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UNIVERSIDADE DE SO PAULO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA - MAE LABORATRIO DE ESTUDOS SOBRE A CIDADE ANTIGA - LABECA
UM DEUS A CU ABERTO: DINISOS E A EXPRESSO MATERIAL DO TEATRO NA PAISAGEM DA PLIS NA GRCIA ARCAICA E CLSSICA SEC. VI-III A.C
Joo Estevam Lima de Almeida
Teatro de Delfos. Fomte: Acervo Laky, 2009.
Verso revisada.
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Arqueologia (PPgArq-MAE/USP) com vista a obteno do ttulo de mestre.
Orientador: Maria Beatriz Borba Florenzano Linha de Pesquisa: Cultura material e Representaes simblicas em Arqueologia
SO PAULO 2014
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minha me, Helena, possuidora da mesma beleza e do nome da flama que um dia incendiou a
esplendente Tria.
In memorian.
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AGRADECIMENTOS
minha orientadora, Profa. Dra. Maria Beatriz Borba Florenzano, que
semelhana de Palas Atena, ao dotar Ulisses de tino e sageza para vencer as duras
imposies de Poseidon, me concedeu um elmo, lana e hplon para que realizasse esta
pesquisa, desenvolvesse o meu tema e me lanasse a tentar desvendar a expresso
material do exuberante Dinisos.
Profa. Dra. Elaine Farias Veloso Hirata, por me fazer atravessar os trigais de
Demter, pelos ensinamentos no momento da qualificao e pelo aprendizado nos
tempos em que fiz parte da segunda gerao do Laboratrio de Estudos sobre a Cidade
Antiga.
Profa. Dra. Maria Cristina N. Kormikiari, a Tanit da bela Cartago, que com seu
jeito calmo, leve e sorridente me ensina que o conhecimento uma trirreme lanada no
azul de pntos para que possamos singrar o mar da Hlade.
Profa. Dra. Maria Isabel dAgostino Fleming, Juno destes tempos a decifrar as
margens argnteas de Tevere, com quem tive o prazer de conviver no transcurso da
organizao da II Semana de Arqueologia do MAE. Por seu humanismo, seu exemplo
de carisma e simpatia a todos os alunos do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
No poderia deixar de agradecer aos professores que me receberam em Portugal
para que desenvolvesse parte desta pesquisa: Prof. Dr. Rui Lopes Morais, poca da
Universidade do Minho e agora na Universidade do Porto, e Profa. Dra. Maria de Ftima
Silva da Universidade de Coimbra. A eles este sincero agradecimento pela acolhida
calorosa, pelo aprendizado constante em solo lusitano. Agradeo tambm Profa. Dra.
Manuela Martins que permitiu que fizesse parte da escavao na rea do teatro romano
de Bracara Augusta. Viva!
Profa. Dra. Fabola Andrea Silva, possuidora de enkrtea, aret e eudaimonia,
por me ensinar que a lana do hoplita Binford quando atinge o peito do hoplita Schiffer
nos faz entender o quo fascinante ser um nthropos arkeologiks.
Ao Prof. Dr. Fbio de Souza Lessa, sempre pela musa Clio, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, pelo apoio constante nesse longo priplo e pela filia.
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Profa. Dra. Adriene Baron Tacla, decifradora do modelo foceu, da Universidade
Federal Fluminense, pelo apoio nos tempos iniciais desta pesquisa.
Aos funcionrios da biblioteca do MAE, Hlio, Eliana, Eleuza, Marta, Alberto,
Gilberto, Washington, Ana e os bolsistas Thiago, Henrique e Brenda, incansveis
hoplitas e amazonas na sua batalha de nos fazer chegar os opsculos que tanto
almejamos.
Ao Prof. Ms. Galba di Mambro e Profa. Dra. Snia Cristina Lino, ambos da
Universidade Federal de Juiz de Fora, pelos ensinamentos partilhados no tempo da
minha graduao nas Minas Gerais. Que Apolo, com suas flechas argnteas lanadas
ao Parnaso, esteja sempre a iluminar o nosso dilogo.
Ao CNPq por ter me concedido uma bolsa de pesquisa e Universidade de So
Paulo juntamente com o Santander por me conceder a bolsa de Mobilidade Internacional.
Aos deuses olmpicos pela poesia de sempre habitarem dentro do corao dos
poetas. Principalmente a Dinisos Eleuthrios, na liberdade nica de transpor os grilhes
da antiguidade e estar para sempre no nosso mundo contemporneo.
minha famlia, bero original do meu destino. Principalmente a ti, Helena de
Lima, que agora vive no esplendente lugar onde s os coraes altivos e nobres podem
viver. Agradeo-te pelos ensinamentos nos dias em que atravessvamos os Portes de
Fogo, em que me e filho luziam na mesma dor. A ti, mame, o eterno agradecimento.
minha v Dalila Braga e minha prima Ivonete Cavalcante que j ultrapassaram o
Estige e residem em Campos Elseos. Aos meus irmos Helena, Loureno, Fernando e
Antnio. Pelas lembranas nas aleias pernambucanas e pelo retorno deste hoplita a sua
taca. Terezinha Machado, minha tia de corao, que me fez presenciar uma amizade
que venceu e sempre vencer khronos e Kairs.
Aos inestimveis amigos: Peterson Rodrigues, Helayne Boaventura, Jnia
Andrade, Nara Casar, Eurpides Francisco, Socorro van Keulen, Ariadne Carneiro
Mendes, Jlio Satyro, Bella Mendes, Wedna Galindo, Joo Filho, Daniela Alves, Lorena
Rodriugez Galo, Cleberson Moura, Markelly Fonseca, Renata Ribeiro, Cristiana
Bertazoni, Graciema Vargas; belos e luzentes atores no palco do meu existir, pela
partilha do vivido.
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Aos meus raros amigos italianos: Viviana Lo Monaco, Marta Cavallini e Filippo
Stampanoni, numes belos e luzentes que aportaram em terras brasilis para que
pudssemos partilhar vida, trabalho, alegria e coragem.
Um agradecimento especial Lilian Laky, pela esplendente amizade; Ana Tauhyl
pelas imagens aladas e presteza sempre; Regina Helena Rezende pelo belo trabalho
com a capa e contracapa, feito com aret; Juliana Figueira da Hora, bela amiga, pela
simpatia e charme de nos fazer decifrar a tirania de Siracusa; Cludio Duarte pelo apoio
e discusses instigantes sobre a Hlade, Danilo Tabone, pelas interessantes
discusses sobre a teoria arqueolgica no momento de atravessar As Termpilas para
entrar na Ps-Graduao, Irmina Doneux, pelo convvio amigvel, pela simpatia e
solidariedade, na certeza de continuarmos indestrutveis perante os golpes do destino e
Luciano Knopo, amigo de tantos anos, companheiro dos tempos de Juiz de Fora em
que lutvamos pela musa Clio e j dava os primeiros passos rumo arqueologia.
Aos labequianos da primeira, segunda e terceira gerao: Paulo Marcondes,
Cibele Aldrovandi, Slvio Cordeiro, Patrcia Pontin, Maria Cristina Abramo, Daniela
Puccini, Tatiana Bina, Christiane Teodoro, Gustavo Peixoto, Isabel Catnio, Rodrigo
Lima, Giovanna Quatrini, pelo espao de pensar a Cidade Antiga, de conviver, trabalhar,
discutir e estreitar os laos da Filia.
Por fim, aos amigos que conquistei na ptria de Ricardo Reis: Manuela Roriz,
Nuno Alves, Miguel Pires, Nuno Partidrio, Simona Vermeire e Ana Vieira, por tornarem
o meu idlio lusitano um belo passeio existencial.
Sbio o que se contenta com o espetculo do mundo, E ao beber nem recorda Que j bebeu na vida,
Para quem tudo novo E imarcescvel sempre.
Coroem-no pmpanos, ou heras, ou rosas volteis,
Ele sabe que a vida Passa por ele e tanto
Corta flor como a ele De tropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgaco Apague o gosto s horas,
Como a uma voz chorando O passar das bacantes (...).
Riardo Reis, Odes
19 de junho de 1914
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Resumo
Na contemporaneidade nenhum deus da Grcia antiga exerce tanto fascnio
quanto o deus do vinho, Dinisos. Filho de Zeus e de Smele, perseguido por Hera,
protegido por Hermes e duas vezes nascido, estranho estrangeiro, veste mscaras,
coroado de hera, senhor da videira, impera nas Antestrias e nas Lenias, est
representado nos textos antigos, em vasos, frisos, frontes e nos legou o lugar de sua
identidade, o teatro. O teatro por excelncia o espao de Dinisos. Livre e libertador, o
deus a cu aberto, com o passar do tempo tem para si um espao singular. A presente
pesquisa se detm na arquitetura teatral como uma tecnologia simblica e sua
disposio na paisagem para tentar compreender os cdigos implcitos que denotam
indcios de uma comunicao no verbal, presente no ambiente construdo. Entendemos
lugar como um conceito relacional, repositrio de sequncias e aes que se torna parte
da tradio de um povo. Aliamos documentao textual s fontes materiais e, para
desenvolver nosso tema, selecionamos um repertrio com dezesseis teatros do mundo
grego. Na Grcia situam-se nas seguintes cidades: Atenas, Argos, Delfos, Delos,
Dodona, Epidauro, Mileto, Priene e Sicione. Na Itlia eles esto localizados em Heracleia
Minoa, Lcris, Metaponto, Morgantina, Segesta, Siracusa e Taormina. Utilizamos o
nosso corpus documental como um registro a revelar aspectos do culto dionisaco na
plis grega do sc. VI ao III a.C.
Palavras-Chave: Dinisos, Teatro Grego; Arquitetura Teatral; Plis; Paisagem.
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Abstract
In the contemporary world, there is no other ancient Greek god who is found as
fascinating as Dionysus, the god of wine. Son of Zeus and Semele, pursued by Hera,
protected by Hermes and twice-born, strange foreigner, wearer of masks, crowned with
ivy, lord of the vines, he is represented in ancient texts, vases and friezes, and he
bequeathed to us the home of his identity: the theatre. The theatre is the Dionysian space
par excellence. Liberated and liberating, the god of the open sky, with the passing of time
he comes to possess a singular space for himself. This research project focuses on
theatrical architecture as a symbolic technology, and on its use within the landscape, with
the aim of understanding the implicit codes that denote the indices of a non-verbal
communication present in the built environment. Space is understood as a relational
concept, a repository of sequences and actions that become part of a peoples tradition.
We will link textual documents to material sources and, in order to develop the subject
further, we have made a selection of sixteen theatres in the Greek world. In Greece, they
are situated in the following cities: Athens, Argos, Delphi, Delos, Dodona, Epidaurus,
Miletus, Priene and Sicione. In Italy, they are located in Heracleia Minoa, Locri,
Metaponto, Morgantina, Segesta, Syracuse and Taormina. We will use our body of
documents as a register through which to reveal aspects of the Dionysian cult in the Greek
polis during the period VI-III BC.
Key words: Dionysos, Greek Theatre; Theatrical Architecture, Plis; Landscape.
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. , , , Metaponto, Morgantina,
Segesta, Taormina.
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VI - III . .
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SUMRIO
PRELDIO .................................................................................................................................... CAP. 1. O DEUS TRGICO NA GRCIA PAROUSA, EPIFANIA E ERRNCIA...................
01 08
1.1. Dinisos Eleuthrios e seu espao ............................................................................... 08 1.2. Dinisos e seus eptetos o inventrio de um deus elusivo .................................... 21 1.3. O deus, seu nascimento e sua errncia ........................................................................ 25 1.4. Dinisos e seu culto na Hlade...................................................................................... 37 1.5. Os mistrios dionisacos ............................................................................................... 47 CAP. 2. DINISOS NA PLIS: O DEUS, O TEATRO E SUAS FESTAS................................... 56 Intrito: O teatro, a plis.............................................................................................................. 56 2.1. Dinisos na khra ............................................................................................................ 58 2.2. O calendrio tico. ...................................................................................................... 58 2.3. As festas em honra ao deus ............................................................................................ 60 2.4. Dionsias Rurais - ta katagrous Dionsia ...................................................................... 62 2.5. Leneias............................................................................................................................... 63 2.6. Antestrias ....................................................................................................................... 65 2.7. Dinisos na sty ............................................................................................................... 67 2.8. Dionsias Urbanas ou Grandes Dionsias - Dionsia ta astik/Dionsia ta en stei... 68 CAP. 3. TRAGDIA GREGA ESPETCULO E DIONISIMO NA PLIS .................................. 73 3.1. Theatron As origens religiosas da tragdia ................................................................. 75 3.2. Tragdia, tirania e dionisismo na plis grega .................................................................. 85 3.3. Um novo reordenamento polade e o discurso visual do tirano ................................... 90 3.4. khra e sty para um deus a cu aberto ......................................................................... 93 3.5. Dinisos Trannos o espao selvagem espao domesticado no contexto das grandes dionsias ........................................................................................................................
97
CAP. 4. DINISOS DESMTES O DEUS EM PEDRA NA PLIS E A SUA EXPRESSO MATERIAL ....................................................................................................................................
103
4.1. Corpus documental o repertrio dos teatros da Grcia e do Ocidente grego ......... 103 Apresentao ............................................................................................................................... 103 4.2. O teatro e seus elementos essenciais forma e disposio .......................................... 106 4.3. Grcia ................................................................................................................................ 112 4.4. Ocidente Grego ................................................................................................................. 147
VENERI, A. Dionysos in: LIMC, vol III/1 e 2,
n. 151.
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SUMRIO
4.5. Grafar a plis em pedra: a questo da agncia e a singularidade do teatro grego antigo ............................................................................................................................................
176
4.6. Sntese interpretativa do corpus documental ................................................................... 179 CAP. 5. DINISOS ELEUTHRIOS O DEUS A CU ABERTO E SUA PAISAGEM ....... 188 5.1. Introito: pontos de uma paisagem apreendida pelo olhar ............................................... 188 5.2. Espao, lugar, paisagem ..................................................................................................... 191 5.3. A paisagem como conceito ................................................................................................. 194 54. Oinops pontos: Dinisos, o teatro e o mar da cor do vinho ............................................. 201 5.3. Dinisos a cu aberto materializado na paisagem da plis ............................................. 204 CONSIDERAES FINAIS ...................................................................................... 225 REFERNCIAS ............................................................................................................................. 229 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................................. 231
VENERI, A. Dionysos in: LIMC, vol III/1 e 2,
n. 151.
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PRELDIO
Pelo seu fascnio o dionisismo chamou a ateno de inmeros
estudiosos, inspirando reflexes sobre sua natureza e funo na plis grega.
Algumas delas, por sua importncia e originalidade, j so consideradas
clssicas, como os trabalhos desenvolvidos por Nietzsche (1992), Otto (2001),
Jeanmaire (1980) e Kernyi (2004). No que concerne ao dionisismo tais
contribuies carregam consigo anlises profcuas ao arquelogo e historiador,
bem como problemas de interpretao e leitura.
Numa dissertao que tenha como ponto central o teatro antigo de
dezesseis pleis do mundo grego e sua inter-relao com o culto de Dinisos
impossvel no citar alguns autores. Nietzsche (1992) e o seu Nascimento da
Tragdia constantemente revisto no mundo contemporneo. Sua viso tem
sido revista, muitas vezes criticada, mas ainda assim, continua sendo uma
referncia nos estudos sobre o dionisismo.
Quanto a W. Otto, que define o deus como um deus delirante, o faz
utilizando Homero, sem o citar, pois o autor da Ilada se refere ao deus como
mainmenos Dionsos, o delirante Dinisos. Segundo Kernyi, se por um
lado Otto acerta, indo buscar em Homero a melhor definio para o deus do
vinho, por outro ele se equivoca ao alertar para o mundo dionisaco como um
mundo de mulheres, aludindo parturio e cuidado de crianas. Na
percepo de Kernyi a comparao do dionisismo com uma epidemia
religiosa consiste no nico elemento que se configura aceitvel para o
pensamento cientfico, e isto foi resgatado por E. Rohde, que levantou a tese
de uma religio estrangeira na Trcia, Rodhe deu tese de Nietzsche uma
sustentao histrica e ao mesmo tempo corrigiu-a (Kernyi, 2004: 113-121) e
pintou o quadro de um deus estrangeiro sensibilidade helnica (Trabulsi,
2004: 13). Para Rodhe o dionisismo representou, na cultura grega um corpo
estranho, alhures, sua origem vinha da Trcia, muito particularmente entre
suas estirpes trcias meridionais (Rohde, 1973: 308-317). J segundo Vernant,
no h como sair do problema do carter estrangeiro do dionisismo, pois essa
estranheza o historiador a assinala ao rejeitar a origem do deus fora das
fronteiras da Grcia, na Trcia. Mas essa exterioridade de origem , ela
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prpria, um postulado que se imporia ao helenista como uma evidncia
(Vernant & Vidal-Naquet, 1999: 338). Para W. Burkert, com a anttese entre
Apolo e Dinisos, Nietzsche pensou ter encontrado a chave para a histria
espiritual dos gregos, bem como a chave para a essncia da arte, o sonho em
oposio ao devaneio, a forma e a definio em oposio dissoluo e
destruio. Assim, o apolneo e o dionisaco, para Burkert, ganharam
significado e uma vida prprios, tornando-se desse modo quase independentes
da sua origem na religio grega (Burkert, 1993: 434). A interpretao do autor
do Nascimento da Tragdia hbrida, um de seus erros, mesmo se valendo
da tradio e inspirando-se em Eurpides, ignorar as mnades que, depois de
Dinisos, so as personagens mais importantes no mito. O prevalecimento de
um exagerado lance explosivo a retratar o dionisaco , segundo Kernyi, a
contribuio de Nietzsche, posio que influenciar as obras de Otto, Nilsson,
Jeanmaire e Dodds, que identificaram o ncleo da religio dionisaca na
experincia orgistica do deus e seus fiis (Kernyi, 2004: 119-122).
H. Jeanmaire outro importante estudioso que analisa o dionisismo.
Segundo Trabulsi, ele tem o grande mrito do comparatismo antropolgico,
mas nem sempre foi capaz de evitar, ao estabelecer uma analogia entre os
diversos xtases contemporneos e o dionisismo antigo, os preconceitos que o
nosso mundo carrega. No entanto, Trabulsi salienta proficuamente que
Jeanmaire, mesmo tendo a grande desvantagem de escrever seu livro antes da
decifrao da linear B, detm uma anlise e uma obra cuja solidez faz com que
conserve uma atualidade impressionante (Trabulsi, 2004: 14). J Kernyi, por
um lado, se fundamenta numa ampla pesquisa com um incomensurvel
nmero de fontes, o que d ao seu trabalho um inegvel reconhecimento; por
outro lado, ele se atm a um modelo Junguiano, estabelecendo arqutipos a
partir do mundo antigo, o que para Trabulsi, um caso mais grave que o de
Nietzsche, no que concerne anlise do dionisismo (Trabulsi, 2004: 13-14).
Entendemos que, eventualmente, a abordagem Junguiana de Kernyi no
contribui para o nosso conhecimento do dionisismo, uma vez que prende o
culto antigo a arqutipos fixos, concebidos para explicar a psiqu humana
contempornea, desconfigurando uma anlise histrica do deus do vinho e de
seu culto. No entanto, preciso frisar que mesmo com sua abordagem
junguiana a documentao levantada por este autor imprescindvel a
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qualquer pesquisador que se debruce sobre Dinisos. Seu levantamento
exaustivo de fontes textuais e arqueolgicos consiste num valioso inventrio ao
pesquisador. O trabalho de Marcel Detienne, Dioniso a cu aberto (1990) um
importante contributo aos estudos sobre o deus do vinho. Detienne procuro o
aspecto de um deus a cu aberto, o que nos interessa na nossa prpria
interpretao da documentao material.
No Brasil os estudos acerca do dionisismo tm avanado
paulatinamente, existem algumas produes acerca da iconografia de Dinisos
desenvolvidas na Universidade de So Paulo: dentre estas destaquemos o
trabalho de M. B. Florenzano acerca da representao de Dinisos nas
moedas gregas e o trabalho de H. Sarian, com sua leitura iconogrfica dos
personagens Hracles e Dinisos na nfora tica do Museu de Arqueologia e
Etnologia da Universidade de So Paulo. Citemos enfim, um dos trabalhos
mais significativos sobre o dionisismo desenvolvido por um pesquisador
brasileiro: Dionisismo, poder e sociedade na Grcia at o fim da poca
clssica, obra de Jos Antnio Dabdab Trabulsi. Trabulsi analisa num perodo
de longa durao, que vai da poca arcaica at o fim da poca clssica, o
dionisismo e sua relao com o poder no sistema polade, demonstrando que
Dinisos ao ser domesticado serve como aparelho ideolgico do Estado
(Trabulsi, 2004: 145). O referido trabalho uma importante e valiosa referncia
para os pesquisadores que abordam o tema.
Entre as contribuies mais recentes sobre o dionisismo devemos citar
ainda os autores vinculados ao Centro Louis Gernet da Frana. Alm do
prprio Gernet, Detienne, Vernant, Vidal-Naquet, Daraki, Lissarrague,
Villanueva-Puig, pesquisadores que se atm a uma leitura antropolgica, alm
de acrescentar ao debate inaugurado pela obra de Nietzsche importantes
reflexes acerca de Dinisos, seu culto e sua permanncia na Grcia antiga.
Tais contribuies, entre outras, associadas aos textos antigos e
documentao material nos permitiro ter uma percepo mais acurada sobre
o problema de Dinisos e sua expresso material no teatro grego antigo das
pleis da Grcia e de suas apoikias.
Com relao materializao do dionisismo na cidade grega, devemos
citar os estudos que lidaram, aqueles que se debruaram sobre o teatro como
espao fsico definido na plis. Um importante passo na sistematizao dos
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estudos do teatro antigo foi dado por Daremberg e Saglio no sculo XIX com
seu Dictionnaire des Antiquits grecques et romaines, fornecendo informaes
sistematizadas acerca da histria e da forma do teatro, inclusive alguns
resultados das escavaes no teatro de Dinisos em Atenas, realizadas pelo
pesquisador alemo M. Drpfeld. Nos anos subsequentes. Nas dcadas de 40
e 50, tem-se o trabalho de Pickard-Cambridge e Roland Martin, quase
contemporneos a trazer importantes contribuies acerca do teatro, o primeiro
com uma anlise cuidadosa e acurada do teatro de Dinisos em seu Theatre of
Dionysus in Athens (1946), e o segundo com o j clssico LUrbanisme dans la
Grce Antique (1956), a discutir o princpio funcional nos planos ortogonais e a
especializao de zonas de agrupamento, percebendo nos ambientes
construdos como santurios e goras, teatros e ginsios, peas constitutivas
da monumentalizao da cidade que modelam traos originais da vida
helnica. Embora criticado por alguns autores, a originalidade do trabalho de
Martin revela importantes questes no que tange ao urbanismo na Grcia
antiga.
M. Bieber deu um passo significativo ao publicar, na dcada de 60, seu
livro The History of the Greek and Roman Theater, (1961) ainda hoje uma obra
de referncia para os estudiosos do teatro grego e romano no que concerne ao
seu aspecto material. Tais autores se empenharam em recolher provas
materiais acerca do teatro antigo, mas foi T. B. Webster, segundo J. Green,
particularmente quem se ateve necessidade de sistematizar o diversificado
corpo material at ento utilizado como prova (Green, 1994: xiii). Dentre as
produes de T.B. Webster mais significativas esto: Greek Theatre Production
e Ilustrations of Greek Drama, esta ltima em coautoria com A.D. Trendall
(1971), a sistematizar valiosas informaes sobre a iconografia do teatro
presente nos vasos ticos. Ainda sobre o aspecto iconogrfico no poderamos
deixar de citar o significativo trabalho de T. Carpenter (1986), publicado na
dcada de 80, um estudo minucioso a traar o desenvolvimento da imagem de
Dinisos nos vasos ticos de figuras negras, percebendo a originalidade da
criao da imagem do deus por toda a tica. No rol das produes mais
recentes no deixemos de citar os trabalhos de J. Green (1994),
particularmente seu Theatre in Ancient Greek Society, influenciado por
geraes de estudiosos do tema, mais especificamente M. Bieber, A.D.
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Trendall e T.B. Webster, citados acima. Temos ainda os trabalhos
desenvolvidos por L. Polacco: Il teatro de Dioniso Eleutereo ad Atene (1980) e
Il teatro antico di siracusa. (1992). Por ltimo mencionemos o inovador trabalho
de M. Pearson & M. Shanks com seu Theatre Archaeology, publicado em 2001,
que se prope a lanar novos enfoques sobre o tema, abordando questes que
envolvem a complexa interpretao de dois discursos, aproximando projetos
que fundem performance e arqueologia na dinmica interpretao do passado
material. Dentre os trabalhos atuais no poderamos deixar de lado o
importante trabalho de Jean-Charles Moretti (2011) e seu Thatre e Societ
dans la Grce Antique (2011) e Peter Wilson que editou a obra The Greek
Theatre and Festivals (2007). Tais autores matizam com novas cores os
estudos sobre o teatro grego antigo.
Concordamos com R. Martin ao afirmar: A histria da Arquitetura do
teatro grego no perfeitamente clara; muitos edifcios so ainda mal
conhecidos porque a explorao permanece inacabada ou porque a publicao
insuficiente (Martin, 1956: 281). Por certo, o avano nas pesquisas, por meio
dos novos problemas colocados pela Arqueologia clssica e pela Histria
antiga, tem propiciado resultados profcuos e alterado o cenrio apontado por
Martin.
Ante tantas contribuies o nosso intuito foi tecer algumas
consideraes acerca do dionisismo sob o prisma da arqueologia, tentando
estabelecer alguns elementos que configurasse a expresso material do deus,
aspectos do seu culto, bem como reflexes acerca do teatro na paisagem da
plis.
No primeiro captulo: O deus trgico na Grcia parousia, epifania e
errncia, procurou-se estabelecer algumas consideraes acerca do espao
do deus, seu mito e seu culto. Priorizamos a narrativa para estabelecer uma
sntese do culto dionisaco do perodo arcaico at o helenstico.
No segundo captulo: Dinisos na plis: o deus, o teatro e suas festas
foi estabelecida uma discusso sobre o teatro no contexto das festas
dionisacas para visualizarmos um quadro da institucionalizao do teatro na
Grcia.
J o terceiro captulo: Tragdia grega espetculo e dionisismo na
plis, evisitou o debate sobre o surgimento da tragdia e sua inter-relao com
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a tirania. Procuramos tecer algumas consideraes acerca da relao sty e
khra na Grcia e finalizar com a questo da tirania e do agrilhoamento do
deus no contexto das dionsias urbanas.
O quarto captulo: Dinisos Desmtes - O deus em pedra na plis e a
sua expresso material composto pelo nosso corpus documental, com
aspectos fsicos materiais dos dezesseis teatros que ora analisamos. Ao final
fizemos uma pequena sntese interpretativa da nossa documentao,
priorizando os aspectos do teatro relacionado aos espaos sagrados e aos
espaos cvicos.
O quinto e ltimo captulo: Dinisos Eleuthrios - o deus a cu aberto e
sua paisagem na plis, se atm a reflexes sobre o teatro grego e a paisagem.
Foi estabelecido um pequeno debate sobre os conceitos de espao, lugar e
paisagem. Como em nosso repertrio alguns teatros esto voltados para o mar,
resolvemos tocar na questo do mar para os gregos. Estabelecemos uma
pequena discusso sobre esta questo, utilizando dois tipos de documentao:
a textual e a iconogrfica. A saber o hino homrico a Dinisos e a cena da
famosa taa de Vulci, pintada por Exquias. Ambos a tratar do episdio de
Dinisos e os piratas. Estes dois tipos de documentao, bem como uma
pequena sntese acerca da metfora oinops pontos, so uma introduo para a
analisarmos os dezesseis teatros que compem o nosso repertrio. Ao ler a
documentao material priorizamos qual a configurao do teatro grego em
relao paisagem polade da Grcia e do Ocidente grego. A nosso ver, esta
materializao do deus do vinho que expressa, por meio do seu espao, a
totalidade da plis.
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PARTE I
DECODIFICAR DINISOS DO ARCAISMO AO PERODO HELENSTICO
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CAP. 1
1. O DEUS TRGICO NA GRCIA PAROUSIA, EPIFANIA E ERRNCIA
O teatro , no mundo grego, uma forma de se tornar outro.
Jean-Pierre Vernant
1.1 Dinisos1 Eleuthrios e seu espao
No Panteo faltavas. Pois que vieste
No Panteo o teu lugar ocupa,
Mas cuida no procures
Usurpar o que aos outros devido.
Panteo que preside
nossa vida incerta.
Nem maior nem menor que os novos deuses,
()
Trouxeste algo que faltava
Ao nmero dos divos.
Por isso reina a par de outros no Olimpo
Odes, Ricardo Reis
O aedo Ricardo Reis nas trs estrofes acima est a falar de Cristo e diz
no menosprez-lo ou odi-lo. Para alm dos inmeros paralelos que j se fez
entre Cristo e Dinisos, ocultado o sujeito a quem se dirige o belo poema do
aedo, ele poderia sim, referir-se ao deus do vinho. Por muito tempo, ele reinou
a par de outros no Olimpo, mas foi reconhecido e seu culto penetrou na Hlade
com uma fora que o fez materializar-se em estelas, vasos, moedas e esttuas,
dentre outros suportes materiais, e a ter para si um lugar a cu aberto, o teatro,
em certa medida a par dos deuses no Olimpo, numa epifania e parousa
prprias, onde sua presena se firma ante o grego antigo como um deus
1 Sabemos que o nome Dioniso j est consagrado no vernculo, mas preferimos na presente dissertao
utilizar o nome Dinisos, por estar mais prximo da grafia do nome do deus em grego.
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diferente, estrangeiro e livre dos grilhes de um templo; seu lugar o torna livre
em sua prpria expresso material.
importante salientar que todo estudioso, seja este arquelogo,
historiador ou de outras disciplinas, que se debrua sobre a histria da Grcia
se depara com o paradigma de Atenas. Ela um paradigma tanto pelas fontes
textuais, quanto pela documentao material. Isso no diferente nos estudos
que se referem a Dinisos. O volume de documentao textual sobre o deus e
suas festas, bem como sua presena nas obras dos trgicos e dos
comedigrafos, muito vasto. Mesmo tentando sair de uma posio
atenocntrica, tomaremos este paradigma como ponto de partida para tentar ir
alm desta viso e chegar a algumas reflexes acerca do culto de Dinisos em
dezesseis pleis do mundo grego, situadas geograficamente na Grcia e na
Itlia.
Retomando ao lugar do deus que configura sua expresso material nos
perguntamos: se o deus, transposto da Becia at Atenas se firma num lugar,
tem seu prprio espao, onde Dinisos est? Esse deus livre, libertador, com o
passar dos anos vai se materializando, primeiro em madeira, depois em pedra,
a sua expresso material ganha formas. Primeiro um crculo de terra batida se
firma no cho, em seu centro os gregos dispem a Thymle, e este o local
onde se canta e se dana em honra ao filho de Zeus. Paulatinamente seu
espao toma a seguinte forma: bancos retos numa estrutura de madeira,
depois de aproveitado o sop da encosta da Acrpole, o lugar do deus se firma
em pedra e passa a ter a forma de uma ferradura, o theatron ou kolon, lugar
para ver, se abre para a cidade. Firmado na plis, o teatro torna-se seu
espao e associado a ele h sempre um santurio. Dinisos no tem para si a
grandiosidade de um templo, como seu pai o Porta-gide tem em Olmpia. O
seu lugar a cu aberto. Em Bacchos au coeur de la cit, ao falar acerca do
thasos dionisaco e seu espao poltico, os autores demonstram bem a
dimenso potico-religiosa do deus evidenciada pela sua materializao no que
tange ao seu lugar
A verdade que o lugar da possesso dionisaca no em certos
lugares da cidade, mas nos antros rochosos das colinas arborizadas
que circundam as plancies cultivveis. O imaginrio nos mostra o
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deus a chegar primeiro entre caadores, ele desce para cidade num
segundo momento. Se ele obtm direitos de permanecer na cidade
graas ao teatro. E verdade que a grande maioria dos templos
dionisacos esto estreitamente articulados a um teatro. No
deixemos de mencionar Atenas e Ertria, para nos ater a um conjunto
bem conhecido. No entanto, no devemos esquecer que o quadro
arquitetural do teatro grego pode abrigar reunies das mais diversas
origens e que as origens religiosas do teatro pode abarcar ainda
inmeras questes. O teatro de Dinisos em Atenas possui um
santurio muito modesto que se apaga no flanco sul da Acrpole. No
IV sec. em Ertria, no entanto, o teatro, graas aos trabalhos de
terraplanagens colossais, se integra harmoniosamente ao lado do
templo de Dinisos, num ambicioso programa de delineamento que
remodela completamente o norte da cidade. Mas, como escreveu
Roux, Dinisos tem que ser bloqueado no quadro suntuoso e
artificial da arquitetura humana (Brard & Bron, 1986: 13-14).
Os autores acima evidenciam o aspecto poltico do espao dionisaco e
Rush Rehm na sua obra The Play of Space Spatial Transformation in Greek
Tragedy, nota que h vrias categorias de espao no teatro, dentre estas o
espao arquitetural (Rehm, 2010: 1-3). Ainda no tocante leitura do espao,
temos a leitura de Amos Rapoport (1982: 58), a nos mostrar que o espao
fsico fornece indcios que limitam ou guiam, sem contudo determinar o
comportamento do indivduo em uma situao social, havendo um cdigo que o
ambiente construdo detm. O espao, na anlise de Rapoport, ao fornecer tais
indcios do comportamento em cada contexto, viabiliza uma comunicao no
verbal que pode ser apreendida, sendo possvel distinguir os seus efeitos
diretos e indiretos nas pessoas (Rapoport, 1978: 16-7). Interligando a leitura de
Rapoport de Chouquer, entendemos que a anlise das formas construdas
no coloca o pesquisador diretamente na presena de fatos antigos, mas o
coloca diante dos fatos antigos transformados. Assim, para este autor o espao
uma fonte essencial de anlise e as redes de formas so o material desta
anlise, havendo a necessidade de espacializar, de integrar a uma rede
quando esta existe, eis uma necessidade fundamental para poder compreender
o sistema do passado (Chouquer, 2000:104;115). Tanto em Rapoport quanto
em Chouquer o espao e a anlise das formas construdas nos fornecem
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cdigos que podem ser decodificados pelo pesquisador, colocando-o mais
prximo possvel do passado. Sob essa perspectiva, ao analisar o teatro
antigo, o entendemos como um ambiente construdo e como tal, configurado
como um registro da histria da sociedade grega, como um artefato histrico
(Florenzano: 2006: 1). Mike P. Pearson e Colin Richards concebem o ambiente
como um artefato cultural e veem a arquitetura como uma tecnologia simblica
e por isso afirmam que
O espao uma prtica (ou nossas aes cotidianas), mas tambm
smbolo e poderamos conceber a arquitetura como tecnologia
simblica. Os significados que so dados a lugares e ordem
espacial, no so fixos ou dados aleatoriamente, mas podem ser
evocados no contexto da prtica e de sua recorrente utilizao. Os
significados aderem a um quadro somente por meio da mediao da
atividade humana. No entanto a capacidade de reinterpretar e alterar
significados e ideologias limitado pela ordem espacial j existente.
Em outras palavras podemos fazer histria no como queremos, mas
em circunstncias que no somos ns prprios que as escolhemos. A
relao entre forma espacial e ao humana mediada pelo
significado. As pessoas ativamente do seus significados ao
ambiente fsico, e costumam agir de acordo com esses significados
(Pearson & Richards, 2005: 4).
Poderamos dizer ante as consideraes sobre o espao como uma
prtica e o ambiente como artefato cultural, que estas perspectivas de anlise
nos levam a visualizar o teatro grego antigo disposto na paisagem, que
manifesta um simbolismo prprio a revelar aspectos do culto e suas interaes
na sociedade da Grcia e de suas apoikias. Ainda sob o prisma dos autores
acima citados a relao que se d entre forma espacial e ao humana
mediada pelo sentido pode ser visualizada na arquitetura e ordem de
determinado ambiente construdo, por isso Pearson e Richards novamente
sinalizam que:
A arquitetura incorpora e expressa certos princpios de ordem e
classificao. Pois um espao cultural construdo num contexto
definido, onde as pessoas realizam atividades especficas em
determinados momentos. Elas se movem atravs de seus limites e
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realizam aes em lugares apropriados. Assim, o significado
realizado atravs de prticas sociais. Tal contingncia permite uma
redefinio do espao sem necessariamente alterar as suas
propriedades fsicas. Para o arquelogo a cultura material e sua
natureza reflexiva podem ser reveladas nas possveis mudanas do
significado espacial de uma dada forma arquitetnica (Pearson &
Richards, 2005: 36).
Esta perspectiva claramente problemtica, segundo os autores. No
entanto, no seu entender, ela no representa um obstculo intransponvel e os
dados arqueolgicos, se analisados com um rigor metodolgico, podem nos
mostrar a arquitetura e sua ordem num contexto social. Ao expressar princpios
de ordem e classificao, o teatro antigo grego, sua insero no lugar, delineia
o que podemos chamar de contexto arqueolgico; como um dos elementos
constitutivo da plis, o teatro um artefato cultural e pode, como registro
arqueolgico, nos remeter a uma importante reflexo, para isso nos atemos
percepo de John Barret, a notar que determinadas prticas levam ao
conhecimento do registro arqueolgico e por isso ele nos mostra que
A evidncia arqueolgica no precisa ser vista como o "registro"
significativo de vrias manifestaes sobre o passado. Em vez disso,
pode ser vista como vestgios residuais de uma gama muito
diversificada de materialidades. Estas materialidades eram
interpretadas luz de pressupostos e preconceitos sobre a natureza
do mundo. A validade dessas hipteses foi experimentada e
monitorada atravs da prtica, uma avaliao emprica levada adiante
por disposies corporais e sensoriais, bem como discursivamente.
Como arquelogos, podemos investigar como essas diferentes
materialidades podem ser conhecidas, as prticas atravs das quais
os conhecimentos foram realizados e monitorados, e as
consequncias dessas prticas (Barret, : 81).
As nossas consideraes sobre o teatro grego antigo e os indcios que
ele nos fornece para entender aspectos sociais da Grcia antiga nos fazem
alinhar as perspectivas tericas visualizadas acima com a discusso sobre o
lugar na arqueologia. Maria Nieves Zedeo e Brenda Bowser no texto The
Archaeology of Meaningful Places, concebem lugar como a juno entre
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ambiente, povo e significado convergindo em mltiplas escalas, em processos,
criando o registro do comportamento, percepo e cognio. Para as autoras o
lugar transformado devido aos prprios agentes sociais que estabelecem e
mantm esta transformao. O registro arqueolgico quando relacionado com
o lugar pode revelar aspectos sociais. Lugar um repositrio de sequncias e
aes, que atravs do tempo torna-se parte da tradio de um povo (Bowser &
Zedeo, 2008: 1). Isso nos fez lembrar Julian Thomas que concebe lugar no
como uma coisa ou entidade, mas um conceito relacional. O espao
transformado em lugar atravs da interveno humana. Nesse sentido, se
tomarmos lugar como paisagem, esta pode ser vista como uma estrutura
integradora, como um contexto que interconecta os atos humanos dispersos,
significativamente. A paisagem, para Thomas um mundo familiar no qual as
pessoas realizam suas tarefas. (Thomas, 2001: 171-3). Tanto as autoras
quanto Julian Thomas nos mostra que os lugares no so simplesmente
passivos, mas eles exercem agncia sobre ns e ns sobre eles. O homem
no est dentro de um ambiente totalmente inanimado, mas ele interage com o
territrio e medida que o cria, o territrio interage com ele. Sob esta
perspectiva terica, a da Arqueologia da paisagem, buscaremos entender o
teatro grego antigo inserido na planta da cidade, como parte integradora do
lugar que ao ser colocado na malha urbana e ser integrado aos elementos
geogrficos sua volta, a expresso material do teatro revela-nos aspectos do
culto dionisaco. Este ponto da nossa reflexo ser abordado no captulo de
anlise do nosso corpus documental.
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O teatro de Delfos de frente para o templo de Apolo, integrado paisagem do Parnaso. Acervo Laky 2009.
Na perspectiva aqui adotada h uma convergncia entre arqueologia e
histria. No tocante ao trabalho ora desenvolvido e a linha adotada no Labeca,
Laboratrio de Estudos sobre a Cidade Antiga, nos deparamos com um mundo
grego rico e diversificado. A documentao material e textual nos coloca ante
um verdadeiro caleidoscpio que o mundo helnico, seja na Grcia seja em
suas apoikias. O passado, especificamente o passado materializado, atua
singularmente na formao de identidades de grupos e indivduos. O vis
adotado em nosso trabalho estabelece uma conexo entre textos e artefatos.
Um trabalho que verse sobre Arqueologia Clssica necessita dar conta da
materialidade do texto, assim nos valemos das reflexes de Anders Andrn, a
salientar que
Como objetos, os artefatos e os textos so idnticos, uma vez que
todos os textos so artefatos. Esta perspectiva material da escrita
importante a partir de vrios pontos de vista. (...) O estudo dos
primeiros textos levam a questes, tais como: o material em que os
textos so escritos e a forma da escrita. A perspectiva do objeto
tambm pode explanar que h grandes semelhanas entre a crtica
das fontes histricas e arqueolgicas. Em ambos os casos, a fonte
escrita pode incluir a questo do grau de preservao da fonte
material. E em ambos os casos o grau de preservao depende das
aes dos homens bem como dos processos naturais no decurso dos
sculos. A caracterstica material dos textos tambm tem sido usada
metodologicamente em larga escala nos estudos histricos (Andrn,
1998: 147). (Grifo nosso)
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A perspectiva material da escrita faz com que a musa Clio se apresente
unida arqueologia. Carlo Ginzburg, ao discutir sobre o paradigma indicirio,
nos mostra que o conhecimento histrico indireto, conjectural e que a histria,
como cincia sui generis, est irremediavelmente ligada ao concreto (Ginzburg,
1989:156-7). Nesse sentido ela se aproxima da Arqueologia. A. Snodgrass
ressalta a convergncia entre a arqueologia e a histria e mostra que a
arqueologia, com sua anlise cuidadosa de um vasto corpo de documentao
material, pode lanar luz sobre questes muitas vezes inacessveis ao
historiador. Sob esse prisma a aliana entre histria e arqueologia muito
profcua e tais resultados arqueolgicos podem dizer tanto quanto a linguagem
usada pelas fontes documentais (Snodgrass, 1985: 193-5). A. Chevitarese nos
faz refletir sobre os mecanismos que o pesquisador pode utilizar para se
chegar confirmao de sua hiptese: a realidade documental subentende um
conjunto de informaes potenciais de diversas naturezas: textos antigos
diversificados e vestgios materiais heterogneos (Chevitarese, 1997: 14).
Refletindo sobre esta aliana, a associao dos vestgios materiais s fontes
textuais e documentao dos teatros nos coloca ante um quadro em que
possvel analisar o dionisismo no contexto da plis grega antiga, aspectos do
culto dionisaco e de sua expresso material no urbanismo e relacionado
paisagem da Grcia arcaica e clssica. O teatro grego antigo disposto num
espao prprio na paisagem nos fornece aspectos da vida cvica da sociedade
grega que est amalgamada vida religiosa. O aspecto religioso diretamente
relacionado ao teatro pode ser evidenciado por meio de trs fontes: os
vestgios arquiteturais, os quais demonstram que associado ao espao do
teatro, para alguns casos, h um local de culto; as fontes textuais que incidem
num j consolidado debate sobre as origens da tragdia associada ao deus e a
suas festas, tratada mais adiante num outro captulo; a imagtica do deus
presente nos vasos ticos de figuras negras e figuras vermelhas que associa
as imagens do deus e seus seguidores s tragdias e comdias, tanto em
vasos da Grcia como da Magna Grcia e Itlia do Sul. Jean-Charles Moretti
salienta que em Atenas, como em outros lugares, o teatro servia tambm
regularmente s reunies da assembleia do povo ou outras reunies polticas.
As reunies da ekklesa, segundo o autor, eram mais frequentes que os
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concursos musicais. Portanto, a cada ano o teatro foi mais utilizado para
reunies polticas que religiosas (Moretti, 2009: 23).
Planta da Acrpole de Atenas. O teatro de Dinisos direita e sua ligao com a sto de Eumenes e o Odeon de Herodes tico (Benevolo, 2003: 90).
O fato do teatro estar intrinsecamente ligado vida cvica notado por
inmeros autores, os outros edifcios prximos a ele demonstram esta relao.
Segundo Hurwit, ao estudar o teatro de Atenas, a relao entre o teatro de
Dinisos e o Odeon visvel na documentao arqueolgica. Na segunda
metade do sculo V o Odeon tomou um lugar de maior importncia sob a
administrao de Pricles. Hurwit salienta que a evidncia arqueolgica e
literria sugere que nesse perodo o teatro de Dinisos permaneceu um lugar
modesto, no sendo aumentado nem reconstrudo at o sec. IV a.C (Hurwit,
1999: 217).
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Planta do teatro de Dinisos. Ao seu lado direito o Odeon de Pricles (Connolly, 1998: 99).
Outra relao entre o teatro e uma construo pblica se torna evidente
na forma da Pnyx. Como o teatro, a Pnyx tem uma centralidade em sua
localizao, como salienta Malaco, ela tambm combinava a altitude do terreno
com a inclinao de sua cvea, aproveitando sua declividade (Malaco, 2002).
Na Pnyx a ateno estava centrada no orador. O teatro numa situao
semelhante amarrava uma percepo visual ntida de uma figura distante a
uma voz que soava mais prxima (...) sendo a ateno do espectador
focalizada no plano central (Sennett, 2006: 51-2). Por estas evidncias
apontadas pelos estudiosos, importante que aprofundemos tal relao entre o
teatro antigo e estas construes pblicas e isso ser feito quando da anlise
dos dados sistematizados dos vrios teatros elencados em nosso repertrio.
Por ora, vejamos a interconexo entre o espao teatral e a prtica de culto.
Tomemos como exemplo o caso paradigmtico de Atenas, para no quarto
captulo abordarmos outros teatros do mundo grego.
O deus duas vezes nascido, vindo dos campos congrega duas esferas
no seio da plis: a cnica e a religiosa. Assim, no que tange evidncia fsica,
e num outro captulo iremos abordar o problema mais profundamente, os
vestgios de centenas de teatros gregos e romanos so conhecidos; vo desde
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os principais locais de Atenas, Delfos, Epidauro, Dodona, Siracusa, e feso,
por exemplo, at pequenos teatros localizados no interior das cidades e que
no so muito conhecidos. A maioria dos teatros no conserva sua estrutura do
V sec. a.C. - reconstrues importantes ocorreram no sculo IV a.C. e no
perodo helenstico, e principalmente sob a ocupao romana. O teatro de
Dinisos em Atenas, com suas vrias fases, um exemplo elucidativo deste
processo. Quando o passante, seja este turista ou pesquisador visita Atenas,
hoje, o teatro que ele v no tem a mesma estrutura do teatro que squilo ou
Aristfanes conhecia. O que se v so assentos de pedra em disposio
curvas, "tronos" individuais na linha da frente, um piso pavimentado, a
orquestra e uma estrutura elaborada criada no meio da orquestra. O teatro do
perodo clssico teve bancos em linha reta na encosta, um piso de terra batida,
a orquestra, o que faz com que os autores chegassem concluso que nesse
perodo a orquestra no poderia ter sido um crculo perfeito e uma construo
de madeira na parte de trs da orquestra, a Sken.
Estamos influenciados pela perfeio clssica do famoso teatro em
Epidauro. No tocante a Atenas e Siracusa, o teatro foi reconstrudo, enquanto
em Argos o impressionante e grande teatro do sculo III a.C. foi construdo em
um novo stio, o teatro do sculo V deveria ser mais compacto e estreito, em
vez de circular. Para os autores, os teatros que ns temos, de qualquer perodo
da Antiguidade grega, nos faz, no entanto, lanar um inestimvel lume sobre a
mecnica da produo. Os kolons eram grandes e uma comunidade sentava-
se ao ar livre - este no era um teatro de espao fechado e privado, como mais
tarde se tornar em Roma (Storey & Allan, 2005: 11).
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Reconstituio hipottica do teatro de Atenas no V sec. a.C (Moretti, 2011: 50).
O teatro grego em sua essncia era a cu aberto, a aproveitar a
paisagem como cenrio, mais que isso. A paisagem faz parte dele que est
visivelmente interconectado mesma. Disposto no assentamento e integrado a
ela, o teatro, a expresso material do deus, pode revelar tanto o carter
desmtes, agrilhoado, de Dinisos, por estar fixo em um lugar, inserido no
dispositivo social, quanto seu carter lsios ou eleuthrios, ou seja, livre,
libertador, por continuar em certa medida a cu aberto. importante salientar
aqui no incio de nossas reflexes o que estamos a entender por agrilhoado.
Se Dinisos foi por muito tempo um deus de carter selvagem, que muitos
aludem a uma origem estrangeira, seja da Ldia ou da Frgia. Este deus,
segundo alguns helenistas, ao ser inserido no centro do dispositivo social,
principalmente no tempo de Pisstrato e a instituio da tirania em Atenas,
passa a ser agrilhoado. Quais so ento os grilhes impostos ao deus? Como
podemos analisar seu agrilhoamento por meio da documentao material?
possvel que Dinisos seja agrilhoado em seu prprio espao? Se estamos
abordando lugar como um conceito relacional, que nos fala Julian Thomas
(2001) estamos a refletir que o agrilhoamento, e consequentemente as
implicaes que ele acarreta na sociedade grega, pode ser analisado sob a
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perspectiva da materialidade. As tenses e ambiguidades inerentes ao deus
continuam a existir, justamente porque o deus passa a habitar num nico lugar,
mas ele continua a ser de todo lugar. As pedras do teatro, sua fixao no
assentamento poderiam ser vistas como os grilhes do deus? Em certa medida
sim. Mas se o deus agrilhoado, ele tambm Eleuthrios ou lsios, e seu
carter de libertador tambm est presente ali, no assentamento. Quando o
teatro disposto de frente para a paisagem, a expresso material do deus lhe
permite, estar agrilhoado, fixo num lugar, mas tambm liberto. Quando o teatro
fechado, e nenhum horizonte est vista de quem se senta nos bancos do
kolon, o deus est completamente agrilhoado. No caso do teatro romano, este
agrilhoar perfeitamente visvel pois o teatro ali completamente coberto.
Frente leitura dos helenistas, a nossa posio que a partir de um deus
agrilhoado, preso nas amarras da esfera social, pode-se estabelecer
parmetros para tentarmos entender aspectos de um culto que est na esfera
cvica. O teatro, esse lugar, que no um templo, que serve s reunies
cvicas e ao divertimento dos gregos, tambm um espao que traz seu
carter religioso. Aberto para a paisagem, a morada de Dinisos revela o duplo
aspecto do deus: agrilhoado por estar num local fixo e libertador, por manter-se
a cu aberto. O deus parte os seus grilhes quando neste espao a ordem
contestada, o homem se pensa filho de uma ordem divina, mas com suas
prprias questes a debater e a questionar. No o teatro o lugar onde
Antgona contesta o sepultamento do seu irmo, opondo-se s leis de Creonte,
que representa a plis? No tambm no teatro que o poeta Eurpedes d voz
s mulheres e retrata to bem a sua condio na sociedade grega?
A palavra agrilhoar traz em si um simbolismo e no teatro, numa das
peas de squilo, Prometeu agrilhoado por conceder aos homens o fogo de
Zeus. Condenado a ter seu fgado devorado por uma guia, pssaro que
simboliza o poder do soberano do Olimpo, a imagem imortalizada por squilo
do mito, j traz em seu cerne a chave deste conceito. Como o Tit que roubou
o fogo do soberano do Olimpo, Dinisos est preso a grilhes quando
retirado dos campos e alocado num local fixo no espao urbano. Os gregos em
certa medida agrilhoam o deus quando o deslocam de uma esfera selvagem
e o fazem habitar num espao civilizado. Mas este agrilhoamento o que
simboliza a totalidade do territrio da plis. Refletimos que so os grilhes que
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aprisionam o deus que interconectam khra e sty. Como tantos outros deuses
da Hlade, quando o deus do vinho veste o hbito de cidado, lembrando uma
expresso de Sissa e Detienne (1990), ele traz para a cidade aspectos de sua
fora centrpeta que confunde as fronteiras. Se o deus antes era inslito, ele
passa a habitar na plis, a ter um local fixo, a se fazer presente no espao, a
ser delimitado no territrio; o santurio e o teatro fixam Dinisos no
assentamento, seus grilhes so de pedra, de mrmore. Os tronos honorficos
sintetizam bem que o deus, agrilhoado a um local, tem para si uma
institucionalizao, que antes no havia. Assim podemos dizer que h vrios
aspectos que demonstram os grilhes que em certa medida prendem o deus.
Existem os grilhes institucionais, e aqui o caso mais emblemtico o da
tirania que torna Dinisos representante de uma nova ordem vigente, um
Dinisos Trannos, a ter para si festas no calendrio polade, a representar
uma nova ordem estabelecida por meio de um golpe. Ento podemos salientar
que existem os grilhes imateriais e os grilhes materiais. Porque a expresso
material do deus nos revela aspectos sociais da cidade grega. Assim, com o
tempo a prpria estruturao em pedra do teatro vai aos poucos agrilhoando o
deus cada vez mais e a vista do mar ou da paisagem cede lugar a um edifcio
cnico prprio. Um Dinisos mais urbanizado e menos en agrs vem se
materializar no espao. Entretanto, ele continua ali de frente para a paisagem a
revelar sua singularidade, um deus a cu aberto nas pleis do mundo helnico,
seja na Grcia ou nas suas apoikias.
1.2. Dinisos e seus eptetos O inventrio de um deus elusivo
O intento deste tpico tecer breves, mas importantes, consideraes
acerca das fontes textuais referentes a Dinisos. Por meio dos eptetos
visualizaremos melhor a interconexo do deus com a khra, os eptetos ou
suas nominaes nos fazem entender melhor como a divindade se estabelece
no transcurso do tempo. No deixa de ser uma espcie de inventrio, que
permite ao arquelogo saber como o deus se estabelece na Hlade. Tais
nominaes inferem determinados temas implcitos, que nos ajudaro a
entender o processo que d ao dionisismo sua singularidade e permite-nos
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compreender melhor at mesmo nominaes que o firmam em seu prprio
espao.
A fonte mais antiga com o nome do deus est em duas plaquetas
encontradas em Pilos (PY Xa 102 e PY Xb 1419). Na primeira plaqueta l-se Di
wo nu so Jo. Dionysoio, como um fragmento feito a: tu ni Jo. No
outro lado da plaqueta est registrado outro fragmento de algo que ainda no
foi decifrado e diz: no pe ne o para wo no wa ti si, ou seja,
oinoatisi, que quer dizer mulheres de oinoa. Em ambas as plaquetas
encontramos a denominao o que Dioniso (Kernyi, 2002: 62). Dabdab
Trabulsi retoma a questo dos tabletes para mostrar ao leitor a importncia da
complexidade da tese de uma divindade estrangeira, exgena Grcia. O
primeiro tablete foi descoberto em 1953 e o nome do deus acima especificado,
segundo Trabulsi, aparece sozinho, o que levou os seus decifradores a duvidar
de seu carter divino. Dinisos tido como libertador e este epteto est
diretamente associado ao nome de Zeus, invocado como seu filho O deus do
vinho chamado de Eleuthr, filho de Zeus, a quem so sacrificados touros. A
fonte deste epteto so dois tabletes PY Cn 3 e PY Wa, e-re-te-re, bem como
no tablete PY Na 18 que consta e-re-u-te-ri, o que pode equivaler a Eleuthr,
como o deus chamado, que corresponderia ao lber pater dos romanos, o que
remontaria, segundo Trabulsi ao indo-europeu Ieudh (Kernyi, 2002: 62;
Trabulsi, 2004: 24). akkhon ou akkhron, banhado na suave luz de Zeus, este
epteto nos remete ao nome i-wa-ko, cuja leitura em grego pode ser akos,
achos ou akchos, assim as reminiscncias deste nome nos dizem que
Tal luz se achava colocada, bem concretamente, sob a mo de um
personagem divino considerado um duplo de Dioniso, seu nome,
oriundo da mesma raiz que os dois personativos minicos citados h
pouco, provavelmente assumiu a forma definitiva akkhos, com base
no clamor insistente com que era repetido nas procisses (Kernyi,
2002: 69).
Assim tal epteto aco, poderia se referir ao nome chamado no clamor
insistente com que era repetido nas procisses, ou a um tocheiro. Para
Kernyi, Na figura de aco, preservava-se a ligao de Dioniso com luz e fogo
(Idem).
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23
Deus de mulheres, Dinisos foi chamado de Likntes, despertado pelas
mnades, tal despertar se dava na forma de uma cerimnia mstica e tal nome
indicava que o lkknon era seu receptculo, a saber a caverna que brilhava com
um esplendor em determinados momentos (Plutarco, De Iside et osiride, 365
apud Kernyi, 2004: 41). As fontes que ligam o deus ao vinho so inmeras.
Onops ou wo-no-ko-so, cor de vinho, esse lquido ambivalente como o deus
em que Homero afirma pela boca da me de Heitor:
Tnico o vinho, excelente para o homem no extremo das foras, tal
como te achas, de tanto lutar em defesa da ptria. Ao que o filho
responde: Me veneranda, no tragas a doce bebida; receio que os
fortes braos me enerve, vindo eu a perder toda a fora. A reverncia
me impede de vinho ofertar a Zeus grande com mos impuras. (Hom.
Ilid. VI, 60 e ss).
interessante notar que o deus do vinho nunca recebeu o nome de
mpelos videira, mas na tica era chamado pelo nome de kisss, florente de
Hera, isso nos atesta Pausnias (I, 31,6). Para Carl Kernyi, possvel
considerar hera um termo que simultaneamente faz aluso videira e a elude;
para o autor o nome potico onops ou onopos faz aluso a Dinisos
claramente (Kernyi, 2002: 56) e pode ser visualizada na tragdia de Sfocles,
dipo em Colono (v. 675 e ss).
Os eptetos do deus nos do indcios da forma como ele se insere na
vida do grego. Como se o homem grego revelasse metforas para descrever a
sua realidade. Tanto Dinisos, quando os outros deuses so nominados face o
cotidiano que o circunda. Por exemplo, segundo Natalie Spneto (2005: 18-20),
a ligao entre Dinisos e a festa das flores indicada em alguns eptetos do
deus. O primeiro epteto Anthyos. Pausnias (I, 31, 4) o menciona e fala de
um altar dedicado a ele, sem dar mais explicaes particulares. Um segundo
epteto Antheus, que novamente Pausnias (VII, 21, 6) menciona ao falar de
Patrasso, onde vizinho ao teatro era colocado um tmenos em que estavam
algumas imagens do deus, uma delas de Dinisos Antheus. A terceira epiclese
Anthister, um genitivo presente numa inscrio encontrada em Thera no sc.
II a.C. Em todos os trs casos o referir-se s flores encontra-se na raiz dos
eptetos. Na viso de Spneto, tais aluses no nos permitem ter absoluta
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certeza se elas tm a ver ou no com o universo dionisaco. Em alguns casos o
epteto liga o deus a uma determinada divindade feminina. Em Flia, por
exemplo, h altares de Apolo Dionysodotos, rtemis Selasphros, Dinisos
Anthyos e das ninfas Ismenides (Paus I, 31, 4). O quarto epteto que
interconecta Dinisos com as Antestrias Euanthes citado por Fanodemo
(FGrHist 325f 12 apud Spneto 2005: 20).
H um Dinisos Bryktes, ou seja, exuberante. Sobre este aspecto
Marcel Detienne, salienta:
(...) um relevo do sculo IV antes da nossa era mostra esse
companheiro de Dioniso (Briactes), deitado durante o banquete na
mesma posio que Prxeno das orelhas pontudas sobre as
montanhas de Delfos. Brukts o Exuberante. Dessa exuberncia
que domina a cidade de Tebas quando, ao chamado de seu deus, ela
comea a desabrochar em profuso (brein) desde a verde
salsaparrilha aos belos cachos, quando se d por inteiro a Baco e se
cobre de carvalhos e de pinheiros. Luxria vegetal da brinia ou da
videira que cresce em estado selvagem. Em sua raiz e em seu timo,
Brukts, o Exuberante (...). O Exuberante pe definitivamente seu
senhor ao abrigo de uma interpretao que creditasse a Dioniso um
poder que se dilui nas entranhas da terra, confundindo-o assim com
deuses que desconhecem sua dnamis, sua potncia singular
simbolizada pelo sangue e pelo vinho em estado de graa (Detienne,
1988: 109-110).
imenso o inventrio desse deus elusivo nas fontes textuais e em
outros fontes de suporte material que trazem os seus inmeros aspectos. Ao
longo do nosso trabalho, tais fontes textuais j esto evidenciadas. Dinisos
grafado em sua histria, seja pelo mito, seja pela histria. Passemos s
consideraes sobre sua origem e suas viagens pelo mundo helnico.
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1.3. O deus, seu nascimento e sua errncia
Meu corao vagabundo quer guardar o mundo em mim.
Caetano Veloso
Um dia Zeus Porta-gide se disfarou de mortal e manteve em segredo
um caso amoroso com uma bela mulher de nome Smele, uma das filhas de
Cadmo, rei de Tebas. O relacionamento extraconjugal de Zeus enfureceu a
deusa Hera que, enciumada, disfarou-se de uma velha vizinha e aconselhou a
bela amante de Zeus, nessa altura j grvida de seis meses, que pedisse ao
soberano do Olimpo um favor, que seu misterioso amante no iria lhe poder
negar: que o mais poderoso dos deuses a ela se mostrasse como de fato era
em sua verdadeira natureza. Num primeiro momento, Zeus recusou-se a
atender-lhe o pedido e Smele, resoluta, negou-se a deitar em seu leito. Ento,
furioso, o Senhor do Olimpo se mostrou em toda sua fulgurncia, incinerando a
me de Dinisos. No entanto, o deus Hermes salvou-lhe a criana divina, o
costurou na coxa daquele que detm o raio e o trovo e reina por sobre todos
os deuses, para que houvesse a sua segunda gestao. Por este fato, o
exuberante Dinisos ficou conhecido em toda a Hlade como o deus duas
vezes nascido, que pode, sobretudo, ser definido como a criana parente de
Zeus-o-Pai. Portanto, o deus do vinho, mais que qualquer outro, a carne de
Zeus (Apol. III. 4. 3; Apol. de Rodes IV. 1137; Graves, 2004: 62; Tassignon,
2001: 324).
Na antstrofe de uma das mais importantes documentaes textuais
sobre o deus do vinho As Bacantes, belamente Eurpides em seus versos,
canta deste modo o nascimento de Brmios2:
Aquele
que saiu das entranhas
da me que, tomada
das dores da maternidade,
ao som do trovo alado de Zeus,
fulminada pelo raio,
abandonara a vida.
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Mas logo o recebeu num abrigo,
onde havia de nascer, Zeus Cronida
ocultando-o na sua coxa
prendendo-o com fbulas douradas,
a ocultas de Hera.
Deu-o luz, quando as Parcas
fixaram, esse deus de chifres de touro,
coroou-o com uma coroa
de serpentes () (Eurpides, vv. 87-103).
Assim nasceu o Filho de Zeus e de Smele. Hesodo, na Teogonia e nos
Trabalhos e os dias (947; 614) o denominou Dinisos de ureos cabelos) e
Dinysos Polyghets (Dinisos das muitas alegrias). J nos versos do maior
aedo da Grcia, na Ilada (Hom.: VI, 130; XIV, 325), o deus surge como
mainomnoio Dionsoioo delirante Dinisos) e khrma Brteion (alegria dos
mortais).
Devido s perseguies da deusa Hera3, um dos mitos mais recorrentes,
que o deus fora criado no vale do Nisa. Seguindo instrues de Zeus,
Hermes transformou Dinisos momentaneamente num cabrito e ofereceu-o s
ninfas Mcris, Nisa, rato, Brmia e Baca, que habitavam no vale do Nisa,
junto ao Monte Hlicon. As ninfas cuidaram do filho de Zeus, numa gruta, a
nutri-lo de mel e leite, mimando-o com tal ternura que o Senhor do Olimpo as
colocou entre as estrelas, nomeando-as de Hades (Apol. III. 4.3; Higino:
Fbulas, 182; Tcon, Sobre os Fenmenos de Arato. 177; Diod. Sic. III. 68-69;
Apol. de Rodes IV. 1131; Srvio: clogas de Virglio VI, 15). No monte Nisa,
2 Brmios um dos nomes de Dinisos ou Baco, em honra de quem se grita Evo! Rocha Pereira,
M.H. In: As Bacantes. Esclio. 3 O dio de Hera por Dinisos e por sua taa de vinho, bem como a hostilidade de Penteu e Perseu,
demonstram a oposio conservadora face ao uso ritual do vinho e em relao ao comportamento
extravagante das mnades que num verdadeiro surto de contgio se irradiou da Trcia at Atenas,
Corinto, Sicione, Delfos e outras cidades civilizadoras por volta do final do sc. VII e incio do VI a.C.
Graves nos lembra que Periandro, tirano de Corinto, Clstenes, tirano de Sicione, e Pisstrato, tirano de
Atenas, teriam eventualmente decidido aprovar o culto e institudo festivais oficiais em honra ao deus do
vinho. H que se fazer um paralelo entre o mito e a histria destas cidades. E por isso o autor argumenta
que a partir da que se admite que Dioniso e a sua vinha tenham acabado por ser aceites no cu onde vai substituir Hstia no rol dos doze deuses do Olimpo em finais do V sec. a.C. (Graves, 2004: 116).
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Dinisos teria inventado o vinho.4 interessante perceber aqui o deus, como
um deus civilizador. Ao atentar para a fora do vinho, num dos tpicos do seu
Dioniso a cu aberto, Detienne estabelece um paralelo entre Dinisos e
Demter e percebe que este novo deus venerado sob o nome de Orths,
ereto; tomando as palavras antigas de Filcoro o autor nos lembra que
bebendo o vinho bem misturado que os homens deixam de ficar encurvados,
como acontecia com o vinho puro. O vinho, como o prprio deus, tambm
agrilhoado, por seu elemento oposto, a gua. Ao traar a homologia que h
entre o deus do vinho e a senhora dos trigais, o autor nos coloca ante este
ideal civilizador. Tanto Demter quanto Dinisos passam por este processo;
vinho e po civilizaram o grego e por isso o autor nos mostra que
Entre Dioniso e Demter, a homologia prolonga-se no plano dos
alimentos: antes que os mortais descobrissem o trigo e o po,
comiam razes, plantas e frutos silvestres, condenados a comer
alimentos crus e pesados, submetidos a uma dieta destemperada,
como narra o autor da Antiga medicina. Alimentos kreta como o
vinho puro, e que produziam dores violentas, doenas e no raro
morte sbita. O vinho bem temperado inaugura o gnero da vida
cultivada, da mesma forma que a comida base do trigo modo de
Demter se introduz em campos e aldeias. tambm, e sob a
proteo de uma e de outra divindade, o incio de uma arte de viver
cuja regra se reparte entre a reflexo diettica, as prticas culinrias e
o saber mdico (Detienne, 1988: 68).
Voltando s andanas do deus. O menino ento se tornara adulto e,
apesar de seus ares afeminados, por ter sido criado entre as ninfas, a deusa
Hera, o reconheceu e o ensandeceu, sendo o deus condenado a vagabundear
4 Graves (2004: 114) faz uma importante observao sobre a inveno do vinho e sua origem lendria: A
trama de toda a lenda mstica em torno de Dioniso assenta essencialmente na difuso do culto da vinha
atravs da Europa, sia e norte da frica. O vinho, porm, no foi inventado pelos gregos, parecendo ter
sido, muito pelo contrrio, importado inicialmente em botijas e garrafas, de Creta. Existiam uvas bravas
na costa meridional do Mar Negro, cuja cultura se estendeu at o Monte Nisa, na Lbia, atravs da
Palestina, e da, portanto, at Creta; atingiu a ndia atravs da Prsia, e a Gr-Bretanha, na Idade do
Bronze, pela Estrada do mbar. As orgias em torno do vinho na sia Menor e na Palestina os tabernculos, solenidades dos cananeus, eram, originalmente orgias ao estilo de bacanais foram marcadas por estados idnticos de xtase aos das orgias em torno da cerveja na Trcia e na Frgia. O
triunfo de Dinisos advm do fato de o vinho ter substitudo, praticamente em todas as regies, outros
elementos excitantes, como a cerveja, por exemplo. Neste caso, o autor argumenta a supremacia do vinho
e sua cultura em relao a outras bebidas no mundo grego.
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pelo mundo afora (Eurpides, Bac. vv. 99-102; Onomacritus citado por
Pausnias: VIII. 37.3; Diod. Sic. III. 62; Hino rfico XIV. 6; Clemente de
Alexandria: Ex. aos gregos, II. 16; Graves, 2004: 111).
Quem o acompanhava, onde quer que fosse era o seu tutor Sileno e
seus seguidores, um verdadeiro exrcito de stiros e mnades, usando como
armas bastes cobertos de hera, a ter na ponta uma pinha, conhecidos por
tirsos. Conta o mito que o deus navegou at o Egito, a trazer consigo a vinha.
Herdoto (II, 49) j h muito mencionou que Dinisos um deus estrangeiro,
encontrado no Egito. Entretanto devemos constatar que o filho de Zeus no o
nico deus grego que o historiador de Halicarnasso encontra entre as
pirmides. Giulia Sissa e Marcel Detienne nos iluminam sobre a presena do
deus nas terras de Osris
() Sem dvida os egpcios conhecem Dioniso, so mesmos os
primeiros a t-lo conhecido. Dioniso-Osris que eles celebram da
mesma maneira que os gregos. Apenas com a diferena que em vez
de passear o falo como as helenas, as mulheres do Egito
processionam as estatuetas articuladas que fazem movimentar-se por
cordas e cujo membro viril se agita vigorosamente () (Sissa &
Detienne, 1991: 245-6)
Ao chegar a Faro foi acolhido pelo rei Proteu. Ali o deus teria convidado
certas rainhas amazonas a marcharem com ele contra os tits e a restiturem o
trono ao rei Amon. Posteriormente o deus seguiu na direo leste e rumou para
a ndia, prximo ao Eufrates. L teve que enfrentar o rei de Damasco, a quem o
deus arrancou a pele em vida e sobre o rio construiu uma ponte feita de hera e
de vinha; eis que surge logo em seguida um tigre, enviado por seu pai que o
ajudou a atravessar o rio Tigre. Ao alcanar a ndia, em seu caminho, teve que
lutar intensamente para conquistar o pas inteiro, onde instituiu a arte da
viticultura, decretando ali leis e fundando magnficas cidades (Apol. III. 5. 1;
squilo, Os ed. Frag.; Diod. Sc. III. 70-71; Graves, 2004: 111).
As diversas variantes do mito de Dinisos, seu carter errante, reflete, o
que poderamos chamar de uma expanso dionisaca, nas regies onde os
gregos chegavam, pois
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medida que se estendia o horizonte geogrfico dos gregos, o ciclo
de lendas relativas a Dinisos e s suas expedies tomavam maior
incremento. Este feito surpreendente, sobretudo, a partir das
campanhas de Alexandre, que se assemelha a outro Dinisos, a
avanar como vencedor at os mais remotos confins do globo
terrestre conhecido pelos gregos. Reproduz-se a este respeito o
fenmeno que notamos para outras divindades, em particular rtemis.
Havendo encontrado no estrangeiro um deus que parecia ter, por sua
essncia, certa semelhana com Dinisos, os helenos no vacilavam
em estabelecer identificaes que estenderam singularmente ao
domnio do filho de Zeus e de Smele. Conquistador este, de todos
os pases com os quais os gregos estabeleceram relaes, ele se
encontrava tanto na frica quanto na sia, no Egito, na Lbia, na
Etipia, entre os pases rabes, e tambm na Bctria e at na ndia
(Richepin, 1957: 394).
Em seu regresso o deus foi surpreendido por um ataque de Amazonas,
cujas hordas teria perseguido at feso, tendo algumas delas refugiando-se no
santurio do templo da deusa rtemis, outras escaparam para Samos, mas
estas o deus do vinho perseguiu de barco, matou tantas que o campo de
batalha passou a se chamar Panema. Por fim, o deus regressou Europa,
passando pela Frgia5, onde sua av Rea o purificou dos imensos crimes que
cometera durante a sua loucura, iniciando-o nos segredos dos seus mistrios.
Depois disso, ele invadiu a Trcia. No entanto, mal os seus homens chegaram
foz do rio Estrimo, Licurgo, rei dos Ednios, conhecido como o repelidor de
lobos os atacou selvagemente e com o aguilho de bois capturou-lhe o
exrcito, enxotou as mnades atravs da plancie sagrada do Nisa e, todas
simultaneamente deixaram cair os seus instrumentos sacrificais, fustigadas
pelo matador de homens, salvo o prprio deus, que se lanou no mar e
refugiou-se, amedrontado, nos braos de Ttis. Contrariada, a deusa Rea no
s ajudou os prisioneiros a fugir, como ainda enlouqueceu Licurgo que,
ensandecido, matou o prprio filho, Drias, com uma acha, supondo que estava
5 Na Frgia e na Ldia, os documentos relativos ao culto de Dinisos so numerosos: algumas vilas
frigianas, entretanto, aparecem como lares dionisacos porque vrios documentos votivos concentram-
se a. A especificidade dessa documentao associada a essa densidade e paisagem religiosa geral
desses territrios levam a considerar a Anatlia como uma das peas chave da histria do culto de
Dinisos. De fato, mesmo se os tabletes em Linear B deram o nome que o deus devia ter na Grcia desde
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a derrubar uma vinha e, antes de voltar a si, de recuperar a razo, pensou
estar a podar uma videira, arrancando assim o nariz, as orelhas, os dedos dos
ps e das mos do cadver. Este fora um crime to atroz que todo o solo da
Trcia se tornou estril. Ao regressar do mar, Dinisos fez anunciar que os
campos continuariam ridos se acaso Licurgo no morresse. Conta-se o mito
que os Ednios conduziram o rei ao Monte Pangeu, atrelaram-no a quatro
cavalos, fustigaram os animais, que lhe despedaaram o corpo (Apol. III. 5.1;
Hom. Iliad. VI. 130-40; Burkert, 1993: 323; Graves, 2004:112).
Findados seus problemas na Trcia o deus prosseguiu viagem e seguiu
para a Becia, onde chegou a Tebas e convidou as mulheres a juntar-se a ele,
nas suas orgias no Monte Citron. Isabelle Tassignon nos mostra que as fontes
textuais e fragmentos literrios relatam a chegada de Dinisos numa plis
grega e seu encontro com o rei situam sempre o deus no centro de uma ao a
desenvolver-se sob as mesmas modalidades. Tassignon argui que na pea As
Bacantes o deus descrito como um estrangeiro vindo da Ldia, a retornar para
o seio da famlia materna para se fazer reconhecer como deus. O rei de Tebas,
Penteu, seu primo. A autora salienta ainda que na Ilada Homero evidencia
como seus parentes Tns, Tlefo, Perseus ou Orfeu, estes so reis e heris
filhos de Zeus, Hracles ou Apolo, que, por sua paternidade divina, possuem
um parentesco distante com Dinisos, que no so homens mpios: contudo
estes jovens heris no o reconhecem como um deus e o excluem de seus
sacrifcios, e preferem honrar a Apolo que aparece em cada um destes casos
como uma grande divindade local (Tassignon, 2001: 309-310). Ao estabelecer
um paralelo entre a pea de Eurpides e os versos de Homero, a autora
evidencia uma matriz no mito que permeia a chegada de Dinisos e a sua luta
para se fazer reconhecer como divindade. Basta que lembremos tambm das
perseguies que a deusa Hera lhe infunde at que finalmente ele ascenda ao
Olimpo, tome o lugar de Hstia que amistosamente o cede, e seja reconhecido
no panteo. J em Tebas, que um modelo de cidade grega arcaica,
Dioniso chega disfarado. No se apresenta como o deus Dioniso,
mas como o sacerdote do deus. Sacerdote ambulante, vestido de
a segunda metade do II milnio, vrios so os testemunhos literrios que descrevem Dinisos como um estrangeiro vindo da sia Menor como um ldio ou como um frgio. (Tassignon, 2002: 233).
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mulher, ele usa o cabelo comprido batendo nas costas, tem tudo do
meteco oriental, olhos escuros, ar sedutor, bem-falante tudo o que
pode perturbar e irritar Penteu, o semeado do solo de Tebas
(Vernant, 2000: 152).
na bela passagem de Antgona que Sfocles d voz ao coro para
caracterizar um Dinisos tebano, flamante e epifnico:
(...)
(Elusis)
Em Tebas, mter-polis
Baco,
vives beira-Ismeno
flmen sinuoso
onde o drago
foi semeado.
O fumo flmeo,
rocha duplicume acima,
te escrutina,
e a fonte castlia;
(...)
No universo das urbes,
nenhuma angariou tanto de ti
e de tua me,
que o corisco eclipsou!
Grave molstia empesta
o bojo das cidadelas
no presente:
vem,
transpe com teus ps
(pura catarse!)
as grimpas do Parnaso
e o Euripo, estreito carpidor!
Coreografas o estelrio
flmeo-arfante,
orquestras o vozerio noctvago,
prole de Zeus;
propicia tua epifania,
prncipe,
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precpuo no squito das Tades
mnades noturnas
em dana trbida
por quem as inspira
Iaco! (Sfocles, Ant. vv. 1120 e ss)
Nesta Tebas, em que as tades noturnas danam e inspiram o deus, o seu
primo Penteu, rei desta plis, ordenou que o prendessem e ao seu squito de
mnades. Uma vertente do mito narra que enlouquecido, o rei, ao invs de
agrilhoar o deus, agrilhoou um touro. As mnades fugiram num estado de
completo frenesi e subiram s montanhas onde esquartejaram quantos animais
de pequeno porte encontraram. Penteu quis det-las, mas estas, inebriadas
pelo vinho e possudas pelo xtase arrancaram-lhe os membros um por um e
a primeira a comear o ritual de morticnio a me, que cai sobre ele.
Penteu atira com a mitra que tinha sobre o cabelo, para que,
reconhecendo-o, o no imolasse a desventurada Agave. Toca-lhe na
face e diz: Sou eu, me, o teu filho Penteu, a quem deste luz no
palcio de Equon. Compadece-te de mim, me, no sacrifiques o
teu filho por causa dos meus desvarios.
Com a boca a espumar e revolvendo os olhos em todas as direes,
sem saber pensar direito, e dominada por Baco, no a persuadiu o
filho. Agarra-lhe o antebrao esquerdo, apia o p no flanco do
desventurado e desarticula-lhe o ombro, no pela sua prpria fora,
mas pela destreza que o deus infundira em suas mos (Eur. Bac. vv.
1114-1128).
O deus seguiu ento sua itinerncia e chegou a Orcmeno. L as trs
filhas de Minos, Alctoe, Leucipa, e Arsnoe, recusaram-se a participar das
orgias, ainda que Dinisos estivesse usando trajes feminis e viesse convid-
las. Ante os olhares espantados das mulheres, devido sua decepo, o deus
transformou-se primeiro em leo, depois touro, por fim, em Pantera. Por fim
enlouqueceu as filhas de Minos. Leucipa ento ofereceu seu filho Hpaso em
sacrifcio e as trs irms, aps o terem esquartejado e o devorado, correram
para as montanhas em xtase, at que Hermes por fim as transformou em
pssaros, embora se diga que o deus do vinho as tenha transformado em
morcegos. Em Orcmeno, todos os anos se celebravam as chamadas
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Agrionias, e se revivia o assassinato de Hpaso do seguinte modo nas
cerimnias: as devotas fingiam procurar Dinisos e ao conclurem que este
devia ter partido com as musas, sentavam-se em crculo trocando
adivinhaes, at que surgisse de sbito do templo o sacerdote de Dinisos
armado de lana a matar a primeira mulher que encontrasse (Ovid.
Metarmofoses IV. 1-40; 390-415; Anton. Liberalis. 10; Eliano: Hist. Variae III.
42; Plut. Questes gregas 38; Graves, 2004: 112-113).
Quando enfim toda Becia o reconheceu ele partiu em viagem pelas ilhas
Egeias, a espalhar, onde quer que passasse, a alegria e o terror. Ao chegar a
Icria, como o barco que utilizava no possua condies adequadas para ficar
no mar, o deus alugou outro de uns marinheiros tirrenos que diziam rumar para
Naxos. No entanto, eram piratas, que ignoravam estar a transportar um deus,
desviaram ento da rota e seguiram em direo sia com o intuito de vend-
lo como escravo. Ao perceber as verdadeiras intenes dos piratas, conta-se
que o deus fez brotar do convs do navio uma cepa de vinha que se enrolou ao
mastro, exrcia cobriu-a de hera, dos remos fez serpentes, e ele prprio se
transformou em leo e de todos os recantos do barco saam fantasmas de
animais, bem como se ouvia sons de flautas. Os piratas, tomados pelo pnico,
saltaram para fora do barco e foram transformados por Dinisos em golfinhos.
(Hino Hom. a Dioniso 6 ss; Apol. III. 5. 3; Ovid. Metam. III. 577-699; Graves,
2004: 113).
Chegando a Naxos o deus conheceu a princesa Ariadne, abandonada na
ilha por Teseu quando do regresso expedio em que matou o Minotauro6. O
deus ento a toma por sua consorte, tendo com ela os filhos Enpion, Toas,
Estfilo, Latromis, Euantes e Taurpolo. O mito narra que Dinisos a levou
consigo e colocou seu toucado de noiva entre as estrelas (Esc. a Apol de
Rodes: III. 996; Hes. Teog. 947; Higin. Astr. Potica: II. 5; Graves, 2004: 113).
De Naxos o deus teria seguido para Argos e punido o heri Perseu por ter
6 O mito de Dinisos e Ariadne, segundo Burkert (1993: 322-23), encontra-se no contexto das
Antestrias. Na verso dominante Teseu abandona Ariadne, seja por vontade prpria ou no. Assim,
Dioniso e Ariadne so representados sempre, de novo, como par amoroso. No ritual tico das Antestrias,
a mulher do rei baslinna, oferecida a Dioniso como mulher, tal como Teseu abandona Ariadne ao deus. Este casamento sagrado, porm, rodeado de rituais sombrios e tem lugar entre um dia de
aviltamento e sacrifcios em honra do Hermes Ctnico. Em Naxos, existem duas festas de Ariadne,
uma alegre e despreocupada e outra com luto e lamentaes. O casamento com Dioniso ensombrado
pela morte o consumo do vinho obtm uma dimenso profunda, comparvel satisfao pela ddiva de Demter.
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combatido contra os seus seguidores e a muitos arrancado a vida. Como
punio o deus enlouqueceu todas as mulheres do pas, as quais, sem juzo
algum, colocaram-se a devorar os prprios filhos vivos. Perseu logo
reconheceu seu erro e para apaziguar a fria de Brmios erigiu um templo em
honra ao deus (Graves, 2004: 113).
Finalmente, aps estabelecer seu culto no mundo, Dinisos ascendeu ao
Olimpo e sentou-se ao lado de seu pai Zeus entre os doze grandes deuses.