TRABALHOS
DE LUTO
algumas postagens do blog
(https://trabalhosdeluto.wordpress.com/)
Renan Nuernberger
TALVEZ UM VERSO
ALGUM ALENTO EM MEIO À LAMA
UM MINUTO PRO COMERCIAL
(1) quando ouvi, pela primeira vez, A Banda +
Bonita da Cidade, me lembrei de uma velha canção
da coca-cola
(2) lembrando da canção, lembrei que o primeiro
slogan da coca-cola em português foi criado pelo
poeta Fernando Pessoa (“Primeiro estranha-se,
depois entranha-se”)
(3) lembrando do slogan de Fernando Pessoa,
lembrei de um meu poema publicado no Almanaque
Lobisomem (o que, afinal, não deixa de ser
autopromoção)(4) ALMANAQUE LOBISOMEM
(5) SOL, SLOGAN
gostaria de comprar
uma coca para
o mundo. primeiro
estranha-se mas é
isso aí, uma
coca-cola como
phármakos: uma pausa
que refresca a mera
metade de nada que
chamamos vida.
overdose, urso polar,
santa claus, cherry
coke. depois
entranha-se mais e
essa é a real,
coca-cola como
phármakos: viva o que
é bom, poeta só
porrada, o sol doura
sem literatura.
(6) vale dizer que o título saiu da tradução que
Augusto de Campos fez de um poema de
Maiakovski: “gente é pra brilhar/ que tudo mais vá
pro inferno/ esse é meu slogan/ e do sol”
(7) que o poeta só porrada saiu de “O poeta nocaute”
de Murilo Mendes
(8) que todo resto saiu da coca-cola e/ou do
Fernando Pessoa, ponto
FALSO BANDEIRA
Anteontem, fui dormir inquieto e tive um sonho
curioso. Não reconheço os detalhes, mas lembro que
Manuel Bandeira iria fazer uma declaração pública
sobre a atual situação política do país. Os senadores
todos estavam animados, esperando que o poeta
atacasse veementemente o governo, e sorriam em
suas cadeiras, ansiosos pela fala. Bandeira, muito
velho, com a cara fechada, marcada por fundas
rugas, iniciou um discurso raivoso – do qual pouco
me recordo –, que tinha uma espécie de refrão com
três adjetivos enumerados (algo como “quem, nesta
casa, se acovarda é vil, infame e nefasto”).
O discurso, tão fora do esperado, causou um mal-
estar tremendo dentro da instituição que, naquele
momento, abrigava o grande artista. Com isso, a
cena foi desaparecendo – primeiro o poeta, depois as
cadeiras, as gravatas, os próprios senadores e, por
fim, o sorriso de alguns que, mesmo contrariados
com a “traição” daquela fala, mantinham-se firmes
para as câmeras – e agora eu lia, com entusiasmo,
que um pesquisador havia descoberto um suposto
poema inédito de Bandeira[1], escrito no fim da vida
(entre 1965 e 67).
Acordei com o poema na cabeça e corri para
registrá-lo no papel. Nesse processo, obviamente,
alguma coisa se perdeu – mas o que restou, apesar
de tudo, agora existe:
ÚLTIMO ANÚNCIO
A vida, que não vivi,
apagou-me cada passo
tortuoso nas calçadas,
nas filas dos mercados,
nas pontes que não cruzei.
Sobraram leves pegadas
no carpete de meu quarto:
.....................................que esse produto ignaro
....................................seja bom, belo e barato.
Da condição dos homens,
absortos em grandes planos,
não quis as negociatas,
jantares com cavalões.
Dessa canalha retive
somente o mudo alarido
de feroz agitação:
....................................que esse produto inato
....................................seja belo, barato e bom.
Que na hora derradeira
haja ritmo, haja intento
para as últimas palavras
anunciadas aos íntimos
que ainda me restarão.
Depois, em pleno silêncio,
quedarei – só – sem anelo:
....................................que esse produto lato
...................................seja bom, barato e belo.
Dei uma olhada na Estrela da Vida Inteira e não
encontrei nenhuma variação destes versos. Alguém
poderia dizer que, para um bom leitor, está claro que
este poema não é propriamente bandeiriano. Ora, de
fato não é: “Último anúncio” é, quando muito,
minha releitura sonhada de Manuel Bandeira, em
face dos mais recentes acontecimentos.
[1] A referência aqui – percebi acordado – é a
descoberta de Mayra de Souza Fontebasso
daqueles três poemas de juventude de Carlos
Drummond, publicados na revista Raça, na década
de 1920.
“O MUNDO É DE QUEM FAZ”
Encontrei um antigo rascunho – de seis anos atrás!
– na gaveta virtual (é impressionante, pois há um
poema em Luto que parece um desenvolvimento
consequente disso):
O risco a giz no pátio, milimetricamente medido,
quadrado por quadrado por quadrado por. Todo
mundo é uma ilha, é o que dizem, mas sou um istmo.
Só uma mulher desempregada, cigarro borrado com
batom, por insubordinação mental. Três dias antes
da aprovação das novas leis trabalhistas!
Expulsaram-me sem indenização, aqueles escrotos.
Quer saber? Estou de saco cheio desta merda. Eu
avisei, eu avisei, eu… Ora, Poderia ser casada com
um velho milionário. Terrorista, eu poderia ser. No
verão, gosto de abrir bastante a janela e ficar
chupando manga debruçada sobre a pia da cozinha
(chupo todos os fiapos e lambo o caroço liso)
sonhando com o inesperado. Descontando o
embaraço de morar de favor e não ter mais
dinheiro, até que gozo a vida. As garotas me
adoram, carrego camisinhas na bolsa e as distribuo
em momentos decisivos. Risco a giz no pátio,
quadrado por quadrado por. Amanhã sairá o
resultado do exame. Estou esperando por esta vaga
a muito tempo;(positivo) e deu.
CONTRA A PRESSA, MAIS PRESSSA
Embora seja muito ansioso, demoro muito tempo
para escrever um livro. Esboço poemas, dúzias
deles, e são esses primeiros esboços que determinam
o trajeto que o livro percorrerá. Todavia, na maioria
dos casos, essas pequenas peças desaparecem aos
poucos e o livro vai tomando outra feição, que só
muito remotamente se assemelha ao que eu
inicialmente pretendia.
Mesmo poemas, que publiquei em 2010, começou a
ser escrito em 2001 e seu título original era Alguma
(outra) poesia. A pretensão adolescente do título era
reforçada pelos quase 100 poemas que formavam a
obra, dos quais nenhum sobreviveu (não tenho
apego aos meus escritos antigos: jogo fora tudo o
que não resistiu à prova do tempo). Em 2005,
ansioso para publicá-lo, tinha o livro por encerrado
e cheguei a disponibilizá-lo em pdf, com capa de
minha própria autoria (uma referência pueril à capa
da primeira revista Klaxon, filtrada pelo senso
geométrico da poesia concreta).
Dos amigos, o único que talvez tenha visto esse
“livro” foi Eduardo Lacerda, hoje editor da Patuá.
Por intermédio dele, publiquei um poema,
“Copyleft”, no jornal O Casulo, em 2006, o mesmo
ano em que entrei na faculdade de Letras, na USP.
Nesse momento, além de conhecer pessoas
incríveis, com as quais mantenho alegre contato,
ampliei bastante minha leitura de poesia (sobretudo
de poesia contemporânea) e logo percebi que
aquele Alguma (outra) poesia era um bom caderno
de exercícios, mas ainda não era o livro que eu
queria.
Assim, de 2005 a 2010, degluti o que havia de
essencial em meus primeiros textos e foi tomando
forma aquilo que seria o Mesmo poemas, projeto
pelo qual também recebi uma bolsa ProAC (na
época, para publicação, que seria feita pelo Selo
Sebastião Grifo, de Paulo Ferraz).
Com o livro de estreia no prelo, aguardando seu
lançamento, já trabalhava apressadamente em
poemas que, para mim, dariam corpo ao próximo
livro – esse Luto, aqui em aberto. Claro que o título
era outro (foram vários outros!) e, mais uma vez,
esses primeiros esboços foram limados da atual
edição. Posso dizer, aliás, que de 2010 a 2012 não
escrevi nada que realmente me agrade agora, mas sei
que esses exercícios foram essenciais para chegar a
este Luto.
Há ainda um detalhe que aproxima a confecção dos
meus dois livros: definidas as molduras e a estrutura
geral da obra, entro num surto de criação e escrevo
uma série de poemas que se encaixariam
perfeitamente dentro dessa estrutura. É como um
quebra-cabeças que, após concluído, revela toda sua
lógica – o que permite ao jogador reorganizá-lo,
incluir novas peças, substituir elementos acessórios,
concentrar ou expandir suas margens…
Nesse sentido, para mim, o livro nunca se encerra
totalmente – poderia ser sempre alterado, ainda que
em pequenos detalhes, sem ser contido numa forma
“definitiva”. Por outro lado, por ser ansioso, tenho
pressa em fixar sua imagem e é sempre um drama
interno estabelecer esse ponto fixo, que será o livro.
Um livro assim é apenas um momento, limitado no
tempo/espaço, da saturação de expectativas,
potencialmente inesgotáveis, que o orbitam. Sua
existência física (mesmo em formatos digitais)
determina um recorte mínimo no enorme horizonte
de pretensões daquilo que um conjunto de poemas
pode ser. Essa faceta visível, aparentemente imóvel,
não estanca, porém, toda fluidez da matéria
subjacente que também a constitui.
MORRE FERREIRA GULLAR
1.
ontem fizemos as pazes:
eu e seu retrato (descanso
……………………. de tela),
eu e sua camisa (papel
de parede), eu
e sua ausência (pijamas, relógios).
nenhum marulho em voz alta
rompeu a placidez de domingo
– na paulista, dizem,
a multidão
…………… aderia à festa da
…………………. democracia.
você, por acaso, não.
sem caos nos cabelos,
sem entusiasmo,
sua morte surgiu
como um fato qualquer nos jornais:
morre o poeta
………… ferreira gullar, morre josé
ribamar ferreira,
………….. morre goulart,
morre o autor do poema
……………….. enterrado,
morre o ditador
fidel castro
(“dentro da noite veloz”), morre
o debate sobre oswald
…………… de andrade,
morre,
morre oswald de andrade,
morre o colunista
da folha de são paulo,
morre o autor
do poema sujo,
…….. morre a manhã,
……….. morre a tarde,
morre a primavera
de 2016, morre t. s. eliot,
morre a terra, devastada,
morre (um último suspiro),
morre (tiro de fuzil),
morre (o Sol, a flor do chico),
morremorre,
morre um cisco do século vinte,
morre um crítico de arte
como morre qualquer um
a qualquer hora.
2.
ontem fizemos as pazes:
sua múmia e eu-embalsamado.
sua obra, porém,
mantém-se arisca
…………. (circulação
……………do poema
sem poeta: forma autônoma
de toda circunstância)
e me enfrenta
e me derruba
com seus coices, seus incêndios, suas aftas
e também com seu silêncio –
uma pera apodrecendo na varanda.
no coração do diagrama,
diagrama de palavras,
– galo, fogo, gente, luta –,
ainda há sangue, zumbidos na noite,
alguém que diz não, golpes de estado,
muito vermelho, muito azul, muito verde
e no
fundo
turvo
do
torve-
linho
velhos signos que borbulham
– joia, mar, erva, lembro –.