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N º. 17 – 2008 – Salvador – Bahia – Brasil
TRATADOS INTERNACIONAIS TRIBUTÁRIOS, EMENDAS CONSTITUCIONAIS
E LEIS COMPLEMENTARES APÓS A EC 45/2004. O QUE PODE (E DEVERIA)
MUDAR NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Thomas da Rosa de Bustamante
Lecturer na University of Aberdeen, Reino Unido
Doutor em Direito pela PUC-Rio
Mestre em Direito pela UERJ
Sumário: 1. Introdução. 2. Uma controvérsia sobre a interpretação do § 3o do art. 5o da Constituição Federal. 3. Por dentro da lacuna: a Constituição Federal e o regime jurídico dos tratados internacionais. 4. Um argumento adicional: a relevância do processo legislativo e a aplicabilidade do princípio “pas
de nulité sans grief” no âmbito do processo legislativo. 5. Tratados internacionais e tributos estaduais e municipais. 6. À guisa de conclusão. 7. Epílogo
1. Introdução
A Emenda Constitucional n. 45/2004, dita “reforma do Judiciário”, introduziu
mudanças significativas no regime jurídico dos denominados tratados internacionais de
Direitos Humanos. Sem dúvida, a Emenda acalmou os ânimos de exaltados internacionalistas
e “humanistas” de modo geral que pugnavam pelo reconhecimento de um status especial para
os tratados de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Já não é mais necessário
malabarismos hermenêuticos como a falácia de que seria possível inferir do § 2o do art. 5o da
Constituição da República, a contrario sensu, uma norma que atribuísse automaticamente a
todos os direitos previstos nos tratados de Direitos Humanos força de preceito constitucional.
A solução do constituinte reformador, de que será atribuída eficácia de norma constitucional
aos tratados de Direitos Humanos que forem aprovados pelo processo legislativo
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correspondente ao das emendas constitucionais, parece resolver definitivamente esse
problema.
O legislador constituinte reformador perdeu a oportunidade, no entanto, de solucionar
uma grave lacuna na Constituição Brasileira de 1988: o problema da própria extensão do
poder de celebrar tratados internacionais no Direito Brasileiro. Ao se buscar na Constituição
uma orientação acerca de quais matérias podem ser reguladas por meio de tratados
internacionais, o jurista fica sem resposta para perguntas extremamente relevantes no mundo
contemporâneo, em que cada vez mais se exige dos Estados nacionais a cooperação
internacional e a integração regional em blocos econômicos. Entre essas perguntas estão as
seguintes: pode um tratado dispor sobre matéria de lei complementar? Um tratado que não
verse exclusivamente sobre “Direitos Humanos” pode, se obedecidas as regras de processo
legislativo próprias, ser internalizado com força jurídica de norma constitucional? Possui o
Presidente da República autoridade para celebrar tratados acerca de matéria de competência
dos Estados e dos Municípios? É válido um tratado internacional que disponha sobre matéria
relativa a benefícios fiscais de tributos estaduais e municipais, por exemplo?
As respostas que vinham sendo ensaiadas antes da Emenda Constitucional n. 45/2004,
embora pudessem ser tidas como corretas do ponto de vista estritamente jurídico (digo
estritamente jurídico no sentido de “conforme ao ordenamento jurídico positivo”,
pressupondo-se um critério tipicamente positivista de validade jurídica, como o da regra de
reconhecimento de Herbert Hart), implicavam sérios inconvenientes no plano da política
externa e dificultavam a integração do Brasil tanto na comunidade internacional quanto no
Mercosul, haja vista que raramente os tratados internacionais poderiam possuir força jurídica
para, independentemente de significativa alteração legislativa posterior (muitas vezes por
meio de leis complementares), instituir relações jurídicas no campo do Direito Tributário,
entre outros.
Quando o Supremo Tribunal Federal reassentou o seu entendimento de que “os
tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico tão somente com força de
lei ordinária”1 e portanto “não podem, em conseqüência, versar matéria posta sob reserva
constitucional de lei complementar”2, optou pela solução que preservou com mais intensidade
o princípio democrático e as condições formais relativas ao processo legislativo que dele
decorrem. A construção jurisprudencial parece plausível porque as únicas referências a
“tratado internacional” feitas pela Constituição da República, antes da EC 45/2004, estavam
1 STF, HC 72.131, voto do Min MOREIRA ALVES, DJ de 01.08.2003. 2 STF, ADI-MC 1.480, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 18.05.2001.
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contidas nos artigos 5o, § 2o, 49, inciso I, e 84, inciso VIII. Ou seja: além do parágrafo 2o do
art. 5o, que se limita a declarar a abertura da Constituição da República a princípios implícitos
e o caráter não exaustivo ao rol de Direitos individuais nela previstos, as únicas disposições
normativas que tratavam da matéria eram as que atribuíam ao Presidente da República o
poder de celebrar tratados e ao Congresso o poder de “resolver definitivamente” sobre esses
atos normativos. Na ausência de qualquer disposição sobre o alcance da competência
legislativa compreendida pelos tratados, e em face do art. 47 da mesma Lei Fundamental (que
estabelece como regra geral que as deliberações no Congresso Nacional serão tomadas por
maioria simples), se entendeu razoável fazer coincidir o campo de competências do tratado
internacional com a esfera da lei ordinária federal. Ainda que essa seja uma solução
insatisfatória sob o ponto de vista das relações internacionais e do princípio constitucional
previsto no art. 4o, inciso IX, da Constituição, não parece ser incorreta à luz da Constituição.
É preciso que fique claro, contudo, que a mencionada construção do Supremo Tribunal
Federal foi sedimentada sob duas premissas, ainda que implícitas: a primeira de que a
Constituição continha uma lacuna a respeito do alcance da competência para celebrar tratados
internacionais, e a segunda de que a ausência de disposição específica sobre o quorum de
deliberação para aprovação de tratados internacionais faria com que esse fosse o mesmo das
leis ordinárias. Foi a partir dessas duas premissas que o Tribunal considerou prudente
restringir a competência para celebrar tratados à esfera da lei ordinária federal, para evitar que
por vias transversas fosse desrespeitado o quorum das leis complementares (na medida em
que um tratado poderia ser aprovado por maioria simples, à luz do artigo 47).
Foi sob essas premissas que o Supremo Tribunal Federal, num autêntico ato de
criação judicial de norma jurídica, teve de regular a matéria e limitar o treaty-making power.
O Supremo Tribunal Federal, diante da lacuna jurídica acerca das matérias que podem ser
reguladas por tratados internacionais, concluiu que deveriam ser analogicamente aplicáveis
as regras que definem a competência da União para legislar por meio de lei ordinária. Ainda
que o discurso oficial não admita expressamente essa analogia, uma análise das disposições
constitucionais que regem a matéria revela que foi adotado o seguinte raciocínio: se os
tratados internacionais podem ser validamente celebrados com a aprovação do Congresso
Nacional por maioria simples, então a matéria sobre a qual eles podem versar é a matéria de
lei ordinária federal, haja vista que esse tipo de fonte do Direito pode ser aprovado com esse
mesmo quorum. O elemento formal comum entre leis ordinárias e tratados internacionais
(quorum necessário para aprovação) foi decisivo para se determinar que ambas as espécimes
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normativas pudessem dispor sobre as mesmas questões. Podemos, de modo simplificado,
descrever essa construção judicial da seguinte forma:
1) As leis ordinárias são aprovadas por maioria simples e podem dispor sobre as
matérias x, y e z;
2) Os tratados internacionais são aprovados por maioria simples
3) Os tratados internacionais podem dispor sobre as matérias x, y, z.
No esquema acima, apenas as asserções “1” e “2” estão textualmente previstas na
Constituição Federal. A asserção “3”, por sua vez, não passa de uma construção jurídica do
Supremo Tribunal Federal para colmatar a lacuna contida na Constituição acerca das matérias
que podem ser disciplinadas por meio de tratado internacional. Trata-se de uma construção
porque simplesmente não pode ser deduzida de “1” e “2”.
A melhor forma de colmatar lacunas é através da analogia, pois entre os métodos de
integração do Direito em tese admissíveis é o que pode encontrar mais pontos de apoio no
ordenamento jurídico positivo e, portanto, aquele em que se verifica uma decisão do
legislador mais próxima possível do caso em questão. Para determinar a força do argumento
por analogia, porém, é necessário pelo menos os seguintes passos metodológicos:
a) constatar, e justificar com argumentos, a presença de uma lacuna no texto da
legislação positiva;
b) encontrar um caso regulado pelo Direito positivo que apresente características
semelhantes em aspectos relevantes ao caso que pode ser considerado “lacunoso”;
c) isolar a ratio legis da regra jurídica tomada como paradigma;
A etapa “c”, por seu turno, só pode ser bem realizada se o intérprete tiver uma
capacidade de abstração suficientemente desenvolvida para revelar quais são os princípios
jurídicos que se encontram por detrás da regra-paradigma e quais as relações de preferência
condicionada entre princípios que foram estabelecidas pelo legislador ao promulgar a regra
em questão.
Ora, é sabido que toda vez em que ponderamos princípios em rota de colisão, para o
fim de determinarmos as relações de prioridade condicionada entre esses princípios,
chegamos a uma regra que tem como hipótese de incidência os fatos em face dos quais a
ponderação foi realizada e como conseqüência normativa a conduta que é exigida pelo
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princípio jurídico que tenha apresentado um maior peso no caso concreto. Essa descrição
alexyana das ponderações de princípios pode ser compreendida através de um exemplo
elementar. Se, num caso concreto, entram em colisão o princípio da livre iniciativa (P1) e o
princípio da proteção aos consumidores de serviços essenciais (como por exemplo o serviço
de educação) (P2), o legislador tem de estabelecer qual desses princípios deve ter prioridade.
Deve, por exemplo, estabelecer que diante de práticas abusivas de determinadas instituições
de ensino (C), P2 deve prevalecer sobre P1, ficando a União autorizada a regular a forma
como o preço das mensalidades escolares deve ser reajustado3. Repare mais uma vez: da
ponderação dos princípios surge uma regra que determina conseqüências jurídicas concretas
dos fatos sub judice.
Embora o exemplo em questão tenha sido extraído de uma decisão judicial, que
declarou a compatibilidade com a Constituição de legislação infraconstitucional que
estabeleceu parâmetros obrigatórios para fins de reajuste de mensalidades escolares, o que
verificamos na prática é que no Estado constitucional a regra geral é que as ponderações de
princípios sejam feitas pelo legislador, e não pelo judiciário. Este último via de regra só é
chamado a ponderar quando se verifique que o legislativo, ao decidir as conseqüências
jurídicas de um determinado fato social, restringiu desproporcionalmente um dos princípios
sem a contrapartida da proteção de um bem constitucional igualmente valioso. As
ponderações judiciais normalmente só têm lugar para verificar a necessidade de corrigir as
injustiças que eventualmente ocorram no caso de uma atuação desarrazoada do legislador
(como no julgado citado) ou para colmatar lacunas de regulação. No mais das vezes é
possível encontrar em cada regra jurídica pelo menos um princípio jurídico que lhe dê
fundamento. Como explica com especial clareza PECZENIK4, “toda regra jurídica pode ser
apresentada como o resultado de uma ponderação de princípios realizada pelo legislador”.
Por isso, para justificar uma analogia, deve-se buscar fazer o caminho inverso das
ponderações, ou seja, deve-se recorrer aos princípios que “se encontram por detrás das
regras” 5 . No exemplo das mensalidades escolares, deve-se verificar se o princípio que
prevaleceu na regra em questão (que autoriza a administração a interferir na autonomia
privada para regular o reajuste de mensalidades escolares) deve irradiar os seus efeitos sobre o
caso lacunoso (por exemplo, o hipotético reajuste abusivo dos planos de saúde).
3 STF, ADI-QO 319, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ de 30.04.2003. 4 PECZENIK, Aleksander. “Saltos y Lógica en el Derecho ¿ Qué se puede esperar de los modelos lógicos de la argumentación jurídica?”, in. Derecho y Razón. México, Fontamara, 2003, p. 78 5 ALEXY, Robert. “Resposta à Carta n. 5”, in. BUSTAMANTE, Thomas. Argumentação Contra Legem: a
teoria do discurso e a justificação jurídica nos casos mais difíceis. Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p. 323.
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Ora, transpondo esse método de raciocínio para o caso da construção judicial em que o
Supremo Tribunal Federal afirmou que os tratados internacionais continuam a possuir, na
Constituição de 1988, força de lei ordinária e a não poder versar sobre matéria reservada às
leis complementares, o princípio que fundamentou a analogia foi o princípio democrático, o
qual exige a maioria absoluta para que a vontade dos representantes eleitos pelo povo seja
validamente manifestada em questões reservadas à matéria de lei complementar e a maioria
simples para que possa ser validamente promulgada uma lei ordinária. Se os tratados podem
ser aprovados pelo mesmo quorum das leis ordinárias, o princípio democrático estará sendo
cumprido em grau satisfatório na hipótese de os tratados disciplinarem questões que se situam
na esfera de competências de tal espécime normativa. Dessa forma, a construção jurídica
reiterada pelo Supremo Tribunal Federal na supracitada ADIN 1.480 está justificada porque
na hipótese das normas tomadas como paradigma (as regras que definem a competência e o
processo legislativo da lei ordinária) e no caso sobre o qual se debruçou o tribunal (em que se
precisava saber até onde vai o treaty-making power no Direito Brasileiro pré- Emenda
Constitucional 45/2004), pode-se verificar a mesma relação de prioridade entre os princípios
ponderados pelo legislador. Ou seja, os princípios que constituem a ratio das regras-
paradigma podem ser invocados, com a mesma força, no caso sub judice.
No entanto, ao analisar o ordenamento jurídico pré-Emenda Constitucional n. 45/2004,
que foi aquele em face do qual o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a analogia com as
normas constitucionais sobre a lei ordinária para determinar a esfera de competências dos
tratados internacionais, verifica-se que há também certos princípios que poderiam ter sido
utilizados para justificar uma conclusão diferente. Com efeito, os princípios da cooperação
entre os povos e da integração do Brasil em blocos internacionais poderiam contribuir para a
conclusão de que seria necessário admitir que os tratados internacionais pudessem regular
matéria que hoje se encontra sob a reserva de lei complementar. Tal entendimento tem
especial relevância para o Direito Tributário, pois as grandes questões tributárias de interesse
geral da nação – e aquelas que são mais relevantes para fins de integração do Brasil nos
mercados internacionais, como por exemplo as que dizem respeito à base de cálculo e aos
fatos geradores de impostos sobre a produção, circulação e operações financeiras, bem como
critérios para concessão de benefícios fiscais em tais tributos – são de competência do
legislador complementar. Ainda que o argumento com base nos princípios da cooperação
entre os Estados e da integração internacional não tenha força suficiente para decidir por si só
o caso, não deixa de gerar razões relevantes para uma certa conclusão, e essas razões tem ao
menos de ser ponderadas com as razões concorrentes geradas pelo princípio democrático. Por
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esse prisma, o que se percebe é que a integração regional do Brasil no cenário internacional,
que é também um princípio considerado valioso pelo legislador constituinte de 1988, teve de
ceder espaço ao princípio do devido processo legislativo democrático. Por isso, podemos
concluir que a regra jurisprudencial segundo a qual “os tratados só podem versar sobre
matéria de lei ordinária e devem ser aprovados pelo mesmo quorum destas” estabelece uma
relação de preferência condicionada entre, de um lado, o princípio democrático (vitorioso) e,
de outro, o princípio da integração supranacional (que, embora permaneça válido, foi
restringido em relevante medida em tal hipótese).
O que cumpre responder nesse ensaio é se a adição do § 3o ao artigo 5o da Constituição
Federal alterou esse quadro. Tentaremos verificar, nas linhas que se seguem, se o novo
dispositivo normativo permite, ainda que por meio de uma nova construção jurídica
semelhante, uma solução capaz de, a um só tempo, respeitar tanto o princípio do Devido
Processo Legislativo Democrático (que foi o princípio protegido pelo Supremo Tribunal
Federal nas decisões supracitadas, que restringiram o poder de celebrar tratados para evitar a
sua usurpação) quanto o princípio da cooperação entre os povos (e os Estados) (art. 4o, inciso
IX, da Constituição Federal), que exige que os Governos em geral disponham de instrumentos
normativos adequados (inclusive no âmbito da tributação, em que se verifica um grande
número de matérias reservadas à lei complementar) para consagrar políticas e
regulamentações internacionais comuns, com força normativa no Direito interno6. Tratarei
dessa importante questão de hermenêutica constitucional na próxima seção.
2. Uma controvérsia sobre a interpretação do § 3o do art. 5o da Constituição Federal
Eis o teor do dispositivo normativo em análise: “os tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais”.
Duas condições são estabelecidas para que a conseqüência jurídica prevista na norma
(força constitucional dos tratados internacionais) possa se verificar: primeiro, o tratado objeto
de análise no dispositivo normativo em questão é o tratado de Direitos Humanos; segundo, o
6 Essa exigência, aliás, é na minha opinião pelo menos tão urgente no Brasil quanto foi a de se dotar os tratados de Direitos Humanos de força de norma constitucional. Com efeito, é sabido que quase todos os direitos previstos nesses tratados já estão previstos pela Constituição Federal, ao passo que os instrumentos internacionais de cooperação no âmbito tributário, por exemplo, estão muito longe de constituir Direito positivo.
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tratado tem de ser “internalizado” por procedimento idêntico ao estabelecido para a aprovação
de uma Emenda Constitucional.
Para facilitar a interpretação da referida norma constitucional, podemos tomar como
ponto de arranque a seguinte formalização:
N: (x) (Cx → ORx)
No esquema acima N designa uma norma jurídica do tipo regra segundo a qual “para
todo x, deve ser aplicada a conseqüência normativa R sempre que estiverem presentes as
condições C”7.
Se quisermos descrever a regra jurídica prevista no § 3o do art. 5o, precisamos apenas
de uma estrutura um pouco mais complexa, pois “C”, que expressa a hipótese de incidência da
regra jurídica, envolve não apenas um único predicado, mas três predicados diferentes: Ti (o
fato de “x” se tratar de um tratado internacional), Dh (o fato de o tratado versar sobre Direitos
Humanos) e Pe (o fato de o tratado ser internacionalizado por meio de processo equivalente
ao necessário para aprovação de uma Emenda Constitucional). Se representarmos a
conseqüência jurídica da norma (força constitucional do tratado) por R, então chegamos à
seguinte formalização:
N1: (x) (Ti & Dh & Pe) → ORx.
Essa descrição, porém, é ainda insuficiente para interpretar a norma jurídica, pois é
preciso definir com clareza não apenas o sentido de cada um dos predicados previstos pela
norma jurídica (Ti, Dh e Pe), mas especialmente qual a relação entre esses predicados e a
conseqüência normativa prevista na regra jurídica.
Com efeito, Ti, Dh e Pe podem ser tanto condições suficientes quanto condições
necessárias para ORx. Interpretar uma norma jurídica envolve não apenas determinar o
sentido das expressões utilizadas pelo legislador, mas também o sentido dos conectores que a
norma estabelece entre as hipóteses normativas e as suas conseqüências jurídicas. Como
ensina Ulrich KLUG, em uma relação do tipo “Se H, então deve ser I”, deve-se examinar
7 Esse esquema é muito semelhante ao utilizado por Robert ALEXY (in. Teoria de la argumentación jurídica. Trad. Manuel Atienza e Isabel Espejo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, regra J.1.1, p. 214). Nesse esquema, x é uma variável de indivíduo no domínio das pessoas naturais e jurídicas; C é um predicado que representa o suposto de fato da norma N; R é um predicado que expressa o que o destinatário da norma deve fazer; O, por seu turno, é um operador deôntico, equivalente a “é obrigatório que”.
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também “que tipo de relação «se-então» está em jogo”8, ou seja, que tipo de implicação existe
entre H e I, pois nesses terrenos a lógica moderna ensina que há três diferentes possibilidades
alternativas, que devem igualmente ser consideradas, sendo a opção por uma delas uma
escolha interpretativa. Essas três diferentes alternativas são9:
1) a relação entre H e I é uma implicação extensiva, ou seja, as hipóteses são apenas
suficientes para as conseqüências jurídicas;
2) a relação entre H e I é uma implicação intensiva, ou seja, a hipótese H é uma condição
necessária para a conseqüência I;
3) a relação entre H e I é uma relação de implicação recíproca ou equivalência, pois a H
é condição necessária e suficiente para I.
Ora, em uma norma como a que estamos tentando interpretar, na qual a hipótese
normativa faz referência a três diferentes predicados (Ti, Dh e Pe), devemos verificar
separadamente cada um dos predicados referidos na hipótese da norma jurídica, para
estabelecer que tipo de condição eles representam para a conseqüência jurídica prevista na
norma. Com relação à norma em questão, que diz respeito aos tratados internacionais, não
parece haver dúvidas de que “Ti” (o fato de a norma internalizada ser um tratado internacional)
é uma condição necessária para a conseqüência jurídica em questão (força constitucional do
tratado internacional). Da mesma forma, parece indisputável que os princípios da segurança
jurídica e da democracia reclamam que a condição “Pe” (ou seja, “ter observado o processo
legislativo de emendas constitucionais”) seja também tida como necessária para a
viabilização da conseqüência jurídica prevista em N1. Resta apenas, portanto, determinar se
Dh é ou não condição necessária para ORx, ou seja, se devemos interpretar N1 no sentido de
que “Ti, Dh e Pe são todas condições necessárias para ORx” (i) ou no sentido de que “apenas
Ti e Pe são condições necessárias para ORx, ao passo que Dh é condição suficiente para
tanto” (digo “suficiente”, naturalmente, sob a premissa de as outras duas condições, Ti e Pe,
estarem atendidas) (ii). Caso optemos pela primeira interpretação (i), então haverá uma
implicação intensiva entre, de um lado, (Ti & Dh & Pe) e, de outro lado, ORx. Isso significa,
naturalmente, que somente se estiverem presentes Ti, Dh e Pe é que ORx se verificará, de
modo que seria possível inferir, a contrario sensu, que os tratados que não versam sobre
matéria considerada “Direitos Humanos” não poderiam ter força de Emenda Constitucional.
Diferentemente, caso optemos por “ii.” e, naturalmente, Dh seja tida como uma condição
8 KLUG, Ulrich. Lógica Jurídica . Bogotá: Temis, 1990, p. 183 9 Idem, pp. 180-184.
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suficiente, mas não necessária, para ORx, então deveremos concluir não que os tratados que
não disponham sobre matéria relacionada a Direitos Humanos possam possuir eficácia de
norma constitucional, mas apenas que não está a princípio excluído pela norma que os
tratados que versam sobre matéria estranha a Direitos Fundamentais (v. g., os tratados sobre
matéria tributária) venham a possuir força superior à da lei ordinária. Se esta última
interpretação for adotada, então as perguntas que colocamos no início deste ensaio
permanecem sem resposta no texto da Constituição Federal: estaríamos, portanto, diante de
uma nova lacuna normativa.
Curiosamente, seria rigorosamente a mesma lacuna jurídica que o Supremo Tribunal
Federal identificou e preencheu nos julgamentos anteriores10. Mas talvez a nova disposição
constitucional pudesse fornecer a base para uma revisão da solução jurídica anterior. Antes de
saber se a EC 45/2004 permite uma solução diversa para uma tal lacuna, cumpre porém
verificar se a interpretação (ii) deve de fato ser tida como a mais razoável.
Para escolher entre “i” e “ii”, proponho recorrer a duas distinções de Carlos
ALCHOURRÓN e Eugenio BULYGIN: a primeira entre sistemas normativos fechados e
sistemas normativos abertos e a segunda entre permissões (ou proibições) em sentido forte e
em sentido fraco. Um sistema normativo é fechado se possuir um caráter necessariamente
completo, ou seja, “quando toda ação é deonticamente determinada por ele”, e um sistema
normativo é aberto quando for pelo menos em tese admissível a possibilidade de uma
incompletude ou lacuna11. De outro lado, os mesmos juristas falam também em proibições e
permissões em sentidos fraco e forte. Vejamos:
Definição de permissão forte: “p está permitido em sentido forte no caso q em um sistema α” se e somente se “de α se infere uma norma que permite p no caso q”; Definição de proibição em sentido forte: “p está proibido em sentido forte no caso q em um sistema α” se e somente se “de α se infere uma norma que proíbe p no caso q” 12.
As noções de permissão e proibição “em sentido forte” podem ser contrapostas à
definição de permissão em sentido frágil, que é enunciada nos seguintes termos:
10 Cf. supra, notas 1 e 2. 11 ALCHOURRÓN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Introducción a la metodología de las ciencias jurídicas y
sociales. Buenos Aires: Astrea, 4. reimp., 2002, p. 170. 12 Idem, p. 174.
11
“Definição de permissão em sentido frágil: p é permitido em sentido frágil no caso q em um sistema α” se e somente se “entre as conseqüências de α não existe uma norma que proíba (não permita) p no caso q”13.
Como explicam os juristas argentinos, “a permissão frágil – como a permissão forte –
é um caráter da conduta, não da norma. Mas diferentemente da permissão forte, que expressa
um fato positivo (a existência de uma norma permissiva), a permissão frágil somente aduz a
um fato negativo: a inexistência de uma norma proibitiva”14.
Em um sistema normativo fechado, normalmente há uma regra de fechamento
(clausura) que estabelece, por exemplo, que “todas as condutas que não estão proibidas estão
permitidas”. É esse o caso, por exemplo, do Direito Penal, em que vigora a regra da
legalidade estrita (ou mesmo do Direito Tributário, quando estivermos tratando da criação de
um tributo). Mas repare: a regra da legalidade estrita vige para um horizonte normativo
determinado, a esfera do Direito Penal, e não resolve necessariamente todos os problemas
deontológicos que possam surgir fora deste subsistema normativo, ou seja, fora da esfera das
relações jurídicas reguladas por ela. Onde não vigorar uma regra de fechamento ou clausura,
não se poderá concluir que uma permissão em sentido forte tenha o mesmo efeito de uma
permissão em sentido frágil, ou seja, que a ausência de norma proibitiva seja o mesmo que a
presença de uma norma permissiva.
No caso específico da competência outorgada pela Constituição da República ao
Presidente da República e ao Congresso Nacional para celebrar tratados, não há dúvida de que
se deve interpretar o artigo 5o, § 3o, da Constituição Federal como instituindo uma permissão
em sentido forte para instituir tratados com força de lei constitucional (se atendido o requisito
procedimental) em matéria de Direitos Humanos. No entanto, não parece que se possa falar de
uma “proibição em sentido forte” de que os tratados sobre outras matérias sejam
internalizados pelo mesmo procedimento (e com a mesma força) da emenda constitucional . O
máximo que se poderia falar é de uma certa “proibição em sentido frágil”, ou seja, de uma
ausência de norma permissiva expressa no ordenamento jurídico, haja vista que não há uma
regra de clausura segundo a qual a ausência de uma permissão expressa para que o Presidente
da República celebre tratados dessa natureza deve ter o mesmo efeito de uma proibição
expressa.
O que parece mais correto deduzir é que o artigo 5o, § 3o, da Constituição Federal não
resolve por si só o problema dos limites da competência dos tratados que não versam sobre
13 Idem, p. 176. 14 Idem, p. 176-7.
12
Direitos Humanos. O regime jurídico desses últimos tratados permanece, portanto, o dos
artigos 84, VIII, e 49, I, da Constituição Federal. Para saber se os tratados em geral podem
versar sobre matérias de leis complementares ou servir como mecanismos de reforma da
Constituição, deve-se buscar uma resposta não diretamente no artigo 5o, § 3o, mas no sistema
constitucional como um todo. Daí, o argumento decisivo para escolher entre as alternativas (i)
– interpretar Dh como uma condição necessária para R – e (ii) – considerar Dh apenas
suficiente para R – há de ser o argumento sistemático.
Esse argumento nos conduzirá, como veremos adiante, a (ii), não a (i). Para enxergar
isso eu sugiro que comecemos por visitar as razões para a interpretação (i). A principal razão
para concluir que o poder de celebrar tratados não pode incluir o poder de editar leis
complementares ou de reformar a Constituição reside em uma análise literal e restritiva das
próprias normas constitucionais que regulam a competência das leis complementares e o
processo legislativo para a reforma da Constituição. Como seriam ambos os casos
competências excepcionais, somente poderiam ser exercidas por quem as detivesse
expressamente. Assim, do artigo 60 da Constituição Federal, que regula a Emenda
Constitucional, inferiríamos que o poder de reformar a constituição somente poderia ser
exercido através de um projeto específico para tanto; das regras que definem a competência
da lei complementar inferiríamos que estas competências somente poderiam ser exercidas
através de projetos de lei específicos com o nomem iuris “lei complementar” e aprovados
com o quorum do artigo 69. Portanto, quando o artigo 146, III, da Constituição da República
estabelece que “cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação
tributária”, esse dispositivo estaria excluindo que qualquer outro tipo de ato normativo (fonte
do Direito) criasse tais normas gerais. Denominarei esse argumento de “argumento da
exclusividade”.
O argumento da exclusividade, apesar de a primeira vista convincente, é falho porque
se aceito conduziria a acreditar que o tratado internacional também não pode dispor sobre
matéria reservada a qualquer outra fonte do Direito, incluindo-se a própria lei ordinária. Ora,
por que devemos entender que quando a Constituição diz “cabe à lei complementar dispor
sobre X” isso significa “não pode o tratado internacional dispor sobre X”, se quando a
Constituição diz “cabe à lei ordinária dispor sobre Y” é pacífico que ela não está proibindo o
tratado de dispor sobre Y? Onde, na Constituição Federal, está dito que o tratado internacional
somente pode dispor sobre matéria reservada à lei ordinária? Se o argumento descrito no
parágrafo anterior fosse verdadeiro, não deveríamos então concluir também que o tratado
internacional não pode dispor sobre a matéria reservada à lei ordinária, na medida em que
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essa competência foi também outorgada em regra geral ao Poder Legislativo, e portanto
somente poderia ser excepcionada com fundamento em uma norma permissiva expressa?
O que essas indagações revelam é que o argumento da exclusividade não pode ser
aceito porque ele é invocável não apenas para a lei complementar e para as emendas
constitucionais, mas também para as leis ordinárias e os demais atos de produção de normas
jurídicas gerais, como as Resoluções do Senado Federal em matéria tributária (abarcando
matéria sobre os quais há consenso que o tratado pode regular). Por isso, concluímos que não
há uma regra geral exclusiva em matéria de Direito dos Tratados na Constituição Federal de
1988 (cujo conteúdo seria algo como “se a Constituição especifica que certa matéria deve ser
regulada pela espécime normativa “a” ou pela espécime normativa “b”, então essa matéria
não pode ser regulada por meio de tratados”) e, destarte, há uma abertura no sistema
jurídico constitucional no que se refere à prerrogativa de celebrar tratados.
Por isso, devemos concluir que na norma do § 3o do art. 5o a relação entre (Ti & Dh &
Pe) e ORx não é a de uma implicação intensiva, pois do dispositivo normativo em questão não
se pode inferir que Dh seja uma condição necessária para ORx. Isso é extremamente relevante,
pois revela que não se pode inferir “a contrario sensu” do artigo 5o, §3
o, da Constituição que
os tratados internacionais que não versam sobre Direitos Humanos somente podem dispor
sobre matéria reservada à lei ordinária.
A mesma situação de lacuna que levou o Supremo Tribunal Federal à conclusão de
que o procedimento para aprovação dos tratados e a matéria sobre a qual eles podem versar
são os mesmos das leis ordinárias federais permanece no caso concreto. Portanto, é preciso
que fique muito claro que se hoje se diz que o tratado somente pode versar sobre conteúdos
reservados à lei ordinária, não há qualquer norma constitucional que ampare expressamente
esse dito: a raiz dessa afirmação está apenas em uma criação judicial do Supremo Tribunal
Federal que só pode continuar a valer se não se conseguir demonstrar fundamentos suficientes
para uma nova criação judicial mais razoável e convincente.
3. Por dentro da lacuna: a Constituição Federal e o regime jurídico dos tratados
internacionais
Há diferentes sentidos em que a expressão lacuna jurídica pode ser entendida. Uma
das enunciações mais interessantes é a tipificação de ALCHOURRÓN e BULYGIN. Tais
autores sustentam que o sistema jurídico “qualifica normativamente certas condutas (em
14
determinadas circunstâncias) e regula dessa maneira os comportamentos dos indivíduos que
integram um grupo social, contribuindo para sua convivência pacífica ao prever
antecipadamente a forma como hão de se solucionar os conflitos de interesses que se possa
suscitar”15. Os grandes problemas a serem resolvidos pela função jurisdicional seriam: A)
problemas de conhecimento (acerca do status jurídico de uma determinada conduta); e B)
problemas de descumprimento (transgressão das normas do sistema). Nos problemas de
conhecimento, pode haver tanto defeitos no sistema, que se apresentam ou sob a forma de
lacunas normativas ou de soluções incompatíveis (incoerências), como também problemas de
subsunção, que podem decorrer tanto da falta de alguma informação fática (lacuna de
conhecimento) quanto de uma indeterminação semântica dos textos normativos (lacuna de
reconhecimento).
A lacuna que se manifesta em relação aos tratados internacionais é uma lacuna
normativa, ou seja, um caso em que se verifica uma ausência de solução, pelo sistema
normativo, do problema jurídico enfrentado no caso concreto.
Antes de examinar novamente a solução que o Supremo Tribunal Federal encontrou
para essa lacuna, cumpre uma breve palavra acerca da principal ferramenta metodológica para
colmatar lacunas: a analogia. Como vimos, as regras jurídicas que compõem um ordenamento
somente podem possuir coerência sistemática se estiverem suportadas por princípios jurídicos.
Como sustenta Neil MACCORMICK:
“A coerência entre normas (consideradas como um conjunto) é uma questão de fazê-las ‘ter sentido em conjunto’ (‘making sense’ as a set), instrumental ou intrinsecamente, para a realização de certo valor ou valores comuns. Isso também pode ser expresso como uma questão acerca do cumprimento de certo princípio ou princípios articulados em maior ou menor medida”16.
Se adotarmos um modelo de sociedade e de Direito no qual a racionalidade do sistema
normativo seja em si mesma uma idéia fundamental tanto das convicções morais
compartilhadas quanto do próprio sistema jurídico, um “modelo de princípios jurídicos” está
intrinsecamente pressuposto. Trata-se de um modelo em que tanto os cidadãos em geral
quanto os aplicadores e destinatários das normas jurídicas tenham consciência de que “estão
governados por certos princípios comuns, e não apenas por regras ejetadas de compromissos
políticos”17. As regras jurídicas particulares, se essa concepção de coerência ou integrity for
15 ALCHOURRÓN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Op. cit. (nota 11), p. 202. 16 MACCORMICK, Neil. Rhetoric and the Rule of Law. Oxford: OUP, 2005, p. 193. 17 DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge, MA: Belknap, 11th printing, 2000, p. 211.
15
adotada, devem ser interpretadas e harmonizadas em conformidade com os seus princípios
basilares (underlying principles).
Admitida a relevância normativa da exigência de coerência entre as normas que
compõem o sistema normativo (coerência normativa), fica claro que a justificação de
analogias necessariamente pressupõe uma argumentação por princípios. Ainda com
MACCORMICK, podemos dizer que a relevância de uma analogia “depende sempre do
princípio mais geral do qual cada um dos casos pode ser mostrado como uma instanciação”18.
Isso, naturalmente, dá à analogia uma estrutura metodológica especial, pois ela
necessariamente envolve tanto a técnica da subsunção quanto a da ponderação. Com efeito,
como vimos, a analogia depende de (a) constatar a presença de um lacuna, (b) encontrar um
caso paradigma que possa ser subsumido em uma regra e (c) buscar a ratio legis ou princípio
informador da regra paradigma. Vencidas essas etapas, passa-se a verificar se esse mesmo
princípio deve ou não ser aplicado ao caso omisso, em vista da relevância das semelhanças
entre um caso e outro. Está portanto sempre pressuposto um juízo de valor acerca da
influência do princípio em questão no caso para o qual se busca uma regulação; e não é
qualquer tipo juízo de valor. “Os princípios não impõem uma ação conforme a uma hipótese
de incidência, mas uma ‘tomada de posição’ em conformidade com o seu ethos”19.
Ainda com ZAGREBELSKI, pode-se dizer que “às regras se ‘obedece’ e, por isso, é
importante determinar com precisão os preceitos que o legislador estabelece por meio de
formulações que as contém; aos princípios, diferentemente, ‘se presta adesão’ e, por isso, é
importante compreender o mundo dos valores, as grandes opções de cultura jurídica das quais
formam parte e às quais as palavras não fazem senão uma simples alusão”20 . Por isso,
podemos dizer que aplicar uma regra por analogia significa aderir aos mesmos princípios que
a justificam, o que exige do aplicador do Direito uma atividade de reconstrução do
fundamento da regra adotada como paradigma, para verificar se esta pode ser fundamentada
também para o caso ao qual se pretende estendê-la.
Feitas essas considerações iniciais sobre a analogia e a sua justificação por princípios,
passemos a examinar como se pode construir um argumento para superar o dogma de que
tratados internacionais não podem dispor sobre matéria outra que não a de lei ordinária
federal.
18 MACCORMICK, Neil. Op. cit. (nota 16), p. 207. 19 ZAGREBELSKI, Gustavo. El Derecho Dúctil, trad. Marina Gascon. Madrid: Trotta, 5. ed, 2003, p. 118. 20 Idem, p. 110.
16
Inicialmente, cumpre lembrar como foi vindicada a tese de que os tratados
internacionais se situam no mesmo grau hierárquico das leis infraconstitucionais. Em 01 de
Junho de 1977, quando o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do histórico RE
80.004/SE, foi consagrada a teoria jurídica de que os tratados internacionais estão
subordinados à Constituição Brasileira e, portanto, podem ser revogados pela legislação
interna:
“Embora a Convenção de Genebra que previu lei uniforme sobre letras de câmbio e notas promissórias tenha aplicabilidade no direito interno brasileiro, não se sobrepõe ela às leis do país, disso decorrendo a constitucionalidade e conseqüente validade do Decreto-Lei n. 427/69, que instituiu o registro obrigatório de nota promissória em Repartição Fazendária (...)”21.
No Voto do Ministro CORDEIRO GUERRA, em que foi expressa a tese vencedora no
julgamento, ficou evidenciada a ratio decidendi do caso:
“Creio que tal entendimento (supremacia da Constituição sobre os tratados) tem plena aplicação ao Direito Pátrio, pois a Constituição Federal defere ao Supremo Tribunal Federal competência para declarar a inconstitucionalidade de tratado ou de lei, em pé de igualdade, sem dar ao tratado tratamento superior à lei, art. 119, III, b,”.
Percebe-se que no clássico leading case, anterior à Constituição de 1988, o que se
decidiu foi apenas a submissão dos tratados à Constituição e sua igualdade com a lei, sem
distinguir acerca das leis ordinárias e complementares (o que gera a conclusão de que a
eventual invasão da esfera destas últimas permanecia uma questão não resolvida) e sem abrir
qualquer possibilidade para modificação da Constituição via tratados.
Mais recentemente, no julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 1.480, em 04 de Setembro de 1997, após reafirmação, com sólidos
argumentos, da teoria da submissão dos tratados ao império da Constituição, foi decidida a
importante questão da possibilidade de um tratado internacional dispor sobre matéria de lei
complementar. Na ementa do acórdão, está fixado o entendimento majoritário:
“O primado da Constituição, no sistema jurídico brasileiro, é oponível ao princípio pacta sunt servanda, inexistindo, por isso mesmo, no direito positivo nacional, o problema da concorrência entre tratados internacionais e a Lei Fundamental da República, cuja suprema autoridade normativa deverá sempre prevalecer sobre os atos de direito internacional público. Os tratados
21 STF, RE 80.004, Rel. p. Acórdão Min. CUNHA PEIXOTO, DJ de 29.12.1977.
17
internacionais celebrados pelo Brasil - ou aos quais o Brasil venha a aderir - não podem, em conseqüência, versar matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar. É que, em tal situação, a própria Carta Política subordina o tratamento legislativo de determinado tema ao exclusivo domínio normativo da lei complementar, que não pode ser substituída por qualquer outra espécie normativa infraconstitucional, inclusive pelos atos internacionais já incorporados ao direito positivo interno”22.
O Ministro CARLOS VELLOSO, no entanto, sustentou posicionamento diferente, que
merece nota no presente momento:
“(T)odos sabemos, em certos casos a Constituição exige, para a regulamentação ou complementação de norma constitucional, lei complementar; noutros casos, lei, simplesmente. No primeiro caso, ter-se-á lei complementar; no segundo, lei ordinária. Mas o que deve ser compreendido é que lei constitui gênero, do qual lei complementar, lei ordinária, medida provisória e lei delegada são espécies. A Constituição Federal, na Subseção III, da Seção VIII, do Capítulo I, do Título IV, sob o título “Das Leis” , artigos 61 a 69, cuida dessas espécies legislativas (omissis). (...) A demonstrar que a lei é gênero, do qual lei complementar, lei ordinária, medida provisória e lei delegada, no sistema constitucional brasileiro, são espécies, e que o tratado é equiparado ao gênero e não a uma das espécies daquele, são as disposições constitucionais que estabelecem os pressupostos dos recursos extraordinário e especial, inscritas nos artigos 102, III, b e c, e 105, III, a, b e c, da Constituição. Lei, naquelas disposições constitucionais, é lei a lei ordinária, ou a complementar, ou a delegada ou mesmo a medida provisória”.
Tal entendimento foi rejeitado, porém, com fundamento em considerações sobre o
quorum de votação e o princípio da democracia representativa. É o que se lê, por exemplo, no
Voto do Ministro NELSON JOBIM:
“(É) importante deixar claro que, à medida que matérias são enviadas pela Constituição à lei complementar (...), essa lei complementar tem tema próprio e restrito. E por que esse tema próprio e restrito está adstrito à lei complementar? Porque a manifestação popular, contida na Assembléia Popular, exigiu para si mesma a maioria absoluta, tendo em vista as discussões. Ora, se adotássemos o raciocínio exposto pelo eminente Ministro Carlos Velloso, teríamos uma situação curiosíssima. A maioria não absoluta dos Membros do Congresso Nacional tem uma determinada posição de conteúdo para uma lei complementar, mas não tem maioria absoluta para aprová-la como tal. Bastaria, para burlar a exigência constitucional de maioria absoluta para tratar o tema, firmar um tratado internacional com o país vizinho”.
22 STF, ADI-MC 1.480, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 18.05.2001.
18
Como se percebe, há duas premissas implícitas no voto dos dois Ministros, que
estiveram latentes também nos votos de todos os demais. Primeira: a de que os tratados são
aprovados por maioria simples. Segunda, a de que os tratados podem dispor sobre matéria de
lei ordinária.
Quanto à primeira premissa, ela pode encontrar fundamento no artigo 47 da
Constituição, que afirma como regra geral que as deliberações no Congresso Nacional serão
tomadas por maioria simples
Quanto à segunda, por sua vez, cabe frisar que a Constituição não regula
expressamente as situações que podem ser disciplinadas pelo tratado internacional; portanto, a
própria conclusão de que os tratados podem dispor sobre matéria de lei ordinária é em si
mesma uma construção jurídica, a qual parte de uma analogia com as leis ordinárias e que
encontra justificação no fato de que essa tese não causaria prejuízo ao princípio democrático e,
ao mesmo tempo, evitaria a situação de completo isolamento do Brasil em relação aos demais
Estados Soberanos.
A tese do Ministro VELLOSO, por sua vez, foi rejeitada, apesar da sua elevada
plausibilidade, com fundamento no argumento do quorum: aceitá-la permitiria a possibilidade
de uma “burla” ao processo legislativo democrático.
No entanto, o argumento do Ministro JOBIM para rejeitá-la só é forte se a premissa
primeira (de que os tratados serão sempre aprovados pelo Congresso Nacional por maioria
simples) estiver dogmaticamente assentada, i. e., se o tratado internacional necessariamente
tiver de ser internalizado com o quorum de maioria simples.
Porém, ao voltarmos nossas atenções para o ordenamento jurídico brasileiro pós-
Emenda Constitucional n. 45/2004, podemos encontrar importantes detalhes que estavam
ausentes no anterior. Na atual sistemática normativa observamos o seguinte:
- o supramencionado § 3o, do art. 5o, da Constituição Federal permite expressamente
que um grupo especial de tratados internacionais venha a reformar a própria Constituição na
hipótese de o ato de internalização seguir o procedimento idêntico ao do § 2º do artigo 60;
- não há qualquer norma na Constituição que expressamente proíba uma solução
semelhante para outros tipos de tratados;
- também não há norma que expressamente proíba os tratados de Direitos Humanos de
dispor sobre matéria de lei complementar;
- aliás, o argumento do Ministro Carlos VELLOSO continua tendo alguma relevância,
na medida em que a Constituição trata das “Leis” em um sentido genérico, não estabelecendo
19
hierarquias entre lei complementar e lei ordinária e nem dizendo que o tratado internacional
guarda correspondência com apenas uma delas.
O que cumpre verificar, então, é se as construções do Supremo Tribunal Federal na
ADI-MC 1.480, formuladas antes da Emenda Constitucional n. 45/2004 e fundadas em
premissas normativas já não mais integralmente mantidas pela Constituição (pois já não se
pode mais dizer dogmaticamente que “nunca um tratado será internalizado por processo
diverso do previsto no artigo 47 da Constituição”) podem ainda ser justificadas. Para uma
resposta, eu sugiro verificar se são possíveis as seguintes aplicações analógicas do § 3o, do art.
5o da Constituição:
1) Estabelecer uma regra segundo o qual os tratados de Direitos Humanos podem
dispor sobre matéria de lei complementar, desde que internalizados com o quorum de maioria
absoluta;
2) Estabelecer uma regra segundo o qual um tratado sobre outras questões relevantes
(por exemplo, matéria tributária ou econômica, que são especialmente importantes para a
integração do Brasil ao mundo global, bem como ao Mercosul) pode também ser incorporado
ao ordenamento jurídico como norma constitucional, desde que a internação siga o
procedimento do § 2º do artigo 60 da Constituição;
3) Estabelecer uma regra segundo a qual um tratado sobre outras questões relevantes
pode dispor sobre matéria de lei complementar, desde que internalizado com o quorum de
maioria absoluta.
Obviamente, como vimos, justificar essas analogias exige considerar, para além dos
argumentos do Ministro VELLOSO, os princípios que se acham por detrás da própria regra
consagrada pela EC 45/2004 ao introduzir o parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição, bem
como os princípios que levaram o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI-MC
1.480, a decidir que a matéria reservada pela Constituição às leis complementares está
peremptoriamente excluída do campo de competência dos tratados internacionais.
Nesse sentido, como já adiantamos acima, pode-se perceber que o núcleo fundamental
das abordagens que restringem o uso de tratados internacionais ao campo da competência das
leis ordinárias está no princípio democrático, que busca preservar as decisões do legislador
constituinte acerca do quorum necessário (ou seja, acerca do nível de consenso entre os
representantes do povo eleitos democraticamente) para disciplinar certas matérias (as matérias
protegidas por leis complementares). Parece difícil negar essa conclusão.
De outro lado, no que se refere à emenda constitucional que autoriza a instituição de
tratados de Direitos Humanos com força constitucional, pode-se ver com clareza que foram
20
consagrados na norma pelo menos os seguintes princípios: (1) o princípio da prevalência dos
Direitos Humanos nas ordens interna e internacional (art. 4º, inciso II, da Constituição) e (2) o
princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4º, inciso IX,
da Constituição). Ademais, o legislador encontrou uma fórmula que conseguiu manter livre de
qualquer interferência o princípio democrático e o princípio da soberania popular (art. 14 e
art. 1º, parágrafo único, da Constituição). Conseguiu-se, dessa forma, uma relevante fórmula
de compromisso e uma mútua otimização dos princípios jurídicos que poderiam
eventualmente colidir ao se regulamentar matéria tão delicada.
Se restringirmos nossa análise aos quatro princípios mencionados, poderíamos dizer
que a fórmula do constituinte derivado foi a seguinte: os princípios da prevalência dos
Direitos Humanos e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade são,
ambos, fundamento para se permitir a instituição de tratados internacionais com força de
norma constitucional, já que não foram restringidos o princípio democrático e o princípio da
soberania popular. Como foi possível encontrar essa solução conciliatória, não é preciso
sequer ponderar princípios eventualmente colidentes, na medida em que não há colisão.
Aplica-se a idéia do ótimo de Pareto, que Alexy utiliza para descrever a estrutura dos
subprincípios da adequação e da necessidade, que constituem elementos do princípio geral da
proporcionalidade: “uma posição pode ser melhorada, sem com que outra piore”23.
Verifica-se, portanto, em relação às hipóteses 1-3 logo acima, que em todas elas o
grau de restrição dos princípios da soberania popular e da democracia representativa é zero
ou próximo disso, pois a condição para que o tratado possua força superior é a observância de
um processo de aprovação (pelo Congresso Nacional) mais severo.
De outro lado, em (1) os mesmos princípios que justificam o § 3º do art. 5º da
Constituição justificam também a solução proposta, ao passo que em (2) e (3) um dos
princípios, o da cooperação internacional para o progresso da humanidade (sem prejuízos de
outros princípios ligados à ordem econômica) será fomentado em grau elevado caso se adote,
por analogia, um regramento semelhante ao do preceito constitucional invocado e responda
afirmativamente à questão de se é possível ou não estabelecer regras permitindo a
internalização de qualquer tratado, sobre qualquer matéria, desde que sejam observados o
procedimento e o quorum previstos pela Constituição para essas mesmas matérias.
A conclusão a que chego nesse ponto (a qual pareceria óbvia não fosse o grande
número de pessoas que, movidas por um formalismo jurídico fruto do preconceito ou do medo,
23 ALEXY, Robert. Epílogo a la Teoria de los derechos fundamentales. Trad. Carlos Bernal Pulido. Madrid: Fundacion Beneficentia et Peritia Iuris, 2004, p. 41.
21
continuam a peremptoriamente negar a possibilidade de tratados internacionais disporem
sobre matéria reservada à lei complementar) é de que na sistemática da Emenda
Constitucional n. 45/2004 está aberta a porta para que tratados internacionais de Direito
Tributário, por exemplo (que são especialmente relevantes para a formação de blocos
econômicos, zonas de livre comércio ou para evitar a bi-tributação), sejam validamente
celebrados ainda que esta matéria esteja sujeita a lei complementar ou tenha sido tratada
diferentemente pela Constituição. No primeiro caso, o tratado deve ser referendado pelo
Congresso Nacional por maioria absoluta; no segundo, pelo processo previsto no § 2º do
artigo 60 da Constituição.
Por isso, a orientação assentada na fundamentação da ADI-MC. 1.480 deve ser revista
porque ao tempo em que essa decisão foi prolatada não havia uma base de analogia
suficientemente forte para ir além da tese de que o tratado deveria dispor apenas sobre matéria
de lei ordinária e ser aprovado unicamente por maioria simples. A solução que o Constituinte
derivado encontrou na EC 45/2004, de permitir a internação de tratados de Direitos Humanos
com força de norma constitucional desde que seja respeitado o procedimento previsto no § 2º
do artigo 60 da Constituição, revela que o único óbice à força normativa diferenciada de um
tratado internacional estava no nível de consenso necessário para internalizá-lo, e que se o
processo de internalização do tratado internacional incorporar todas as exigências
procedimentais contidas no processo de emenda à Constituição, a força normativa dos
tratados internacionais pode ser incrementada sem qualquer interferência no princípio
democrático ou na soberania nacional.
4. Um argumento adicional: a relevância do processo legislativo e a aplicabilidade do
princípio “pas de nulité sans grief” no âmbito do processo legislativo
Um outro argumento que pode ser utilizado para justificar a analogia proposta tem por
fundamento a aplicação do princípio “pas de nulité sans grief” no âmbito do processo
legislativo em geral. Recordo, para expor o argumento, a tese consagrada pelo Ministro
MOREIRA ALVES no julgamento da ADC 1, de que uma simples lei ordinária pode revogar
lei complementar que tenha estabelecido uma isenção tributária que se acha na esfera de
competências da lei ordinária. Vejamos:
22
“(...) Essa contribuição (social) poderia ter sido instituída por lei ordinária. A circunstância de ter sido instituída por lei formalmente complementar – a Lei Complementar n. 70/91 – não lhe dá, evidentemente, a natureza de contribuição social nova, a que se lhe aplicaria o disposto no § 4º do artigo 195 da Constituição, porquanto essa lei, com relação aos dispositivos concernentes à contribuição social por ela instituída – que são o objeto desta ação –, é materialmente ordinária, por não tratar, neste particular, de matéria reservada, por texto expresso da Constituição, à Lei Complementar”24.
O Supremo Tribunal Federal fixa, nesse julgado, duas diretivas importantes para
fundamentar a analogia que estamos discutindo neste ensaio: (1) as leis complementares que
regularem matéria de lei ordinária não padecem de nulidade, eis que naturalmente foram
observadas todas as regras de processo legislativo para a sua instituição; (2) o fato de a lei
complementar dispor sobre matéria de lei ordinária faz com que, apesar do nomen iuris “lei
complementar”, o diploma normativo em questão seja considerado uma lei “materialmente
ordinária” que pode, sem problemas, ser revogada por lei aprovada por maioria simples.
Veja-se que o Supremo Tribunal Federal consagrou, no julgado em foco, a tese de que
o que importa para determinar a força ou eficácia jurídica de um ato legislativo não é o
“nome” que é dado a este, mas dois aspectos: de um lado, a competência da autoridade que o
prolatou e, de outro, a observância do processo legislativo (e em especial do quorum)
especificado para a prática do ato. Por isso, se uma lei complementar invadir a esfera de uma
lei ordinária a única conseqüência será a possibilidade de ela ser revogada por maioria
simples (excluída portanto a possibilidade de se “invalidar” a lei complementar por esse vício
formal). Recapitulando: quando uma lei complementar invade a competência da ordinária ela
não é inválida, mas tem a mesma eficácia jurídica desta última espécime normativa.
Ora, um tratado internacional que disponha sobre matéria de lei complementar (ou,
ainda, que reforme a Constituição) e tenha sido internalizado por maioria absoluta de votos
(ou, na última hipótese, pelo processo previsto no § 2º do artigo 60 da Constituição) está em
situação parecida com a lei complementar que versa sobre competência de lei ordinária, pois
(a) a autoridade competente para resolver definitivamente sobre a validade do ato é, nos dois
casos, a mesma (o Congresso Nacional); e (b) o iter procedimental e o quorum necessário,
nos dois atos, são os mesmos.
Verifica-se, portanto, que tanto em um caso como em outro foram praticados os atos
(de processo legislativo) necessários para manifestar validamente a vontade soberana dos
representantes do povo no órgão próprio de representação democrática.
24 STF, ADC 1, DJ de 16.06.1995. O trecho reproduzido foi extraído do voto do Ministro Relator MOREIRA ALVES.
23
Por isso, deixar de atribuir validade ao tratado internacional é o mesmo que deixar de
atribuir validade a uma lei complementar (ou a uma emenda constitucional) mais recente, já
que o procedimento de aprovação do referido tratado seguiu as mesmas cautelas previstas
para esta. Podemos concluir, portanto, que a tentativa de se evitar que um tratado possa dispor
sobre matéria constitucional ou matéria de lei complementar mesmo se for respeitado o
processo legislativo próprio no momento de internalização representaria uma violação ao
próprio princípio democrático, haja vista que se daria prioridade à mera “forma” do ato (em
especial ao seu nomem iuris) em detrimento do conteúdo (um ato legislativo que obedeceu ao
procedimento, no caso da emenda, e ao quorum, no caso da lei complementar, próprio). Não
tem sentido, portanto, restringir o treaty-making power às matérias de lei ordinária, pois isso
implicaria sérios inconvenientes ao Brasil para a integração com os demais Estados
democráticos que compartilham interesses comuns.
5. Tratados internacionais e tributos estaduais e municipais
Das perguntas postas no início deste ensaio, restam ainda sem resposta as que se
referem ao poder de celebrar tratados internacionais em matéria de tributos estaduais e
municipais.
Os estudiosos do Direito tributário se dividem a respeito dessas indagações. Luciano
AMARO, por exemplo, citando relevante doutrina que acompanha, afirma: “não se deve
confundir o tratado firmado pela União com as leis federais. Quem atua no plano externo
com soberania é o Estado Federal, e não os Estados federados ou os Municípios. Portanto, o
tratado não é ato que se limite à esfera federal: ele atua na esfera nacional, não obstante a
Nação (ou o Estado federal) se faça representar pelo aparelho legislativo e executivo da
União”25.
Um posicionamento semelhante apresenta Sacha Calmon NAVARRO COÊLHO: “É
imperioso distinguir (...) a União federal quando representa o Estado brasileiro na ordem
internacional e a União como pessoa jurídica de Direito Público interno. Assim, quando o art.
151, III, da Constituição Federal veda à União a faculdade de instituir isenções de tributos da
competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, não está limitando a
competência do Estado brasileiro para concluir acordos tributários que envolvam gravames
25 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro, 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186.
24
estaduais e municipais, mas apenas proibindo, na ordem jurídica interna, a isenção
heterônoma e ditatorial que existia na Carta de 1967”26.
Roque CARRAZZA, com um pouco mais de cautela, acredita que é “incontroverso”
que “ao Congresso Nacional é vedado usurpar competências que a Lei das Leis outorgou aos
Estados e aos Municípios”, mas admite que a União possa celebrar tratado internacional que
conceda isenções de ICMS e ISS nos termos dos artigos 155, § 2º, XII, ‘e’, e 156, § 3º, II, da
Constituição Federal27.
Observando a discussão doutrinária acima, vemos que na verdade há duas questões
que precisam ser resolvidas: (1) pode o tratado internacional dispor sobre qualquer matéria
relativa a tributos estaduais ou municipais (como crê Luciano AMARO, por exemplo) ou
apenas conceder isenções desses tributos nos casos em que a Constituição tenha previsto a
competência da União para tratar de tal matéria?; (2) Nessa última hipótese, pode o tratado
em questão versar sobre a matéria de lei complementar?
Embora já tenhamos respondido parte dessas perguntas, cabe retornar a elas
brevemente, tendo em vista uma certa confusão que existe tanto na doutrina quanto, em
alguma medida, na jurisprudência.
A questão n. 1 (matéria que pode ser regulada por tratado internacional) deve ser
respondida no sentido de que a competência dada à União para instituir tratados internacionais
não pode abarcar a competência privativa dos Estados. Além do argumento formal, justificado
pelo princípio federativo (art. 1º, Constituição Federal), há proibição expressa de a União
instituir isenções de tributos estaduais e municipais (art. 151, III, da Constituição). Quando o
artigo 151, III, veda à União instituir isenções de tributos estaduais e municipais, não veda
apenas que ela o faça por meio da legislação interna, mas também que sejam celebrados
tratados internacionais sobre assuntos de interesse local que foram postos pelo constituinte
sob a administração exclusiva dos Estados e Municípios. Embora a norma não abarque, por
óbvio, o poder de excluir a incidência de tributo estadual ou municipal nas hipóteses
autorizadas à lei complementar, proíbe esse tipo de procedimento nas hipóteses não
autorizadas, mesmo se o instrumento normativo adotado for um tratado internacional. Esse
entendimento me parece correto em vista do denominado princípio da subsidiariedade, que
desempenha importante papel nos Estados Federais. Como explica Reinhold ZIPELIUS, “da
exigência de maior autodeterminação possível (dos indivíduos nas comunidades) deduz-se
26 NAVARRO COÊLHO, Sacha Calmon. Curso de Direito Tributário Brasileiro, 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 548. 27 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 460.
25
como princípio estrutural o princípio da subsidiariedade: as comunidades superiores só
deverão assumir funções que as comunidades mais pequenas, inferiores, não podem cumprir
da mesma ou melhor forma” 28 . Esse princípio constitucional implícito na estrutura do
federalismo democrático impede que se concentre nas mãos da União questões de interesse
tipicamente local. Por exemplo, uma isenção em matéria de IPTU não poderia jamais ser
regulada por tratado internacional (afora, é óbvio, os casos em que a lei complementar da
União tiver alguma competência) porque esses assuntos são considerados tipicamente de
interesse local e o princípio da autodeterminação política demanda que sejam resolvidos pelas
próprias comunidades, e não por uma convenção internacional em que tomam parte pessoas
que nem sequer conhecem os interesses exclusivamente locais e não sabem muito bem lidar
com eles.
Creio que a Constituição de 1988, ao atribuir à lei complementar federal certas
competências em matérias de tributos estaduais e municipais (em termos de ICMS quase
todas as questões relevantes!), já escolheu adequadamente quais os casos em que a escolha da
regulação adequada deve ser estranha ao governo das comunidades locais (municipal e
estadual), e não é possível ao intérprete da Constituição tentar estender essas atribuições. O
princípio da subsidiariedade, é importante lembrar, é tanto um princípio do Estado federal
quanto um princípio do próprio Direito Internacional.
A questão número 2, por sua vez, já foi respondida acima. Ainda assim cumpre uma
palavra a mais tendo em vista um acórdão do Supremo Tribunal Federal cujo julgamento foi
concluído quatro anos após o julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de
Inconstitucionalidade citada acima (n. 1.480), que sinaliza a possibilidade de uma mudança de
orientação quanto aos tratados em matéria de leis complementares. Trata-se da ADI n. 1.600,
cujo julgamento foi concluído pelo Pretório Excelso em 29 de Novembro de 2001. No caso,
uma das questões resolvidas foi a da diferença de tratamento, para fins de tributação por meio
de ICMS, entre as empresas estrangeiras e as brasileiras que prestam serviços de transporte
internacional de cargas. Leia-se o voto do Ministro NELSON JOBIM, que foi acompanhado
por apertada maioria:
“O Brasil firmou trinta e quatro (34) acordos internacionais sobre transportes aéreos regulares. Em todos eles, havendo reciprocidade, as empresas aéreas estão dispensadas das tributações locais.
28 ZIPELIUS, Reihold. Teoria geral do Estado (trad. Karin Praefke-Aires Coutinho). Lisboa: Calouste Gulbenkian, 5. ed., 1997, p. 159.
26
Por isso, nenhuma empresa internacional, que opera no e para o Brasil, tem inscrição no ICMS. (...) Esse mesmo legislador (da LC 87/96) não pode estruturar o tributo de forma a ‘... instituir tratamento desigual entre contribuintes...’ (art. 151, III). Afirmar-se-ia, com isso, que os Estados, não obstante os Tratados, poderiam cobrar o tributo das empresas estrangeiras. Por todos, leio SACHA CALMON: ‘[Segue longo excerto de Sacha Calmon NAVARRO COÊLHO, incluindo-se a passagem sobre a nota 26, que continua a seguir] (...) Uma coisa é vedar à União a instituição de lei para isentar imposto estadual e municipal. Outra coisa é recepcionar isenção derivada de tratado internacional (e não de lei complementar ou federal). A isenção heterônoma decorre da lei. A isenção convencional, de tratado internacional. Quanto a essa última, o Direito brasileiro o que prescreve é a sua obediência pela Nação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios)’. Lembra, ainda SACHA CALMON, que a CF permite a isenção heterônoma em dois casos: (a) ICMS, nas exportações para o exterior de serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, ‘a’ (CF, art. 155, § 2º, XII, ‘e’); (b) ISS, nas exportações para o exterior (CF, art. 156, § 3º). O âmbito de aplicação do artigo 151, III, da CF, em todos os seus incisos, é o das relações das entidades federadas, entre si. Não tem por objeto a União quando esta se apresenta como a República Federativa do Brasil, na ordem externa”29.
Com base nesse raciocínio foi que o Ministro NELSON JOBIM, acompanhado pela
maioria do plenário do Supremo Tribunal Federal, concluiu “ser inconstitucional, com
fundamento no art. 150, II, da CF, a exigência do ICMS na prestação de serviços de transporte
aéreo internacional de cargas pelas empresas aéreas nacionais, enquanto persistirem os
Convênios de isenção de empresas estrangeiras”30.
Como se percebe, no voto acima, que foi acompanhado pela maioria do Supremo
Tribunal Federal, o Ministro NELSON JOBIM parece, ao menos indiretamente, encampar
argumento diverso do aduzido por ele próprio no julgamento da ADI-MC 1.480, quatro anos
antes. Restou claramente admitida na ADI 1.600 a validade dos tratados internacionais que
concediam isenções de ICMS na forma do art. 155, § 2º, XII, ‘e’, da Constituição Federal. A
matéria regulada por tais tratados está, como salta aos olhos, adstrita à lei complementar, e
isso não foi considerado um motivo para se reconhecer a inconstitucionalidade desses
tratados. Ao contrário, o que se reconheceu foi a inconstitucionalidade das normas internas
que deixaram de dar às empresas nacionais o mesmo tratamento dado às estrangeiras, por
força do art. 150, II.
29 STF, ADI 1600, DJ de 20.06.2003. Trecho extraído do voto do Ministro NELSON JOBIM. 30 Idem, ibidem.
27
Há sinal, portanto, de que as assertivas dogmáticas contidas no julgamento da ADI-
MC 1.480, comentadas na seção 3 deste ensaio, estão em um saudável processo de
enfraquecimento, de sorte que se pode acreditar, com um certo otimismo, que o Tribunal
adotará no futuro uma posição mais pragmática e consentânea com os objetivos fundamentais
da política tributária e dos princípios fundamentais acerca das relações internacionais
consagrados pela Constituição da República31.
Essa tendência, se aliada às conclusões que alcançamos no final da seção 3 deste
ensaio, as quais se referem à possibilidade de aplicação da analogia para justificar uma nova
construção jurídica segundo a qual os tratados internacionais em geral (e em especial os
tratados internacionais tributários) podem dispor sobre matéria de lei complementar (desde
que sejam aprovados com o respectivo quorum) ou reformar a Constituição (se forem
internalizados com as mesmas cautelas procedimentais necessárias para a promulgação de
uma emenda à Constituição), implica concluir que em breve o Direito dos Tratados no Brasil
alcançará um nível de sofisticação que viabilizará, em medida importante, o potencial de
integração do Brasil à comunidade internacional em geral e ao Mercosul em particular. Cada
vez mais está claro que os tratados internacionais podem dispor sobre matéria de lei
complementar e por isso regular importantes matérias sobre impostos estaduais e municipais.
6. À guisa de conclusão
Para concluir esse ensaio, que já se estendeu muito mais do que desejei quando
comecei a escrevê-lo, lembro uma conhecida metáfora de Ronald DWORKIN sobre a
atividade dos juízes. O autor norte-americano compara a atividade dos juristas (especialmente
do juiz constitucional) à do autor de um “romance em cadeia” em que cada autor de um
capítulo recebe os manuscritos escritos por uma outra pessoa, mas segundo um amálgama de
princípios coerentes que garantem a “integridade” do texto, e, após adicionar a sua
contribuição, deixa sempre o final em aberto, ou seja, deixa para o autor do próximo capítulo
um certo espaço para que adicione a sua contribuição:
31 Digo “enfraquecimento” porque a tese da ADI-MC 1.480 ainda parece majoritária (Cf. HC 72.131, Voto do Min MOREIRA ALVES, DJ de 01.08.2003). Por outro lado, quanto à ADI 1.600, cabe advertir que se o posicionamento excessivamente amplo proposto por Sacha Calmon NAVARRO COÊLHO for adotado correremos o risco de uma hipertrofia da União e um abalo na estrutura federativa, na medida em que a União poderia dispor mediante tratados sobre matéria confiada exclusivamente aos Estados. Eu penso que essas matérias são tão locais que o princípio da subsidiariedade torna sem sentido que elas sejam reguladas por um tratado internacional.
28
“Nessa empresa um grupo de novelistas escreve um romance seriatim; cada autor na cadeia interpreta os capítulos que lhe foram dados para poder escrever um novo capítulo, que é depois adicionado àquilo que o próximo novelista recebe, e por aí vai. Cada um possui a tarefa de escrever o seu capítulo de forma a fazer o romance ser construído da melhor forma que seja possível, e a complexidade dessa tarefa serve como modelo para a complexidade de se decidir um caso difícil à luz do modelo ‘law as
integrity’”32.
A descrição apresentada por DWORKIN para seu modelo de “law as integrity” é útil
porque revela que os juízes, em cada nova decisão, incorporam o material normativo agregado
pelas decisões anteriores, como que fazendo uma síntese compreensiva do conhecimento
acumulado pelo Tribunal nos julgamentos anteriores, sem ter necessariamente de aceitar que
os juízes anteriores tenham predeterminado todos os seus passos, mas sabendo que sua tarefa
de julgar passa pela reconstrução dos princípios que justificaram os precedentes judiciais (seja
para reiterá-los, seja para modificá-los nos casos futuros, se necessário) e pelo
desenvolvimento judicial do Direito como se fosse uma teia coerente (seamless web) de
princípios, casos, regras e soluções jurídicas.
O desenvolvimento do regime dos tratados pela jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal foi de certa forma assim. A “mudança” no discurso do Ministro NELSON JOBIM,
por exemplo, deve ser vista mais como o resultado de um demorado processo de evolução do
Direito do que como uma ruptura da jurisprudência anterior.
A conclusão desse ensaio é que a sempre polêmica e relevante controvérsia sobre o
regime jurídico dos tratados internacionais no Direito brasileiro é um exemplo de que esse
modo de raciocinar pode render frutos saudáveis para o jurista prático de modo geral, bem
como, especificamente, adequar o Direito positivo aos fins sociais a que ele se destina no
contexto multinacional e multicultural em que se situa o Estado constitucional no Século XXI.
O Direito do século XXI será mais um Direito construído a partir de consensos morais
universalizáveis e políticas humanistas comuns do que um Direito nacionalista criado
esquizofrenicamente pelo Estado. É claro que a soberania estatal precisa ser respeitada (e eu
estou longe de negar isso no presente ensaio), pois é através da autodeterminação dos
indivíduos no interior dos Estados que o processo de formação/institucionalização desse
Direito irá ser legitimado. Mas a abertura do Direito interno ao Direito cosmopolita, com
mecanismos democráticos de validação desse Direito, é sem dúvida um princípio que deve ser
32 DWORKIN, Ronald. Op. cit. (nota 17), p. 229.
29
buscado. Eu creio que as seguintes teses (que foram justificadas ao longo desse ensaio) podem
contribuir em alguma medida para isso:
Tese 1: Tratados internacionais de Direitos Humanos que disponham sobre matéria de
lei complementar e sejam aprovados com o quorum respectivo, são incorporados ao
ordenamento jurídico brasileiro com a eficácia que é própria a tal tipo de leis:
Tese 2: A norma derivada do artigo 5º, § 3º, da Constituição (inserida pela EC
45/2004) permite a construção, por analogia, de uma regra jurídica segundo a qual os tratados
que não versem sobre Direitos Humanos também poderão ser internalizados com força de
norma constitucional, desde que se observe o processo previsto no artigo 60, § 2º, da
Constituição Federal (assim como os demais dispositivos contidos no art. 60 aplicáveis);
Tese 3: Da mesma forma, é possível instituir tratados internacionais que versem sobre
matéria de lei complementar, ainda que não sejam tratados de Direitos Humanos, bastando
para tanto que sejam aprovados (pelo Congresso Nacional) com o quorum exigido pelo artigo
69 da Constituição;
Tese 4: Tratados internacionais podem dispor sobre tributos de competência dos
Estados e Municípios, mas apenas nas questões que o constituinte remeteu à lei complementar,
pois apenas esta é que possui o caráter de uma lei nacional, e não meramente uma lei federal,
já que as matérias reservadas pela Constituição aos Estados-membros e aos Municípios são
tipicamente de interesse local, de modo que o princípio da subsidiariedade, implicitamente
contido na estrutura dos Estados federais democráticos, impõe que a União não interfira nelas;
Tese 5: As teses 2 e 3, que constituem o núcleo do presente ensaio, podem ser
reforçadas tanto pelo entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADC 1 (de que a
competência da autoridade produtora de normas e o processo de manifestação do consenso
dos representantes do povo são mais importantes do que o “nomem iuris” dos atos normativos)
quanto pela manifestação da Corte Máxima na ADI 1.600 (em que foi admitida
implicitamente a possibilidade tratados internacionais sobre matéria de lei complementar,
como um dos fundamentos da decisão);
Tese 6: No entanto, a solução de que um tratado internacional poderia dispor sobre
matéria de lei complementar sem ser internalizado com maioria absoluta, ou ainda regular
matéria de competência privativa dos Estados-membros e dos Municípios (adotada pela ADI
1.600 e por autores como Luciano AMARAL e Sacha Calmon NAVARRO COÊLHO), não
me parece razoável. Se é certo que a União representa o Estado Brasileiro perante a
comunidade internacional, e que portanto o Presidente da República tem um mandato da
Nação para criar obrigações para o Brasil no âmbito do Direito Internacional Público, por
30
outro lado é certo também que esse poder não implica que o tratado internacional seja um
veículo para regular qualquer matéria ou que o Presidente da República (e o Congresso
Nacional também) não tenha de exercer suas prerrogativas com responsabilidade, evitando
firmar compromissos que invadam a esfera referente aos interesses locais que a Constituição
exige seja regulada por normas emanadas das entidades federativas menores.
Tese 7: Há um sinal de que o Supremo Tribunal Federal poderá adotar as teses aqui
defendidas, pois embora isso signifique em boa medida rever algumas de suas decisões
anteriores parece-me que seria a forma de tornar a sua jurisprudência mais coerente não
apenas internamente, mas também com os princípios constitucionais de modo geral. Eu
acredito que essa orientação mais pragmática e menos dogmática será especialmente relevante
para concretizar os objetivos fundamentais do constituinte de 1988 em matéria de tributação e
de política externa33.
33 Uma dúvida que poderá surgir, caso o Supremo Tribunal Federal venha a adotar as teses aqui expressas, é a que se refere aos efeitos dos Tratados Internacionais em matéria tributária atualmente em vigor no Direito Brasileiro. Por exemplo, imagine-se o caso dos trinta e quatro tratados internacionais que estabelecem isenções de ICMS para todas as empresas estrangeiras que realizam transporte aéreo internacional de cargas e passageiros no e para o Brasil. Destes trinta e quatro tratados internacionais, a maioria foi celebrada antes do início da vigência da Constituição Federal de 1988, mas um número relevante deles não. Como esses tratados versam sobre matéria de lei complementar e foram aprovados pelo quorum do artigo 47 da Constituição Federal (ou seja, maioria simples), se o Supremo Tribunal Federal tivesse sido coerente com sua jurisprudência anterior (firmada, após a Constituição de 1988, na ADI-MC. 1.480) teria declarado inconstitucionais todos esses tratados e permitido aos Estados da Federação tributar as empresas internacionais, ao invés de decidir que as normas internas que estabelecem a incidência do tributo para as empresas nacionais serão consideradas inconstitucionais (com fundamento no art. 150, II, da Constituição) enquanto estiverem em vigor os aludidos tratados internacionais. Caso o Supremo Tribunal Federal venha a adotar as teses aqui expostas, poderá dar uma solução racional e evitar a contradição existente em sua jurisprudência (em especial, a contradição presente nos votos do Ministro Nelson JOBIM na ADI-MC 1.480 e na ADI 1.600). No caso específico de uma possível ação direta de inconstitucionalidade contra os trinta e quatro tratados internacionais de que tratava a ADI 1.600, o Supremo Tribunal Federal poderá, por exemplo, declarar “recepcionados” pela Constituição de 1988 os tratados internacionais celebrados antes do início da sua vigência e, em relação aos tratados posteriores à promulgação da Constituição, declarar a sua inconstitucionalidade manipulando os efeitos da declaração (como faculta o artigo 27 da Lei 9.868/1999) para que essa declaração só venha a surtir efeitos daí a seis meses (ou outro prazo que entender razoável), a fim de que o Congresso Nacional possa editar novos Decretos Legislativos de aprovação dos aludidos tratados e sanear os vícios formais que os levaram à inconstitucionalidade. Essa saída pragmática, menos formalista e mais voltada para a consecução do princípio da cooperação internacional sem prejuízos para
o processo legislativo democrático, deveria ter sido adotada pelo STF no julgamento da ADI 1.600. Num mundo em que cada vez mais cresce a importância das relações internacionais, no plano político, e das construções jurídicas e concretizações de princípios constitucionais, no plano jurídico, é de se esperar dos Tribunais Superiores e, em especial, das Cortes Constitucionais, um pouco de ousadia, sem perder a responsabilidade política por suas decisões, e um grau elevado de coerência: a construção da jurisprudência constitucional deve levar em conta os efeitos que a decisão terá para além do caso sub judice.
31
Epílogo
Uma primeira versão desse ensaio foi publicada na Revista de Direito Constitucional e
Internacional n. 59, de 2007, a qual havia sido elaborada e editada antes do julgamento do
Recurso Extraordinário n. 229.096/RS34, pelo Supremo Tribunal Federal. A par de algumas
mudanças quase imperceptíveis no estilo de linguagem, a única alteração que o leitor
encontrará entre a versão anterior desse artigo e a presente republicação está na introdução da
nota de rodapé n. 33.
Continuo razoavelmente convencido da plausibilidade das teses que sustentei acima,
mas a recente decisão do Supremo Tribunal Federal faz necessário um comentário adicional.
No referido julgado, o Pleno do STF decidiu, por unanimidade, pela recepção de
isenções de ICMS outorgadas por tratado internacional celebrado antes da Constituição de
1988. Como fundamento de sua decisão, invocou o artigo 98 do CTN, o qual foi recepcionado
com força jurídica de lei complementar. Argumenta o tribunal que este dispositivo normativo,
ao fixar a primazia dos tratados internacionais sobre a legislação tributária interna, aplica-se
por igual aos Estados e Municípios, por tratar-se de “lei nacional” vinculante para todos os
entes da Federação. De outro lado, apesar de apenas o Presidente da república deter
competência para celebrar tratados internacionais, estes obrigam a República Federativa do
Brasil e todas as pessoas políticas que a compõem. Por conseguinte, carece de fundamento,
conclui a Corte, a alegação de inconstitucionalidade do tratado internacional em tela por
suposta violação ao artigo 151, III, da Constituição Federal.
Uma mirada sobre a ementa do referido acórdão pode iluminar a compreensão do
leitor:
“1. A isenção de tributos estaduais prevista no Acordo Geral de Tarifas e Comércio para as mercadorias importadas dos países signatários quando o similar nacional tiver o mesmo benefício foi recepcionada pela Constituição da República de 1988. 2. O artigo 98 do Código Tributário Nacional "possui caráter nacional, com eficácia para a União, os Estados e os Municípios" (voto do eminente Ministro Ilmar Galvão). 3. No direito internacional apenas a República Federativa do Brasil tem competência para firmar tratados (art. 52, § 2º, da Constituição da República), dela não dispondo a União, os Estados-membros ou os Municípios. O Presidente da República não subscreve tratados como Chefe de Governo, mas como Chefe de Estado, o que descaracteriza a existência de uma isenção heterônoma, vedada pelo art.
34 STF, RE 229096/RS, DJ de 11.04.2008, Rel. p/ o Acórdão Min. Carmen Lúcia.
32
151, inc. III, da Constituição. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido”35.
No voto do Ministro Ilmar Galvão, acolhido in totum pelo Plenário, se pode perceber
de forma mais clara ainda as razões nas quais o tribunal embasou a sua decisão:
“Se lei de caráter nacional [o CTN] estabeleceu a proeminência dos tratados internacionais sobre as leis, abstração feita de sua origem federal, estadual ou municipal, neles reconheceu o caráter, por igual, de fonte normativa nacional, aliás, em consonância com o conceito de que o Estado Federal, ou a Nação, é pessoa soberana de direito público internacional, que atua, juntamente com os outros Estados soberanos, no palco do direito das gentes, categoria que, no dizer de Geraldo Ataliba, “nenhuma relação guarda com as eventuais divisões políticas internas. (... ) Para o direito das gentes, ou seja, para efeitos de direito internacional, há um só Estado (...)”36.
Não obstante a elegância do aresto, há problemas na argumentação desenvolvida pelo
STF. Inicialmente, o fato de o Tratado Internacional ser vinculante para o Estado Brasileiro
como um todo, à luz do Direito Internacional, não é razão suficiente para se crer que o
Presidente da República possa celebrar tratados sem qualquer limitação formal decorrente da
distribuição de competências estabelecida pela Constituição Federal. Com efeito, o tribunal
parece confundir as esferas do Direito Internacional e do Direito Interno. Essa confusão, que
estaria correta apenas se se adotasse uma teoria monista acerca das relações entre o Direito
Internacional e o Direito Pátrio, pode ser facilmente superada com uma simples leitura do
artigo 102, III, b, da Constituição Federal, que estabelece a possibilidade de controle de
constitucionalidade sobre os Tratados Internacionais. Ora, se tratados são submetidos a
controle de constitucionalidade, então é certo que as esferas do Direito Internacional e do
Direito Interno são distintas, de sorte que uma norma pode ser válida à luz do Direito
Internacional – e, portanto, criar obrigações para o Estado Brasileiro e o sujeitar a sanções – e
ao mesmo tempo inválida à luz do Direito Nacional – por ser inconstitucional. Em função
dessa possibilidade de se separar claramente as esferas de validade do Direito Interno e do
Direito Internacional, é um sofisma acreditar que é possível se inferir do fato de o Presidente
da República ser a única autoridade competente para representar a República Federativa do
Brasil na ordem jurídica internacional a conclusão de que qualquer norma que for aprovada
por meio de tratado internacional será válida e vinculante para todos os Poderes da República
à luz do Direito Interno, pois o poder de celebrar tratados internacionais não foi outorgado
35 Ibid. 36 STE, RE 229096, voto do Min. Ilmar Galvão.
33
pelo constituinte de forma ilimitada. A raiz da confusão está no fato de que os parâmetros
para a análise da validade do Direito Interno e do Direito Internacional são diferentes. No
caso do Direito Internacional, a validade de um tratado vai ser fiscalizada à luz de uma série
de normas convencionais e costumeiras como, por exemplo, a Convenção de Viena sobre
Direito dos Tratados ou as provisões reconhecidas pela doutrina e pela jurisprudência como
Jus Cogens. No caso do Direito Interno, por sua vez, o parâmetro há de ser a Constituição,
pois é esta que oferece suporte para todas as normas jurídicas incorporadas ao Direito
Brasileiro, inclusive para os Tratados Internacionais e respectivos Decretos Legislativos.
Portanto, não se pode deduzir do princípio da unidade da soberania (no âmbito do Direito
Internacional) um princípio de Direito doméstico segundo o qual o Presidente da República
está investido de todas as competências das autoridades Estaduais e Municipais quando lhe é
dado poder para celebrar tratados internacionais.
De outro lado, há razão para se suspeitar da plausibilidade da distinção entre “lei
nacional”, de um lado, e lei “federal”, “estadual” ou “municipal”, de outro lado. Com efeito,
em sentido técnico jurídico todas as leis são “nacionais” na medida em que todas elas nutrem
o seu fundamento de validade da mesma Constituição. Em linguagem kelseniana, poderíamos
dizer que elas só pertencem à mesma Ordem Jurídica porque derivam da mesma norma
fundamental. Mesmo as leis estaduais e municipais têm de buscar fundamento na Constituição
Federal, sob pena de nulidade. Mas mesmo deixando em aberto a questão da plausibilidade
geral da distinção mencionada, importa frisar que ela é simplesmente desnecessária no caso
concreto, já que a obrigatoriedade geral do artigo 98 do CTN independe dessa distinção. O
STF não precisava dessa distinção para afirmar que o art. 98 do CTN é vinculante para todas
as pessoas jurídicas de direito público interno.
Ademais, a própria alusão ao referido dispositivo normativo me parece fora de lugar.
No que se refere ao artigo 98 do CTN, que foi validamente recepcionado com força de lei
complementar, é evidente de seu teor literal que todas as pessoas políticas (União, Estados e
Municípios) estão também vinculadas pelos Tratados Internacionais tributários validamente
promulgados. Mas eu não consigo perceber com clareza a relevância dessa disposição para o
caso concreto, pois ninguém está a questionar o fato de que tratados internacionais
validamente promulgados preponderam sobre a legislação tributária interna, ainda que
posterior. O cerne da questão, data venia, é certamente outro: não saber se tratados revogam a
lei anterior e preponderam sobre a posterior, mas saber exatamente quais tipos de tratados
podem ser celebrados, ou mais precisamente, quais matérias podem ser versadas por tratados
internacionais.
34
Esse é certamente um problema de Direito Interno que não está resolvido nem pelo
Direito Internacional e nem pelo artigo 98 do CTN, e que precisa ser enfrentado à luz de uma
reflexão ponderada acerca dos princípios fundamentais da Constituição da República. Entre
esses princípios estão o princípio democrático e o princípio da cooperação entre os povos. A
solução que eu propus no corpo do meu ensaio continua, na minha modesta opinião, a mais
apropriada: tratados podem dispor sobre matéria de lei complementar, mas desde que sejam
internalizados com o procedimento próprio para edição de tal espécime normativa. No caso
específico do RE 229096, a conclusão dos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal
está inequivocamente correta, mas o raciocínio oferecido em suporte dessa conclusão é
substancialmente frágil. A conclusão (parte dispositiva da decisão) está correta porque (1) a
matéria versada no tratado (isenção de ICMS) é de competência de lei complementar federal,
podendo ser veiculada por tratado internacional sem prejuízo para o princípio constitucional
da subsidiariedade, e (2) o tratado é anterior à Constituição de 1988, e portanto não pode ser
invalidado por vício formal decorrente do fato de ele ter sido aprovado sem o quorum
específico da lei complementar. Não obstante, o raciocínio proposto pelos Ministros do
Egrégio Supremo Tribunal Federal revela que ainda há muitas inconsistências na
jurisprudência da Corte Máxima.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA DESTE ARTIGO:
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Tratados internacionais tributários, emendas
constitucionais e leis complementares após a EC 45/2004. O que pode (e deveria) mudar na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº. 17,
2008. Disponível em:<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: ___ de
___________ de _____.