UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Patrick Martins de Carvalho
O ENCANTAMENTO POÉTICO DO MITO EM PLATÃO E A CONVERSÃO
DO OLHAR
Brasília
2015
PATRICK MARTINS DE CARVALHO
O ENCANTAMENTO POÉTICO DO MITO EM PLATÃO E A CONVERSÃO
DO OLHAR
Trabalho de conclusão de curso de graduação
apresentado ao departamento de Filosofia da
Universidade de Brasília, como requisito para
obtenção do grau de Licenciatura em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli.
Brasília
2015
PATRICK MARTINS DE CARVALHO
O ENCANTAMENTO POÉTICO DO MITO EM PLATÃO E A CONVERSÃO
DO OLHAR
Trabalho de conclusão de curso de graduação
apresentado ao departamento de Filosofia da
Universidade de Brasília, como requisito para
obtenção do grau de Licenciatura em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli.
Aprovada em 10/12/2015
Banca examinadora
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Gabriele Cornelli
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Rodolfo Lopes
AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço aos meus pais, Francimar e Dilmar, pelo incentivo e
assistência, que foram essenciais para alcançar meus objetivos. Não seria capaz de
realizar algo sem a perseverança dos dois. Também agradeço ao meu irmão, Emerick,
que sempre me alegrou nos momentos mais difíceis. Agradeço também a Myllena
Lacerda, cuja presença ao meu lado é uma fonte de alegria e de companheirismo.
Agradeço a confiança do meu orientador Dr. Gabriele Cornelli, por acreditar no
meu trabalho mesmo tendo tropeçado com meu projeto durante o caminho.
Agradeço também aos professores Antônio Kubitschek – que me inspirou
quando estava dando meus primeiros passos junto à filosofia –, Nelson Gomes –– por
seus preciosos ensinamentos e suas aulas inspiradoras –, Loraine Oliveira – que me
orientou, com sabedoria e paciência, na minha primeira pesquisa científica –, Pedro
Gontijo – pelo apoio nos dois anos que participei do projeto PIBID –, Agatha Bacelar –
pela partilha valiosa dos seus conhecimentos –, Rodolfo Lopes – pelas sugestões
inestimáveis e a ajuda com livros para a pesquisa.
Ainda, a todos os meus amigos pela amizade e troca de ideias durante toda a
graduação. Muito obrigado por ouvirem e entenderem as minhas frustrações e por
sempre me incentivarem.
Agradeço especialmente a Dr.ª Loraine Oliveira por toda a dedicação, gentileza
e o rigor teórico exigido, o que possibilitou a coerência e a clareza do meu trabalho.
Virtudes estas que me inspiraram a amar e a estudar Filosofia Antiga.
Por fim, agradeço a amizade do Arthur Nunes, que foi, enquanto viveu, uma
estrela vibrante em queda livre.
RESUMO
Essa pesquisa busca reavaliar o papel dos mitos no discurso de Platão na República e, a
partir de uma reflexão crítica, mostrar como há no sistema educativo de Platão uma
estratégia retórica para que a moral desses mitos se engendre profundamente na alma
dos cidadãos de sua cidade. E isso se dá por uma razão – Platão acredita que há um
encantamento poético próprio do discurso mítico que conduz os indivíduos a entrarem
em sintonia com o belo. Dado seu repertório de imagens, Platão reivindica que o
encantamento proporcionado pelo mito é resultado do aperfeiçoamento moral do
homem. E sua sugestão é confirmada quando notamos que a progressão educacional dos
homens na cidade se direciona rumo às qualidades mais divinas da alma.
Palavras-chave: Platão; Mito; Moral; Encantamento; Mímesis;
ABSTRACT
This research aims to reassess the role of myths in Plato’s discourse in the Republic
and, based on a critical thinking, to show how a rhetoric strategy is present in the
educational system of Plato so that the moral of theses myths can be deeply engender in
the soul of the citizens of his city. This is a consequence of how Plato believes that
there is a distinctive poetic enchantment of the mythic discourse that leads individuals
to be in conformity with beauty. Given his repertoire of images, Plato claims that the
enchantment provided by myths is a result of men’s moral improvement. His proposal is
confirmed when we observe that the educational advance of individuals in the city
directs towards the most divine qualities of the soul.
Keywords: Plato; Myth; Moral; Enchantment; Mimesis;
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................7
1. A ESCRITA CONTEXTUALIZADA ...................................................................10
1.1 – Da Oralidade à Escrita................................................................................11
1.2 – Desafios da Escrita Platônica......................................................................13
1.3 – Função Retórica do Mito escrito e sua Polissemia.....................................15
2. A EDUCAÇÃO MORAL ATRAVÉS DOS MITOS.............................................20
2.1 – Os Mitos como uma Orientação Pedagógica..............................................21
2.2 – Mímesis boa e Mímesis má: A transformação moral do homem...............23
3. A IMAGEM NO MITO E A IMPRESSÃO DE REALIDADE............................28
3.1 – Narrativa Mítica e Discurso Filosófico.......................................................29
3.2 – Imagem em Platão e os Limites do Discurso Mítico..................................30
4. O OLHAR E O ENCANTAMENTO POÉTICO...................................................34
4.1 – O Olhar Sinóptico do Filósofo....................................................................35
5. CONCLUSÃO............................................................................................................38
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................48
INTRODUÇÃO
Platão recorre aos mitos em vários diálogos sempre que precisa tratar de
problemas que são essenciais para sua filosofia, como, por exemplo, a criação do
funcionamento do cosmos (Ti. 27a-b)1. Sendo assim, é importante se perguntar qual seu
objetivo ao utilizar os mitos e para quais propósitos serão utilizados. A esse respeito,
Barros (2008, p. 2) lança algumas hipóteses de interpretação do que seja o mito, pois,
segundo a autora, podemos interpretá-lo de diversas formas, seja como uma ficção
vulgar somente para divertir o leitor, como uma manifestação de cunho propedêutico
para auxiliar seu pensamento filosófico, como um instrumento para formular problemas
ou mesmo para fermentar especulações. O importante nesse tipo de pesquisa, portanto, é
o de buscar apoio nos próprios textos platônicos.
O mito fornece então uma explicação e interpretação da vida e da natureza.
Assim, por mais que o mito se distancie de certo conteúdo racional, ela tem por objetivo
tratar de temas que por vezes não são acessíveis ou fáceis de tratar se utilizando
somente de qualidades racionais e de um raciocínio lógico indutivo. Em oposição a essa
postura tem-se Pieper (1998, pp. 53-4), que diz que em todos os aspectos os mitos em
Platão sempre se referem ao sagrado, e, dizem respeito, portanto, à fé; com exceção de
alguns mitos que podem dizer respeito a alguns problemas particulares, como é o caso
dos mitos sobre a origem do cosmos, do além, e do destino das almas.
Inicialmente, no primeiro capítulo do trabalho, foi necessário tratar da escrita
platônica por uma razão estrutural. Foi preciso antes investigar o esqueleto teórico no
qual Platão está contextualizado para só então chegar a presente discussão, que busca
refletir em que medida Platão converte o olhar e a moral do homem comum através das
imagens míticas. E, também, como essa conversão parte de um encantamento e
deslumbramento do homem frente ao mito.
1 Sigo a edição do Centro de Clássicos Estudos e Humanísticos de Coimbra, com tradução do grego,
introdução e notas de Rodolfo Lopes (2011).
Logo, o propósito aqui é compreender como o mito, por vezes, se separa de certa
demonstração dialética, pois se desfaz de todo discurso conceitual e propõe, em certa
medida, outra forma de apresentar seu discurso. Isto é, não mais revestido de formas
abstratas, mas imagético; não mais ancorado em uma lógica dedutiva, mas sim
narrativa; não mais argumentativa, mas focada na sugestão. Isso se dá por um motivo
especial, pois ao dissociar o discurso mítico do discurso conceitual, o filósofo ganha
terreno em uma área mais inexplorada, o que permite trazer um novo jogo imagético
para aquilo que escapa da esfera da razão. Contudo, Platão não se desfaz completamente
da demonstração dialética, pois como visto na própria República, os mitos finais
pressupõem e estão intimamente ligados com os argumentos anteriores, de maneira que
a dialética está articulada na progressão discursiva de Platão.
No segundo capítulo, pretendemos mostrar como a educação moral dos homens
é um eixo central na dialética platônica, uma vez que esta nos fornece um rico material
para entender melhor porque Platão busca, na República, dar um enfoque para a
educação das crianças. Platão com isso quer, sobretudo, tratar da transformação moral
desses jovens através das imagens míticas, que são aquelas histórias que as crianças
conhecem, ouvem e assimilam desde a infância.
Desta forma, o terceiro capítulo é destinado a tratar da relação entre a imagem
mítica e a verdade. Ora, os mitos platônicos buscam na sensibilidade estética, no
sentimento religioso ou na imaginação a fonte para a interação e organização interna das
suas ideias em vez de achar que a resposta só se dá através da argumentação. E é nesse
sentido que uma das funções do mito é ser a representação de um conceito, não sendo o
mito, por conseguinte, nem verdadeiro, nem falso, mas verossímil ou inverossímil. Pois
é precisamente quando se precisa dizer algo que a simples forma argumentativa não
parece alcançar - seja porque o sujeito não consegue compreender o discurso ou porque
o objeto teórico não é tão fácil de conceituar -, que há no mito a capacidade de fornecer
uma pluralidade de saídas interpretativas. Uma vez que a filosofia não parece dar conta
de questões como a metafísica, Platão recorre ao discurso mítico para dialogar sobre
essas questões em que a linguagem filosófica parece insuficiente2. Portanto, antes de
qualquer afirmação filosófica sobre essas ideias de Platão, é preciso compreender essas
2 Nuance que pode ser encontrada em todos os mitos platônicos, seja em diálogos como o da criação do
mundo no Timeu (27a-b), no mito das almas de ouro, prata e bronze na República (414d - 415c), no mito
de Giges na República (359e - 360b) ou no mito de Er na República (614b - 621b), entre outros.
ideias através do percurso argumentativo que o próprio autor faz ao explorar os
conceitos de mímesis boa e mímesis má, sendo, portanto, um conceito explorado no
capítulo anterior para que faça sentido dentro do fio condutor argumentativo deste
capítulo.
E, por fim, no capítulo quatro, temos a tese central do presente trabalho,
seguindo as ideias de Platão e buscando conclusões a partir dos seus textos. Nele
expomos a relação de deslumbramento do homem com o belo e o porquê do filósofo ser
aquele que sabe conduzir o olhar e contemplar o belo em si mesmo. Sendo, por isso, o
escolhido que deverá conduzir os outros à beleza. Depois, faz-se necessário definir o
que é o encantamento poético a fim de fundamentar com a lente adequada a proposta do
trabalho. Finalmente, tiramos conclusões filosóficas relacionando as ideias evocadas no
corpo do texto com as teorias de Platão para determinar por quais vias ocorre esse
encantamento na alma dos homens a ponto de transformá-los moralmente.
1.1 DA ORALIDADE À ESCRITA
Uma questão importante em Platão é pensar em como a questão do mito está
estreitamente ligada à sua forma de transmissão, a escrita. A respeito disso, Brisson
(2002, p. 9) dirá que a importância de recorrer à escrita surge da necessidade de
conservar um grande número de documentos valiosos e que esse desejo já se
manifestava há muito tempo na Grécia Antiga. Como exemplo, temos obras da
importância histórica como A Ilíada e A Odisséia, que surgem por escrito no início do
século XI A.C. Dessa forma, compreendemos como a passagem da oralidade para à
escrita teve um papel central na época de Platão.
Todas as formas de discursos proferidos por poetas, filósofos ou historiadores da
época – de personalidades como Heródoto, Anaxágoras e Demóstenes – durante
discursos públicos3, eram sempre redigidos em tribunais. A escrita, contudo, não se
resumia aos discursos dessas personalidades, pois era intimamente ligada com a política
grega de tal forma que, em cidades como Solón ou Atenas, as leis e os decretos das
assembleias públicas eram redigidos metodicamente por especialistas e formalmente
conservados para usos posteriores.
É evidente, então, que Platão é lúcido a respeito do domínio da escrita e
reconhece os limites proporcionados por esse novo meio de comunicação. Brisson
destaca dois pontos centrais que Platão percebe na escrita:
1) a escrita é somente uma imagem visual de um foco da alma que nos
fornece a verdadeira realidade e, desde um ponto de vista estritamente
ontológico, está bem longe dela. 2) a imutabilidade da escrita [...]
(BRISSON, 2005, p. 9).
O primeiro motivo pelo qual Platão recorre à escrita parece ser por uma razão
prática: o mito escrito permite romper com a tradição oral e com os compromissos dos
gregos com a arte da memória. Este era um recurso natural dos poetas da época que,
através de estratégicas mnemônicas, buscavam nessa oralidade os versos que se
legitimavam pela autoridade das musas por serem considerados, em certa medida,
3 Com respeito a esses discursos proferidos em público, Sócrates reitera com a seguinte passagem: “ [...]
uma arte de conduzir as almas através das palavras, mediante o discurso, não só nos tribunais e locais
públicos, mas também em qualquer espécie de assembléia privada?” (Phdr. 261b).
inspirados por estas. No Fedro, Platão bem pontua a função que a formalização do
discurso tem enquanto uma orientação da alma:
Tendo em vista que a função do discurso consiste na arte de conduzir as
almas, na arte da psicogogia4, quem pretende tornar-se um orador de talento
deve necessariamente conhecer quantas são as formas existentes na alma.
Ora, há muitas espécies de homens, o que os leva a possuir caracteres
diferentes. Uma vez estes caracteres discriminados, cumpre discriminar as
variedades dos discursos. Há homens que serão persuadidos a renunciar, em
virtude da sua natureza, por acção de uma espécie de discursos,
inclusivamente às suas convicções, enquanto outros há que se manterão
impermeáveis à influência desses discursos. O orador que tenha reflectido o
suficiente sobre estas determinações deve discernir com rapidez, na vida
prática, o momento apropriado para utilizar uma ou outra forma de discurso,
ter o faro muito apurado, para seguir a pista mais conveniente (Phdr. 271d-
e)5.
Entende-se, portanto, a razão pela qual Platão opta pela escrita: Brisson (2005, p.
10) aponta que o mito em Platão é um “discurso do outro”, em que pode-se discutir
completamente a respeito da autoridade da tradição. Por esse motivo, por ser a verdade
considerada a adequação entre discurso e realidade, a escrita é um tipo de discurso que
se dedica à argumentação. Brisson, porém, também aponta que o mito é um “discurso
para o outro”, no sentido que se pode exercer através da escrita uma autoridade e
controle por meio da persuasão, e não da argumentação. Por ser o mito um relato
inverificável, o que determina a sua assimilação é a fusão emocional que ele
proporciona. Com isso, Brisson implica que Platão, por meio da escrita, acreditava ser
possível desenvolver um texto argumentativo que tem a pretensão de dizer a verdade,
sem por isso ter que abrir mão desse aspecto literário do mito.
Platão via no texto escrito a possibilidade de tornar lacunoso e ambíguo seu
discurso, características importantíssimas na criação dos mitos. Que é, não só uma
fábula ficcional com função de apoio textual, mas também é uma forma de representar
temas filosóficos e guiar o leitor por quadros de leitura sem fechar o texto
hermeticamente com uma conclusão já dada. Assim, o mito se destaca pela capacidade
infinita de produzir significados que um texto metafórico pode proporcionar, pela
4 Literalmente: orientação, persuasão da alma.
5 Sigo a edição e tradução brasileira de Pinharanda Gomes (2000).
multiplicidade de significações possíveis que as narrativas míticas proporcionam e,
assim, tornar o texto um espaço livre para experimentações.
1.2 DESAFIOS DA ESCRITA PLATÔNICA
No Fedro, Platão aponta para a cautela que políticos ou pessoas de certo
prestígio tinham com a arte de fazer e proferir discursos. No diálogo, Fedro, ao discutir
com Sócrates, afirma:
Sem dúvida, Sócrates, e tu sabes tão bem como eu que, regra geral, os
homens mais poderosos e eminentes de cada cidade receiam escrever
discursos por causa das críticas a que a posteridade os pode submeter, e até
mesmo com receio de serem alcunhados de sofistas (Phdr. 257d).
Ao que Sócrates rebaterá dizendo que é justamente o que políticos ou oradores
de renome desejam – exibir orgulhosos seus discursos e seus escritos, pois isto é o que
concede mais honrarias e elogios a eles. E, por esse motivo, Sócrates declara: “[...] Pois
não vês que, nos escritos dos políticos, os citados em primeiro lugar são justamente
aqueles que os costumam elogiar” (Phdr. 258a). E, na mesma passagem, ao relacionar a
estrutura retórica do discurso com a retórica escrita, termina questionando Fedro:
“Achas que um discurso desta natureza é muito diferente de um discurso escrito?”,
Fedro prontamente responde que “não” (Phdr. 258a).
Uma das minhas pistas investigativas é que, ao questionar o papel do discurso
oral e escrito, Platão parece estar antecipando algo que seria central na construção dos
seus mitos na República – a persuasão e o encantamento através da imagem mítica (Ver
capítulo 3). Uma prova parece ser a forma como Platão no Fedro, após uma breve
discussão de Sócrates com o Fedro sobre o papel do discurso, recorre à imagem das
musas e as sereias (Phdr. 259a-d), dizendo sobre elas:
[...] e compõem a música por elas preferida, pois, entre todas as musas, tendo
o céu como objetivo primeiro e os problemas de ordem divina e humana, são
elas que se fazem ouvir nos mais ternos cantos (Phdr. 259d).
Uma segunda evidência também se encontra no Fedro, quando Platão mostra
como a persuasão em um discurso – seja escrito ou oral - não nasce de uma preocupação
pelo o que é justo, bom ou mal, mas do que parece sê-lo, daquilo que “não com a
verdade, mas com o que aparenta ser verdade” (Phdr. 260a). Por conseguinte, um dos
perigos do discurso é que um orador que não conhece o bem ou o mal pode conseguir
persuadir governantes ou mesmo um estado inteiro. E Platão reserva no Fedro sua
preocupação:
Por isso, quando um orador, ignorando a natureza do bem e do mal, se dirige
aos seus concidadãos, que sofrem da mesma ignorância, para os tentar
persuadir a não tomarem a sombra de um burro por um cavalo, ou o mal pelo
bem; quando, depois de ter ouvido as opiniões da maioria, a impele para o
mau caminho, em casos como este, quais são, a teu ver, os frutos que a arte
oratória pode colher daquilo que semeou? (Phdr. 260c-d).
Platão, se fixando na escrita, reproduz a agilidade que havia na investigação oral,
e o motivo disso talvez seja porque no discurso que depende unicamente da memória,
não há uma construção sólida. No momento em que se diz algo, percebe-se que o
próprio discurso se desfez, e, nos ouvidos de quem ouve, o discurso sempre se
transforma, modifica-se e torna-se uma quimera de retalhos. Platão parece perceber isso,
sua escolha pelo texto escrito não é uma escolha ingênua. Especialmente por todo
discurso retórico ser encarado sempre como um discurso verosímil no lugar de um
discurso verdadeiro ou falso. Platão estaria convencido disso quando Sócrates diz para
Fedro:
Pretendem os retóricos que não é necessário considerar o caso com modos
tão solenes, nem estar com tantos rodeios. Com efeito, já no princípio da
nossa conversa, tínhamos referido que um bom orador não carece de saber a
verdade a respeito do que de bom e de justo há nas acções que os homens
praticam, seja por temperamento, seja por educação. Não é necessário, para
quem deseje ser um orador de talento, ao gosto corrente. Observa: nos
tribunais, ninguém se preocupa com o conhecimento da verdade, cuidando-se
apenas de saber o que é verosímil (Phdr. 272d-e).
Platão, em sua escolha pela escrita, parece convencido de que na oralidade há
um risco maior de ser mal interpretado porque nem todo poeta reproduziria com
absoluta fidelidade o discurso, enquanto que na escrita está na posse do filósofo criar e
modificar a imagem a seu bel prazer. Assim, por mais ambígua que a imagem mítica
seja, o filósofo teria a consciência dos caminhos e lacunas textuais que seu texto
proporcionaria. Platão parece interessado na escrita pela capacidade de tornar lacunosa a
interpretação individual.
Por outro lado, embora Platão optasse por formalizar sua filosofia através da
escrita, é necessário saber que Platão não é inteiramente a favor da escrita, pois vê com
maus olhos a retórica do discurso escrito:
Sócrates – O maior inconveniente da escrita parece-se, caro Fedro, se bem
julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos mas, se
alguém as interrogar, manter-se-ão silenciosas, o mesmo acontecendo com os
discursos: falam das coisas como se estas estivessem vivas, se alguém
interroga, no intuito de obter um esclarecimento, limitam-se a repetir sempre
a mesma coisa. Mais: uma vez escrito, um discurso chega a toda a parte,
tanto aos que o entendem como aos que não podem compreendê-lo e, assim,
nunca se chega, a saber, a quem serve e a quem não serve. Quando é
menoscabado, ou justamente censurado, tem sempre necessidade da ajuda do
seu autor, pois não é capaz de se defender nem de se proteger a si mesmo
(Phdr. 275 d-e).
Parece que ao compor discursos, Platão vê no autor que os escreve uma
impossibilidade em contra argumentar, uma vez que seja interpretado erroneamente por
um leitor posteriormente. E essa impossibilidade própria da escrita, a torna um terreno
escorregadio, onde tudo aquilo que é dito, pode ser mal interpretado, sendo necessário
que o autor seja invocado para esclarecer suas ideias. Entretanto, a impossibilidade
óbvia não torna a escrita a armadura preferida de Platão para defender suas ideias,
apesar de, por outro lado, a usar para veicular seus mitos e o fazer por uma razão.
1.3 FUNÇÃO RETÓRICA DO MITO ESCRITO E SUA POLISSEMIA
No Fedro, o diálogo se inicia com uma longa discussão entre Sócrates e Fedro
na tentativa de definir o que é o amor (Phdr. 227c) e esclarecer os perigos na relação
entre o amante e o não-amante. Para Platão, o amor é um desejo (Phdr. 237d) e, como
todo desejo, ele escapa ao poder do autocontrole. Sócrates, então, determina que o amor
seja aquele desejo que nos arrasta, inevitavelmente, em direção aos prazeres e ao
excesso (Phdr. 238c).
Assim, para Platão, há na alma das crianças um encantamento que o mito pode
proporcionar ao considerar que há um apetite para o belo em todos, sejam amantes ou
não-amantes. E não será essa dimensão afetiva que Platão evocaria através da
construção dos seus mitos? O deslumbramento é parte essencial da relação dos jovens
com os mitos, pois é preciso que a ideia desses mitos seja como uma semente que cresça
lentamente em seus íntimos. Como pode ser visto, por exemplo, na explicação do mito
das almas de ouro, prata e bronze. Para Sócrates, os filhos dos filhos dos homens dessa
cidade acreditariam nesses mitos se contá-los tornasse-se uma prática desde a infância,
pois de imediato os homens não acreditariam (R. 415d)6.
No discurso supracitado, porém, Platão dirá através de Sócrates que deve-se
conceder mais favores aos não-amantes do que aos amantes, por estes não terem a
capacidade racional prejudicada pelos excessos do amor e, assim, sabem fazer
distinções mais claras e racionais (Phdr. 245b). Platão, enquanto voz de Sócrates,
parece se conceder essa clareza de espírito – se colocando no lugar do não-amante –
quando começa um diálogo determinando que, se Fedro quiser deliberar bem sobre
“qualquer coisa”, há somente um modo de começar um discurso: conhecendo o objeto
de deliberação.
Sócrates começa o mesmo diálogo evocando a clareza de espírito e a autoridade
das musas:
Invoco-vos, Musas de canto cristalino, quer este epíteto vos tenha da
suavidade do vosso canto, quer da vocação musical do povo lígio! Oferecei-
me o apoio da vossa mão no discurso que este cavalheiro me obriga a
pronunciar, para que o homem, cujo talento ele tanto admira, se torne ainda
mais admirado! (Phdr. 237a – 237b).
Sócrates o finaliza dizendo “Ah, meu caro Fedro, não te parece que estou
discursando sob os efeitos de uma divina inspiração?” (Phdr. 238c). Não seria esse
apetite pelo belo do amante reivindicado por Sócrates no mesmo discurso? Portanto,
quando Platão reconhece os defeitos do amante, não estaria desprezando o olhar
6 Sigo a 11.
a edição da Calouste Gulbenkian com tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira
(2008).
sinóptico do amante porque esse olhar é o mesmo olhar que o filósofo deve ter sobre a
realidade. É esse olhar, também, que liberta a alma do medo da morte por aspirar
alcançar a totalidade e a universalidade do divino e do humano (R. 486 a-b).
Esse encantamento proporcionado pelas fábulas não é também um discurso
retórico? Platão define a retórica como:
Pois bem, não te parece que a retórica é uma psicogogia, uma arte de
conduzir as almas através das palavras, mediante o discurso, não só nos
tribunais e locais públicos, mas também em qualquer espécie de assembleia
privada? Uma arte que não varia consoante a grandeza ou a pequenez do
assunto em vista? Uma arte cuja prática, isto é, cuja prática correcta, é tão
louvável para tratar de assuntos correntes como de assuntos nobres? Não é
isto o que tens ouvido dizer? (Phdr. 261a-b).
Platão parece deixar bem claro não só que a substância do discurso retórico pesa
sobre as decisões de um governo como na condução das pessoas através de certo
encantamento, mas no aspecto essencialmente polissêmico de certos discursos, seja oral
ou escrito. Como exemplo, cita-se a forma assertiva com que Sócrates fala ao Fedro:
“Passando agora ao eleático Palamedes por acaso não sabemos que falava com tanta
arte que a mesma coisa parecia aos seus ouvintes, ora de uma maneira, ora de outra, em
unidade e diversidade, ora imóvel, ora em movimento?” (Phdr. 261d).
Um segundo exemplo que parece confirmar essa tese é a do momento em que
Sócrates interroga Fedro a cerca da estrutura do discurso retórico. Na passagem,
Sócrates determina que haja debates em que concordamos com referência a certas coisas
como algo que seja empiricamente comprovado, como é o conceito de ferro e prata. E,
de forma análoga, têm-se casos em que as opiniões se divergem. O discurso retórico
vive no segundo tipo de discurso, pois é o tipo de retórica que tem mais poder (Phdr.
263b). Assim, Platão estaria mostrando que aquele que deseja desenvolver a arte da
retórica, primeiramente precisa entender a divisão sistemática a que esse tipo de
discurso pertence, como especifica nessa passagem:
Em vista disso, quem pretenda dedicar-se à arte retórica deve ter começado
por distinguir esses dois gêneros de assuntos, caracterizando cada um deles e,
seguidamente, saber em que casos o povo tem dúvidas, e em que casos a
dúvida não é possível (Phdr. 263b).
Não parece, portanto, ser nesse tipo de retórica que Platão insere seus mitos?
Pois no momento em que o discurso dialoga com o leitor dos mitos, o leitor está frente a
uma multiplicidade de interpretações possíveis que podem ser conceitos fixos ou em
movimento e que dependem sempre da interpretação individual. Uma observação
contundente é que não se pode imaginar que a escolha de Platão pela filosofia escrita
seja algo meramente casual, não se pode conceber Platão como ignorante das vantagens
e desvantagens que a oralidade fornecia, assim como da segurança e deficiências que
um texto escrito implica.
Dessa forma, para representar o motivo, gostaria de supor conceitualmente que
os mitos platônicos são como diversos túneis físicos, onde o leitor é orientado a
vislumbrar dezenas de portas desses túneis, que leva cada uma delas por centenas de
caminhos desconhecidos. Cada caminho pode te levar de um ponto 'A' a um ponto 'D',
assim como um ponto ‘B’ pode te levar a um ‘D’, a um ‘L’ e a um ‘K’, e a uma centena
de outros mais. Assim é o mito escrito, ele permite esse distanciamento, mas nunca se
desvinculando completamente do próprio texto. Dessa forma, em razão de seu caráter
essencialmente polissêmico, o mito permite essa pluralidade de interpretações que
levam o leitor por uma infinidade de portas. O mito é um tipo de discurso aberto à
interpretação, ele não leva de um ponto A até B, mas há uma infinidade de pontos, ad
infinitum, e esse é o grande segredo do mito, é esta abertura da linguagem que interessa
a Platão.
Para exemplificar o que argumentava a respeito da corrupção da alma dos
homens, Platão representa seu raciocínio usando do mito de Giges, como a passagem a
seguir bem pontua:
Se, portanto, houvesse dois anéis como este, e o homem justo pusesse um, e o
injusto outro, não haveria ninguém, ao que parece, tão inabalável que
permanecesse no caminho da justiça, e que fosse capaz de se abster dos bens
alheios e de não lhes tocar, sendo-lhe dado tirar à vontade o que quisesse do
mercado, entrar nas casas e unir-se a quem lhe apetecesse, matar ou libertar
das algemas a quem lhe aprouvesse, e fazer tudo o mais entre os homens,
como se fosse igual aos deuses. Comportando-se desta maneira, os seus actos
em nada difeririam dos do outro, mas ambos levariam ao mesmo caminho (R.
360 b-c).
Há diversos quadros de leituras possíveis nos diálogos de Platão. Portanto, um
leitor que leia de forma distraída o mito de Giges (R. 359e-360b) no livro II da
República, pode apenas abstrair do mito a história de um homem que encontrou um anel
mágico que o permitia se tornar invisível e, assim, matou o rei para ficar rico. Já em
uma leitura mais minuciosa, o leitor identificaria que o mito trata inicialmente sobre a
corrupção da alma e, como em um caso em que pudéssemos escolher livremente sermos
maus, decidiríamos pelo caminho da vilania, pois essa fornece mais vantagens que
desvantagens. Há subtextos implícitos em todos os mitos platônicos, e eles não são
mero apoio textual sem objetivos claros. Para melhor entender esses objetivos, então, é
preciso analisar o papel da educação moral do homem proposto por Platão na
República.
2.1: OS MITOS COMO UMA ORIENTAÇÃO PEDAGÓGICA
Na República, Platão apresenta o mito através de seu personagem Sócrates como
um instrumento pedagógico (R. 519c), pois este tem a função de transformar as crianças
da cidade. Platão dirá na República: “Eduquemos estes homens em imaginação, como
se estivéssemos a inventar uma história e como se nos encontrássemos desocupados”
(R. 376e) e o define assim por um objetivo pedagógico: as fábulas devem ser contadas
às crianças desde a meninice, pois isso modelaria melhor as suas almas (R. 377c). Além
disso, Platão vê que o homem pode ser transformado por essas imitações boas (R. 377c)
– imitações que produzem na alma certas virtudes, como a moderação, a pureza e a
coragem – e isso é um gatilho para transformar essas crianças em homens superiores (R.
395e). Esse tipo de retórica moralizante que Sócrates insiste ser necessário para eximir
os homens de certas histórias se dá porque precisa transformá-los desde a infância e isso
pode ser encontrado nessa passagem da República:
Por conseguinte, temos, parece-me, de exercer vigilância também sobre os
que tentam narrar estas fábulas e de lhes pedir que não caluniem assim sem
mais o que respeita ao Hades, mas que antes o louvem, quando não as suas
histórias não são verídicas nem úteis aos que se destinam ao combate (R.
386b-c).
A respeito disso, algumas hipóteses são lançadas, o mito em Platão teria por
objetivo apenas uma utilidade pedagógica ou também teria por função construir uma
retórica moralizante? Podemos, no entanto, notar seu conteúdo moralizante já na
estratégia política (R. 387b), pois o mito teria certo valor instrumental para ser usado
como recurso para transformação do homem. Como pode ser visto, por exemplo,
quando Platão fala do perigo que as imitações ruins dessas fábulas têm sobre as almas
dos homens (R. 395d).
Enquanto isso, outros encontrarão no mito um instrumento para que Platão possa
expor sua opinião sobre o mundo do devir, como é o caso dos mitos que tratam da
alma7. Platão também verá que esse modo de vida em que se busca o bem e a verdade é
de extrema importância e essencial para a vida, pois demonstra como essa escolha para
a vida filosófica já haveria sido feita em uma vida anterior, como vemos na narração de
Er na República:
É aí, parece, que reside, para o homem, o risco capital; eis por que cada um
de nós, pondo de lado qualquer outro estudo, deve preocupar-se sobretudo
em buscar e cultivar aquele, em ver se está em situação de conhecer e
descobrir o homem que lhe dará a capacidade e a ciência de discernir as boas
e as más condições, bem como escolher sempre, e em toda parte, a melhor, na
medida do possível (R.. 618b).
Isto é, os mitos fornecem uma orientação, e aqui talvez se aproxime da ideia de
mito como um método propedêutico, esse que tem por objetivo trazer à luz ideias
abstratas que são por vezes difíceis de alcançar pelo método dialético.
No que diz respeito ao uso do mito nos diálogos platônicos, Cassirer dirá:
No pensamento e imaginação míticas não encontramos confissões
individuais. O mito é uma objetivação da experiência do homem, não de sua
experiência individual. É verdade que em tempos mais avançados
encontramos mitos feitos por indivíduos, como, por exemplo, os famosos
mitos platônicos. Mas aqui falta uma das mais essenciais características do
genuíno mito. Platão criou os seus mitos com o espírito completamente livre;
não se encontrava subjugado ao seu poder; pelo contrário, dirigia-o de acordo
com as suas finalidades, que eram as do pensamento dialético e ético. O mito
genuíno não possui esta liberdade filosófica, porque as imagens sobre as
quais ele vive não são conhecidas como imagens. Não são consideradas
como símbolos, mas como realidades. Esta realidade não pode ser negada ou
criticada; tem de aceitar-se passivamente (CASSIRER, 2003, pp. 68-9).
Ou seja, os mitos criados por Platão não parecem ser apenas uma vaga intuição
da verdade, mas sim verdades que podem ser transformadas em um jogo imagético de
acordo com suas finalidades, visto que o mito em Platão não é parte de um saber
coletivo, mas o saber de um único indivíduo que usa o mito de acordo com seus
7 Um dos famosos mitos sobre o domínio da alma é o mito de Er contido na República (614b - 621b).
Dirá Platão no livro X: “Contava ele que, depois que saíra do corpo, a sua alma fizera caminho com
muitas, e haviam chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas aberturas contíguas uma à
outra, e no céu, lá em cima, outras em frente a estas” (R. 614b-c).
propósitos. Por outro lado, o mito genuíno não está sujeito à liberdade dialética gozada
por Platão, pois suas imagens não são meramente imagens, mas realidades.
2.2 MÍMESIS BOA E MÍMESIS MÁ: A TRANSFORMAÇÃO MORAL DO
HOMEM
Platão no exame da mímesis terá observado o aspecto degradante que algumas
espécies de imitação carregam, e na qual sustenta sua afirmação de que a poesia que
procede por via de imitação deve ser expulsa da cidade, o que se confirma no livro III:
Não tens observado que quando se pratica a imitação durante muito tempo e
desde a meninice ela acaba por se converter num hábito e numa segunda
natureza, infiltrando-se no corpo, na voz e no próprio modo de pensar? (R.
395d).
A essa crítica, ele acrescenta que os cidadãos não devem imitar os homens vis e
covardes, ou a homens que insultam e enganam uns aos outros, ou mesmo que profiram
palavras que ofendam a si mesmos ou aos outros, porque a esses acometem todos os
males daqueles que vivem e desfrutam de vícios (R. 396a). Logo, a imitação desses
acaba por corromper a alma e produz essa espécie de segunda natureza, intemperante e
insensata (R. 395d), pois essas coisas, como o vício e a loucura, ao homem justo e bom
só é necessário conhecer o que elas são, seu aspecto baixo e vil, mas não os convém
imitá-las porque elas estão distante do bem e só é lícito ao cidadão que conheça as falas
do homem do bem, pois somente ela convém imitar (R. 398b). Por outro lado, há outra
espécie de imitação que não é condenada de todo por Platão8, que é a mímesis boa, essa
categoria de imitação se enquadra naquelas imitações que reproduzem modelos dignos
de serem seguidos. Como, por exemplo, ao interpretar comédias ou tragédias um artista
deverá, de preferência, interpretar algum personagem que seja valoroso, sensato,
piedoso e magnânimo, uma vez que ao imitar suas boas qualidades, não imitará ações
vis e nem coisas vergonhosas (R. 396 c-d).
Assim, toda tentativa de uma análise platônica das artes, deve ter em vista que
Platão busca reduzir a poesia e a arte à verdade e aos juízos morais mais elevados. Ou
8 Platão reserva um caso específico onde um homem não deve imitar de forma alguma. Como, por
exemplo, quando Platão afirma que os guardiões não devem ser imitadores (R. 395c). E o faz por um
motivo: através do argumento de que um homem só pode exercer bem um ofício e não muitos, pois do
contrário, se tentasse se dedicar em ambos, não se destacaria em nenhum deles.
seja, Platão vai estreitando o papel das artes miméticas e as reduzem essencialmente ao
que é digno de ser admirado pelos cidadãos e para a formação dos guerreiros.
O papel da imitação na República, portanto, parece ter a potência para conceber,
fixar e interiorizar conhecimento através dessas representações imitativas (R. 395d).
Vemos isso quando Platão fala sobre o modo como mitos ruins podem exercer uma má
influência nos cidadãos dessa cidade, uma vez que até a fraqueza dos deuses, por
exemplo, dará força para que os outros desculpem seus próprios vícios:
É que, meu caro Adimanto, se os nossos jovens escutassem a sério tais
palavras, e não troçassem delas, como indignas dos seres a quem se referem,
dificilmente algum deles, sendo homem apenas, se julgaria indigno de
proceder assim e se censuraria se lhe acontecesse, a ele também, dizer ou
fazer alguma coisa neste gênero; mas muitos deles, por qualquer pequeno
sofrimento, entoariam sem vergonha nem energia trenos e lamentos (R.
388d).
Ora, se observarmos atentamente as próprias tragédias gregas, encontraremos
exemplos que ilustram como para o homem grego era estranho que os deuses, em sua
integridade e excelência divina, se portassem com os mesmos vícios e paixões que os
homens. Um exemplo famoso se encontra na tragédia As Bacantes de Eurípedes. Na
peça, Penteu, rei de Tebas, é dilacerado por sua mãe e outras bacantes por não ter
aceitado que as sacerdotisas da cidade cultuassem o deus Dionísio. Sua mãe, possuída
pelo brômio, é a primeira a começar o sacrifício do filho no ritual em honra ao deus
báquico e leva somente a cabeça do seu filho de volta a cidade. Cadmo, seu pai, fica
horrorizado com o que sua filha fez a seu neto e a faz voltar do estado de transe que o
deus a colocou. Pouco depois, o próprio Dionísio entra em cena e é repreendido por
Cadmo que diz: “[...] mas foste longe demais contra nós.” ao que Dionísio responde de
forma zombeteira: “Porque [ele, Penteu] ultrajastes a minha divindade”, por fim, Cadmo
o adverte dizendo “Não fica bem aos deuses imitar as paixões dos mortais” (Ba. p. 98).9
De maneira análoga, para Platão, esses mitos, assim como a reprodução das
fábulas e das histórias de Homero contadas às crianças, engendraria a frouxidão moral
dos jovens. Visto como encontrariam nos maiores exemplos [os deuses], uma desculpa
para que procedessem daquela forma (R. 388d).
9 Sigo a edição da Ediouro e a tradução de David Jardim Júnior (1988).
Assim sendo, é necessário alcançar um acordo no que diz respeito à arte da
imitação. Isto é, quais tipos de artes narrativas deveriam ser aceitos na cidade e quais se
deveriam proibir. Ou, ainda, se devem-se aceitar algumas apenas em partes, em quais
casos seria lícito proceder de tal forma? Inicialmente Sócrates assume que os guardiões
não podem ser imitadores, primeiro porque retoma a ideia de que cada um deve exercer
somente um ofício se quiser fazê-lo bem (R. 395 b-c). Segundo, Platão coloca em jogo o
risco da mímesis má, porque se alguém imita algo por muito tempo, a imitação acaba
por se infiltrar na alma como um hábito ou mesmo como uma segunda natureza,
dominando o corpo, a voz e a maneira de pensar (R. 395d). À luz disso, a má imitação
busca imitar as pessoas perversas e covardes e não deve ser estimulada, visto que traria
uma frouxidão moral para os guerreiros, pois a imitação exige que o homem se amolde
e se adapte (R. 396a). Logo, é necessário que prevaleça somente a imitação pura da
virtude, e se imite somente homens virtuosos.
Um dos desafios na República é entender até que ponto uma teoria mimética
pode ser um mecanismo de representações de objetos e o alcance dela como um mito a
modelar e formar o caráter desses homens da cidade ideal. No entanto, a mímesis para
Platão é dividida em níveis que devem ser aceitos na sua cidade: a primeira delas é
formular quais tipos de mitos e artes narrativas devem ser aceitos e em qual nível elas
podem ser consideradas prejudiciais. Na República (R. 386a-390c) Platão determina que
a respeito das artes miméticas, é necessário primeiro revisar o papel dos mais poderosos
na sociedade e no imaginário grego; isto é, revisar os mitos recorrentes, as histórias dos
deuses, semideuses, heróis, e, por fim, dos homens influentes, pois deve-se manipular as
histórias para que estas grandes figuras tenham apenas atitudes honráveis e virtuosas e
que, por isso, devem ter suas atitudes imitadas e admiradas pelos jovens (R. 391d).
Todavia, entra-se em acordo que aos guerreiros é danoso o estatuto de
imitadores, já que atentam ao fato de que a imitação prolongada se torna um hábito e
natureza do corpo, que afeta os princípios. Sendo assim, aos guerreiros deveriam ser
ensinadas (R. 394e – 395a) somente as virtudes que os tornariam melhores guerreiros,
ao sapateiro os conhecimentos destinados a ser o melhor sapateiro, e assim por diante.
Visando e, dessa forma, tendo como finalidade sempre o “bem” do seu ofício particular
e o de ser o melhor naquilo que faz (R. 374b-c), uma vez que a aptidão deve ser, antes
de tudo, cultivada, dado que é uma faculdade que exige exercício para melhor
desenvolvê-la, pois tende a piorar se não for exercitada corretamente10
.
Não obstante, Platão não vê a arte como uma inimiga, posto que a arte tinha um
papel central na cultura grega. Assim, era frequente encontrar estátuas para honrar os
deuses, rituais que dizem respeito às cerimônias religiosas ou poesias para assegurar as
tradições e que teriam por objetivo servir de guia no sistema educativo. Nessa
concepção, a arte estava presente nos mais diversos aspectos da sociedade e tinha uma
função específica, como o fato de preservar determinados valores de uma cultura.
Não são somente os poetas que devem ser vigiados, mas todos aqueles que
participam na criação artística e promovem a educação na cidade, como as mães (R.
377c) e os mestres (R. 383c)11
, de forma que preservem a imagem do bem e censurem
as imagens relativas aos deuses e que exaltem os vícios e as qualidades baixas da alma,
para que não corrompam a alma e o gosto dos cidadãos (R. 380b-c) e para que, assim,
não germine uma fonte de corrupção em suas almas. Por conseguinte, é importante que
procuremos sempre aqueles artistas que exaltam a beleza e o que há de mais verdadeiro
e gracioso, a fim de que ensinassem desde a juventude que os homens devem amar e
admirar o belo e sintonizar sua alma à beleza (R. 401d).
No entanto, Platão assegura uma função da imitação “A imitação deveria induzir
desde a infância aos concidadãos a imitar a ideia do belo a amá-la e a sintonizar com
10 Harold Osborne em seu livro, Estética e Teoria da arte, argumenta da seguinte forma a respeito do
valor das finalidades que envolvem os ofícios dos artífices e dos artistas: “O valor social das “finalidades”
dos seus ofícios particulares não estava muito claro para ele. Um sapateiro é perito no fabrico de sapatos
de verdade, o carpinteiro na produção de mesas e cadeiras. O pintor, contudo, produz imitações ou cópias
irreais de sapatos, cadeira, mesas e de todas as coisas visíveis sem ser perito em coisa alguma. Se
presumirmos que o valor de qualquer manufatura é a sua utilidade, nesse caso a utilidade de um sapato
pintado é inferior à de um sapato real. Assim também o poeta descreve qualquer coisa, tudo, sem ter,
todavia, conhecimento técnico de nada. Foi principalmente por esse motivo que Platão não conseguiu
conformar-se com a utilização dos poetas na instrução e educação dos jovens e lhe considerava inferiores
aos manuais técnicos e científicos” (OSBORNE, 1974, p.34). Ou seja, se não se tem uma distinção clara
entre o artista que cria e o artífice que é perito nas técnicas relativas ao seu trabalho, então se concluí que
uma teoria da arte dentro da filosofia grega está, antes de tudo, subordinada a uma espécie de utilitarismo,
que visa sempre uma utilidade das habilidades de cada um. Essa concepção funcionalista não tende a
diminuir o papel das artes porque as obras de arte tinham uma finalidade integrada e uma função social,
sejam por meio dos poemas épicos em honra aos deuses, heróis ou semideuses.
11 Nessa passagem, Platão implica que não permitiria que os mestres [educadores] usassem certas
histórias na educação dos jovens, como, por exemplo, a história de Ésquilo que narra que Apolo, ao
cantar nos seus casamentos, elogiava a beleza da filha de Tétis. A questão da passagem, porém, é que fica
implícito que haveria, portanto, mestres que ensinariam certas histórias para as crianças, mesmo que de
formas censuradas.
ela” (R. 401d). Dito de outra forma, podemos entender que, para Platão, imitar e
reproduzir o belo significa imitar e reproduzir belamente. O contrário também se
verifica, imitar algo ruim, significa ganhar algo de ruim, o que torna-se prejudicial para
o aparelho educativo que Platão busca construir desde o início da obra. Contudo, é
cabível dizer que existe uma relação de identidade na experiência pessoal frente a um
objeto artístico que copia a realidade, como se observa na pintura. E talvez nisso se
observe o perigo da poesia, visto que há uma experiência subjetiva que depende das
experiências individuais de cada um e que diferem quanto às qualidades emocionais que
experimentam, como a um sentimento frente às qualidades de um objeto ou poesia que
estão presentes nos objetos artísticos que procedem por meio de cópias sensíveis.
Platão reconhece que há imitações – boas e más – que tendem a contaminar (R.
395d) os homens que entram em contato com essa poesia, e que, além disso, muitas
vezes ao contemplar essas obras, nós imitamos e nos tornamos próximos à elas. A partir
disso, podemos interpretar que ocorre uma relação mimética entre os entes particulares
e as ideias, que, por vezes, parecem se confundir.
Ao discutir arte Platão tinha por interesse sua relação com a educação e o
resultado do impacto social desta, isto é, aquilo que a obra mostra e se sua finalidade é
condizente com os conceitos aceitos e se essa finalidade é boa. Nisso entravam em
discussão os critérios morais e técnicos e sua aplicabilidade na sociedade. Ou seja,
Platão não repudia a arte no geral, mas sim reconhece o poder das artes e procura
demonstrar especialmente o caráter perigoso da arte poética, pois sabe o poder de sua
influência. É por isso que propõe excluir certos trechos da obra de Homero, que
continham esse encanto sedutor que oferecia um caráter tão dúbio aos cidadãos (R.
387b). Assim, a partir da discussão desse capítulo se entende, então, a relação entre
educação mítica e a moral, os riscos proporcionados pela arte poética, bem como a
sintonia que a alma do homem deve ter com a beleza. Essa discussão sobre a pedagogia
mítica é importante para a investigação seguinte que busca analisar como se instaura a
narrativa mítica e os limites do discurso filosófico.
3.1 NARRATIVA MÍTICA E DISCURSO FILOSÓFICO
É bastante comum, mesmo tendo em vista o rigor filosófico, que filósofos
lancem mão de certa dimensão fantasiosa para ultrapassar possíveis armadilhas
argumentativas, isso se dá porque há um rigor que parece ser próprio da filosofia, e
distanciamentos dessa natureza filosófica são vistos como uma má filosofia. Isso ocorre
mesmo nas filosofias que se prescrevem mais analíticas e formais, como exemplos que
podem ser encontrados na literatura filosófica, seja no gênio maligno de Descartes ou
em uma leitura mais moderna do super homem Nietzscheano. A questão de dar uma
esfera que extrapola a linguagem proposicional e que permite essas multi-interpretações
facilita o trato daquilo que não pode ser explicado objetivamente em um texto formal.
Dessa maneira, ressalta-se a diferença entre o discurso filosófico e o discurso mítico.
É simples entender como se dá esse processo, há duas maneiras de tratar da
universalidade ou da verdade, seja pela correspondência com o mundo, seja pela
representação de uma verdade, posto que a imagem tem esse poder de implicar a
verdade em uma espécie de subtexto que é sempre implícito. No que se refere a esta
distinção, Platão dirá a respeito do mito:
[...] não compreendes – disse eu – que primeiro ensinamos fábulas às
crianças? Ora, no conjunto, as fábulas são mentiras, embora contenha
algumas verdades. E servimo-nos de fábulas para as crianças, antes de as
mandarmos para os ginásios (R. 377a).
Sobre essas funções do mito em Platão, Brisson argumenta e enfatiza a distinção
entre o discurso estritamente argumentativo-filosófico e a narrativa mítica:
Para Platão, o mito apresenta, portanto, esses dois defeitos. É um discurso
inverificável e frequentemente assimilável a um discurso falso (por razões de
censura, quando ele se afasta de tal ou tal ponto defendido pelo filósofo). E é
uma narração cujos elementos se encadeiam de maneira contingente,
contrariamente ao discurso argumentativo cuja organização interna apresenta
um caráter de necessidade. Mas não é por isso que Platão não abandona os
mitos tradicionais aos quais ele faz abundante alusão em sua obra. E cria
novos em função das circunstâncias. Por duas razões: uma de ordem teórica e
outra de ordem prática (BRISSON, 2002, p. 77-78).
Portanto, como fazer esse paralelo? Sendo o mito uma linguagem metafórica que
promove multi interpretações, como se identificaria o discurso verdadeiro nesse jogo
linguístico platônico? O mito não estaria no âmbito das asserções verdadeiras e das
falsas, mas sempre de uma hipótese plausível. Platão, se voltando contra a inteligência
que se faz através da memória e do discurso decorado, parece, através de seus escritos,
mostrar que há espaço também para a própria investigação escrita.
3.2 IMAGEM EM PLATÃO E OS LIMITES DO DISCURSO MÍTICO
Ora, isso nos permite entender a tarefa hercúlea platônica de pensar os limites do
discurso e, assim, o mito surge como uma saída possível escolhida por Platão para
transcender o formalismo do discurso, o que torna essa tarefa possível. Além disso, nos
dá matéria para pensar na distinção que podemos fazer entre discursos verdadeiros e
falsos.
A questão imagética do mito em Platão é importante para se pensar em como o
discurso mítico faria a transformação moral na alma do homem. O mito é um discurso
que pretende reviver um passado esquecido, um sonho impossível e que busca se referir
a um passado distante de uma comunidade, por mais fantasiosa que seja a narrativa
mítica. Essa narração deve sempre ser mantida na memória de uma comunidade para
que ela possa ser passada oralmente através das gerações, assim ficaria vívido na
memória das pessoas. E isso aparece bem claro para Schüler quando compara o discurso
das musas e os discursos platônicos:
Enquanto o discurso das musas apresenta significados desde sempre dados, o
discurso platônico se põe a desvendar imagens do ausente, do desde há muito
esquecido, da visibilidade invisível (SCHÜLER, 2001, p. 23).
Visto que o mito é uma fábrica de ilusões e artimanhas e que ele sobrevive como
um malabarismo visual e imagético em que predomina a verossimilhança, coloca-se a
questão: como pode uma linguagem que se permite ser essencialmente flexível criar
uma correspondência com a realidade e, consequentemente, uma verdade universal? No
caso do Mito de Giges, Platão, através do discurso mítico, busca tratar da escolha
consciente do homem pelo mal enquanto esta lhe parece vantajosa (R. 360c). Ademais,
observa-se no mito certa pretensão de verdade e de correspondência com a realidade,
pois busca discutir temas que só podem ser pensados dentro de um contexto social e
cultural, seja ao representar a verdade, o bem ou a justiça. A resposta, portanto, é que o
mito se situa exatamente entre o retrato da verdade e nenhuma garantia de
universalidade ou pretensão à verdade: este é o domínio do verossimilhante. Além
disso, se as análises a cerca do mito em Platão se limitassem apenas a considerar o mito
como mero recurso metafórico-fictício sem objetivo extratextual, não haveria espaço
argumentativo e a discussão se tornaria estéril.
O mito parece se caracterizar como uma dimensão da realidade que se enraíza na
alma daquele que as ouve, como será dito por Platão (R. 395d), e a razão disso deve-se à
possibilidade que o mito tem de poder emular, distorcer e retorcer a realidade daquele
que a ouve, por meio de representações imagéticas. Aqui torna-se necessário colocar a
distinção de imitações boas e imitações más que Platão propõe e, consequentemente,
sua aplicabilidade, como seria no mito das almas de ouro, prata e bronze, que Platão
apresenta como uma boa mentira (R. 414b-c). Sendo o discurso essa arte que consegue
ser flexível e sedutora, Platão mostra como se pode provocar esse encantamento
imediato naquele que o ouve e demonstra como isso pode mudar a percepção dos
homens sobre um mesmo conceito. Observa-se nesse exemplo ao questionar Fedro
sobre a justiça:
Sócrates - Como procedem nos tribunais, os advogados das partes em litígio?
Não procuram contradizer as afirmações um do outro? Ou não será
assim?Fedro – É precisamente assim.
Sócrates – Contradizem-se, então, tanto sobre o que é justo como sobre o que
é injusto?
Fedro – Exactamente como dizes.
Sócrates – E não achas então que, fazendo isso com arte, se pode conseguir a
mesma coisa pareça aos homens ora justa, ora injusta, conforme as
conveniências?
Fedro – Porque não havia de ser assim? (Phdr. 261c-d).
O mito das almas de ouro, prata e bronze (R. 414d – 415c) inicia-se com
Sócrates propondo que, para justificar os infortúnios e privilégios sociais, é necessário
ensinar os cidadãos que suas vidas não foram mais que um sonho e que a educação que
receberam não havia passado de uma simples ilusão (R. 414d-e). Quando, na realidade,
passaram todos esses anos debaixo do chão, onde seus corpos foram crescendo assim
como todos os objetos que existem, até que tudo ficou pronto e a terra deu a vida a
todos (R. 414e), de forma que durante seus nascimentos, os deuses formaram todas as
pessoas com materiais diferentes. Alguns tiveram atrelados às suas almas ouro,
enquanto outros foram formados por bronze e prata (R. 415b-c), sendo todos irmãos,
embora aqueles que fossem formados de ouro teriam o poder de mandar e estar em
cargos importantes, uma vez que sua alma teria sido formada com esse material;
enquanto outros teriam cargos de lavradores ou artesãos por suas almas terem sido feitas
com ferro e bronze. Ao passo que alguns outros nasceriam com almas mistas, o que
tornaria possível pensar o estatuto social elevado de alguns cidadãos, como pode ser
encontrado nessa passagem:
Vós sois efetivamente todos irmãos nesta cidade – como diremos ao contar-
lhes a história – mas o deus que vos modelou, àqueles dentre vós que eram
aptos para governar, misturou-lhes ouro na sua composição, motivo por que
são mais preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos lavradores e
demais artífices. Uma vez que sois todos parentes, na maior parte dos casos
gerareis filhos semelhantes a vós, mas pode acontecer que do ouro nasça uma
prole argêntea, e da prata, uma áurea, e assim todos os restantes, uns dos
outros (R. 415a-b).
Nesse mito, Platão parece valer como recurso argumentativo o poder que o mito
tem de imprimir na alma daqueles que o ouvem uma verdade produzida. E nesse jogo de
aparências, se aceita que os primeiros homens a ouvirem o mito não aceitariam como
absoluta verdade que durante nossa criação os deuses atrelaram a nossa alma ouro, prata
ou bronze. No entanto, com o tempo, para os filhos desses homens isso se apresentaria
como uma verdade e cresceriam acreditando ser uma história verdadeira (R. 415d).
E, dessa forma, o mito teria essa correspondência com o mundo porque, segundo
esse argumento elencado – da nobre mentira (R. 414c) –, Platão faculta ao mito a crença
de que contém níveis de verossimilidade na vida prática. Uma vez que os homens são
persuadidos do mito das almas de ouro, eles passariam a contar história para seus filhos
e seus filhos para seus filhos (R. 415d). Dessa forma, o mito ganharia essa dimensão de
verdade e, assim, conteria graus de realidade. E nisso se instala o problema da arte
mimética que foi tratada anteriormente, porque Platão implicitamente já pressupõe que
há uma mudança no homem que ocorre através dessas histórias.
Ao mesmo tempo, é necessário levar em conta as proximidades que Platão faz
da orientação retórica com a escrita e como os discursos escritos eram temidos pelos
grandes políticos da cidade por medo do que fariam com seus escritos posteriormente e
por correrem o risco de serem conhecidos como sofistas. Como se pode encontrar nessa
passagem do Fedro:
Fedro – Sem dúvida, Sócrates, e tu sabes tão bem como eu que, regra geral,
os homens mais poderosos e eminentes de cada cidade receiam escrever
discursos por causa das críticas a que a posteridade os pode submeter, e até
mesmo com receio de serem alcunhados de sofistas (Phdr. 257c-d).
Esse capítulo, então, sintetiza o poder imaginativo da imagem mítica em Platão,
assim como procura demonstrar os limites retóricos do próprio discurso mítico. E essa
discussão é importante para a reflexão seguinte, que busca demonstrar como o mito
produz um encantamento sobre a alma dos indivíduos e, uma vez que o olhar do
filósofo o permite ter um acesso à contemplação das ideias, é preciso refletir o que esse
olhar privilegiado oferece ao indivíduo.
4.1 O OLHAR SINÓPTICO DO FILÓSOFO
Platão distinguirá o filósofo dos outros gêneros de amantes (seja da música, do
espetáculo e de todos aqueles que se deslumbram frente às belas formas, as cores, e
outras artes) porque, para Platão, estes homens não são capazes de se deslumbrar com a
natureza do belo em si (R. 476b), uma vez que esse dom somente o filósofo detém12
.
Assim, poucos são aqueles que frente às coisas belas conseguem contemplar o
verdadeiro belo, o belo em si. E há também aqueles que não têm a inteligência para
deixar que sejam conduzidos ao conhecimento do belo mesmo por aqueles que
conhecem e se comprazem com a natureza deste.
Para Platão, o filósofo se distingue radicalmente desse gênero de pessoas porque
o filósofo é aquele que vive em vigília, jamais em sonho. Isso porque somente o filósofo
reconhece o belo em si e sabe contemplá-lo sem, com isso, recusar aqueles outros
corpos que participam do belo. Dessa forma, o filósofo não confunde o belo em si
mesmo com os outros elementos que participam dele e nem comete o erro de achar que
esses elementos que participam do belo, são o belo (R. 476c-476d).
Platão no livro VII da República determina ao elaborar a imagem do homem na
caverna que há uma faculdade na alma de cada homem, assim como um órgão pelo qual
este aprende (R. 518c), Platão, com isso, demonstra essa divisão entre o filósofo que é
capaz de contemplar o belo em si mesmo por possuir essa faculdade de visão
privilegiada, dos outros homens incapazes de ver. Platão comenta dessa educação dos
olhos para a beleza: “[...] Dizem eles que introduzissem a ciência numa alma em que ela
não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos” (R. 518c). Para isso, Platão
demonstra como as perturbações visuais na alma são duplas, isto é, não vê bem aquele
que parte da luz à sombra e nem o vê com clareza aquele que vai da sombra à luz (R.
518a). Consequentemente, Platão argumenta que antes de rir-se desse gênero de
homens, devíamos nos perguntar se ele não estaria ofuscado por falta de hábito (R.
518a).
12
Não é por acaso que Platão no Fedro define que o filósofo, por ser amigo da sabedoria e da beleza, é o
único que contém asas em seu espírito e se assemelha a um deus porque sua alma recorda-se da beleza
real (Phdr. 249c-d).
Com isso, Platão defende a possibilidade de exercitar esse órgão pelo qual se
aprende porque dirá que essas qualidades da alma se aproximam de maneira íntima com
as qualidades do corpo, e, assim, se não existem previamente, podem desta forma criar-
se pelo hábito e pela prática (R. 518e). Não obstante, Platão reconhece que exercitar
esse órgão do olhar não torna, por consequência, o homem bom (R. 519a).
O objetivo de Platão é que ao exercitarem essas partes da alma, esses homens
sejam educados com uma divina finalidade – a ascensão para o divino bem:
E nossa função, portanto, forçar os habitantes mais bem dotados a voltar-se
para a ciência que anteriormente dissemos ser a maior, a ver o bem e a
empreender aquela ascensão [...] (R. 519d).
Para Platão, conhecimento e opinião se distinguem como os diversos graus de
participação na verdade de quem está desperto e de quem sonha (R. 476d 5-6). É por
esse motivo que Platão mapeia onde se situa o papel da opinião. Segundo o filósofo, “o
conhecimento é do ser, a ignorância necessariamente é do não-ser, e entre conhecimento
e ignorância situa-se a opinião” (R. 477 a 9 - 477b). Ora, aqueles que conversam sempre
dentro do domínio da opinião, portanto, transitam por esses dois polos opostos e
equidistantes, de um lado a verdade e de outro a falsidade. E entre esses dois valores
situa-se o filósofo que tem seu passaporte para fora desse domínio em razão de um
privilégio exclusivo de acesso às ideias e a contemplação do belo.
Platão define o belo da seguinte forma:
Quanto à Beleza – conforme já disse – ela sobressaía entre todas as
ideias puras a que nos referimos. Depois que viemos para esta
existência, é ainda ela que ofusca todas as coisas com o seu brilho,
pois a visão é de facto o mais subtil dos nossos sentidos, embora não
possa aperceber-se da Sabedoria! (Phdr. 250d).
Talvez, aqui se instaure o ponto central deste trabalho e que entra em sintonia
com a tese de Torrano quanto ao domínio mítico. Torrano defende que há um olhar
sinóptico que permite o filósofo distinguir a ideia dos que dela participam e nisso se
vislumbraria a inteligência do pensamento mítico (TORRANO, 2013, p. 92). Sobre esse
aspecto do mito, Torrano argumenta:
[...] mediante esse repertório tradicional de imagens, descrevem-se
traços visíveis e com elementos sensíveis os aspectos fundamentais, a
estrutura e a dinâmica do mundo, enfim, tudo o que por sua grandeza
e perenidade ultrapassa o alcance do olhar humano (TORRANO,
2013, p. 92).
Dessa forma, o filósofo parece ser aquele que consegue se esquivar dessa
nebulosidade própria do olhar, por ser o único a ter acesso à contemplação das ideias e a
real beleza. O que importa para o trabalho nessa definição é perceber como Platão, mais
uma vez, pressupõe o aperfeiçoamento do homem para as qualidades mais divinas da
alma, assim como ocorre ao pressupor que através dos mitos é possível transformar
moralmente os homens que ouvem essas histórias desde a juventude.
Esta pesquisa se propôs, como objetivo geral, comprovar que há nos mitos
platônicos uma estratégia dialética para transformação do homem. Para se entender o
percurso trilhado foram feitos quatro passos: primeiramente, foi preciso notar como
Platão está preocupado com a educação das crianças, já que percebe que a tenra infância
é o período que melhor se consegue modelar a alma dos homens, pois estes estão mais
propensos a escutar todo tipo de fábulas e passam a guiar suas ações através dos
exemplos dados por essas histórias (R. 377c).
Para Platão os mitos devem ser ensinados desde a juventude, visto que com eles
será impressa uma imagem em cada jovem, tornando-o apto para o conhecimento. O ato
de ouvir mitos transforma, esculpe e molda a alma daqueles que tiveram contato com
isso na infância. Como pode ser visto nessa passagem da República:
- Ora pois, tu sabes que, em qualquer empreendimento, o mais trabalhoso é o
começo, sobretudo para quem for novo e tenro? Pois é sobretudo nessa altura
que se é moldado, e se enterra a matriz que alguém queira imprimir numa
pessoa?
- Absolutamente.
- Ora pois, havemos de consentir sem mais que as crianças escutem fábulas
fabricadas ao acaso por quem calhar, e recolham na sua alma opiniões na sua
maior parte contrárias às que, quando crescerem, entendemos que deverão
ter? (R. 377a-b).
Ainda na República, Sócrates dirá “persuadiremos as amas e as mães a contá-las
às crianças e a moldar as suas almas por meio de das fábulas, com muito mais cuidado
do que os corpos com as mãos” (R. 377c). Isto é, o mito traz consigo esse poder de
esculpir certa forma na alma. A respeito do poder magnetizante dos mitos e das
experiências artísticas, Muniz em Platão Contra a Arte bem pontua:
A arte potencializa a experiência sensível, intensifica as emoções a ponto de
impedir a descoberta da natureza do sensível como imagem imperfeita da
Forma, ou seja, impedir que sua deficiência seja exposta. A arte oculta a
deficiência do sensível. Mas de que maneira? Tornando-o autossuficiente.
Daí, a educação artística produzir massas de plateias fanáticas pelo
audiovisual, fanáticas pelos espetáculos de imagens e sons. É nesse sentido
que a arte é um treinamento para a estetização da experiência humana
(MUNIZ, 2010, p. 33).
Sendo assim, a ideia aqui é de que o polimento da alma faz com que o indivíduo
aja de acordo com a forma que foi instruída desde a infância, porque há um
encantamento próprio da arte sobre os homens. Logo, podemos entender que a verdade
que Platão encontra no mito é essa habilidade que o mito tem de moldar a alma de um
homem da maneira correta, de modo que essa forma correta e virtuosa seja impressa em
sua alma.
No segundo passo da pesquisa foi necessário analisar se os diálogos platônicos
teriam por finalidade formar o indivíduo a partir do método dialético. E, além disso,
questionar o papel do mito dentro do esqueleto teórico de Platão.
Em toda a história da filosofia antiga podemos distinguir dois tipos de atividades
frequentes no que diz respeito às atividades filosóficas, por um lado haveria uma
escolha e prática de um modo de vida, e de outro o discurso filosófico que determina
esse modo de vida, mas que é ineficiente ao tentar exemplificar o que é essencial para
essa filosofia.
Por isso é necessário entender que o uso dos mitos em Platão é objeto de
contenda e dúvida, pois as explicações de Platão parecem, com frequência, estarem
ligadas a uma noção de verossimilhança. O mito não é um método para buscar a
verdade, mas antes disso é um meio que se tem para expor o verossímil. O mito não
propõe dar uma verdade, mas antes disso oferecer uma hipótese plausível. A respeito
disso, Brochard dirá que o mito mesmo que não verificável, sugere o provável
(BROCHARD, 2013, p. 6). E é nesse ponto que Platão reforçará seu argumento de que
deve-se rejeitar o que há de danoso dos mitos, em uma dimensão ético-política, pois
essa ilusão poética criada pelo mito refletir-se-á de maneira prejudicial na alma do
homem.
Pois bem, se o mito não tem por objetivo a verdade, é sensato supor que ele tem
por objetivo atingir certa pluralidade de sentidos. E, portanto, esse sentido precisa ser
interpretado e decifrado no conjunto imagético que o próprio mito se põe. O objetivo
principal dos mitos é o de contar uma história que tenha por finalidade demonstrar certa
realidade. O diálogo tem por função fazer os interlocutores praticarem uma "forma de
vida", pois no instante em que dialogam e se compreendem como sujeito eles se
transcendem a si mesmos. Terá o mito a mesma função?
O que tem importância aqui é o conteúdo pelo qual o diálogo transforma o
homem, pois no momento em que o diálogo entra em choque com a limitação da
linguagem, o mito é usado como recurso retórico de Platão para lidar com as próprias
barreiras da linguagem.
Barros questionará com propriedade se o mito é uma resposta racional dentro do
esquematismo conceitual platônico:
Em todo caso, perguntamos: não teria sido o apelo ao mito uma resposta
racional aos próprios limites da estrutura da razão e uma valorização
funcional da mesma, enquanto potência redentora – e, no caso,
disciplinadora, da capacidade humana de fabulação? Até que ponto essa
ambiguidade, entre mito e dialética, assim tratada por Platão e tão íntima do
seu pensamento, não pode ser vista como uma forma de enfrentar os desafios
da pesquisa, um estímulo à busca permanente, tal como nos sugere Sócrates,
no Mênon? (BARROS, 2008, p. 5).
Embora os mitos verossímeis não apresentem a realidade tal como é, tem em si
um conteúdo que ultrapassa sua esfera conceitual, pois molda a alma de tal forma que
tem por efeito produzir um bom comportamento, e, por isso, o mito apresenta algum
conteúdo de verdade. Todavia, não se deve entender ‘verdade’ no sentido de que a
linguagem mítica está conectada à realidade, mas entendê-la como uma ferramenta que
tem certa funcionalidade.
Todo esforço de Platão ao usar a dialética na forma em que se encontra nos
diálogos para a transformação do homem é antes uma tentativa de "voltar-se para a vida
intelectual e espiritual" (HADOT, 1999, p. 102), isto é, haveria uma transformação
interna que deve levar o homem sempre a praticar os atos mais virtuosos e elevados.
Pois quando Sócrates fala na República sobre as virtudes como um grau elevado de
saber, ele queria dizer que somente através do bem é que se pode alcançar a verdade,
pois esta merece ser estimada sobre todas as coisas (R. 389b). Isto é, a virtude, para
Platão, faz com que o homem que a possui, deseje sempre praticar o bem, pois entende
o bem como uma virtude que está além do mundo sensível (HADOT, 1999, p. 102-
103). Como explicitará Hadot:
Parece que Sócrates admitiu implicitamente existir em todos os homens um
desejo inato do bem. É também nesse sentido que se apresentava como um
simples parteiro, cujo papel limitava-se a fazer que seus interlocutores
descobrissem suas possibilidades interiores (HADOT, 1999, p. 62).
A saída que Barros apresenta é que devemos recorrer à valorização que Platão
faz da opinião verdadeira, pois essa posição abriria espaço para certo probabilismo. De
forma a interpretar o mito como uma expressão, e não como ciência ou uma diversão do
filósofo. O mito seria assim interpretado como uma opinião verossímil (BARROS,
2008, p. 3).
Em terceiro lugar, foi observado que, para Platão, viver filosoficamente exige
uma transformação em um nível espiritual e intelectual e necessita-se de uma conversão
da própria alma do homem, como sugere a seguinte passagem:
A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um
órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das
trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse
órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se
alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais
brilhante do ser. A isso chamamos o bem. Ou não? (R. 518d).
E essa pista teórica da conversão do homem encontrada na República foi
fundamental para se alcançar o objetivo da pesquisa, que é fundamentar como há em
Platão essa ambição por reformar moral e espiritualmente o homem.
Existem inúmeras práticas e exercícios espirituais que Platão demonstrará e que,
para alcançá-las, o filósofo deverá ser virtuoso, de forma que aquele que pratica o bem
estaria em harmonia com o universo e assimilaria em certo sentido à divindade. Como
diz Platão no Timeu:
Timeu: É bem certo, ó Sócrates, que todos quantos partilhem o mínimo de
bom senso, sempre que iniciam algum empreendimento, pequeno ou grande,
invocam sempre, de algum modo, um deus. Quanto a nós, que nos
preparamos para produzir discursos sobre o universo – sobre como deveio ou
se de facto nem o toca o devir –, caso não tenhamos perdido por completo o
discernimento, é inevitável que invoquemos deuses e deusas, bem como
roguemos que tudo o que dissermos seja conforme o seu intelecto e esteja em
concordância com o nosso. E no que respeita aos deuses, seja esta a nossa
invocação (Ti. 27c).
Platão não entrará em detalhes a respeito da prática desses exercícios no Timeu,
algo que veremos com mais detalhes em outros diálogos, como é o caso de A República,
em que Platão diz que o homem deve buscar sempre a sabedoria e que deve saber
conservar a calma mesmo na infelicidade, sem revoltar-se13. Com o auxílio desses
exercícios, podemos mudar nossas disposições interiores para as desventuras que a vida
pode nos causar, pois, observa Platão, não pode-se definir o que é uma coisa boa e má
em certas ocasiões, então basta que saibamos manter a calma e não nos revoltemos
contra qualquer infortúnio, já que essas coisas não merecem ser levadas em conta como
se fossem grandes preocupações – é necessário que consideremos as coisas naquilo que
elas são.
Outra prática platônica seria o de ver na filosofia uma espécie de exercício para
a morte. A respeito de uma passagem no Fédon14
, Hadot dirá:
Sócrates declara que um homem que passou sua vida na filosofia tem,
necessariamente, coragem para morrer, pois a filosofia é apenas um exercício
para a morte. E ela é um exercício para a morte pois a morte é a separação
entre alma e corpo, e a filosofia dedica-se a desligar sua alma de seu corpo. O
corpo, com efeito, causa-nos mil problemas, por causa das paixões que
engendra, das necessidades que nos impõe. É necessário que o filósofo se
purifique, isto é, que se esforce para concentrar e unir a alma, para libertá-la
da dispersão e da distração que lhe impõe o corpo. (...) Esse exercício é
indissoluvelmente ascese do corpo e do pensamento, despojamento das
paixões para alcançar a pureza da inteligência (HADOT, 1999, pp. 105-106).
Na República, o que é demonstrado é que uma filosofia para a morte não é mais
do que esse exercício que tem por função libertar a alma do medo da morte:
- Além disso, é preciso examinar o seguinte, se se quiser distinguir uma
natureza filosófica da que o não é.
Examinar o quê?
13
Ao argumentar sobre quais os fatores que levavam os homens a se entregarem às lamentações, Platão
aconselha que sempre se busque o bem, independente das adversidades que se abatem sobre os homens,
como pode ser visto no livro X da República: “A lei diz que o que há de mais belo é conservar a calma o
mais possível nas desgraças e não se indignar, uma vez que não se sabe o mal e o bem que há em tais
acontecimentos, nem se adianta nada, positivamente, em os suportar com dificuldade; nem tudo o que é
humano merece que se lhe dê muita importância; e o que poderá acudir-nos o mais depressa possível é
entravado pelo desgosto” (R. 604 b-c).
14 Sigo a edição e a tradução da editora Nova Cultural, com notas de José Cavalcante de Souza, Jorge
Paleikat e João Cruz Costa (1991).
- Que não tenha, sem que tu o saibas, qualquer baixeza; porquanto a
mesquinhez é o que há de mais contrário a uma alma que pretende alcançar
sempre a totalidade do tempo e a totalidade do ser, supões que é capaz de
julgar que a vida humana tem grande importância?
- É impossível – replicou ele.
- Uma pessoa nessas condições tão-pouco terá a morte na conta de uma coisa
terrível?
- Nada disso.
- Por conseguinte, uma natureza covarde e grosseira não poderia ter parte na
verdadeira filosofia, segundo parece.
- Acho que não (R. 486 a-b).
Deste modo, a alma deve sempre desejar um olhar do alto sobre toda a realidade,
e o espírito aspirar incessantemente a compreender a totalidade das coisas divinas e
humanas. O homem que é dotado dessa elevação de espírito que contempla todos os
tempos e todas as coisas, não acharia nada de grandioso na vida humana, e, sendo
assim, não teria porque temer a morte. Logo, esse exercício de tender sempre a abraçar a
totalidade da realidade de modo universal permite ao homem vencer o medo da morte.
Coisa parecida encontra-se no Teeteto15
onde trata-se do olhar do alto para as
coisas que estão abaixo, em que Platão concebe o pensamento como um voo que passeia
e viaja por toda parte (Tht. p. 173-176). Portanto, é a partir dos exercícios e da dialética
que se consegue produzir na alma daquele que ouve um saber que se iguala ao da
virtude, porque para que alguém tome para si esse discurso e queira fazer esses
exercícios espirituais, é necessário que se tenha uma ideia do que é filosofia. Sendo
assim, Platão escolherá a forma, que é a do diálogo, por dois motivos, dirá Hadot (1999.
p.112), por um lado, porque esse gênero literário que colocava Sócrates como um
personagem era muito comum e, segundo, porque essa forma que adquiria o diálogo
"socrático" permitia que Platão trabalhasse sua ética de forma bem expositiva.
15
Utilizo a edição da Calouste Gulbenkian com a tradução de NOGUEIRA, A. M., & BOERI, M. (2005).
No último passo da pesquisa foi necessário mostrar como Platão recorre a
diversos jogos imagéticos e retóricos para por fim poder transformar os cidadãos da sua
cidade ideal. Por isso, podemos entender que a proposta de Platão é política, no sentido
de que ele acredita que com a aplicação da educação adequada aos guerreiros de alto
prestígio da cidade ideal, pode-se mudar a vida política. Ou seja, toda articulação de
imagens em Platão, como é feito nos mitos, não tem por função apenas tratar
abstratamente do tema. Mas para Platão, segundo Hadot:
O “ofício de filósofo" consiste em agir. Se ele procura desempenhar um papel
político em Siracusa, é para não passar, a seus próprios olhos, "por um belo
palrador", incapaz de agir (HADOT, 1999. p. 94).
O filósofo não teria por objetivo somente contemplar a vida e discorrer sobre os
mais variados temas que não têm qualquer equivalência no mundo, mas antes disso, a
tarefa do filósofo seria a de que ele se apropriasse dessas ideias e as colocasse em
prática. Sobre o fato de Platão buscar formar jovens que estejam aptos a exercer a vida
política, Hadot dirá:
Os sofistas pretenderam formar os jovens para a vida política, Platão quis
fazer isso dotando-os de um saber bem superior àquele que os sofistas
poderiam fornecer-lhes, de um saber que, de uma parte, será fundado sobre
um método racional rigoroso e, de outra, segundo a concepção socrática, será
inseparável do amor do bem e da transformação interior do homem. Ele não
quer somente formar hábeis políticos, mas homens. Para realizar sua intenção
política, Platão deve fazer um imenso desvio, isto é, criar uma comunidade
intelectual e espiritual que será encarregada de formar, levando o tempo
necessário, os novos homens (HADOT, 1999, p. 94).
O objetivo de Platão é buscar homens preparados para exercer a vida política,
mas entende que para isso é necessário primeiro educar o espírito dos jovens, e por isso
faz uso do mito, pois percebe que o mito é uma ferramenta que provoca uma
transformação interior que conduz o jovem a exercer sobre si mesmo certa vigilância
com respeito aos seus atos. E isso faz com que julguem racionalmente sobre suas
próprias atitudes de forma que buscarão fazer sempre o bem, e isso os tornarão aptos a
exercerem a vida política.
Ainda segundo Hadot, Platão sempre mantém em vista a transformação do
homem, pois através da sua concepção de cidade ideal, parece sugerir que eles – os
cidadãos – podem ao menos entender que devem governar seu próprio eu com respeito
às regras e determinações dessa cidade (HADOT, 1999, p. 95).
Hadot destaca que, para Platão, toda educação desses jovens seria feita dentro
desta comunidade ou grupo, e assim que atingissem certa maturidade, esses mesmos
filósofos deveriam dedicar-se à dialética (HADOT, 1999, p.98). Primeiro porque a
dialética era de suma importância para a formação desses cidadãos, pois os filósofos
iriam governar essa cidade ideal, e é de igual importância que conhecessem a dialética,
na medida em que essa modificaria e melhoraria o discurso político, posto que essa
produziria uma espécie de domínio do raciocínio correto.
O discurso dialético não é apenas uma ferramenta lógica, ela é, antes disso, um
exercício espiritual que deve provocar naquele que a escuta uma transformação interna.
Deve, portanto, o discurso escrito se dirigir ao bem e à virtude, como Platão bem
exemplifica nessa passagem do Fedro:
Os melhores de todos os discursos escritos são os que têm por fim servir de
memorandos aos que conhecem tais discursos e somente nas palavras cujo
fito é a instrução, assim se gravando na alma, sobre o que é justo, belo e bom,
somente nessas encontramos uma perfeição digna dos nossos esforços (Phdr.
278a).
Pondo isso em perspectiva com a tese de Hadot a respeito da filosofia antiga,
tem-se que:
A filosofia consiste no movimento pelo qual o indivíduo se transcende em
alguma coisa que o supera, para Platão, no logos, no discurso que implica
uma exigência de racionalidade e de universalidade. Além disso, esse logos
não representa uma espécie de saber absoluto; trata-se de fato, do acordo que
se estabelece entre interlocutores que são levados a admitir certas posições
em comum, acordo no qual eles superam seus pontos de vista particular
(HADOT, 1999, p. 100).
Ou seja, havia certa investigação das ideias que era representada sempre como
um diálogo, Platão mesmo acreditava no pensamento como um diálogo: "Pensamento e
discurso são a mesma coisa, salvo que é o diálogo interior e silencioso da alma consigo
mesma que denominamos pensamento" (Sph. 263e).16
16
Sigo a edição e a tradução de José Trindade Santos (2012).
Por fim, os mitos na filosofia de Platão não parecem ter por função apenas
edificar um sistema teórico e metódico qualquer sobre a realidade, mas antes disso ele
busca transformar aquele que ouve o diálogo, e que esse ato o leve a conhecer o bem e
praticar as virtudes mais elevadas.
Quando argumenta:
Por conseguinte, as outras qualidades chamadas da alma podem muito bem
aproximar-se das do corpo; com efeito, se não existiram previamente, podem
criar-se depois pelo hábito e pela prática. Mas a faculdade de pensar é, ao que
parece, de um carácter mais divino, do que tudo o mais; nunca perde a força
e, conforme a volta que lhe derem, pode tornar-se vantajosa e útil, ou inútil e
prejudicial (R. 518e).
Platão está reforçando a tese de que há qualidades que tomam parte física e
espiritualmente a alma dos homens (R. 518e), mas a faculdade de pensar é, dentre todas,
a mais valiosa. Por isso os mitos contados desde a infância têm uma função crucial que
refletir-se-á na vida moral dos homens. E uma vez que os homens virem os seus olhos
para as coisas do alto, conhecerão a verdade e poderão satisfatoriamente cuidar da
cidade (R. 419c). Para Platão, portanto, os mitos enquanto uma dimensão verossímil
tem o poder de imprimir uma marca indelével que moldará moralmente o pensamento e
a alma dos homens, transformando-os e conduzindo-os sempre à prática do bem e da
virtude.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes Primárias
PLATÃO. A República. 11.a
edição. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha
Pereira, Editora Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 2008.
PLATÃO. Fedro. Tradução e notas de Pinharanda Gomes, Coleção de filosofia &
Ensaios, Sexta edição, Guimarães Editores. Lisboa, 2000.
PLATÃO. Fédon. Os Pensadores, tradução e notas de José Cavalcante de Souza, Jorge
Paleikat e João CruzCosta. Nova Cultural. 5º Edição, São Paulo, 1991.
PLATÃO. Teeteto. NOGUEIRA, A. M., & BOERI, M. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2005.
PLATÃO. Timeu - Crítias. Tradução do grego, introdução e notas Rodolfo Lopes,
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Coimbra, 2011.
PLATÃO, O Sofista, Tradução José Trindade Santos, Fundação Calouste Gulbenkian,
Coleção Textos Clássicos, 1ª Edição, 2012.
Fontes Secundárias
BARROS, Gilda Naécia Maciel. Mito e Paideia, FEUSP, 2008. Acesso em 23/02/2013
em http://www.hottopos.com/notand_lib_10/gilda.pdf
BRISSON, Luc, A Atitude de Platão a Respeito do Mito. 2002, p. 77-78.
BRISSON, Luc. Platón, las palavras y los mitos - ¿ como y por qué Platón dio nombre
al mito?, Traducción José M.ª Zamora Calvo, Abada Editores – Lecturas de Filosofía,
2005.
BROCHARD, Victor. Les mythes dans la philosophie de Platon. In: La theorie
platonicienne de la participation d’après le Parménide et le Sophiste (Études de
philosophie ancienne et de philosophie moderne, Paris:Vrin, 1926), 2013.
CASSIRER, Ernst, O mito do Estado, Editora Codex, 2003, pp. 68-9.
EURÍPEDES. Medéia, As Bacantes, As Troianas, Tradução de David Jardim Júnior,
Ediouro, 5ª edição, Rio de Janeiro, 1988.
HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga?. Editora Loyola, tradução de Dion Davi
Macedo, São Paulo, 1999.
MUNIZ, Fernando. Os filósofos e a arte - Platão contra a arte. Editora Rocco, Rio de
Janeiro, 2010.
OSBORNE, Harold. A Apreciação da arte. Tradução de Agenor Soares Dos Santos,
Editora Cultrix. São Paulo, 1970, p. 116.
OSBORNE, Harold. Estética e teoria da arte. Tradução de Octavio Mendes Cajado,
Editora Cultrix. São Paulo, 1974.
PIEPER, Josef. Sobre Los Mitos Platónicos. Herder, 1998.
SCHÜLER, Donaldo. Eros - Dialética e retórica. Edusp. São Paulo, 2001, p. 23.
TORRANO, Jaa. O Pensamento Mítico no Horizonte de Platão. São Paulo: Annablume
Clássica, (Coleção Archai: as origens do pensamento ocidental), 2013.