Rhenum
inter angustias densumque agmen iter
essedo faceret, dicente quodam non
mediocrem fore consternationem sicunde
hostis appareat, equum ilico conscendit ac
propere reuersus ad pontes, ut eos
calonibus et impedimentis stipatos
repperit, impatiens morae per manus ac
super capita hominum translatus est. 5Mox
etiam audita rebellione Germaniae fugam
et subsidia fugae classes apparabat, uno
solacio adquiescens transmarinas certe
sibi superfuturas prouincias, si uictores
Alpium iuga, ut Cimbri, uel etiam urbem,
ut Senones quondam, occuparent; unde
credo percussoribus eius postea consilium
natum apud tumultuantes milites
ementiendi, ipsum sibi manus intulisse
nuntio malae pugnae perterritum.
olhos, cobrir a cabeça, e quando estes
eram estrondosos, arrancar-se do estrado e
esconder-se sob o leito. 3Durante sua
peregrinação pela SicíliaCXLIII, riu-se dos
milagres em muitos lugares, mas fugiu de
repente de Messana, durante a noite,
aterrorizado com a fumaça e com o ruído
no topo do Etna. 4Embora ameaçador
contra os bárbaros, quando fez o caminho
de carro para atravessar o Reno e ficou
entre os desfiladeiros com seu exército
cerrado, e alguém disse que não seria
pequeno o tumulto se o inimigo
aparecesse, imediatamente subiu num
cavalo e correu de volta para as pontes, e
como as encontrasse bloqueadas por
criados e bagagens, impaciente com a
demora, fez-se ser levado sobre as cabeças
dos homens, sustentado pelas suas mãos.
5E pouco depois, tendo ouvido falar da
rebelião na GermâniaCXLIV, preparou a
fuga e uma esquadra com mantimentos
para fugir, tendo como único consolo o
fato de que lhe restariam as províncias de
além-mar, se os vencedores tomassem o
topo dos alpes, como os CimbrosCXLV
haviam feito, ou até mesmo a própria
Roma, como os SenonosCXLVI certa vez.
Razão pela qual, creio, seus assassinos
CXLIII Logo após a morte da irmã Drusila. CXLIV Segundo Lindsay, não há registro desse episódio. Talvez seja uma referência à conspiração de
Getúlico. (LINDSAY, 2002: 157). CXLV Povo da Germânia. CXLVI Povo da Gália Cisalpina.
107
posteriormente tiveram a ideia de inventar
para os seus soldados revoltados que ele
próprio tinha tirado a vida, com medo da
notícia de uma derrota.
LII. 1Vestitu calciatuque et cetero habitu
neque patrio neque ciuili, ac ne uirili
quidem ac denique humano semper usus
est. 2Saepe depictas gemmatasque indutus
paenulas, manuleatus et armillatus in
publicum processit; aliquando sericatus et
cycladatus; ac modo in crepidis uel
coturnis, modo in speculatoria caliga,
nonnumquam socco muliebri; plerumque
uero aurea barba, fulmen tenens aut
fuscinam aut caduceum deorum insignia,
atque etiam Veneris cultu conspectus est.
3Triumphalem quidem ornatum etiam ante
expeditionem assidue gestauit, interdum
et Magni Alexandri thoracem repetitum e
conditorio eius.
LII. 1Nunca usou roupas e calçados e
outras vestimentas à moda nacional, nem
dos cidadãos, nem dos chefes de família,
e, por fim, nem dos seres humanos.
2Frequentemente vestia-se com capas
coloridas e adornadas com pedras, saía em
público com túnicas de manga e com
braceletes, às vezes usando sedas e
cícladeCXLVII, às vezes sandálias ou
coturnos, às vezes botas de batedor, ou
ainda borzeguins femininosCXLVIII; foi
visto várias vezes usando uma barba
dourada, segurando um raio, um tridente
ou um caduceu, insígnias dos deuses, e até
mesmo vestido de VênusCXLIX. 3Em
muitas ocasiões vestiu os ornamentos
triunfais mesmo antes de sua campanha
militar, às vezes usando a couraça de
Alexandre MagnoCL, tirada de seu túmulo.
CXLVII Peça do vestuário feminino. CXLVIII Essa descrição é uma tentativa de reforçar a natureza efeminada de Calígula. CXLIX Aqui, acrescenta-se ao seu caráter efeminado sua húbris ao se comparar com os deuses. CL Outro sinal da fraqueza de Calígula pelas tradições orientais.
108
LIII. 1Ex disciplinis liberalibus minimum
eruditioni, eloquentiae plurimum attendit,
quantumuis facundus et promptus, utique
si perorandum in aliquem esset. 2Irato et
uerba et sententiae suppetebant,
pronuntiatio quoque et uox, ut neque
eodem loci prae ardore consisteret et
exaudiretur a procul stantibus.
3Peroraturus stricturum se lucubrationis
suae telum minabatur, lenius comptiusque
scribendi genus adeo contemnens, ut
Senecam tum maxime placentem
"commissiones meras" componere et
"harenam esse sine calce" diceret.
4Solebat etiam prosperis oratorum
actionibus rescribere et magnorum in
senatu reorum accusationes
defensionesque meditari ac, prout stilus
cesserat, uel onerare sententia sua
quemque uel subleuare, equestri quoque
ordine ad audiendum inuitato per edicta.
LIII. 1Dentre as disciplinas liberaisCLI,
dedicou-se pouco à erudição, e mais à
eloquência, sendo facundo e disposto ao
falar com alguém. 2Quando irado, as
palavras e as frases ficavam à sua
disposição, assim como a voz e a
pronúncia, de tal modo que não parava no
mesmo lugar de tão empolgado, e era
ouvido mesmo pelos que estavam longe.
3Quando estava para discursar, ameaçava
que ‘sacaria um dardo de suas
lucubrações’, de tal forma desprezando o
estilo de escrita mais ameno e burilado,
que dizia que Sêneca, então muitíssimo
apreciado, havia composto ‘meras obras
de ocasião’, e que era ‘areia sem cal’CLII.
4Também costumava compor respostas
aos discursos dos oradores de sucesso, e
elaborar acusações e defesas dos grandes
réus no senadoCLIII, e, conforme concedia
seu estilo, tornar-lhes a sentença mais
pesada ou mais leve, convidando até
mesmo a ordem equestre, por meio de
éditos, para que o ouvissem.
CLI A saber: retórica, filosofia, música, poesia e jurisprudência. O interesse de Calígula pela retórica já havia
sido demonstrado nos jogos que ele havia realizado em Siracusa (Cf. nota LXI). CLII Visão que possivelmente não diferia muito da de Suetônio, que afirma que Sêneca teria privado o jovem
Nero do contato com oradores mais recentes (e melhores) para fortalecer a admiração que o futuro
imperador tinha por ele. (Ner. LII.1). CLIII O que não difere muito dos exercícios de controuersiae e de suasoriae praticados pelos alunos de
retórica.
109
LIV. 1Sed et aliorum generum artes
studiosissime et diuersissimas exercuit.
2Thraex et auriga, idem cantor atque
saltator, battuebat pugnatoriis armis,
aurigabat exstructo plurifariam circo;
canendi ac saltandi uoluptate ita
efferebatur, ut ne publicis quidem
spectaculis temperaret quo minus et
tragoedo pronuntianti concineret et
gestum histrionis quasi laudans uel
corrigens palam effingeret. 3Nec alia de
causa uidetur eo die, quo periit,
peruigilium indixisse quam ut initium in
scaenam prodeundi licentia temporis
auspicaretur. 4Saltabat autem
nonnumquam etiam noctu; et quondam
tres consulares secunda uigilia in Palatium
accitos multaque et extrema metuentis
super pulpitum conlocauit, deinde repente
magno tibiarum et scabellorum crepitu
cum palla tunicaque talari prosiluit ac
desaltato cantico abiit. 5Atque hic tam
docilis ad cetera natare nesciit.
LIV. 1Mas também exerceu
diligentemente artes bem diferentes, e de
outros gêneros. 2Como trácioCLIV ou piloto
de biga, ou mesmo como cantor ou
dançarino, batia-se com armas de lutador,
e conduzia a biga nos diversos lugares em
que se havia construído um circo; era tão
afetado pelo desejo de cantar e de dançar,
que nem mesmo durante os espetáculos
públicos conseguia impedir-se de
declamar junto com o ator de tragédia ou
de imitar os gestos do histrião, como se o
elogiasse ou corrigisseCLV. 3E não parece
ter sido por outro motivo que, no dia em
que morreu, tinha determinado um culto
noturno com vigília, para que inaugurasse
o início de seu aparecimento no palco,
usando a ocasião como desculpa.
4Dançava muitas vezes até durante a noite;
e certa vez, durante a segunda vigíliaCLVI,
colocou sobre os bancos três consulares –
que temiam coisas extremas e diversas -
que ele havia mandado trazer ao palácio, e
então, de repente, com o grande estrondo
das flautas e escabelosCLVII, saltou diante
deles com uma túnica que ia até os
tornozelos e vestes de ator trágico e, tendo
feito seu canto e sua dança, foi embora. 4E
CLIV Cf. nota CVII. CLV Todas essas práticas iam de encontro aos valores da aristocracia romana, e foram atribuídas a Calígula
e a Nero de maneira análoga. CLVI Os romanos dividiam as horas sem sol em quatro vigílias de três horas cada. O período da segunda
vigília seria entre nove horas e meia-noite. CLVII Scabellum, um pequeno tamborete que se tocava com o pé.
110
este homem, tão versado em outras
matérias, não sabia nadar.
LV. 1Quorum uero studio teneretur,
omnibus ad insaniam fauit. 2Mnesterem
pantomimum etiam inter spectacula
osculabatur, ac si qui saltante eo uel leuiter
obstreperet, detrahi iussum manu sua
flagellabat. 3Equiti R. tumultuanti per
centurionem denuntiauit, abiret sine mora
Ostiam perferretque ad Ptolemaeum
regem in Mauretaniam codicillos suos;
quorum exemplum erat: "ei quem istoc
misi, neque boni quicquam neque mali
feceris." 4Thraeces quosdam Germanis
corporis custodibus praeposuit.
5Murmillonum armaturas recidit.
6Columbo uictori, leuiter tamen saucio,
uenenum in plagam addidit, quod ex eo
Columbinum appellauit; sic certe inter alia
uenena scriptum ab eo repertum est.
7Prasinae factioni ita addictus et deditus,
ut cenaret in stabulo assidue et maneret,
agitatori Eutycho comisatione quadam in
LV. 1Cuidava daqueles que tinha em
grande estima até o ponto da loucura.
2Mesmo durante os espetáculos beijava o
pantomimo MnesterCLVIII, e se alguém
fazia um leve ruído enquanto ele dançava,
mandava que se retirasse e o flagelava
com suas próprias mãos. 3Mandou a um
cavaleiro romano que fazia barulho,
através de um centurião, que ele fosse sem
demora para Óstia e levasse até o rei
Ptolomeu na Mauritânia seu bilhete, que
tinha como minuta: ‘Não farás nada de
bom ou de mal àquele que enviei para
aí’CLIX. 4Pôs alguns gladiadores tráciosCLX
à frente de sua guarda germânicaCLXI.
5Diminuiu a armadura dos mirmilõesCLXII.
6Depois que ColomboCLXIII foi vencedor,
embora tivesse sido ferido de leve, ele
colocou veneno em sua ferida, veneno que
chamou de columbino por conta dele; com
esse nome ele foi encontrado na lista de
CLVIII Novamente há uma crítica ao caráter efeminado de Calígula, não sem menção ao seu comportamento
favorável às tradições gregas. CLIX Um plano demasiadamente complexo para simplesmente exilar o cavaleiro. Outra amostra do estranho
senso de humor de Calígula. CLX Cf. nota CVII. CLXI O que demonstra seu apreço pelos gladiadores enquanto grupo, o que obviamente não era visto com
bons olhos pelos seus críticos. CLXII Cf. nota XCVI. O fato de Calígula ter diminuído a armadura desse tipo de gladiador pode ser sinal de
sua preferência pelos seus rivais, sobretudo os trácios, que ele havia acrescentado à sua guarda particular. CLXIII Um gladiador contemporâneo de Calígula. Esse ato novamente atesta o interesse desmesurado do
imperador pelos jogos de gladiadores.
111
apophoretis uicies sestertium contulit.
8Incitato equo, cuius causa pridie
circenses, ne inquietaretur, uiciniae
silentium per milites indicere solebat,
praeter equile marmoreum et praesaepe
eburneum praeterque purpurea tegumenta
ac monilia e gemmis domum etiam et
familiam et supellectilem dedit, quo
lautius nomine eius inuitati acciperentur;
consulatum quoque traditur destinasse.
venenos escrita por Calígula. 7Era tão
favorável e dedicado à facção
prásinaCLXIV, que muitas vezes ceava nos
seus estábulos ou lá permanecia, e deu ao
condutor Eutico, durante uma orgia, dois
milhões de sestércios como presente.
8Costumava usar soldados para forçar o
silêncio nas vizinhanças quando da
véspera dos jogos circenses, para que seu
cavalo Incitato não fosse incomodado,
além ter-lhe mandado construir um
estábulo de mármore e uma manjedoura
de marfim. Também cobriu-lhe de
púrpura, deu-lhe colares de pedras
preciosas, uma casa, escravos e mobília,
para que pudesse receber com maior
suntuosidade os convidados; diz-se
também que planejava fazê-lo cônsulCLXV.
LVI. 1Ita bacchantem atque grassantem
non defuit plerisque animus adoriri. 2Sed
una atque altera conspiratione detecta,
aliis per inopiam occasionis cunctantibus,
duo consilium communicauerunt
perfeceruntque, non sine conscientia
potentissimorum libertorum
praefectorumque praetori; quod ipsi
LVI. 1Por tamanha devassidão e tantos
assaltos, não faltou quem quisesse
derrubá-loCLXVI. 2Mas quando uma ou
outra conspiração havia sido descoberta e
outros esperavam pela ocasião necessária,
dois homens dividiram o mesmo plano e o
executaram, não sem o conhecimento dos
seus libertos mais poderosos e dos
CLXIV Cf. nota LIV. Na época de Calígula, os pilotos dividiam-se em quatro facções representadas por cores
diferentes, os verdes, os azuis, os brancos e os vermelhos. CLXV Conforme afirma Winterling (2011: 103), essa paixão pelo próprio cavalo, e principalmente a intenção
de torná-lo cônsul, provavelmente foi uma maneira de criticar e humilhar a aristocracia, equiparando seus
membros a cavalos. CLXVI Nessa rubrica, Suetônio começa a tratar da morte de Calígula.
112
quoque etsi falso in quadam coniuratione
quasi participes nominati, suspectos
tamen se et inuisos sentiebant. 3Nam et
statim seductis magnam fecit inuidiam
destricto gladio affirmans sponte se
periturum, si et illis morte dignus
uideretur, nec cessauit ex eo criminari
alterum alteri atque inter se omnis
committere. 4Cum placuisset Palatinis
ludis spectaculo egressum meridie
adgredi, primas sibi partes Cassius
Chaerea tribunus cohortis praetoriae
depoposcit, quem Gaius seniorem iam et
mollem et effeminatum denotare omni
probro consuerat et modo signum petenti
"Priapum" aut "Venerem" dare, modo ex
aliqua causa agenti gratias osculandam
manum offerre formatam commotamque
in obscaenum modum.
membros da guarda pretoriana, porque
eles próprios também quase foram
falsamente acusados de participar de uma
conspiração, e percebiam que Calígula
suspeitava deles e os odiava. 3Pois ele
criou imediatamente grande hostilidade
para alguns deles, a quem havia chamado
de lado e, puxando da espada, dito que ‘ele
mesmo se mataria, se a eles parecesse que
ele merecia a morte’, e não cessou de fazer
com que um acusasse o outro de desejar
matá-lo, nem de colocar todos contra
todos. 4Como tinham decidido atacá-lo ao
meio-dia quando ele voltaria dos
espetáculos nos jogos do Palatino, Cássio
Quérea, tribuno da coorte pretoriana,
exigiu ser o primeiro a atacar, pois Caio
costumava difamá-lo – ele que já era um
homem de idade – com todo tipo de
ultraje, como fraco e efeminado. Também
dava a ele como senha, quando ele pedia,
palavras como “PriapoCLXVII” e “Vênus”,
e quando por algum motivo precisava
agradecê-lo, Caio lhe oferecia a mão para
beijar, movendo-a e fazendo com ela
gestos obscenos.
LVII. 1Futurae caedis multa prodigia
exstiterunt. 2Olympiae simulacrum Iouis,
LVII. 1Houve muitos prodígios que
prediziam sua morteCLXVIII. 2A estátua de
CLXVII Priapus, divindade originalmente ligada à fertilidade, era um deus cuja característica mais notável
era ter um pênis de tamanho descomunal. CLXVIII Esses prodígios são reveladores dos crimes e do caráter de Calígula.
113
quod dissolui transferrique Romam
placuerat, tantum cachinnum repente
edidit, ut machinis labefactis opifices
diffugerint; superuenitque ilico quidam
Cassius nomine, iussum se somnio
affirmans immolare taurum Ioui.
3Capitolium Capuae Id. Mart. de caelo
tactum est, item Romae cella Palatini
atriensis. 4Nec defuerunt qui coniectarent
altero ostento periculum a custodibus
domino portendi, altero caedem rursus
insignem, qualis eodem die facta quondam
fuisset. 5Consulenti quoque de genitura
sua Sulla mathematicus certissimam
necem appropinquare affirmauit.
6Monuerunt et Fortunae Antiatinae, ut a
Cassio caueret; qua causa ille Cassium
Longinum Asiae tum proconsulem
occidendum delegauerat, inmemor
Chaeream Cassium nominari. 7Pridie
quam periret, somniauit consistere se in
caelo iuxta solium Iouis impulsumque ab
eo dextri pedis pollice et in terras
praecipitatum. 8Prodigiorum loco habita
sunt etiam, quae forte illo ipso die paulo
prius acciderant. 9Sacrificans respersus est
phoenicopteri sanguine; et pantomimus
Júpiter em Olímpia, que ele havia
ordenado que se desmontasse e trouxesse
para Roma, de repente, começou a rir tanto
que os andaimes caíram e os operários se
puseram a fugirCLXIX; e então chegou lá
um homem chamado Cássio, afirmando
que recebera em sonho ordens para
sacrificar um touro em honra de
JúpiterCLXX. 3O Capitólio em Cápua tinha
sido atingido por um raio no quinze de
março, assim como o quarto do guarda do
átrio do palácio, em RomaCLXXI. 4E não
faltou quem concluísse por um desses
presságios que um perigo era anunciado
ao senhor através de seus guardas, e que o
outro se referia à morte de um outro
homem insigneCLXXII, que se dera certa
vez naquele mesmo dia. 5E também o
matemático Sula, com quem Calígula
consultou seu horóscopo, afirmou-lhe que
sua morte certíssima se aproximava. 6Os
oráculos de ÂncioCLXXIII também o
advertiram de que devia tomar cuidado
com um homem chamado Cássio, razão
pela qual ele mandou que matassem
Cássio Longino, então procônsul da Ásia,
esquecendo de que Quérea se chamava
CLXIX O primeiro prodígio se refere ao crime de húbris cometido por Calígula. Pode-se pensar aqui em
Júpiter se regozijando com sua vingança que estava prestes a se dar. CLXX Um homem que tinha o mesmo nome de Quérea. Calígula aparece como a vítima a ser sacrificada em
honra (e vingança) de Júpiter. CLXXI A simbologia é clara: o raio de Júpiter atinge lugares ligados à figura do imperador. CLXXII Trata-se de Júlio César, morto em quinze de março de 44 a.C. CLXXIII Região de importância, já que era o local de nascimento de Calígula.
114
Mnester tragoediam saltauit, quam olim
Neoptolemus tragoedus ludis, quibus rex
Macedonum Philippus occisus est, egerat;
et cum in Laureolo mimo, in quo a[u]ctor
proripiens se ruina sanguinem uomit,
plures secundarum certatim
experimentum artis darent, cruore scaena
abundauit. 10Parabatur et in noctem
spectaculum, quo argumenta inferorum
per Aegyptios et Aethiopas explicarentur.
Cássio. 7No dia anterior à sua morte,
sonhou que estava no céu, junto ao trono
de Júpiter e que era lançado à terra pelo
dedão do pé direito do deus.CLXXIV
8Também foram tidas como prodígios
algumas coisas que aconteceram por acaso
um pouco mais cedo naquele mesmo dia.
9Enquanto sacrificava um flamingo, o
sangue lhe respingou; e o pantomimo
Mnester dançou uma tragédia que outrora
Neoptolemo havia encenado durante os
jogos teatrais nos quais Filipe, rei da
Macedônia, havia sido morto. Na farsa
chamada ‘Lauréolo’, na qual o ator, que se
precipitava para a própria ruína, vomitava
sangue, uma vez que muitos dos atores em
papéis secundários queriam dar
testemunho de sua arte, o palco se inundou
de sangue.CLXXV 10Também se encenou à
noite um espetáculo, cujo argumento
relacionado aos infernos seria apresentado
por egípcios e etíopes.
LVIII. 1VIIII. Kal. Febr. hora fere septima
cunctatus an ad prandium surgeret
marcente adhuc stomacho pridiani cibi
onere, tandem suadentibus amicis
egressus est. 2Cum in crypta, per quam
LVIII. 1Nove dias antes das calendas de
fevereiro, por volta da sétima horaCLXXVI,
ele hesitou entre levantar-se para ir ao
almoço, porque tinha o estômago ainda
pesado da refeição do dia anterior, mas,
CLXXIV O que confirma ainda mais a noção de que sua morte foi uma punição divina. CLXXV Esse sinal, bem como o fato de o sangue do flamingo ter respingado em Calígula, indicava uma morte
sangrenta iminente. CLXXVI Ou seja, no dia 24 de janeiro, por volta das 13h.
115
transeundum erat, pueri nobiles ex Asia ad
edendas in scaena operas euocati
praepararentur, ut eos inspiceret
hortareturque restitit, ac nisi princeps
gregis algere se diceret, redire ac
repraesentare spectaculum uoluit. 3Duplex
dehinc fama est: alii tradunt adloquenti
pueros a tergo Chaeream ceruicem gladio
caesim grauiter percussisse praemissa
uoce: "hoc age!" Dehinc Cornelium
Sabinum, alterum e coniuratis, tribunum
ex aduerso traiecisse pectus; alii Sabinum
summota per conscios centuriones turba
signum more militiae petisse et Gaio
"Iouem" dante Chaeream exclamasse:
"accipe ratum!" Respicientique maxillam
ictu discidisse. 4Iacentem contractisque
membris clamitantem se uiuere ceteri
uulneribus triginta confecerunt; nam
signum erat omnium: "repete!" 5Quidam
etiam per obscaena ferrum adegerunt. 6Ad
primum tumultum lecticari cum asseribus
in auxilium accucurrerunt, mox Germani
corporis custodes, ac nonnullos ex
percussoribus, quosdam etiam senatores
innoxios interemerunt.
com o convencimento dos amigos, retirou-
se. 2Na passagem coberta, pela qual teria
de passar, meninos de nobre nascimento
chamados da Ásia eram preparados para
apresentar obras no palco. Ele parou para
inspecioná-los e animá-los, e pretendia
voltar para representar o espetáculo, se o
líder da tropa não tivesse dito que sentia
frio. 3A partir daqui há duas versões para
o que aconteceuCLXXVII: alguns dizem que
Quérea o atacou por trás enquanto ele
falava com os meninos, acertando-o na
parte de trás do pescoço com a espada, a
pesados golpes de talho, ao sinal de ‘Faz
isto!’, e daí Cornélio Sabino, outro dos
conjurados, que estava à sua frente,
perfurou-lhe o peito. Outros dizem que
Sabino, fazendo a turba se dispersar com
ajuda de centuriões que sabiam do plano,
pediu-lhe a senha, como fazem os
militares, e quando Caio disse ‘Júpiter’,
Quérea exclamou: ‘Aceita o que te é
devido!’ e partiu-lhe o maxilar com um
golpe quando ele se viravaCLXXVIII. 4Os
demais lhe atingiram trinta vezes enquanto
ele jazia ao solo, com os membros
contraídos, gritando ‘estou vivo’; pois a
senha de todos eles era ‘ataca outra vez’.
5Alguns até mesmo enterraram a espada
em suas partes íntimas. 6No início do
CLXXVII As duas versões, de acordo com Lindsay (2002: 169), seriam a de Sêneca e a de Flávio Josefo. CLXXVIII Essa versão coroa a vingança de Júpiter sobre Calígula.
116
tumulto, os carregadores de liteira
correram ao seu auxílio com seus bastões,
e depois os seus guardas germanos, e eles
mataram muitos dos assassinos, e também
alguns senadores inofensivos.
LIX. 1Vixit annis uiginti nouem, imperauit
triennio et decem mensibus diebusque
octo. 2Cadauer eius clam in hortos
Lamianos asportatum et tumultuario rogo
semiambustum leui caespite obrutum est,
postea per sorores ab exilio reuersas
erutum et crematum sepultumque. 3Satis
constat, prius quam id fieret, hortorum
custodes umbris inquietatos; in ea quoque
domo, in qua occubuerit, nullam noctem
sine aliquo terrore transactam, donec ipsa
domus incendio consumpta sit. 4Perit una
et uxor Caesonia gladio a centurione
confossa et filia parieti inlisa.
LIX. 1Viveu vinte e nove anos, governou
por três anos, dez meses e oito dias. 2O
cadáver dele foi levado secretamente aos
jardins da família Lâmia, e depois de
parcialmente queimado numa fogueira
improvisada, foi enterrado num pedaço de
terra levemente coberto de relva. Depois
foi desenterrado, queimado e devidamente
sepultado pelas irmãs que retornaram do
exílio. 3Antes de elas terem feito isso,
consta que os guardas dos jardins eram
incomodados por assombraçõesCLXXIX; e
na mesma casa em que ele havia falecido,
não se passou uma noite sem que algo de
terrível acontecesse, até que a própria casa
foi consumida num incêndio. 4Pereceu ao
mesmo tempo sua esposa, Cesônia,
atravessada pela espada de um centurião e
sua filha, esmagada por uma paredeCLXXX.
CLXXIX Os costumes da Antiguidade em relação aos mortos ditavam que as almas dos mortos indevidamente
sepultados estavam condenadas a vagar como fantasmas. CLXXX O assassinato da linhagem de Calígula possivelmente teria motivações políticas (muito embora o
próprio relato de Suetônio apontasse para o fato de sua filha ter herdado seu caráter vicioso).
117
LX. 1Condicionem temporum illorum
etiam per haec aestimare quiuis possit.
2Nam neque caede uulgata statim
creditum est, fuitque suspicio ab ipso Gaio
famam caedis simulatam et emissam, ut eo
pacto hominum erga se mentes
deprehenderet; neque coniurati cuiquam
imperium destinauerunt; et senatus in
asserenda libertate adeo consensit, ut
consules primo non in curiam, quia Iulia
uocabatur, sed in Capitolium conuocarent,
quidam uero sententiae loco abolendam
Caesarum memoriam ac diruenda templa
censuerint. 3Obseruatum autem
notatumque est in primis Caesares omnes,
quibus Gai praenomen fuerit, ferro
perisse, iam inde ab eo, qui Cinnanis
temporibus sit occisus.
LX. 1Alguém poderia ter uma ideia da
condição daqueles tempos através disto:
2pois nem quando a notícia do assassinato
se espalhou acreditou-se que havia
acontecido, e suspeitou-se que o próprio
Calígula havia forjado e espalhado o
boato, para com isso saber o que as
pessoas pensavam deleCLXXXI. Os
conjurados não tinham designado
ninguém para substituí-lo. E o senado
estava tão decidido a reclamar a liberdade,
que fez a primeira convocação dos
cônsules não na Cúria, porque tinha o
nome de Júlia, mas no Capitólio, e alguns
propunham, como parecer, que se abolisse
a memória dos Césares e se destruíssem os
seus templos. 3Também se observou e
notou que todos os primeiros Césares cujo
primeiro nome era Caio haviam morrido
pela espada, desde aquele que tinha sido
morto nos tempos de CinaCLXXXII.
CLXXXI Cf. nota VII CLXXXII Caio Júlio César Estrabão, morto durante as guerras civis em 87 a.C.
118
5 Conclusão
O trabalho apresentado foi uma proposta de tradução da biografia de Calígula,
extraída do De Vita Caesarum, de Suetônio. Sua principal motivação foi a de empreender
um trabalho de tradução e comentários, que juntos forneceriam ao leitor a capacidade de
ler a vida de Calígula do ponto de vista aproximado de um leitor da época de Suetônio –
conhecendo os detalhes que o autor havia deixado de lado por serem lugares-comuns em
seu tempo, ou simplesmente porque já os havia mencionado em outras de suas biografias.
No entanto, essa proposta acabou por se transformar em algo mais complexo. Ao finalizar
a tradução, surgiu uma série de questionamentos que não poderiam ser ignorados e que
exigiam uma pesquisa mais minuciosa a respeito de aspectos ligados ao contexto de
produção da biografia de Suetônio, tanto do ponto de vista histórico como do ponto de
vista literário, bem como do gênero biográfico como um todo.
Devido a esses questionamentos, procurou-se investigar em primeiro lugar a
maneira como o contexto histórico afetou a obra de Suetônio. Viu-se que isso se deu de
duas maneiras: primeiramente, no nível da obra em si, as biografias oferecem um relato
do período histórico vivido pelos biografados. Muito embora Suetônio não seja um
historiógrafo, suas atitudes enquanto autor de biografias o colocam, ironicamente, mais
próximo daquilo que se esperaria de um historiador moderno do que estariam autores
como Tácito ou Tito Lívio. Diferentemente do que fazem os historiógrafos da
Antiguidade, Suetônio procura reproduzir os fatos sem adorná-los, faz uso de
documentação histórica relevante (como documentos escritos de próprio punho pelos
imperadores que biografou), contesta os relatos de outros colegas eruditos, etc. Um bom
exemplo disso, que se pode ver na biografia de Calígula, é como Suetônio chega à
conclusão do local de nascimento do imperador (Cal VIII). Ele começa por reconhecer
que existe um desacordo entre os autores sobre onde exatamente ele teria nascido: Cneu
Lêntulo Getúlico diz que ele nasceu em Tibur, enquanto Plínio afirma que ele teria
nascido em Tréveris. Estabelecidas as duas versões, ele entra em detalhes sobre a
documentação apresentada por Plínio para sustentar seu argumento. Depois, uma terceira
versão, do próprio Suetônio, é apresentada: os Atos oficiais diriam que ele nasceu em
Âncio. A partir daí ele pesa as diferentes versões e aquilo que as sustenta, atestando que
119
Plínio já havia descartado a hipótese de Getúlico, considerando-a uma tentativa de bajular
o imperador ao sugerir que ele havia nascido numa cidade consagrada a Hércules. Mas o
argumento de Plínio também não se sustenta, já que a inscrição citada por ele não contém
o nome de Calígula, e poderia se referir tanto a um menino quanto a uma menina.
Finalmente, Suetônio defende sua própria posição, citando não só os documentos oficiais,
mas também uma carta de Augusto que corrobora a hipótese do nascimento em Âncio.
Além disso, outras passagens de caráter histórico relevante são perdidas pela falta
de detalhamento típica de Suetônio. Por exemplo, embora a biografia de Calígula
mencione o guarda pretoriano Sejano (20 a.C. – 31 d.C.) em mais de uma ocasião, não se
fala da relevância que essa figura teve durante o governo de Tibério, enquanto o
imperador se submeteu a uma espécie de exílio na ilha de Capri. Assim, para compreender
melhor todas as referências trazidas pelo texto, é necessário entender o funcionamento do
governo romano durante a época do Principado, sobretudo, mas não exclusivamente, o de
Calígula.
A segunda maneira pela qual o contexto histórico afeta a obra de Suetônio é aquela
comum a todos os autores de qualquer período: todo texto é um produto de seu tempo. E
o tempo em que Suetônio viveu e compôs o De Vita Caesarum afeta sensivelmente o
resultado final do seu processo de composição. Assim, ao observar a relevância que o
círculo literário de Plínio, o Jovem (o mesmo cujas observações sobre o nascimento de
Calígula foram contestadas por Suetônio) teve para a vida pessoal do autor, somos
levados a concluir que muito daquilo que se apresenta sobre os imperadores biografados
deveria estar de acordo com as ideias gerais partilhadas por figuras como Plínio e Tácito
a respeito do que faz um imperador ser um bom ou mau governante. Não admira, portanto,
que a sua biografia de Calígula acabe fazendo parte do conjunto de textos que constituem
uma tradição bastante hostil ao período de seu governo, postura motivada pelos
constantes conflitos em que Calígula se envolveu com a própria aristocracia. Sendo
Suetônio um cavaleiro, um seguidor de Plínio e um amigo de Tácito, seu ponto de vista é
fortemente influenciado pela opinião da ordem senatorial. E é assim que relatos que antes
poderiam ser vistos como provocações à aristocracia (como o favoritismo que Calígula
demonstrava por seu cavalo, Incitato) são encarados ao pé da letra, e usados como base
para a construção da ideia de que Calígula fora um homem louco.
120
Ainda pensando no contexto de produção da obra, viu-se a necessidade de
entender melhor o contexto literário em que as biografias de Suetônio se inseriam. Sua
produção literária é um dos grandes momentos da biografia na Antiguidade, e para melhor
compreender as estruturas de suas biografias, é preciso colocá-las em contraste com
outras obras. Foi observando o contraste entre as biografias de Suetônio e as obras
historiográficas de Tácito que pudemos perceber a influência que esse autor teve sobre o
resultado final do texto de Suetônio, posto que Suetônio procurou de diversas maneiras
se distanciar daquilo que Tácito tinha a dizer sobre os mesmos assuntos. Assim, vimos
que Suetônio procurou começar sua obra com a biografia de dois líderes que não foram
abordados por Tácito: Júlio César e Augusto. Essa escolha já lhe garantia alguma
originalidade em relação à Tácito. Mas, mesmo na biografia dos imperadores de que
Tácito falou em suas obras, Suetônio se mostrou diferente. Seu estilo de escrita erudito e
simples se distancia muito da prosa rebuscada de Tácito. A ênfase que Tácito deu aos
assuntos típicos da historiografia clássica, como as grandes batalhas, foi evitada por
Suetônio, que se limita apenas a utilizar as batalhas relevantes dos imperadores para traçar
sua personalidade enquanto líderes militares e chegar a uma conclusão sobre seu caráter
através de suas escolhas e seu comportamento no campo de batalha.
Mas o distanciamento maior entre as duas obras se fez na escolha do gênero
literário dos textos de Suetônio. Ele escreveu uitae, e não historia. O que levou nossa
investigação a se questionar sobre a existência da biografia enquanto gênero literário.
Investigação que demonstrou que os principais “teóricos da literatura” da Antiguidade,
como Platão, Aristóteles, Horácio e Quintiliano não reconheciam a biografia como um
gênero literário à parte. Mas a mesma investigação também concluiu que os textos desses
teóricos raramente tratavam dos gêneros literários de maneira exaustiva: geralmente suas
classificações tinham um caráter mais restritivo, e eram feitas ad hoc. Além disso,
também concluiu que os textos biográficos da Antiguidade muitas vezes apresentavam
reflexões que deixavam clara a intenção de escrever algo que não era história, mas sim
biografia, e que, portanto, apesar de não haver textos teóricos da Antiguidade que
corroborem esse posicionamento, a afirmação de que a biografia foi considerada um
gênero literário pelos autores da época de Suetônio, incluindo o próprio, não é uma
afirmação leviana.
121
Dessa forma, esperamos que o trabalho tenha conseguido, através das
investigações teóricas, da tradução e dos comentários, apresentar satisfatoriamente o
contexto histórico da época retratada por Suetônio na biografia de Calígula; o contexto
histórico em que o próprio autor viveu e escreveu; o contexto literário em que a obra de
Suetônio se situa, influenciada pelos autores de seu tempo; e a possibilidade de encarar
os textos de caráter biográfico produzidos na Roma Antiga como pertencentes a um
gênero literário próprio, separados daqueles textos que são agrupados sob a rubrica da
historiografia.
122
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