UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENAS - MG
Instituto de Ciências da Natureza
Curso de Geografia – Licenciatura
BEATRIZ DA SILVA SOUZA
GEOGRAFIA E LITERATURA: PERSPECTIVAS DO LUGAR
NA OBRA “CASA DE PENSÃO” DE ALUÍSIO DE AZEVEDO
Alfenas - MG
2015
Dedico à minha amada mãe, que sempre acreditou nessa loucura que é estudar.
AGRADECIMENTOS
À da Universidade Federal de Alfenas-MG por me transformar no que eu
realmente gostaria de ser.
Ao Prof. Dr. Gil Carlos Silveira Porto, orientador, pela dedicação,
conhecimentos (com)partilhados e confiança depositada ao longo da realização
deste trabalho.
Ao meu amado pai, irmãos e padrasto que, a cada volta para casa, me
fizeram acreditar que a consumação deste sonho seria possível.
Aos queridos amigos que me acompanharam, ao longo da graduação, e
proporcionaram diálogos enriquecedores: André (meu amigo-irmão), André Bellini,
Alessandra, Anneliese, Bruno, Dimas, Erick, Leonardo, Luís Fernando e Vanessa.
Àqueles que acompanharam a minha trajetória, mesmo à distância, Tatiane e
Diego, com anseios por novos reencontros.
À Aliny, por ser minha inspiração, meu amor, meu lugar.
Refletir sobre o lugar é refletir o seu — e o meu — sentido na geografia.
(Lívia de Oliveira, 2012)
RESUMO
O diálogo entre Geografia e Literatura com abordagens fenomenológicas e de
cunho humanístico é recente. Neste trabalho, buscou-se aproximar a linguagem
literária do conhecimento científico, por meio da obra realista de Aluísio Azevedo,
“Casa de Pensão”, a fim de encontrar características do “Lugar” - uma das
categorias de análise da ciência geográfica - nas relações entre as personagens e o
meio em que estão inseridas. A revisão da literatura possibilitou o diálogo com
alguns autores da geografia humanista que teorizam sobre a categoria “Lugar”, que
nos ajudou a caracterizá-lo como objeto a ser revelado na literatura. Em “Casa de
Pensão” as vaidades da Corte são evidentes e, ao mesmo tempo, díspares quando
comparadas as simplicidades que envolvem a província maranhense (origem do
autor e, também, do personagem principal). Desse modo, ressalta-se o lirismo e a
reciprocidade entre as personagens e os lugares, nos quais se produz o cotidiano.
Estes lugares revelam desde ralações sociais corriqueiras, mostram apego ou
negação a/de certos espaços ou evocam experiências passadas dos personagens,
todas pautadas na vivência cotidiana na cidade brasileira do final do século XIX.
Palavras-chave: Casa de Pensão; literatura; lugar; geografia humanista.
ABSTRACT
The dialogue between Geography and literature with phenomenological and
humanistic approaches is recent. In this study, we sought to bring the literary
language of scientific knowledge, through the work realistic Aluísio Azevedo, "Casa
de Pensão", in order to find characteristics of "Place"- one of the categories of
analysis of geographical science - in the relationship between the characters and the
environment into which they are inserted. The literature review allowed the dialogue
with some humanist geography authors to theorize about the category "Place", which
helped us to characterize it as an object to be revealed in the literature. In "Casa de
Pensão" the vanities of Court are evident and, at the same time, disparate compared
the simplicities that surround the province of Maranhão (origin of the author and the
main character). Thus, we highlight the lyricism and reciprocity between the
characters and places, which produces the daily life. These places reveal from
everyday social intercourse, show or deny/attachment of certain spaces or evoke
past experiences of the characters, all based on everyday experience in the Brazilian
city from the late 19th century.
Keywords: “Casa de Pensão”; literature; place; humanist geography.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 9
2. PERCURSOS DE PESQUISA E CONTEXTO ESPACIAL E HISTÓRICO DA
LITERATURA ANALISADA......................................................................................14
2.1 OBJETIVOS ...................................................................................................... 14
2.2 METODOLOGIA UTILIZADA ............................................................................ 14
2.3 JUSTIFICATIVA E QUESTÃO NORTEADORA.................................................17
2.4 “QUESTÃO CAPISTRANO”...............................................................................18
3. O LUGAR SOB A ÓTICA DE DIFERENTES PENSADORES ............................ 22
4. GEOGRAFIA NA LITERATURA: OS LUGARES NA CASA DE PENSÃO........39
5. CONCLUSÃO......................................................................................................60
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......... ........................................................ .63
9
1. INTRODUÇÃO
A Geografia tem o poder de somar. Pressupõe-se, então, o diálogo com as
demais ciências, mas com precisão ao identificar a totalidade de seu objeto de
estudo – o espaço, somada com a flexibilidade por congregar às artes para
identificar as mais variadas geografias, são perspectivas que, antes dos quatro anos
de curso, não tinha conhecimento a respeito e são aspectos completamente
ímpares.
A Literatura, assim como a Geografia, sempre esteve presente no cotidiano
da pesquisadora a partir das leituras assíduas e pelo interesse nas mais diversas
sensações que as obras literárias podem proporcionar. Ao final da graduação, poder
somá-la ao universo geográfico representa uma satisfação tamanha.
A Geografia, como ciência social, possui um conjunto de categorias que
expressam a sua identidade ao discutir a ação humana enquanto modeladora da
superfície terrestre (CORRÊA, 1995). O espaço, o lugar, o território, a paisagem e a
região constituem-se como condições particulares da atuação humana na
transformação do planeta. Essas categorias ou os chamados conceitos basilares da
Geografia foram pensados e estudados diferentemente em cada escola geográfica:
O embate entre distintas maneiras de encarar o ato de modelar a superfície terrestre é típico da Geografia, desde a constituição e o enunciado de seus pressupostos metodológicos em fins do século XIX. Neste período, encontramos no interior da Geografia Tradicional, a disputa entre possibilistas e deterministas. Durante o transcorrer do século XX, a Geografia Quantitativa neo-positivista opõe-se à Geografia Regional de Hartshorne1 e à própria Geografia Tradicional. Nos anos 1970, a Geografia Crítica em uma vertente materialista histórica se contrapõe à Geografia Teorética. Atualmente, o culturalismo coloca-se como contraponto às tendências marxistas (ROCHA, 2008, p. 129).
As discussões no âmbito da Geografia Cultural têm sido extremamente
proveitosas, pois confrontam ideias, conceitos e percursos metodológicos distintos,
que valorizam os objetos de estudo e os fenômenos geográficos, mas conferem
centralidade ao sujeito que faz a pesquisa, da qual é parte integrante.
No presente trabalho, a escola geográfica que se destaca é a humanista que,
segundo Rocha (2008), também surge na década de 1970, mas com o ápice das
1 Richard Hartshorne (1899-1992): Foi um geógrafo estadunidense; destacou os fenômenos organizados espacialmente como objeto essencial no estudo da Geografia, propôs uma noção de regionalização que associa o espaço a visão idiográfica (particular) da realidade.
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produções nas duas décadas posteriores (1980 e 1990). Diante dessa perspectiva, a
subjetividade, a experiência, a intuição, o singular e os sentimentos, somam-se à
base das análises geográficas. Consequentemente, a percepção torna-se um
mecanismo recente de modelar da Geografia Cultural e “a paisagem e o território
ressurgem como categorias imprescindíveis, fruto da vivência do homem em um
determinado lugar” (ROCHA, 2008, p. 130), sendo assim “o lugar torna-se conceito-
chave, enquanto o espaço adquire o significado de espaço vivido” (CORRÊA, 1995,
p. 30).
Desse modo, Holzer (2008) nos diz que Tuan (1961) propôs uma geografia
dedicada ao estudo do amor do homem pela natureza, logo, caberia à ciência
geográfica dedicar-se ao estudo das vivências.
Aos poucos os geógrafos analíticos, preocupados em incorporar os avanços da psicologia comportamental, bem como os geógrafos culturais e da geografia histórica, interessados em renovar o seu campo com contribuições da antropologia, da psicologia e sociologia, aproximaram-se (HOLZER, 2008, p. 130).
Relph (1970) abordou as possibilidades de a fenomenologia servir como
suporte filosófico que fosse capaz de unir os geógrafos que se ocupavam com os
aspectos subjetivos relativos à espacialidade. O método fenomenológico passou a
ser utilizado ao fazer descrições subjetivas do mundo vivido e das experiências
humanas, com isso, houve a possibilidade de reconhecer as estruturas intrínsecas
da percepção (HOLZER, 2008).
Os estudos de cunho fenomenológicos serviram para que Tuan (2012)
afirmasse que o espaço e o lugar definem a natureza da geografia. Sob uma
perspectiva humanista, ambos os conceitos deveriam ser abordados a partir dos
sentimentos e das ideias de uma determinada população:
A importância do “lugar” para a geografia cultural e humanista é, ou deveria ser, óbvia... Como em um único e complexo conjunto – enraizado no passado e incrementando-se para o futuro – e como símbolo, o lugar clama pelo entendimento humanista (TUAN, 2012, p. 247).
A partir dessa breve abordagem quanto a importância dos avanços
epistemológicos da ciência geográfica, entende-se que a subjetividade viabiliza
aberturas para novas abordagens que congreguem a Literatura.
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Estabelecer essa leitura dos aspectos geográficos que não foram adequadamente abordados pelo conhecimento científico institucionalizado da Geografia, nas suas várias escolas sistematizadoras e nos vários referenciais teóricos e metodológicos assumidos, é uma necessidade atual [...] para contribuir efetivamente a outra concepção de Ciência (FERRAZ, 2011, p 17).
Sistematizou-se as possibilidades do diálogo entre a Geografia e a Literatura
e chegou-se à conclusão que a forma comumente utilizada é baseada em uma
Literatura que comprove o conhecimento geográfico. O romance realista e regional,
por exemplo, é composto por críticas sociais em que estereotipa as personagens e
os locais encenados. “É a forma mais comum de abordagem de Literatura pela
Geografia” (FERRAZ, 2011, p. 18).
Há, também, uma tentativa de renovar a leitura geográfica dos textos literários
(idem, p. 19), em que a Literatura determina o sentido geográfico ao destacar a força
psicológica do meio sobre as personagens. É demarcado pelos romances um
espaço vivido que parte dos lugares experimentados e interiorizados, focado na
narrativa.
Por conseguinte, tem-se a síntese provisória das possibilidades atuais
(Ferraz, 2011), quando muitos tendem à valorização do geográfico sobre o literário,
visando, assim, uma análise definitiva e acabada, pois “esquece-se que esse diálogo
se dará entre uma obra de arte, que tende a ser ressignificada a cada leitura, e uma
obra científica, que visa elaborar sentidos para o homem se localizar e se orientar
hoje” (FERRAZ, 2011, p.19).
Por fim, é apresentada uma proposta possível que visa fundar a leitura nas
condições em que o leitor se identifica no mundo, nesse sentido, apresenta-se “a
possibilidade de diálogo e dialógica e hermenêutica, de mútuas interpretações
possíveis” (Ibidem, p. 20).
Entende-se que a proposição de Ferraz (2011) melhor se enquadra na análise
do objeto de estudo deste trabalho, visto que cabe à elaboração e à interpretação da
obra, respectivamente,
Informações sobre o processo criativo do autor; local em que foi elaborada e motivos de elaboração; presença do autor na obra; Momento em que está sendo lida; objetivos da leitura; imagens pessoais que se relacionam com destacadas na obra (FERRAZ, 2011, p. 20).
A obra “Casa de Pensão”, de Aluísio de Azevedo, foi escrita em meados da
década de 1870 durante os dois anos que o autor permaneceu no Rio de Janeiro.
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Segundo Mattos (2004), no mesmo período o Rio de Janeiro se consolidava como
um dos principais pilares da política e, também, como polo financeiro do Império, o
que significava a centralização política e o predomínio dos cafeicultores como
importantes agentes econômicos.
Com o processo de urbanização houve uma mudança no cotidiano que, a
partir de 1870, com o avanço do republicanismo e do surto industrial, marcou o
isolamento da monarquia portuguesa quanto à política, pois, era uma geração de
atores interessados na troca de regime. As ideias que circulavam na sociedade eram
de ordem positivista e evolucionista, que integravam os ideários abolicionistas. Ou
seja, todo esse processo histórico serviu como base para o enredo de Aluísio de
Azevedo, que ousou criticar as instituições e a burguesia nascente.
A Figura 1 remete a capa do livro, cuja edição é de 2009 e soma um total de
294 páginas. A editora responsável, Paulus, foi fundada pelo padre Tiago Alberione
em 1914, que representa uma entidade filantrópica formada pelos Padres e Irmãos
Paulinos, com caráter beneficente, social e educativo2. O material é exclusivo para
doação, logo a venda é proibida.
(Figura 1: Capa do livro “Casa de Pensão”)
2 Informações contidas no próprio livro.
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Ao longo da edição não possui fotografias ou imagens ilustrativas, mas a capa
representa o enredo, uma vez que o imóvel observado por um dos personagens é a
casa de pensão e a sombra que aparece em um dos cômodos é do protagonista.
14
2. PERCURSOS DE PESQUISA E CONTEXTO ESPACIAL E HISTÓRICO DA
LITERATURA ANALISADA
A prática da pesquisa tende a aproximar o acadêmico das diferentes
metodologias existentes, mas com autonomia para que este desenvolva um trabalho
que carregue identidade e práticas correspondentes ao interesse do pesquisador. A
experiência ao longo do desenvolvimento da pesquisa é fantástica, pois debruçar-se
sobre o objeto de estudo e, com êxito, proporcionar debates em que este esteja no
centro das discussões é um exercício ao qual requer do aluno-pesquisador algumas
habilidades necessárias ao pleno desenvolvimento de suas funções, tais como,
planejamento, conhecimento e adequação às normas científicas.
Entende-se que os interesses e as motivações da pesquisa científica incidem
de forma direta no bom desenvolvimento do trabalho do pesquisador e,
consequentemente, na conquista de resultados positivos.
2.1 OBJETIVOS
O objetivo geral do presente trabalho foi construir possíveis diálogos entre a obra
realista “Casa de Pensão”, de Aluísio de Azevedo, visto que é considerada uma
espécie de documento social que retrata a época (século XIX), e a reflexão
geográfica de base fenomenológica, de cunho humanista, sobre um dos objetos de
análise da Geografia: o Lugar.
Os objetivos específicos que sustentaram a investigação sobre a relação
entre Geografia e Literatura foram: i) construir uma revisão da literatura que fomente
a síntese do conceito de lugar; ii) analisar a obra literária “Casa de Pensão”, de
Aluísio Azevedo, que evidencie características que dialoguem com o conceito de
Lugar; iii) discutir possibilidades de a Geografia estar, de fato, presente na Literatura,
e vice-versa; iv) descrever os “lugares” narrados no livro, objeto de discussão, neste
trabalho; e v) relatar experiências de vivências de personagens construídos na obra.
2.2 METODOLOGIA UTILIZADA
Este trabalho possui uma abordagem qualitativa, uma vez que, segundo
Severino (2007) envolve, eventualmente, referências epistemológicas, organizado a
partir de procedimentos operacionais e/ou técnicas de pesquisa que melhor se
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adequaram como a pesquisa bibliográfica, análise de conteúdo, pesquisa
documental e a documentação.
As contribuições bibliográficas foram realizadas a partir dos registros
disponíveis, decorrentes de trabalhos anteriores. Para Severino (2007):
Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador trabalha a partir das contribuições dos autores dos estudos analíticos constantes dos textos (SEVERINO, 2007, p. 122).
Dessa forma, buscou-se produções que serviram como base para a presente
pesquisa, assim, há referência das fontes utilizadas para a abordagem do objeto de
estudo.
A análise de conteúdo foi importante para a compreensão crítica do sentido
manifestado ou latente das comunicações e narrações presentes na obra a ser
analisada. Segundo Severino (2007),
As linguagens, a expressão verbal, os enunciados, são vistos como indicadores significativos, indispensáveis para a compreensão dos problemas ligados às práticas humanas e seus componentes psicossociais [...]. Ela descreve, analisa e interpreta as mensagens/enunciados de todas as formas de discurso, procurando ver o que está por detrás das palavras (SEVERINO, 2007, p. 122).
Juntamente com essa técnica, somou-se a pesquisa documental, visto que as
fontes, no sentido amplo, compreendem os jornais, as fotografias e, também, os
livros. “Nestes casos, os conteúdos dos textos ainda não tiverem nenhum tratamento
analítico, são ainda matéria-prima, a partir da qual o pesquisador vai desenvolver
sua investigação e análise” (SEVERINO, 2007, p. 123). Além da obra literária
analisada (“Casa de Pensão”), também buscou-se discorrer sobre a possível
ocorrência de um homicídio, conhecido como “Questão Capistrano” veiculado pelos
principais jornais da época do incidente, que deu origem ao enredo e que será
comentado na escrita que se segue.
Referente à documentação, sabe-se que “é toda forma de registo e
sistematização de dados, informações, colocando-as em condições de análise”
(SEVERINO, 2007, p. 2007). Foi utilizada principalmente como técnica de
identificação, levantamento, exploração de documentos fontes do objeto pesquisado,
assim como o registro das informações retiradas, e “nessa condição, transforma-se
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em fonte durável de informação sobre os fenômenos pesquisados” (SEVERINO,
2007, p. 124).
De acordo com Sposito (2004, p. 29) os principais métodos de abordagem na
Geografia são: hipotético-dedutivo, dialético e fenomenológico, pois estes contêm as
características de um método científico e estão relacionados a procedimentos
específicos e teorias disseminadas pela comunidade acadêmica.
Então, o método científico escolhido foi o fenomenológico-hermenêutico, pois
“constitui uma reflexão filosófica interpretativa ou compreensiva sobre os símbolos e
os mitos em geral [...], procurando romper a oposição entre sujeito e objeto” e
firmando-se “uma visão antropocêntrica do mundo e uma recuperação do
humanismo que a Nova Geografia havia feito desaparecer em seus modelos
teóricos” (SPOSITO, 2004, p. 35). Com base nestas perspectivas, tem-se o espaço
vivido como “revelador das práticas sociais passa a ser a referência central,
colocando-se o lugar no centro da análise” (idem, 2004, p. 38). Desse modo, o
objeto é constituído pela essência, ou seja, o conteúdo inteligível ideal dos
fenômenos, que é captado através de uma leitura imediata.
Ainda para Sposito (2004), uma das tendências recentes é apreender o
significado de lugar, por não ser algo que objetivamente se dá/tem, mas, sim, que é
construído pelo sujeito no decorrer de sua experiência em decorrência da vivência.
A figura do pesquisador faz-se presente na redução do fenômeno para a sua abordagem total. Prevalece a figura do sujeito sobre o objeto pesquisado. Nesse método, é o sujeito quem descreve o objeto e suas relações a partir do seu ponto de vista, depois dele se apropriar intelectualmente (SPOSITO, 2004, p.39).
Pelo fato da autora deste trabalho se sobressair ao objeto, as técnicas
qualitativas são ressaltadas, uma vez que se buscou referenciar alguns autores da
fenomenologia, decifrar os discursos latentes no enredo da obra e nas notícias
veiculadas sobre a “Questão Capistrano” e, também, por ser uma análise que
enfatiza a individualidade dos fenômenos e que demanda interpretações por desejo
particular da pesquisadora.
Diante dessas premissas, analisar a obra literária “Casa de Pensão” de
Aluísio Azevedo, favoreceu-se a abordagem fenomenológica, principalmente pelo
diagnóstico da linguagem nas diferentes formas de discurso encontradas no enredo,
a fim de encontrar, intrinsecamente, o conceito de Lugar.
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2.3. JUSTIFICATIVA E QUESTÃO NORTEADORA
O presente trabalho, afinado com preceitos da vertente humanista, exibe
como questão central à elaboração do conceito de Lugar. Segundo Tuan (1975,
apud MELLO, 2012, p. 34) em meio a esse turbilhão de entendimentos e afetividade,
os vínculos entre as pessoas e seus locais de moradia, trabalho, orações, lazer e
entretenimento estabelecem uma relação de “dominância e afeição”. Os geógrafos
da tendência humanista estão preocupados com os espaços e os lugares dos
homens.
Optou-se por analisar o conceito de lugar em uma obra literária do século XIX,
pois neste período vigoraram, na prosa de Aluísio Azevedo, duas correntes
principais: Realismo3 e Naturalismo4, ambas de origem francesa. “Casa de Pensão”,
no entanto, destaca-se como realista, pois “propõe uma representação mais fiel e
objetiva da vida social” (AZEVEDO, 2009, p. 05).
Influenciados pelos métodos experimentais enfatizados, na época, pelas
ciências naturais, os escritores realistas, como Aluísio Azevedo, procuraram criar as
personagens com base na observação direta da realidade. Desse modo, saíram a
campo para fazer pesquisas e colher dados sobre o assunto a ser desenvolvido ao
longo das respectivas obras, esforçando-se por darem aos romances um valor de
documento da realidade, e não simples produto da fantasia.
Sabe-se que Aluísio Azevedo (1857-1913) observou in loco o ambiente e as
pessoas que mais tarde transportariam para seus romances. O mesmo período em
que o autor, considerado o melhor realista brasileiro, produziu as suas obras era o
mesmo em que a Geografia, também muito influenciada pelas Ciências Naturais,
baseava as suas contribuições em observar e descrever os fenômenos.
Tem-se como finalidade utilizar uma obra literária-realista, de tamanha
importância para a Literatura Brasileira, para buscar características que elevem as
discussões acerca da categoria de análise “Lugar”. Além disso, reconhece-se a
demanda destacada por Frémont (1980, p. 262), em que “a nova geografia que há
3 Movimento artístico e cultural que se desenvolveu na segunda metade do século XIX. A característica principal é a abordagem de temas sociais e um tratamento objetivo da realidade do ser humano.
4 Movimento cultural relacionado às artes plásticas, à literatura e ao teatro. Surgiu na França, na segunda metade do século XIX. Este movimento foi uma radicalização do Realismo, com ênfase nas descrições das personagens e dos ambientes.
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que inventar, rompendo ainda divisórias entre disciplinas, com geógrafos abertos à
literatura e à arte”.
Sendo assim, a presente pesquisa se justifica principalmente pelo interesse
da pesquisadora pelos debates humanistas que retomaram as discussões
epistemológicas que colocam em voga o “Lugar”, somado a uma das obras literárias
que, além de ter apreço, acredita contribuir para a análise, ainda que as produções
que promovem um diálogo entre a Geografia e a Literatura sejam escassas.
Além das proposições defendidas acima, desconhece-se trabalhos
acadêmicos cuja interpretação tenha se sustentado na interface entre a Geografia e
a Literatura a partir das perspectivas do “Lugar” na obra “Casa de Pensão”.
Parte-se, então, destes pressupostos para justificar o presente trabalho ao
propor, inicialmente, um debate que revele a seguinte questão: “em que proporção o
Lugar e suas características aparecem na obra realista, Casa de Pensão, de Aluísio
Azevedo?”.
2.4 “QUESTÃO CAPISTRANO”
Em janeiro de 1876, a cidade do Rio de Janeiro foi invadida pela notícia de
um crime que envolvia dois amigos. O fato tomou grandes proporções, dividiu
opiniões e suscitou debates que causaram comoções, ficou, então, conhecido como
“Questão Capistrano”, devido ao sobrenome de um dos jovens envolvidos na
tragédia.
Segundo Enne e Souza (2009), fincavam-se as bases que sustentariam um
dos episódios mais famosos que serviram de inspiração para o enredo de “Casa de
Pensão”, de Aluísio de Azevedo.
Considera-se que o caso judicial, protagonizado pelos amigos inseparáveis
João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira, tenha sido imediatamente
popularizado por conter elementos de uma boa trama: amizade, romance, honra,
vingança e assassinato. Desse modo, a opinião pública instantaneamente envolveu-
se nos acontecimentos e dividiu-se em juízos, mas, sobretudo, polemizou.
Segundo Menezes (1958), responsável pela biografia de Aluísio Azevedo, no
capítulo intitulado “O crime do estudante Capistrano”, apresenta os detalhes do
ocorrido. Assim como o enredo que inspirou o romance “Casa de Pensão”, inicia-se,
como apresenta Enner e Souza (2009),
19
A viúva baiana Júlia Clara, com dificuldades para sustentar as despesas da família somente com a quantia advinda das aulas de piano, delibera alugar outra casa, maior e mais confortável, que lhe possibilitaria alugar alguns quartos e, com isso, prosperar sua renda mensal. Assim, muda-se com os filhos Antônio Alexandre Pereira e Júlia Pereira para a Rua do Alcântara, sob o número 71, local em que se estabelece uma casa de pensão (ENNER e SOUZA, 2009, p. 2009).
Entre os primeiros pensionistas encontra-se o paranaense João Capistrano
da Cunha, colega de Antônio Alexandre na Escola Politécnica, considerado confiável
e, por isso, acolhido carinhosamente no seio da família Pereira.
A partir do convívio, Capistrano e Júlia (filha de Dona Júlia) iniciam um
namoro, no qual a luxúria leva o jovem a adentrar no quarto da moça, em uma
madrugada de janeiro de 1876, e no ápice da libido violentou-a.
Após a filha relatar o acontecido, sua mãe, Dona Júlia, exige explicações do
estudante que, com pretextos, consegue adiar o matrimônio, compromisso que
supostamente repararia o dano causado. Feita a promessa, João Capistrano
passa meses sem movimentar-se quanto ao cumprimento de sua palavra e
desaparece, sem deixar notícias. Com isso, a família apresenta uma queixa-crime
na delegacia para exigir uma indenização de 50 contos pelo prejuízo à honra de
Júlia.
O julgamento se inicia e a imprensa não demora em estampar os
desdobramentos nas colunas diárias sobre o caso, inflamando a opinião pública a
se manifestar, seja a favor do casamento reparador dos danos causados, seja a
favor de uma pena severa ao jovem sedutor.
O resultado dos enérgicos debates é a absolvição de Capistrano que, para
festejar o veredito favorável, se reuniu com os amigos no Hotel Paris, em uma
comemoração comentada por toda sociedade fluminense.
Antônio Alexandre acreditava que lamentável sentença demandaria que ele
mesmo tomasse uma atitude para restaurar a honra de sua família e,
principalmente, da irmã, cujo incessante choro denotava a vergonha. Deste modo,
articula por três dias uma possível solução que impusesse ao Capistrano uma
lição.
Assim, o irmão inconformado sai à procura do estudante e o encontra na
Rua da Quitanda, enquanto caminhava para casa de um negociante. Carregava
consigo uma arma de 25 cápsulas, atirou em João Capistrano pelas costas, e o
20
ceifou a vida em plena luz do dia. Após tentar sem sucesso a fuga, é preso em
flagrante e entregue à Justiça.
Os alunos da Politécnica, comovidos pelo crime e envoltos em luto,
homenageiam o falecido, tornando o enterro praticamente uma glorificação
pública. O diretor da Escola, inclusive, suspendeu as aulas por dois dias.
Em decorrência ao assassinato, Antônio Alexandre é levado a julgamento
em 20 de janeiro de 1877. Neste momento, o público que alimentava antipatias
pela família Pereira, compadece-se pelo irmão que agiu em defesa da honra. Com
isso, o mesmo júri que eximiu Capistrano também absolveu seu assassino,
inclusive, por unanimidade de votos. E, por paradoxal que pareça, aqueles que na
véspera homenageavam o colega morto foram quem também ovacionaram o
amigo que ganhava a liberdade.
No romance de Aluísio Azevedo, Capistrano é representado por Amâncio
Vasconcelos, um jovem com idade de vinte anos, que parte do Maranhão rumo à
Corte, assim, deixa a família para estudar medicina na Escola Politécnica.
Pressupõe-se, imediatamente, que o fato de migrar para o Rio de Janeiro
representa possibilidades financeiras que não correspondem à realidade de todo
provinciano. Ou seja, Amâncio e até mesmo Capistrano – que partiu do Paraná –
possuíam condições financeiras privilegiadas, principalmente por serem herdeiros
de famílias tradicionais nas respectivas províncias o que também se tornara um
atrativo para os interesseiros e aproveitadores5.
Além disso, é na segunda metade do século XIX que a influência francesa
atinge o alvo no Brasil, ao determinar os modelos da vida social e cultural, a partir
de suas referências intelectuais e filosóficas, como as da pintura, da literatura e da
moda (MATTOS, 2006).
Dona Júlia é retratada como Mme. Brizard, uma viúva francesa. Nesse
sentido, percebe-se a influência francesa nas raízes literárias de Aluísio de
Azevedo, cujo a veia pulsava o romantismo. Além disso, a literatura brasileira, de
modo geral, no século XIX, era influenciada pelos principais literatos franceses. Na
França,
Vidal de La Blache propunha um novo método à geografia, inserindo uma perspectiva histórica e funcional. As relações homem-meio são encaradas, por essa ótica, com uma abordagem recíproca e harmônica. Além de
5 As informações acerca da “Questão Capistrano” contidas nas páginas 17, 18 e 19 estão disponíveis em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI134548,11049-Questao+Capistrano> Visualizado em: 15 de outubro de 2015.
21
receber influências de seu ambiente, o homem se apresenta como fator geográfico, transformando a fisionomia da paisagem a partir das possibilidades que cada meio oferece (FABRÍCIO e VITE, 2011, p. 320).
Cabe, então, retomar a proposta do conto realista, que tende a uma
representação fiel e objetiva da vida social, pois deixa de ser visto como distração
e passa a ser considerado uma crítica às instituições sociais, denunciando, por
assim dizer, a hipocrisia e a corrupção moral da classe burguesa (AZEVEDO,
2009).
Desse modo, tem-se uma Literatura jornalística, responsável por abordar
fatos reais, sem perder a originalidade e, ainda, propiciando ao leitor uma série de
interpretações subjetivas e interpessoais.
A Literatura é uma linguagem pautada na lógica da palavra, a mesma que fundamenta o discurso científico, mas, ao contrário deste, não visa radicalizar o sentido lógico-formal de sua estrutura argumentativa, reduzindo o sentido conotativo das palavras em nome de uma denotação única, transparente e definitiva de cada termo e expressão (FERRAZ, 2011, p. 17).
O discurso literário tende a desordenar o sentido da palavra, o que a faz
mergulhar nos diversos significados das imagens (captadas e armazenadas no
imaginário e nas experiências humanas). O mesmo discurso elabora imagens a
partir da ressignificação de palavras, tal aspecto, segundo Ferraz (2011) é o
capacitador responsável por tornar necessária a aproximação com o discurso
geográfico.
A influência das Ciências Naturais fez com que os escritores realistas
procurassem criar suas personagens com base na observação direta da realidade.
Por isso, saíram a campo para fazer as pesquisas e colher os dados sobre o
assunto a ser desenvolvido, ou seja, havia um esforço por dar aos romances um
valor de documento da realidade, ultrapassando os ideários de um romantismo
como um mero produto da fantasia.
Logo, as experiências vividas por Aluísio Azevedo durante os anos de 1876
(o mesmo ano em que ocorrera a “Questão Capistrano”) e 1878 serviram para
inspirar o romance realista, cujo os aspectos do Lugar são revelados a partir da
vivência do autor.
22
3. O LUGAR SOB A ÓTICA DE DIFERENTES PENSADORES
Para compreender o conceito de Lugar, inicia-se o debate literário ao
parafrasear Carlos (2007)6, uma vez que o lugar se materializa e compreende o
mundo moderno em diversas dimensões, em uma perspectiva mais ampla, significa
dizer que no lugar se vive, logo, se realiza o cotidiano. É a partir disso que se revela
a ideia de analisar o lugar na medida em que o processo de produção do espaço é
também um processo de reprodução da vida humana.
O lugar abre a perspectiva para se pensar o viver e o habitar, o uso e o consumo, os processos de apropriação do espaço. Ao mesmo tempo, posto que é preenchido por uma série de coações, expõe as pressões que se exercem em todos os níveis (CARLOS, 2007, p. 14).
Quer dizer, o lugar carrega em si, e não distante, o próprio significado e as
dimensões do movimento da vida, possível de ser resgatado pela memória, a partir
dos sentidos e do corpo. E, ainda, “o lugar se produz na articulação contraditória
entre o mundial que se anuncia e a especificidade histórica do particular." (CARLOS,
2007, p 14). Dessa forma, no lugar tem-se o “ponto de articulação” entre a
mundialidade em um processo constante de construção e o local enquanto
especificidade concreta, enquanto momento. Na obra a ser analisada no próximo
capítulo, tem-se, sob essa perspectiva, a influência francesa desde a cultura até as
questões políticas, no Brasil e principalmente no Rio de Janeiro (cidade da Corte),
ou seja, a mundialidade é refletida no local em que o enredo se desenvolve.
Afirmada como “tendência irreversível” (CARLOS, 2007, p. 21) a Globalização
tornou-se um fenômeno que, ao longo do tempo, tem demandado uma constante
análise sobre o desaparecimento das fronteiras, o que leva uma série de autores a
questionarem a existência do território. Deste modo, com o avanço das técnicas, ao
mesmo tempo em que alteraram o processo produtivo e também revolucionaram os
meios de comunicação ligando espaços em redes de fluxos cada vez mais intensos,
encurtaram as distâncias, o que viabilizou as trocas de informações de forma
contínua e ininterrupta, então o local, cada vez mais, se constitui de características
por relacionar-se com o global.
Sobre essa circunstância, Carlos (2007) destaca a influência ao lugar,
6 Optou-se por utilizar da contribuição de Carlos (2007) justamente por acreditar na relevância conceitual que a autora propõe, independente da mesma produzir sob a linha crítica-marxista e não fenomenológica como a presente pesquisa.
23
Nesse novo contexto o lugar se redefine pelo estabelecimento e/ou aprofundamento de suas relações numa rede de lugares. A primeira consequência é a necessidade de relativizar a ideia de situação. É evidente que o lugar se define, inicialmente, como a identidade histórica que liga o homem ao local onde se processa a vida, mas cada vez mais a “situação” se vê influenciada, determinada, ou mesmo ameaçada, pelas relações do lugar com o espaço mais amplo (CARLOS, 2007, p. 21).
Carlos (2007) evidencia que é indispensável considerar a história como
atuante em uma dimensão social que emerge no cotidiano das pessoas, no modo de
vida, no relacionamento com o outro, entre estes e o lugar. Cabe destacar, então,
que é no âmbito local que a história é vivida e é onde tem sentido ainda que,
dificilmente, sejam explícitos as formas e os conteúdos dos grandes processos
históricos; os sentidos por trás desses são quase sempre ocultos e invisíveis.
O lugar permite pensar o viver, o habitar, o trabalho, o lazer enquanto
situações vividas e experienciadas, o que revela, no cotidiano, os conflitos do mundo
moderno. Diante disso, Carlos (2007) nos diz que,
A análise do lugar se revela – em sua simultaneidade e multiplicidade de espaços sociais que se justapõem e interpõem – no cotidiano com suas situações de conflito e que se reproduz, hoje, anunciando a constituição da sociedade [...]. O lugar é o mundo do vivido, é onde se formulam os problemas da produção no sentido amplo, isto é, o modo onde em que é produzida a existência social dos seres humanos (CARLOS, 2007, p. 20).
O lugar demanda esforços analíticos para compreender a dinâmica do
mundo, que tente abordá-lo com as particularidades de formas e conteúdos,
principalmente pela própria influência histórica.
Ao refletir sobre a identidade do lugar, cada vez mais dependente e
construída no plano mundial, faz com que, cada vez mais, a história do lugar
destaque a história compartilhada que se reproduz muito além das limitações físicas.
Quanto à relativização das relações em que se estabelece com outros lugares,
desde que o processo de globalização ganha destaque, altera-se a situação dos
lugares pela capacidade de relativizar o sentido da localização.
Na tentativa de caracterizar um não-lugar, pode-se iniciar ao afirmar que lugar
é a porção do espaço a ser apropriado para se viver. Para Carlos (2007), a
apropriação é realizada através do corpo, dos sentidos, dos passos dados pelos
moradores, é o bairro, é a praça, é a rua. Nesse sentido, “poderíamos afirmar que
não seria jamais a metrópole ou mesmo a cidade latu sensu a menos que seja a
24
pequena vila ou cidade – vivida/conhecida /reconhecida em todos os cantos”.
(CARLOS, 2007, p. 17-18).
Ao parafrasear Carlos (2007), a própria cidade do Rio de Janeiro representa
um não-lugar para a personagem principal, uma vez que não vivencia ou
(re)conhece todos os cantos, principalmente pela dimensão territorial. No entanto, o
bairro em que Amâncio passa boa parte do enredo, as ruas do Alcântara, do
Resende e da Direita, situadas, respectivamente, em São Gonçalo e ambas no
Centro do Rio de Janeiro são, enfim, compreendidos como lugar, pois a vivência
acontece em sua totalidade. Logo, experienciar a cidade da Corte em sua
completude evidencia uma dificuldade ao compreendê-la como um lugar,
propriamente dito, em relação ao personagem principal da obra.
Entende-se, pois, que a metrópole/capital não é lugar, pois somente é vivida
parcialmente. Sobre isso, a contribuição de Carlos (2007) facilita a compreensão
uma vez que nos aponta o sentido inverso, pois,
São os lugares que o homem habita dentro da cidade que dizem respeito a seu cotidiano e a seu modo de vida onde se locomove, trabalha, passeia, flana, isto é, pelas formas através das quais o homem se apropria e que vão ganhando o significado dado pelo uso. Trata-se do espaço palpável, [...] espaços do vivido (CALORS, 2007, p. 18).
São as relações que dão sentido aos lugares da metrópole, visto que o lugar
somente pode ser compreendido e também produzido por um conjunto de sentidos,
impressos pelo uso. Dificilmente o espaço do vivido pode ter significado na
totalidade da metrópole.
Do ponto de vista espacial, que se refere especificamente à da grande cidade, podemos dizer que esta se refere mais a um lugar único, posto que contém cada vez mais o mundial, constitui-se a partir de valores, de um modo de vida, de uma cultura, que dizem respeito a uma sociedade urbana em constituição; isto porque o desenvolvimento das técnicas, das comunicações ligando todos os pontos do espaço produzem um mesmo padrão (CARLOS, 2007, p. 41).
Ao vender o espaço, consequentemente, tem-se a produção da não-
identidade e, com isso, o não-lugar, pois, a ideia não é criar identidade, mas produzir
mercadorias para que sejam consumidas em todos os momentos da vida. Segundo
Carlos (2007) isso se caracteriza dentro e fora da fábrica, dentro e fora do ambiente
de trabalho, nos momentos de trabalho e de não-trabalho. O sujeito se entrega ás
manipulações desfrutando a própria alienação.
25
Sobre o espaço e o lugar, faz-se necessário buscar distinções entre os
conceitos ao explorar as possíveis relações existentes entre ambos. Relph (1979, p.
8) concluiu que “o espaço é amorfo e intangível e não uma entidade que possa ser
diretamente descrita e analisada. Contudo, [...] ele está sempre próximo e associado
ao sentido ou conceito de lugar”.
O autor fez uma análise de diversos tipos de espaço que nos levam ao
significado de lugar: o espaço primitivo, o espaço perceptivo, o espaço existencial, o
espaço arquitetônico, o espaço cognitivo e o espaço abstrato. Entre estes, o que
mais interessa para esta pesquisa é o espaço existencial, ou espaço vivido, definido
como “a estrutura oculta do espaço como aparece para nós em nossas experiências
concretas como membros de um grupo cultural” (RELPH, 1979, p. 12).
O espaço vivido, segundo Relph, (1979, p. 16) contém o espaço sagrado e o
espaço geográfico, ambos são “centros de significado, ou focos de intenção e de
propósito”. O segundo, trata-se do “[...] espaço significante de uma cultura particular
que é humanizado pela nomeação dos lugares, por suas qualidades para o homem,
e por refazê-lo para que sirva melhor às necessidades da humanidade”. Sendo
assim, o lugar tem uma personalidade e um sentido.
O sentido do lugar também seria “[...] quando as pessoas aplicam seu
discernimento moral e estético aos sítios e localizações”. (TUAN, 2012, p. 410). No
entanto, para que de fato constituem-se os lugares é necessário um tempo
considerável de residência e um profundo envolvimento emocional.
Reflexões como estas remetem o lugar a ser colocado em termos
fenomenológicos. Segundo Relph (1979, p. 42-43), a essência do lugar é a de ser o
centro das ações e das intenções, onde são experimentados os eventos mais
significativos de nossa existência. Logo,
Lugares são os contextos ou panos de fundo para a intencionalidade definir objetos ou eventos, ou seja, eles podem ser objetos da intenção em seu sentido primordial [...], pois toda consciência não é meramente consciência de algo, mas de algo em seu lugar, e [...] esses lugares são definidos geralmente em termos dos objetos e de seus significados. Como objetos, no seu verdadeiro sentido, lugares são essencialmente focos de intenção, que têm usualmente uma localização fixa e traços que persistem em uma forma identificável” (RELPH, 1979, p. 42-43).
Ainda para Relph (1979), duas outras características foram destacadas: a
identidade e a estabilidade. A identidade refere-se ao espírito, ao sentido, ao gênio
do lugar; provém das intenções e experiências de vários seres humanos, que
26
resultam da familiaridade. Essas relações que se iniciam no nascimento e se
aprofundam com a experiência (TUAN, 2013) implicam em um conhecimento
detalhado do lugar e, também, na constituição de raízes.
Por outro lado, a estabilidade seria um fator fundamental na constituição dos
lugares. Segundo Tuan (2012),
Uma cena pode ser um lugar, mas a cena em si não é um lugar. Falta-lhe estabilidade: é da natureza da cena mudar a cada mudança de perspectiva. A cena é definida por esta perspectiva, o que não é verdadeiro para o lugar: é da natureza do lugar aparecer como tendo uma existência estável, independente de quem o percebe (TUAN, 2012, p. 411).
A estabilidade relaciona tempo e lugar. Em algumas passagens, Tuan (2013)
afirma que o lugar é pausa no movimento. Porém, isso não quer dizer, no entanto,
que o lugar esteja à frente da história ou seja atemporal, mas que denota a relação
inseparável entre espaço e tempo: a pausa, ao permitir a localização, transforma-se
em um polo estruturador do espaço, o que implica no estabelecimento de uma
“distância”, sendo este um conceito, ao mesmo tempo, temporal e espacial.
As distâncias não são experimentadas como quantidade, mas simplesmente
como a qualidade de se estar perto ou longe de algo.
A distância é conceituada por Frémont (1980) como a relação mais simples
entre dois lugares, entre um homem e um lugar ou entre dois homens. O autor
identificou cinco tipos de distâncias: a distância métrica, que é uma extensão
objetiva; a distância-tempo, que se relaciona com o tempo necessário para se
preencher o espaço entre dois objetos; a distância afetiva; a distância ecológica; e a
distância estrutural.
Estas três últimas haviam sido anteriormente propostas por Gallais (1976,
apud HOLZER, 1999, p. 73), e servem para demonstrar que a relação dialética entre
distâncias e lugares está muito além do caráter objetivo, locacional, que a Geografia
por muito tempo impôs aos lugares.
Referente à distância afetiva, por exemplo,
Com forte componente psicológico, acontece entre um homem e um lugar, ou entre os homens e os lugares, independentemente da extensão medida ou do tempo de percurso, uma carga afetiva, devida a diversos fatores [...] que tem o efeito de aproximar ou, ao contrário, de afastar; a distância ecológica, mede e aprecia, segundo um prisma seletivo, próprio a cada homem e, por acumulação, a cada sociedade, todas as nuanças do ambiente natural; a distância estrutural [...] tem em conta as relações sociais
27
como fatores de aproximação ou distanciamento dos homens entre si, e por consequência, dos homens com os lugares (FRÉMONT, 1980, p. 26).
As distâncias encontradas na obra “Casa de Pensão” estão justamente
relacionadas a afetividade que aproxima as personagens, seja pelo interesse em
conviver despretensiosamente, seja pelos interesses instintivos e, também,
financeiros que, no decorrer do enredo, gera uma série de rompimentos nas
relações. No capítulo que se sucede, há uma abordagem mais clara quanto às
interfaces da sociedade e as nuances dos lugares em que estão inseridas.
Tem-se, então, a importância de viajar, conhecer novos lugares, para
estabelecer bases comparativas. Como observa Pocock (1981, apud HOLZER,
1999, p. 72), a viagem provê a base para a comparação entre os lugares.
Enraizamento, identidade, sentido de lugar, casa, experiência e percepção são
ideias que que se destacaram a partir dos movimentos humanista e cultural:
A importância de debates que destacam o Lugar como principal categoria de análise da ciência geográfica coincide com dois processos: o surgimento de abordagens teóricas que procuravam enfatizar valores humanistas orientados pelas filosofias do espírito, dando atenção à diversidade, heterogeneidade e à diferença (geografia humanista primeiramente, depois a geografia cultural); e o movimento de mundialização que forjou uma oposição entre global-local/mundo-lugar a partir da subjugação do segundo pelo primeiro (MARANDOLA JUNIOR, 2012, p. 20).
Visto que o lugar é o fenômeno da experiência, é apropriado basear-se em
uma abordagem fenomenológica que, segundo Relph (1976), passou a ser
influenciada, inicialmente, por Husserl e Heidegger, essa perspectiva passou a ser
chamada de geografia humanista. O lugar na geografia, desde o início da geografia
humanista, foi sempre a essência propriamente dita da essência geográfica.
Marandola Junior (2012) afirma que pensadores como Harvey e Massey
forneceram uma visão alternativa que considerava lugares como “nós particulares
das interações das redes social, econômica e política global, na qual os lugares são
manifestações locais de macroprocessos econômicos ao invés de emergirem de um
contexto histórico específico”. (MARANDOLA JUNIOR, 2012, p. 21).
Ainda para o autor, influenciado pelo pensamento de Relph,
Desde os anos 1990, interpretações sobre o lugar floresceram e foram refinadas. As interpretações são frequentemente contraditórias e muitas vezes contestadas, mas na base parece haver uma visão geral de que lugar tem um papel importante a desempenhar para compreender e, talvez,
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corrigir a insistência neoliberal na eficiência global de ganhos que diminui a qualidade de nossas vidas, erodindo tudo que é local (RELPH, 1976, apud MARANDOLA JUNIOR, 2012, p. 21).
De modo geral, entende-se que estudar o lugar é uma prática de resistência.
Sobre os mais diversos aspectos de lugar, Relph (1976 apud MARANDOLA,
2012, p. 22) enumera uma lista com um conjunto de sugestões em que tem sido
pensado ou que nos leva a pensar algumas questões:
i) Lugar como reunião: lugar é uma palavra comumente utilizada na
linguagem cotidiana, mas é considerado um conceito vago ou pouco claro. Não há
uma definição precisa. Como indivíduos e membros de comunidades, estamos
conectados com o mundo por meio de lugares que geralmente possuem nomes ou
uma identidade específica. Qualquer parte sem nome que não reúna não é um lugar.
Lugar tem em si o conceito de especificidade e abertura, que acontece em virtude da
reunião.
ii) Localização: é, pois, uma característica comum, mas não essencial de
lugar. Por exemplo, websites são lugares virtuais, e o caráter desses lugares e, mais
genericamente, o impacto da mídia social sobre a experiência de lugar precisa ser
avaliado cautelosamente, uma vez que estão, simultaneamente, em todo lugar e em
nenhum.
iii) Fisionomia do lugar: o termo sugere a forma de um lugar (colinas, vales,
construções, ruas e todos os elementos aparentes). Este é o aspecto mais evidente
do lugar para quem o vê de fora para dentro, isso inclui arquitetos, planejados,
turistas e pessoas interessadas em ambientes construídos. Nesse sentido,
objetividade tenta-se compreender as distinções entre lugares.
iv) Espírito de lugar: está relacionado com a crença de que determinados
lugares são sagrados, por terem sido ocupados por deuses ou espíritos em que as
qualidades sobrenaturais puderam ser observáveis no cenário, cuja presença pode
ser reconhecida a partir de cerimônias religiosas e/ou construções.
v) Sentido de lugar: é entendido como a capacidade de apreciar lugares e
apreender as respectivas qualidades. “Existem indivíduos com pouco interesse por
lugares e preferem plantas ou lojas, ou pessoas que não têm ou possuem um
sentido pouco desenvolvido de lugar” (RELPH, 1976 apud MARANDOLA JUNIOR,
2012, p. 24). A geografia, como uma disciplina, tende a atrair os que têm um forte
sentido de lugar e, também, pode promover a melhora desse sentido.
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vi) Raízes e enraizamento: dentro da perspectiva da experiência humana, o
lugar é muitas vezes entendido como o que possui nossas raízes, o que sugere uma
profunda associação e pertencimento, mas, também, imobilidade. Pode-se ter
raízes, ao mesmo tempo, em diversos locais, ainda assim os mantendo conectados.
Desse modo, essa possibilidade facilita a compreensão da transitoriedade e do
transnacionalismo que, atualmente, parece permear a experiência de lugar para
muitas pessoas.
vii) Interioridade: refere-se à familiaridade, conhecendo o lugar de dentro para
fora, justamente o contrário do que faz o turista ou um observador, por exemplo.
“Estar em casa é, para muitas pessoas, a forma mais intensa de interioridade”
(RELPH, 1976 apud MARANDOLA, 2012, p. 24).
viii) Lar: é o lugar em que as raízes são mais profundas e mais fortes, onde se
conhece e se é conhecido pelos demais, além disso, repleto do sentimento de
pertencimento.
ix) Nós: é a ideia de que lugares são onde os indivíduos e os grupos possuem
suas raízes e, assim, podem se sentir mais próximos de casa, porém, esta definição,
segundo Relph (1976 apud MARANDOLA, 2012, p. 25) “tem sido muito criticada por
David Harvey, Doreen Massey, e outros, em parte porque eles consideram isso
como provinciano e sentimental e em parte porque entendem que isso implica uma
visão estreita e limitada de lugar”.
x) Exclusão/Inclusão: mostra que o forte apego é uma atitude exclusivista.
Sentido contaminado de lugar: refere-se à atitude exclusivista descrita
anteriormente, baseado no enraizamento e na convicção de que “este é o meu lar”,
manifestando, por assim dizer, uma visão preconceituosa. É revelado, de forma
extrema, pela limpeza étnica e pelo deslocamento compulsório daqueles que são
considerados estranhos por serem diferentes. Lugar normalmente é representado
como belo, mas o autor nos faz lembrar que “lugar pode ter um lado muito feio”
(RELPH, 1976 apud MARANDOLA, 2012, p. 26).
xi) Construção de lugar: é considerado como uma estratégia básica para
manter a uniformidade, proteger ou recuperar patrimônios e, também, para fazer
agradáveis ambientes construídos. Logo, a necessidade de construir lugares é
especialmente atrativa para arquitetos e planejadores.
xii) Fabricação do lugar: do ponto de vista da pós-modernidade e do mercado
neoliberal, surgem alguns casos em que a identidade do lugar e a diferença geram
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lucro. Assim, a identidade de lugar tem sido, por vezes, manipulada e inventada por
empresas de desenvolvimento que visam lucrar, juntamente ao lado de políticos da
cidade, para atrair mais investimentos e turismo. Identidades de lugar podem ser
baseadas em uma vaga ligação histórica e/ou fictícia.
xiii) Lugar-sem-lugaridade e não-lugar: como localização, toda parte é um
lugar; porém, em nível mais complexo, lugar refere-se às configurações
diferenciadas de seu entorno, pois são focos que reúnem características, atividades
e significados. A respeito de não-lugares e lugar-sem-lugaridade,
Sempre que a capacidade do lugar de promover a reunião é fraca ou inexistente temos não-lugares ou lugares-sem-lugaridade. Essas ideias são importantes porque permitem entender lugar pela ausência, tanto quanto pela presença. Não-lugar é mais óbvio em ambientes construídos padronizados, como supermercados, lanchonetes fast food ou aeroportos internacionais (RELPH, 1976 apud MARANDOLA JUNIOR, 2012, p. 25).
Dessa forma, fica claro que os não-lugares ou os lugares-sem-lugaridade não
demandam raízes afetivas ou identitárias, conhecer ou ser conhecido. O lugar é
onde cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona
conosco. O que acontece, aqui, neste lugar, é parte de um longo processo em que o
mundo, em sua totalidade, está de alguma forma implicado, pois em toda parte
estamos presos, seja em maior ou menor grau, nas forças neoliberais e, também, da
globalização.
Segundo Frémont (1980) todos as ações ao longo da vida, particularmente as
que se repetem, implicam certas localizações de formas, signos, valores,
representações e, consequentemente, assim, criam lugares. Logo, habitar não é a
única maneira de nos situarmos.
Pautado em um valor econômico, o autor faz uma classificação funcional ao
associar os lugares aos diferentes tipos de atividades e produção e de troca.
Destaca-se, então, os lugares inúteis, pois não obedecem às obrigações de
aparentes necessidades ou demandas,
Poderiam ser riscados do mapa sem que máquina humana parasse: bosques sagrados das aldeias africanas ou monstruosas peregrinações do Islão e da catolicidade; florestas, desertos, mares difíceis, cumes quase inacessíveis, espaços a descobrir e a redescobrir para nada; casas isoladas de desconforto rebuscado; ruas estreitas e sombrias que perderam qualquer função; longas praias entre areia, mar e sol; teatro e cabarés entre asfaltos e neon (FRÉMONT, 1980, p. 135).
31
Ainda para o autor, nesses lugares inúteis, os geógrafos facilmente
distinguem o lazer, o turismo, a religião. Além de existirem por toda parte, conferem
às relações dos homens com o espaço as últimas significações, pois para além do
trabalho e da troca tem-se: gozo ou contemplação, conquista ou frustração, evasão
ou retraimento.
Em diversos momentos, Tuan (1976) alertou ao fato de que a experiência
constitui os lugares em diversas escalas. Atualmente a escala formaria algo contínuo
que inclui: o lar, como provedor primário de significados; a cidade, como centro de
significados por excelência; os bairros e as regiões; o Estado-Nação.
Faz-se necessário admitir que, seja para o indivíduo ou para o grupo, o
aumento da escala impossibilita, progressivamente, um relacionamento espacial
direto, remetendo-nos para uma dimensão cada vez mais fragmentária dos lugares.
Com isso, recorre-se a outros conceitos espaciais, entre eles o de região, que,
Frémont (1980) afirma não se tratar de um lugar em escala ampliada, e o de
território, que define relações complexas dos homens com os lugares. No entanto,
não cabe, na presente pesquisa, analisar estas outras categorias espaciais.
Independente do principal objeto de análise de Frémont (1980) ser a Região,
é possível aproveitá-lo para iniciar a possível compreensão do conceito desejado,
uma vez que:
Todo lugar tem significado. Combinação de elementos econômicos, ecológicos, sociológicos e demográficos, num espaço reduzido, o lugar visualiza-se através duma forma que se integra na paisagem local e regional (FRÉMONT, 1980, p. 139).
Nessa afirmação ele faz referência ao lugar, a paisagem e a região. Os três
elementos compõem, juntamente com o território, as quatro ramificações que
correspondem ao Espaço (objeto de estudo da Geografia).
No espaço se encontram a brecha objetiva (sócio-econômica) e a brecha subjetiva (poética). No espaço se inscrevem, e ainda mais, se ‘realizam’ as diferenças, da menor à extrema. Desigualmente iluminado, desigualmente acessível, cheio de obstáculos, obstáculo ele mesmo diante de iniciativas, modelado por elas, o espaço torna-se o lugar e o meio das diferenças [...]. Obra e produto da espécie humana, o espaço sai da sombra, como um planeta de um eclipse (LEFÉBVRE, 1975, apud CARLOS, 2007, p. 13).
Frémont (1980) evidencia que no lugar é possível conter uma série de
elementos suscetíveis a debates e análises geográficas, repleto de representações,
símbolos, significados, que estão à frente da objetividade, visto que
32
[...] habitar não é única maneira de nos situarmos. Todos os aspectos da vida, particularmente os que se repetem, implicam certas localizações de formas, signos, de valores, de representações, e, por conseguinte criam lugares (FRÉMONT, 1980, p.133).
Os lugares descritos na Literatura também são criados a partir destas
considerações, uma vez que as personagens criam, a partir das experiências e
vivências, significados subjetivos ao interagirem com o ambiente em que se situam,
além, é claro, de contribuírem para a construção desse mesmo lugar, visto que são
agentes ativos nesse processo.
Ao longo do avanço epistemológico, o lugar ficou adormecido, ausente dos
discursos e pensamentos dos principais estudiosos dos demais conceitos de
análise. Referente a importância e o esquecimento dos estudos sobre o lugar, o
autor destaca, ainda, que,
Os escolhos mais sérios apresentam-se ao nível das combinações mais simples, as que definem os lugares. Esta palavra, muito usada na língua corrente, não tem significado particular, e aparece com uma baixa frequência no discurso dos geógrafos [...]. Os lugares, no entanto, formam a trama elementar do espaço. Constituem numa superfície reduzida e em redor de um pequeno número de pessoas as combinações mais simples, as mais banais, mas talvez também as mais fundamentais das estruturas do espaço: o campo, o caminho, a rua, a oficina, a casa, a praça, a encruzilhada... Como bem diz a palavra, através dos lugares, localizam-se os homens e as coisas (FRÉMONT, 1980, p. 122).
Desde a implantação da Geografia como disciplina acadêmica – a partir de
uma ideia positivista da ciência – o lugar passou a ser eventualmente estudado
pelos geógrafos, mas sempre em um segundo plano.
Tem-se então uma nova perspectiva, pois, “é uma nova geografia que há que
inventar, rompendo ainda divisórias entre disciplinas, com geógrafos abertos à
literatura e à arte homens de letras a par da geografia”, mas que ainda não avançou
quanto aos aperfeiçoamentos, afinal, “as especializações atuais progridem muito
pouco neste sentido”. (FRÉMONT, 1980, p. 262).
Discorrendo sobre o estudo da Geografia, Sauer (1983 apud HEMPE, 2011)
afirma que havia um vínculo de seu objeto de estudo ao conceito de “paisagem
cultural”, em que “a cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural
é o resultado”.
O conceito de “paisagem cultural” corresponde a uma série de elementos
subjetivos e esses remetem ao lugar, como pode-se compreender com a passagem
33
a seguir: “A literatura da Geografia, [...], inicia-se como parte das primeiras sagas e
mitos, vividas como o sentido de lugar e da luta do homem com a natureza”
(SAUER, 1983 apud HEMPE, 2011).
Ao elevar as propostas a uma atitude intelectual mais radical, Sauer
incorporou a subjetividade que estava implícita no conceito de lugar, uma vez que o
sentido era estritamente locacional: “Os fatos da Geografia são fatos do lugar; sua
associação origina o conceito de paisagem”. (SAUER, 1983 apud HEMPE, 2011).
Certamente estas ideias influenciariam, décadas depois, os geógrafos humanistas.
Assim, entende-se que considerar a subjetividade seja “a única finalidade aceitável
das atividades humanas”, pois espera-se que dessa forma “[...] enriqueça de modo
contínuo sua relação com o mundo” (GUATTARI, 1992, p. 33). Logo, entende-se
que a compreensão desta concepção é indispensável quando se pretende entender
de que maneiras são produzidas as mais diversas formas de ver, sentir e estar no
mundo (SOARES e MIRANDA, 2008).
Nesse sentido, Tuan (2012) propõe definições para discutir os significados e
as subjetividades correspondentes ao lugar. Para ele, a geografia estuda os lugares
sob dois olhares: a do lugar como localização (location) e a do lugar como artefato
único. Como localização,
O lugar é a unidade entre duas unidades ligadas pela rede de circulação; [...] o lugar, no entanto, tem mais substância do que nos sugere a palavra localização: ele é uma entidade única, um conjunto especial, que tem história e significado. O lugar encara as experiências e as aspirações das pessoas. O lugar não é só um fato a ser explicado na ampla estrutura do espaço, ele é a realidade a ser esclarecida e compreendida sob a perspectiva das pessoas que lhe dão significado (TUAN, 2012, p. 387).
Em plena atualidade, cada vez mais, o lugar ganha destaque na Geografia
Humanista-Cultural, em que se sobressaem análises culturais, etnográficas, com
enfoque sob uma perspectiva subjetiva, ou seja, de cunho fenomenológico. É no
lugar em que as diversas experiências de espaços podem relacionar-se de um modo
particular.
Há um exercício constante em aproximar a Geografia das demais ciências, no
entanto, é preciso avançar ainda mais – sem anular as contribuições de outrora –
para criar novas metodologias que congreguem o espaço vivido e os fenômenos
culturais em que os objetos de análise da ciência geográfica estejam presentes e
dialoguem de forma em que as contribuições sejam perceptíveis.
34
A aproximação da Geografia com a Literatura se enquadra, portanto, nesta
demanda de avançar na discussão das espacialidades e dos lugares nas poesias,
nos contos, na literatura de cordel e na prosa.
Segundo Serpa (2011), o conceito de lugar vem sendo trabalhado por
diferentes correntes e vieses paradigmáticos, ora associado a uma análise marxista
– que enxerga a possibilidade de discutir o conceito pensando os lugares como as
distintas versões dos processos de reprodução do capital ao redor do mundo –, ora
associado a uma análise fenomenológica e humanista – entendendo-se os lugares
como lócus da reprodução da vida cotidiana, permeada por diferentes visões de
mundo e diferenciadas ideias de cultura.
Para Castro (1995, apud SERPA, 2011) uma fenomenologia do lugar abre a
porta de entrada para análise do espaço geográfico, mas não esgota em toda a sua
potencialidade a operacionalização do conceito no âmbito da Geografia,
A operacionalização do conceito de lugar na Geografia é, portanto, uma porta de entrada, mas também uma forma de aprofundamento das análises espaciais, a partir da definição dos espaços de conceituação pertinentes aos fenômenos que se quer explicitar (CASTRO, 1995, apud SERPA, 2011, p. 24).
No campo fenomenológico, o lugar é interpretado como um fenômeno de
experiência humana. Os lugares abrigam as nossas afeições e obrigações,
possibilita que conheçamos o mundo através dos lugares em que vivemos;
competem autoconhecimento e responsabilidade social.
Segundo Holzer (1999), a partir dos preceitos da fenomenologia, a
preocupação dos geógrafos humanistas foi de definir o lugar enquanto uma
experiência que se refere essencialmente ao espaço como é vivenciado pelos seres
humanos, um centro gerador de significados geográficos, que está em construção
dialética do não-observável, da abstração, com o que denominamos “espaço”.
Ainda com as contribuições de Tuan (2012), espaço e lugar definem, juntos, a
natureza da geografia. Contudo, o lugar tem uma importância muito significativa para
a geografia humanista, pois significa um conjunto complexo e simbólico, que pode
ser analisado a partir das experiências pessoais de cada um; possui uma existência
estável, e é a experiência individual ou coletiva, que torna os lugares visíveis. O
espaço não é uma ideia, mas um conjunto complexo de ideias. O lugar é um espaço
estruturado. Ou seja, o lugar é necessariamente constituído a partir da experiência
que temos do mundo.
35
Novamente, destaca-se Frémont (1980) ao citar a afirmação que se sucede,
Sabe-se que os lugares existem. Os lugares naturais: floresta, savana, colina, vertente, rio; lugares humanizados: arroteamento, percurso, acampamentos, aldeias temporárias ou de implantação recente; lugares vividos: bosque sagrado, floresta temida, acampamento familiar. Os homens existem também, unidos entre si por estruturas sociais cuja coerência foi sublinhada. Mas, entre os homens e os lugares, as relações não parecem duravelmente fixadas, seja porque as implantações pertencem a um passado próximo, seja porque as migrações ainda continuam (FRÉMONT, 1980, p. 169).
A evolução da reprodução das relações sociais que se realiza hoje não anula
o fato de que o lugar é entendido com um fragmento do espaço em que se pode
apreender a modernidade, visto que o mundial não invalida o local.
Sob as perspectivas apontadas, entende-se o lugar como produto dos
vínculos humanos, entre o Homem e a natureza, munido de relações sociais
realizadas no espaço do vivido, assim, há a garantia de uma gama de significados e
sentidos que construídos pela história e pela cultura, produzindo identidade, logo o
homem se reconhece ali, pois é o lugar da vida, do cotidiano e das representações
particulares e identitárias. Isto quer dizer, para Carlos (2007, p. 22), que “o lugar
guarda em si e não fora dele o seu significado e as dimensões do movimento da
história em constituição enquanto movimento da vida, possível de ser apreendido,
pela memória através do sentido”.
Holzer (1999) propõe que se defina o lugar sempre como um centro de
significados e, por extensão, um forte elemento de comunicação, de linguagem, mas
que nunca seja reduzido a um símbolo despido de sua essência espacial, sem a
qual torna-se outra coisa, para qual a palavra “lugar” é, no mínimo inadequada.
Cassirer (1979, apud OLIVEIRA, 2012, p. 3-4) definiu separadamente a
realidade objetiva e a subjetiva, porém ambos com significância meramente relativa,
assim, “objetivo são aqueles elementos da experiência que persistem mediante
todas as mudanças do aqui e agora. Enquanto o subjetivo pertence ao sujeito, toda
mudança em si, e somente, expressa a determinação particular única aqui e agora”.
Dessa forma, não necessariamente conhecemos as coisas como elas são,
mas somente é possível apreender as permanências e mudanças que são
estabelecidas, por assim dizer, nas suas relações. As coisas existem por si só, mas
somente são conhecidas para nós em suas interações, que influenciam ou
obscurecem a natureza de cada uma.
36
Para Oliveira (2012), lugar não é uma forma nem uma matéria
“aristotelicamente falando” (idem, p. 4-5). Também não é um intervalo ou um vazio
espacial que pode ser sucessivamente ocupado por diferentes corpos físicos e por si
mesmo. Mas,
O que Aristóteles não poderia ter concebido foi o conceito de uma moderna teoria da relatividade: um lugar é imóvel, no sentido figurado. A concepção atual de lugar é de tempo em espaço; ou seja, lugar é tempo lugarizado, pois entre espaço e tempo se dá o lugar, o movimento, a matéria. (OLIVEIRA, 2012, p. 5).
Desse modo, o lugar é um signo constante, não apenas repleto de razões,
mas também de emoções. Existe, pois, uma dinâmica em que ultrapassa as
barreiras de delimitações locacionais somadas às relações que o Homem
desenvolve, em construção ao longo do tempo, nos ambientes, para com ele e/ou
socialmente que estão inseridos nele.
A familiaridade com determinada porção do espaço, pela experiência, torna-
se lugar. Segundo Tuan (2013), espaço e lugar dialogam com o cotidiano, indicam
experiências do dia a dia. Torna-se desnecessário se esforçar para estruturar nosso
espaço, visto que por esses espaços em que nos movemos e locomovemos,
integrante da nossa vida diária, é, de fato, o nosso lugar. Conhecemos o nosso lugar
e, também, cada um tem seu próprio lugar. Sendo assim, “onde vivemos, nossa
residência, nosso bairro inteiro, se tornam um lugar para nós. A própria pátria,
entendida como nosso lar, afetivamente se torna um lugar”. (OLIVEIRA, 2012, p.
11).
Em “Casa de Pensão” o (s) lugar (es) das personagens é centralizado na
casa de pensão em que passam boa parte do enredo, mas, cabe mencionar o
vínculo afetivo e nostálgico que a personagem principal tem com seu lugar de
origem (São Luís, no Maranhão) e com os demais provincianos. No entanto, como
passa a viver na Corte, o Rio de Janeiro representa a transposição do seu lugar,
ainda que, depois de migrar, tenha dificuldades em estabelecer apreços pela cidade
e pelos fluminenses; além de estar fortemente vinculado às suas raízes.
A valorização do lugar é proveniente de concretude, pois é o objeto que se
pode habitar e desenvolver sentimentos e emoções. A partir disso, a realidade
concreta somente é atingida por meio de todos os nossos sentidos, com todas as
nossas experiências, tanto em relação a imaginação quanto aos símbolos.
37
Para Tuan (2013) conhecer um lugar significa desenvolver um sentimento
topofílico7 ou topofóbico8. Independentemente de ser um lugar natural ou construído,
a pessoa se conecta ao lugar quando esse passa a ter um significado, para ela,
mais profundo ou, ainda, mais íntimo. Os lugares íntimos são como nossos lares,
são mais aconchegantes no inverno, nos dias chuvosos, nos momentos de doenças
ou de festividade, de descanso, de atendimento às nossas festividades.
Ambos os exemplos descritos anteriormente estão presentes no enredo. Para
alguns personagens, a intimidade e o aconchego do lar não são representados pela
casa de pensão em que residem, principalmente em relação ao tísico que não
usufrui de cuidados necessários e, sim, fica à mercê da doença; por outro lado, a
casa de Campos, o comerciante, representa o conforto, a organização de um lar
caprichoso e festivo (ambos os personagens serão apresentados no capítulo que se
sucede).
Ainda que esses sentimentos descritos por Tuan (2013), na obra a ser
analisada posteriormente, o sentimento nostálgico envolve as relações de
afetividade, mas por outro lado, tem-se, por exemplo, a presença de um tísico que
convive com as demais personagens na casa de pensão. Logo, não se espera que a
relação dele com o ambiente seja amorosa, identitária ou festiva.
Segundo Oliveira (2012), lugar é um mundo de significados organizados, a
um tempo estático e a outro dinâmico; são caminhos que se tornam lugares
significativos. Para os indivíduos, tempo/lugar significa seus lares, suas residências,
seus lugares de trabalho, de lazer, enfim, de todas as suas ações cotidianas. O
essencial de nosso sentido de espaço-tempo, para Lynch (1972, apud OLIVEIRA,
2012, p. 13), é o sentido de “agora” e “aqui”. Existem dois tipos de evidência sobre a
passagem do tempo que se reflete no lugar: a repetição rítmica (as marés, os
relógios, ciclos do sol e as fases da lua) e a mudança progressiva e irreversível
(crescimento e decadência) não são recorrentes, mesmo com as nossas esperanças
e desejos de que as coisas possam mudar.
Temos consciência de que o tempo interior é diferente do exterior. O tempo social que coordena as ações de muitas pessoas nem sempre estão de acordo com o tempo rítmico do corpo. Os relógios digitais são bem mais precisos, mas o tempo flui da mesma maneira. Procuramos alcançar o espaço-tempo para este mundo ou para preservar, ou para mudar, tornando
7 É o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou o ambiente físico; difuso como conceito vivido e concreto como experiência pessoal (TUAN, 2012).
8 Contrário à topofilia, significa aversão ao ambiente físico, tornando-se o lugar do medo, da repugnância.
38
visível o nosso desejo. A imagem precisa ser flexível e consoante à realidade externa (o lugar) e à nossa natureza biológica para promover nosso bem-estar (LYNCH, 1972, apud OLIVEIRA, 2012, p. 14).
Oliveira (2012) afirma que, Lynch, como arquiteto, pesquisador e estudioso
das formas, das funções e das estruturas do espaço urbano, muito contribuiu à
compreensão e à abrangência sobre o lugar. E, ainda, diz que “direta ou
indiretamente, na prática, quem mais tem se aproveitado de suas investigações e
resultados são os geógrafos. Pois o lugar é considerado uma das essências básicas
para a geografia humanista”. (OLIVEIRA, 2012, p. 13).
Para finalizar o debate sobre a definição do conceito de Lugar e elaborar uma
síntese, Mello (2012) nos diz que os espaços dos homens guardam mistérios, dores
e desesperanças. Os lugares, o aconchego, o trabalho, as festas, os atritos e as
recordações. Os indivíduos e os grupos sociais registram, com êxito a riqueza das
experiências vividas com relação aos espaços e aos lugares, contribui-se assim,
para a criação, o conhecimento ou a consciência de porções espaciais vividas,
próximas ou distantes.
A relação entre a Geografia e a Literatura aponta a possibilidade de caminhos
que visam um enriquecimento mútuo entre a linguagem científica e a linguagem
literária. Todo conhecimento possui a marcante função da manifestação das
relações humanas quanto a “elaboração de referenciais que estabeleçam sentidos
interpretativos ou lógicos de como nos localizamos e nos orientamos no mundo”
(FERRAZ, 2011, p. 11).
Aceitar que é possível fazer Ciência a partir de uma nova perspectiva que
esteja além da objetividade e precisão, mas humilde, como apresenta Pessis-
Pasternak (1993),
[...] que dialogue com os outros saberes visando trocas e mútuas aprendizagens, servindo mais para o homem interpretar seu sentido de localização e orientação no mundo, ao invés de dizer como o mundo deve ser a partir de uma idealização pautada na pura metafísica que se sobrepõe a ele (PESSIS-PASTERNAK, 1993 apud FERRAZ, 2011, P. 14).
É justamente sob essa perspectiva que se entende a viabilidade do diálogo
entre Literatura e Geografia.
39
4. GEOGRAFIA NA LITERATURA: OS LUGARES NA OBRA “CASA DE
PENSÃO”
A obra de Aluísio de Azevedo expressa uma relação estreita entre a ciência
geográfica e a literatura. Tal escritor foi influenciado pelos métodos experimentais,
enfatizados na época, pelas ciências naturais, então a criação das personagens foi
feita com base na observação direta da realidade. Logo, saiu a campo para fazer
pesquisas e colher dados sobre o assunto a servir como enredo.
A figura central de “Casa de Pensão”, em torno da qual se desenvolve o
enredo, é um jovem maranhense chamado Amâncio. De família muito rica, mimado
e protegido pela mãe, significativamente chama de Ângela (anjo) e tratado com
aspereza e até violência pelo pai, Amâncio vai ao Rio de Janeiro, por volta de seus
vinte anos, para cursar a faculdade de Medicina. Pouco interessado pelos estudos,
porém, aos poucos se deixa envolver pela fascinação do ambiente mundano do Rio
de Janeiro - a cidade da Corte.
Ele pensa poder conduzir a vida com a experiência que carrega do Maranhão,
mas logo se encontra rodeado de pessoas inescrupulosas que pretendem apenas
aproveitar da riqueza e da ingenuidade do rapaz.
Primeiro, passa a morar na casa de um comerciante chamado Campos,
conhecido de sua família, que o trata como filho, inclusive no controle sobre a vida
de Amâncio. Este, por sua vez, começa a sentir-se atraído por Hortênsia, a mulher
de Campos, que logo percebe a atração que exerce sobre ele.
Amâncio conhece um estudante de engenharia, João Coqueiro, que, ao
perceber a ingenuidade do provinciano, convence-o a ir morar na pensão que
mantém com a esposa, madame Brizard, uma francesa viúva. O plano de Coqueiro
é fazer com que a sua irmã, Amélia, uma moça solteira de vinte e dois anos, seduza
o rapaz para casar-se com ele.
Aos poucos, Amâncio descobre a hipocrisia e o jogo de interesses que
marcam as relações pessoais na cidade. Na casa de pensão onde mora junto a uma
galeria de tipos humanos frustrados, vaidosos, imorais, infelizes, com quem passa a
se relacionar. Amélia, instruída pelo irmão, se insinua e envolve Amâncio com a sua
sensualidade; por fim, tornam-se amantes. O rapaz se acomoda com a situação de
poder desfrutar das carícias de Amélia quase como se fossem casados, pois a
40
liberdade dada a eles é parte do plano de Coqueiro e de Mme. Brizard para que
esse casamento seja inevitável. Mas, nem tudo acontece como planejaram.
A ênfase dada aos anos de formação de Amâncio no ambiente familiar e
escolar, e a força do meio social no comportamento do rapaz evidenciam as teses
naturalistas do autor, uma vez que as descrições das personagens e dos ambientes
são detalhadas, mas sem que ele abandone ápices melodramáticos que revelam
ainda as marcas da prosa romântica. Por outro lado, o enredo de “Casa de Pensão”
tem pontos em comum com um caso real de assassinato motivado pela sedução de
uma jovem, ocorrido por volta de 1876-1877, no Rio de Janeiro, período da primeira
temporada que Aluísio Azevedo passou na cidade da Corte. É escritor realista
buscando na realidade imediata os elementos que vão fazer de sua obra uma
espécie de documento social da época9.
A categorias de análise da Geografia como a região, a paisagem, o território,
não foram identificadas ao longo da obra, mas, sim, o Lugar, principalmente por
aparecer intrínseco em alguns personagens e no protagonista. Segundo Tuan
(2013), p. 151) “o espaço torna-se lugar à medida que adquire definição e
significado”. Há uma relação de pertencimento e identidade com o lugar, lugares
relacionados às vivências humanas. A obra demonstra este fato com clareza quando
Amâncio refletia antes mesmo de chegar na Corte: “Vinham-lhe então as nostalgias
na província; o coração dilatava-se por um sentimento morno de saudade”.
(AZEVEDO, 2009, p.29). Neste caso, o lugar refere-se a espaços de vivência da
personagem em São Luís, no Maranhão, o que exalta a forte relação desse com a
sua origem.
Ao chegar no Rio de Janeiro, no final do século XIX, Amâncio tinha uma carta
de recomendação em mãos e precisava, então, procurar por Campos, o que ficou
responsável em o receber, em sua casa, no Rio de Janeiro.
A casa de Luís Campos era na Rua Direita. Um desses casarões do tempo antigo, quadrados e sem gosto, cujo ar severo e recolhido está a dizer no seu silêncio os rigores do velho comércio português. [...] A mesa era no andar de cima. Faziam-se duas: uma para o dono da casa, a família, o guarda-livros e hóspedes, se os havia, o que era frequente; e a outra só para caixeiros, que subiam ao número de cinco ou seis (AZEVEDO, 2009, p. 11).
9 Informações descritas no livro “Casa de Pensão”, 2009.
41
Pode-se parafrasear a descrição da casa de Campos com a afirmação de
Tuan (2012, p. 410), pois “[...] demonstra quando as pessoas aplicam seu
discernimento moral e estético aos sítios e localizações”, deduz-se que os hóspedes
e frequentadores são tão honestos quanto Campos.
A descrição desse espaço, metodicamente organizado, serve para
demonstrar que a casa do comerciante é livre de quaisquer máculas, assim como a
personalidade de seu dono, a qual é calcada no cumprimento das leis. Para deixar
isso claro, o autor vale-se de diversos adjetivos, os quais estão ligados à ideia de
brancura, que, por sua vez, desdobra-se na sensação de higiene, saúde e limpeza.
Campos, ao longo do diálogo com o Amâncio, filho do Dr. Vasconcelos, citava
pormenores de sua vida no Maranhão e muito elogiava a província: “disse que havia
lá mais sociabilidade que no Rio de Janeiro” (AZEVEDO, 2009, p. 16). Sabe-se das
vaidades da Corte, por razões políticas, culturais, pela concentração da burguesia,
dessa forma acredita-se que as relações provincianas eram mais minuciosas e
menos pretensiosas.
Segundo Broek (1981 apud HEMPE, 2011) os lugares que a Geografia estuda
são de dois tipos: o primeiro significa uma área especifica singular, identificada como
tal pelo nome, seja Brasília, Tóquio, Rio de Janeiro, Alfenas. Cada um desses
lugares individuais é relacionado no índice de um atlas, habitualmente com seu
“endereço” expresso em graus de latitude e longitude; o segundo são os planaltos,
os desertos, agricultura e áreas metropolitanas, em que cada uma dessas
expressões remetem a uma espécie de classe ou gênero, organizada a partir de um
princípio de semelhança ou relação.
Ao analisar o enredo naturalista, o primeiro conceito abordado por Broek
(1981, apud HEMPE, 2011) é o que melhor se encaixa, uma vez que em vários
momentos o autor cita o nome das ruas, os bairros e sempre menciona o Rio de
Janeiro (cidade da Corte).
Entraram na Rua do Ouvidor. Por onde passava o bando alegre dos rapazes, um rumor ardente, ancho de vida, enchia a rua num delírio de vozes confundidas [...]. O Largo de São Francisco já estava cheio e ainda a Rua do Ouvidor não se tinha esvaziado [...]. A Rua do Teatro, o Rocio e todos os becos e travessas circunvizinhas já se achavam tolhidas de povo; as janelas do Hotel Paris destacavam-se embandeiradas e cheias de gente, como nos dias de carnaval (AZEVEDO, 2009, p. 278-279).
42
Outros autores destacam mais duas características dos lugares: a identidade
e a estabilidade. A identidade refere-se ao espírito, ao sentido, ao gênio do lugar.
Ela provém das intenções e experiências intersubjetivas, que resultam da
familiaridade (RELPH, 1976). Estas ligações, que se iniciam com o nosso
nascimento e se aprofundam com a experiência (TUAN, 2013), implicam em um
conhecimento detalhado do lugar, e na constituição de raízes, de um centro de
significados que se torne insubstituível.
— Minha pobre mãe!... suspirava Amâncio no tombadilho, derramando o
olhar lacrimoso pela inconstante planície das águas. — Minha pobre mãe!...
E vinham-lhe então fundas saudades de sua terra, de sua casa e de seus parentes (AZEVEDO, 2009, p. 30).
A Corte, ainda que muito interessante, nunca foi o lugar de Amâncio.
Entende-se que o provinciano esteve, entre a casa de Campos e a Casa de Pensão,
no Rio de Janeiro, em um período menor que um ano. Na citação que se antecede,
percebe-se a relação saudosa com a província quando estava prestes a partir.
O lugar é produzido a partir da afetividade, da sensação de pertencimento, do
modo como nos adaptamos e nos apropriamos das realidades globais que se
introduzem no local, que dão sentido à própria distribuição objetiva das coisas e das
pessoas nessa porção do espaço geográfico. “Nessa perspectiva, nossas
investigações mereceriam o nome de topofilia. Visam determinar o valor humano
dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos
espaços amados” (BACHELARD, 1989 apud HEMPE, 2011). Desse modo, em um
mesmo lugar podem ser construídos diversos lugares, visto que as dimensões da
subjetividade e dos significados atribuídos, que provêm uma lógica própria para a
organização e vivência do lugar, são distintas entre os indivíduos.
Amâncio lia a respeito da Corte e ficava cada vez mais encantado e ansioso
para desfrutar do que havia encontrado nas leituras de romancistas franceses,
acreditava que o Rio de Janeiro seria como Paris,
Vira de longe a Corte através do prisma fantasmagórico de seus sonhos. O Rio de Janeiro afigurava-se-lhe um Paris de Alexandre Dumas ou de Paulo
Kock10, um Paris cheio de canções de amor, um Paris de estudantes e
costureiras, no qual podia ele à vontade correr as suas aventuras, sem fazer escândalo como no diabo da província. [...]. Queria teatros bufos, ceias ruidosas ao lado de francesas, passeios fora de hora, a carro, pelos arrabaldes. Seu espírito, excessivamente romântico, como de todo maranhense nessas condições, pedia uma grande cidade, velha, cheia de
10 Alexandre Dumas (1824-1895) e Paulo Kock (1793-1871): famosos escritores franceses.
43
ruas tenebrosas, cheia de mistérios, de hotéis, de casas de jogo, de lugares suspeitos e de mulheres caprichosas: fidalgas encantadoras e libertinas, capazes de tudo, por um momento de gozo (AZEVEDO, 2009, p. 17).
. Isso remete às expectativas do personagem, enquanto, na verdade, ao
chegar, por não encontrar aquilo que rondava o seu imaginário, novamente,
evidencia lembranças nostálgicas que remetem ao vínculo com os demais
provincianos, em sua terra,
Era tão bom passear pela rua, quando toda a população dormia; fumar, quando tinha certeza de que nenhum dos amigos de seu pai o pilharia com o charuto no queixo; era tão bom beber pela garrafa, comer ao relento e perseguir uma ou outra mulher, que encontrassem desgarrada, a vagar pelos becos mal iluminados da cidade! (AZEVEDO, 2009, p. 27).
Amâncio já tinha hábitos, na época, urbanos, visto que deixara de passar as
férias na fazenda da avó, pois “preferia ficar na cidade: tinha namoros, gostava
loucamente de dançar, já fumava, e já fazia pândegas grossas com os colegas do
Liceu” (idem, p. 27). Afirmava que “O Maranhão era incontestavelmente uma das
províncias onde melhor se bebia!” (Idem, p. 26).
Mesmo com os ápices nostálgicos, mesmo antes de partir rumo à Corte para
estudar, o maranhense tinha seu imaginário a favor das aventuras que decerto
viveria na Corte, ainda mais por se encontrar infeliz,
Precisava viver, gozar sem limites!... Não ali, perto da família, estudando miseráveis lições do Liceu, mas além, muito além, onde não fosse conhecido, onde tudo pare ele apresentasse surpresas de que sua imaginação mal podia delinear (AZEVEDO, 2009, p. 29).
Segundo Tuan (2013),
Os lugares, assim como os objetos, são núcleos de valor, e só podem ser totalmente apreendidos através de uma experiência total englobando relações íntimas, próprias do residente, e relações externas próprias do turista (TUAN, 2013, p. 49).
O lugar torna-se realidade a partir da nossa familiaridade com o espaço, não
necessitando ser definido através de uma imagem precisa, limitada. Logo, entende-
se que Amâncio gostaria de fazer da Corte o seu próprio lugar, ao experiênciá-la,
com outras diversidades,
44
Por isto estimou deveras ter de seguir para o Rio de Janeiro. A Corte, era “uma Paris”, diziam na província, e ele, por conseguinte, havia de lá encontrar boas aventuras, cenas imprevistas, impressões novas, e amores, oh! Amores principalmente! (...) A Corte, sim! é que lhe havia de proporcionar boas conquistas. “Ia principiar a vida!” E nessa disposição, chegou ao Rio de Janeiro (AZEVEDO, 2009, p. 29-31).
Existiam muitos aspectos elucidados em sua mente, principalmente pelo o
que ouvira na província, logo, a chegada ao Rio de Janeiro, tornava-se cada vez
mais atrativa,
A vida externa o atraía de um modo desabrido; estalava por cair no meio desse formigueiro, desse bulício vertiginoso, cuja vibração lhe chegava aos
ouvidos, como os ecos longínquos de uma saturnal11. [...]. Ouvira falar
maravilhas a respeito das cortesãs cínicas e famosas, ceias pela madrugada, passeios no Jardim Botânico, em carros descobertos, o champanha ao lado, o cocheiro bêbado; e tudo isso o atraía em silêncio, e tudo isso o fascinava, o fisgava com o domínio secreto de um vício antigo (AZEVEDO, 2009, p.32).
Ao chegar na Corte, foi surpreendido justamente pelo o contrário. Sentia-se
muito isolado na casa de Campos, onda passara menos de dois meses antes de
mudar-se para a Casa de Pensão. Ao escrever uma carta para a D. Ângela,
Minha querida mãe. Eis-me na grande Corte, que aliás me parece estúpida e acanhada por achar-me longe de vossemecê... [...]. Como sabe, há mês e meio que me acho hospedado em casa deste. Aqui nada me falta, é certo, mas igualmente nada me satisfaz, porque estou isolado e aborrecido [...]. Ainda há uma semana, veja isto! fui a um espetáculo dramático no São Pedro de Alcântara e à volta, quando cheguei à casa, quis acender a vela para estudar. Quem disse?... o fogo não se comunicava ao pavio. Verifico: no lugar da torcida haviam posto um prego; fiquei com os dedos queimados [...]. Já me lembrou mudar-me; o Campos, porém, acha que não o devo fazer enquanto não descobrir por aí um bom cômodo, em alguma casa de pensão (AZEVEDO, 2009, p. 37).
Ao refletir sobre os dissabores na nova cidade, novamente a identidade é
ressaltada: “[...] temia de seu provincialismo, receava “fazer figura triste”. No
Maranhão falavam com tanto assombro dos gatunos da Corte!” (Idem, p. 37).
O lugar, entendido como base para a reprodução da vida e construtor de
identidades, é criado a partir do uso e da apropriação simbólica que lhe confere
sentido (CARLOS, 2007; OLIVEIRA, 2006), ou mais do que isso, introjetado no
íntimo dos indivíduos e dos grupos sociais (TUAN, 1983; MELLO, 2000). Tal
imbricação torna-se uma simbiose pessoa-lugar, uma vez que a incorporação de
11 saturnal: orgia.
45
significados depende de seu estoque de conhecimento e valores. Deste modo, de
acordo com Tuan (2012), o lugar é um repositório de significados. Na carta
destinada à mãe, Amâncio revela o descontentamento ao longo dos dias que
inicialmente passou na corte, isso indica que ainda não existia um elo ou uma
simbiose descrita anteriormente. Além disso, o próprio desconhecimento da cidade
que acabara de chegar provocou essa limitação quanto a identificação do
maranhense com a Corte, o que influencia a inexistência de sentidos e significados.
Ao partir desses pressupostos, entende-se que o Rio de Janeiro era
completamente diferente do imaginário, impulsionado pelas leituras que Amâncio
fazia e pelos comentários dos provincianos. Isso causou um desconforto e a vontade
dele de encontrar um conterrâneo e assim se sucede o romance.
Paiva era amigo de Amâncio, estudavam juntos no Liceu e o diálogo
procedeu extasiado, logo o recém-chegado desabafou ao dizer que “Com franqueza
– antes o Maranhão!” com franqueza que antes!” (AZEVEDO, 2009, p. 38), Paiva
retruca “A Corte sempre é a Corte!... [...] É porque ainda não estás acostumado,
ainda não conheces o Rio! Hás de ver depois!... Verás, repetiu o Paiva. – Daqui a
um ou dois anos é que te quero ouvir” (Idem, p. 39).
De certo modo, Paiva estava certo, visto que, para que se constituam
efetivamente os lugares é necessário um longo tempo de residência e um profundo
envolvimento emocional.
Esta reflexão nos remete à questão do "lugar" colocada em termos
fenomenológicos. Segundo Relph (1976, p. 42-43): “a essência do lugar é a de ser o
centro das ações e das intenções, onde são experimentados os eventos mais
significativos de nossa existência”. Logo,
Lugares são os contextos ou panos de fundo para a intencional idade definir objetos ou eventos, ou seja, eles podem ser objetos da intenção em seu sentido primordial [...], pois toda consciência não é meramente consciência de algo, mas de algo em seu lugar, e [...] esses lugares são definidos geralmente em termos dos objetos e de seus significados. Como objetos, no seu verdadeiro sentido, lugares são essencialmente focos de intenção, que têm usualmente uma localização fixa e traços que persistem em uma forma identificável (RELPH, 1976: 42-43).
Todas estas identidades possuem como característica comum à de que: "[...]
não podem ser entendidas simplesmente em termos de padrões físicos e de traços
observáveis, nem só como produtos de atitudes, mas como uma condição
indissociável destes." (RELPH, 1976, p. 59).
46
A estabilidade, assim como a convivência temporal prolongada, seria um fator
fundamental na constituição dos lugares, segundo TUAN (2012):
Uma cena pode ser um lugar, mas a cena em si não é um lugar. Falta-lhe estabilidade: é da natureza da cena mudar a cada mudança de perspectiva. A cena é definida por esta perspectiva, o que não é verdadeiro para o lugar: é da natureza do lugar aparecer como tendo uma existência estável, independente de quem o percebe (TUAN, 2012, p. 411).
Aos dias que se sucediam na Corte, Amâncio, ao fazer amizades, passou a
vivenciar, aos poucos, aquilo que lhe faltara, até então. Ao se embebedar com
Paiva, na manhã seguinte, acordou na república estudantil do colega e teve uma
visão da cidade.
Viam-se de cima as casas acavaladas umas pelas outras, formando ruas, contornando praças. As chaminés principiavam a fumar; deslizavam as carrocinhas multicores dos pandeiros; as vacas de leite caminhavam com seu passo vagaroso, parando à porta dos fregueses, tilintando o chocalho; os quiosques vendiam café a homens de jaqueta e chapéu desabado; cruzavam-se na rua os libertinos retardios com os operários que se levantavam para a obrigação; ouvia-se o ruído estalado dos carros d’água, o rodar monótono dos bondes. Mais para além pressentiam as cordilheiras, graduando planos esfumados de neblina [...]. E lá muito ao longe, quase a perder de vista, reverbava a baía, laminando as águas na praia (AZEVEDO, 2009, p. 54).
Retoma-se, então, ao segundo tipo de conceito de “lugar” (BROEK, 1981) que
são os planaltos, desertos, agricultura, áreas metropolitanas. Cada uma dessas
expressões designa uma espécie de uma classe ou gênero, organizada segundo um
princípio de semelhança ou relação. Além disso, outros elementos ou situações
descritas sinalizam o conceito de lugar a partir da rotina, pois entende-se que são
hábitos correspondentes cotidiano, ou seja, ao lugar de vivência dos libertinos e dos
operários citados.
Cabe mencionar o lugar em que Amâncio encontra-se, ao acaso, com Paiva
e, em seguida, com Coqueiro, “em que atravessa pela manhã o Beco do Cotovelo,
sentiu grande alegria ao dar de cara com o Paiva Rocha” (AZEVEDO, 2009, p. 38).
Segundo Castilho (2011), o espaço em que o beco representa é, geralmente,
associado a crimes, e a sua própria composição estreita, sendo, às vezes, sem
saída, pode ser lida no texto como um espaço que colocará o protagonista em
situação semelhante, isto é, à margem da sociedade da época.
O encontro de Amâncio com o esperto Paiva, em um local público é também
um teste para o sonhador e ingênuo estudante de medicina que encarava a capital
fluminense como uma Paris dos romances românticos. A rua se configura como
47
obstáculo a ser enfrentado; nesse caso, é apresentada como um espaço, cuja regra
básica é o “engano, a decepção, a malandragem, essa arte brasileira de usar o
ambíguo como instrumento de vida”. (DAMATTA, 1997, p. 91). O rapaz, acostumado
a fácil vida provinciana ao lado da mãe, não possui a malandragem de outros jovens
estudantes que residem no Rio de Janeiro; a rua para ele, desse modo, torna-se um
lugar altamente perigoso. Além disso, é no beco/rua que o provinciano conhece os
malandros: Paiva e, por sua vez, Coqueiro, o dono da casa de pensão.
O referido lugar indica a desordem que se segue. A república em que Paiva
reside contrapõem-se à casa de Campos, o que, aos olhos do autor, representa
perigo e nocivo:
O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boemia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando o ambiente; a louça que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida de ferrugem. Uma banquinha encostada à parede, dizia com seu frio aspecto desarranjado que alguém estivera ali a trabalhar durante a noite, até que se extinguira a vela, cujas últimas gotas de estearina se derramavam melancolicamente pelas bordas de um frasco de xarope Larose, que lhe fizera as vezes de castiçal. Num dos cantos amontoava-se roupa suja; em outro repousava uma máquina de fazer café, ao lado de uma garrafa de espírito de vinho. Nas cabeceiras das três camas e ao comprido das paredes, sobre jornais velhos e desbotados, dependuravam-se calças e fraques de casimira; em uma das ombreiras da janela umas lunetas de ouro, cuidadosamente suspensas num prego. Por aqui e por ali pontas esmagadas de cigarro e cuspalhadas ressequidas. No meio do soalho, com o gargalo decepado, luzia uma garrafa. A luz franca e penetrante da manhã dava a tudo isso um relevo ainda mais duro e repulsivo; o coração de Amâncio ficou vexado e corrido, como se todos os ângulos daquela imundície o espetassem a um só tempo. Ergueu-se cautelosamente, para não acordar os outros, e foi à janela. O vasto panorama lá de fora estremulhou-lhe os sentidos com o seu aspecto (AZEVEDO, 2009, p. 53-54).
Esta longa passagem do romance expõe uma série de características
importantes do quarto da república: a semelhança com um cárcere, que será o
destino de Amâncio no findar da narrativa. Essa associação é possível, uma vez que
há apenas uma janela, única ligação com a rua, aspecto que colabora para tornar o
quarto abafado e infecto. Essas características insalubres propiciam, pois, o
surgimento de doenças, físicas e morais.
Cabe, pois, contrapor a abordagem que se antecede aos detalhes descritivos,
novamente, sobre a casa de Campos,
48
O segundo andar vivia, pois, num brinco; nem um escarro seco no chão. Os móveis luziam, como se estivessem chegado na véspera da casa do marceneiro; as roupas da cama eram de uma brancura fresca e cheirosa; não havia teias de aranha nos tetos ou nos candeeiros e os globos de vidro não apresentavam sequer nódoa de uma mosca. E Campos sentia-se bem no meio dessa ordem, desse método (AZEVEDO, 2009, p. 13).
Seguindo esse raciocínio, tem-se a leitura de que a ordem da casa de
Campos levaria à prosperidade, enquanto a desordem da república, por sua vez,
levaria à derrocada.
A casa de pensão, o principal local onde a narrativa acontece, representa um
lugar em que uma suposta ordem camufla a desordem. Em outras palavras,
Coqueiro tenta convencer Amâncio de que a habitação coletiva é uma casa comum,
tal como a de Campos, um local em que não há desvios de conduta, pois seus
moradores seriam pessoas honestas e trabalhadoras. Em um diálogo entre Amâncio
e João Coqueiro, em que o último tenta convencer o estudante de medicina a se
mudar para a casa de pensão, toma-se conhecimento dessa aparente ordem,
marcada por uma rotina familiar.
— É como lhe digo, recapitulava este. – Aquilo não é um hotel, é uma casa
– casa de família! Não temos hóspedes, temos amigos! Minha mulher é
quem toma conta de tudo!... [...]. — Fica-se muito melhor em uma casa de
família, continuava o outro. – A vida em hotel ou a vida em república é o diabo: estraga-se tudo: o estômago, o caráter, a bolsa; ao passo que ali você tem o seu banho frio pela manhã, torradas à noite e, se cair doente (o que não lhe desejo), há quem o trate, quem lhe prepare um remédio, um caldo, um suadouro, um escalda-pés (AZEVEDO, 2009, p. 47).
A casa do esposo de Mme. Brizard, em sua concepção, não seria uma
habitação coletiva como as demais que existiam no Rio de Janeiro. Cabe afirmar
que a expressão “casa de família” aparece em outras partes do romance. Nesse
sentido, é importante destacar que a valorização da “família” estaria estritamente
ligada à ideia de um espaço, cuja ordem dos cômodos, rigidamente delimitada,
coaduna-se com a estrutura familiar. DaMatta expõe que o lugar da casa:
É rigidamente demarcado e dividido pelas varandas, salas de visita, salas de jantar, cozinhas, banheiros, quarto de dormir, as “dependências de empregada” e áreas de serviço, de tal como que a casa, como uma totalidade, revela um conjunto de espaços onde uma maior ou menor intimidade é permitida, possível ou abolida (DAMATTA, 1997, p. 91).
A leitura do romance mostra que há uma tentativa de se aproximar a casa de
pensão da residência de Campos, no que se refere às normas e, ao mesmo tempo,
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ao acolhimento e conforto. Entretanto, o espaço da casa de Mme. Brizard e
Coqueiro configura-se como um lugar que não se aproxima de um local regido e
formado pelo parentesco e pelas relações de sangue, elementos esses essenciais
para a constituição de uma casa de família. (DaMatta, 1997).
A caracterização da casa de pensão inicia-se com exaltação ao espaço
externo, relacionado à natureza,
[...] Coqueiro, que insistia em lhe mostrar a casa. Principiaram pela chácara.
— Olha. Isto aqui é como vês!... dizia o proprietário. — Boa sombra,
caramanchões de maracujá, flores, sossego!... Bom lugar para estudo! E vai
até o fundo. Vem ver! [...] — Parece que está na roça!... acrescentou. —
De manhã é um chilrear de passarinhos, que até aborrece! Quando aqui não houver fresco, não o encontrarás em parte alguma! (...)Subiram outra vez ao primeiro andar, pela cozinha. Um preto, de avental e boné de linho branco, à moda dos cozinheiros franceses, trabalhava ao fogão. Coqueiro exigiu que o amigo olhasse para aquele asseio; atentasse para a nitidez das caçarolas de metal areado, para a limpeza das panelas, para a fartura de água na pia (AZEVEDO, 2009, p. 85).
Percebe-se que a chácara é apresentada como um local de liberdade; os
pássaros, a sombra, os caramanchões carregam a ideia de desprendimento das
normas. Para Amâncio, é uma excelente ideia, visto que ele deseja sair das regras
impostas na casa do Campos. É importante destacar a ênfase para o modo em que
a cozinha descrita: a cor branca da vestimenta do cozinheiro e o aspecto limpo do
chão, o qual Coqueiro faz questão de salientar. O branco, por demonstrar a pureza
da casa, tem papel fundamental nos espaços da ordem e, consequentemente, nessa
retidão disfarçada que a casa de pensão apresenta. O chão limpo também marca
uma oposição à sujeira descrita na república dos estudantes.
Posteriormente, com mais detalhes a respeito dos aposentos e dos hóspedes,
tem-se, por exemplo, no primeiro quarto, um advogado que auxilia a legitimar a ideia
de ordem e legalidade. O segundo cômodo é alugado por um comerciante falido que
recebe comentários negativos junto à respectiva esposa. Esse elemento é
acompanhado por referência ao hospedado que sofre de tuberculose, ao qual
entende-se que representa como um prenúncio da doença que se espalhará pela
casa ao desenrolar do romance. O Piloto, do quarto três, é referido como uma figura
que dá importância à casa de pensão, segundo Coqueiro, demonstra que a agilidade
e a fugacidade, entre outras características sagazes (no sentido negativo), transitam
pelo lugar da habitação coletiva, o que simboliza, nesse sentido, alguns indícios da
desordem,
50
Neste, disse mostrando o nº 1, está o Dr. Tavares, um advogado de mão-
cheia; caráter muito sério! No segundo declarou que morava o Fontes: —
Não era mau sujeito, coitado! Fora infeliz nos negócios: quebrara havia dois
anos e ainda não tinha conseguido levantar a cabeça. E abafando a voz: —
Dizem que ficou arranjado... não sei!... Paga pontualmente as despesas, mas é um “unha de fome”, regateia muito, chora vintém por vintém, o dinheiro que lhe sai das mãos [...]. A mulher, uma francesa coxa, é empregada na Notre Dame e só vem a casa para dormir. E, indicando o nº
3: — Aqui é o Piloto [...] repórter da Gazeta [...]. Um rapaz tão popular. Um
que anda sempre ligeiro, olhando para os lados, como um calango (AZEVEDO, 2009, p. 86-87).
Nota-se que os quartos descritos no trecho acima, refletem a personalidade
dos hóspedes que constroem, por assim dizer, uma relação ordem/desordem no
lugar, ou seja, na própria casa. Desse modo, fica evidente o quão a subjetividade
dos residentes é suprimida. Há uma falta de privacidade entre os locadores devido à
disposição dos quartos, o que ressalta, também, a ausência de individualidade. A
relevância do lugar, na obra, é muito mais explorada quando se compara aos
conflitos de cada personagem, logo, o lugar, caracterizado como a casa de pensão,
é quem guia as atitudes das personagens.
O segundo andar também segue a lógica que fora abordada no parágrafo
anterior. No entanto, antes de avançar quanto aos detalhes dos cômodos e aos
demais hóspedes, cabe destacar as particularidades encontradas,
Depois de subir, acharam-se em um corredor estreito e oprimido pelo teto. Ao fundo, uma janela de grades verdes coava tristemente a luz que vinha de fora. Lia-se nas portas em algarismos azuis, pintados sobre um pequeno círculo brando, os números de 4 a 11. Aquilo tinha aspecto de casa de saúde... pensou Amâncio, com tédio. Não devia ser muito agradável morar ali. Todos os quartos, entretanto, estavam ocupados (AZEVEDO, 2009, p. 87).
As características que se sobressaem ao estudante, ao final da narrativa, as
quais podem ser lidas quando se menciona o beco e a república de estudantes,
apresentados anteriormente, aparecem, novamente, quando referido ao corredor.
Dessa vez, destaca-se alguns adjetivos: “estreito” e “oprimido” que, somados à
janela de grades (como as de uma prisão) e à luz melancólica, ressaltam, além
destes elementos, que o referente lugar está mórbido/doente.
O hibridismo do ambiente continua presente na descrição dos outros quartos:
Coqueiro principiou logo, em voz soturna, a denunciar os competentes
moradores: Nº 4 — o Campelo, um esquisitão, porém bom sujeito, do
51
comércio; não comia na casa senão aos domingos e isso mesmo só de
manhã. Nº 5 — o Paula Mendes e a mulher; casal de artistas, davam lições
e concertos de piano e rabeca; muito conhecidos na Corte. Nº 6 — um
guarda-livros; bom moço, tinha quarto sempre asseadinho e à noite, quando voltava do trabalho, estudava clarinete. O Nº 7 era de um pobre rapaz português; doente: vivia embrulhado em uma manta de lã, por cima do sobretudo, e saía todas as manhãs a passeio para as bandas da Tijuca (AZEVEDO, 2009, p. 87).
O autor, na narrativa, utiliza o adjetivo “soturno” e o verbo “denunciar”,
entende-se que essa caracterização quanto à fala de Coqueiro remete a algo errado
nos demais quartos apresentados a Amâncio. Dessa forma, visualiza-se elementos
de ordem e desordem desse lugar, também, do 4 ao 11. Entende-se, também, que a
presença do casal de artistas, na habitação coletiva, remete-se a ideia de desordem,
pois, infelizmente, as profissões ligadas à arte estão, na maioria das vezes,
associadas à falta de compromisso ou regra.
No Nº 6, o guarda-livros, cuja profissão está relacionada ao comércio, tem,
assim como Campos, uma postura correta. No entanto, o quarto de Nº 7 é o que, na
verdade, ganha destaque, pois, durante a narrativa, ressalta-se que o morador sofre
de uma enfermidade física que se entende simbolizar a doença moral que arremete
a todos os demais moradores da casa de pensão.
O aposento de número oito é apresentado de relance e nele nota-se,
justamente, a saia de Lúcia, locatária, que trai o homem com quem é casada, sendo
que um de seus amantes será Amâncio. A peça de roupa somada ao lugar que se
fecha, rapidamente, graças à porta, remete a ideia que alguma relação ilícita poderá
acontecer ali.
A porta do Nº 8 estava aberta e Amâncio viu, de relance, a cauda de uma saia que fugia para o interior do quarto. E logo uma voz aflautada, de
mulher, gritou: — Corra! Fecha essa porta! — É uma tal Lúcia Pereira...
segredou o Coqueiro. — Mora aí com o marido, um tipo! Estavam na casa
há muito pouco tempo. Coqueiro não podia dizer ainda que tais seriam, porque só formava seu juízo depois de paga a primeira conta (AZEVEDO, 2009, p.87- 88).
Sequencialmente, o autor descreve sobre o quarto Nº 9, em que reside
Melinho: “O Nº 9 era do Melinho — uma pérola! Empregado na Caixa de
Amortização; não comia em casa; mas, às vezes, trazia frutas cristalizadas para
Mme. Brizard e Amelinha. Belo moço!” (AZEVEDO, 2009, p. 88). Entende-se indícios
de ordem, diferente dos personagens anteriores, mal caracterizados. A ideia de
integridade também aparece quando Coqueiro se refere ao morador do quarto
número dez,
52
Coqueiro não se lembrava como era ao certo o nome do sujeito que ocupava o Nº 10: “Lamentosa ou Lambertosa, uma coisa por aí assim!”. Ele tinha o nome escrito lá embaixo. “Mas que homem fino! Delicadíssimo! Um verdadeiro gentleman! E tocava violão com muito talento” (AZEVEDO, 2009, p. 88).
O residente referido chama-se Lambertosa, um dos homens que representa o
discurso cientificista no enredo. Porém, a estranheza do nome, cabe mencionar, o
desrespeito indicado pela confusão feita por Coqueiro, que passa a impressão que o
conhecimento científico pouco é reconhecido ou levado a sério na casa. Em certo
momento, o referido personagem sugere à filha de Mme. Brizard, Nini, que sofre de
histeria, a tomar banhos de mar, mas, os conselhos não são considerados pela
família.
O Nº 11, que ficava justamente encostado à janela do corredor pertencia a um excelente médico, o Dr. Correia; estava, porém, quase sempre fechado, visto que o doutor só se utilizava do quarto para certos trabalhos e certos estudos, que, por causa das crianças, não podia fazer em casa da família. Vinha às vezes com frequência e às vezes não aparecia durante um mês inteiro; mas pagava sempre e bem. Esse quarto, como o outro que ficava na extremidade oposta do corredor, tinha saída para a chácara (AZEVEDO, 2009, p. 88).
O último quarto, de número onze, tem uma configuração espacial totalmente
privilegiada e, também, propícia para o comportamento de Dr. Correia que, ao que
aparenta, comete algum ato imoral. Na descrição do referido lugar, o narrador
interrompe a fala de Coqueiro ao criar um mistério ao citar que o quarto fica sempre
fechado. Diante disso, nos deixa pistas sobre algo proibido, como o aborto, ocorre
no quarto, visto que os estudos e os trabalhos não poderiam ser realizados em sua
própria residência junto à sua família. A configuração espacial, como já mencionada,
confirma o comportamento ilícito do doutor. Cabe destacar o fato das janelas se
abrirem para o corredor, o que de certo modo facilita a fuga da referida personagem.
Sobre as janelas, DaMatta (1997) diz que abrem a possibilidade de
comunicação entre a casa e a rua e podem ser lidas como objetos que intermedeiam
as relações existentes no lugar. Logo, são um componente, da casa, ambíguos, uma
vez que estão situadas:
Entre o mundo interior e exterior, são as janelas, de onde se pode ver a rua, com seu movimento, isto é, seu desfile constante. Era, portanto, das janelas que as moças das casas podiam entrar em contato com visual com seus namorados [...]. Vemos que certas áreas da casa permitiam comunicar o de dentro com o de fora e, com isso, o feminino (que está sempre sob controle) com o masculino. (DAMATTA, 1997, p. 92).
53
Entende-se que a saída para a chácara é, da mesma forma, estratégica para
a descoberta de um eventual flagrante de uma conduta considerada, aos olhos da
sociedade, ilícita. Tem-se, contudo, nas palavras do narrador a confirmação
antecipada que a casa de Coqueiro e Mme. Brizard seja uma residência repleta de
hóspedes com comportamentos exemplares.
As relações consideradas moralmente inapropriadas pela sociedade do
século XIX ocorrem também entre o personagem principal e a irmã de Coqueiro, e,
com Lúcia Pereira (como destacado anteriormente), graças ao arranjo espacial. Por
se tratar do protagonista da obra, a modificação do lugar apresentado ao longo do
desenrolar do enredo, a qual contribuirá a personagem para praticar os atos que se
opõem aos bons costumes, ganha maiores proporções.
Para se aproximar de Lúcia Pereira, o jovem maranhense aproveita dos
ápices histéricos de Nini - que o abordou no instante em que ele se dirigia ao seu
gabinete transformado em quarto. A conversa entre Amâncio e Coqueiro acontece
perto de um vão de uma das janelas, na sala de visitas, revela o interesse do
provinciano, para mudar de cômodo, para aproximar-se da mulher de Pereira e,
assim, quem sabe, manter relações ilícitas.
[...] E Amâncio, com acentuações de quem detesta imoralidades, disse ao outro, sem transição: — Trata-se de Nini, disse o provinciano em voz soturna [...]. Sabes, continuou aquele, - que a menina sofre horrivelmente dos nervos, e creio eu até que tem qualquer desarranjo na cabeça... — É que ela, naturalmente em consequência da moléstia, coitada, às vezes faz certas coisas que... para mim ou qualquer outro rapaz de bons princípios não valem nada, mas que, se caírem nas mãos de um desalmado... sim! Tu sabes que há homens para tudo neste mundo!... E, Amâncio, inflamado pelos princípios morais que ele só cultivava teoricamente, parecia mais que ninguém preocupado com a pureza dos costumes [...]. Ainda ontem, quando me levantei da mesa, seguiu-me até à sala e... (...). Principiou a fazer tolices. [...] E abraçando-o: — Acabas de provar que és um homem de bem! A tua ação é de um verdadeiro amigo: não imagina o quanto eu aprecio. — Cumpri com o meu dever... observou o provinciano modestamente [...] nestas questões de família sou muito rigoroso. E agora, o que está feito, está feito! Vou para o segundo andar; é até mais fresco!... (AZEVEDO, 2009, p. 142-143).
As atitudes de ambos os rapazes servem para exemplificar a tentativa de
camuflar a desordem que acontece na casa de pensão. Durante o diálogo, é
possível perceber como os substantivos “moralidade” e “família” são frequentemente
54
ditos a atitude de Amâncio e Coqueiro. Considera-se as palavras como chave, visto
que a ideia é de manter a habitação coletiva como casa de família, com princípios e
seriedade. Neste caso, a leitura atenta referente ao uso do lugar, no que ocorre na
cena escrita anteriormente, ganha, ao mesmo tempo, duas funções: simular uma
falsa moralidade, referente ao afastamento de Amâncio em relação a Nini; o
provinciano muda-se de quarto para evitar confrontar-se com a histeria da enteada
de Coqueiro, durante o trajeto para chegar em seus aposentos. O rearranjo do lugar
também serve para limitar as regras, visto que o verdadeiro interesse de Amâncio,
ao querer mudar de cômodo, é justamente por ficar mais próximo ao quarto de Lúcia
Pereira, para que, assim, finalmente possa tê-la como amante.
Sendo assim, entende-se que o determinismo que atua incisivamente na obra
não está centrado somente na figura do provinciano. A casa de pensão, de modo
geral, está condicionada as fatalidades desde o início da obra. Contudo, o que faz
jus a esta afirmativa, ao menos simbolicamente, é a doença do tísico seguida da
morte.
[...] O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no desespero da sua ortopneia. A cabeça vergada para trás, apontando para o teto; sentiam-se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam-se-lhe ossos por todo o corpo [...]. Não podia sossegar. O seu corpo chupado lentamente pela tísica, nu e esquelético, virava-se de uma para outra banda, entre manchas excrementícias, a porejar um suor gorduroso e frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe à pele, cor de osso velho, um brilho repugnante. Faltava-lhe o ar e, todavia, pela janela aberta para o nascente, os ventos frescos da noite entravam impregnados da música de um baile distante, e punham no triste abandono daquele quarto uma melancolia dura, um áspero sentimento de egoísmo; alguma coisa da indiferença dos que vivem pelos que se vão meter silenciosamente dentro da terra [...]. Uma lamparina de azeite fazia tremer a sua miserável chama e cuspia o óleo quente. Havia um cheiro enjoativo de moléstia e desasseio (AZEVEDO, 2009, p. 191-192).
O quarto sete, onde o tísico reside, é descrito de maneira mórbida, assim
como corpo do homem que está prestes a falecer. O narrador para dizer que a
chama fraca – que se assemelha à vida do homem doente – está, aos poucos, se
apagando, usa o verbo “cuspir”. O ato de tossir e cuspir sangue é comum àqueles
que estão na fase terminal da tuberculose. Como se pode notar, os objetos que
compõem o quarto, de certo modo, indicam a doença presente no lugar; a lamparina
cospe, pois, uma chama completamente miserável. Para frisar o abandono do
quarto, que é invadido por uma música longínqua, soa agressivo e, ao mesmo
tempo, transmite a ideia de que o lugar está tomado por um odor nauseante. Além
55
isso, há a presença marcante da sujeira e de elementos que indicam o fim da vida
do tísico. São usadas as palavras “excrementícia”, “enjoativo” e, por fim, “desasseio”
que sintetizam toda a imundície do cômodo. No entanto, apesar de toda a atmosfera
mórbida descrita na cena, o homem morrerá dentro do quarto de Amâncio.
Quando estava quase adormecido, passos agitados no corredor o despertaram em sobressalto e uma pancada em cheio na porta fê-lo erguer-se de pulo e precipitar-se para ela [...]. A porta afinal cedeu, e Amâncio sentiu cair desamparadamente no chão o corpo comprido e nu do tísico. Estava horrível. Queria erguer-se, e em vão agitava as pernas e os braços. Amâncio tentou ajuda-lo, gritando ao mesmo tempo pelo Sabino. Os membros do tísico pareciam quebrar-se-lhe nas mãos, que escorregavam com a gordura fria do suor, e no soalho manchas de umidade desenhavam-lhe já o feito do corpo (AZEVEDO, 2009, p. 194-195).
O cômodo descrito em detalhes representa o lugar do tuberculoso, visto que,
segundo Mello (2012), a cama, a casa, a rua e o bairro são lugares eleitos e
demarcados a partir de experiências diretas, porém, tem-se características de
abandono. “O vivido tem um caráter espacial local — no bairro. [...] O lugar da
habitação que envolve a peça do apartamento ou da casa” (CARLOS, 2007, p. 45).
O narrador frisa, não somente nessa passagem, a magreza do tísico. É claro
que a aparência esquelética surge devido à doença do morador do número sete.
Entretanto, a ideia é a de que o tísico simboliza a doença moral que acomete a casa.
Cabe dizer que o frágil esqueleto do homem, que parece se quebrar quando
Amâncio o segura, pode ser entendido como o próprio comportamento dos
moradores da casa de pensão. Ou seja, a moral de todos é tão frágil e doente que a
todo o momento corre o risco de se quebrar totalmente, como a habitação coletiva
que, aos olhos do narrador, se diminui gradualmente.
Outra informação também convém ser ressaltada. É perceptível que as
marcas da sujeira adentram a todos os lugares que Amâncio percorre. Ainda que o
provinciano seja o protagonista da história, nota-se que as ações deste, no decorrer
da obra, são evidenciadas na descrição de vários lugares fundamentais na
construção do enredo, como a casa de Campos, o Hotel Paris, a república de
estudantes e a própria casa de pensão.
O arranjo do lugar de “Casa de Pensão” une-se a ideia de evidenciar com
mais precisão a transição da ordem à desordem. Com a morte de Amâncio isso
pode ser confirmado, pois, ao final do romance, é montado uma cena que reflete
56
claramente os sentimentos de Coqueiro e, assim, anuncia o próprio fim da vida do
estudante maranhense.
Abriu a janela. O dia repontava já, mas enevoado e triste. Não havia azul; céu e horizontes de neblina formavam uma só pasta cor de pérola, onde vultos cinzentos se esfumavam. O homem da venda abria também as suas portas. Coqueiro cumprimentou-o, ele respondeu com um risinho insolente, acompanhado de pigarro. Uma caleça rodejava lentamente ao largo da rua, o cocheiro vergado sobre as rédeas, o seu casquete sumido na gola do capotão. Coqueiro fez-lhe sinal que esperasse, embrulhou-se no sobretudo, enterrou o chapéu na cabeça, meteu o revólver no bolso e saiu. – Hotel Paris! disse ao da boleia, atirando-se no fundo da carruagem. O cocheiro endireitou-se sobre a almofada, espichou o pescoço, sacudiu as rédeas e os animais dispararam, assoprando grossamente contra o ar frio da manhã (AZEVEDO, 2009, p. 286).
Percebe-se que a limitação do referido espaço, atravessado pela neblina,
remete ao próprio destino do personagem, ou seja, à prisão e à morte, uma vez que
Coqueiro será condenado pelo assassinato de Amâncio.
Faz-se importante ressaltar que o lugar, percorrido pelo marido de Mme.
Brizard percorrido até o hotel, é frio, assim como o ato, o assassinato que comete.
Pode-se dizer, também, que a morte está relacionada com a frieza, pelo corpo frio
ao ceifar a vida, e pela sepultura por ser privada de calor.
Coqueiro enfiou pela escadaria do hotel. Estava tudo deserto e silencioso; apenas, no salão principal, viam-se um preto velho e um caixeiro desdormido que, entre bocejos, se dispunha a principiar a limpeza da casa. Dir-se-ia que ali passara um exército de bêbados. Por toda a parte vinho derramado, copos partidos, cacos de garrafa e destroços do vasilhame que servira à mesa; o oleado do chão escorregava com uma crusta gordurosa de restos de comida e vômito pezinhado; um espelho ficara em fanicos e um aquário desabara, fazendo-se pedaços e alagando o pavimento, onde peixinhos dourados e vermelhos jaziam, uns mortos e outros ainda estrebuchados (AZEVEDO, 2009, p. 286-287).
O trecho é de suma importância para perceber como a descrição da
desordem auxiliará a ressaltar o que foi dito até agora, isto é, como levará Amâncio,
corrompido por ela durante boa parte da narrativa, à morte violenta. O narrador
destaca uma multidão de bêbados, os quais, devido a festa para comemorar a
liberdade do maranhense, destroem todo o lugar. Tem-se, nesse caso, a presença
do lixo, dos fragmentos que surgem dos objetos quebrados e que são a base da
própria construção de casa de pensão, visto que o autor trabalha, justamente, com
personagens que estariam à margem de um comportamento moralmente correto da
sociedade. Além disso, os destroços são relacionados à própria vida de Amâncio
57
que, ao trocar a ordem (a casa do comerciante Campos) pela desordem, leva a si e
outras personagens à destruição, tal como os objetos em fragmentos. A situação do
chão, escorregadio e sujo, assemelha-se ao da república que também já era
marcada por essas características, as quais são frisadas, mais uma vez, pelo
narrador.
A sujeira, uma enfermidade do ponto de vista naturalista, que é disseminada
em Amâncio na casa dos estudantes, aparece, novamente, para ressaltar, por meio
das balas disparadas por Coqueiro, o destino do estudante de medicina. A morte, no
salão principal, aparece antes mesmo do assassinato do rapaz, indicada quando
menciona os peixes que se debatem assim como o rapaz quando alvo dos disparos.
A passagem do romance que se sucede expõe um arranjo espacial que tenta
colocar ordem no lugar. Duas personagens, que utilizam de água e sabão, e outra
organizando as cadeiras para finalmente proceder com a limpeza do chão, compõe
a ideia de limpeza que se opõe à sujeira causada pela festa.
O preto, de gatinhas, em manga de camisa e calças arregambiadas, procurava desencardir o sobrado com um esfregão de coco, que embeber ao canto da sala numa tina cheia d’água; enquanto o caixeiro, a jogar o corpo, muito esbodegado, erguia o que estava pelo chão e empilhava as cadeiras sobre as mesinhas de mármore, ao comprido das paredes (AZEVEDO, 2009, p. 287).
A descrição liga-se ao objetivo de apontar a imoralidade da sociedade, pois a
higiene do local serviria justamente para lembrar que os comportamentos desviantes
podem ser eliminados, do mesmo modo que os resquícios da celebração. Assim,
percebe-se que Aluísio de Azevedo trabalha com a ideia de que o lixo, devido à
desorganização, é uma forte ameaça, e aqueles que estão ligados a ele também o
são. Por isso, o autor demonstra que é possível limpar essa sujeira; a referida cena
tem um papel importante na obra, pois a ideia é a de expor as partes doentes da
sociedade, aquilo que não presta e que deve ser eliminado da “cidade-conceito”, o
Rio de Janeiro, referido, agora, como o lugar da encenação da desordem.
Tal desordem continua reafirmada pela passagem que se sucede:
— Onde é o quarto de Amâncio? perguntou-lhe João Coqueiro. — Amâncio?... repetiu aquele, emperrando no meio da sala para fitar o interlocutor com um olhar morto de sono! – Ah!bocejou. - O tal moço do pagode de ontem?... Coqueiro sacudiu a cabeça perpendicularmente. — É cá, no número dois, mas escusa bater, que ele aí não está. Ficou lá em cima, no onze, com a Jeanete. E voltando ao serviço: - Se não é coisa de
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pressa, o melhor seria procura-lo mais logo... Deve de estar agora ferrado no sono, que levou na pândega até as quatro e meia!... Coqueiro voltou-lhe as costas e dirigiu-se para o segundo andar. Bateu à porta no nº 11. Ninguém respondeu. Tornou a bater. Bateu de novo.
— Qui est là12!... perguntou na rouquidão do estremunhamento uma voz de
mulher. — Preciso falar a esse rapaz que aí está, o Amâncio! Ouviu-se um farfalhar de panos, chinelas arrastaram, e em seguida a porta abriu-se cautelosamente, mostrando pela fisga um rosto gordo, de olhos azuis. — Qui est là... (AZEVEDO, 2009, p. 287-288).
Além de mencionar a festa, que durou até a madrugada, o diálogo evidencia
outra informação importante. O estudante de medicina está acompanhado de uma
prostituta. Apesar de não estar explicitamente declarado que a mulher é meretriz, o
discurso direto, empregado no fragmento, informa o nome da mulher (Jeanete), de
origem francesa. Era comum, na segunda metade do século XIX, a presença de
prostitutas vindas da França. A verdade é que francesa ou não, a construção da
cena indica que Amâncio está com uma pessoa em que a profissão é vista com
maus olhos.
Há, novamente, a exaltação da estratégia do narrador de reforçar a desordem
ao colocar no lugar em que ela é eliminada (a figura de Amâncio representa isso,
uma vez que se encerra, no final da narrativa, o ápice da desordem) para
demonstrar o quão imprudente pode ser a vida fora das regras.
Amâncio, em uma cama muito cortinada e muito larga, dormia profundamente, de barriga para o ar, pernas abertas e braços atirados sobre a desordem das colchas e dos lençóis. No chão, ao lado do escarrador, um travesseiro caído, e em torno, por todo o desarranjo da alcova, roupas espalhadas. O Coqueiro olhou um instante para ele, sem pestanejar; depois, sacou tranquilamente o revólver da algibeira e deu-lhe um tiro à queima-roupa. Amâncio soltou um “ai”. A segunda bala já o não pilhou, mas o irmão de Amélia, abstrato, pateta, continuava a disparar outros tiros até que a arma lhe caiu das mãos. Nisto, como se acordasse de uma vertigem, saiu a correr tropeçando em tudo. No primeiro andar um polícia lançou-lhe as garras aos cós das calças e o foi conduzido à sua frente, sem lhe dizer palavra. Entretanto, Amâncio despertou com um novo gemido e levou ao peito as mãos que se ensoparam no sangue da ferida. Olhou em torno, à procura de alguém; mas o quarto estava abandonado. Então, fechou novamente os olhos estremecendo, esticou o corpo — e uma palavra doce esvoaçou-lhe nos lábios entreabertos, como um fraco e lamentoso apelo de criança: — Mamãe!... E morreu. (AZEVEDO, 2009, p. 288).
O quarto em que ocorre o assassinato está evidentemente marcado pela
desarrumação, o que fica claro quando o narrador frisa, por meio das palavras
12 Qui est là? (francês): quem está aí?
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“desordem” e “desarranjo”, a disposição dos objetos. Amâncio, que durante a
narrativa é contaminado, nos/pelos lugares que frequenta, por uma enfermidade
moral, isto é, por condutas que não se adequam ao padrão da sociedade da Corte,
morre justamente em um local marcado pela desordem. O nome do hotel, “Hotel
Paris”, onde vai a óbito, soa irônico, visto que o maranhense morre em um local que
carrega o nome da cidade em que ele, romanticamente, fantasiava viver como nas
obras de romancistas franceses, citados outrora.
É importante ressaltar que o último instante de vida do estudante de medicina,
que, em um quarto abandonado, clama pela mãe, pode ser lido como a invocação
ao lugar provinciano em suas significações, em que as relações simples e
despretensiosas foram substituídas pelos interesses das pessoas que o cercava na
Corte. Ao lado da mãe, no Maranhão — cujo a prosperidade despreocupada surgiu
nos ombros dos trabalhadores braçais da escravidão, conhecido, também, pelos
belos sobrados e pela civilidade sofisticada —, Amâncio viveu em plena liberdade,
tinha seus namoros, engraçava-se com as escravas. Na verdade, já vivia
desregradamente, mas que, apesar de menos intensa, não contava com os perigos
que encontrou na Corte. Um lugar perigoso para um jovem leitor de romances
românticos.
Observa-se que o romance não questiona as relações de poder que norteiam
a vida de Amâncio, antes defende-as na pessoa da mãe e seu ideal familiar. A perda
das características do que seria o lugar ideal continua, pois, além de sepultar o
protagonista do enredo, o próprio casarão, que se transformou na pensão de
Coqueiro e Mme. Brizard, também deixa de existir. Entende-se esse ponto de vista
como uma interpretação literária, mas que ao pensar o fim dos lugares por um viés
geográfico caminha-se “[...] para longe de reflexões que enxergam na progressiva
ampliação do processo de globalização o fim dos lugares” (BARTOLY, 2011, p. 88).
60
5. CONCLUSÃO
Estre trabalho procurou traçar uma linha de pensamento coerente com a sua
proposta, ainda que se fez necessário, em alguns momentos, um afastamento para
que proporcionasse maior fluidez. Ressalta-se que o desenvolvimento demandou
reflexões sobre a interdisciplinaridade e a flexibilidade que a Geografia tem para
dialogar com as demais ciências, mas, também e principalmente, com as artes.
Nesse sentido, foi possível constatar que a aproximação com a arte literária é
fruto da corrente humanista, visto que é a que melhor se ajusta a estes estudos ao
ser composta de bases teóricas e meios adequados para abordar as questões
relativas aos sentimentos, as experiências e simbolismos por contemplar diferentes
modos de análises, por vezes pouco consideráveis, que englobam significados,
pertencimentos, subjetividades e entendimentos.
Desse modo, a Literatura é somada à Geografia e compõe uma espécie de
documento a ser analisado, assim como pretendeu-se ao longo desta pesquisa, de
modo em que as interpretações foram direcionadas para a compreensão dos
fenômenos. Sabe-se que essa é uma tendência recente na ciência geográfica que
ainda tem muito o se beneficiar dos aspectos descritos nas mais diversas obras
literárias.
A linguagem literária tem a particularidade de comunicar aspectos da vida ou
fatos e tempos da experiência humana. Revela, pois, a visão e o posicionamento do
literato frente à sociedade, por isso a sua imagem é um desenho possível da vida
que se construiu neste lugar. Assim, torna-se fonte de leitura de um mundo que
existiu e existe relacionado com o mundo presente e futuro, bem como a marca de
um olhar relacionado com o pensar do autor.
O enredo de “Casa de Pensão” favoreceu o estudo do Lugar a partir da
relação de vivência das personagens e dos significados que são latentes e que
sugerem exercícios para que os aspectos científicos não fiquem em segundo plano.
O realismo e o naturalismo propõem representações fieis e objetivas da vida
social e, no século XIX, as vaidades relacionadas à influência francesa pelo modo de
vida e pela arte, foram evidentemente detectadas, visto que “o luxo da Corte de Luís
XIV e o prestígio da literatura e da filosofia permitiram que esse ideário se
espalhasse por boa parte do ocidente” (MATTOS, 2006, p. 1).
61
A riqueza das descrições detalhadas das personagens e os lugares serviram
para confirmar a ascendência das ciências naturais, que forçaram os autores
realistas-naturalistas a ir a campo para transcrever a realidade em que se enfatizava
o aspecto materialista do comportamento humano, cujo o homem era um simples
produto biológico com o comportamento que resultava da pressão ambiente social e
da hereditariedade psicofisiológica, referente ao reflexo, a postura, ao equilíbrio e a
execução dos movimentos.
O Lugar foi centralizado na casa de pensão, justamente por concentrar a
imoralidade das personagens em relação aos cômodos/quartos ocupados que
refletiam a personalidade, o caráter e a necessidade. Os ambientes que remetem à
ordem e à organização refletem bons comportamentos, consequentemente, a
desordem do lugar evidencia descontroles emocionais e patologias (no caso do
tísico).
As relações saudosistas de quem parte de suas origens para compor um
novo lugar, uma vez que esse remete às experiências vivenciadas, são ressaltadas
principalmente pela personagem principal que, em seu imaginário, encontraria uma
Rio de Janeiro semelhante a Paris, o que novamente explicita as influências das
leituras literárias feitas por esse ao longo da vida e que rementem, também, à
cultura francesa.
Ao longo do enredo, percebeu-se a disposição do lugar como hostilizado, mas
isso não caracteriza um não-lugar, visto que este representa o vazio de qualquer
referência histórica, cultural e vivencial, e o lugar em questão não é desprovido das
mencionadas referências. Mesmo com ápices nostálgicos identificados, o
personagem principal, por exemplo, possui uma afetividade relacionada ao lugar que
emigra, logo, entende-se que, ainda que a identidade e o pertencimento às suas
raízes sejam evidentes, desenvolve naturalmente uma afetividade relacionada com
os novos aspectos vivenciais.
Como se discutiu ao longo do texto, o lugar para os autores que dialogamos
significa, para Carlos (2007) onde se materializa e compreende o mundo moderno
em diversas dimensões, em uma perspectiva mais ampla, significa dizer que o lugar
se vive, então, se realiza o cotidiano.
A essência do lugar é a de ser o centro das ações e das intenções, onde são
experimentados os eventos mais significativos de nossa existência. Relph (1979)
nos diz que os lugares são geralmente definidos em termos de objetos e seus
62
significados, são essencialmente focos de intenção, que usualmente possuem uma
localização fixa e traços que persistem em uma forma identificável.
Tuan (2008) alertou ao fato de que a experiência compõe os lugares em
diversas escalas: o lar, como provedor primário de significados; a cidade, como
centro de significados por excelência; os bairros e as regiões; o Estado-Nação.
Segundo Oliveira (2012) o lugar não é uma forma ou uma matéria, também
não é um intervalo ou um vazio espacial que pode ser sucessivamente ocupado por
diferentes corpos físicos e por si mesmo, mas “a concepção de lugar é de tempo em
espaço; ou seja, lugar é tempo lugarizado, pois entre espaço e tempo se dá o lugar,
o movimento, a matéria” (Idem, 2012, p. 5).
Frémont (1980) afirma que no lugar contém uma série de elementos,
representações, símbolos e significados que estão à frente da objetividade, logo
defende que “habitar não é a única maneira de nos situarmos. Todos os aspectos da
vida, particularmente os que se repetem, implicam certas localizações, de formas,
signos, de valores, de representações e, por conseguinte, criam lugares” (Idem,
1980, p. 133). Os lugares descritos na literatura também são criados a partir destas
considerações, visto que as personagens criam, a partir das experiências e
vivências, significados subjetivos ao interagirem com o ambiente em que se situam,
além, é claro, de serem reconhecidas como agentes ativos nesse processo.
Em “Casa de Pensão”, além de problematizar a realidade da burguesia
fluminense e as interações dessas com os ambientes, possibilita outras análises
críticas como a migração, a urbanização e, consequentemente a violência urbana,
uma vez que o enredo foi baseado em um assassinato banal (“Questão
Capistrano”), o conceito de paisagem devido a riqueza dos detalhes descritos, o
modo de vida da burguesia e a racionalidade cientificista; que, não compuseram a
análise do presente estudo, mas viabilizam estudos posteriores.
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