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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
TRAFICANTES GRÁVIDAS NO BANCO DOS RÉUS: UMA ANALISE
CRÍTICA DO CONTROLE PENAL SOBRE MULHERES EM SITUAÇÃO DE
MATERNIDADE NO RIO DE JANEIRO
Aline Pancieri/a1
Luciana Boiteux/a2
Resumo: O presente trabalho pretende estudar o controle penal sobre as mulheres grávidas
acusadas de tráfico pelo sistema de justiça, a partir da mudança nos processos de criminalização
feminina no Brasil, que se relacionam a um contexto socioeconômico marcado pela divisão sexual
do trabalho e a feminização da pobreza. Neste sentido, a adoção de uma política de drogas
proibicionista e extremamente repressiva resultou no elevado aumento do encarceramento de
mulheres pobres e majoritariamente negras pelo crime de tráfico, o que, percentualmente, chega a
ultrapassar o crescimento do encarceramento masculino pelo mesmo delito como revela o último
relatório do DEPEN de 2014. A partir de uma articulação interdisciplinar entre a criminologia
crítica – autores como Baratta, Del Olmo, e Vera Andrade, e a perspectiva feminista interseccional,
privilegiando o feminismo negro de Angela Davis, objetiva-se analisar como o sistema de justiça
criminal reproduz o androcentrismo nas decisões judiciais em processos criminais que envolvem
mulheres grávidas pelo crime de tráfico de drogas. Por meio do estudo qualitativo sócio jurídico da
situação das presas grávidas recolhidas na Unidade Materno Infantil do Rio de Janeiro, em junho do
ano de 2016, busca-se estudar como as funções ocultas do sistema de justiça criminal colocam a
mulher em um lugar passivo, assujeitado, e sem direitos, a fim de controlar seu corpo, sua
sexualidade, sua reprodução e seu direito ao exercício da maternidade.
Palavras-chave: Encarceramento Feminino. Tráfico de Drogas. Maternidade no cárcere.
Na última década, verificou-se o aumento do encarceramento feminino em toda a América
Latina, sobretudo em razão da política criminal de guerra às drogas, como indicam Chernicharo
(2014) e Boiteux (2011). No Brasil, dados do Departamento Penitenciário Nacional apontam para
um crescimento da população carcerária feminina de 567% entre os anos de 2000 e 2014,
crescimento este que, percentualmente, supera o masculino, o qual foi de 267% no mesmo período
(Depen, 2014).
O maior encarceramento das mulheres em nosso país, em consonância com o marco latino
americano, está estritamente relacionado à política de drogas proibicionista e repressiva, que
obedece a uma lógica violadora de garantias individuais e de princípios constitucionais, como a
1Mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas, na linha Direitos Humanos Sociedade e Arte (UFRJ) e pesquisadora do
Laboratório de Direitos Humanos (LADIH) da UFRJ, vinculada ao “Grupo de Pesquisas Drogas e Direitos Humanos”. 2Doutora em Direito Penal (USP/2006). Professora associada I, em dedicação exclusiva, de Direito Penal e
Criminologia da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa nível 2 do CNPQ,
coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas e Direitos Humanos da mesma Instituição e pesquisadora
associada ao Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ e Professora do Corpo Permanente do PPGD/UFRJ.
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presunção de inocência e a proporcionalidade das penas, dentre outros. De maneira geral, o
recrudescimento das leis e de sua aplicação pelo Poder Judiciário pode ser verificado nesse aumento
do número de presos e de presas, que tem como base o discurso do traficante como inimigo público
e alvo preferencial do sistema penal (Boiteux, 2009). Neste sentido, construiu-se a categoria do
inimigo como aquele não-sujeito de direitos, sendo que tal discurso repressivo também parece se
aplicar às mulheres, inclusive as mães e puérperas, quando estas são acusadas sobretudo pelo crime
de tráfico de drogas.
O modelo proibicionista de guerra às drogas vai se servir da ideologia da periculosidade
do(a) traficante de drogas para consolidar o seu discurso e suas práticas autoritárias, dando efetiva
continuidade à tradição brasileira de controle social da pobreza, ao selecionar os mais pobres e
vulneráveis (Boiteux, 2009). Diante desse cenário, o presente artigo pretende analisar o controle
penal sobre as mulheres grávidas ou puérperas acusadas pelo crime de tráfico de drogas, a partir de
um viés crítico. Como o sistema de justiça criminal, especificamente no Rio de Janeiro, perpetua a
invisibilidade das mulheres em situação de maternidade, sobretudo daquelas que respondem pelo
crime de tráfico de drogas? Em que medida o sistema de justiça criminal se revela androcêntrico nas
fundamentações que convertem a prisão em flagrante em prisão cautelar, e que não concedem
medidas cautelares, como a prisão domiciliar?
A análise aqui desenvolvida se dá a partir das decisões interlocutórias de mulheres em
situação de maternidade que se encontravam encarceradas na Unidade Materno Infantil, no mês de
junho de 2016, que totalizavam vinte e três presas na época3. O acesso a estes casos se deu através
da lista oficial com o nome completo das mulheres encarceradas na UMI, solicitada à Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro4. A partir da lista com os nomes completos, foi realizada uma
busca por nome no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, da qual se localizou
vinte e três processos do total das vinte e quatro presas.
A metodologia utilizada é, portanto, a análise de decisões, passando também pelo estudo
de dados e estatísticas oficiais a respeito do tema5. Ressalta-se que privilegiamos o olhar
3 É importante salientar que a escolha por restringir o universo pesquisado à UMI se explica pelo intuito de investigar
somente os casos das presas que deram à luz enquanto estavam dentro do sistema penitenciário. Ademais, salienta-se
que haviam 24 mulheres presas na época, porém não conseguimos encontrar um dos casos pelo site do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 4 O grupo de pesquisa Política de Drogas e Direitos Humanos do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ solicitou à
Defensoria o nome de todas as mulheres que se encontravam presas no sistema penitenciário do Rio de Janeiro, em
junho de 2016, para fins da realização de uma pesquisa. 5O presente artigo tem como base a minha Dissertação de Mestrado, intitulada “Traficantes grávidas no banco dos réus:
um estudo feminista crítico do controle penal sobre mulheres em situação de maternidade no Rio de Janeiro” (2017),
que, por sua vez, possui como fontes de pesquisa a análise de decisões que está sendo parcialmente abordada aqui, além
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qualitativo ao quantitativo, optando mais pelo aprofundamento da análise do que pela
representatividade numérica. Nossa escolha se explica, sobretudo, pelo fato do universo
pesquisado ser em certa medida pequeno, bem como por acreditarmos na riqueza que o método
qualitativo tem a oferecer no estudo dos discursos percebidos nos fundamentos, ou seja, aquilo
que está entre o dito e o não dito.
A análise de dados sobre a realidade prisional é essencial em uma perspectiva crítica por
revelar a atuação concreta do controle penal. Contudo, deve-se destacar que os dados existentes
possuem certos limites a ser considerados: os dados informados pelo Ministério da Justiça do Brasil
demoram a ser atualizados6, e, além disto, a produção de dados em geral é caracterizada pela
insuficiência na inserção da categoria de gênero nas abordagens7.
Esta lacuna revela um paradoxo, pois, se de um lado ela poderia se explicar pelo baixo
número de mulheres presas quando comparadas aos homens- já que representam menos de 7% da
população carcerária total (DEPEN, 2014), de outro lado, exatamente pelo fato de representarem a
minoria, pode-se dizer que seria até mais fácil coletar e compilar os dados referentes às mulheres, o
que não vem ocorrendo, contudo. Além disto, se a preponderância masculina é real, também é
verdade que o número de mulheres presas vem crescendo rapidamente, o que indica a necessidade
de trazer mais atenção a este fenômeno.
O sistema penal pretende ser operacionalizado nos limites da lei de modo a garantir uma
suposta aplicação igualitária aos seus infratores. No entanto, os estudos indicam com clareza que o
sistema penal age de forma discriminatória e seletiva, reproduzindo as opressões contidas nas
próprias relações sociais (Andrade, 2003). A opressões baseadas na discriminação de classe, raça e
também de gênero podem ser observadas no processo de seletividade penal, seja na criminalização
primária, como também na prática do sistema criminal através da criminalização secundária e da
da pesquisa “Mulheres e crianças encarceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da maternidade no
sistema prisional do Rio de Janeiro” (2015) coordenada por Boiteux e Fernandes, e realizada por mim e por
Chernicharo. Além da análise de decisões que ora está sendo empreendida, e que se encontra profundamente elaborada
na dissertação, este artigo também utilizará dados da referida pesquisa.
6 No Brasil, o último relatório informado pelo Departamento Penitenciário Nacional é de 2014, ou seja, há três anos os
dados não são atualizados. Além disto, o próprio relatório do DEPEN ressalta a dificuldade em recolher e compilar as
informações por cada estado, pois em muitos casos os estabelecimentos penais não informam questões específicas. 7 É importante destacar a importância do lançamento do INFOPEN Mulheres em 2015, mas também é necessário
ressaltar as suas lacunas e insuficiências, pois são vários os dados faltantes no relatório, como por exemplo, os dados de
mulheres presas por tráfico por estado; dados sobre o número de filhos das mulheres presas, entre outros pontos.
Segundo o ITTC (2017), continuamos sem um dado realmente confiável no tocante ao número total de mulheres
encarceradas no Brasil, como também em relação ao número de mulheres presas por tráfico de drogas e em prisão
provisória.
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execução penal: ou seja, a lei é desigual para determinados grupos desde a sua criação até a sua
aplicação.
No Brasil, o crime de tráfico de drogas é o que mais encarcera mulheres, constituindo um
total de 68% (Infopen, 2015). Já no tocante ao perfil dessas mulheres, percebe-se uma extrema
vulnerabilidade: a grande maioria possui baixíssima escolaridade (62% não possui nem o ensino
fundamental completo), a maioria é mãe (80%), solteira (57%), e negra (68%) (Infopen, 2015). É
importante enfatizar que o percentual de negras presas supera em muito o número de negros da
população brasileira total, que totaliza 51%, segundo dados do IBGE (Depen, 2014). Deste modo,
deve-se dizer que o racismo é um fator que efetivamente implica na condenação de determinados
indivíduos, e a naturalização da criminalização da população negra demonstra, de maneira oculta,
que o racismo está impregnado nas relações e nas instituições. É neste sentido que Angela Davis diz
que o sistema prisional é um sistema de controle dos corpos negros, e que a luta contra as prisões é
a luta contra a escravidão dos tempos modernos, pois o sistema prisional é estruturalmente racista
(Davis, 2009).
No Rio de Janeiro, por sua vez, tem-se um perfil ainda mais vulnerabilizado das mulheres
encarceradas especificamente em situação de maternidade: 78% são jovens até 27 anos, 82%
solteiras, 75% não possuem sequer o ensino fundamental completo, 85% trabalham sem carteira
assinada, 41% declaradas pardas e 37% negras (Boiteux, Fernandes, Chernicharo, Pancieri, 2015).
Inegavelmente esse perfil deflagra a seletividade do sistema penal, que incide sobre os mais
vulneráveis, indesejáveis, e os consumidores falhos, estereótipos nos quais se inserem as mulheres.
Ademais, tem-se que 70% das presas respondem por crimes relacionados ao tráfico de
drogas, e 73% das mulheres eram presas provisórias (Boiteux, Fernandes, Chernicharo, Pancieri,
2015). Neste sentido, pode-se dizer que o controle penal por meio do sistema prisional se dá em
grande medida pela prisão preventiva, que aparece como a via de regra, sobretudo nos processos
que envolvem o delito de tráfico, e não como exceção, tal como dispõe a Constituição Federal e a
Lei n. 12.403/11.
É exatamente isto que se também se observa a partir da análise das decisões interlocutórias:
do total dos 23 casos8, em 22 deles a prisão foi convertida automaticamente em preventiva. Deste
modo, mesmo nos casos em que se conseguiu a liberdade provisória no curso da instrução, a prisão
8É importante frisar que dos tem-se que do total dos 23 casos analisados, 14 mulheres respondiam por crimes
relacionados ao tráfico, ao passo que as outras 9 foram processadas por crimes contra o patrimônio, sendo 6 delas por
roubo, 2 por furto, e 1 por latrocínio. Ou seja, no universo pesquisado a maior parte das mulheres respondia pelo delito
de tráfico, dado este que segue o padrão nacional já mencionado (Infopen, 2015), bem como o padrão local do Rio de
Janeiro (Boiteux, et. al).
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em flagrante foi inicialmente convertida na prisão cautelar. Em 16 casos as mulheres responderam
ao processo presas preventivamente – ou seja, em apenas 7 casos se conseguiu a liberdade
provisória. O uso da prisão preventiva aparece de forma extremamente banal, funcionando como
uma verdadeira antecipação da pena, não sendo privilegiada a liberdade. A regra é prender antes de
condenar.
Entre as sete mulheres que conseguiram a conversão da prisão preventiva em alguma
medida cautelar dentre elas, a prisão domiciliar, 4 delas respondiam por crimes contra o patrimônio,
e 3 por tráfico. Em contrapartida, tem-se que entre as 16 mulheres que estavam presas
preventivamente, 11 estavam respondendo por tráfico, enquanto que 5 por crimes contra o
patrimônio. Diante disto, pode-se dizer que nos casos que envolvem o delito de tráfico parece ser
mais difícil conseguir a substituição da preventiva por medidas cautelares, indicando uma maior
rigidez por parte dos juízes neste sentido.
As mudanças operadas pelas Lei n. 12.403/11 e 13.257/16 parecem não ser observadas, ao
menos dentro do universo pesquisado. Isto porque a Lei n. 12.403/11, estabelece que a custódia
cautelar é uma medida excepcional, ao elencar diversas outras medidas cautelares alternativas à
prisão preventiva, o que possui respaldo constitucional na presunção de inocência. Neste sentido já
se posicionou o STF, no HC n. 94.1579: a privação cautelar da liberdade somente se legitima
quando existirem razões reais de necessidade, e quanto as medidas cautelares não forem
efetivamente adequadas.
A Lei n. 13.257/16, por sua vez, ampliou as possibilidades da prisão domiciliar, que antes
estavam restritas às gravidas a partir do sétimo mês de gestação, ou em casos de gravidez de risco.
A partir da nova lei, que alterou o conteúdo do artigo 318 do CPP, a prisão domiciliar pode ser
estendida às grávidas a qualquer tempo da gestação, bem como às mães com filhos de até 12 anos
de idade. Desta forma, as medidas cautelares em geral, inclusive a prisão domiciliar, são direitos
das acusadas, devendo sempre ser priorizadas frente à prisão preventiva.
Apesar da existência de tais garantias processuais, no universo pesquisado constatou-se
justamente a inversão da lógica legal, no sentido de que a prisão domiciliar, como as demais
medidas cautelares, não seriam propriamente direitos da mulher em situação de maternidade. Este
posicionamento, apesar de inconstitucional, é o que vigora na maior parte das decisões analisadas, e
se relaciona diretamente à concepção errônea de que cabe à defesa demonstrar que a prisão
9Disponível em: http://www.conjur.com.br/2008-ju 11/privacao_liberdade_medida_excepcional_reafirma_stf. Acesso
em 05/06/17.
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preventiva não se faz necessária. Abaixo segue um trecho de uma decisão que ilustra tal
entendimento:
Indefiro o pedido de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar, acolhendo-se
integralmente a promoção ministerial de fls. 99/102, vez que se encontram mantidos os
pressupostos fáticos e jurídicos que ensejaram a decretação da custódia cautelar da ré às fls.
55/57, aos quais me reporto em sua integralidade, ressaltando-se que a gravidez, por si
só, não é apta a justificar a medida pleiteada, exceto se demonstrado risco à vida da
gestante ou do feto, o que não ocorreu (grifo nosso; processo n. 0007415-
83.2015.8.19.0202).
Em muitos casos, se observa uma fundamentação extremamente questionável no sentido de
que tanto a mãe presa quanto seu filho poderiam ter os cuidados necessários atendidos dentro do
cárcere. Alguns magistrados chegam a afirmar que o “sistema prisional irá oferecer condições para
que a acusada dê a luz ao filho que espera”10, ou ainda que no ambiente prisional não se
vislumbraria “que a acusada esteja sofrendo risco à saúde/integridade física/vida da mesma ou de
seu filho.”11
Tais fundamentações revelam, no mínimo, uma desconexão dos magistrados com a
realidade do sistema prisional, pois o uso do cárcere como mecanismo que pode vir a assegurar
qualquer tipo de direito ou garantia ao exercício da maternidade é infactível. Permitir que grávidas
deem à luz encarceradas significa consentir em que uma série de violações em suas vidas de fato
aconteçam, já que toda gravidez no cárcere é uma gravidez de risco, sendo o cárcere um local
violador de direitos por essência, neste caso não só à mulher, como também ao bebê, implicando em
inúmeros problemas de saúde física e psicológica para ambos (ITTC, 2016)12.
Deve-se dar destaque ainda a uma decisão emblemática, que fundamentou a não concessão
da prisão domiciliar no fato da acusada já estar próxima de dar à luz, o que, na visão do magistrado,
justificaria a custódia cautelar. É patente o desrespeito à presunção de inocência e aos marcos
legais já destacados. Nos termos da decisão:
Deixo de conceder a prisão domiciliar por entender não ser a mais indicada para o
crime em questão, sendo certo que a acusada já se encontra próxima de dar à
luz e o que justificaria a concessão seria sua condição de gestante (processo n.
0072427-51.2015.8.19.0038)
10 Trecho retirado da decisão interlocutória referente ao processo n. 0003287-63.2015.8.19.0026. 11 Trecho retirado da decisão interlocutória referente ao processo n. 0015956-11.2015.8.19.0007. 12 Disponível em: http://ittc.org.br/toda-gravidez-na-prisao-e-uma-gravidez-de-risco/ Acesso em 04/05/17.
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Além disso, deve-se destacar que em muitos casos a situação de maternidade das acusadas
não é sequer mencionada, ou ainda, aludida apenas no final da instrução, após aguardarem pelo
julgamento presas durante todo o processo. Neste sentido, realizou-se uma busca em todas as
decisões interlocutórias e sentenças dos processos pelas palavras “gestante”, “gestação”,
“grávida”, “maternidade”, “mãe”, “bebê”, “prisão domiliciliar”, “artigo 318”, e verificou-se
que em 7 dos 23 casos nada se fala a respeito da gestação, ao passo que em 5 dos 23 casos a questão
é apenas suscitada no momento da sentença.
Frente a isto, pode-se dizer que nestes processos, que correspondem a boa parte dos casos
analisados, as mulheres tiveram o seu direito de responder ao processo em liberdade, bem como o
seu direito às medidas cautelares alternativas à prisão preventiva, decididos sem se considerar, ao
menos expressamente, a situação específica de maternidade em que se encontravam. Assim, diante
do que não é dito nas decisões interlocutórias, pode-se perceber não só um aspecto androcêntrico no
julgamento de tais mulheres - pois são julgadas de forma genérica, como se existisse apenas um
sexo, mas também a perpetuação da sua invisibilidade, uma vez que não se consideram as
especificidades da condição de grávidas ou puérperas.
Por conseguinte, também se notam graves problemas no que se refere à falta de
fundamentação apta a explicar concretamente a necessidade da prisão preventiva. Em muitos casos
a prisão preventiva se fundamenta através de conjecturas e de critérios genéricos: utilizam-se
palavras indicadas na lei processual penal, não se apontando concretamente a situação específica da
acusada que corresponda ao requisito, como se dá no caso da “garantia da ordem pública”, que se
percebe no caso abaixo:
Não se pode ignorar que a segregação provisória, no caso concreto, deverá subsistir como
forma de garantir a ordem pública, haja vista a periculosidade presumida do agente
infrator, a manifesta gravidade do crime supostamente praticado e a necessidade de
tutelar o bem jurídico ameaçado com a continuidade do comércio de drogas ilícitas,
impedindo, assim, a disseminação da prática deletéria e extremamente nociva ao meio
social. (grifo nosso; processo n. 0003287-63.2015.8.19.0026)
O caso fala ainda em “periculosidade presumida” como fundamento da prisão cautelar. Com
esse tipo de argumento, toda e qualquer situação de flagrante já justificativa a prisão preventiva,
pois se presume a culpa e se coloca a prisão preventiva como forma de impedir a continuidade do
crime.
Neste sentido, Aury Lopes e Alexandre Moraes da Rosa (2015) afirmam que estas cláusulas
genéricas, e toda a imprecisão e indeterminação decorrente delas, são muito convenientes na
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manutenção e na ampliação dos poderes discricionários do julgador, a fim de atender as crescentes e
inesgotáveis demandas punitivas13.
A conversão da preventiva baseada no fundamento da gravidade do delito, outro critério
apontado pela decisão acima transcrita, também entra neste viés, e muitas vezes está diretamente
conectada com a repercussão social negativa que possui o crime – que no caso do delito de tráfico
se funda na construção social (operada sobretudo pela mídia) da ideologia da periculosidade do
traficante de drogas. A mídia constrói todo o clamor público e a repercussão social negativa do
crime, o que é posteriormente utilizado como pressuposto da prisão cautelar (Lopes e Rosa, 2015)14.
De fato, a periculosidade do traficante de drogas e a gravidade do delito de tráfico são os
elementos que mais aparecem nas fundamentações que negam o relaxamento da preventiva: a
periculosidade é mencionada 4 do total dos 14 casos de tráfico, e a gravidade do delito de tráfico em
6. O traficante de drogas é presumidamente perigoso, e a mulher traficante grávida também, como
se vê neste trecho destacado de um caso: “ante a periculosidade social das acusadas e a
preservada, configurando-se, desta forma o periculum libertatis necessário à manutenção da
preventiva.”15
Abaixo segue mais um exemplo da abordagem que se faz sobre o crime de tráfico como o
grande responsável pela calamidade social, e do uso abstrato da categoria da periculosidade para se
referir de maneira genérica e homogênea a figura do traficante de drogas. A mulher é aderida por tal
homogeneidade, e não se leva em consideração as peculiaridades do seu caso, nem o fato de
estarem grávidas.
Consigne-se que, em circunstâncias como as narradas nos autos, a ordem pública deve ser
resguardada. Como sabido por todos, é público e notório que o crime de tráfico ilícito de
entorpecentes se mostra como o mais veemente elemento catalisador da violência
social, da desagregação familiar e fragilização do Estado. Nas comunidades onde atua,
dissemina o medo, o terror e a opressão. Ressalte-se que a indiciada já responde, neste
juízo, pelo crime de tráfico. Assim (...) converto a prisão em flagrante do indiciado em
prisão preventiva (processo n. 0004478-13.2015.8.19.0037).
Este caso é um dos poucos em se pode perceber um claro aspecto moralista na decisão, que
se relaciona com a condição de gênero da mulher grávida: o juiz fundamenta a necessidade da
prisão cautelar no risco de desagregação familiar que a liberdade da acusada poderia causar. Neste
13 Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-
prisao-preventiva . Acesso em 04/06/17. 14 Disponível em http://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-
prisao-preventiva . Acesso em 04/06/17. 15 Trecho da decisão interlocutória do processo n. 0007873-31.2015.8.19.0063.
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sentido, pode-se dizer que o fato da mulher em situação de maternidade ser “criminosa”, não estar
em casa cuidando dos filhos, e, portanto, romper com os papéis sociais a ela impostos, revela uma
severidade na aplicação da lei penal. A mulher nestas condições é considerada perigosa, e causadora
de “desagregação familiar” já que não está no seu lugar passivo, como deveria. Na verdade, o maior
fator de desagregação familiar nesse caso parece ser o próprio encarceramento antecipado, que
separa famílias, e não o crime em si.
Zaffaroni ressalta que o conceito da periculosidade utilizado como critério para qualificar a
cautelar, provém do positivismo e da “individualização ôntica do inimigo” (2011, p. 110). Para ele,
na medida em que se trata alguém como algo meramente perigoso e que necessita imediatamente de
contenção, retira-se o seu caráter de pessoa. É exatamente sob a perspectiva de que as mulheres
acusadas de tráfico são tidas como perigosas, ainda que grávidas, e que se dá o seu assujeitamento.
A prisão preventiva é utilizada como um instrumento para lutar contra a “delinquência” e pela
neutralização da periculosidade, funcionando comumente como uma pena antecipada, o que
contraria a sua própria natureza. O problema é que o nível de periculosidade do(a) inimigo(a) não
tem limites, sendo tais “limites” estabelecidos por quem exerce o poder, ou seja, pelo julgador, a
depender diretamente do seu juízo de valor e da sua subjetividade.
O inimigo da ordem é o traficante de drogas, o não-sujeito de direitos, sendo a mulher
grávida aderida por este estereótipo, como se percebe nas decisões analisadas. Neste sentido, pode-
se dizer que o ranço etiológico é alto nos julgados, e a contenção da periculosidade por meio da
custódia cautelar se funda na “ideologia da defesa social” (Baratta, 2002), em que a criminalidade
se equipara à “violência individual de uma minoria perigosa de sujeitos e um conceito de pena de
prisão alicerçado na ideologia do tratamento do criminoso” (Andrade, 2009, p. 4).
O crime de tráfico de drogas, tal como está disposto na lei, é o delito que permite maior
abertura a arbitrariedades, que se iniciam na abordagem policial e vão até a maneira pela qual os
juízes decidem. O controle penal sobre as mulheres se dá nesta seara, em meio a discursos
extremamente moralistas, que se baseiam, sobretudo, no fundamento da periculosidade do traficante
de drogas, e na gravidade do delito de tráfico, através de uma abordagem androcêntrica, que não
leva em consideração as complexidades que envolvem a mulher em situação de maternidade. Deste
modo, percebe-se que cada vez mais o controle penal formal vem operando sobre a mulher, em
paralelo ao controle informal, mas com objetivos comuns, no sentido da sua manutenção em um
lugar secundário, passivo e calado.
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De fato, os crimes cometidos pelas mulheres grávidas não guardam em si tanta violência,
mas a realidade que as conduz até o cometimento desses delitos é, por sua vez, extremamente
violenta, o que é ocultado pela abstração da lei e pela enorme vagueza dos critérios pelos quais são
julgadas, sobretudo no que se refere a manutenção da prisão preventiva. A maneira pela qual os
magistrados decidem sobre a manutenção da prisão preventiva apenas perpetua a violência que é
uma constante em suas vidas.
Considerações Finais
A análise dos casos sugere a constatação de que a condição específica de gravidez da mulher
não é devidamente considerada pelos juízes. Isto se deve não só pelo entendimento dominante de
que a gravidez por si só não é apta a determinar a concessão da prisão domiciliar, ou de outra
medida cautelar, como também pelo fato da questão não ser suscitada ao longo do processo em
muitos casos, ou mencionada apenas no momento da sentença.
Deste modo, pode-se dizer que muitas vezes é através do que se omite nos julgados que se
perpetua a invisibilidade da mulher pelo sistema de justiça criminal, como também o
androcentrismo na aplicação da lei penal. Isto porque as especificidades da mulher em situação de
maternidade não são sequer mencionadas em muitos casos, somado à utilização do argumento da
periculosidade do traficante de drogas para demonstrar, de maneira abstrata e vaga, a necessidade
de manter as mulheres grávidas encarceradas.
Aqui não queremos dizer que o juiz deveria olhar para a mulher como um sujeito frágil ou
incapaz, mas sim como alguém que está vivenciando a situação específica da maternidade, o que a
coloca em um lugar distinto dos homens. Neste sentido, o machismo pode ser percebido uma vez
que as mulheres em situação de maternidade possuem certos direitos positivados devido à sua
condição, como é o caso da prisão domiciliar, e ainda que poucos, tais direitos são sistematicamente
desrespeitados, gerando um apenamento ainda mais severo delas, que passa por violações de
direitos humanos e riscos reais à sua vida e de seu filho.
Referências
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Pregnant dealers in the dock: a critical feminist study on the control of pregnant women in
Rio de Janeiro.
Astract: This paper aims to study the criminal control of pregnant women accused of trafficking
through the justice system, based on the change in the processes of female criminalization in Brazil,
which are related to a socioeconomic context marked by the sexual division of labor and the
feminization of poverty. In this sense, the adoption of a prohibitionist and extremely repressive drug
policy has resulted in a high increase in the imprisonment of poor and mostly black women for the
crime of trafficking, which, as a percentage of the population, surpasses the increase in male
imprisonment for the same crime - DEPEN's latest report of 2014. From an interdisciplinary
articulation between critical criminology - authors such as Baratta, Del Olmo, and Vera Andrade,
and the intersectional feminist perspective, favoring the black feminism of Angela Davis, aims to
analyze how the system Of criminal justice reproduces androcentrism in judicial decisions in
criminal cases involving pregnant women for the crime of drug trafficking. Through a qualitative
and socio-juridical study of the situation of pregnant prey collected at the Maternal and Child Unit
of Rio de Janeiro in June 2016, it is sought to study how the hidden functions of the criminal justice
system place women in a passive place, and without rights, in order to control their body, their
sexuality, their reproduction and their right to the exercise motherhood.
Keywords: Female Incarceration. Drug Trafficking. Maternity in Prision.