RODRIGO DA SILVEIRA
TRAGÉDIA, HUMOR E RESISTÊNCIA EM FELIZ ANO VELHO (1982) DE
MARCELO RUBENS PAIVA
Uberlândia
2005
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
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RODRIGO DA SILVEIRA TRAGÉDIA, HUMOR E RESISTÊNCIA EM FELIZ ANO VELHO (1982) DE
MARCELO RUBENS PAIVA
Dissertação apresentada ao Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História. (Área de concentração: História Social).
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Kátia Rodrigues Paranhos
Uberlândia
2005
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
RODRIGO DA SILVEIRA TRAGÉDIA, HUMOR E RESISTÊNCIA EM FELIZ ANO VELHO (1982) DE
MARCELO RUBENS PAIVA
Dissertação apresentada ao Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História. (Área de concentração: História Social).
Banca examinadora: Prof. Dr.ª (orientadora.) Kátia Rodrigues Paranhos _________________________________ Prof. Dr.ª Regma Maria dos Santos _________________________________ Prof. Dr.ª Luciene Lenhmkuhl _____________________________
Uberlândia 2005
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho, só possível graças à colaboração direta e indireta de várias
pessoas. A todas elas, minha eterna gratidão e muito obrigado. De forma particular e especial
agradeço.
Primeiramente a Deus, pois sem ele nada disso seria possível, pois não teria força para
enfrentar as horas de angústia e incerteza presentes nas noites de estudo e solidão.
À minha orientadora, prof. Dr.ª Kátia Rodrigues Paranhos, pela enorme paciência,
sensibilidade, sinceridade e inteligência em suas orientações.
À professora dr.ª Luciene Lenhmkuhl, pela disposição em ajudar e contribuir.
Aos professores Valdeci Borges, Regma M. dos Santos, Ismar da Costa, que de longa
data estimulavam essa busca.
Aos amigos e companheiros de caminhada, Silvio Célio e Jason Hugo pelas
conversas, brincadeiras e experiências construídas.
A toda minha família, irmãs (Flávia e Laura), cunhados (a), sobrinhos (Geovana,
Pablo e Gabriel) e sogros, pela forma com que sempre trataram os meus estudos.
Especialmente a meus pais (Benedito e Onofra) pelo apoio, compreensão e pelas
preocupações sempre dispensadas.
E, finalmente, especial agradecimento à minha esposa, Edilane pelo incentivo, carinho,
inteligência e amor com que sempre tratou e trata as questões de nossa vida.
E a você, filho (a) que mesmo não estando ainda entre nós, tornou-se a força e motivo
principal para lutar e não desistir dessa caminhada.
SUMÁRIO Apresentação ......................................................................................................... 6
Introdução.............................................................................................................. 8
Capítulo 1
Memórias de denúncia e dor ............................................................................... 23
Capítulo 2
Tragédia e humor – formas de representar a sociedade brasileira pós – 64 ....... 41
Capítulo 3
Os habitus culturais de inconformismo e crítica ao regime militar .................... 57
Considerações Finais........................................................................................... 84
Bibliografia e Fontes ........................................................................................... 87
1. Bibliografia .................................................................................................. 87
2. Fontes documentais...................................................................................... 91
6
APRESENTAÇÃO
Desde o final da graduação em História na UFG/ Campus Catalão, venho me
ocupando em estudar a relação História e Literatura e Política, no sentido de perceber como o
universo o literato/historiador e do historiador/literato se entrecruzam constantemente e,
principalmente, como a Literatura – constitui-se em uma representação, em uma fonte
documental de inestimável valor para a produção do conhecimento historiográfico. Na
Literatura seus signos e símbolos expressam a consciência que os valores culturais, políticos,
econômicos e sociais extraídos como vestígios e despojos fazem parte da memória, das
representações, do imaginário e da cultura de uma sociedade.
E é em meio a uma perspectiva de história voltada para as expressões plurais da
sociedade, que Marcelo Rubens Paiva e seu livro Feliz Ano Velho tornou-se a fonte principal
para nossa reflexão, análise e compreensão.
Neste sentido, o presente trabalho visa estudar e compreender a fundo as
representações, os sentidos e as simbologias construídas Marcelo Rubens Paiva ao longo de
Feliz Ano Velho, no que se refere principalmente ao quadro social, político e cultural existente
no Brasil a partir de 1964, além de explorar as contribuições da relação História entre
Literatura na construção do conhecimento histórico.
Dessa forma, o trabalho está organizado na seguinte ordem:
No primeiro capítulo, o livro Feliz Ano Velho é enxergado como ‘espaço de memória”,
onde as memórias de Marcelo Rubens Paiva aparecem como fio-condutor de toda trama e
passam a ser observadas de maneira dualista; pois as memórias individuais do autor, sujeito
que sofreu diretamente os efeitos da ditadura tornam-se representativas da memória coletiva.
No segundo capítulo, destaca-se a relação obra e sociedade, enfocada no aspecto de
como Feliz Ano Velho constitui-se em uma representação, ou melhor, em um termômetro da
sociedade brasileira pós-64, à medida que representa e discute as ações postas em prática
tanto pelo Estado autoritário, quanto pelos segmentos sociais que se envolveram na luta pelo o
fim da ditadura. O livro, assim acaba desempenhando uma função social e histórica sobre o
Brasil do final dos anos 70 e início dos anos 80.
No terceiro capítulo, surgem os habitus culturais desenvolvidos pela juventude
universitária paulistana, da qual Marcelo Rubens Paiva era integrante. A opção pelo uso de
drogas, por uma mentalidade inovadora em relação ao sexo e a música, atrelada à participação
7
no movimento estudantil, compunha a atmosfera de resistência e manifestação encontrada
pelos jovens estudantes em relação ao regime militar.
8
INTRODUÇÃO
Partindo da idéia de que as leituras sobre um determinado período da sociedade e de
uma cultura são variadas e múltiplas, visto que as mesmas são permeadas por vários
significados e sentidos, é que consideramos o trabalho do historiador percorre os caminhos
trilhados por um detetive, que sai à caça de pequenas pistas, detalhes, partículas da realidade
que entrelaçadas num contexto, nos permitem reconstruir e decifrar sua complexidade,
conforme observa Carlo Ginzburg1.
Dentro de uma perspectiva de história voltada para as expressões plurais da sociedade,
que recorremos a Marcelo Rubens Paiva2 e a seu livro Feliz Ano Velho3 como fonte
documental para nossa reflexão. Segundo Antônio Cândido4, a originalidade faz-se a partir
das condições reais, objetivas e subjetivas que rodeiam a sua existência; aspectos que fazem
com que o mesmo desempenhe um papel não só cultural, mas também social. Assim deixar o
escritor/literato falar permite a captação de informações dispersas e até mesmo perdidas por
outras fontes que não dão conta da riqueza de questões que compõe e permeiam o universo da
vida cotidiana.
A literatura enquanto vestígio do passado, consiste num registro documental
privilegiado para a construção de nosso conhecimento historiográfico, já que permite a
percepção de aspectos de extrema relevância para a interpretação e compreensão do universo
cultural, social, político e econômico. Neste sentido, entendemos que
O testemunho das fontes literárias permite-nos reconstruir a vida cotidiana de uma sociedade e perceber quais são seus
1 GINZBURG, Carlo. “Sinais raízes de um paradigma indiciário”. IN: Mitos, emblemas e sinais: morfologia e História. São Paulo. Cia das Letras, 1989, p. 143- 179. 2 Marcelo R. Paiva, paulistano, nascido em 1959, filho de mãe advogada e pai engenheiro e político – ex- deputado pelo PTB antes de 64 e membro do Partido Socialista Brasileiro. Marcelo fora ganhador do prêmio Jabuti (1983), Moinho Santista (1985) e Shell de Teatro (2000), estudou na Escola de Comunicações e Artes da USP, freqüentou o mestrado de Teoria Literária da Unicamp e o Knight Fellow Progam da Universidade de Stanford, Califórnia. Publicou os romances Feliz Ano Velho (1982), Blecaute (1986), Ua: brari (1990), Bala na agulha (1992), Não és tu , Brasil (1996) , todos reeditados pela editora Arx – e O amor e outras curvas (2003). Publicou o livro de crônicas As fêmeas (1994). Como dramaturgo, escreveu 525 linhas (1989), O predador entra na sala (1997), Da boca para fora- e aí, comeu? (1998), Mais-que-imperfeito (1999), As mentiras que os homens contam (2000) e No retrovisor (2002). Atua como jornalista desde 1982: destacou-se como crítico literário da revista Veja, apresentador do programa Fanzine da TV Cultura e colunista e articulista do jornal Folha de São Paulo e da revista Vogue RG. 3 PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz Ano Velho. São Paulo: Brasiliense (Coleção Cantadas Literárias), 1982. 4 CANDIDO, Antônio. “Literatura e Sociedade”: Estudos de Teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora nacional. 1967, p. 24.
9
hábitos, crenças, sentimentos e o conjunto de regras e valores que conduz seus comportamentos, mesmo estando fortemente marcado pela subjetividade de seu criador5.
O uso da literatura como documento não é algo recente e muito menos novo. O
historiador Jacob Burckhardt6 (1818-1897) utiliza a Divina Comédia como sua principal fonte
para o estudo da Renascença italiana, no século XIX; constituindo-se num dos precursores na
utilização de uma obra literária para produção do conhecimento histórico.
Segundo o historiador Johan Huizinga, o estudo desenvolvido por Burckhardt deve ser
considerado como um modelo para a história cultural, embora o mesmo teça algumas
considerações em relação ao conceito de “ruptura” estabelecido por Burckhardt entre a Idade
Média e a Renascença. Huizinga aponta que houve uma “transição” entre estes períodos, pois
“el renascimento no puede ser considerado como atitesis pura e simple de la Edade Media,
siquiera como zona divisória entre la época medieval e los tiempos modernos”7.
Neste contexto, é que recorremos a Feliz Ano Velho8 como fonte documental para
nossa reflexão, pois esta obra ao utilizar-se de uma linguagem fora dos padrões tradicionais
empregados pela cultura “letrada” e dominante, revela aspectos da realidade pertencentes a
segmentos sociais populares da sociedade, ou seja, dos grupos que foram oprimidos pela
História oficial.
Ao fazermos um estudo historiográfico recorrendo ao texto literário, não nos
isentamos do uso de uma fundamentação teórica e conceitual, desenvolvida pela História de
forma geral e pela chamada História cultural de modo mais específico. Fundamentação que
enfatiza, de forma ampla, os vários vínculos existentes entre arte e sociedade, entre ficção e
realidade, apontando as raízes histórico-culturais das práticas, das idéias, das formas de
pensamento e de ação, assim como dos processos de representação, dentre eles o literário.
Entendemos que o livro Feliz Ano Velho, tal como, outros tipos de documentos, é
permeado de subjetividades e representações, não constituindo, assim, um retrato fiel da
realidade que busca representar. Neste sentido, “cabe ao historiador não fazer papel de
ingênuo”, negando as possíveis montagens e construções presentes no interior desta
documentação. Assim, o documento “não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é
5 BORGES, Valdeci Rezende. “História e Literatura: uma relação de troca e cumplicidade” IN: História & Perspectivas. Uberlândia, nº 9, ju/dez, 1993. p. 41. 6 BURCKARDT, Jacob. A Cultura do Renascimento na Itália. Brasília: UnB, 1991. 7 HUIZINGA, John. El concepto de la Historia. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1992, p. 154. 8 PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz Ano Velho. São Paulo: Brasiliense, 1982.
10
um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o
poder”9.
Nesta perspectiva ao debruçarmos sobre nosso objeto de pesquisa, fazemos não mais
através de um olhar hierarquizante sobre a sociedade, a política, a economia, e
principalmente, a cultura, considerando uma dessas esferas melhor ou mais elevadas do que a
outra. No campo da história cultural, acreditamos que se faz necessário um relacionamento
mais intensivo e efetivo entre as mais variadas formas de cultura, pois se “nenhuma cultura é
uma ilha”, as mesmas possuem ligações, fator que comprova a existência de um processo de
“interação cultural”.
Reconhecendo que a obra literária ilumina decifra a cultura de uma sociedade e de um
período, partimos do desafio proposto por Peter Burke, de promovermos uma história cultural
de encontros que seja “polifônica”. Ou seja, uma História que consiga “conter em si mesma
várias línguas e pontos de vista, incluindo os dos vitoriosos e vencidos, homens e mulheres,
os de dentro e os de fora, de contemporâneos e historiadores10”.
Roger Chatier propõe aos historiadores que a cultura seja compreendida como prática,
utilizando-se para perceber tais elementos os conceitos de apropriação e representação. Assim
a grande questão colocada pelo autor é de ordem metodológica, pois a história cultural não é
apenas temática, é também uma perspectiva metodológica, já que cada documento possui
inerente a ele uma historicidade própria.
Neste sentido, proposta metodológica de Chatier11 torna-se indispensável para
compreendermos as representações tecidas por nossa fonte, suas simbologias e
intencionalidades. Para Chatier, cada indivíduo representa e interpreta a realidade de acordo
com o seu ethos, sua classe, sua posição e interesses dentro da sociedade, assim como
apropria-se das simbologias feitas por outros de acordo com sua cultura e necessidades
históricas. Assim cada indivíduo ou coletividade faz uma leitura diferenciada e interessada de
qualquer acontecimento a partir das suas práticas culturais.
Diante de tal paradigma, o historiador da cultura, deve partir do documento,
observando em que medida esse documento, contribui para a reconstrução seja econômica,
social ou cultural de determinado período. Agindo dessa forma, o historiador conseguirá
perceber como determinadas temáticas foram construídas simbolicamente e representadas
pelo autor. Assim, não se deve lançar um olhar com questões e formas de pensar que o autor
9 LE GOFF, Jacques. “Documento/Documento”. IN: História e Memória. Campinas, Unicamp, 1990, p. 545-8. 10 BURK, Peter. “Variedades de História Cultural”. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira: 2000, p. 267. 11 CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”. IN: Estudos Avançados. R.J, 11(5), 1991, p. 173-191
11
não possui ou não se propôs a responder; ou seja, deve-se deixar que venha a torna todas as
questões que se apresentam. Dessa forma,
Restituir essa historicidade exige que o (...) intelectual seja ele mesmo tomando como uma produção, que certamente não fabrica nenhum objeto, mas constituir representações que nunca são idênticas àquelas que o produtor, o autor ou o artista investiram em sua obra12.
Diante dessas considerações, pode-se considerar que a “História Cultural chegou para
ficar” conforme aponta Francisco Falcon13, passando a história a ser feita com todos tipos de
documentos escritos e não escritos, pois de acordo com Febvre, “tudo aquilo que sendo do
homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, significa a presença, a
atividade, os gostos de maneiras de ser do homem”14, deve e pode ser utilizado para o
conhecimento histórico.
Assim, a literatura uma dessas instâncias que constroem representações da história e
da memória, revelando os múltiplos sentidos presentes na sociedade e no mundo, por meio de
suas representações do “real”; constitui-se numa fonte privilegiada, à medida que possibilita
ao historiador acessar informações e experiências, que, de outro modo, estariam perdidas. O
texto literário, preserva representações e expressa por meio de sua narrativa uma série de
aspectos e imagens que dentro de uma configuração estética e cultural, carregam e revelam
consigo uma dimensão coletiva e outra individual, ambas, inseridas num contexto sócio-
cultural. Antônio Cândido pondera que:
Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem as necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir, encontrando repercussão no grupo15.
O documento literário, assim como qualquer outro, não é entendido como uma
verdade absoluta sobre a sociedade ou momento histórico, mas, através dele, encontramos a
possibilidade de perceber como seu agente produtor compreendia e enxergava a realidade. A
literatura é uma produção artística, e como tal, configura-se numa assinatura do homem que
12 CHARTIER, Roger. “À Beira da Falésia: A História entre certezas e Inquietude. Porto Alegre: Ed. Da UFRGS, 2002, p. 52. 13 FALCON, Francisco. “História Cultural: uma nova visão sobre a sociedade e a cultura”. Rio de Janeiro: Campus 2002, p. 108. 14 FEBVRE, Lucien. Combates pour I` histoire, p. 428. 15 CANDIDO, Antõnio “Literatura e Sociedade”: Estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, p. 25.
12
tenta dar uma certa ordem ao universo conflituoso que é o social em sua complexidade,
perpassado, inclusive de vários eixos temporais. Assim para se ler os significados articulados
na obra literária em toda sua ficcionalidade, deve-se preservar o contexto poético para não
perder o que há de mais intenso em tal representação. Deste modo, as representações
constituem-se como uma forma de compreender o mundo; já que são “através das suas
representações (...) que uma classe exprime suas aspirações, justifica moral e juridicamente os
seus objectivos, concebe o passado e imagina o futuro”16.
Dessa maneira, o nosso estudo visa explorar os ricos caminhos que a relação História/
Literatura pode nos oferecer, pois “tanto uma quanto à outra têm consciência de sua
necessidade mutua”, conforme observa Regina Dalcastagné17.
Nesta perspectiva, enxergamos que a obra de Marcelo Rubens Paiva por apresentar
uma configuração que contempla as várias dimensões do “real”, é uma fonte excepcional para
a produção de um conhecimento histórico sobre a sociedade e a sua cultura. Assim sendo,
conforme pondera Silviano Santiago,
... a literatura brasileira pós-64 abriu campo para uma
crítica radical e fulminante de toda e qualquer forma de
autoritarismo, principalmente aquela que, na América Latina,
tem sido pregada pelas forças militares quando ocupam o
poder, em teses que se camuflam pelas leis de segurança
nacional18
O livro Feliz Ano Velho deve ser entendido como um texto cultural de inestimável
valor para a História, pois segundo Huizinga, que define a História como uma “forma
espiritual em que uma cultura se rinde cuentas de su pasado” o principal sujeito e foco de
analise da História é a cultura. Assim, o vínculo entre História e cultura se dá através da
multiplicidade e das particularidades, pois cada cultura crea y tiene necesariamente que crear
su próprio pasado. Com isso,
Culturas de visión o limitada suministran siempre uma Historia estrecha o limitada y, al revés, lãs de amplio horizonte hacen surgir uma historia mucho más amplia y comprensiva19.
16 BACZKO, Bronislaw. “Imaginação Social” IN: Enciclopédia Einaud. Lisboa, Impressora Nacional/Casa da Moeda, V. 5, antropos/homem, 1984, p. 304. 17 DALCASTAGNE, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília, UnB, 1996. 18 SANTIAGO, Silviano. “Prosa Literária atual no Brasil”. Nas malhas da letra. São Paulo. Cia das Letras, 1988. 19 HUIZINGA, J. “En torno a la definicion del concepto de historia” (1928), in El concepto de la historia, Mexico”Fondo de Cultura económica, 1992, p. 94.
13
A literatura ao se afirmar como uma reflexão sobre a sociedade configura-se não
apenas como objeto, mas como sujeito que solicita do leitor conhecimento, emoção e ação na
busca pela compreensão dos vários sentidos contidos na obra. Toda obra literária é um
produto social, histórico e político, ou uma leitura dos mesmos, quase sempre com limites
impostos pela verossimilhança e pela dimensão de ficcionalidade dada pelo escritor ao real.
Sendo o passado uma construção, entendemos que a literatura é um instrumento, um registro e
uma prova desse processo de invenção do cotidiano e da sociedade, à medida que ela torna
presente àquilo que não existe mais, que aconteceu e está ausente.
Dentro dessa perspectiva, a literatura constitui-se como um elemento capaz de
propiciar a edificação e difusão do imaginário de uma sociedade, à medida que a mesma
possui força de agir ativamente no social inoculando certos valores e regras, e captando suas
divisões e tensões. O imaginário não é uma ilustração que aponta uma ausência ou uma
presença, mas sim uma força que “alimenta” o homem e o faz agir. “É um fenômeno
colectivo, social e histórico”, pois “a vida, quer do homem das sociedades, está tão ligada a
imagens como a realidades mais palpáveis” 20. Assim sendo,
Estudar o imaginário de uma sociedade é ir ao fundo da sua consciência e da sua evolução histórica. É ir à origem e à natureza profunda do homem, criando “à imagem de Deus” 21.
Neste contexto, o imaginário social através de certos signos e símbolos torna-se
produto de constantes disputas pelos indivíduos e pelos grupos que buscam o controle da
sociedade e o exercício do poder. Diante disso,
O controle do imaginário social, da sua reprodução, difusão e manejo, assegura em gruas variáveis uma real influência sobre os comportamentos e actividades individuais e colectivas, permitindo obter resultados práticos desejados, canalizar as energias e orientar as esperanças22.
20 LE GOFF, Jaques. “Prefácio”. O Imaginário Medieval. Lisboa. Ed. Estampa. s/data, p. 16. 21 Ibidem, p. 17. 22 BACZKO, Bronislaw. “Imaginação Social. IN: Enciclopédia Einaud. Lisboa. Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, v. 5, Antros/homem, 1984. p.312.
14
Em meio a disputas, debates ideológicos, ilusórios e batalhas simbólicas, as
representações23 constituem-se como forma de compreender o mundo que nos cerca, pois
cada representação é uma construção de sentidos e estes, por sua vez, manifestam uma forma
de compreensão da realidade. Assim, as representações coletivas podem ser consideradas
“matrizes construtoras do próprio mundo social”24 que permitem que cada indivíduo ou
coletividade produza suas próprias representações ou faça uma leitura interessada e
diferenciada de qualquer acontecimento, de acordo com suas práticas sociais, culturais e
políticas particulares.
Dessa forma, a obra literária é um agente ativo na vida cultural e social, que não só
difunde imaginários e representações, como também registra certas manifestações da memória
social. Os literatos assim como os historiadores, ao edificarem uma certa história da cultura e
do social, instituem uma memória em detrimento de outras, dentro do momento e do contexto
em que se fazem presentes. Sendo, a literatura considerada um dos “lugares de memória” 25de
uma sociedade, enxergamos o livro Feliz Ano velho, perpassado por uma carga simbólica
representativa dos grupos sociais do pós-64, pois o mesmo consegue armazenar “o máximo
de sentido num mínimo de sinais...”26 tornando-se revelador do universo sócio-cultural e
político do momento histórico. Diante de tal perspectiva, na relação entre memória e história,
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações27
Por meio de sua obra literária, o literato representa em sua ficção a realidade social de
uma época, revelando aspectos de “atividades materiais e espirituais” de certos homens, que
poderiam permanecer silenciadas e esquecidas pela versão elaborada e apresentada na
memória oficial. Assim, a nossa literatura dos anos 70 possui a capacidade de expressar as
angústias daqueles que, direta ou indiretamente, viveram os “anos de chumbo” do regime
militar; onde muitas obras se consagram como verdadeiros “espaços da dor”, pois
23 Segundo Bronislaw Baczko, as representações coletivas exprimem sempre, num grau qualquer, um estado do grupo social, traduzem a sua estrutura atual e a maneira como ele reage frente a tal ou tal acontecimento, a tal ou tal perigo externo ou violência interna. Existe uma relação íntima e fatal entre o comportamento e a representação coletiva. P. 306. 24 CHARTIER, Roger. “O mundo como representação”: IN: Estudos Avançados. R. J, 11(5),1991, p. 183. 25 NORA, Piere. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”Projeto História. São Paulo (10), dez/93, p.21-8. 26 Ibidem, p. 22. 27 Ibidem, p. 09.
15
São obras que questionam, parodiam e bombardeiam a verdade oficial, não para substituí-la por outra, que seria pretensamente a dos vencidos, mas para semear a incerteza, e o fazem justamente por meio do diálogo, que hospedam, vivo e pulsante, no seu interior. Esses livros não possuem verdades absolutas, não oferecem respostas, não explicam o horror a que se viram submetidos homens e mulheres durante tantos anos. O que se encontra em suas páginas são, bem ao contrário, indagações. É produção literária sobre a ditadura militar28.
Essa relação entre História e Literatura é marcada por uma troca de valiosas e
ricas contribuições, pois a produção artística-literária proporciona uma forma de
conhecimento que não mantem a necessidade do uso de modelos hierarquizantes que se
oponham a essas duas maneiras de olhar e entender o mundo, pois a ciência não é o único
caminho da razão.
Entendendo a literatura como uma obra de arte que se configura como uma assinatura
do homem, podemos considera-la um dos mais importantes registros do mesmo, tendo como
propriedade conservar certas informações que ela representa. A Literatura ao tentar ordenar o
social o faz por meio de vários eixos temporais que se cruzam dialeticamente, em sentido
sincrônico e diacrônico.
Não se trata de reduzir a História à Ficção, mas de tomar a obra artística, no caso
específico à literatura, como marca do passado e desta forma ser uma mistura de criação,
história e memória. O passado é construção e a Literatura um instrumento, registro e prova
dessa operação de invenção das relações cotidianas da sociedade. Afinal de contas, a
“verdade” que temos de um objeto, exposta em qualquer documento, não passa de
“representação” deste, e às vezes “representação da representação”, ou seja, a história contida
nas fontes e a produzida como conhecimento são representações do real e não o real em si
mesmo.
Assim,
A literatura (...) fala ao historiador sobre a história que não
ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os
28 DALCASTAGNE, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília, UnB, 1996. p.138.
16
planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste,
porém sublime,dos homens que foram vencidos pelos fatos29.
Neste sentido, o cronista pode ser comparado a um historiador, pois ele é “também
historiador” 30, já que o mesmo interpreta, apresenta e cria, com imaginação, um fato;
constituindo-se em “alguém que narra e que vive sob o primado da narrativa”. É um
colecionador de vestígios do dia a dia e narrador circunstancial daquilo que seu olhar observa.
Se antes, era a Literatura que fazia da História um dos pilares da ficção, atualmente
tornam-se mais comuns e mais numerosos os exemplos de utilização da Literatura como
artefato documental para a História. Segundo, Peter Gay na História a verdade é uma
finalidade buscada incessantemente, ao passo que na ficção essa “verdade é um instrumento
opcional (...), não sua finalidade essencial”31. Reconhecemos que no dialogo entre história e
ficção no que se refere à produção historiográfica do conhecimento, o trabalho do historiador
encontra-se perpassado por atos e recursos extraídos da arte ficcional que o auxiliam na
realização de seus intentos.. Assim a história é uma arte por um longo tempo, ou melhor, é um
ramo da literatura, já que o historiador faz uso de diversos gêneros e estilos extraídos da
literatura para dar significados a sua trama32 histórica, além de ainda a utilizar como fonte
documental para sua reflexão.
Segungo Lloyd S. Kramer que tece uma análise em relação à evolução apresentada
pela escrita histórica ao longo do século XX, a história têm voltado suas atenções para outras
áreas do conhecimento, já que os historiadores têm demonstrado uma disposição para
“recorrer a outras disciplinas acadêmicas em busca de insighits teóricos metodológicos”33.
De acordo com Lloyd Kramer, a história se permitiu uma aproximação com a
antropologia, a economia, a psicologia e a sociologia, agora, está se dando com a “crítica
literária”. E esta última, por sua vez, tem oferecido aos historiadores contribuições da
linguagem e seus desdobramentos, facilitando a aproximação entre as narrativas históricas e a
29 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. 2 ed., São Paulo, Brasiliense, 1985. p. 21. 30 BORELLI, Silvia Helena Simões. Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo, Educ/Estação Liberdade, 1996, p.68. 31 GAY, Peter. “Sobre o estilo na história”. In: O estilo na história. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 172 32 VEYNE, P. “A noção de intriga” e “Em que é a história obra de arte”, in: Como se escreve a História, Lisboa: edições 70, 1987. 33 KRAMER, Lloyd S. 1992. “Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick LaCapra”. In: A nova história cultural. HUNT, Lynn (org.). São Paulo, Martins Fontes. 1992, p. 131
17
própria realidade histórica. Assim, numa postura interdisciplinar os historiadores têm buscado
“novas formas de abordar o passado” 34.
O historiador ao por em prática sua escrita historiográfica, não inventa aquilo que
escreve, porém, faz uso da imaginação e de recursos literários como metáforas e metonímias,
além de gêneros literários como: tragédia, o drama e a comédia, por exemplo, como formas de
prender a atenção dos leitores e como meio para dar encadeamento aos acontecimentos a
serem narrados; concretizando assim, seus intentos. Portanto, o ato de escrever proporciona ao
historiador se aproximar ou se distanciar da narrativa ficcional.
Ao escrever o historiador faz uso de uma sensibilidade histórica e de uma imaginação
criadora que se expressa por uma “urdidura de enredo” que proporciona ao historiador atribuir
determinados sentidos aos fatos e aos acontecimentos considerados históricos. Assim tudo
depende dos recursos literários, da estrutura de enredo escolhida pelo historiador para narrar e
encaminhar os eventos, já que os historiadores costumam partilhar “com os seus públicos
certas preconcepções (...) em resposta aos geral imperativos que eram de um modo extra-
históricos, ideológicos, estéticos ou míticos” 35.
Dentro da perspectiva de análise construída por White (1994), o historiador ao
procurar significar os acontecimentos presentes em sua narrativa histórica, o faz por meio de
“uma operação literária (...) criadora de ficção” que segundo o mesmo autor “não deprecia de
forma alguma o status das narrativas históricas como fornecedoras de um tipo de
conhecimento”. Hayden White ao considerar a narrativa histórica limitada em comparação à
multiplicidade de leituras do real que a obra literária é capaz de proporcionar; observa que a
“escrita da história prospera com a descoberta de todas as possíveis estruturas de enredo que
poderiam ser invocadas para conferir sentidos diferentes aos conjuntos de eventos” 36.
Neste sentido, a narrativa concretiza-se como uma construção lingüística e verbal que
permite tanto ao historiador quanto ao literato representar um acontecimento ou uma série de
acontecimentos, seja reais ou fictícios; já que os elementos das estruturas narrativas
favorecem de forma inigualável uma inteligibilidade a representação do real.
O conceito de representação permitiu aos historiadores incorporarem na sua escrita
histórica, recursos presentes na literatura. Recursos da escrita de ficção que possibilitaram
aos historiadores produzirem conhecimento a partir da análise da realidade construída pela
34 Ibidem, p.131. 35 WHITE, Hayden. O Texto Histórico como artefato Literário. In: Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da cultura. São Paulo, EDUSP, 1994, p.101. 36 Ibidem,p. 102-109.
18
observação de um agente produtor que possui seus próprios posicionamentos políticos,
culturais e sociais.
Segundo Hayden White na escrita histórica elaborada pelo historiador, o mesmo
procura dar uma forma perceptível, um sentido concebível e aceito a sua narrativa. Nesta
busca, o historiador acaba fazendo uso de uma linguagem figurativa objetivando tornar
próximo e familiar, aquilo que é desconhecido, não-familiar; ação que proporciona a história
sair mais renovada e enriquecida. Assim a opção posta em prática pelo historiador para dar
sentido aos acontecimentos de sua narrativa, constitui-se os “tropos” denominados por
White. Sendo que em cada modo tropológico construído pelo historiador,
... o sentido básico de cada narrativa consistiria, então, na desestruturação de um conjunto de eventos (reais ou imaginários) originariamente codificados num modo tropológico, e na reestruturação progressiva do conjunto num outro modo tropológico. Vista dessa maneira, a narrativa seria um processo de decodificação e recodificação em que uma percepção original é esclarecida por achar-se vazada num modo figurativo diverso daquele em que veio a ser codificada por convenção, autoridade ou costume... 37
Esse intercâmbio entre a arte (literatura) e a ciência (história) propiciou ao saber
histórico estabelecer uma maior riqueza simbólico-comunicativa do historiador junto ao seu
público. Visto que, aceita-se que o conhecimento do real é feito através de imagens mentais
produzidas pelo intelecto do historiador; imagens estas que possuem uma pluralidade de
sentidos e significados, que quando entendidos, podem se manifestar por meio de uma
linguagem escrita, falada, pintada, encenada, etc.
A relação ficção e história é complexa e marcada pela existência de continuidades e
descontinuidades, justamente pelo fato da história não ser feita apenas por documentos, mas
também pelas questões que influenciam o historiador. Neste sentido, o discurso utilizado pelo
historiador, assim como o posto em prática pelo literato, é uma ‘elaboração ideológica’que se
caracteriza por ser resultado de uma linguagem montada, representativa da condição humana;
por meio do qual ambos (historiador e literato) dão sentidos aos fatos. Com isso, o uso de
recursos advindo da arte literária pela história, proporciona ao historiador criar um enunciado
histórico “destinado a produzir unidades de conteúdo” que possuem como meta representar
“aquilo de que fala a história”. Dessa maneira, o discurso utilizado pelo historiador visa
37 WHITE, Hayden. O Texto Histórico como artefato Literário. In: Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da cultura. São Paulo, EDUSP, 1994, p. 113.
19
organizar o texto histórico, “com a finalidade de estabelecer um sentido positivo e de
preencher o vazio da série pura” 38.
O discurso histórico da mesma forma que o discurso ficcional não acompanha o ‘real’,
atribui sim, aos acontecimentos outras e novas roupagens, enfim, não faz mais que uma (re)
significação. Para Roland Barthes essa investidura de novos sentidos aos acontecimentos
observáveis de uma dada realidade histórica se dá por meio da linguagem utilizada pelo
historiador. Assim Barthes considera que a narrativa exerce um papel decisivo na construção
da ‘verdade’ histórica, ao observar que “a estrutura narrativa, elaborada no cadinho das
ficções (...), torna-se, a uma só vez, signo e prova da realidade” 39.
Normalmente, tornou-se aceito a idéia de que a história encarrega-se do passado
efetivo, ao passo que a literatura incumbe-se do possível de ter ocorrido. Assim à medida que
o possível fornece uma riqueza de detalhes, ele produz uma relação de verossimilhança com o
passado efetivo que leva os leitores ao convencimento e persuasão. Dessa forma, a narrativa
literária proporciona ao historiador um mergulho num universo onde várias alternativas
históricas são possíveis; além da possibilidade de movimentar-se entre elementos ou camadas
colocadas à margem da sociedade e da história por uma construção historiográfica com
características dominantes. Assim sendo, o modo narrativo da ficção contribuiu com a
história, à medida que a mesma enquanto disciplina se preocupa com o entendimento de uma
realidade sócio-cultural perpassada por uma multiplicidade de tempos, fenômenos e
universos.
O historiador na impossibilidade de contar com uma documentação que consiga apreender a realidade em toda sua complexidade, tem na representação literária uma fonte rica e farta de informações preciosas em relação às práticas cotidianas, aos valores e aos sentimentos pertencentes ao universo social; pois através “das histórias contadas por literatos podemos elucidar aspectos relacionados à cultura e à sociedade de um povo” 40.
Dessa maneira, a narrativa ficcional proporciona a escrita histórica conter, armazenar
e informar aos leitores sobre a carga simbólica e cultural predominante na realidade. Carga
esta, de simbologia e cultura que é escolhida de maneira subjetiva e intencional por parte do
historiador. Assim da mesma forma que o discurso literário carrega em suas entrelinhas
elementos que fornecem pistas referentes à mente e a imaginação criadora do escritor, a
utilização de certos recursos ficcionais por parte do historiador fornecem sinais que convidam
38 BARTHES, Roland. “O discurso da história”. In: O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.150-5. 39Ibidem. 1988, p. 157. 40 Ibidem, 1993. p.41.
20
o receptor, não somente a receber, como também a decodificar a mensagem que lhe é
transmitida.
As narrativas atualmente necessitam acompanhar um novo ritmo, tornando-se mais
breves e envolventes, já que o mundo moderno por apresentar uma grande quantidade de
informações que nos chegam por diversos mecanismos41, apresenta características que não
combinam com narrativas longas que levem o público/leitor ao desinteresse. Segundo Walter
Benjamin a arte de narrar, ou melhor, “a faculdade de intercambiar experiências”42 de
comunicação se encontra em extinção, pois ato de trocar experiências entre as pessoas vem
caindo em desuso, em função da competitividade predominante no mundo atual e do
desenvolvimento das forças produtivas.
É nesse quadro de empréstimos tomados pela história junto à literatura, que
percebemos “que a história imita em sua escrita os tipos de armação da intriga herdados da
tradição literária” 43. As demonstrações da presença dessas armações literárias no texto
histórico são evidenciadas quando determinados fatos são vistos, ora como trágicos44, ora
como cômicos, etc. Com isso, percebe-se que o gesto ficcional está a serviço da história, não
podendo enxergar uma sem a outra. Assim, o entrelaçamento da ficção à história ‘pode’se
fazer presente, desde que contribua para a realização da história (possibilitando aos
historiadores darem um certo encadeamento aos fatos analisados) e não enfraqueça seus
méritos, intencionalidades, metas e objetivos.
Nesta perspectiva percebemos que o discurso literário pode oferecer ao historiador a
possibilidade de edificar uma historiografia onde a presença da imaginação, da sensibilidade
crítica, dos sentimentos e das inquietudes revele o seu modo de pensar e se posicionar. Assim
a reunião e utilização desses recursos e instrumentos por parte do escritor-historiador não
comprometem em nada a verdade da narrativa histórica, desde que sejam respeitados os
41 Televisão, rádio. jornais escritos e falados, mas principalmente, a internet. 42 BEIJAMIM, Walter. Obras Escolhidas. V.I, Trad. Sérgio Paulo Roaunet. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 198. 43 RICOUER, Paul. “O entrecruzamento da História e da ficção”. In: Tempo e Narrativa TomoIII. Campinas, São Paulo: Papirus, 1997. p. 316 44Williams ao procurar pensar a historicidade do conceito de Tragédia, perpassa pelos parâmetros sociais e culturais em que ela foi gestada; nos alertando assim, sobre as dimensões históricas presentes em todas as manifestações artísticas e demonstrando que pensar historicamente é procurar perceber como o debate político-cultural e intelectual está se dando em determinado momento histórico. Porém a maior contribuição de Williams está no campo da história cultural, pois autor considera devemos romper com o “tom trágico que cada vez mais consagra em nossas justificativas e explicações as temáticas e acontecimentos grandiosos (de cunho coletivo), para assim conseguirmos dignidade aos temas relacionados à vida cotidiana, ou seja, as problemáticas pormenores pertencentes a grupo anônimos”. WILLIAMS, Raymond. “Tragédia Moderna”. São Paulo, Cosac & Naify, 2002
21
limites de cada disciplina, cujas fronteiras não devem ser enxergadas como intransponíveis e
insuperáveis.
Seguindo esta linha de raciocínio compreendemos que a história é também uma
produção artística, pois o historiador ao analisar os fatos que compõem a ‘realidade’ sócio-
cultural, deixa uma impressão carregada de valores, emoções e sentidos, concretizando assim,
a realização de um estudo pautado na observação do elemento humano formador da
sociedade. A história se afirma como uma construção humana, pois “os fatos não existem
isoladamente”,. muito pelo contrário, requerem a elaboração de uma análise, de uma
observação e de uma correlação de um fato com os vários outros existentes; enfim, da
construção de uma “intriga” 45 que permita o desencadeamento e entendimento da realidade
histórica em questão.
Assim, a produção historiográfica contém no seu interior aspectos artísticos, pois
... a história é obra de arte pelos seus esforços no sentido da objectividade, do mesmo modo que um excelente desenho, por um desenhador de monumentos históricos, que faz ver o documento e não o banaliza, é em certo grau uma obra de arte e supõe algum talento do seu autor. A história não é uma dessas artes de conhecimento nas quais, para citar Gilson, basta ter compreendido o método para a poder explicar, é uma arte de produção onde não basta conhecer os métodos: é necessário também talento46
A presença de recursos ficcionais na história liga-se a formação de uma “nova
história”, mais completa que pousa seu foco de atenção nas idéias, nos comportamentos, nos
valores presentes na vida cotidiana e privada, na cultura e em todos aspectos que cobrem a
vida dos homens. Por estas razões, os historiadores recorrem à arte da narrativa para melhor
apreenderem em suas reflexões as várias dimensões que fazem parte da realidade de uma
sociedade. A imaginação criadora da literatura além de ser uma fonte inesgotável de
testemunhos, oferece a história um dialogo enriquecedor para o entendimento e compreensão
das ações humanas.
Assim percebemos que o historiador no exercício de seu ofício coloca em prática
tanto recursos advindos da arte literária, como também recursos científicos. Sendo que ao
manusear esse arsenal de recursos o historiador visa concretizar intencionalmente a
45 VEYNE, P. “A noção de intriga” e “Em que é a história obra de arte”, in: Como se escreve a História, Lisboa: edições 70, 1987. p.45. 46 Ibidem, p.256.
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construção de uma “verdade” transparente. Tal atitude, conforme observa Antônio Cândido
faz com que o historiador se realize enquanto sujeito real das orações e dos sentidos que
constrói; ao passo que o literato (narrador fictício) não é sujeito real das orações e sim, um
manipulador das funções narrativas, à medida que explora intencionalmente, toda sua
capacidade criativa e principalmente, a força oriunda da imaginação como meio de prender
a atenção do público leitor.
Diante de tais considerações, entendemos o texto literário, em especial, Feliz Ano
Velho47, como um documento da cultura que exibe despojos e vestígios valiosos que fazem
parte das representações, das memórias e dos imaginários de uma sociedade. Essa
documentação apresenta-se como um solo fértil permeado por riquezas que possibilitam a
construção de uma “outra história”, mais eclética e menos reducionista. Assim, a literatura
proporciona aos historiadores pensar uma “história dos desejos não consumados, dos
possíveis não realizados, das idéias não consumidas”48, enfim, uma história que rompa as
barreiras impostas pelas posturas hierarquizadas e tradicionalistas presentes na historiografia.
Assim cabe,
Não só o poeta, mas também a historiadores incumbe
recuperar lágrimas e risos, desilusões e esperanças, fracassos
e vitórias, fruto de como os sujeitos viveram e pensaram sua
própria existência, forjando saídas na sobrevivência, gozando
as alegrias da solidariedade ou sucumbindo ao peso de forças
adversas49.
47 47 Feliz Ano Velho, a partir de agora será abreviado e referido-se como FAV, em prol da construção de um texto mais solto e fluído. 48SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. 2 ed., São Paulo, Brasiliense, 1985. p. 21 49 VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY, Yara Maria Aun. A Pesquisa em História. São Paulo, 2ª edição. Editora Ãtica, 1991. p. 12.
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CAPÍTULO 1
MEMÓRIAS DE DENÚNCIA E DOR
Em uma época silenciosa, nem mesmo o regime da ditadura dos governos militares no
Brasil, pode calar a indignação e perplexidade daqueles que sucumbiram às pessoas de fardas.
Pessoas essas que se achavam as donas do Brasil, uma vez que a palavra justiça representava
apenas signos lingüísticos distanciados do seu real significado. O significante ecoava nas
mentes humanas como uma forma de busca para sair da opressão carregada de desilusões e
conflitos.
No entanto, a imposição não fora capaz de calar e apagar a memória dos que
acreditavam em liberdade e igualdade. Muitos foram torturados, exilados e mortos, mas os
que sobreviveram a tais atrocidades carregaram a consciência que o passado fora marcado
por tragédias que serviram de sustentáculo para a organização e criação de um vasto
movimento luta rumo a construção de uma sociedade menos impositiva e mais democrática.
E em busca pelas memórias que se referem e representam um dos períodos mais
negros da história brasileira, que nos remetemos a Marcelo Rubens Paiva, autor e protagonista
de FAV que viveu um infeliz episódio – um acidente50, e por isso teve sua capacidade
locomotora encerrada, sem, no entanto, perder a capacidade de raciocínio lógico o que, dessa
forma permitiu-lhe deixar suas memórias registradas em forma de um bate – papo, com uma
escrita “em brasileiro”51, tendendo para a autobiografia, documentação, na construção de sua
história, através de uma problematização das situações das quais vivenciou tanto na infância
quanto na adolescência.
Marcelo Rubens Paiva através de sua narrativa, demonstra-nos como sua memória é
influenciada pelo passado e por um enorme peso afetivo, manifestada pela importância que
familiares e amigos tiveram na (re) montagem de sua vida e na composição do livro. Para
compreendermos suas memórias contidas em FAV torna-se necessário o conhecimento do
50 No dia 14 de dezembro de 1979, aos vinte anos de idade, após um mergulho mal dado, em um lago sem profundidade, Marcelo Rubens Paiva alteraria totalmente a sua vida, pois o mesmo ficaria paraplégico. E é novo espaço de luta pela vida que se tornara o hospital, em meio as visitas de familiares, colegas e amigos que suas lembranças e memórias afloram. Nessas mesclavam-se referências individuais e coletivas as quais, muito contribuíram para tornar-se um autor remontando os fatos e os acontecimentos marcantes tanto em sua vida como na do próprio país. Assim, sua existência é extremamente representativa por aproximar-se daquilo que um grande números de pessoas experimentaram. 51REZENDE, Marcelo. “Feliz Ano Velho” chega a adolescência. Folha de São Paulo, 1-12. 1997, p. 1, caderno 5.
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mundo de seu produtor, assim como o clima político e cultural do pós – 64 que, sem dúvida
alguma, é motivo para reflexões constantes capazes de nos propiciar compreender como esse
período foi marcado por atos e decisões autoritárias, marcas indeléveis de um período
impiedoso.
O contexto sócio – cultural revelado na narrativa nos coloca diante do paradigma
inaugurado pelos textos de ex-exilados políticos, pois revela as tramas que poderiam ter sido
caladas ou esquecidas, em virtude daqueles construídos pelas memórias dos dominantes, que
tentaram silenciar aqueles que viveram o horror de um período ditatorial.
O autor Marcelo Rubens Paiva, através de sua obra será o fio condutor desse período,
embora nossas reflexões sejam consolidadas através de textos de estudiosos que propiciam
uma reflexão crítica na abordagem suscitada em FAV. Estas produções culturais nos permitem
“ler” as representações que o referido autor explicitou sobre os anos de ditadura vividos pelo
povo brasileiro, tais como o próprio pai do autor que se torna uma das vítimas da repressão
política do período. Situações essas que torna ainda mais verossímil as representações tecidas
pelo autor ao longo de sua obra.
Nesta perspectiva, interessa-nos perceber como o autor “lê”, analisa a sua época ao
narrar suas experiências recentemente vividas, juntamente com as de um povo que muito
lutou e sofreu para ver o processo democrático instaurado em um país comandado pelos
donos de um Brasil predominantemente marcado pelas divisibilidades culturais, sociais,
étnicas, religiosas, econômicas.
FAV é compreendido como símbolo e metáfora de uma memória dualista que se
refere a dois momentos distintos tanto na vida e história do autor, quanto do país, e que ao
mesmo tempo se entrecruzam constantemente. Assim, o primeiro sentido é individual, refere-
se a infância, a morte do pai e ao acidente – marcos iniciais para um período de sofrimento, de
dores e angústias para o autor. O segundo sentido, refere-se ao golpe de 1964 – a morte pela
segunda vez do mesmo cadáver, a democracia brasileira, e início de um período de dor e
sofrimento para a sociedade brasileira como um todo.
A trajetória de vida de Marcelo Rubens Paiva é similar à de outros jovens da classe
média dos anos 70, e conforme ele mesmo nos relata em sua obra é filho de advogado e pai
engenheiro e político – ex – deputado pelo PTB antes 64 e, em 70, membro do Partido
Socialista Brasileiro. Nasceu no lado de cá dos trilhos, em São Paulo, se mudando pro Rio,
onde viveu a maior parte de sua infância. Em janeiro de 1971, seu pai desapareceu ao ser
levado pelos militares, o que impulsionou sua mudança para Santos, voltou para São Paulo,
aos 6 anos se mudou para Campinas, mas acabou regressando definitivamente para a capital
25
paulista ao sofrer o acidente que o deixou paraplégico, “lutando com toda a energia de garoto
de 19 anos para manter sua sanidade física e mental, ele podia ver muito melhor que nós com
desassombro e lucidez”52.
Em sua infância sempre estudou em colégio burguês e por ser neto de latifundiário e
de comerciante latino, morou no Jardim Paulista, tendo uma vida repleta de quadros bonitos
na parede e vários tapetes persas. Esse estatus social parecido aos padrões da elite do Milagre
Brasileiro não permitiu que ele trabalhasse o que lhe impunha uma vida burguesa. Após o
trágico acidente, juntamente com sua família, foi morar em um prédio típico da época em que
vivíamos, a ascensão da classe média do Brasil (para nós a decadência da burguesia, para
ele, acostumado aos padrões burgueses era um local sem muito conforto.
No entanto, sendo seu pai um político de partido da esquerda, herdou as mesmas
características peculiar, se auto dominado popularesco. Essa característica lhe conferiu uma
formação marcada por rupturas e afastamento do mundo e dos comportamentos daqueles ditos
como burgueses da época. Deu-lhe uma mentalidade revolucionária capaz de transcrever
aquilo que lhe impregnava o imaginário.
O imaginário é um conjunto de imagens e de relações que constituem o capital pensante do homo sapiens. Se o imaginário é o cerne da propriedade realmente humana – a capacidade de representar a si próprio, a sua vida e ao mundo – ele é, por excelência, o campo privilegiado da história53.
Um imaginário capaz de fazer as representações do mundo no qual Marcelo estava
inserido. Suas representações estão permeadas de subjetividades e intencionalidades, não
mantendo uma relação de transparência total com a totalidade que visou representar. Assim,
uma intencionalidade nos faz refletir sobre as repressões sofridas no período pós – 64 e o
momento silencioso vivido pela classe média que se via obrigada a ouvir “no início de março
de 1964”, quando “Luiz Carlos Prestes, secretário geral do PCB”, declarava, “numa estação
da TV paulista que: não estamos no governo mas estamos no poder”54.Uma demonstração
clara de poder e arbitrariedade que marcava o início de um período de anos de Chumbo, onde
o cidadão era reduzido ao silencio, desilusões e frustrações. Discordar das situações e
condições impostas era sinônimo de perseguição, exílio e morte.
52 ABRAMO, Bia. “Feliz Ano Velho: livro fez juventude dos 80 acontecer”. Folha de São Paulo, São Paulo, 5º caderno, 1997, p 3-5. 53 DURAND, Gilbert. L`imagination symbolique. Paris. PUF. 1989. p. 17. 54 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem. CPC, vanguarda e desbunde – 60 – 70. R. J. ROCCO, 1992. p. 12.
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Essas memórias não poderiam cair no esquecimento de um povo que sofreu por um
ideal democrático, assim, à medida que Marcelo contribuiu para a construção de uma dada
memória coletiva, resgatar experiências vividas e certos acontecimentos, nos permitem
compreender que um livro é um ‘lugar de memória’ viva, a medida que consegue romper com
o que é transmitido para indivíduos como “dado”, como “oficial”, demonstrando que a
memória é um fenômeno vivo, marcada por uma dinâmica que permeia sua construção.
Desse modo, podemos considerar FAV um produto cultural da sociedade que reflete o
universo complexo e conflituoso no qual foi produzido, concebe e interpreta a realidade a
partir da (re) construção de uma memória que carregava o fardo de ter o pai eliminado pela
repressão ditatorial e, mais tarde, ter vivenciado os anos de abertura do regime militar e que
representa aquilo que um grande número de pessoas experimentou. “Um traço nosso, e, até
onde se sabe exclusivo do nosso processo cultural de resistência à ditadura”55.
Com praticamente 800 mil exemplares vendidos, FAV é considerado o livro dos anos
oitenta, e seu sucesso se aplicam ao fato do narrador se aproxima muito do perfil do leitor
jovem à medida que produziu uma narrativa dos acontecimentos da época com uma
linguagem coloquial, recorrendo a gírias, expressões do dia-a-dia, palavrões, na realidade
propôs uma forma agradável de leitura ao público sem recorrer aos aspectos sintáticos e
semânticos impostos pela nomenclatura gramatical brasileira, carregada de traços que marcam
a sociedade brasileira letrada.
FAV retrata questões importantes referentes aos anos ditatoriais, como as prisões, as
torturas, as práticas políticas, as formas de ação e de protestos contra a ditadura. Contém
elementos políticos e ideologias que fazem parte da educação política herdada de seu pai.
Marcelo Rubens Paiva estava imobilizado fisicamente, mas permanecia consciente e sua
memória não se deixava aprisionar frente aos traumas pelos quais passava.
Sua ideologia política atrelada à linguagem sem rebuscamento gramatical o fez
afirmar, tenho o maior bode das palavras complicadas, fica parecendo uma coisa formal. Eu
adoro falar gíria, palavrão. Marcelo não estava buscando ser um escritor anônimo, sua
narrativa relaciona-se com problemas de ordem filosófica e política, essas são suas marcas
que permitiram a Roberto Cordeiro Gomes afirmar:
(...) Deixando de lado a “quantidade literária”,pautada por cânones já consagrados, [mas] não é à toa que o jornalista {Roberto Pompeu de Toledo], no rescaldo de seu artigo,
55 MACHADO, Ana Maria. “Da resistência à transição. IN: O Trânsito da Memória/ Jorge Svhwartz, Saul Sosnowski (orgs.) – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 76.
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livra a cara de Gabeira e de Marcelo Paiva (ambos tinham “grandes histórias para contar”!) e usa como parâmetro o memoralista Pedro Nova56.
O que percebemos é que Marcelo Rubens Paiva, estabelece uma necessária correlação
entre o contexto (social e político) e o discurso, sem no entanto, recorrer ao rebuscamento da
língua portuguesa, o que faz com que sua obra se inclua dentro da perspectiva memoralista,
apresentando uma autobiografia jovem e precoce, com o caráter de depoimento mesclado ao
tom e verve humorístico. Um texto, parte daquelas obras “dignas de perpetuar-se em letra
impressa, pois além de construir uma grande história (...) “eu” é o mirante libertador de onde
completa e dá sentido ao movimento ao seu redor”57, conseguindo, com isso, falar também
com os outros.
A obra de Marcelo Rubens Paiva transcorre em espaços que vivem transformações
econômicas, políticas e, principalmente, culturais do país. Cidades como Rio de Janeiro,
Campinas e, principalmente São Paulo são utilizadas como pano de fundo. Mesmo com o
advento do regime militar marcado pela repressão, censura, prisões, exílios, crises econômicas
e políticas, assim como pelas estratégias que viabilizam forjar o “dito milagre brasileiro”,
certos setores culturais que se inseriram no processo de produção em massa, apresentando
aspectos de indústria, atingiam consideráveis níveis de desenvolvimento, graças aos
incentivos dados, muitas vezes, pelo próprio governo, em decorrência do interesse dos
militares em veicular e difundir suas ideologias entre a população e contribuir para sua
aceitação e consolidação.
Muitos escritores autênticos ficaram submetidos a uma sujeição vexatória, pois a indústria cultural funcionou em harmonia com a ditadura, atirando uma cultura banalizada sobre a massa amorfa e banindo as expectativas favoráveis a uma população local58.
Em FAV, seu protagonista não preocupou em fazer parte dessa gama de escritores.
Suas narrativas não eram apenas representações ficcionais e sim representações de um
56 GOMES, Renato Cordeiro. Eu por exemplo… uma reflexão sobre autobiografia precoce. IN: O Eixo e a Roda: Revista de literatura Brasileira. Belo Horizonte. UFMG. 1982. p.202. 57 Ibidem, p. 202. 58 LUCAS, Fábio. “A crise da cultura Literária no Brasil pós-64”. IN: O Trânsito da Memória/ Jorge Svhwartz, Saul Sosnowski (orgs.) – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 134.
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momento histórico – social conturbado e cruel, onde muitos não aceitavam a passividade. O
conformismo simplesmente era negado em virtude de ideologias nas quais acreditava, assim
(...) situações vividas só se transformam em memórias se aquele que se lembra sentir-se efetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu. Aliás, ao qual pertence, pois só se faz parte de um grupo no passado se continua afetivamente a fazer parte do presente. Se, no presente, alguém não se recorda de uma vivência coletiva do passado é porque não pertencia àquele grupo – ainda que pertence fisicamente -, já é o afetivo que indica o pertencimento59.
A história de Marcelo Rubens Paiva fazia parte afetivamente do passado que narra
sendo também parte integrante da trama social do momento histórico. Momento este, que a
televisão já se consolidava como veículo de perpetuação da indústria cultural no Brasil. Não
só a televisão, mas nos anos 70, o cinema nacional juntamente com a indústria do disco, da
publicidade de edição adquiriram aspectos da cultura de massa, ou mais precisamente o
mercado editorial que era regido conforme regras do sistema capitalista que se implantara no
Brasil. Conforme analisa Renato Ortiz.
A indústria adquiri, por tanto, a possibilidade de equacionar uma identidade nacional, mas reinterpretando-a em termos mercadológicos (...) nesse sentido se pode afirmar que o nacional se identifica ao mundo60.
Essa indústria cultural provoca um reducionismo no cenário literário, e nas produções
que se propunham a realizar um trabalho voltado a problematização social. Tudo isso, fez
com que a maioria das obras literárias fossem lançadas no “reduto da insignificância e da
desvalorização”. Característica que foi mais acentuada, pois já que os próprios veículos de
comunicação de massa não incentivavam a releitura do passado literário; provocando assim,
um certo sentido, uma “estagnação” do Brasil no setor cultural, conforme observa Fábio
Lucas,
(...) a atribuição de valor se voltou exclusivamente para o mercado, o que faz com que a comunicação de massa não
59 HABWACHS. Maurice. A memória coletiva. São Paulo. Edições Vértice, 1990. p. 80. 60 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165.
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privilegie a obra literária. Esta se tornou inexpressiva em fase do enorme interesse do público pelos artistas de espetáculos mais ligados à comunicação e ao consumo instantâneo. As obras literárias são sistematicamente encaminhadas para um reduto da insignificância61.
O contexto histórico, dessa forma, nos faz suscitar o dito “milagre econômico”
caracterizado por acirradas mudanças que resultaram na perda por parte dos militares do
apoio concedido por vários setores da sociedade. Fatores que contribuíram para o grande
avanço do processo de redemocratização e, conseqüentemente, afrouxamento da ditadura no
final da década de 70, a chamada distensão política e, concomitantemente, o culto do prazer;
do descobrimento do que havia sido sufocado pelo período anterior.
Era necessário esquecer que no início dos anos 70 a sociedade em geral atravessara
um período de verdadeiro clima de guerra e de caça aos opositores do regime instaurado
desde 64, onde em nome da defesa e da segurança nacional, os cárceres começaram a encher,
em virtude da vigorosa disposição do governo militar em reprimir todos que, sequer,
ousassem a se opor ao regime político vigente.
As arbitrariedades impostas pelo Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968,
pelo presidente da República, o então General Artur da Costa e Silva, haviam acirrado, ainda
mais, a tensão e a execução solta de atos de violência e turbulência militar em relação aos
seus desmandos opositores. O AI – 5 torna-se o “a assassinato pela segunda vez do mesmo
cadáver: a cidadania brasileira”62. Este ato cria a “Operação Arrastão” que atingia jornalistas,
políticos, artistas, estudantes e colocar em prática um terrorismo oficializado.
O AI-5 fora criado como uma forma de garantir a organização política que não era
aceita por vários segmentos sociais da época, era, na realidade, uma maneira de fazer calar e
levar para a prisão àqueles que de alguma forma entoavam o grito de liberdade e almejavam
uma sociedade democrática que permitisse o direito de expressão, seja no campo político,
social ou cultural. A arbitrariedade deste ato era tal que mantinha incomunicável qualquer
preso político e negava-lhe o direito de hábeas – corpus, ao cidadão que desrespeitasse a
ordem política social em vigência restava-lhe o direito de ser julgado como subversivo, uma
ameaça à ordem imposta pelos ditadores.
Dessa forma, estava-se torturando gente como nunca, e havia-se criado uma tática
mais eficiente: mata-se o inimigo e some-se o corpo. Essas práticas adversas do AI -5 faziam
61LUCAS, Fábio. “A crise da cultura Literária no Brasil pós-64”. IN: O Trânsito da Memória/ Jorge Svhwartz, Saul Sosnowski (orgs.) – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 137. 62 BARROS, Edgard Luís de. Os Governos Militares S. P. Contexto, 1991, p. 43.
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com que a sociedade brasileira passasse a ser composta por um grande conglomerado de
indivíduos amedrontados e subjugados como escravos de um sistema político que não dava
margem de defesa.
Para atingirem seus objetivos, os militares dispunham de um verdadeiro esquema de
caça aos chamados subversivos. Contavam com o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, a
“segurança nacional” servia para amedrontar, pois era a serviço da Presidência da República
que estavam. Além desses, outros órgãos de repressão foram criados: o CIE (Centro de
Informações do Exército), o DOI – CODI (Departamento de Operações de informações –
Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército), o CISA (Centro de Informações e
Segurança da Aeronáutica) o DOPS (Departamento de Ordem Política Social), DEOPS
(Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social), CCC (Comando de caça aos
Comunistas), dentre outros. Todas essas instituições buscavam eliminar o perigo comunista e
proporcionar aquilo que se considerava necessário para o “estabelecimento da ordem e da paz
social”; na realidade um Estado enfraquecido que se viu no direito de lançar mão da força
bruta para silenciar os que estavam descontentes com o regime político em vigência e, assim
permanecer no controle de uma sociedade que precisava-se manter calada para não fazer parte
do número de desaparecidos e exilados políticos.
Neste período, início dos anos 70, Marcelo Rubens Paiva , vivia o início de uma
adolescência típica de um integrante da classe média, e contava com a presença do pai, e
deputado e engenheiro Rubens Paiva que um pouco também por não ter o que fazer
politicamente, viajava menos e estava bem caseiro, já que a maioria de seus amigos estavam
no exílio.
Em decorrência do golpe militar, o então presidente em vigência João Goulart, sem
condições de resistir ao poder dos golpistas que contavam com o apoio das Forças Armadas e
com a própria falta de organização da esquerda, exilou-se no Uruguai, juntamente com seus
amigos mais próximos, tais como Leonel Brizola e Darcy Ribeiro.
Holanda (1990: 15) trás para os anais da história um artigo assinado por Assis
Tavares, na Revista Civilização Brasileira que era um referencial obrigatório para o
pensamento de esquerda no período 64 – 68:
A derrocada do governo João Goulart foi fulminante. Quando se leva em conta que, a época do plebiscito sobre o parlamentarismo em fins de 1962, grande era o apoio gozado pelo governante deposto, fica-se sem entender como seu alicerce político deteriora-se em tão pouco tempo, em menos de 15 meses. A explicação do fato é essencial ao governo
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progressista brasileiro. Havendo perdido as posições que ocupava, resta-lhe melancolicamente o papel de recolher as lições de uma fase em que se anunciava uma transformação qualitativa na sociedade brasileira63.
O governo de João Goulart demonstra sua fragilidade de resistência frente ao golpe
militar de 64. Como Rubens Paiva fora deputado federal pelo PTB, antes de 64 e em 70
membro do Partido Socialista Brasileiro, além de ser possuidor de idéias Getulistas,
nacionalistas e integrante da cúpula do governo de João Goulart, seu nome integrava à lista de
militares leais ao governo democrático que passariam a ser implacavelmente perseguidos.
Esse fato foi mola propulsora para que a casa dos Rubens Paiva, no Rio de Janeiro fosse
invadida em 20 de janeiro de 1971. Casa64 esta, considerada como um verdadeiro Estado
maior, uma vez que lá reuniam-se jornalistas e o que sobrou do Governo Jango: Raul Rify,
Valdir Pires, Bocaiúva Cunha, Fernando Gaspari, Flávio Rangel, Hélio Fernandes, José
Aparecido.
Sem nenhum documento oficial e escrito, Rubens Paiva65 recebera uma ordem de
prisão e de comparecimento na “Aeronáutica” para prestar depoimento, Rubens tinha as filhas
63In appud: HOLLANDA, 1992, p. 14. 64 A casa é melhor representação da esfera privada. Refúgio da individualidades, é ali que se processa o drama mais íntimo de cada um. Dores e tragédias podem ser encenadas nos salões, gritadas nas ruas, mas é em casa, diante da cama vazia, do quarto desabitado, que a ausência se insinua, machuca aquele que ficou. No Brasil, foram centenas de pessoas – homens, mulheres, especialmente jovens, que tiveram de abandonar suas casas e famílias. Presos, exilados, “desaparecidos”, assassinados, eles deixaram atrás de si um rastro de desespero e de forçado silêncio. Aos pais, mães, irmãos, filhos, maridos e mulheres restava então a desconsoladora certeza de que não seria feita justiça e de que nada, jamais, voltaria a ser como antes. DALCASTAGNE, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília, UnB, 1996, p. 113. 65 Rubens Paiva nasceu em São Vicente, em 26 de dezembro. Foi o quarto de uma família de 6 filhos. Nosso pai, santista e descendente de imigrantes portugueses, foi um homem de sucesso na vida. Tinha uma grande frima de despachos alfandegários. Quando os filhos tronaram-se adultos, os negócios se expandiram numa mpresa de caráter familiar com três ramos, Paiva & Cia., firma de despachos, Fazenda Caraitá, no Vale do Ribeira, que produzia e exportava banana e mexirica, e uma firma de engenharia, Paiva Construtora, que era dirigida por Rubens. Desde pequeno veio estudar interno em São Paulo. A principio no Colégio Arquidiocesano e depois no São Bento. Formou-se em engenharia na Universidade Mackenzie e, durante o curso, aos 22 anos, casou-se com Eunice Facciola, com quem teve 5 filhos. Durante a vida acadêmica já trabalhava, tendo sido sempre aluno brilhante. Para grande orgulho dos pais foi escolhido orador de sua turma. Rubens fora Presidenta do Cento Acadêmico Horacio Lane. Ali estimilou o gosto pela aviação mantendo – um curso de pilotagem. Ao avião do Centro Acadêmico foi dado, em sai homenagem e na época, seu nome. Desde cedo fez política. A princípio, política universitária. Candidatou-se depois a Deputado federal pelo PTB e elegeu-se no mesmo ano em que Jânio Quadros torno-se Presidente da República, em 1962. foi cassado na segunda lista que saiu depoi do golpe de 1964. Sua cassação deu-se provavelmente porque fazia parte da Frente Nacionalista Parlamentar – FNP, do Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, muito próximo ao Presidante João Goulart. Cassdo, asilou-se na Emabaixada da Yugoslávia, em Braíliaa, de onde conseguiu viajar a Europa, onde passou 9 meses. Voltou ao Brasil por insistência da família, às vésperas do Natal. Em princípios de 1965 reiniciou seu trabalho como engenheiro na firma S/A Paiva Construtora e não foi molestado por qualquer elemento do governo no período de
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e a empregada sob a mira de metralhadoras empunhadas por “militares à paisana” que faziam
parte de uma unidade do DOI – CODI. Dava-se início ao caso Rubens Paiva66.
Marcelo Rubens Paiva não percebeu de imediato o que estava acontecendo. Não
entendi e fui jogar bola na praia. O autor transitava, nesta época, da infância à adolescência.
No entanto, aos poucos foi tomando consciência de que os mesmos eram prisioneiros ao ver o
telefone fora do gancho e sem poder sair. Situação esta confirmada, ao perceber que, por
ordens da mãe, às escondidas, deveria entregar uma caixa de fósforos a uma amiga da
vizinhança, a qual continha um papelzinho dobrado que dizia: O RUBENS FOI PRESO,
NINGUÉM PODE VIR AQUI, SENÃO É PRESO TAMBÉM.
A situação conflituosa e desconfortante pela qual passou durou um dia e uma noite,
pois tiveram que passar com os caras, juntamente com a mãe, irmãs e a empregada. Para
aumentar a tensão e o medo em um cenário de dor, sua irmã mais velha e sua mãe tiveram que
acompanhar os militares, o que fez com que os demais presentes na casa ficassem encolhidos
num canto morrendo de medo.
O medo e a reclusão os mantiveram encolhidos, aguardando o retorno da irmã por um
dia e o da mãe, Eunice Paiva por treze que tinha estado no quartel de Barão de Mesquita67,
Polícia do Exército, numa cela individual, durante esse período Eunice foi submetida a
interrogatórios sobre as idéias políticas do marido e ainda deveria falar quais eram as pessoas
que freqüentavam sua casa. Voltara irreconhecivelmente mais magra, apresentando visíveis
sinais de torturas psicológicas, pois era obrigada a ver coleções de fotos e exigiam que as
reconhecesse, no entanto, só conseguira identificar o esposo. Em meio a tudo isso, Rubens
Paiva foi hospitalizado68 gravemente, e sua família começava a viver os dolorosos efeitos da
ação militar junto à sociedade.
Como era uma política constante, os militares queriam informações, e esperavam que
os prisioneiros dilatassem seus opositores. O que caracterizava, dessa forma, a tortura; peça
essencial para a estrutura repreensiva representativa do regime militar que compunha o
cotidiano daqueles que passaram por este período opressor.
1965 a 1971. com a pisão começou o grande pesadelo. BARROS, Maria Lucia Paiva Mesquita. O Caso Rubens Paiva. Mestrado: História. PUC – SP. 1992, p. 4-5-6. 66Ibidem, 1992. 67 Local este, onde eram realizadas as mais variadas formas de tortura. Espancamentos: ‘palmatórias, chicotes, pedaços de madeira, cordas molhadas, correntes de aço, casstetes de madeira ou o infame ‘pênis de boi’—cassetetes de borracha reforçados internamente com umcabo-de-aço e introduzidos na vagina ou no ânus de mulheres diante de seus maridos e filhos --, velas e cigarros acesos, navalhas e estiletes, socos e pontapés, tudo enfim, foi usado para bater, fraturar, queimar e esfolar presos. IN: appud, BARROS, 1991, p.52 68 Hospitalizado – era o código banal da época que indicava que o indivíduo havia sido capturado pelos órgãos criados pela ditadura militar.
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Em meio a toda essa situação, Rubens Paiva continuava desaparecido, e como a
censura da imprensa não estava tão rigorosa, o caso Rubens Paiva vazava para o público
criando uma polêmica, pois todos os dias saiam artigos nos jornais: ONDE ESTÁ RUBENS
PAIVA? Na tentativa de ter uma opinião pública favorável aos seus desmandos o governo
dizia que ele não se encontrava preso, mas em réplica os jornais questionavam MAS COMO
NÃO ESTÁ PRESO, SE SUA MULHER VIU A FOTOGRAFIA DELE NO ÁLBUM DA
PRISÃO? A resposta era cínica e covarde: A MULHER DE RUBENS PAIVA NUNCA
ESTEVE PRESA, NEM SUA FILHA.
Essa conturbada situação fez com que a imprensa, juntamente com a família, se
empenhassem na busca, na tentativa de desvendar o verdadeiro paradeiro do deputado. No
entanto, o medo, comum naquela época, calava a boca e impedia que as responsabilidades
fossem aparadas. Os responsáveis pelos atos arbitrários também não foram condenados.
Esses atos cruéis e covardes não pararam, mas diante do medo que silenciava, muita
desta história ficou oculta. Algumas notícias dos acontecimentos chegavam como rumores.
Algum tempo depois o marido de Cecília Vieira de Castro, uma das vítimas e amiga da
família Paiva, que também estivera n a3ª Zona Aérea,( para onde Rubens Paiva fora levado
um dia após ter tido recebido rodem de prisão em sua casa), contou uma versão sem muitos
detalhes do fato. De acordo com seu relato, durante a realização dos castigos e torturas, como
permaneceu de pé muito tempo, com os braços para cima, num recinto fechado, Dona Cecília
fraquejou sendo amparada por Paiva. Esse fato irritou o chefe do interrogatório, que logo em
seguida começou a surrá-lo, até que, uma outra prisioneira, gritou que iriam matá-lo, e o
oficial completamente fora de si, agarrou-a pelos cabelos, forçando-a aproximar dele, já
estirado no chão, dizendo: Aqui não se tortura, isto é uma guerra. Atitude essa que explicita o
que ocorreu com milhares de brasileiros torturados em um tempo negro de nossa história:
tempo da ditadura.
As cobranças feitas pela família Paiva e também pela imprensa, acabavam forçando o
Congresso Nacional a realizar debates agitadíssimos e várias reuniões do Conselho de Defesa
da Pessoa Humana. Mas as decisões tomadas pelo Congresso Nacional atendiam as
conjunturas políticas e para deixar as perguntas seguidas apenas de interrogatórios, neste
período crucial veio a censura da imprensa sobre o caso. Essa medida fez com que a difusão
das notícias e respostas acontecessem de forma amena, vazia de significados, o Estado
precisava amenizar a repercussão do fato que havia tomado proporções enormes.
Assim,
34
Assassinara-se um ex-deputado federal cuja atividade política
era desassombrada, porém inofensiva, e cuja vida pessoal
acompanhava muito os padrões da elite do Milagre do que os
códigos da militância esquerdista. Contara-se uma história
insustentável, e encerrara-se o assunto. Tinha razão o
deputado Pedrosa Horta: “Não há nada a fazer. E, realmente,
não há”69.
Como o objetivo do Estado era manter o controle sobre o país, naquele momento, o
governo, tomou medidas em nome da ideologia e Segurança Nacional. Na tentativa de
continuar sua soberania, o governo criou outros órgãos e, dentre eles, o SNI (Serviço Nacional
de Informações), órgão este, que era considerado a mais poderosa da máquina política do
governo, representava ao mesmo tempo a força e a fragilidade do regime militar. O SNI
tornar-se-ia o principal instrumento encarregado de recolher e avaliar as informações que
diziam respeito a Segurança Nacional.
Foi este sistema de segurança que interceptou uma carta destinada ao ex-deputado
Rubens Paiva, o motivo de sua prisão, uma carta enviada por alguns amigos exilados no
Chile, trazida por Cecília de Castro, a interceptação ocorreu no aeroporto por agentes de
segurança nacional. Como Cecília, era a responsável por essa carta, acabou sendo mais uma
vítima potencial da tortura militar.
Entendemos que Cecília foi mais uma vítima por que Rubens Paiva não era o único
desaparecido: Há centenas de famílias na mesma situação: filhos que não sabem se são
órfãos, mulheres que não sabem se são viúvas. Dessa forma, segundo Marcelo em sua
narrativa, Provavelmente o homem que me ensinou a nadar está enterrado como indigente em
algum cemitério do Rio. Destino dado a muitos prisioneiros que sofreram e morreram, depois
das sessões de tortura num pau-de-arara, dando (...) descarga elétrica em seus braços,
tratamento destinado àqueles que eram considerados opositores ao governo e que de certa
forma ameaçavam a paz e a segurança nacional, tão almejada pelo governo ditador.
Essa forma desumana de tratar os presos políticos, impungia aos envolvidos um
impacto que dilacerava e uma revolta porque acabavam tendo suas vidas afetadas, com
cursos alterados e ainda precisavam conviver com as incertezas e informações que, de certa
forma, causava-lhes perturbações psicológicas, pois não sabiam a real dimensão das torturas
com familiares e amigos. Essas incertezas e medos eram provocados em virtude das
69 GASPARI, Elio. “Nada a fazer”. IN: A ditadura escancarada. Companhia das Letras. São Paulo, 2002, p. 328.
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declarações falsas proferidas por aqueles que eram supostamente responsáveis pelas prisões.
Os militares punham em prática a eliminação70 das raízes do regime anterior, criando “uma
atmosfera de descontentamento. Não somente entre os derrotados, é claro, mas mesmo em
setores expressivos da grande frente que havia apoiado o golpe”71 . Assim era duro, ter que
indagar e não obter respostas, e ainda, ver
(...) uma mãe de cinco crianças ter a sua casa invadida por soldados armados com metralhadora, levarem seu marido, sem nenhuma explicação e desaparecerem com ele? (...) essa mãe também ser presa no dia seguinte, com sua filha de quinze anos, sem nenhuma explicação? Ser torturada psicologicamente e depois ser solta sem nenhuma acusação? (...) essa mãe, depois de pedir explicação aos militares e eles afirmarem que ela nunca fora presa e que seu marido não estava preso? Procurar por dois anos, sem saber se ele estava vivo ou morto72.
Conviver com tais indagações não constituía um fator de fácil entendimento, dada às
circunstâncias que envolviam todo o clima de desconfortantes daqueles inseridos no período
de horas vivido por brasileiros sem patente militar exibida pelos gorilas da ditadura.. A
fragilidade pela qual passavam essas pessoas, eram mais graves a cada momento que a busca
por um ente querido resultava em respostas cínicas e cruéis, dadas pelos donos de uma
situação que mantinham o homem prisioneiros dos seus próprios pensamentos.
O governo militar, naquele momento, buscava evitar o desgaste que as versões
repetidas sobre o caso poderiam causar. Optaram então por práticas de ocultação das prisões,
em atitude cínica e covarde. No entanto, com essas versões sobre os desaparecimentos das
pessoas, os militares cometeram uma falta grave, capaz de comprovar a prisão de Rubens
Paiva. O mesmo fora em seu próprio carro para o quartel do Barão Mesquita, o veículo que
por lá ficara por alguns dias, teve que ser retirado de lá, e, uma tia de Marcelo, ao retirá-lo,
recebeu dos próprios militares um recibo com timbre do Exército.
O documento em questão, deu à família Paiva a oportunidade de impetrar três pedidos
de hábeas – corpus, mas nada aconteceu. O poderio militar chegava a tal extremo que apenas
um desses pedido chegou a ser julgado, mas em sessão secreta. Pretendiam, com isso, não dar
continuidade ao caso, assim não poderia ser julgado ou incriminar qualquer militar. Diversos
setores da imprensa empenhados “na construção de uma outra história – mais democrática –
70 De acordo com Jacob Gorender (1987) torna-se sistemática a partir de 1971 “a eliminação física de presos políticos. Sobe rapidamente o número de ‘desaparecidos’ ou mortos em fictícios atropelamentos nas ruas, em inventados tiroteios policiais” ou em fugas e em seqüestros. P. 229. 71 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro. 2000, p. 40. 72 PAIVA, p. 31.
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sofrem pressões das empresas jornalísticas [que por serem ligados aos setores do governo] se
julgam proprietárias das informações”73. Restava a família esperar apenas que algum dia
ocorresse o julgamento dos milicos que fizeram isso com ele.
Marcelo, em sua narrativa, deixa transparecer sua indignação em relação à repressão e
violência praticada de forma indiscriminada, principalmente, nos anos de chumbo que se
estabelecem no período de 1969 e 1974, sob o governo Médice que revela o sadismo de
alguns imbecis que apenas por vestirem fardas e usarem armas se acham no direito divino de
tirar vidas de uma pessoa, pelo ideal egoísta de se manter no poder. O caso Rubens Paiva,
definido pelo ex-presidente Médici no aeroporto de Recife como mero: Acidente de trabalho,
assim como o seu ‘verdadeiro’destino torna-se uma representação que traduz e revela o rumo
tomado por todos aqueles que foram considerados subversivos e opositores do regime militar.
Dessa forma,
Muitas famílias, nas grandes cidades do Brasil, foram atingidas pela repressão, com o desaparecimento ou aprisionamento de algum de seus membros, sofrendo chantagens, pressões e perseguições de todos os tipos74.
Esses mesmos egoístas tinham um código de ética para se protegerem mutuamente
(como no caso Rio Centro). Essa proteção ficava explicita, pois agentes do DOI – CODI
carioca, além de tentarem provocar uma enorme tragédia em um ginásio onde se realizaria um
show para um público de quase 20 mil pessoas, receberam apoio e as influências do poder
militar para evitar que o caso tornasse público.
Assim:
Imediatamente o Exército assumiu a responsabilidade pelas “investigações”, e apresentou, tempo depois, uma conclusão do caso, inocentando os dois criminosos75.
A forma como se articulavam estratégias de defesa militar não podia, sequer, ser
discutida pelo povo brasileiro. Não havia culpados, uma vez que os julgamentos dos casos
eram realizados em sessões secretas, não permitindo à população acesso aos critérios de
julgamentos. Somente o veredito era informado, o que demonstrava paulatinamente uma
73 CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo, Contexto/Edusp, 1998, p. 72. 74 BARROS, Maria Lucia Paiva Mesquita. O Caso Rubens Paiva. Dissertação de Mestrado/PUC. São Paulo. 1992, p. 74. 75 BARROS, Edgard Luís de. Os Governos Militares S. P. Contexto, 1991, p.102.
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forma de elucidar que as decisões do estado militar não poderiam ser contrariadas76,
permanecendo assim um silêncio por parte daqueles que se viam envolvidos em casos como o
do Rio Centro e outros.
O tempo cronológico não para e o autor continua sua narrativa dando ênfase ao
governo de Ernesto Geisel, que em 1974 assume o poder assumindo uma política de
flexibilização e desenvolvimento para o país que mascara um projeto de distensão lenta rumo
ao processo de democratização. Em consonância com essa calmaria, o conflito de Marcelo
quanto ao desaparecimento do pai estava mais ameno, “estava conformado”.
A calmaria fazia-se presente no governo de Figueiredo, que assumira a partir de 1979,
e a sociedade civil buscava a concessão de anistia aos condenados políticos e se organizava
para promover reformas partidárias com intuito de realizar reformulações capazes de
encaminharem o país para o processo da “abertura” política.
Com o processo de anistia já iniciada, Marcelo começa a ficar sabendo do verdadeiro
destino tomado pelo pai, da mesma forma que outros casos de atrocidades iam aparecendo e
fica-se sabendo de uma série de brutalidades cometidas pelos militares nos porões da ditadura,
pois ficava evidente as barbaridades cometidas nos porões dos quartéis, essas mesmas que
acabaram ceifando a vida de Rubens e muitos outros prisioneiros políticos.
Esse quadro repressivo e ditatorial, presente no Brasil, pode ser percebido em FAV,
quando o autor nos remete as questões vividas por exilados políticos, já que o autor, embarca
nas aventuras de Gabeira, presentes no livro o que é isso Companheiro, e se identifica
profundamente com ele, dizendo que o Gabeira nem imagina o quão importante ele foi para
mim, à medida que revela situações e o sufoco vivido por um sujeito perseguido, e obrigado a
viver na condição de exilado (...) sem poder voltar ao Brasil.
Assim, da mesma forma como Marcelo ia reorganizando sua vida, a sociedade
brasileira também dava sinais de reorganização social e política, e, buscava manifestar suas
inquietações através de pichações de muros nas cidades, que reclamavam, pregavam,
incentivavam e exercitavam a Liberdade de “Expreção” e Organização, algo que se
constituía como uma forma de expressar as idéias e os posicionamentos contrários à repressão
imposta pela ditadura. Era necessário tomar verdadeiros posicionamentos para assumir a
brasilidade.
As lembranças que o escritor possui destes períodos, sobretudo porque sua família fora
uma das centenas de famílias atingidas pelas ações promovidas pelos militares, constituem-se
76 Segundo Daniel Aarão Reis, o Estado militar instaurou-se sob o signo do medo. Medo de que as desigualdades fossem questionadas por um processo de redistribuição de renda e de poder. 2000, p. 73.
38
como histórias que, em outras condições, anteriores, não seriam produzidas e acabariam
caindo no esquecimento77, em virtude do predomínio das memórias oficiais.
O escritor ao longo do processo de organizar, pensar e sistematizar os fatos a serem
reconstruídos ficcionalmente, reconhece o poder que a escrita exerce como elemento
revitalizador da memória dos indivíduos, à medida que, as palavras impressas permitem ao
leitor a criação de certas expectativas, sendo imbuídos de sentimentos, mas verdade, e,
poderíamos dizer, de conhecimentos.
(...) é na memória individual e na autobiografia encravada na
comunicação difusa entre as gerações que se tem buscado
encontrar a memória coletiva; é através das representações
pessoais que se tem buscado às representações coletivas78.
O autor pertence a uma geração de jovens escritores que buscam em suas memórias
remontar fatos históricos, pois sofreram o reflexo dos acontecimentos vivenciados e deixam
sua reflexão crítica ser influenciada pelo próprio envolvimento nas questões. Este
“distanciamento necessário para uma crítica mais objetiva diminui, fazendo o tempo da
enunciação aproxima-se do tempo do enunciado”, instaurando “o primado da memória
voluntária”, marcada por uma autocrítica “esgarçada”, na qual “a experiência é narrada sob
tensão emocional"79 .
Com sua obra, Marcelo deixa transparecer sua indignação com o estado de paralisia
social e política oriunda da ditadura militar, presente no país. Ele compactua com as idéias
revolucionárias características da geração dos anos setenta e crê na possibilidade de termos
um mundo melhor, onde predominasse a intuição sobre a razão, a pureza da alma, do amor,
do entendimento entre seres humanos que pensam, mas estão de saco cheio de dever
obrigações com a sociedade. Estão de saco cheio de representar um papel, um estereótipo, de
serem classificados, de serem cobrados.
Segundo Marcelo Paiva, o Estado Militar em meio as suas próprias tensões e
incompatibilidades, se aproveita das tradições festivas presentes no imaginário social da
população brasileira, para amenizar ou melhor, encobrir os efeitos nocivos de suas políticas e
o desprestígio de sua imagem no Brasil. Deste modo, fazendo um retrato 3 x 4 do Brasil,
77Conforme observava e dizia “Ernest Renan, o grande pensador francês de fins do século XIX (...) mais vale construir o esquecimento do que exercitar a memória”. IN appud, REIS, 2000, p.71 78HABWACHS. Maurice. A memória coletiva. São Paulo. Edições Vértice, 1990. p. 106. 79GOMES, Renato Cordeiro. Eu por exemplo… uma reflexão sobre autobiografia precoce. IN: O Eixo e a Roda: Revista de literatura Brasileira. Belo Horizonte. UFMG. 1982, p.20.
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assim o resumiu: Samba, praia e futebol dão charme pra esse país com fome, doença e
repressão. A indignação do autor com essa realidade mascarada existente em nosso país é
intensificada diante da postura dos meios de comunicação de massa, como as emissoras de
rádios, que travam músicas de Benito de Paula ou daquela duplinha reacionária, Dom e Ravel
(eu te amo meu Brasil, eu te amo, meu coração é verde amarelo, branco e azul anil. Essa
veiculação criava uma consciência nas massas que distanciava a realidade vivida em um país
repressivo e ditador.
Os militares, na busca de construir no interior da sociedade a ilusão do Brasil, Grande
Potência, implantaram, por um lado, políticas culturais pautadas em propagandas ufanistas e,
políticas sociais que o representassem, assim como econômicas que o financiassem como o
arrocho salarial, a inflação, a recessão calculada e a concessão de incentivos para investida do
capital internacional, etc. Por meio dessas estratégias criavam a ilusão de que o sonho era
realidade, ao menos para alguns setores da sociedade. Assim, em meio a estes projetos, se
estabeleciam também comportamentos e condutas que deveriam ser seguidas pela sociedade,
pois dessa forma, a mesma estaria contribuindo para a entrada de vez do país no trilho do
progresso e do desenvolvimento. Mas, na realidade, este discurso encobria os interesses
capitalistas defendidos pelos próprios militares.
Com a capacidade de impor suas ideologias, o Estado cria a Doutrina da Segurança
Nacional, capaz de conduzir a política no país, diante de tantas contradições que imperavam
para a própria legitimação do regime do país. Essas ideologias criaram o imaginário capaz de
esconder as divergências e disputas existentes no cenário das podridões de uma sociedade
regida pelos interesses dos grupos dominantes.
Por tudo isso, o testemunho presente na narrativa de Marcelo Paiva em FAV, é um
lugar de memória, pois permite a sobrevivência do imaginário daqueles que foram anulados
nesta luta. Com isso, apresenta um valor extraordinário, pois se constitui em denuncia e
crítica ao autoritarismo e a brutalidade que assombram o país a partir de 1964. porque se propõe mesmo a ser um documento de horror. Um documento que se estabelece como análise dos jogos do poder ou descrição de torturas, mas como acolhida à dos de suas vítimas, como espaço onde a história dos vencidos continua se fazendo, lugar onde a memória é resguardada por exemplos e vergonha das gerações futuras80.
80DALCASTAGNE, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro UNB, 1996, p. 25.
40
FAV não é apenas uma narrativa que nos faz conhecer com maior clareza os
desmandos cometidos pelos ditadores, mas é também uma descrição do panorama nacional
pós-64, as injustiças sociais e, a reconciliação do autor com a vida que lhe fora sofrida em
detrimentos a tantos acontecimentos trágicos. Marcelo Rubens Paiva, ao longo do livro
(...) está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos (...) fazem
gestos que sustentam a história, que dão asas principiados
pela sua voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das
coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como o
conto da Carochinha. A arte de narrar é uma relação alma,
olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida
humana.81
81 BOSI. Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. Companhia das Letras. 3ª ed. São Paulo. 1994, p.90.
41
CAPÍTULO 2 TRAGÉDIA E HUMOR – FORMAS DE REPRESENTAR A SOCIEDAD E BRASILEIRA PÓS – 64
FAV foi lançado em 1982, pela editora Brasiliense, na Coleção cantadas Literárias,
prefaciado por Luis Travassos82 que , foi presidente da Une em 68 e como um líder
estudantil, teve que passar toda a juventude fugindo de país em país, pois alguns generais
não gostavam dele. O livro produz aquilo que Marcos Napolitano chama de uma “febre de
poesia e literatura jovem e alternativa” que “chegou as grandes editoras no início dos anos
80”. Sendo que, “a editora Brasiliense saiu na frente, organizando coleções de poesia e
prosa”, como aquela citada acima, e traduzindo:
Clássicos da literatura jovem, como os beateniks norte-
americanos dos anos 1950-1960. Livros como Feliz ano
velho de Marcelo Rubens Paiva e Morangos Mofados, de
Caio Fernando Abreu, que marcaram época, chegando a
várias edições consecutivas83.
Tais produções, juntamente com a obra inspirada de Marcelo Rubens Paiva, “O Que É
Isso, Companheiro” traziam em sua estrutura narrativa a oportunidade do leitor acompanhar a
história de vida pessoal de sujeitos envolvidos direta ou indiretamente nos impactos e
atropelos cometidos pelo regime militar. Assim, por meio obras como por exemplo
(...) O Que É Isso, Companheiro?, de Fernando
Gabeira, podemos acompanhar a trajetória de um militante
clandestino baleado, preso, torturado e exilado, que se vê
forçado a remontar alguma perspectiva política nas condições
de exclusão e isolamento social; ou ainda, em Os
Carbonários, de Alfredo Sirkis, podemos conhecer o
82 Líder estudantil que pertencia à Ação Popular (AP) e que morrera numa quarta-feira de cinzas de 1982, aos 37 anos. Era descrito por Marcelo Rubens Paiva como possuidor de uma história de vida muito mais emocionante que a sua. Ambos sujeitos com quem o destino não foi muito generoso, assim, temos uma certa cumplicidade com a vida, e procuramos juntos nos defender dela. PAIVA, Marcelo R. p. 8. 83NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação(1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001, p. 126.
42
cotidiano de um jovem estudante secundarista de classe
média que ao optar pela militância revolucionária se vê
clandestino em plena cidade do Rio de Janeiro em um
contexto no qual diminui cada vez mais o número de
militantes organizados – dando lugar à figura dos
“desbundados”, simpatizantes ou militantes que por sua
própria escolha penetram em esquemas mais privados de
vida, em geral acompanhados de drogas84.
Recorrendo a uma linguagem inovadora e transgressora, Marcelo produz em FAV, por
meio do uso de expressões cotidianas, palavrões, gírias..., características que faz com que o
livro fuja dos padrões lingüísticos exigidos numa produção culta e de ‘qualidade literária’.
Essa característica de Paiva o aproxima a Rabelais, sobre o qual reflete Bakhtin, ao analisar a
‘circularidade cultural’ presente em sua obra, ao mesclar o popular e o erudito, assumindo
uma concepção “grotesca” de linguagem ao recorrer à formas de expressar familiares da praça
publica, marcada pelo uso freqüente de grosserias, de expressões e palavras injuriosas, que
fogem da estética literária moderna. Este aspecto faz com que o autor acabe não se
enquadrando nos cânones literários clássicos marcados pela perfeição literária.
Marcelo, ao fazer uso de um vocabulário inovador na forma de expressões escritas,
popular, vocabulário de palavrões, faz aquilo que Bakhtin chama de “criação de uma
atmosfera de liberdade”85, que é manifesta e pode ser percebida em sua obra em vários
momentos, dentre eles quando o autor incentiva as pessoas a picharem muros, a declararem
amor a sua prostituta favorita, ou seja, a expressarem suas idéias de maneira cotidiana. Ao
demonstrar esta atitude, o autor refletia sua própria percepção e posicionamentos em relação
ao mundo.
Ao Criar em FAV uma “atmosfera de liberdade” o autor torna possível abordar
assuntos e temas antes trabalhados ou discutidos, mas que só agora eram trazidos à tona.
Exemplo disso são as questões relacionadas à sexualidade e discutidas com enorme humor e
de forma brincalhona expondo uma certa concepção erótica ao tratar de suas experiências
relacionadas à descoberta da verdadeira relação sexual. Estilo que pode ser observado na
seguinte passagem citada abaixo:
84 PELLICCIOTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos anos 70. Dissertação de Mestrado/Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, p. 120. 85BAKHTINE , Mikhail. Cultura popular da Idade Média e no Renascimento. Trad. Yara Fratsh Vieira. São Paulo: Hucitec/Brasília: Ed.UnB, 1987, p. 15.
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... Imaginei-me tocando violão e a Virgínia chegando, depois
de um dia duro na Unicamp. Eu a pegaria pelo colo e levaria
até o quarto. Tiraria calmamente sua roupa e beijaria
delicadamente cada parte do seu corpo. Lamberia o bico de
seus seios, morderia devagarzinho. Enfim, olharia para sua
vagina, encaixaria bem meu pinto entre as pernas dela e, aos
poucos, penetraria, olhando para sua cara contorcida de
tesão86.
Paiva aproveita-se da experiência adquirida com o drama vivido após a cagada “o
acidente” para trazer em seus relatos imagens de um corpo degradado referentes a seu próprio
corpo imperfeito e mutilado. Segundo o autor, (...) Senti vergonha da minha feiúra. Minha
careca, minhas espinhas. Caspas , caminhos no pinto. Corpinho parado, branco, sem vida
alguma. As imagens construídas na mente do leitor através da narrativa de Paiva, sejam no
que se refere ao sexo ou a um corpo imperfeito e paralisado, podem ser entendidas como
“imagens grotescas” de que tanto fala Bakhtin ao analisar Rabelais. Assim as imagens
elaboradas por Paiva constituem-se como “expressão artística e ideológica”, do sentimento de
mudança histórica, principalmente do ponto de vista da estética hegemônica que contempla
um corpo perfeito e belo. Tudo isso, mesmo que para os cânones literários, conforme observa
Bakhtin87, o corpo continue sendo “algo acabado e perfeito”, não merece destaque nas obras
de Rabelais, na qual emerge as imagens de um corpo horrendo e disforme , pois estas não têm
lugar dentro da “estética do belo” forjada na época moderna.
FAV por meio de suas “injunções narrativas” ou “citas”88 produz códigos de
linguagem que conseguem expressar também a pressa de expor e narrar a sua história
pessoal, porém significava para uma vasta coletividade marcada pelos mesmos
acontecimentos. Neste contexto, o autor nos revela que a linguagem e as palavras, quando
escritas, como as contidas em sua obra, trazem e contém sentimentos, mais verdades sobre o
ocorrido, impedindo, inclusive, esse de ser apagado, enquanto a memória das pessoas em
relação às marcas do passado se apaga facilmente. Emerge de FAV uma noção de texto
escrito como um reservatório e um suporte de apoio contra o esquecimento da memória
86 PAIVA, 1982, P.84. 87 BAKHTINE, 1987, P.26. 88HARTOG, François. O espelho de Herótodo: ensaio sobre: a representação do outro. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte. Ed. UFMG, 1999, p.48, 51.
44
biológica. Assim o texto de Paiva provoca em seus leitores a criação de uma “consciência
comum, do mesmo modo como a linguagem cria a sociedade”89, que o autor busca representar
FAV mesmo sendo uma produção impressa revela existência de elementos da
chamada expressão oral graças a sua forte ligação com a cultura popular juvenil/moderna
evidenciada por uma linguagem coloquial, cotidiana e vulgar, recheada de gírias e palavrões
presentes na estrutura da obra: pó, curtindo, merda, barato, saco cheio, doidão, chapado, tô
afins, mal pacas, dar uma bola, trecos, sofrendo pra burro, falo, xará, cara, minas, meu
chapa, falá de muié...; Características estas que podem ser observadas quando o autor expõe
alguns de seus desejos:
... Que bosta, que bosta, que bosta! Eu quero sentar, sentar.
Quero ir para um banheiro, sentar na privada, peidar, roer a
unha, bater uma punheta90.
Tais características da linguagem oral também podem ser percebidas pelo fato do texto
impresso urgir da necessidade da voz par que o leitor possa interpretar e realizar o seu
entendimento do que está escrito. Neste sentido, a oralidade se faz presente de várias formas e
até mesmo pelo ocultamento, manifestado no simples ato de efetuar uma leitura em voz baixa.
Assim, o texto constitui-se para quem o produz , em uma “oportunidade” de manifestação “do
gesto vocal” pertencente a tradições de uma época ou período, embora a “fixação pela e na
escritura de uma tradição oral não põe necessariamente fim a esta, nem a marginaliza”91.
No entanto, Paiva insere-se numa tradição escrita e ao considerar que é melhor ler do
que ouvir, elas ganham sentimentos, mais verdades, conseguindo transmitir as informações e
as lembranças que o sujeito que escreve deseja deixar para posteridade. Narrativa
memoralística permeada pelo passado e por um enorme peso afetivo, manifestado na
importância dada aos familiares e amigos na (re) montagem de sua vida e na composição do
livro; cada palavra que (...) tenha dito, o gesto ao ascender um cigarro, o beijo de despedida
acabam-se tornando imagens marcantes no meu dia-dia.
Os elementos afetivos são ativadores da memória do autor e podem ser percebidos
quando diz:
89 ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo, Cia das Letras, 1993.,p.155. 90 PAIVA, 1982,.p. 54. 91 ZUMTHOR, 1993, p. 55- 154.
45
Tchau, mãe. Se cuida, tá? Thais e Ana, vocês são belas
Mulheres. Cassy, continue tocando, que você chega lá.
Virginia,pena você não ter me amado como eu te ame
Veroca ,Eliana, Nalu e Big, juízo hein? Gorda, você é
Um cara incrível.Ricardo, meu irmãozinho o cara que mais
me conhece. Nana querida, não fique com raiva de mim, eu
tentei gostar de você, mais mão dava eu tava muito chato.
Marcinha gracinha,você é uma fofa. Fabião, vá à luta, meu
chapa. Mariúsa mamãezinha, valeu a força que você me deu.
Gureti, vê se fica menos briguenta. Maurão , seu veado não
beba tanto. Bundão querido, cuida bem delas,ta? Zequinha,
seu louco largue um pouco os livros, bata mais punheta.
Celso,lindo, você é duca. Nelson e Olaf, cuidem bem da
chácara. Betão, Max, lembrem de minhas posições políticas.
Laurinha fofa, emagreça um pouquinho. Milu, você ta me
devendo uma transa, hein? Tchau, pessoal, feliz Ano-novo
pra vocês92.
Tendo como pano de fundo as cidades do Rio de Janeiro, Campinas e, sobretudo, São
Paulo, cidade empapela o país. Capital paulista esta, que a partir dos anos 60 se destaca como
centro das transformações econômicas, políticas e, principalmente,culturais do país. Mesmo
com advento do regime militar marcado pela repressão, censura, prisões, exílios, crises
econômicas e políticas, assim como pelas estratégias que viabilizavam forjar o dito ‘Milagre
brasileiro’, certos setores culturais que se inseriam no processo de produção em massa,
apresentando aspectos de industria, atingiam consideráveis níveis de desenvolvimento, graças
aos incentivos dados, muitas vezes, pelo próprio governo, em decorrência do interesse dos
militares de veicular e difundir suas ideologias entre a população e contribuir para sua
aceitação e consolidação.
Este ‘apoio’ concedido à cultura nacional se processou mediante ao abrandamento da
censura, isto é, por volta de 1975, fase em que era colocada em pratica a política de abertura
‘lenta, gradual e segura’ proposta por Gesiel. Nesse contexto,
... o regime militar desenvolveu um conjunto de políticas de
incentivos à produção cultural, chegando, em algumas áreas a
apoiar financeiramente a produção e distribuição das obras,
92PAIVA, 1982, p. 47
46
como no caso do cinema. Esta tendência se incrementou a
partir da segunda metade dos anos 1970, mas já se esboçava,
timidamente no final década anterior.Algumas agências
oficiais se destacar (...) a Embrafilme, sugerida em 1969 e o
Concine – Conselho Superior de cinema -, em 197593.
A televisão, um desses milagres da tecnologia japonesa, algo incrível que faz o tempo
voar, desde meados dos anos 60 já se constituía como um veiculo de comunicação em massa,
caracterizando a consolidação da industria cultural no Brasil. A “TV, nos anos 1970, esteve
sempre ao lado do poder, institucionalmente falando”94 e, segundo Paiva , a Globo era porta-
voz do governo. Esta característica fazia com que esse veículo fosse considerado
... pelos setores mais intelectualizados e engajados um grande
instrumento de manipulação da opinião publica e da
alienação das massas trabalhadoras, que tomavam contato
com o mundo artificial e glamouroso, a qual não tinha acesso
real. Enquanto isso, a realidade – política, social econômica –
era mascarada95.
É em meio a essa reviravolta no setor cultural de modo geral, e na atividade editorial
de modo específico, que FAV, obra esta, não possuidora de pretensões literárias se insere na
relação dos best-sellers que, a partir do ano de 1981, consagram-se pelo sucesso comercial,
sendo consumida por uma ampla parcela do público, sobretudo, jovem, que passava a compor
um mercado consumidor cada vez mais crescente e interessado em aprender, mais a fundo,
sobre a realidade sócio-cultural dos duros anos anteriormente vividos no Brasil.
Marcelo Rubens Paiva ao nos remeter a questões vividas por ex- exilados políticos
como Fernando Gabeira, consegue representar o quadro repressivo e ditatorial instaurado
desde 64, à medida que revela e expõe também pensamentos e posicionamentos esquerdistas
contrários “a velha hipocrisia da sociedade, que defendia a liberdade e a democracia mas não
garantia o direito de opinião”96.
93NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação(1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001,p. 101-2. 94 Ibidem, 2001, p. 90. 95 Ibidem, 2001, p. 90. 96 DIRCEU, José & PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a ditadura. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: Garamond, 1998, p.37.
47
A sociedade brasileira também apresentava seus primeiros sinais de reorganização
social e política de forma geral, e de maneira específica pelo segmento juvenil à medida que
os mesmos buscavam manifestar suas inquietações, através de pichações de muros nas
cidades, que reclamavam, pregavam e incentivavam as pessoas a exporem sua repulsa em
relação às limitações impostas pelo Estado; algo que se constituía numa forma de expressão
das idéias e posicionamentos contrários à repressão imposta pela ditadura militar. Dessa
forma, pichem. Invadam o espaço, xinguem a mãe do presidente, declarem amor à sua
prostituta preferida. Para Marcelo Rubens Paiva, a própria pichação em muros, praças e
parques eram uma forma de conquista do espaço urbano, que se constituía numa forma de
imprensa popular e democrática interessada em informar e fazer as pessoas a pensarem um
pouco sobre os efeitos e as grandiosas realizações produzidas pela ditadura militar junto a
sociedade brasileira.
FAV torna-se um bem cultural, um documento e testemunho literário, construído
por Marcelo Rubens Paiva, no qual as representações sobre um período marcante de nossa
história republicana, o período em que o Brasil caminhava para sua democratização, pode ser
analisado e compreendido. Assim, ao refazer a história pessoal, o autor produz a História de
um período obscuro e ditatorial que aos poucos vai sendo superado, porém não silenciado;
pois tais produções artístico-culturais “permanecem como espaço da dor, [transformadas] em
cicatrizes profundas, visíveis – marcas de um tempo que não admite ser esquecido”97 tão
pouco menosprezado devido as enormes marcas e feridas ainda não cicatrizadas.
Marcelo Rubens Paiva acaba fazendo parte de uma geração de jovens escritores que
por sofrerem indiretamente o reflexo dos acontecimentos recentemente vivenciados, deixam
sua reflexão crítica ser embalada pelo seu próprio envolvimento nas questões. Jovens
escritores ou pseudo-intelectuais possuidores de um universo familiar dilacerado pela ditadura
militar, porém usado como alicerce para desenvolverem sua crítica e oposição. O ponto de
vista desses jovens, assim foi resumida pelo autor
Vamos continuar a desejar o impossível, e para isso,
mudemos a relação dentro de casa, para transformar o
planeta. Gabeira não disse nada de novo. Mas, numa época
em que líder político está mais para Mick Jagger que para
Getúlio Vargas, o narigudo escritor ocupou um espaço de
97DALCASTAGNE, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília, UnB, 1996, p.141.
48
inspiração para uma juventude em que o sexo-drogas and
rock faz parte do cotidiano98.
Segundo Renato Cordeiro Gomes, “o distanciamento necessário para uma crítica
mais objetiva diminui, fazendo o tempo da enunciação aproximar-se do tempo do enunciado”
instaurando “o primado da memória voluntária”, marcado por uma autocrítica “esgarçada”, na
qual “a experiência é narrada sob tensão emocional, revestida de raiva”99, características estas,
amenizadas no texto Marcelo, devido ao seu enorme humor brincalhão e por sua narrativa
sem pudores.
FAV não é apenas um relato que nos propicia a oportunidade de conhecermos mais
profundamente as inúmeras prisões e torturas a que muitas pessoas foram vítimas no Brasil, é
também uma descrição do panorama apresentado pela sociedade brasileira após o golpe
militar de 1964; demonstrando as impressões do autor sobre as mazelas e injustiças que se
fizeram presente no país. Além de tudo isso, FAV possibilita a Marcelo a oportunidade de
reconciliação com a vida e com o próprio mundo.
O autor consegue por meio de FAV100 chamar atenção para o cenário das podridões
de uma sociedade que se diz civilizada, mas que, no entanto, utiliza-se de instrumentos
autoritários e da violência para forjar a construção do ideário de uma nação harmônica e
desenvolvida. Nação esta, que na visão dos militares, nos momentos mais decisivos de sua
história, se fez de acordo e favorável a aplicação de práticas autoritárias – ‘suspensão
presumivelmente breve dos direitos civis’ como forma de eliminar os grandes perigos que
ameaçavam seu sucesso. Assim sendo,
... as violências praticadas contra o “povo”, em nome de
quem se realizam os festejos, a derrota das lutas por melhores
condições de vida e pela democracia não são mencionadas
nas comemorações para não ofuscar o brilhantismo da
festa101.
98 IN appud, LUA NOVA, 1984, p. 21-2. 99 GOMES, Renato Cordeiro. “Eu, por exemplo... uma reflexão sobre autobiografia precoce”. O Eixo e a Roda: revista de Literatura Brasileira. B. Horizonte, UFMG. 1982. p. 197-217. 100 Segundo Luis Carlos Maciel, Feliz Ano Velho é a prova do dilaceramento do eu, provocado pelos militares ao longo da estrutura política dos anos de chumbo que predominaram no Brasil de 64 a 85. MACIEL, Carlos Luis. Feliz Ano Velho. O Retorno à sinceridade num tempo de mentiras. LEIA, jan, 1985. 101CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo, Contexto/Edusp, 1998, p. 56.
49
FAV nos dizeres de Luis Travassos concretiza-se como um artefato artístico-cultural, à
medida que é um texto limpo de teorias e com um puta sentimento crítico sobre as pessoas,
comportamentos, sem aquela cagação de regras ou ironias baratas, mas com uma puta
firmeza. Assim sendo, o texto de Marcelo apreende e discute as questões sociais, políticas e
culturais referentes ao seu tempo e ao segmento social a qual seu autor estava vinculado,
principalmente, no que se refere aos anseios da juventude estudantil dos anos 70 que lutavam
contra as ditaduras, contra a situação de opressão e repressão que pairava sobre toda uma
sociedade cansada da aceitação da mentira, da representação hipócrita, como norma natural de
conduta. Como uma representação da realidade histórica , o livro FAV contitui-se como “um
sistema simbólico de comunicação”102que tece um dialogo com o segmento jovem que
comungava dos mesmos anseios, ilusões, frustrações de derrubar o regime militar e livrar a
população da exploração a qual todos estavam submetidos.
Marcelo Rubens Paiva através de FAV desempenha uma função social, à medida que
expressa como diversos segmentos sociais pensavam e se posicionavam em relação à
sociedade brasileira e aos temas mais discutidos naquele momento. Neste sentido , Cândido
considera que:
Os elementos individuais adquirem significado social na
medida em que as pessoas correspondem a necessidades
coletivas, e estas, agindo, permitem por sua vez que os
indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no
grupo103.
Marcelo Rubens Paiva pode ser considerado um autor- artista não só porque sua obra
tece um dialogo com realidade social do momento, mas pelo fato do autor possuir como
características aliadas a sua maneira de escrever a intuição, a imaginação, a percepção e a
memória com atributos e recursos essenciais no processo de reconstrução e representação das
lembranças e memórias referentes à realidade pós-64.
Essa capacidade de percepção e invenção dos diversos aspectos que formavam a
realidade sócio-cultural brasileira pós-64, nos são revelados em FAV, pois o livro representa
um espaço onde a língua brasileira revela os valores, as regras e as normas de jovens
marcados pela inspiração cotidiana do sexo, das drogas e do rock’holl, e principalmente, que
102CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. 8ª edição. São Paulo. T.A Queiroz Editor. 2000, p.21. 103 Ibidem, 2000, p. 25.
50
estavam de saco cheio de dever obrigações com a sociedade (...) representarem um papel, um
estereótipo, de serem classificados, de serem cobrados.
Neste contexto, FAV concretiza-se como uma obra possuidora de valor e função
histórica não só porque exprimir os aspectos culturais, sociais e políticos do Brasil entre os
anos 70 e 80, mas pelo fato de desempenhar um papel imprescindível na construção de um
universo de identificação entre autor e público; aspecto este, comprovado pelo sucesso,
aceitação e repercussão da obra junto ao público leitor.
Ao revelar a dimensão sócio-cultural formadora a sociedade brasileira pós-64, FAV
proporciona ao escritor Marcelo Rubens Paiva o desempenhar de uma função social, à medida
que trata de expectativas pessoais, porém correspondentes e compartilhadas por um vasto
público leitor que participa e interage junto ao livro, contribuindo para a concretização do
mesmo como um artefato artístico-cultural, ou melhor, como um “documento” produzido e
representativo de uma sociedade e de uma época pouco explorada e debatida. Segundo Bia
Abramo, o autor Marcelo Rubens Paiva por meio de FAV:
... estava começando a contar a história dessa geração que
vivia espremida pela história alheia.(...) Marcelo estava na
encruzilhada das histórias que produziam aquele momento. A
família, ou parte dela, era personagem da luta contra o regime
militar: o pai, o deputado Rubens Paiva, fora preso pela
repressão e desaparecera em 71; a irmã mais velha havia sido
uma liderança estudantil em 77. Ele, Marcelo, por sua vez,
encerrava uma adolescência típica de classe média dos anos
70: colégios liberais, um certo ranço hippie, república,
maconha, festa no sítio, meninas sem sutiã. A juventude
criada entre as patriotadas do regime militar,a sensualidade
explícita das novelas da Globo, os “filhos da revolução,
burgueses sem religião”, como uns poucos anos mais tarde ia
definir Renato Russo, tinham finalmente um espelho em
“Feliz Ano Velho”104.
Assim a obra entendida como um “sistema simbólico de comunicação”, necessita de
um
104ABRAMO, Bia, “Feliz Ano Velho: livro fez juventude dos 80 acontecer” Folha de São Paulo. S.P, 5º Caderno, p. 3, 1º de dezembro de 1997, p. 01.
51
(...) jogo permanente de relações entre (...) três [a obra, o
autor e o público] que formam uma tríade indissolúvel. O
público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se
realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua
imagem enquanto escritor. Os artistas incompreendidos, ou
desconhecidos em seu tempo, passam realmente a viver
quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o
público é fator de ligação entre o autor e sua obra105.
As idéias, os posicionamentos ideológicos e políticos da classe média intelectualizada
em geral, e do segmento jovem ao qual o autor pertencia, não são revelados na trama narrativa
presente em FAV à medida que a obra apresenta as experiências extraídas de uma
sociabilidade múltipla e variada, construída através da participação em diversos espaços:
shows, festas, botecos paulistas e principalmente no conviveo de maneira harmônica entre
homossexuais, machos e fêmeas. Dessa forma,
A vida estudantil não era feita só de aulas, assembléias e
passeatas. Da escola ia-se para os bares das imediações,
cinematecas ou cinemas de arte, teatros, shows de música.
Mas a política ia junto, como também se entrelaçava com as
relações amorosas, ajudando a racionalizar atrações e
rejeições, e a justificar tanto os comportamentos ditos
tradicionais quanto sua transgressão106.
FAV mesmo abordando temas de um período obscuro e conturbado da história
brasileira é um texto que segundo o jornalista Márcio Souza “sabe escapar do melodrama”107,
principalmente pela desenvoltura de sua linguagem simbólica que altera e modifica a
realidade pelo uso da palavra108 e pelo uso de um processo de invenção que possui como
único objetivo esclarecer e dar forma às práticas sociais.
105CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. 8ª edição. São Paulo. T.A Queiroz Editor. 2000, p.38. 106SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p.369. 107LUA NOVA. Cultura e Política. 2ª edição. Brasiliense.Vol. 1, nº 1, abril- junho de 1984, p. 23. 108Segundo Adélia Bezerra de Meneses, o domínio da palavra é capaz de abrir portas, pois “Estamos numa civilização em que, literalmente, a palavra vale ouro, em que a história narrada é tesouro. DO PODER DA PALAVRA, Folha de São Paulo, 1988, p 85.
52
Assim sendo, o texto109 contido em FAV é a própria sociedade pós 64, à medida que
contém em sua estrutura de enredo elementos constitutivos do período. Neste sentido, a leitura
e a observação dos aspectos presentes na obra permitem o “refazer da história”110, ou seja, um
aprimoramento e aprofundamento dos conhecimentos por parte dos leitores de um momento
pouco explicado e marcado por um enorme vazio histórico.
A linguagem de Marcelo Rubens Paiva manifesta a luta pela liberdade e
independência da sociedade brasileira, e do segmento jovem contra o medo imposto pelo
Estado autoritário. Assim a literatura de Paiva produz junto ao leitor um universo de sedução
e atração que proporciona a comunhão de temas, idéias, valores e problemáticas. Dessa forma,
sua linguagem tinha como objetivo a difusão de “valores, tradições, aspirações e idéias (...),
que deveriam ser compartilhadas por todos os habitantes [dessa] comunidade imaginária”111 .
FAV é uma espécie de termômetro da sociedade brasileira pós-64 à medida que
apresenta um balanço dos resultados de destruição/mudança e ao mesmo tempo de construção
de uma nova sociedade, possuindo assim,‘um sentido social simbólico, visto que “é ao mesmo
tempo representação e desmascaramento dos costumes vigentes na época”112 em que o
autoritarismo e à brutalidade que assombravam o país fazia vítimas e marcava profundamente
a história das futuras gerações brasileiras.
Revelando uma leitura crítica e bem humorada inspirada na análise das diversas
facetas da realidade sócio-cultural do país, FAV demonstra claramente a posição social e
ideológica do autor, e ao mesmo tempo a posição da ‘classe média brasileira’, alertando sobre
as contradições de um sistema autoritário que fazia com que os felizardos [de hoje, se
tornassem] os futuros infelizes desta mal-educada nação. Marcelo Paiva consegue produzir
não apenas um diálogo revelador das posições ideológicas da ‘esquerda brasileira’, mas
sobretudo, de discordância e oposição que a maioria da população brasileira representada
pelos mais variados segmentos sociais como: ex-políticos, artistas, professores, donas de
casa, estudantes, etc, tinham em relação ao sistema político adotado pelo Estado autoritário –
manifestado através do uso indiscriminado da censura, das práticas de tortura, das prisões
arbitrárias que visavam o combate e limitação das ‘liberdades’de cada individuo.
109 Segundo Michel de Certeau (1994), o texto só tem sentido graças a seus leitores; muda com eles; ordena-se conforme códigos de percepção que lhe escapam. P. 266. 110 Ibidem, 1994, p. 263. 111 DE LUCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a nação. São Paulo. Furot. Ed. da Unesp, 1999, p. 240. 112CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. 8ª edição. São Paulo. T.A Queiroz Editor. 2000, p. 06.
53
Armas e recursos de um Estado autoritário que segundo Paiva estava interessado em
construir uma cultura de medo e escuridão, que impedisse a independência das pessoas (...)
de tomar decisões, de construir um mundo sem relações de posse; enfim, de caminhar rumo a
construção de uma sociedade livre e democrática. Assim, FAV é desses documentos
imprescindíveis de um tempo que ainda não nos foi revelado por inteiro, de uma história que
se tem de continuar fazendo, múltipla e indefinitivamente”113.
No livro FAV está contida em sua estrutura de enredo e de narrativa, elementos que
compunham um universo privado de resistência: “a família, o circulo de amizades, as relações
amorosas, a experiência religiosa ou mística, o trabalho , o estudo, o lazer, o entretenimento e
fruição da cultura”114. Dessa forma, FAV consegue expressar esse mundo diferente a qual o
autor estava inserido, marcado pela valorização do esoterismo em oposição ao racionalismo –
manifesto na crença e busca do horóscopo e da influência dos astros, da transcendência ao
invés da matéria. Aspectos que podem ser percebidos no ler do oráculo milenar chinês o I
Ching, na imagem do Buda no criado, no uso do do-in como técnica oriental de cura, nas
pedrinhas de sorte; enfim por práticas advindas da cultura oriental ou de outras que se
opunham, logo ao modo de vida ocidental, tradicional, católico, cristão, careta e cientificista.
Tais Características revelam que as ações de oposição e resistência dos segmentos
participantes do movimento contrário ao regime militar saíam da esfera pública e se
entrelaçavam no universo cotidiano da vida das pessoas.
Tomados pelas idéias de mudança / liberdade, mas motivados principalmente, pela
ação das gloriosas Forças Armadas brasileiras junto à população por meio da
institucionalização da tortura, prisões e mortes, percebe-se que a atividade política produz
conseqüências diretas sobre o dia-a-dia das pessoas; e isso se pronúncia de forma bastante
particular junto à classe média, e junto à juventude universitária paulista como nos revela o
próprio Marcelo Rubens Paiva ao se infiltrarem em determinadas organizações e por usarem a
“virtude intelectual” para elaborarem suas críticas sobre a realidade : Através das reuniões em
casa que era um verdadeiro Estado Maior, com toda nata do Partido Socialista Brasileiro,
com a cúpula do Vasquinho, jornalistas e o que sobrou da cúpula do Governo Jango, na
universidade, próximo as eleições da UNE, com a descoberta do Refazendo (...) uma
organização de esquerda forte nos anos sessenta,a Ação Popular, através dos shows pela
113 DALCASTAGNE, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília, UnB, 1996, p. 17. 114SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p.327.
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Unicamp, onde a dupla Paiva e seu amigo Cassy criticavam o consumismo e industrialização,
por meio de músicas com por exemplo Bamba Novo.
FAV traduz “o peso das circunstâncias políticas sobre as relações afetivas e
familiares” 115de uma juventude que chegava a fase adulta sob o autoritarismo. Neste sentido,
a adoção de práticas sexuais livres, o uso de drogas e de músicas que misturavam crítica e
deboche na verdade revelava os sentimentos de uma minoria iluminada, “órfãos de
lideranças”116 marcados por uma profunda solidão, porém envolvidos pelo desejo de construir
uma forma de ser oposição ao regime militar.
O lugar que a política passou a ocupar no interior da juventude de oposição dos anos
70, reflete a mudança comportamental que a luta antiditatorial passava ter neste contexto
histórico. Assim, para esses jovens a radicalidade era deixada de lado, em nome do
predomínio de atitudes que valorizavam os momentos de ternura e amizade com outras
pessoas e pela crença que o amor e a felicidade eram as mais importantes armas para se
construir um mundo melhor. Marcelo Rubens Paiva usando da linguagem musical situa a
posição ocupada pela política entre os jovens desse período, mas principalmente para a
juventude paulistana:
Fazer um som com o Cassy
Dançar com a Nana
Fazer amor com a Ana
Fofocar com a gorda
Rir com a Laurinha
Discutir política com a Veroca
Dar uma bola com o tucum
Jogar futebol com o Maurão
Ir ao cinema com o Richard
Pegar onda com o Bino
Ficar olhando a cara da Vírginia
Descobrir Campinas com o Rubão
Ver televisão com a Biguinha
Ir a uma festa com a Quitinha
Conhecer os amigos da Li
Dar amendoim pros pombos com a Gureti
Escrever cartas pra Cris117.
115Ibidem, 1998, P.333. 116 REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de janeiro, Jorge Zahar Ed., 2000, p.42. 117 PAIVA, 1982, p.136.
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Esse novo espírito da Revolução Brasileira é revelado por Marcelo Rubens Paiva
através do uso da música – elemento de identificação dos grupos e pelo uso de verbos que ao
mesmo tempo eram sinônimos do inconformismo e da necessidade urgente de promover
mudanças no cenário político-cultural brasileiro. Porém, tais aspectos pertencentes aos
diferentes grupos sociais da época também podem ser observados no decorrer da própria vida
do autor. Isso é representado tanto na fase ecológica, onde a decoração da casa lembrava o
estilo hippe, nas expressões que remetem ao uso de maconha e servem de referência a uma
comunidade de sentido ou determinado grupo de pessoas como por exemplo os boyzinhos,
menino(a) discoteque alienado, os caretas em oposição a turma, os bicho-grilo, os doido e os
bacana; nas expressões de crítica ao velho e o comum; pela busca de uma forma diferente de
viver e morar, afastada da casa burguesa cheia de regras e castrações, isto é, casa que reúne
todos, ligados não por laços de sangue, mas por outros vínculos de identificação, local onde
toca-se violão, usa-se maconha, canta-se, dança-se e faz-se sexo; pelas referências aos ídolos
da música rebelde e jovem, como: Jimi Hendrix, Rollig Stones, Led Zeppelim, Pinnk Flloyde,
Raúl Seixas, Bob Marley, Caetano Veloso, Gilberto Gil; ídolos estes, que passam a ser
curtidos em espaços alternativos – nas festas em casa, na república e nos botecos paulistas.
Espaços estes, que se constituíam numa nova forma de conduzir a vida, fazer política e “não
pagar pela cultura oficial”, defendendo assim “o fim da sociedade de consumo”118.
FAV revela as impressões de uma nova geração paulista que por meio da mistura
teatro-música — elementos absorvidos da postura contracultural , curtiam as mesmas coisas:
fliperama, chacretes, perversão e acabavam promovendo , em tom de brincadeira, o
surgimento de um novo movimento musical chamado Paulistália , ou seja, características da
Tropicália, acrescidas de um certo lado paulista canalha. Esses jovens assumiam a obrigação
de participar ativamente no processo de libertação e derrubada da caretice cultural e política
existente no Brasil, rompendo assim com os dogmas ensinados pela sociedade capitalista,
católica e conservadora. Dessa forma, seguindo o embalo da música: começar de novo, com
certeza ainda [existia] esperança [não só] pra Música popular Brasileira, mas para o próprio
país.
FAV esclarece como a juventude universitária buscava conscientizar essa mal-educada
nação sobre os diversos problemas sociais e políticos enfrentados pela maioria da população
brasileira; além de conseguir demonstrar que os militares não mataram aquela esperança que
118 SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 375.
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a [juventude] tem de um mundo melhor sem a existência de regras e castrações que limitassem
a liberdade das pessoas. No ideário da juventude permanecia a crença de que o Brasil possui
uma saída, uma escalada [com] muitos degraus pra subir e iniciar sua caminhada rumo a
independência política, social e econômica definitiva, não tendo que ficar novamente
submetido às experiências e aos desmandos de alguns imbecis que apenas por vestirem fardas
e usarem armas, acreditavam ser os donos do Brasil.
FAV conforme observa o próprio autor demonstra como a história de uma geração, de
um povo e, principalmente, de um país, não é apagada simplesmente pela eliminação de todos
aqueles que se opuseram ao regime militar, pois, não é matando um corpo, que se elimina um
homem. As lembranças, as histórias de milhares de pessoas, como também a de Rubens Paiva
está [viva] em muitas pessoas; como também nas mais variadas obras que se constituem como
a “iconografia dos oprimidos”119.
119CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 328.
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CAPÍTULO 3 OS HABITUS CULTURAIS DE INCONFORMISMO E CRÍTICA AO REGIME MILITAR
O período pós-64 no Brasil é rico na produção de simbologias, já que é o momento em
que se instaura no país a mais ferrenha ditadura militar, marcada pela repressão política e
ideológica, evidenciada pela enorme quantidade de prisões, exílios e pela censura, embora,
por outro lado, seja um momento da história brasileira em que se mais incentivou a produção
cultural no país.
No final dos anos 70, do século passado, período em que Marcelo Rubens Paiva
cursava Engenharia Agrícola na Unicamp, em Campinas, os jovens universitários paulistanos
vivenciavam momentos agitadíssimos devido ao fato de que a universidade tornara-se na
conjuntura do pós-68 alvo de uma série de ofensivas por parte do Estado, que a considerava
um espaço propício ao surgimento de um movimento político de resistência ao regime militar,
em virtude da criação e circulação de possíveis idéias nocivas e perigosas. Essa era uma
época agitadíssima (...) Os estudantes, em protesto contra a omissão da Universidade com
relação a moradias estudantis, resolveram acampar bem em frente ao restaurante. A adesão
foi maciça. De um dia pro outro, todos de barracas instaladas, o que acabou tornando o
protesto uma verdadeira festa. Tais atitudes tornavam-se comuns entre os jovens
universitários paulistas, a tal ponto que os alunos da USP fizeram uma manifestação também.
Esse clima e forma de fazer oposição e crítica aos desmandos do regime militar
haviam sido herdados dos movimentos culturais ocorridos em outros países (França, EUA,
Japão, etc) e dos movimentos colocados em prática pelos jovens da geração dos anos 60 no
Brasil. Assim, a juventude universitária do final dos anos 70 e início dos anos 80,
implementava uma cultura alternativa, que se manifestava através de alguns habitus120
culturais e comportamentais em relação à nova conjuntura social e política, criada com o
clima de abertura política no país da transamazônica.
120 Entendemos como habitus o conjunto de disposições socialmente constituídas que constituem em princípios geradores e unificadores das práticas e visões do mundo características de um grupo de atores ou agentes sociais. Conceito este, trabalhado e apresentado por Pierre Bourdieu no livro A Economia das Trocas Simbólicas. BOURDIEU, Pierre em A Economia das Trocas Simbólicas. Sergio Micele (org.) São Paulo: Editora Perspectiva, 1974, p. 191.
58
O processo de formação dessa juventude universitária que cresceu sob ditadura e o AI-
5, parece ser marcada pela convergência de características culturais e comportamentais
diversas, reveladas pela apropriação de alguns aspectos da chamada contracultura, embora
suas atitudes e posicionamentos não possuíssem a radicalidade existente nos anos 60, uma vez
que eram mais moderados e marcados por um desbunde121 total revelado pelo próprio autor,
ao dizer que as vezes ele se espantava (...) quando o Otaviano [lhe] beijava na boca, ou
quando o Bira subia pelado numa árvore pra contemplar os pássaros.
Essa juventude universitária do final dos anos 70 e inicio dos anos 80, assim foi
definida por Marcos Napolitano:
(...) Essa nova juventude universitária era marcada por um conjunto de atitudes ambíguas e até contraditórias: recusa e, ao mesmo tempo, uma atitude política oscilando entre a vontade de participar e discutir os temas nacionais e um certo “descompromisso” em nome da liberdade comportamental e existencial; o culto à individualidade e às relações privadas e afetivas em detrimento das imposições coletivas que até então marcavam a cultura de esquerda; o recurso ao humor e ao deboche como formas de cultura social122.
O autor ao falar de seu passado, a molecagem carioca, o músico unicampista, sexo,
drogas, emoção, Marcelo Rubens Paiva revela que as idéias de revolução comportamental e
sexual experimentada pela juventude nesta busca de viver sem repressões, se iniciaram
primeiramente na teoria e somente depois na prática. Esta característica se devia ao fato dessa
juventude possuir o gosto pela leitura, pois livros como O que é isso, Companheiro, de
Gabeira, Os Irmãos Karamazov, do Dostoiewshi, ou A Náusea do Sartre, além de Mário de
Andrade, Oswald de Andrad, Jorge Amado, Graciliano, Mário Palmerio, Kafta e Tolsti,
contribuíram para a (re) construção das ideologias e do imaginário político dessa juventude.
Assim, “o jovem revolucionário brasileiro teve no livro o seu instrumento de formação
teórica-pedagógica” 123.
Em meio ao clima de repressão instaurado no país, em virtude do fechamento e
cerceamento de todos os meios de manifestação crítica da realidade política e social, ocorre
um “deslocamento tático da contestação política para a produção cultural”. A cultura torna-se
121 Desbunde – palavra que segundo o autor Marcos Napolitano, em seu livro Cultura Brasileira: Utopia em massificação (1950-1980). São Paulo, Editora Contexto-2001, caracterizava o comportamento inconseqüente e libertário da contracultura jovem. P. 98. 122NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação(1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001, p. 124. 123 SILVA, Solange. O signo amordaçado: censura ao livro durante o regime militar . São Paulo, PUC, dissertação de mestrado, 1994, p. 63.
59
um novo espaço de ‘resistência’ , onde através de certas “manifestações culturais” se buscava
dizer “aquilo, que o povo (...) se vê impedido”124.
A existência de um “vazio cultural” é uma marca dos anos 70, porém para esta
juventude universitária do final dos anos 70 essa “descrença já estava ‘pronta’ ” , pois
O clima político e cultural do “milagre brasileiro”, o sufoco
da primeira metade da década e a própria experiência social
de cursar a universidade (...) fornecem a essa [juventude] o
ambiente para a recusa e descrença das linguagem e das
significações dadas125.
A criação dessa sensação de “vazio cultural” e, até mesmo político no país era fruto
das ações postas em práticas pelos militares para afirmar o seu domínio sobre a nação. Além
do uso indiscriminado da violência, da força, de práticas desumanas (torturas), etc. Os
militares se utilizavam também do imaginário social da população brasileira, criando
propagandas nacionalistas e slogans como Pra frente Brasil, Eu te amo meu Brasil, para
amenizar, ou melhor, encobrir os efeitos nocivos de suas políticas. Tal situação assim foi
resumida pelo autor: Samba, praia e futebol dão charme pra esse país com fome, doença e
repressão.
Diante dessa conjuntura política, econômica, social e cultural existente no Brasil, a
criação de certos habitus culturais por parte da juventude universitária revela os anseios de
uma juventude preocupada com sexo, drogas e rock, mas também voltada para questionar os
tabus, as ditaduras do comportamento e em viver sem repressões; pois para esses jovens era
“preciso mudar a linguagem e a vida, recusar as relações dadas como prontas, viajar, tornar-se
mutante”126.
Havia por parte dos jovens universitários paulistas uma recusa em relação a todas
formas de manifestação da cultura oficial. Nutria-se, uma certa opção pela composição e
formação de uma cultura rebelde, pautada, pela adoção de uma conduta de vida evidenciada
por valores comportamentais, estéticos e culturais que estavam à margem da sociedade de
consumo. Assim esses jovens encontravam no meio cotidiano, em especial, no campo dos
habitus, normas, valores e costumes, um espaço para a criação e sobrevivência de uma cultura
124 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde – 60-70. Rio de Janeiro, Rocco, 1992, p.92. 125 Ibidem, 1992, p. 96. 126 Ibidem, 1992, p. 72.
60
diferenciada e alternativa; enfim, uma cultura diferente daquela comum e aceita pela maioria
da sociedade tradicionalista, católica e militar..
Essa cultura alternativa compunha-se por um conjunto de aspectos que dentro do
universo juvenil, formavam uma maneira diferente de ver o mundo e de lidar com ele, pois
carregavam consigo uma carga expressiva de sentidos e um enorme “poder simbólico”127.
Essa forma de cultura jovem embalada por uma onda liberal, não se encaixava dentro do
espírito racional pertencente a grande maioria dos pais e, sobretudo na mentalidade (...)
ignorante consolidada no meio sócio-cultural do país, devido às ações e as políticas praticadas
pelos militares a partir de 1964.
A juventude universitária revelava no seu modo de agir e viver, a assimilação e a
mistura de varias idéias, doutrinas, condutas e posturas. A exemplo disso, como nos
demonstra Paiva, é a presença de alguns aspectos da filosofia hippie128 entre esses jovens. As
demonstrações de tais características remetem a fase ecológica que (...) estava passando:
transando tecnologia alternativa, agricultura orgânica, em fim, “coisas que viraram moda”
naquele momento.
A presença de alguns aspectos da filosofia hippie entre esses jovens universitários
paulistas se faziam presentes nas expressões do falar, do viver ou da linguagem metafórica
referente ao uso da maconha e que servia como componente para a construção de
determinados sentidos no interior desse segmento social. Expressões como: chapado,
viciado, loucos, dar um bola, viagem, malucão, doidão, fumaremos um, basy, acender um,
rolou um. E outras formas de linguagem evidenciadas pelo uso de palavras como: bicho,
barato, cagada, saco cheio, jóia, pirado, curtia, putzgrila; palavras estas, não denominadas
como gírias, já que a expressão é cunhada pelo mundo dos normais e dos caretas, logo
voltada para desqualificar esse modo de expressão e valorizar aquele que é estabelecido pela
via gramatical.
Essa influência hippie no interior da juventude universitária é expressa pela busca de
uma forma diferente de viver e morar, que se afastava da casa burguesa tradicional . Casa,
que segundo o autor não gostava de falar (...) republica, porque [esta] (...) casa era diferente
(...) mais transada: um quarto pra cada um: Nana, Gureti, Hêlo, Mariúsa, Cassy e eu. Ou
seja, um espaço situado num contexto que não é o da casa familiar, cheia de regras e
castrações.
127 PIERRE, Bourdieu. O poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro. Difel. 1989. 128Movimento que segundo o livro A Contestação Juvenil, pode até se dizer representativo da juventude dos anos 60, a tal ponto que qualquer jovem pertencente à contracultura era em geral denominado hippy. CONTESTAÇÃO JUVENIL, Salvat Editora do Brasil. Rio de Janeiro. 1979.
61
Nesse sentido, a moradia, ou melhor, essa nova toca encontrada por essa juventude
universitária tornava-se uma esfera privada absolutamente democrática , sem a existência de
nenhum preconceito e marcada por relacionamentos caracterizados por um tremendo
coleguismo. Fatores que contribuíam para que estes jovens vissem o convívio na casa como
uma verdadeira festa, pois tinham condições favoráveis e tranqüilas para usar maconha, tocar
violão, cantar, dançar, fazer sexo; enfim, andar, pular, sair correndo, ficar sozinho, viajar,
não necessitando assim obedecer a nenhuma regra ou limitação pertencente ao mundo dos
caretas. Ao construir uma sociabilidade diferente, assim como a existente nos shows
universitários, nas festas, nos botecos paulistas; espaços de multiplicidade onde convivem em
plena harmonia, respeitando a vontade e os desejos um do outro, homossexuais, mulheres e
homens, a juventude universitária fazia com que suas atitudes e hábitus cotidianos
edificassem um novo sentido a política. Assim,
(...) No auge da ditadura, início dos anos 70, “puxar fumo”,
“viajar” ou “cheirar” não eram apenas formas de gratidão dos
sentidos, mas, à semelhança da revolução sexual – o
conservadorismo da sufocante ordem política. Já nas
democracias do hemisfério norte, afrontavam o autoritarismo,
que aos jovens parecia permear todas as dimensões da vida.
Dos protestos de 1968 derivariam direta ou indiretamente
outras agendas políticas – a defesa do ambiente, o feminismo,
dos chamados “novos movimentos sociais”. No Brasil dos
militares, a máxima “o pessoal é político”, mote desses
movimentos, adquiria, porém, um significado peculiar129.
É nesse universo cultural alternativo e diferente do aceito pela maioria da sociedade
que a juventude universitária expressava suas idéias, atitudes, linguagens e posicionamentos --
produzindo transformações que insidiam na esfera comportamental e cultural. Nesse contexto,
o uso de certas roupas e adereços por parte desses jovens ajudavam na composição de um
visual e de uma indumentária130 que traduzia a rebeldia e a busca por fugir do habitual e do
convencional.
129 SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 405. 130 GONÇALVES, Denise Oliveira. Avesso e Direto: Um Estudo da Composição Indumentária ‘Hippie’. Uberlândia, UFU, Monografia, 2001.
62
Com isso esses jovens de cabelo cumprido, que usavam colares, pulseras, tênis barato,
calças jeans, no caso especial das mulheres, camisetas sem sutiã, ao contrário da turminha
rival de boyzinhos do colégio que calçavam All Star, um tênis todo fresco, americano, que
encantava as menininhas, dando um porte de jogador de basquete da Harvard University,
consolidavam uma mudança de visual que não se encaixava dentro da moda predominante no
interior da sociedade consumista. Visava-se, assim criticar e resistir as convenções sociais. A
roupa tornava-se a tradução de um modo de pensar e de ser, sinal de uma atitude e de uma
identidade por parte de quem a portava.
É neste momento que jeans à medida que se opunha as velhas calças de linho e panos
considerados chics e finos, torna-se um símbolo de liberdade. Assim, a juventude
universitária ao tornar-se especialista neste traje buscava usufruir de todo o imaginário que
relacionado a condição de liberdade, o uso do jeans podia lhes proporcionar. Uma das
melhores expressões de tudo isso, é a apropriação realizada pela industria do vestuário,
responsável pela difusão e criação slogans como: “liberdade é uma calça jeans desbotada”.
Neste sentido,
... o vestuário, como produto cultural, deixa de atender
apenas a um imperativo da necessidade para responder às
exigências de um bem simbólico, uma vez que o individuo
não adota apenas a forma e as cores da indumentária, mas
ainda o conteúdo de tudo que ela busca representar131.
Essa mentalidade inovadora e critica pertencente aos jovens universitários se
consolidava, à medida que as oposições e contrastes entre o mundo conservador, velho e
comum representado pelos boyzinhos de pouco conteúdo e pelo (a) menino (a) discoteque,
careta, alienada se chocavam com um outro mundo inovador, manifestado e representado
pelas de linguagem expressões como: turma, bicho grilo, doido, chapa; enfim, expressões que
tornavam-se representações da inquietude pertencente a juventude universitária paulistana
entre os anos de 70 e 80.
Tais jovens ao questionarem os mecanismos, as estruturas e as instituições
disciplinadoras que compunham essa sociedade brasileira pós-64, visavam exercer seu papel
político, revelando as ilusões e as podridões de uma sociedade tida como civilizada, porém
permeada por uma mentalidade (...) ignorante advinda da dominação dos generais da
131Ibidem, 2001, p. 51.
63
ditadura existente no Brasil. Assim aquela visãozinha (...) escrota, católica e militar forjada e
difundida de que a censura, a repressão e as torturas praticadas eram uma forma de propiciar
uma oportunidade de todos viverem novamente entre os filhos do senhor compartilhando de
uma vida cheia de buscas e risos era profundamente criticada por essa juventude
universitária. As atitudes de protesto, de recusa e de denúncia eram demonstradas até mesmo
num simples de mostrar a bunda.
Ao promoverem a contestação e a subversão do sistema de códigos culturais, como os
padrões sexuais e morais defendidos pela família e pelos militares, a juventude universitária
construía por meio de seus hábitus culturais um processo de metamorfose cultural que se
espalhava pelo Brasil. Esses habitus culturais – uso de drogas, práticas sexuais livres e
musicais – representavam a maneira da juventude universitária enxergar o mundo e participar
do processo de libertação e derrubada da caretice política e cultural e política existente no
Brasil .
Numa sociedade tradicional e moralista, como a sociedade brasileira erguida no pós-
64, certos habitus culturais referentes à sexualidade, ao uso de drogas e a música, considerada
de revolta, continuavam a ser regidos pelos velhos tabus do passado. Porém, é justamente no
meio dessa diversidade cultural formadora da realidade do país, que a juventude universitária
paulista, chamada por Marcelo Rubens Paiva de pseudo-intelectual, buscavam reagir a essa
mentalidade conservadora e atrasada através da experiência e da pratica de habitus culturais
inovadores.
Se a cultura dos homens é constituída por uma “teia de significados”132, da qual as
representações, os sentidos e os significados são construídos a partir de juízos de valor de
cada indivíduo inserido na coletividade, podemos entender que a cultura se gesta também a
partir dos habitus culturais manifestos pela juventude universitária paulista por meio de
práticas sexuais e musicais livres e pelo uso de drogas; pois estes habitus culturais tornam-se
representativos dos valores e dos princípios que regiam e marcavam a vida da coletividade
social-cultural que Marcelo era integrante.
Num país marcado pela ditadura, as questões relativas a moral e aos bons costumes
desse povinho brasileiro, católico pacas, estavam ligadas à segurança nacional, pois no
discurso militar tinha-se o intuito de preservar os padrões comportamentais e morais para não
se correr o risco de deseducar a sociedade brasileira. Assim sendo, combater o
desenvolvimento de habitus culturais considerados oriundos de uma conduta desviante e
132 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Guanabara, 1989.
64
prejudicial, seria impedir o surgimento de uma subversão política que influenciasse
negativamente a segurança do país.
Nesse contexto, o Estado militar usando da chamada Doutrina da Segurança Nacional,
que na verdade era apenas um instrumento ideológico utilizado pelos militares para justificar
suas ações políticas no país, implementa a construção de um imaginário social visando
encobrir tanto as contradições existentes na sociedade, com “formar almas”133 de indivíduos
interessados no bom andamento do país. Mas a tentativa de construir esse ideário de nação
harmônica e desenvolvida, vai se desfacelando à medida que o cenário das podridões de uma
sociedade que diz civilizada, nos é revelado através do aparecimento de inúmeras mazelas e
injustiças que serviram pra acabar com o direito natural do ser humano animal de ir e vir
(um direito inclusive constitucional).
A estrutura cultural de uma sociedade tradicional e autoritária mantida pelo regime
militar, é evidenciada e representada pelo autor quando o mesmo se questiona se deus gosta
de jovens que, vez em quando, dão uma bola, [gíria que refere a fumar maconha] gostam de
rock, pois não era isso que os seus representantes na Terra demonstravam. Esses jovens
universitários paulistas demonstravam os seus desejos de mudança, à vontade de brilhar, de
ser gente, de lutar por aquilo que [sonhavam para] defender a [sua] condição de ser humano
marcado por vontades, desejos e ambições. Objetivando essa conquista do espaço a juventude
universitária incentivava outros jovens e as pessoas em geral, a manifestarem e colocarem em
prática suas vontades e anseios. Dessa forma, pichem. Invadam o espaço, xinguem a mãe do
presidente, declarem amor à sua prostituta preferida. Idéias e atitudes que não só fugiam dos
padrões culturais e morais pregados pela Igreja e pela família, mas sobretudo pelos militares.
Com isso, mesmo correndo pela contramão, esses jovens ambicionavam contribuir para
ampliar do número de pessoas contrárias as idéias e as políticas postas em prática pelo regime
militar.
No Brasil, o poder de influência da juventude, não só estudantil, mas de forma geral,
ganhara uma maior proporção após a morte do estudante secundarista Edson Luiz em março
de 1968134. Os jovens tornaram-se desde então os “novos heróis da sociedade brasileira” à
133 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,1990. 134 Segundo Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos A. Gonçalves no livro Cultura e Participação nos Anos 60.(1982), a morte de Edson Luiz, “tingiu o asfalto do Rio de Janeiro, incendiou a cidade. Me lembro, conversando com Luis Carlos Barreto, lhe disse que as coisas não podiam continuar como estavam, que a morte de Edson Luiz exigia que nos organizássemos, para protestar. Fizemos uma reunião, com a presença de escritores, cineastras, artistas plásticos. Assim começou a mobilização dos intelectuais, que passaram a dar, organizadamente, apoio aos estudantes. Artistas, escritores, sacerdotes, começaram a participar das passeatas. Havia uma enorme carga de esperança no ar”. P. 79.
65
medida que se propunham não só devolver a democracia ao país, mas “ir além e discutir,
comportamento, sexualidade, revolução”135.
Na prática, essa busca por parte da juventude universitária paulista em quebrar as
amarras pertencentes a essa sociedade moralista por meio de idéias, de atitudes e de
comportamentos – habitus de fundo e perspectiva alternativa, nos é revelada quando Marcelo
Rubens Paiva tece uma descrição de passagens de sua vida referentes a seus relacionamentos
amorosos. Assim
Não falamos de amor. Falamos de sexo. Rimos de nossas
transadas em banheiros de amigos, em redes de capim, no
hall da casa dela [ Ana ], na praia. Falamos da gravidez, dos
orgasmos que tínhamos (nunca tive tão intensos com outra
mulher136.
Ao discutir temas relacionados ao uso de drogas e a sexualidade, enfim, a questões
antes ignoradas por essa moralidade, esse pudor existente na sociedade, a juventude
contribuía para a elucidação e conscientização de outros jovens em relação a questões que
foram frustrantes na sua adolescência, período marcado por uma censura brava no país.
Assim,
Você vê que essa moralidade, esse pudor é altamente prejudicial pra qualquer pessoa. Seria melhor se, quando moleque, descobrindo os prazeres do sexo, eu, tivesse uma educação sexual pra não ter que aprender com as prostitutas da vida que a mulher – minha mãe, minhas irmãs, minha futura companheira – tem um buraco que é a vagina e outro que é a uretra. Chocante137.
Demonstrando o estabelecimento e o desenvolvimento de relações individuais e
sexuais livres, esses jovens universitários expressavam o desejo de ver essas formas de
relacionamento se estendendo para todas as esferas da vida social, pois os mesmos
consideravam ridículo essa universalização do comportamento [já] que cada pessoa era
muito diferente uma da outra.
Esse quadro de mudança que ocorria em relação a certos padrões morais e
comportamentais, mas principalmente sexuais, constituía-se em certo sentido em uma nova
135 NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação(1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001, p.74. 136 PAIVA, 1982, p.106. 137 Ibidem, 1982, p. 104.
66
revolução sexual, evidenciada principalmente, pela consciência do papel que o sexo
desempenhava na vida tanto da mulher como do homem, o que revelava o surgimento de “um
espírito de companheirismo entre jovens de ambos os sexos”138. Tal consciência e
diferenciação, assim foram resumidas por Paiva:
... A primeira vez de uma mulher é muito importante. Tem a relação dor e prazer. Só com um cara que ela gosta pacas, e no qual tenha uma tremenda confiança, poderá ficar à vontade. É um momento forte de libertação, um rompimento com os dogmas ensinados pela sociedade, desvinculação com a família, com a Igreja, que nós homens imaginamos como é duro. Também nem daria pra imaginar. De nós, homens, ao contrário das mulheres, sempre foi exigida uma potência sexual. Tínhamos que transar com prostitutas pra provar pros nossos coleguinhas que éramos machos. Nossos pais (o que não foi o meu caso) nos incentivavam a ter uma conversa de “homem pra homem”, onde era oferecido um dinheirinho ou uma secretária.
A mulher sempre aprendeu, desde a infância, que ter prazer e fazer sexo era um atributo das prostitutas, e que o homem que se preza gosta mesmo é de casar com uma virgenzinha limpa. Deixar penetrar ou não aquele negócio duro dentro de seu corpo passa a ser uma opção entre ser vagabunda ou uma menina139.
A juventude universitária do final dos anos 70 e início dos anos 80, ao contrário dos
jovens dos anos 60 que possuíam uma enorme radicalidade na maioria de suas ações,
apresentava uma visão liberal, porém moderada na sua forma de encarar a vida, e sobretudo,
em suas práticas sexuais; características marcavam o surgimento de uma “Nova Esquerda”140
no cenário político de oposição ao regime. Posicionamentos estes, evidenciados pela própria
problemática pessoal desses jovens em definir sua situação amorosa, já que muitos não
sabiam se estavam somente tendo um caso, amizade colorida ou simplesmente uma transa.
Assim, embora prevalecesse uma certa indefinição em relação ao que estes jovens estavam
vivendo, a sua grande maioria sempre procurava resolver “suas necessidade sexuais de
maneira franca e sincera: ligando exclusivamente durante o tempo que [durava] a atração
sexual”141.
Neste prisma, o amor era considerado o motor básico das relações humanas, pois
esses jovens universitários demonstravam a assimilação e a valorização do discurso hippie de
138 CONTESTAÇÃO JUVENIL, Salvat Editora do Brasil. Rio de Janeiro. 1979, p. 93. 139 PAIVA, 1982, p. 183. 140 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. & GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo, Brasiliense, 1982, p.69. 141CONTESTAÇÃO JUVENIL, Salvat Editora do Brasil. Rio de Janeiro. 1979, p. 96.
67
Paz e Amor. Assim essa juventude revelava um jeito diferente de considerar o amor, ao
proporem relações afetivas livres, marcadas por um desprendimento do apego a monogamia e
pela visão de amor não mais para ser eterno, mas sim infinita enquanto dure, ou seja, o amor
é encarado não mais como um sentimento ou uma relação, conforme se defende no casamento
cristão e burguês.
Sendo detentora de posicionamentos até certo ponto revolucionários, a juventude
universitária paulista, demonstrava claramente a assimilação de características da
contracultura, evidenciadas por algumas escolhas particulares e pela imagem de rebeldia e
descomprometimento que esses jovens de cabelo enorme, que usavam drogas, transmitiam ao
não se encaixarem nos modelos impostos pela sociedade capitalista industrial e pela
burguesia tradicional. Características que são representadas por Marcelo Rubens Paiva,
principalmente quando se refere ao fato de ter sido eleito presidente do Centro de Engenharia
Agrícola, pois
... Colocar um cabeludo maconheiro no Centro é um ato de muita coragem (mais tarde, na festa do BIIIN, é que descobri que a maioria dos colegas engenheiros eram maconheiros) (...) Não éramos terroristas, subversivos, nem fazíamos planos de um levante armado pra dar o poder às classes trabalhadoras. Eram simplesmente reuniões de discussões sobre nossa intervenção no movimento estudantil, quiçá no movimento operário142.
Esse espírito questionador e libertário oriundo da contracultura, desenvolvia-se no
interior da juventude universitária na medida em que a mesma criticava a sociedade
competitiva advinda da industrialização e do consumismo que cresceu no Brasil nos últimos
tempos. No entanto, suas posturas não eram tão radicais como as existentes nos anos 60, onde
os jovens rompiam “com praticamente todos os hábitos consagrados de pensamento e
comportamento da cultura dominante”143 . Ao contrário, eram atitudes mais moderadas, longe
da negação total dos benefícios que desfrutava no mundo capitalista e urbano, pois a
burguesia não entra nessa. Postura crítica, porém moderada, representativa do grupo social a
qual o autor se inseria. Assim, nos dizeres de Marcelo:
À noite eu e a Marcinha ficamos a sós. Não tava legal. Eu tava estranho e ela mais ainda. A menina vinha com uns papos de que “a civilização não esta com nada, de que o
142 PAIVA, 1982, p. 88. 143 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é Contracultura. São Paulo, Nova Cultural: Brasiliense. 1986, p. 22-23.
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negócio é viver no mato” (...) É, sem dúvida, eu preferiria viver numa cidade...144
Dessa forma, a juventude universitária mantinha uma relação de proximidade com
alguns aspectos contraculturais que contribuíam para composição de um universo de oposição
marcado por um estilo de vida e atuação cultural e política pautado em novos significados,
regras e valores, pois esta juventude estava de saco cheio de representar um papel, um
estereotípico, de serem classificados, de serem cobrados.
Segundo Marcelo Rubens Paiva essa influência contracultural no universo juvenil
universitário de São Paulo também se fez notar na esfera musical, pois através da criação de
uma república de muita inspiração musical, esses jovens universitários tomavam
conhecimento de uma coisa que até então não conheciam direito: a contracultura.
Movimento pautado por um espírito crítico e questionador da realidade cultural, social e
política, da qual já participavam Gil, (...) Caetano, Luiz Melodia, Jorge Mauter, caras que (...)
nunca ouvia nos rádios ou na televisão devido ao “esvaziamento forçado do debate musical
brasileiro”145 posto em prática pelos militares a fim de eliminar a perpetuação de novos
espaços de resistência ao regime.
Esses jovens universitários usando de um jeito debochado, tirador de sarro,
produziam músicas que através da conciliação: caretismo, (...) desbunde e (...) revolução,
conseguiam falar da podridão e do falso sentido de cada um gerado pelas várias imposições
políticas e culturais realizadas na sociedade ao longo do regime militar. Neste contexto, a
música representava para estes jovens um meio de [se relacionarem] com o mundo, um jeito
de entender as coisas e passar a diante aquilo que acreditavam e sentiam. Assim, a música
produzida por esses jovens entre os anos 70 mesclavam aspectos contaculturais e
nacionalistas que traduziam e representavam as inspirações de rebeldia e oposição da classe
média intelectualizada, chegando inclusive aos estratos referentes à classe média baixa e
popular. Dessa forma,
A música brasileira moderna é [um] produto [da]
apropriação e [do] encontro de classes e grupos sócio-
culturais heterogêneos (...) Assim, a música urbana brasileira
nunca foi “pura” (...) ela já nasceu como resultado de um
entrecruzamento de culturas. De qualquer forma, as maneiras
144 PAIVA, 1982, p. 218. 145 NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação(1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001, p.78.
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como o pensamento em torno da música popular foram
construindo uma esfera pública própria, com seus valores e
expectativas, traduzem processos permeados de tensões
sociais, lutas culturais e clivagens históricas146.
Assim o fantasma representado pelo regime militar era espantado por esses jovens
através dos shows na universidade, em festas na casa de amiguinhos paulistas, em bares, em
salas de aula. Sendo que as músicas que rolavam faziam referência justamente aos ídolos da
música rebelde e jovem nos seus mais variados estilos . No rock: Jimi Hendrix, Rolling
Stones, Pink Floyd, Led Zeppelin e Raul Seixas; no reggae: Bob Marly (…) (Positive
Vibration); na mpb: Caetano Veloso com a música Gente é pra brilhar, não pra morrer de
fome ou Marinheiro só ou o novo disco (...) Cinema Transcedental e ainda Gil com Olorum,
pedindo proteção aos deuses do candomblé para os filhos de Gandhi, expondo assim um
verdadeiro hibridismo religioso e cultural em contraposição a pretensão de domínio por parte
da cultura oficial.
Neste universo juvenil, a música e, principalmente, o rock, constituía-se “num dos
principais veículos da nova cultura que explodia em pleno coração das sociedades
avançadas”147, a medida que canalizava os impulsos da rebeldia juvenil e conseguia traduzir
suas visões sobre a realidade político-cultural brasileira . A compreensão da importância que a
música tinha entre os jovens pode ser percebida no livro A Contestação Juvenil (1979), pois
segundo o mesmo
...Os textos das canções serviam para explicar o que a música simbolizava: o protesto contra o sistema, a União da juventude, os anseios de união cósmica, a fantasia, a aproximação dos sexos, o desejo da marginalização, o utopismo148.
Desse modo, dentro da cultura jovem, a música, em especial o rock’n roll, se
entrelaçava com a história dos movimentos e acontecimentos referentes à juventude,
funcionando como trilha sonora da abertura, além de representar o ideal de festa e
divertimento para os mesmos. Embalava os sonhos libertários de estar promovendo as
revoluções dos comportamentos, dos costumes vigentes na sociedade e acima de tudo, de
romper com a falta de flexibilidade política no Brasil. Com isso, o rock é considerado uma
146 Idem, 2002, p. 48-9. 147 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é Contracultura. São Paulo, Nova Cultural: Brasiliense. 1986, p. 43. 148 CONTESTAÇÃO JUVENIL, Salvat Editora do Brasil. Rio de Janeiro. 1979, p. 98.
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das expressões culturais mais importantes da juventude urbana, pois conforme observa
Antônio Marcus A. de Souza,
... muitas bandas de rock brasileiro (...) procuraram um tipo de música despretensiosa (...) que conseguisse deslocar o público jovem das exigências imediatas da realidade e fazer com que ele (jovem) se divertisse ao som de uma música que critica o Estado, a Igreja, a Família, a Polícia ou o consumismo do sistema que alimenta o próprio rock149.
A música, da mesma forma que as drogas, possuía a capacidade de incidir na esfera
humana da imaginação. Assim, as drogas associadas na maioria das vezes com a música,
auxiliavam a juventude universitária na composição e na criação de uma “outra” realidade, de
uma atmosfera de rebeldia, pois permitiam a “ampliação da mente e da sensibilidade”150;
características que contribuíam para a mudança de mentalidade e recusa em relação aos
comportamentos conservadores e tradicionais.
O poder de consciência em relação ao vasto alcance da música, enquanto uma das
expressões culturais capazes de manifestar os descontentamentos da juventude universitária
de São Paulo em relação aos absurdos cometidos contra a nação, foi dado a esses jovens por
artistas como Tom Zé, (...) Gil, Caetano, Rogério Duprat, Torquato Neto, Gal Costa e
Mutantes, quando os mesmos conseguiram produzir uma verdadeira revolução da música
brasileira: [a] Tropicália. Estes, ao produzirem um “disco-manifesto”151 permeado por uma
interdisciplinaridade de influências musicais, políticas e culturais lançaram as bases que
serviram de sustentação para as aspirações musicais de critica dos jovens crescidos entre os
anos 70 e 80.
Graças a essas influências, surgia através da apresentação de letras críticas,
contestatórias e humoradas152, uma geração paulista, que usando de um tom de deboche com
a vida, sem confundir com alienação, procurava revelar por meio das músicas o cenário das
podridões de uma sociedade militarizada, mas que no entanto, valia-se de todos os métodos
para impedir que a marginalia colocasse a cara na rua. Esse tom de deboche contido nas
149 SOUZA, Antônio Marcos Alves de. Cultura Rock e arte de massa. Rio de Janeiro: Diodorim Editora LTDA, 1995, p. 89. 150CONTESTAÇÃO JUVENIL, Salvat Editora do Brasil. Rio de Janeiro. 1979, p. 79. 151 Segundo Marcos Napolitano (2002), o termo foi cunhado pela crítica, pois constituía-se numa forma de referir-se ao mosaico sonoro que reunia “gêneros, tradições poéticas, alegorias, ideologias, na expressão da “geléia geral brasileira”. p. 68. 152 Segundo Luis Carlos Maciel – “guru da contracultura”, o sentimento de opressão que pairava sobre todos podia ser ludibriado através do humor (...) foi assim que [o] jornal [Pasquim] prospera em plena ditadura (...) sendo um órgão de resistência, embora não tivesse nenhuma intenção explícita para ser tal coisa. 1996, p. 122.
71
músicas, nos é representado por Marcelo Rubens Paiva quando o mesmo fala dos motivos
que o inspiraram a compor a música o “Bamba Novo”.
Um dia eu fui comprar um tênis e achei incrível a quantidade de marcas e tipos que tinha pra escolher. Tênis perfumados, de náilon, anatômicos, só faltava um que tivesse luzinhas. Daí me lembrei que, na minha infância, só havia uma marca de tênis: Bamba. E era hiperimportante o Bamba na minha vida. Ele tinha uma magia de ser meu companheiro, estar comigo em todos os momentos (...)Então, decidi comprar um Bamba preto e fazer uma música em sua homenagem153.
Tal característica, atrelada a critica ao consumismo e ao desenvolvimento tecnológico
também pode ser observada em outras músicas como um rock (...) feito depois de ver um filme
de ficção científica sobre um computador que domina uma mulher e tem um filho com ela
(ridículo). Música que era apresentada nos shows em Campinas, após o enorme sucesso das
músicas tocadas para a peça A Farsa do Advogado Pathelan. Tal música é composta pelos
seguintes versos:
O Proteu teve um filho Com a mulher do Zé Bedeu Uma menina de borracha Mais inteligente do que eu Nessa Kubrick não pensou Que tamanha fantasia Uma máquina IBM Tendo orgasmo de borracha na vagina da mulher
/ do Zé Bedeu Quando nasceu a criança Que tamanha confusão Não sabiam se amamentavam De leite ou óleo diesel Que religião dariam Seria atéia ou protéia Coitada da criança Não havia gente igual A quem ela iria amar Ou seria um patrimônio nacional Aos quinze anos de idade Veio a crise existencial Se jogou da Rio-Niterói Hoje é pneu nacional
Good Year154
153 PAIVA, 1982, P. 124. 154 Ibidem, 1982, p. 119.
72
Dessa forma, as manifestações culturais estavam se constituindo como verdadeiros
espaços alternativos de resistência e de crítica, devido à impossibilidade da realização de
debates abertos sobre a situação política do país. Assim, quando a TV-Cultura resolve
promover um festival que apareceria na televisão e [que] teria até disco gravado pros
vencedores, uma série de novos e jovens compositores que nem tinham dinheiro pra comprar
instrumentos e que estavam escondidos por São Paulo, tiveram a oportunidade de mostrarem
sua arte, e, acima de tudo, tornaram-se porta-vozes das vontades e anseios da população
brasileira, ou pelo menos de alguns segmentos sociais dela. Sendo assim, os festivais
tornavam-se extremamente importantes, permitindo a descoberta de novos e jovens talentos
musicais que se ajustassem as exigências do mercado, mas sobretudo porque configuraram-se
em “palcos de debates estéticos, políticos e culturais”155 referentes às principais questões da
sociedade brasileira.
O clima de tensão criado em torno desses festivais156 realizados Teatro Pixinguinha
traduzia a preocupação do regime militar em analisar e censurar as músicas que fugissem do
convencional, pois deveriam predominar canções que não escapassem à regra – canções
melódicas, tipo dramalhões existencialistas. Músicas de fossa. Assim, o jovem compositor
Marcelo em uma atitude de revolta, de indignação em relação a todo aquele clima de tensão e
com relação a chatice da entrevista com ele realizada, acaba revelando que no seu
entendimento que a TV-Cultura estava mais disposta a entrar num jogo de modismo,
tentando reviver a década passada, fazendo referência aos grandes festivais universitários
que a movimentaram, do que promover novos valores para a música brasileira. Sendo que ele
próprio, tava ali, simplesmente porque não tinha onde tocar.
Dessa forma, essa atitude de protestar contra o tempo controlado, a autocensura, [a
necessidade de] agradar os jurados e a platéia com uma música convencional, manifestada
pelo escritor, é inspirada nos principais representantes do Tropicalismo, como Caetano e Gil,
que buscaram, através da música, promover o rompimento com o tradicionalismo e ao mesmo
tempo insistiam na necessidade de aproximação e ocupação dos meios de comunicação de
massa. Tudo isso, decorre do fato de que
155 NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação(1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001, p. 74. 156 Os festivais segundo Marcos Napolitano (2001) , eram eventos caros que “para garantir emoção para o telespectador, precisava ser feito ao vivo e não ter um controle de duração muito rígido. O imprevisto e uma razoável flexibilidade de duração era parte do sucesso, pois garantia a vivacidade do evento. Essa característica especifica do gênero festival era incompatível com a nova organização comercial e técnica da TV brasileira, que se disseminou a partir do final dos anos 1960”. p. 74-5.
73
Os meio de comunicação tendem a desviar as vistas dos leitores ou espectadores para os planos e ângulos convenientes aos dominantes. A manipulação das visões, por objetivos de lucro e/ou ideológicos, impede que os interesses dos menos favorecidos sejam expressos. Isso não significa que nunca encontrem oportunidade de veicular suas reivindicações 157.
Diante de tal situação, o show era para nós mesmos. Marcelo homenageando Cassy e
vice-versa, havendo assim a possibilidade de fazer o que viesse na cabeça, pois nunca
seríamos classificados. Dessa forma, no final do espetáculo apoteótico, numa atitude de
audácia, encenaram um teatrinho que remetia a forma como os militares tratavam seus
prisioneiros, pois com o Cassy deitado no chão, a gente em volta dele metralhava com os
instrumentos até que ele morresse. Esta atitude levou toda platéia (...) ao delírio e só se via
gente pulando na cadeira, algo realmente incrível. Mas, com essa atitude e performance que
lembrava um compositor underground americano: Lou Reed, rendeu segundo Marcelo o
medo de alguma possível represália.
O resultado daquele teatrinho simbólico, crítico e criativo contrário à censura e à
violência cometida pelo Estado em relação à sociedade civil, fora impressionante, pois mesmo
com a música não classificada no festival, esses jovens haviam se tornado as estrelas do show
através da utilização de um tom de deboche com a vida, porém sem estarem
descomprometidos com a causa coletiva: Libertar o país da ditadura militar que oprimia a
população na esfera política e social. Ainda assim, tiveram a oportunidade de aparecer prum
gênio da música brasileira que era Tom Zé, um dos jurados do festival . Para Tom Zé, nós não
deveríamos desistir só porque um bando de idiotas não tinha escolhido minha música,
preferindo escolher duas imitações do Chico Buarque e duas do Milton Nascimento.
Assim, as músicas produzidas por esses universitários pseudo-intelectuais
expressavam em sua linguagem e sentimentos a criação de uma identidade cultural construída
fora dos parâmetros pertencentes à classe dominante. A música representava para esses jovens
um jeito de entender melhor as coisas e passar adiante aquilo que sentiam e acreditavam.
Neste contexto, a música, em especial a MPB, em seus diversos g6eneros e estilos, foi uma
espécie de trilha sonora da fase de abertura política no Brasil.
Essa febre cultural de caráter alternativo, marcada pelo uso do humor e do deboche
como forma de realizar uma crítica social, pode ser observada na música também através das
157 CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e História do Brasil. São Paulo, Contexto/Edusp, 1988, p. 11.
74
“polêmicas participações do músico Arrigo Barnabé”158, descrito por Marcelo Rubens Paiva
como um cabeludo de nome esquisito, que, assim como ele, também se inscrevera no festival
realizado pela TV–Cultura. Para Marcos Napolitano, “Arrigo era o mais destacado e cultuado
artista do movimento” pois
Com suas harmonias atonais, letras nonsense inspiradas nas histórias de ficção científica, Arrigo chocava as platéias, exigindo uma renovação dos padrões de escuta musical. Ele e outros músicos propunham uma linguagem poética e musical anticonvencional, mesclando música erudita de vanguarda, Rock e MPB. Assim, essa nova música (também conhecida como “vanguarda paulista”) parecia retomar as experiências mais radicais do Tropicalismo, que a MPB mais aceita no mercado tinha deixado de lado159.
A consolidação do meio universitário como um espaço de sustentação de uma cultura
alternativa, se deve, por um lado, ao fato de que os espaços pra quem fazia música se
restringiam a shows universitários, e por outro lado, às condições favoráveis de adesão a
novas atitudes e comportamentos que a Universidade acabava fornecendo a grande parte da
juventude de São Paulo.
Desse modo, a juventude universitária contribuía para a criação de uma febre cultural
de caráter alternativo, marcada pelo uso do humor e do deboche na composição de músicas
que criticavam a realidade social; pelo uso de drogas como forma de criar uma “outra”
realidade e pelo incentivo a práticas sexuais livres entre os indivíduos. Enfim, a juventude
universitária apresentava habitus culturais que visavam influenciar no processo de libertação
e derrubada da caretice cultural e política existente no Brasil, rompendo com os dogmas
ensinados pela sociedade imperialista e militar, marcada por regras e limitações.
Os jovens universitários paulistanos ao criarem um estilo de vida e de comportamento
pautado em habitus culturais não aceitos pela sociedade, visavam demonstrar que acima do
poder, o amor e a felicidade são mais importantes. Porém, estavam preocupados em
conscientizar essa mal-educada nação dos diversos problemas sociais oriundos das políticas
governamentais postas em vigência no Brasil a partir do golpe militar de 1964.
Assim, ao tornarem comum entre eles, o uso de drogas, a defesa de uma liberdade
sexual e opção por um gênero musical rebelde, a juventude universitária construía
socialmente um conjunto de habitus culturais que os uniam e os remetiam ao esforço de
158NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação(1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001, p. 126. 159 Ibidem, 2001, p. 127.
75
produzirem juntos, primeiramente uma “revolução individual”, para depois obter a passos
largos uma “revolução social” mais ampla. Dessa forma, esses
... Jovens de cabelos crescidos (...) faziam do erotismo, da sensualidade e da liberdade comportamental suas armas para combater a violência do way-of-life industrializado. O uso da droga como busca de uma nova sensibilidade, o amor livre (...) assumiam um sentido “contracultural” que empolgava toda uma geração não só nos EUA mas em diversos paises do Ocidente160.
Dessa forma, a juventude universitária de São Paulo era formada por jovens
escrachados, porém sinceros, que procuravam através de suas ações, atitudes e
comportamentos, enfim, de seus habitus culturais, criar uma opção de práticas que fugissem
das regras e normas oficiais e conseguisse traduzir suas necessidades, aspirações e
sentimentos. O jovem escritor Marcelo R. Paiva resume de forma brilhante, idéias e
posicionamentos pessoais, porém representativos da forma de encarar a vida colocada em
prática por essa juventude.
Isso é típico em mim. Sempre escolho aquilo que possa trazer experiências novas, apesar do perigo. O trilho é o estereotipo da coisa correta, sempre reta, segura. Na minha vida, nunca andei no lado certo, infelizmente, e acho que é meio por isso que estou assim. Sempre me atirei de cabeça nas coisas, nunca achando que algo de mau fosse acontecer. Sempre me achei forte o suficiente pra arcar com as conseqüências. Nunca tive medo da polícia, muito menos de bandido161.
Dessa forma, conforme observa Heloisa Buarque de Hollanda (1992), a cultura
criativa e de resistência começava
criar novos heróis que se apresentavam quixotescamente como os indivíduos que dizem aquilo que o povo quer dizer mas se vê impedido. Desenvolve-se nesses espetáculos todo um repertório de truques – rapidamente codificados pela cumplicidade público-palco – que servem para alusões à situação política do país162.
160 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. & GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 69. 161 PAIVA,1982, p. 198. 162 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde _ 60-70. R.Janeiro, Rocco, 1992, p. 92.
76
É nesse contexto, que percebemos que os habitus culturais edificados pela juventude
universitária são frutos do processo de reconstrução do movimento estudantil163 universitário
instaurado no cenário político-cultural a partir da década de 70. Tudo isso, nos é evidenciado
pela enorme participação e envolvimento dos estudantes de São Paulo nas ações postas em
prática contra de forma geral, o autoritarismo do regime militar em relação à sociedade, e de
maneira específica, contra a omissão da universidade com relação a moradias estudantis. Na
universidade, Marcelo Rubens Paiva dedicou-se ao movimento estudantil e como era popular
na Unicamp, motivo que o levou a ser eleito presidente do Centro de engenharia
agrícola,vivenciou o clima e as expectativas que pairavam entre os estudantes, principalmente
em torno da aproximação das eleições da UNE (União Nacional dos Estudantes). Conhecia
todos os ‘bichos-grilos e todos os ‘malucos’que eram politizados, mas não participavam pois,
de acordo com seus princípios advindos da contracultura e sua recusa global ao sistema e à
sociedade, ainda questionavam as formas institucionalizadas de participação. Dessa forma,
(...) o ideal de “organizar” os estudantes leva a que as
militâncias a partir de 1974 valorizem as calouradas, os
debates sobre a reforma, as montagens de peças teatrais, os
ciclos de cinema, shows, produção de jornais e revistas como
potentes instrumentos de legitimação dos diretórios e
organização das “massas”, entendendo-as como atividades
agregadoras “conseqüentes” na proporção em que assumem
discursos mais radicais de participação política164.
Graças a seu conviveo nos altos escalões do movimento estudantil e político existente
na universidade, e as articulações entre as várias tendências estudantis, Marcelo Rubens Paiva
passa a transar o pessoal do Refazendo, que não era simplesmente uma tendência do
movimento estudantil, pois tinha por trás uma organização de esquerda forte dos anos
sessenta, a Ação popular que era barra pesada, possuindo reuniões secretas e coisas mais,
visando fortalecer o poder de ação dos estudantes no interior da sociedade brasileira. Porém,
163 Segundo os líderes do movimento estudantil José Dirceu e Vladimir Palmeira – O movimento estudantil (...) foi antes de mais nada uma grande revolução cultural e de comportamento. Mais importante do que a luta contra a ditadura, embora isso possa parecer absurdo. A geração de 68 é a primeira que desde cedo mora fora de casa, trabalha e tem independência em relação aos pais. É também a primeira que mistura as classes altas e a pequena burguesia com filhos de trabalhadores, nos cursos noturnos das universidades. E faz a ruptura. DIRCEU, José & PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a ditadura. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: Garamond, 1998. p. 32. 164PELLICIOTTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos anos 70. Campinas, São Paulo, 1997, p. 94.
77
nós não éramos terroristas, subversivos, nem fazíamos planos de um levante armado pra dar
o poder às classes trabalhadoras. Eram (...) discussões sobre nossa intervenção no
movimento estudantil, quiçá no movimento operário.
Essas reuniões secretas que discutiam as próximas etapas do movimento se davam
entre os líderes da Unicamp em Campinas como o cabeludo [Marcelo] e Rubão (Diretor da
UEE) entidade pertencente à própria UNE e os líderes da USP em São Paulo. Assinalando,
assim que o processo de rearticulação e reorganização do movimento estudantil, frente às
alterações que as universidades atravessavam, constituíam um caminho marcado pela criação
de projetos que ansiavam a realização de mobilizações mais amplas, voltadas para a
transformação da sociedade.
Assim, da mesma forma que o Brasil mudou, a universidade muda, graças à política
educacional de repressão implementada pelo regime militar. Política educacional esta, que
reprimia e restringia a Reforma universitária, tornando a universidade um “espaço meramente
acadêmico de feições tecnocráticas”165. Diante desse quadro, as reuniões e discussões
realizadas pelos jovens líderes de diretórios universitários de São Paulo participantes dos
altos escalões do movimento estudantil significavam os primeiros passos rumo à retomada
de consciência e do senso de responsabilidade em relação aos destinos da universidade e do
próprio país.
Porém, se faz importante observar que nessa nova fase de reconstrução do movimento
estudantil ocorrido por volta da metade final dos anos setenta, as preocupações e os anseios
estudantis estavam firmados sobre outros paradigmas políticos. Assim,
(...) As novas questões vão além da repressão às organizações militantes; elas se acham associadas às reformulações estruturais do ensino, a um processo mais profundo de urbanização e proletarização social, à dinamização das relações de mercado (potencializado pela entrada em cena da indústria cultural), e acima de tudo, à uma transformação estrutural da identidade do estudante. A emergência de novas formas de organização política, neste caso, joga luz sobre o prenúncio de um novo conjunto de respostas que na década começa apenas a ser insinuar. Talvez, então, seja o momento de considerarmos a pertinência e a responsabilidade de uma “nova” esquerda que a década de 80 anuncia ... 166
165 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde _ 60-70. R.Janeiro, Rocco, 1992, p. 93. 166 PELLICIOTTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos anos 70. Campinas, São Paulo, 1997, p. 142.
78
É nesse clima que os líderes e diretores de diretórios pertencentes ao movimento
estudantil por meio da organização de reuniões, manifestações nas universidades, nas ruas nos
parques e praças públicas, incentivavam a outros jovens e a sociedade, em geral, a
protestarem contra os arbítrios do governo e as injustiças presentes no país. Assim ao
incentivarem os jovens a picharem os muros, a invadirem o espaço e a xingar a mãe do
presidente, os jovens universitários de Campinas e São Paulo participantes do movimento
estudantil construíam atitudes que representavam o descontentamento e as reivindicações para
a restauração de uma vida política autônoma para as pessoas e para o próprio país. Ações que
demonstravam a influência da AP de Campinas e do MR-8167 (Movimento Revolucionário 8
de Outubro) na prática, já que outros sinais de insatisfação em relação ao governo se faziam
notar; como por exemplo a
derrota, surpreendente, do partido do governo nas eleições legislativas de 1974 foi um nítido recado da insatisfação da sociedade brasileira. Ficava claro que o regime, apesar de todo o controle, perdia legitimação política, mesmo dentro dos limites das regras impostas168.
Uma das características mais importantes atribuídas ao movimento estudantil de São Paulo, foi a da capacidade revolucionar as formas de manifestar. Tudo isso, por que na maioria das vezes
(...) usávamos os comícios-relâmpago e os comícios de ponto; o pessoal se organizava em grupos de dez nas faculdades e somente o chefe de cada grupo sabia onde seria o local. Assim a informação não vazava. Para desorientar o polícia, pulverizamos certas manifestações em vinte ou trinta lugares da cidade, sempre com grande mobilidade e aproveitamento o fator surpresa. Atingimos um grau de organização muito alto, demonstrando nossa capacidade de mobilizar milhares de pessoas. Era uma coisa forte. Enquanto a ditadura fazia o que queria no país e proibia as ruas para o povo, o movimento estudantil veio dizer com toda firmeza que as ruas e as praças eram nossas169.
Marcelo Rubens Paiva acabava indicando o quadro de reestruturação social e política,
à medida que tratava de quando o país começava a dar os primeiros passos rumo à reabertura
política. Na faculdade, em 78, a gente ouvia falar num tal de Lula, líder sindical em São
167 Grupo formado por militantes oriundos da Juventude Universitária Católica (JUC) e da Juventude Estudantil Católica (JEC) em 1962, com pretensões de criar uma “ideologia própria”, mas que adere à concepção marxista lenista ainda nos anos 60 (ao aproximar-se do maoismo), transformando-se em APML em 1971. 168 NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação (1950 -1958). São Paulo, Editora Contexto – 2001, p. 106. 169 DIRCEU, José. & PALMEIRAL, Vladimir. Abaixo a ditadura. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo: Garamond,1998, p. 119.
79
Bernardo do Campo, que saía quase todos os dias no Jornal Nacional. O governo e seu
porta-voz, a Globo170, usavam o tal Lula pra mostrar os novos caminhos de um sindicalismo
moderado e não nas mãos comunistas de antes de 64. Ocorria neste sentido, um forte
processo de rearticulação do movimento operário, sendo que a metade do pais estava em
greve, com destaque para o ABC171 paulista, área de influência do tal barbudo172.
Nascia, segundo Marcelo Rubens Paiva a mais importante liderança política de
esquerda na década de 70, pois o barbudo soava como fruto da redemocratização de Geisel,
que a sociedade estava se organizando livremente e que já-já o país virava uma
democracia.Tal figura era vista por Marcelo e pela maioria dos estudantes como grande
incógnita,ao mesmo tempo em que era tratado pelo Libelu 173como um pelego.
Com isso, em 1979, quando João Baptista Figueiredo assume o poder dando início
realmente ao processo de abertura política do país, os olhos dos estudantes brilhavam, diante
da sucessão de atos executados rumo a aniquilação da dominação dos generais da ditadura.
Porém, pairava ainda no ar uma certa indefinição política no movimento estudantil e nas
organizações clandestinas. Reflexo da indefinição do próprio país. Os caminhos e os
posicionamentos a seguir poderiam ser os mais variados.
Estava formado o bloco da Abertura. (Um dois feijão com arroz). Na frente, iam dois
sacos enormes levados por alguns burgueses, e atrás de uns guardas, ia mais gente tipo
estudante, dona-de-casa, operário. Eu não tinha muito a ver com a história, mas saí mesmo
assim, realizando um grande desejo da minha vida: saí de prostituta. Saímos atrás de uma
escola de samba da cidade. Sentia-me a própria vedete. Todo o mundo assobiava pra mim.
Aproveitei e entrei na dança. Ficava mandando beijinhos, cantava os guardas que protegiam
a avenida. Levei até uma lata de cerveja na cabeça, provavelmente de alguma senhora com
170 Com as transformações ocorridas no Brasil, propiciadas pelo dito Milagre Brasileiro se da uma enorme concessão de planos de créditos o que possibilita o aumento expressivo do número de televisores nas residências urbanas. Assim, se na década de 60, apenas cerca de 9,5% das residências urbanas tinham televisão, na década de 70 mais de 40% das residências possuíam um aparelho de TV. É nesse quadro que a poderosa Rede Globo, formada em 1965, com capital do grupo Time-Life pelo empresário Roberto Marinho, conspirador golpista e financiador de órgãos de repressão política. A programação da Rede Globo, especialmente seu “Jornal Nacional”, disseminava os ideais de “segurança e desenvolvimento”do regime militar, incutindo hábitos culturais e louvado as conquistas governamentais. BARROS, Edgard Luís de . Os Governos Militares. São Paulo. Contexto, 1991, p. 60. 171 As greves ocorridas no ABC paulista demonstravam a força do fenômeno representado pela juventude. “Lula tinha trinta anos de idade, mas a maioria dos seus companheiros não passava muito dos vinte”. DIRCEU, José. & PALMEIRAL Vladimir, 1998, p. 35. 172 Luís Inácio Lula da Silva – consolidou definitivamente sua extraordinária liderança sindical no ABC paulista. Sendo apresentado pela revista norte-americana Newsweek como “o herói da classe operária” (“Working-Class Hero”), lula comandou mais de 170 mil metalúrgicos em uma surpreendente paralisação no mesmo momento em que o novo governo [general Figueiredo] tomava posse. BARROS (1991), p. 96. 173 Libelu – Tendência do movimento estudantil que assume pela primeira vez a direção do DCE livre da USP em 1978. PELLICIOTTA, 1997, p.140.
80
ciúmes de mim, pois mandava beijinhos pra todos os homens da avenida. Tal passagem, nós
remete a festa de posse de Figueiredo, ocorrida em março de 1979, onde toda cidade de
Brasília
(...) ficou imobilizada durante dois dias, deslumbrada com ministros sorridentes, banquetes pantagruélicos, show da escola de samba “Mocidade Independente de Padre Miguel” (campeã do último carnaval carioca) e um jogo entre o Flamengo e o Corinthians com portões abertos ao público174.
Diante do clima de abertura política criado em torno do processo de democratização
do país, assumido por Figueiredo, porém, observado com enorme resistência pelos generais da
“linha dura”, tudo começava a ficar azul na América do Sul com o envio ao Congresso do
projeto de anistia, com os novos partidos que já estavam em organização; enfim, passos
iniciais que constituíam os primeiros frutos positivos alcançados pela sociedade. Nessa
conjuntura, aparecem novos partidos, com um tal de PT (Partido dos Trabalhadores), que era
“a única agremiação que destoava do jogo político tradicional”, justamente por ser um
partido, conforme observa o jornalista conservador José Nêumanne Pinto, que “na nossa
história política nacional (...) não nasceu de articulações de cúpula, mas surgiu do esforço
partindo da base para o topo. Por isso, é um Partido que pode em consulta às bases, sem risco
de ver crescer desmesuradamente o nariz de seu presidente”175.
Prevalecia ainda no meio estudantil uma falta de direcionamento, pois a tese era ‘ficar
com as oposições unidas no velho MDB, futuro PMDB, enfim, um saco de gatos composto
por membros (...) interessados em realizações pessoais e por outros que só usavam a legenda
por saberem que, em São Paulo, vota-se na oposição. E como seu próprio grupo que era
diretoria do DCE – Unicamp, UEE –USP e UNE, ficou em cima do muro, sem tomar nenhum
posicionamento diante de tal situação, Marcelo Rubens Paiva opta por realizar sua filiação ao
PT, junto com o Percival (aliás, quem fez minha cabeça); pois acreditavam que um partido
organizado por trabalhadores e não por políticos, raposas velhas, exilados que não estavam
no Brasil há quinze anos e que surgia do esforço de uma base para o topo, constituía uma
nova opção, uma oportunidade utópica de se construir um partido da classe trabalhadora, e
não um partido de personalistas que se dizem defensores do interesses do povo brasileiro
(advogados, engenheiros, etc, que saem da classe média e vão fazer política).
174BARROS, Edgard Luís de . Os Governos Militares. São Paulo. Contexto, 1991, p. 94. 175 In appud, BARROS, 1991, p. 100.
81
Assim o partido dos trabalhadores, através da organização de passeatas, de greves
entre os trabalhadores por reivindicação salarial e de manifestações populares contra o
governo, logo começou a aumentar a influência no meio estudantil e até rachou com a
diretoria da UNE. A influência do partido dos trabalhadores na sociedade pode ser medida
pela preocupação do governo expressa nos meios de comunicação, como os jornais que
diziam em letras garrafais: Não é uma greve política. Esse crescimento do PT, ocorreu
principalmente, após a realização de um longo trabalho de conscientização dos trabalhadores
que visava a reorganização dos sindicatos (...) e, de uma certa maneira, a politização dos
operários para as causas trabalhista-sociais. No entanto, ainda existiam atitudes repressivas
por parte dos órgãos militares na sociedade, pois as ações
(...) contra os movimentos grevistas eram particularmente violentas, e diretamente orientadas pelo governador Paulo Maluf, aliado incondicional da “linha dura” militar. A morte de Santo, militante da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo, provocou uma passeata de protesto de 10 mil pessoas na capital paulista e um pronunciamento emocionado do cardeal D. Paulo Evaristo Arns: “Foi defendendo a classe operária com seu próprio corpo que Santo morreu, vítima de uma bala traiçoeira. (...) Quase nada estará certo entre nós enquanto houver dois pesos e duas medidas, uma para o patrão, outra para o empregado”176.
Assim, quando entre janeiro e outubro de 1979, o movimento operário estava
explodindo, pois diversas categorias profissionais promoviam uma surpreendente paralisação
no país, se iniciaram as primeiras conquistas populares e estudantis. Nesse contexto de
surgimento de novas lideranças políticas, Marcelo Rubens Paiva conta que o Geraldinho,
amigo nosso, ex-companheiro de diretoria do DCE da USP havia se candidatado a deputado
estadual e (...) foi eleito.
Diante dessas transformações que ocorriam e que caracterizavam o processo de
execução de reformas partidárias tão exigidas pela sociedade, algumas visitinhas políticas
eram realizadas por Eduardo Suplicy, João Breda e Irma Passone – um grupo autêntico do
MDB que (...) estava consultando as bases para saber se iriam ou não para o PT. Tudo isso,
porque o MDB, por mais glorioso que tenha sido no passado carregava consigo a herança e a
influência dos generais militares.
É nessa conjuntura de conquistas obtidas pela sociedade, principalmente com o
envolvimento de jovens universitários na política que, nutria-se, de forma mais concreta o
176 Ibidem, 1991, p. 97-8.
82
sonho de poder acabar com a ditadura militar presente no Brasil, redimindo seu povo de todas
as desgraças causadas por ela. Tais projeções eram confirmadas à medida que uma das
organizações da esquerda brasileira, o MR-8 ganhou as eleições da UNE, estando dispostos a
promover ações, ir à luta177, agüentando as conseqüências do que fosse necessário para
libertar e devolver ao país sua vida política normal e autônoma. Algo que é representado pelo
enorme humor-brincalhão de Marcelo Rubens Paiva:
(...) o brasileiro está na sua luta. Por melhores condições de assalto a banco, abaixo os alarmes, mais dinheiro, menos vigilantes. Encoste a arma no gerente e diga: ---- Eu não quero te machucar, só quero a grana do teu patrão. Depois, venha gastar conosco da classe média, num barzinho da Henrique Schaumann, compre um Passat, vista um belo jeans, paquere uma mina d’Augusta, sente-se e tome umas e outras conosco. Quem sabe até fumaremos um?178
Assim, o Brasil embora tivesse sua história política arranhada pelos efeitos nocivos da
ditadura, apresentava agora, graças à força de mobilização dos diversos extratos sociais, uma
tremenda vitória que tem que ser muito comemorada, pois a reconquista de um Brasil
democrático foi fruto de um processo lento e penoso que ceifou a vida de milhares de pessoas.
Mas com a abertura no pais da Transamazônica, o passado trágico do Brasil, assim como o
de Marcelo, eram fatos que aconteceram, mas que ficavam como marcas e referencias de um
período que a população brasileira não desejava esquecer, mas que não voltasse a manchar
sua história. Dessa forma, a “história dos anos 60/70 é recontada por seus personagens”179.
Permanecia a crença de que o Brasil possui uma saída, uma escada com muitos
degraus pra subir e iniciar sua caminhada rumo a independência política, social e econômica
definitiva, não tendo que ficar novamente submetido às experiências e aos desmandos de
alguns imbecis que apenas por vestirem fardas e usarem armas acreditavam ser os donos do
Brasil. Com tudo isso, percebe-se que a história de uma geração, de um povo e,
principalmente, de um país, não é apagada simplesmente pela eliminação de todos aqueles
que se opuseram ao regime militar, pois não é matando um corpo, que se elimina um homem.
177 O historiador Jacob gorender em debate promovido pela Folha de São Paulo, observa que “aqueles jovens entravam numa luta em que eles jogavam a própria vida, e muitos morreram nessa luta. Então, não podemos deixar de ver que havia uma nobreza na atitude deles”. SOUSA, Josias de. Os anos de chumbo. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 ags. 1996. p. 6. 178 PAIVA, 1982, P. 166. 179HOLLANDA, Heloisa Buarque de. & GONÇALVES, Marcos A. Cultura e Participação nos anos 60. São Paulo. Brasiliense. 1982, p. 99.
83
As lembranças, as histórias e as memórias de milhares de pessoas, como também a de Rubens
Paiva está viva em muitas pessoas; como também nas mais variadas obras que se constituem
como a “iconografia dos oprimidos”180.
180 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1998, p. 328.
84
CONSIDERAÇÕES FINAIS Marcelo Rubens Paiva através de FAV, nos propicia perceber a história tumultuada de
uma geração de jovens que sofreram diretamente os efeitos de uma ditadura. Ao utilizar-se de
uma linguagem simples e inovadora, características de uma “escrita cotidiana”, o autor
consegue revelar acontecimentos marcantes dos porões da ditadura e tratar das angustias e
dos problemas enfrentados por milhares de famílias brasileiras, representadas por estudantes,
professores, artistas, políticos e etc, na luta pela construção de uma sociedade livre e mais
justa.
Ao utilizar-se da memória181 como fio condutor de sua trama literária e histórica,
Marcelo Rubens Paiva consegue trazer as memórias autobiográficas que remetem repressão
política na década de 70, levada a cabo pela ditadura dos governos militares, assim como de
aspectos da vida dos estudantes e do movimento estudantil universitário, do momento cultural
dos anos de abertura do regime militar e da anistia concedida aos presos políticos.
Por meio da descrição de passagens referentes aos seus dramas pessoais: o acidente e a
morte do pai, o deputado Rubens Paiva, e das festas, sexo, republica, maconha, música,
meninas sem sutiã, etc; Marcelo Rubens Paiva consegue representar a sociedade brasileira de
forma geral, e a juventude universitária do final dos anos 70 e início dos anos 80 de maneira
específica, revelando suas principais idéias, posturas, práticas182 e habitus culturais. Com
isso, o autor, em FAV, deixa-nos um testemunho brilhante sobre um período histórico
marcante para a história cultural e política do Brasil – A Abertura, o fim do Regime Militar
pós-64 no pais.
O Texto de Marcelo é um espelho do próprio autor, é a sua maneira de ser, como
pondera Travassos no próprio prefácio de FAV. Assim, ao reportarmos a uma obra literária
como a de Marcelo Rubens Paiva, começamos a reconhecer e valorizar as “obras que os
nossos cidadãos escreveram, compuseram, filmaram, pintaram, esculpiram, encenaram”183,
181 Aqui entendida como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, Ed. Unicamp, 1990, p. 423. 182 SILVEIRA, Rodrigo da. Práticas Culturais e o Imaginário Político em Feliz Ano Velho de Marcelo Rubens Paiva. Catalão, UFG, monografia, 2001. 183NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira: utopia e massificação (1950 – 1980) São Paulo. Editora Contexto, 2001, p. 129.
85
como formas excepcionais de expressar e manifestar as variadas gamas culturais que
permeam a nossa sociedade.
Ao adentrarmos no universo criativo de Marcelo Rubens Paiva presente em FAV ,
percebemos como um jovem escritor, marcado por tragédias individuais consegue se manter
vivo e muito lúcido para narrar e revelar as histórias de uma geração, de um período e de um
país que teve sua trajetória política e cultural alterada pelos efeitos de uma ditadura militar de
64.
Percorrer os caminhos trilhados por Marcelo Rubens Paiva ao longo de FAV, é
enxergar como a história se constitui em um espaço constante de disputas, onde
representações, imaginários e memórias são dimensões de um conflito empregado para
resguardar ao futuro determinadas visões do presente e do passado, referentes às lembranças
de um determinado período histórico.
Com isso, recuperar estas lembranças negadas, silenciadas, através do texto artístico-
literário184 de Marcelo Rubens Paiva, conduz o historiador, em um esforço de
interdisciplinaridade, à busca das intencionalidades e interesses presentes por trás de tais
representações construídas pelo autor, a partir de um texto que é historicamente elaborado e
que proporciona o acesso a uma visão que subverte e altera nossa concepção. Assim, a
obrigação do historiador é de interpretar e decifrar as construções presentes nesse testemunho,
procurando reconstruir as várias propostas, idéias e posicionamentos que ficaram pelos
caminhos da História. Assim, FAV é dessas
(...) obras engajadas porque se [pretende], sim, [a] denúncia social; porque são contestação e crítica ao autoritarismo e à brutalidade que assombraram o país a partir de 1964; porque se [propõe] mesmo a ser documento do horror. Um documento que se estabelece não como análise dos jogos do poder ou descrição de torturas, mas como acolhida à dor de suas vítimas, como espaço onde a história dos vencidos continua se fazendo, lugar onde a memória resguardada para exemplo e vergonha das gerações futuras185.
184Regina Dalcastagnè, “Em 21 anos de ditadura foram tantos os mortos, os torturados e os humilhados que faltaria espaço onde refugiar toda sua dor. A memória, terreno tão propício, é demasiadamente instável para semelhantes horrores. Talvez por isso os homens tenham inventado a arte. Picasso abrigou o grito de pavor de uma cidade espanhola em sua Guernica,os anos se passaram, mas o grito continua lá, ecoando diante de nossos olhos. No Brasil, foram os escritores que entalharam esse espaço acolhedor. É nos romances que vamos reencontrar, com maior intensidade, o desespero daqueles que foram massacrados por acreditarem que podiam fazer alguma coisa pela história do país”, IN: DALCASTAGNE, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília, UnB, 1996, p. 15. 185 Ibidem, 1996, p. 25.
86
O livro FAV é espaço onde Marcelo Rubens Paiva rompe com as limitações impostas
pela vida e as limitações impostas pelo silêncio construído durante o regime militar. Dessa
forma, FAV é a “prova” que os “famosos anos do autoritarismo tiveram conseqüências
múltiplas na vida brasileira”. Assim sendo, FAV nasce
(...) de situações limite decisivas: primeiro, o acidente do pai, depois o acidente que tirou os movimentos de seu corpo. Seu livro foi escrito, em conseqüência, com desarmada sinceridade, isto é, o segredo mais íntimo da arte estava à sua disposição. Os fatos são, portanto, narrados com uma simplicidade exemplar. A humildade diante da vida imprescindível é evidente. Dificilmente, por isso, se poderia pensar num livro mais fluente, mais fácil de ler. Eu, por exemplo, li Feliz Ano Velho de uma única vez. Comecei na primeira página e só larguei o livro algumas horas depois, na última frase. Pode-se dizer que o brasileiro se sente bem, ao ler essas páginas pois elas resgatam nosso próprio passado num nível existencial, afetivo, concreto, o nível da experiência direta. Um livro desses só podia vender só tudo a que ele tinha direito186.
186MACIEL, Luis Carlos. Feliz Ano Velho. O retorno à sinceridade num tempo de mentiras. LEIA, jan. 1985.
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A obra literária:
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2.2 Fontes secundárias
Jornais e Revistas:
ABRAMO, Bia. “Feliz Ano Velho: livro fez juventude dos 80 acontecer”. Folha de São
Paulo. São Paulo, segunda- feira, 1, dez. 1997. 5º Caderno, p. 3. Ilustrada.
MACIEL, Luis Carlos. Feliz Ano Velho. O retorno à sinceridade num tempo de mentiras.
LEIA, jan. 1985.
PAIVA, Marcelo Rubens. Chumbo Grosso. Caros Amigos – As Grandes entrevistas 4, maio.
2001, p. 13 – 19.
REZENDE, Marcelo. “Feliz Ano Velho” chega à adolescência. Folha de São Paulo. 1-12 –
1997, p. 1, caderno 5.
SOUZA, Josias de. Os anos de chumbo. Folha de São Paulo. São Paulo, 25 agos. 1996, p. 5-
7.
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