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TORRÃO DO ALENTEJO: Arqueologia, História e Patrimó nio Volume 2

Colecção - Elementos para a História do Município de Alcácer do Sal, nº 4 http://www.cm-

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Torrão do Alentejo:

Arqueologia, História e Património

Volume 2

António Rafael Carvalho

Edição Conjunta (on-Line)

Junta de Freguesia do Torrão

Câmara Municipal de Alcácer do Sal

Alcácer do Sal, 2009

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FICHA TÉCNICA

Torrão do Alentejo: Arqueologia, História e Património

Volume 2

Edição Conjunta (on-Line) Junta de Freguesia do Torrão

Câmara Municipal de Alcácer do Sal

Edição, 2009.

Autor António Rafael Carvalho

Memórias Paroquiais de 1758, referentes ao Município de Alcácer do Sal Transcrição de:

Carla Macedo

Composição António Rafael Carvalho

Fotos António Rafael Carvalho

Mário Perna

Fotos Antigas do Torrão IGESPAR (Arquivo da ex- DGEMN)

Design da Capa Célia Alexandre

Cartografia Elaborada sobre bases digitais fornecidas por:

João Pires (CMAS) Google Earth 2009

Earth Explorer 5.0, da Motherplanet.com http://www.maps-for-free.com/ sobre base do Google Maps 2009

Desenhos António Rafael Carvalho

(O livro teve que ser dividido em vários volumes, de forma a poder ser inserido em formato digital no site

do Município de Alcácer do Sal)

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Índice:

Capítulo 4

Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão Aspectos da Presença Islâmica no Médio Sado

1. A Primeira Fase…………………………………………………………………………….……………………6 2. A Região nos Séculos XII-XIII:…………………………………………………………………………..…9

2.1. Aspectos Gerais………………………………………………………………………………….…9 2.2. A Análise do Documento Régio de D. Sancho I, a favor da Ordem de Santiago…11

2.2.1 Comentário:……………………………………………………………………………12

3. O Torrão, em contexto Islâmico Tardio…………………………………………………………………15 3.1. As Etapas Finais da Presença Militar Islâmica na Região (1159-1233): Uma

síntese Diacrónica………………………………………………………………………………………………..15 3.1.1. Nota Prévia………………………………………………………………………..….15 3.1.2. (I Fase) Autonomia Politica de Alcácer e o assassinato do seu Soberano

Alī al-Wahībī pelas Elites Locais (1159-1165)………………………………………………….15 3.1.3 (II Fase). A transformação do Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão em Ribāṭ-Muṣalla

Muwaḥḥῑd frente a Évora e Alcácer (1184-1191)……………………………………………..16 3.1.4. (III Fase). Transformação de Alcácer, em Qaṣr-al-Fatḥ e delegação da

chefia do Ṯaghr al-Qaṣr aos Banū Wazīrí. (1191-1212)……………………………………..16 3.1.5. (IV Fase). A Obediência “Nominal” dos Banū Wazῑrí ao soberano

Almóada. (1212-1217)………………………………………………………………………………17 3.1.6 (V Fase). A resistência Islâmica no Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão, entre 1217 e

1233 (?): Provável ascensão a sede militar de âmbito regional, frente aos portugueses instalados em Alcácer e Évora……………………………………………………………………..18

4. A Prática da ŷihād no Torrão……………………………………………………………………….………19

Capítulo 5.

O Torrão: Após a Conquista Cristã de 1233 (!)

1. A Investigação da Historia Local em Contexto Espatário: Limites e Objectivos………………20 2. O Desempenho dos “Cavaleiros de Alcácer” na região: Os seus reflexos no Torrão entre 1218 e 1237………………………………………………………………………………………………………..20

2.1. Enquadramento Geral…………………………………………………………………………..20 2.2. A Inserção Definitiva do Torrão no Reino de Portugal: 1233 (!)………………….…23 2.3. O papel do Torrão na apropriação do Território Islâmico envolvente:……………..27

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Capítulo 6.

Monumentos da Área Urbana do Torrão: 1. Nota prévia………………………………………………………………………………………………..……29 2. Imagens da Região e da Vila do Torrão, nos finais do século XIX e inícios do XX…………………………………………………………………………………………………………………….29

2.1. Segundo Leite de Vasconcelos (1889)……………………………………………………...29 2.2. Um passeio botânico ao Torrão (publicado em 1902)………………………………….31 2.3. Carta do Torrão, publicado no Jornal Pedro Nunes de Alcácer do sal, a 6 de Junho

de 1908……………………………………………………………………………………………………………..32 3. Monumentos da Área Urbana………………………………………………………………………………33 4. Roteiro do Património………………………………………………………………………………………..33

4.1. Património Arqueológico……………………………………………………………………….33 5.1.1. O Castelo do Torrão……………………………………………………………..….33

4.2. O Património Religioso………………………………………………………………………….34 4.2.1. Igreja de Nossa Senhora da Assunção (Antiga Igreja Matriz de Santa

Maria do Torrão) …………………………………………………………………………………….…35 4.2.2. Nossa Srª da Albergaria………………......................................................36 4.2.3. Igreja do Carmo………………………………………………………………..……37 4.2.4. Convento das Freiras Clarissas………………………………………………..…37

1. Introdução……………………………………………………………………….37 2. Breve Nota Histórica sobre a Origem do Convento……………………38 3. Breves Apontamentos Bibliográficos: Anexo documental…………..40

3.1. Nota Prévia: ……………………………………………………….40 3.2. As Freiras……………………………………………………………40

4.2.5. Convento de S. Francisco………………………………………………………….45 4.2.6. Ermidas da Freguesia do Torrão…………………………………………………45

4.2.6.1. O papel das Ermidas no Espaço rural do Torrão……………..…45 4.2.6.2. Ermida de S. João dos Azinhais…………………………………….46 4.2.6.3. Ermida de S Fausto…………………………………………………….47 4.2.6.4. Ermida de N ª S ª do Bom Sucesso…………………………………47 4.2.6.5. Ermida de S. João Nepumoceno……………………………………50

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Capítulo 4

Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão Aspectos da Presença Islâmica no Médio Sado

1. A Primeira Fase.

O topónimo Ṭurruš, usado em contexto islâmico para o actual Torrão, corresponde a uma adaptação fonética da palavra latina Turres, que no decurso da Antiguidade Tardia, é sinónimo de villa romana.

Como já foi anteriormente exposto, este topónimo latino seria atribuído à colina onde vai ser edificado um castelo em contexto islâmico.

Trata-se de um topónimo bastante comum no al-Andalus e de difícil interpretação, porque está sujeita a várias leituras.

Na sequência do que temos vindo a expor ultimamente, defendemos a hipótese de este “turrus” corresponder a uma ocupação tardo romana de vocação agrícola e que também daria apoio à via romana, antes de esta atravessar a ponte do Xarrama.

Tendo em conta a escassez de ocupação romana dentro da área urbana do Torrão, o melhor candidato a Turrus, poderá ser a villa romana existente na área da Fonte Santa, no qual o Penedo Minhoto, localizado a algumas centenas de metros, poderia corresponder à sua necrópole!

O período islâmico no Torrão, continua a ser um capítulo ainda por escrever. Os únicos dados disponíveis, permitem uma leitura para a fase final do século

VII, ainda em contexto Visigótico, nas vésperas da conquista islâmica. Nos séculos seguintes reina o silêncio documental; e só a partir do século XII, voltamos a ter alguns elementos, coincidindo estes com a afirmação do poder Almóada neste território, em disputa com o Reino de Portugal.

As reservas do museu municipal de Alcácer possuem um fragmento de cerâmica a torno lento e de pastas locais proveniente do Castelo do Torrão.

Apesar de se tratar de uma cerâmica descontextualizada e aparentemente única até ao momento, corresponde a uma forma aberta que apresenta paralelos com formas coevas exumadas em contextos emirais de Alcácer do Sal e Palmela.1

Apesar deste indício importante, a realidade é que entre o ano 700 e 1184, o silêncio documental parece ser quase total, o que permite sugerir o seguinte cenário:

1 As maiores diferenças encontradas na cerâmica do Torrão, corresponde à pasta, sugerindo um fabrico local, onde é patente elementos não plásticos de grão médio e grosseiro típico das areias locais resultantes da erosão do substrato rochoso do Paleozóico. Os parelelos identificados em Alcácer do Sal (inédito) e Palmela, correspondem a formas abertas similares, contudo paresentam uma menor espessura de parede e de capacidade interna. As pastas também são diferentes, utilizando as areias da bacia Terciária do Sado.

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- Defendemos a hipótese de que terá existido uma presença humana neste

espaço, desde o início do período islâmico, século VIII, em moldes e ritmos de apropriação do território que nos escapam.

Admitimos que o Torrão terá sido, no Período Romano e durante a Islamização,

o “centro administrativo deste território”, contudo são necessários mais elementos de análise, para além do topónimo e de uma ponte romana, que não deixou indiferentes as comunidades que ao longo dos séculos, por aqui ficaram.

Só em contexto medieval português, por volta de 1249, é que a Vila do Torrão emerge da documentação, como sede de município, emancipado de Alcácer, após atribuição de uma Carta de Foral, que entretanto desapareceu.2.

Trata-se de uma situação similar com o que se passou com Santiago do Cacém. Em ambos os casos, estamos perante um padrão que não nos parece ser

coincidência, mas antes, ser resultado de uma linha de acção por parte da Ordem de Santiago, que necessita de ser aprofundado, que escapa dos objectivos deste livro; mas que pode ser equacionado deste modo:

- Até que ponto, a ausência de documentação já anteriormente referida, traduz

ou não, ausência de povoamento ou “vazio administrativo”. A nível regional, exemplos não nos faltam; podemos mencionar a título de

exemplo, o caso paradigmático de Palmela3, assim como Montemor-o-Novo em contexto Almóada.4

Pelo exposto, torna-se claro que é fundamental analisar toda a documentação disponível, associada a um conhecimento adequado do território em estudo, porque felizmente a análise arqueológica não se resume unicamente a fragmentos de cerâmicas ou de estruturas!

Perante o exposto, parece-nos claro que o estudo da presença islâmica no Torrão, terá que seguir uma metodologia semelhante.

Em termos geográficos, o Torrão localiza-se quase a meio caminho entre três cidades importantes do Garb al-Andalus:

- Al-Qasr/Alcácer, Évora e Beja. O acesso a estas medinas, ou entre elas, só podia ser efectuado por via

terrestre. Este facto “incentivava” uma permanência humana no Torrão, para “apoio

viário” e servir os interesses políticos das medinas vizinhas. Segundo as fontes, o poder instalado nas principais urbes do Garb “não olhava”

com simpatia os “nómadas”, islamizados ou talvez não, que deambulavam por esta região e que depreciativamente eram apelidados de berberes.

2 Segundo a tradição, terá sido atribuído por um Mestre da Ordem de Santiago. 3 O castelo só é referido nas fontes muçulmanas e portuguesas em meados do século XII, contudo as escavações arqueológicas no seu interior, demonstraram a sua existência, desde meados do século VIII. Pensamos que é num quadro semelhante a este, que devemos olhar para o Torrão. 4 Pela leitura do território avançamos em 2000, no I Encontro Internacional sobre Castelos/Palmela, que os castelos de Palmela e Montemor-o-Novo teriam que ter guarnições almóadas para apoiar a base militar instalada em Alcácer. Na altura em que apresentamos esta hipótese, não existia nenhuma documentação arqueológica que fundamentasse essa leitura, por isso tivemos que nos apoiar na leitura do território, em sintonia com algumas fontes que nos falam da postura militar islâmica. Só em 2003/4 é que apareceram as primeiras cerâmicas almóadas nesses dois castelos, confirmando as hipóteses anteriormente formuladas.

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Sobre esta questão é interessante analisar o relato que chegou até nós do ataque de Ordonho a Évora, onde a dado passo é referido a preocupação por parte da elite política de Badajoz, sobre uma medina de Évora em ruínas, mas que poderia vir a ser ocupada por bandos de berberes ostis, que regularmente “circulam” pelo Alentejo.

Outro dado interessante que nos parece interessante constatar, é o aparente desinteresse dos Banu Danis instalados em Alcácer, em anexar Évora, quando esta ficou despovoada.

A iniciativa de recuperar Évora, coube unicamente ao soberano de Badajoz, que deste modo pode instalar um aliado nesta cidade e reforçar a aliança que tinham com os alcacerenses.

Após uma fase aparentemente estável durante o Período Califal, ao longo do século X, nos inícios do século XI, esta região regressou novamente à instabilidade política, que irá afectar “gravemente”a estrutura económica e demográfica de toda esta área.

Nesta fase, o Torrão localizava-se na “linha de fronteira” que foi estabelecida entre os dois reinos de Taifas mais importantes do Garb; - Sevilha e Badajoz.

Os vários autores muçulmanos que “laconicamente” referem esta zona, são unânimes em frisarem a enorme insegurança que então se vivia.

Segundo Ibn Idari5 (p. 1667-168) “Conflitos de los primeiros aftasíes: En el 421/1030 hubo conflictos y guerras entre Isma´il bn di-l-Wizaratayn Abi-l-

Qasim el qadi con Ibn al-Aftas. El sevillano pidió ayuda a Ibn ´Abd Allah al-Birzali,

5 Citado por Pérez Alvarez, 1992, Fuentes Árabes de Extremadura, p. 166-170. Mantivemos o texto original em espanhol.

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sahid de Carmona, centro de la fitna, y este cerco a Ibn al-Aftas en Baya (Beja), le mato a muchos hombres e hizo prisionero al hijo de Ibn al-Aftas y lo encarceló. Llegó esta algazúa de Ibn al-Aftas hasta el limite... 6

(p. 169) “Y de las cosas sabidas de memoria está que al-Mu´tadid continuó la

guerra con Ibn al-Aftas en los meses del año 442/1050-51 y que conquisto gran número de castillos que unió a su ´amal, los fortifico con sus hombres; destruyó sus amplas edificaciones, arraso sus cosechas y arrebato su ganado. No fue capaz al-Muzaffar de defenderse un solo palmo y se refugio en Badajoz, de donde no salió ni un solo caballero. Al quejarse de su situación a sus aliados no encontro ningún partidário ni defensor. Cuando concluyó al-Mu´tadid el sometimiento de su território, decidió volver a Sevilla en sawwal de ese año.7

É provável que a estabilidade só chegue de uma forma clara após 1094, quando os Almorávidas anexam a Taifa Aftássida de Badajoz ao seu império e criam uma região administrativa de fronteira denominada al-Qasr, com sede em Alcácer do Sal.

Os períodos de “paz” em termos documentais, coincidem quase sempre com vazios de informação, dado que a quase totalidade dos relatos conhecidos só descrevem actos bélicos.

Mais uma vez, a região do Torrão regressa ao seu “longo silêncio”.

2. A Região nos Séculos XII-XIII: 2.1. Aspectos Gerais.

Após 1145, o Emirato Almorávida em crise, entra em colapso e acelera o desvio de tropas para o Magreb onde luta pela sua “sobrevivência” fase à revolta Almóada.

No al-Andalus, perante um “vazio” da autoridade Almorávida e o emergir de movimentos de natureza sufista, eclodem várias revoltas cujos reflexos terão chegado a esta região.

O vazio de “valores e de legalidade de natureza política”, criam gradualmente um grande desconforto no campo islâmico, agravando-se ainda mais, face a um avanço cristão para sul que parece imparável.

6 O texto é claro em afirmar que a guerra entre as duas taifas terá sido violenta no Baixo Alentejo. Estava em causa a posse da cidade de Beja. A norte estendiam-se os domínios dos Aftássidas de Badajoz e para Sul, em progressão para Norte, expandiam-se os Abádidas de Sevilha. O choque foi inevitável. Não sabemos o que terá acontecido no Torrão. Teoricamente e com base no que temos defendido desde algum tempo, o Torrão faria parte da “Taifa de Alcácer”. O eclodir da guerra violenta entre esta duas taifas, obrigará os Alcacerenses a optarem por um dos reinos. Terão sido anexados por Sevilha por algum tempo, contudo durante grande parte do século XII, farão parte do território Taifa de Badajoz. 7 Descontando os naturais exageros das crónicas, o que nos parece interessante valorizar neste texto são os seguintes aspectos: 1 – O âmbito geográfico do conflito, que parece coincidir com o Baixo Alentejo entre o Torrão e Beja, e o sul da Estremadura espanhola 2 – Estamos perante um território povoado, semeado de fortalezas, que garante o controle territorial e “expressão do poder” de cada um dos beligerantes. 3 – A base económica parece concentrar-se na criação de gado e na agricultura. 4 – Apesar de existir a figura do soberano, este depende das alianças de “senhores locais”, instalados em castelos e que atentos às conjunturas políticas, poderiam oscilar as suas lealdades! O Torrão poderia ser um desses casos, dada a sua situação de fronteira entre estas duas taifas.

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Face a esta conjuntura, o campo muçulmano fragmenta-se e as “lealdades” são estabelecidas com os “Senhores da Guerra”, sejam eles cristãos ou muçulmanos, dissidentes ou não8.

É nesta fase que em 1158, os alcacerenses sunitas, liderados por Ali Whahibi solicitam protecção militar a D. Afonso Henriques, para não serem anexados ao Califado Magrebino dos Almóadas.9

Mais uma vez, a localização do Torrão, numa zona de fronteira de “áreas de influência”, entre Évora, Alcácer e Beja, impede-nos de aferir em que realidade política se encontrava inserida.

Tendo em conta o papel de “esvaziamento gradual” que a medina de Beja vai sofrendo desde o Período Califal, como pólo militar, cultural e administrativo, não nos surpreende que a passagem dessas funções seja assumida pelas “elites” instaladas em praças militares mais fortes, como seriam os casos de Évora ou Alcácer.

Por outro lado, não nos podemos esquecer que Alcácer em contexto Almorávida, assumiu durante anos, a chefia militar da Fronteira do Garb, dominando um vastíssimo território que em termos de hierarquia lhe devia obediência, desde as praias da Comporta até aos primeiros picos nevados da Sierra de Gredos, na vizinhança da actual Comunidade Autónoma de Madrid.

É certo que esse poder Alcacerense repousava quase todo nas mãos do corpo militarizado almorávida, em indivíduos de etnia saariana e exteriores às redes familiares locais.

Por serem estranhos à região e para poderem controlar um espaço amplo, que engloba partes importantes do actual Alentejo e da vizinha Estremadura Espanhola, tendo em conta as dificuldades de deslocação na época, é provável que o representante do poder almorávida instalado em al-Qasr, tenha escolhido algumas cidades e castelos para a delegação de funções, instalando nesses postos chaves, homens da sua confiança, quase sempre de origem magrebina e saariana.

Este mecanismo de gestão, permitiria articular de forma adequada a informação”sensível” e a colecta de recursos necessários para a manutenção do aparelho militar e dar alguma segurança ao desenvolvimento económico.10

Apesar do tamanho desmedido do espaço geográfico à responsabilidade de Alcácer, esta cidade possuía igualmente num raio de acção mais limitado, um espaço económico específico, que geria de forma directa. Admitimos que esse território coincidisse com a bacia do Médio e Baixo Sado, incluindo naturalmente o Torrão.

Na realidade, seria errado para o poder muçulmano, não prestar atenção a este castelo do Xarrama.

Não é só a questão estratégica desta praça-forte num âmbito mais regional que contava, localizado entre duas cidades da bacia do Sado11, mas sim aproveitar os seus recursos naturais, as florestas, a circulação fluvial, os seus campos férteis, propício à criação de gado, que naturalmente e mesmo em clima de economia de guerra, permitiria a manutenção de “rotas comerciais”.

Aceitando a hipótese de que existe uma presença humana no Torrão que transita do Período Romano para a Fase Islâmica logo após a conquista efectuada no século VIII; - que “presença humana” terão as tropas portuguesas encontrado neste território no decurso dos séculos XII e XIII?

8 Apesar da distância cronológica, dos actores serem diferentes e de reportarem a realidades geográficas completamente distintas, o ambiente das II Taifas, apresenta alguns pontos de semelhança com o actual Afeganistão. 9 Sobre esta questão, consultar o nosso trabalho, Carvalho, 2008, Alcácer do sal, disponível em PDF no site do município de Alcácer. 10 Sobre esta questão, consultar o nosso trabalho, Carvalho, A Rafael (2008) ALCÁCER DO SAL DO SAL NO FINAL DO PERIODO ISLÂMICO (SÉCULOS XII-XIII): Novos Elementos sobre a 1ª Conquista Portuguesa. Colecção Digital - Elementos para a História do Município de Alcácer do Sal, Nº 1. 11 Alcácer, base naval, porto natural do Alentejo e Évora, centro de cultura e base militar importante.

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A chancelaria de D. Sancho I possui um documento muito interessante que poderá lançar alguma luz sobre esta questão. 2.2. A Análise do Documento Régio de D. Sancho I, a favor da Ordem de Santiago.

O documento foi emitido a 28 de Outubro de 1186.12.

1186 Outubro 28 – Doação dos Castelos de Alcácer, Palmela, Almada e Arruda, com seus termos, a Sancho Fernandes, mestre da milícia da Ordem de Santiago, e aos seus

sucessores. In Dei nomine. Quoniam morum assiduitate et legis sanctione didicimus quod

acta uirorum bonorum scripto commendari debeant ut commendata ab hominum memoria non decidant et omnibus pretérita presentialiter consistant, iccirco ego Santius Dei gratia Portugalensium rex magni regis domni alfonsi et regine domne Mahalde filius, una cum uxore meã Regina domna Sanctia, facio cartam donationis et firmitudinis perpetue uobis domno Sactio Frenandi, Dei gratie Milicie Sancti Iacobi magistro, et fratribus uestris presentibus et futuris de illis méis castellis, scilicet lcazar, Palmela, Almadana et Arruda. Damus itaque uobis atque concedimus prenomonata castella cum omnibus suis terminis nouis et ueteribus in Honoré Dei et Beati Iacobi apostoli ut uos et omnes uestri Ordinis successores ea et quicquid in eis ad ius regale pernet iure hereditário habeatis et perpetuo possideatis tali uidelicet condicione ut mihi et filiis méis et nostris successoribus cum eis obediendo seruatis...

Delimitação do Termo de Alcácer. In primo per lombum de serra de Alcazouis quomodo ferit in Exarramam et

ultra Exarramam per lombum quomodo uadit ad capita de Seuerena et de ipsis capitibus quomodo ferit charnecha in monasterium quod iacet in ripa de Odiuelas et ultra Odiuelas sicut uadit directe ad forcadas de Alfondom et de ipsis forcadas quomodo uadit directe ad Alualadi et de Alualadi quomodo uadit lombum inter Coronam et Benetolat usque ad cerrum de Monte Acuto et per aquam que descendit de Monte Acuto usque ad maré. Et de predictis Alcazouis sicut uadit directe ad fontem de Chiriana et inde sicut uadit directe ad serram de Arloch et sicut uadit de ipsa serra ad Rengiam et Rengia ad cimalias de Campo Maiori et inde quomodo ferit cerrum in Caniam...

Et termini de Palmela iuntent se cum terminis de Alcazar et de Almadana.

12 Documentos de D. Sancho I (1174-1211) Vol I. Transcrição de Rui de Azevedo, P. Avelino de Jesus da Costa e Marcelino Pereira, 1979, doc. Nº 14, p. 22-24.

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2.2.1. Comentário:

Tendo em conta que a documentação administrativa muçulmana simplesmente “desapareceu”13, a documentação cristã coeva desta fase, reveste-se de um valor inestimável.

Antes de passarmos à sua análise, convem termos presente os seguintes aspectos:

1. Relativo desconhecimento geográfico do território conquistado, procurando-

se apoio nas populações conquistadas, de modo a apreenderem os enquadramentos administrativos dos espaço conquistados. Mesmo em tempo de guerra, é importante manter os antigos “circuitos económicos” e a hierarquia do povoamento.

2. Desconhecimento das Línguas Árabe e Berbere, o que provocará adaptação

ou transformação da toponímia pré-existente por parte dos novos falantes de raiz latina.14

É óbvio que a documentação cristã, neste caso a portuguesa, não está

interessada em reproduzir a realidade do território islâmico que vai sendo anexado por conquista, porque o destinatário não é a população muçulmana e muito menos as suas elites; daí o carácter lacónico que geralmente encontramos neste tipo de informação.

Os objectivos, que incentivaram a produção deste tipo documental, podem ter objectivos díspares entre si:

- Por um lado, permitem de uma forma clara, reforçar o papel do rei, como

senhor “legítimo do espaço conquistado”, tendo como testemunha Deus, os Apóstolos e a sua “corte”.

- Deste modo e para “memória futura”, o novo território começava a ser

retalhado e distribuído aos grupos de interesse, consoante o interesse político do momento.

Apesar de estar investido com o papel político de rei, a este é-lhe impossível

gerir o reino sem aliados! No presente caso a quem se destina o documento e que informação nos pode

revelar? Este documento é uma “prova pública” que D. Sancho I utiliza para legitimar e

continuar a vontade de seu pai, D. Afonso Henriques, no agraciamento à Ordem de Santiago, criando-lhe uma base territorial, para a continuação da conquista para sul.

Mas até que ponto este documento é fiel testemunho da realidade política vivida na altura em que foi regida?

Uma questão que raramente tem sido equacionada por historiadores é determinar o tempo que é necessário para elaborar um determinado tipo de documento; para o verter em suporte escrito e ter força legítima perante os destinatários. Vejamos o que está em causa na maior parte das vezes:

13 Facto que também aconteceu no país vizinho. 14 Sobre a importância da toponímia para compreender o território e como “fonte histórica”, é interessante a reflexão de Roldán Castro, 2004, El Paisaje Andalusi: Realidad Histórica y Construccion Cultural, p. 33.: “ La toponímia expresa igualmente el reconocimiento del médio, la valoración del entorno y, debido a su persistência en el tiempo, la fuerza de la memoria histórica. Nombrar un lugar e identificarlo con ciertos rasgos naturales de características notables o singulares no es sino interpretar el paisaje, sentir e interiorizar dicha realidad física.”.

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- Identificar a questão a legislar. Consultar as partes entre si. Determinar se a

redação acordada merece ser apresentada ao soberano para futura apreciação. Em caso afirmativo, solicitar audiência ao rei para colocar a questão e o sensibilizar para a necessidade de legislar sobre o assunto. Em caso de aprovação, o rei com os seus conselheiros e face à sua agenda, deverá escolher uma data para omulgação do documento. Deve igualmente escolher e convocar os subditos que reúnam as garantias adequadas para figurarem como testemunhas. Por fim, escolher o local e a data em que todas estas condicionantes estejam reunidas e obviamente o funcionário régio para o redigir.

O documento em análise encontra-se datado de 1186, mas a questão que fica é

determinar o tempo que foi necessário, desde a percepção da necessidade de o elaborar, até à sua versão final.

Terão demorado meses ou anos? Na realidade nada sabemos! Em contrapartida e como anteriormente foi referido, apesar do desastre

almóada de 1184, ter-se-á assistido da parte portuguesa, a um retrocesso territorial, devido não só à conquista do Torrão pelos unitários, como provavelmente à consolidação das forças beligerantes islâmicas localizadas imediatamente a sul e que se estendiam até à costa Atlântica.

Certos documentos são como certas leis: - São elaboradas quando surgem dúvidas ou é necessário resolver problemas.

Numa época em que as fronteiras são bastante “volúveis”, a sua fixação em documentação escrita, é uma garantia “para o futuro”, de que permanecerão intactas, quando vierem “melhores dias”.

É neste “contexto” que incluímos este documento. Por isso importa chamarmos

a atenção para alguns aspectos, que importa comentar: 1 – Elemento anómalo - A datado. Outubro (28) de 1186. Convêm relembrar novamente a conjuntura política da época. Segundo os dados disponíveis, sabemos que a primeira conquista portuguesa

de Alcácer data de 1160.15 Entre 1160 e 1164, Alcácer comporta-se como um enclave português em

espaço islâmico. Carência de meios militares e humanos, que contribuem para um “desinteresse”

em ocupar o espaço rural, pouco contribuem para mudar este panorama, porque o saque do território islâmico é mais estimulante em termos económicos.

Um bom exemplo é o saque de Beja efectuado em 1162, numa acção comandada por Fernão Gonçalves e apoiada por “cavaleiros-vilões” de Coimbra e Santarém. A cidade será pouco depois abandonada.16

Contudo, por uma questão estratégica em relação à cidade de Lisboa, os castelos da Arrábida (Palmela, Coina e Sesimbra) são conquistados em 1164 e pouco sabemos como terá sido efectuada essa conquista, porque mais uma vez, as fontes são lacónicas e pouco claras.

15 Sobre esta questão consultar o nosso trabalho sobre Alcácer no Final do Período Islâmico (2008), que é o Nº 1 desta colecção em formato PDF. (ver nota seguinte) 16 Carvalho, 2008. Alcácer no Final do Período Islâmico (Séculos XII-XIII): Novos elementos sobre a 1ª Conquista Portuguesa, Colecção on-Line – Elementos para a História de Alcácer, nº 1, p. 27.

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Pouco depois chega a vez da cidade de Évora, por iniciativa “particular” de Geraldo sem Pavor, que pouco depois a “vende” ao rei.

O que verificamos é que entre 1160 e 1165, a iniciativa parece repousar em “milícias populares” e a “ventureiros”, que em busca de pilhagem, contribuem para dilatar”de “forma informal”, o Reino de Portugal.

Este estado de coisas parece continuar nos anos seguintes. O poder almóada pouco faz e quando reage, poucos resultados práticos terá obtido. Por vezes, obtêm mais vantagem estratégica, nas tréguas celebradas entre os beligerantes. É o que acontece com a trégua de 5 anos celebrada em 1174, que conduzirá à entrega pelos portugueses, das “ruínas” da cidade de Beja ao poder almóada, que prontamente investe na sua recuperação.

Mas os almóadas não desistem de recuperar Alcácer e após o final das tréguas os combates são retomados.

É de aceitar como hipótese, que desde 1160 e até meados de 1180, a influência e raio de acção dos portugueses instalados em Alcácer, consigam progressivamente alcançar um “reconhecimento” do seu domínio territorial até Alvalade e à foz do rio Mira, estabelecendo as “bases futuras” do território a atribuir à Ordem de Santiago, debaixo do domínio Alcacerense.

Em 1170, D. Afonso Henriques emite uma Carta de Foral para protecção da comunidade mourisca de Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer. Curiosamente a comunidade mudéjar de Évora não é referida.

O desastre almóada de 1184 frente a Santarém vai provavelmente alterar o quadro político da região e o comportamento entre os beligerantes.

Avançamos a hipótese de ter sido na sequência deste “fatalidade” para os almóadas, que se dá a conquista do Hisn Turrus/Torrão até então na posse portuguesa.

É curiosamente após o episódio de Santarém que se assiste à emissão de nova documentação régia, desta vez para favorecer a fixação de população cristã a sul do Tejo, no eixo que vai de Palmela a Évora, passado por Alcácer.

Terá existido um Foral atribuído a Alcácer, em data anterior a 1185, referido no Foral de Palmela e que se perdeu entretanto.

Um ano depois é emitido o presente documento. Se pusermos como hipótese de trabalho, que a conquista almóada do castelo

do Torrão, vai criar um ponto avançado muçulmano entre Alcácer e Évora, parece-nos natural que o território a sul do Torrão e anteriormente sob a influencia portuguesa, passe de facto para a esfera muçulmana.

É neste novo contexto político que vemos a necessidade de emitir este documento:

- O que se procura, é transmitir um documento que legitime futuramente a

inserção do território, que vai desde o Torrão até à foz do rio Mira, de novo para o património da Ordem de Santiago, quando for efectuada a sua recuperação por conquista. Impedia-se deste modo o acesso da Ordem de Avis à costa Atlântica, reservando-se espaços de influência e de direito de conquista, no actual Alentejo.

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3. O Torrão, em contexto Islâmico Tardio

3.1. As Etapas Finais da Presença Militar Islâmica na Região (1159-1235): Uma síntese Diacrónica. 3.1.1. Nota Prévia

Como já tivemos ocasião de expor em linhas gerais; O Baixo e o Médio Sado ter-se-ão transformado nos Séculos XII-XIII, num espaço de fronteira móvel, entre portugueses e muçulmanos.

Uma recuperação detalhada da resenha política da região, tendo como base uma documentação a todos os títulos, lacónica, é possível, apesar da existência de muitas décadas e anos em “Silêncio Documental”!

De forma a sistematizar toda a informação já anteriormente exposta e clarear os objectivos que terão dado ânimo a ambos os beligerantes, foi possível isolar as seguintes fases:

3.1.2. (I Fase) Autonomia Politica de Alcácer e o assassinato do seu Soberano Alī al-Wahībī pelas Elites Locais (1159-1165).

Postura do Califado após o assassinato: Provavelmente apanhado de surpresa, o aparelho militar Almóada sem capacidade para enviar tropas em número adequado ás necessidades, prefere efectuar uma delegação de poder em Alcácer, que terá sido assumido pela elite local.

Esta governará a medina alguns meses, até esta ter sido conquistada pelos portugueses em 1160.

Avançamos a hipótese de ter existido duas facções antagónicas, que terão dividido a elite muçulmana de Alcácer antes de 1160:

- A primeira, aceitava a soberania Almóada e procurava pôr em prática sua reforma religiosa.

- A outra, seria favorável à situação ulterior de autonomia politica e religiosa sunita, pagando uma “paria” ao reino de Portugal.

Apesar de ter vencido a primeira facção, a rápida resposta de D. Afonso Henriques que conquista a cidade em 1160, contando unicamente com as suas tropas numa situação de desvantagem em relação a anteriores tentativas, terá resultado se pusermos a hipótese de ter havido ajuda por parte desta facção contrária aos Almóadas.

Nos castelos da Arrábida e no Torrão (!), as guarnições locais de obediência Almóada mantêm-se até 1164, até serem expulsas por tropas portuguesas.

Objectivo do Reino de Portugal: - Após a 1ª conquista de Alcácer em 1160,

o aparelho militar português começa a desgastar as guarnições islâmicas instaladas nos castelos da serra da Arrábida.

De notar que entre 1160 e 1186, ou seja, nos 26 anos seguintes, Alcácer estaria na dependência directa do soberano português. A passagem de todo este território para a jurisdição da Ordem de Santiago, testemunhada em forma de documento régio da chancelaria de D. Sancho I, só ocorrerá em 1186, dois anos após a derrota Almóada frente a Santarém, o que não deixa de ser um paradoxo.

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Porquê este receio português, referente à necessidade de reforçar a defesa de uma região, frente a um inimigo que teoricamente se encontra enfraquecido?

Pensamos que parte da resposta poderá estar na conquista almóada do Torrão e construção da sua muṣalla.

Documentação Arqueológica: Parece-nos natural que a região tivesse

abandonado o sistema monetário da Taifa Wazīrí de Évora e aderisse ao sistema monetário Almóada. Em relação às cerâmicas de uso quotidiano, é provável que as séries que definem claramente a Fase Almóada, como são as produções estampilhadas provenientes da Andaluzia Ocidental, ainda não circulassem nesta região!

3.1.3 (II Fase). A transformação do Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão em Ribāṭ-Muṣalla Muwaḥḥῑd frente a Évora e Alcácer (1184-1191)

Acontecimentos políticos: Teve início com a derrota almóada de Santarém em 1184. É conquistado o castelo do Torrão para reforço da cidade de Beja recuperada dez anos antes, em 1174 e erguida uma muṣalla em memória do Califa Abū Ya´qūb Yūsuf I .

Ya´qūb assume nominalmente o poder no Torrão, apoiado pelos seus aliados, mas decide formalizar a sua investidura em Marraquexe. Entre 1184 e 1191 a fronteira ter-se-á mantido estável.

Objectivo Almóada: Criação de um espaço sagrado ligado aos muwaḥḥῑd. Fomentar a Guerra santa. Aumentar a defesa de Beja e criar uma zona de desgaste contra os portugueses instalados em Évora e Alcácer. Efectuar operações de espionagem militar. Impedir o avanço cristão para Sul.

Resposta Portuguesa: Escolha de Alcácer para sede do ramo português da

Ordem de Santiago. Criação em Évora da Ordem dos Cavaleiros de Évora, futura Ordem de Avis, filiada em Calatrava.

Documentação Arqueológica: Provável entrada de algumas cerâmicas de

“matriz” almóada no Médio Sado. Circulação plena do sistema monetário dos Unitários.

3.1.4. (III Fase). Transformação de Alcácer, em Qaṣr-al-Fatḥ e delegação da chefia do Ṯaghr al-Qaṣr aos Banū Wazīrí. (1191-1212)

Estratégia Almóada: Reforço do Sistema defensivo Alcacerense. Transformação da medina em base naval, tornando-a única no Āarb Atlântico a Norte de Silves, adequada para a ŷihād Marítima, contra Portugal. Os portugueses, na voz do Bispo de Lisboa, D. Soeiro (1217), consideravam esta actividade como simples pirataria, que os atormenta regularmente.

Resposta Portuguesa: Celebração de 4 anos de Tréguas entre D. Sancho I e al-Manṣūr, que permite a instalação de guarnições muçulmanas nos castelos da Arrábida. O castelo de Palmela centraliza os assuntos militares da fronteira frente a Lisboa e vigilância da costa, na dependência directa de Alcácer.

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O castelo do Torrão é reforçado para fazer frente a Évora, ficando na dependência de Alcácer. Uma questão em aberto é o enquadramento do castelo do Alvito. Admitimos como hipótese de trabalho, que terá ficado na dependência directa do Torrão.

O aparecimento de cerâmica estampilhada almóada no Castelo de Montemor-o-Novo, em 2003, com “Mãos de Fátima, associados a motivos florais, alusivos ao Paraíso”, assim como de uma roca em osso, é um indicador de uma presença militar muwaḥḥīd, provavelmente composta de voluntários, dando reforço à hipótese formulada no ano 200017, defendida numa altura em ainda não existia nenhuma documentação arqueológica muçulmana conhecida nesse castelo.

Documentação Arqueológica: Programa de obras militares e religiosas em Alcácer e no Torrão, com extensão provável, mas de natureza modesta, para os castelos de Palmela, Sesimbra, Alvito (?) e Montemor-o-Novo.

Circulação plena das cerâmicas de uso quotidiano, de matriz almóada, tanto as proveniente de Sevilha ou Ceuta, como as de fabrico local, segundo as novas tipologias, adaptando-as aos gostos e necessidades locais.

Integração plena do Médio e Baixo Sado na linha defensiva almóada. Presumimos alguma autonomia de recursos, numa “Económia de Guerra”. Abertura do estuário do Sado e navegação no Atlântico, para facilitar o

abastecimento estratégico de Alcácer18 e redistribuição de bens para as principais praças militares19.

Se para fazer frente aos reinos de Portugal e Leão, os almóadas criam as bases militares de Alcácer, Badajoz e Cáceres, é admissível que Beja e provavelmente Moura, fiquem debaixo da jurisdição militar alcacerense.

3.1.5. (IV Fase). A Obediência “Nominal” dos Banū Wazῑrí ao soberano Almóada. (1212-1217)

Se em termos formais a “obediência” alcacerense ao Califado Almóada é mantida para manter a jurisdição Wazῑri numa postura legalizada perante a Umma do Ṯaghr; na realidade a elite alcacerense gere a sua “Agenda Militar” como pode, no seio da crise da desagregação da estrutura imperial Magrebina no al-Andalus, numa postura de autonomia na decisão política/estratégia militar.

Resposta Portuguesa: Após o final das tréguas, entre 1194 e 1199, a Ordem

de Santiago começa a ocupar os castelos da serra da Arrábida. Pouco depois é recuperado o castelo de Montemor-o-Novo, que recebe Carta de Foral em 1201.

A linha de fronteira estabiliza-se numa área a norte de Alcácer, durante 17 anos, provavelmente utilizando o curso da ribeira da Marateca como limite entre os beligerantes, desde o Canal de Águas de Moura até Évora, passando pela Marateca,

17 Paixão, Faria e Carvalho, 2001 PAIXÃO, A Cavaleiro; FARIA, J. Carlos e CARVALHO, A Rafael, (2002) ASPECTOS DA PRESENÇA ALMÓADA EM ALCÁCER (PORTUGAL) Mil anos de Fortificações na Península Ibérica e no Magreb. (500-1500): Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos – Palmela. p. 369-383, Colibri e C M Palmela. 18 O califa determina pessoalmente em Alcácer que a medina deve ser regularmente abastecida pelos armazéns estatais de Ceuta e Sevilha. Paixão, Faria e Carvalho, 2001, Ob. Cit, p. 19 Esta questão foi abordada por nós em 2001. Paixão, Faria e Carvalho, Ob. Cit, p.

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Cabrela e ao longo das cumeadas da serra de Monfurado/Escoural, pré configurando os limites futuros de influência territorial entre as referidas praças-fortes.

3.1.6 (V Fase). A resistência Islâmica no Ḥiṣn Ṭurruš/Torrão, entre 1217 e 1230 (?): Provável ascensão a sede militar de âmbito regional, frente aos portugueses instalados em Alcácer e Évora.

A conquista de Alcácer em 1217 não implicou automaticamente a conquista dos castelos debaixo da sua jurisdição. Um caso paradigmático é sem dúvida o Torrão.

É provável que a sua conquista tenha sido objecto de registo, de forma a garantir a sua posse dentro do espaço de jurisdição de Alcácer e da Ordem de Santiago, contudo essa documentação terá “desaparecido”(!); ou então, não havia interesse em mencionar tal facto!20

Na realidade, não sabemos em que data terá ocorrido e de que forma se terá processado, mas podemos sugerir uma data provável!

A sua inclusão no termo de Alcácer e a sua manutenção na esfera da Ordem de Santiago, em concorrência com o espaço de expansão natural da Ordem de Avis com uma base em Évora, permite antever uma preocupação dos Espatários/Cavaleiros de Alcácer para recuperar rapidamente o Torrão, mantendo deste modo a coesão territorial alcacerense em contexto islâmico, de que a Ordem se assume como natural herdeira.

O profecta Maomé pregando. Manuscrito Persa do século XIII

20 Talvez não houvesse muito interesse em mencionar essa conquista. O documento da chancelaria de D. Sancho I datado de 1186 menciona a zona do Torrão (inserida no termo alcacerense) como fronteira com o território islâmico. Na conjuntura militar pós 1217, os Espatários com sede em Alcácer, conseguem a confirmação régia da sua conquista do castelo do Alvito em 1235, que será novamente confirmado por bula papal em 1245. Este avanço em direcção ao Alvito, Beja e Aljustrel, claramente para lá do que tinha sido estipulado décadas antes em 1186, demonstra um apetite territorial espatário em relação ao Alentejo Islâmico em detrimento das outras Ordens Militares e Poder Régio. Naturalmente que D. Afonso III, que tinha razões de queixa em relação aos Espatários pelo apoio que este tinham dado a D. Sancho II no decurso da “Guerra” havida entre eles, irá exercer o seu poder e retirar aos Espatários a faixa territorial que vai do Alvito até Beja.Sobre estas questões, ver um pouco mais à frente.

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Parece-nos sintomático que a fronteira estabilize a sul da linha que passa por Alcácer, Torrão e Évora até à década de 30 do século XIII.

4. A Prática da ŷihād no Torrão. Os impérios Magrebinos dos Almorávidas e Almóadas implantaram no al-

Andalus uma maquinaria estatal necessária para gerir de forma adequada os recursos económicos e militares frente ao avanço cristão. Deve-se a eles a reactivação da noção de “Ŷihād”.

Ou seja, mesmo que as populações do al-Andalus estivessem nesta fase pouco militarizadas, em termos jurídicos, estavam inseridos dentro de um estado profundamente belicista, como era o almóada.21

Uma interessante perspectiva é nos dado pelo cronista al-Ṭurṭūšῑ :22 - “…son los ejércitos para el soberano sus arreos, sus armas defensivas, las

fortalezas en que se refugia y los puntales que lo sostienen. Ellos son la salvaguardia de las gentes pacíficas, los que evitan los desafueros y reprimen el desenfreno. Son la defensa de las fronteras, los guardianes de las puertas, el elemento dispuesto para hacer frente a las contingencias, la protección de los musulmanes, la afilada punta que sale al encuentro del enemigo, la aguda saeta que contra él se dispara, el arma que se empuja contra su garganta. Por ellos son respetados los hogares, están asegurados los caminos y cerradas las fronteras. Son, en una palabra, el honor del país, la defensa de las fronteras, la protección del hogar y el arma contra el enemigo.”

21 Garcia Fitz, 2005. Ibidem, p. 271. 22 Garcia Fitz, 2005, Ibidem, p. 272. A reflexão foi escrita em contexto Almorávida, mas pode ser transposto para o contexto Almóada.

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Capítulo 5.

O Torrão: Após a Conquista Cristã de 1233 (!).

1. A Investigação da Historia Local em Contexto Espatário: Limites e Objectivos.

A inexistência de documentação medieval por nós conhecida, coeva dos

acontecimentos que pretendemos relatar, não nos permite apontar uma data precisa, para a “inserção” definitiva do Hisn Turrus no Reino de Portugal.

Frisamos o termo “inserção”, porque na realidade desconhecemos totalmente o que terá acontecido, apesar de podermos sugerir alguns cenários hipotéticos dos acontecimentos:

- Conquista (?), pacto (?) ou abandono por parte das tropas muçulmanas, que

se refugiaram em Beja (?). Neste momento, quase todas as leituras são possíveis. Por outro lado, a persistente ausência de estudos sobre o Torrão em contexto

Medieval Cristão, impede-nos não só de saber o que efectivamente terá acontecido em fases cruciais da sua história local, como impede-nos de olhar para a sua diacronia de outros ângulos, isolando novos actores e poderes em jogo.

Por vezes estudos sobre a presença medieval em vilas vizinhas, como é o caso do Alvito, podem trazer inesperados contributos para o estudo do Torrão.

Seja como for, a conquista pelos “Cavaleiros de Alcácer” do castelo do Torrão, terá ocorrido entre 121723 e 123424

Continuamos reféns da documentação da Ordem de Santiago e enquanto outro tipo de documentação não for transcrito, a imagem desenhada do Torrão Medieval tem o forte cunho da actuação dos Espatários nesta região.

Assumindo este facto como incontornável, vamos procurar descobrir a sua história com base na actuação dos responsáveis Espatários do Ramo Português.25

Inúmeras questões que não foram neste momento abordadas, serão num futuro próximo.

2. O Desempenho dos “Cavaleiros de Alcácer” na região: Os seus reflexos no Torrão, entre 1218 e 1237

2.1. Enquadramento Geral

23 Data da conquista de Alcácer do Sal. A confirmação da sua posse pelos espatários por parte de D. Afonso II só ocorreu no ano seguinte, em 1218. 24 Em relação ao Alvito, temos a data de doação do castelo à Ordem de Santiago, efectuada a 31.III.1235. (Marques -1996) As Etapas de Crescimento do Reino, In Nova Historia de Portugal, p. 45) Tomando como exemplo supra referido na nota anterior, admitimos que a conquista deste castelo terá que ter ocorrido no ano anterior. Tratando-se de um avanço territorial espatário para lá do acordado em 1186, que incluía o castelo do Torrão, é perceptível porque se omite esse castelo, mas é patente a necessidade de mencionar o Alvito, que traduz a inclusão de um novo território não previsto anteriormente. 25 Seguimos de perto a listagem apresentada por CUNHA (1991) A Ordem Militar de Santiago (das origens a 1327), p. 198-200.

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Neste período bastante conturbado, de guerras, alianças, espionagens e

ligações comerciais entre os beligerantes, é fundamental escrutinar o que se passava em Alcácer, porque “grosso modo”, a iniciativa estava do lado dos Espatários e o Torrão Muçulmano encontra-se entregue a si próprio, na defensiva.

Não devemos esquecer o papel dos soberanos portugueses durante este período e a postura das elites islâmicas que ainda resistem a sul.

O enquadramento político, económico e demográfico é complexo; as fontes são exíguas e o território cenário dos acontecimentos é vasto.

Como já foi referido anteriormente, com base nas fontes disponíveis, muçulmanas e cristãs, que nos falam dos avanços e recuos na fronteira alentejana, a conquista do Torrão terá sido efectuada após 1217, por iniciativa dos Espatários ou “Cavaleiros de Alcácer”.

Na sequência da conquista de al-Qaṣr em 1217, onde é patente a necessidade urgente de se reparar o seu sistema defensivo e de se proceder à adaptação do alcácer islâmico em “paço”, sede do Ramo português da Ordem, foi necessário proceder a um avultado investimento em recursos, de natureza humana e monetária.

Até que ponto esse investimento foi adequado para dar resposta aos estragos que naturalmente resultam de um longo cerco e que consequência terá tido para a conquista posterior do Torrão?

São estas as questões que iremos tentar dar resposta, procurando acima de tudo, colocar em cima da mesa novas pistas de investigação.

Para o efeito, achamos adequado, comparámos as posturas que cada um dos beligerantes actuou em relação a Alcácer; em 1191 e em 1217:

- Em 1191, quem ataca a cidade, é o aparelho militar almóada, com o

soberano na sua chefia, socorrendo-se de forças terrestres e navais. Quem está na defensiva são os portugueses que após algum tempo de resistência se rendem. O califa fica alguns dias na cidade, determina o seu programa arquitectónico e usa os recursos do estado para tornar operacional a sua conquista, que é de novo purificada e transformada em medina islâmica.

Actuação e resultados obtidos: - Largo investimento em numerário e

recursos humanos (militares e civis) para tornar operacional a cidade. Renovação quase total do sistema defensivo e abastecimento da sua população a partir dos armazéns de Ceuta e Sevilha. Criação de uma zona militar e área anexa para nascente incluíndo o Torrão e provavelmente o Alvito; para norte inseria a Arrábida e a para sul, anexava o actual Alentejo Litoral até á foz do rio Mira.

- Em 1217 – Desta vez a iniciativa parte do bispo de Lisboa. O soberano

português está fisicamente ausente do campo de batalha, mas terá tido conhecimento e não se opõe. Os portugueses seguem por via terrestres e têm apoio de metade da V Crusada. Quem está na defensiva são desta vez os alcacerenses muçulmanos. Serão socorridos por tropas enviadas por outros chefes militares islâmicos, mas que pouco contribuem para alterar o resultado final. A medina é por fim conquistada e novamente purificada, voltando a ser de novo cristã.

Actuação e resultados obtidos: - Falta de recursos para recuperar a totalidade do sistema defensivo danificado no cerco. Escolha de Alcácer como sede dos Espatários, mas os cruzados que participaram na conquista e saque são por ordem Papal, obrigados a seguirem viagem.

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Desconhecemos se a cidade terá sido abastecida regularmente por frota naval desde Lisboa? Presumimos que terá chegado alguma ajuda durante os primeiros meses. Na realidade, a sua população terá que encontrar soluções adequadas na área periurbana, para a manter habitável.

A escassez de recursos humanos de ordem militar, naturalmente que irão numa primeira fase paralisar o avanço da conquista do território para sul.

Entre duas posturas coerentes de actuação: - Avanço na conquista para sul ou

consolidação da base militar Alcacerense, os elementos disponíveis sugerem que terá prevalecido a segunda hipótese.

É neste sentido de procedimento que podemos ler a atribuição de novo foral a

Alcácer assim como a confirmação do documento referente aos mouros forros, ambos certificados em 1218, por D. Afonso II, que igualmente concede a cidade aos Espatários, que prontamente a transformam na sua sede em Portugal.

Quanto tempo terá sido necessário para recuperar Alcácer e torná-la numa base militar com recursos suficientes para retomar a guerra para sul?

Não sabemos, mas poderemos colocar como hipótese de trabalho que terão decorrido, entre dois a três anos.

Mesmo assim, como foi demonstrado por trabalhos arqueológicos efectuados na encosta norte do castelo de Alcácer em 2003, e confirmado em documentação Espatária do século XIV, os trabalhos realizados terão ficado aquém do exigido.26

Pelo exposto, torna-se patente que a transformação de Alcácer, de base militar islâmica em praça-forte da Ordem de Santiago, não terá sido fácil, tendo em causa a escassez de recursos.

De frisar mais uma vez, que a presença de cruzados alemães, frígios e holandeses na conquista de Alcácer em 1217, se resumiu unicamente às acções bélicas. Terminada a conquista e após ajudas pontuais na recuperação urgente de alguns panos de muralhas que inspiravam mais cuidados, esse grupo militar segue novamente para Lisboa, onde pouco depois segue para a Palestina.

Sabemos pelas fontes coevas da altura, que alguns deles solicitaram ao Papa dispensa de deslocação para a Terra Santa, afirmando que a sua presença era fundamental para expulsar definitivamente os mouros do território.

Apesar das fundamentações parecerem coerentes para justificar uma “cruzada” em território peninsular, o Papa foi inflexível e ordenou que a frota retomasse o seu caminho em direcção à Terra Santa.

Perante a subtracção de tropas estrangeiras ávidas para dilatarem o território para a fé cristã e saque; e expectantes em relação à actuação de D. Afonso II, mais interessado na reorganização do reino, na ordem, lei e cobrança de impostos, do que dilatar território; aos espatários resta-lhes concentrar esforços na recuperação de Alcácer, cientes de que poderiam eventualmente estarem sujeitos a um contra-ataque islâmico.

A resposta muçulmana, já em plena desintegração politica pós-Almoada, parece nunca se ter direccionou para Alcácer, mas antes para Badajoz e Mérida. Essas acções procuravam quase sempre a legitimação politica para o exercício do poder, por parte de um determinado candidato à governação da comunidade islâmica. Estamos perante acções cirúrgicas de guerra para propaganda de grupo.

26 Em 1327, o mestre Pedro Escacho queixava-se do estado de ruína a que tinha chegado o castelo (Cunha, 1991 – A Ordem de Santiago: das origens a 1327, p. 215) Sic: “ …turribus et muris fortissimus quibus erant inexpugnabilis…” tinham sofrido “… deformaciones irrestaurabilles…”

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Por outro lado, como temos vindo a afirmar, a conquista de Alcácer não significou a queda automática dos castelos que lhe estavam subordinados.

Enfraquecidos mas não rendidos, as comunidades islâmicas e as guarnições instaladas nos vários husun/castelos, tinham como “dever sagrado” resistir até ao fim, ou então procurar a concessão de pactos que lhes permitisse viver no mesmo território após a sua conquista cristã.

Os espatários, escudados na garantia dada pelo documento régio de 118627 e sem forças militares capazes de dilatar o território cristão, terão ficado por Alcácer enquanto o Torrão, a mais de um dia de viajem, para lá do horizonte e das florestas resistia como podia; podendo ter ensaiado após 1217 e até 1233, em plena ausência de poder califal magrebino Almóada, uma reorganização militar na região a seu favor, que incluía o Alvito.

De forma a fundamentar melhor as datas e a leitura proposta, teremos que recuar um pouco, de forma a assimilar algumas questões básicas do pensamento político e jurídico islâmico e tentar equacionar, qual terá sido a importância do Torrão nessa época.

2.2. A Inserção Definitiva do Torrão no Reino de Portugal: 1233 (!)

Se o Torrão fosse um “simples castelo” na dependência de Alcácer, seria

natural que pouco depois da conquista de 1217 o castelo fosse abandonado pela sua guarnição.

Mas o Torrão, apesar de ter um enquadramento administrativo/militar subordinado a al-Qasr, seria mais do que uma “simples” fortaleza de fronteira perante Évora e a sul de Montemor-o-Novo.

Como poderemos verificar ao longo do capítulo 7, a construção de uma musalla em contexto almóada, terá atribuído ao Torrão um prestígio que lhe deu projecção regional no Garb al-Andalus, transformando-o num dos principais pontos de encontro e reunião de voluntários muçulmanos para o “martírio” em território de fronteira.

Vigiando a fronteira frente a uma Évora já portuguesa, a fronteira ter-se-à mantido estável até 1212, data da batalha de Navas de Tolosa, que assinou a senteça de morte do califado almóada. Tempos novos chegariam depois!

Como terá sido o comportamento do Torrão em relação a Alcácer ou a Beja, após 1212?

27 Que lhes garantia, antes da reconquista destes territórios, o Torrão, Alfundão, Alvalade e a zona do Cercal até ao oceano.

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Quando no dia 14 de ṣafar de 609 (= 16 de Julho de 1212) teve lugar a batalha

de Navas de Tolosa, em que o califa almóada Abū ´Abd Allāh Muḥammd al-Nāṣr é derrotado (595-610=1199-1213), teve início segundo a maioria dos investigadores, a decadência do aparelho político e militar do califado Muwaḥḥῑd, que segundo Boloix Gallardo 28 é considerado extinto em 1228 com a ida do califa Abū ´Alà Idrῑs al-Ma´mūn (624-630=1227-1232) para o Magreb. Começa oficialmente o que a historiografia moderna chama de “Período das Terceiras Taifas”.

Em relação à região de Alcácer e como já foi afirmado anteriormente, admitimos que os Banū Wazirí ter-se-ão comportado com total autonomia política após 1212, porque só assim se compreende por que razão o cargo de governador da região militar foi assumida por Abdallah Wazir29.

Se perante a comunidade dos crentes, os Banū Wazirí reconheciam o poder legítimo dos Califas Almóadas, na realidade este clã está por conta própria neste sector de fronteira com Portugal e como tal, assumem-se como “soberanos”.

Em termos jurídicos e de legalidade islâmica, Alcácer não seria encarada como uma Taifa/Reino Autónomo.

O vazio de poder almóada no al-Andalus permitirá a emergência de uma constelação de poderes autónomos inseridos num vasto território que teoricamente pertence ao “estado central almóada”. 28 Ob. Cit. (2007). MUḤAMMAD I Y EL NACIMIENTO DEL AL-ANDALUS NAZARÍ (1232-1273). Primeira estructura del Reino de Granada. Tese Doctoral, p. 111 29 Após a morte do seu pai em Navas de Tolosa, que tinha sido até então o governador de Alcácer. Pensamos estar em presença de um acto consumado, provavelmente aceite (?)” por um califa que após Navas de Tolosa, se retira para Marraquexe e mergulha na depressão até morrer assassinado um ano depois.

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Todavia, para o Reino de Portugal, Alcácer após 1212, poderia ter sido encarado como reino autónomo, daí a valorização da conversão de Abdallah Wazir à fé cristã após a conquista de 1217, como vem referido nas crónicas cristãs.

Após a fuga, o ultimo governador muçulmano alcacerense poderia ter-se refugiado no castelo do Torrão ou na medina de Beja, contudo preferiu a base segura de Sevilha; e porquê?

- Estes dados só tem sentido, se pensarmos que o Torrão seria inseguro

perante o avanço cristão ou que o senhor local não fosse de muita confiança dos Banū Wazīrí; ou então os dois factores juntos!

Tudo isto poderá traduzir uma “relativa” autonomia do Torrão nesta fase, realçada após a conquista definitiva de Alcácer.

Após 1217, os outros elementos pertencentes aos Banū Wazīrí que terão abandonado Alcácer, buscam protecção no al-Andalus e no Magreb.

´Abdallah Ibn Wazīr foge primeiro para Marraquexe e depois fixa-se em Sevilha, servindo os interesses do califado.

Um irmão seu também se junta a ele nesta ultima cidade e aí permanecerão até à condenação de ambos à morte em 10 de Dū al-Ḥiğğa de 626 (31 de Outubro de 1229)30, por Abū ´Abd Allāh Muḥammad b. Yūsuf b. Hud 31.

Se parece patente um certo desinteresse dos Waziris em retomarem Alcácer, estes poderiam, com a desculpa de serem fiéis aliados do califado almoada, de tomar o poder em Sevilha, pondo em causa a liderança de Abū ´Abd Allāh Muḥammad b. Yūsuf b. Hud.

Mas leituras à parte, continua a persistir uma pergunta aparentemente com

uma resposta difícil: - Em que data foi conquistado o castelo do Torrão? - Não sabemos ao certo, apesar de a data que parece reunir mais concistencia

ser 1233, como teremos ocasião de fundamentar um pouco mais á frente. Independentemente da data proposta para a conquista do Torrão, há um dado

que nos parece incontornável; a conquista imediata do Torrão após Alcácer, parece-nos impossível em 1217. Não se trata só da questão de falta de logística cristã e de uma distância superior a 30 km. Estamos perante 1 dia de viajem que um exército teria que fazer, na inserteza do resultado final e que chegava cansado no final da viagem!

Essa acção militar, que resultaria em percas humanas, poderia em caso de malogro, pôr em causa a manutenção de Alcácer pelos Espatários.

Por isso defendemos que parte da resposta sobre a data da conquista do Torrão, poderá repousar na data de concessão do castelo do Alvito à Ordem de

30 KHAWLI, A (1997) LA FAMILLE DES BANU WAZIR DANS LE GARB D´AL-ANDALUS AUX XII et XIII SIÉCLES. Arqueologia Medieval, nº 5, p 112 31 As fontes referem que a condenação à morte foi decidida num acto de vingança, após as derrotas sofridas em Alange (627=1230) ou Trujillo (630=1233), frente às tropas cristãs unificadas de Leão e Castela, sob a liderança de Fernando III o Santo. Pensamos contudo que o estava em causa, tendo em conta o que tinha acontecido na vizinha Niebla em 1234, quando Šu´ayb b. Muḥammad b. Maḥfūẓ se assume “emir do Garb”, seria o temor em ver os Banū Wazirí instalarem-se próximos de Sevilha ou no Algarve e proclamarem um emirato autónomo sob suserania Almóada, à semelhança do que fez Muḥammad I, quando fundou o Emirato Nazari de Granada. De nada lhe serviu essa atitude, porque acabou assassinado em 24 de ŷumādà de 635 (=13 de Janeiro de 1238) em Almeria.

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Santiago em 1235 e no desenrolar da campanha militar Espatária no Alentejo e Algarve.

Existem porém leituras e propostas cronológicas, por vezes discordantes dos acontecimentos, porque como refere Marques, (sic) “… existe um desfasamento entre estas fontes, quanto à data destas conquistas.”.32

Maria Alegria Marques,33 apresenta (sic) a“… seguinte proposta de sequência

cronológica para essas campanhas: 1230, reocupação de Elvas e ocupação de Jurumenha; 1232, tomada de Serpa e Moura; 1232-1234, ocupação de Beja; 1234, conquista de Aljustrel e Alvito; 1238, conquista de Mértola, Alfajar de Pena, Aiamonte; 1238-1239, tomada de Cacela e Alvor; 1242, conquista de Tavira, Paderne e Silves; antes de 1245, tomada de Aroche.

Já António Rei, num estudo recente, defende um outro desenrolar dos

acontecimentos, que nos parece ser a mais adequada, porque se apoia em testemunhos muçulmanos importantes (sic)34

“ Em 1234 conquista de Aljustrel e ocupação de Beja pela Ordem de Santiago.

Bula Papal de Outubro, que estimula à luta e à ocupação das novas povoações da fronteira. Paragem na reconquista até 1239.

Em 1239, conquista de Alfajar da Pena e cerco a Mértola. Conquista Espatária de Estombar e Alvor.

1240, doação de Cacela e Aiamonte à Ordem de Santiago. Conquista de Mértola em 1241 e no ano seguinte de Tavira. Seja como for, tanto nas leituras destes dois historiadores, como num âmbito

geral, é patente na investigação portuguesa, o silêncio que persiste nos 17 anos que medeiam a conquista defenitiva de Alcácer e a conquista de Aljustrel (1217 e 1234).

Em relação à proposta de Marques, admitimos que a conquista do Alvito pelos Espatários teria que se situar no ano anterior à doação do castelo à Ordem de Santiago, que, segundo a autora, tem a data de 31.III.1235 35

O problema de base continua a ser o desconhecimento que temos da data exacta da conquista definitiva de Beja.

Marques sugere que terá sido entre 1232 e 1234. António Rei aponta para 1234.

Pela nossa parte, apontamos para 1232, que é anterior à data avançada para o Alvito e Aljustrel (1234).

A lógica militar sugere que as praças militares que correspondem aos primeiros alvos, são escolhidas tendo em conta o valor estratégico em jogo, associadas ao grau de dificuldade que poderão representar na sua conquista.

Beja fica claramente 50 km para sul do Alvito e quase no mesmo paralelo de Aljustrel. Que lógica militar terá procedido este comportamento, ou então; o que haverá de tão difícil para conquistar, entre Alcácer e Beja, que justifique isolar um vasto território localizado mais a norte? Pensamos que a resposta reside no Torrão.

Ao aceitarmos esta leitura, teremos o seguinte quadro dos acontecimentos; o Torrão, rodeado a norte por Évora, a poente por Alcácer e a sul por Beja recém

32 Marques (1996) As Etapas de Crescimento do Reino, In Nova Historia de Portugal, p. 45, nota de rodapé nº 133 33 Ibidem, Marques (1996), p. 46 34 REI (2003) A FRONTEIRA DO SUDOESTE PENINSULAR (1234-1242) Novas visões da «Reconquista» a partir do Al-Mughrib... de Ibn Sa´id de Granada, Arqueologia Medieval nº 8, Mértola, quadro da p. 36 35 Ibidem, Marques (1996), p. 45, nota de rodapé nº 128

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conquistada; terá sido submetida em 1233, pouco depois de Beja (1232) e um pouco antes do Alvito (1234) e Aljustrel (1234). 2.3. O papel do Torrão na apropriação do Território Islâmico envolvente:

Se aceitarmos a data proposta de 1233 para a conquista definitiva do Torrão

pelos “Cavaleiros de Alcácer”, verificamos que pouco depois se assiste a um movimento belicista espatário para sul, que só vai terminar com a conquista definitiva do que virá a ser o território do reino do Algarve.

Antes, entre 1217 e 1233, durante 16 anos, tínhamos constatado que as iniciativas militares da Ordem de Santiago tinham estagnado. Contudo, de 1233 a 1249, novamente um novo ciclo de 16 anos, assiste-se a um ritmo belicista de avanço territorial sequencial que só terminam quando todo o território do Algarve estiver conquistado. O que terá entretanto mudado?

- Nos primeiros 16 anos (1217-1233), assistimos a uma Ordem militar que

necessita de recursos e que procede à reorganização do território debaixo da sua jurisdição. O rei D. Afonso II desliga-se das acções militares, preferindo como vimos, a organizar “burocráticamente” o reino. O seu filho, D. Sancho II, retoma em 1226 a investida militar, fracassando frente a Elvas. Três anos depois, em 1229, após o abandono islâmico de Elvas, a cidade entra na posse do soberano português que lhe concede foral nesse mesmo ano.

As conquistas vão ser incrementadas para sul desta cidade e ao longo do Guadiana, enquanto os Espatários, confiantes no documento de 1186 aguardam melhores tempos para iniciarem a eles próprios a ofensiva militar.

O sinal de alerta talvez sejam as movimentações portuguesas em redor do vale

do Guadiana, que prenunciam aos Espatários que a legitimidade para se assumirem como herdeiros do poder islâmico alcacerense só será consumado se houver uma apropriação desse território pelas armas.

Pensamos que será esta preocupação que forçará os Espatários a conquistarem primeiro Beja (1232), para depois avançarem em segurança para norte em direcção ao Torrão (1233).

A conquista do castelo do Alvito no ano seguinte (1234), claramente fora do território espatário estipulado em 1186 por D. Sancho I, terá sido uma decisão de última hora!, dado que este castelo poderia estar nessa fase, na dependência administrativa do Torrão, enquanto praça islâmica.

Esta tomada vai por em causa uma hipotética expansão do termo de Évora para sul, inviabilizando igualmente a expansão de Ordens rivais dos espatários na mesma região.

Mas depressa a situação será reposta a favor de Évora, do poder régio e à custa dos interesses da Ordem de Santiago.

Na carta de doação do Alvito, de Maio de 1251, entregue por Rodrigo Peres, sua mulher e filhos a D. Estêvão Anes, colaço do rei, seu genro e chanceler-mor de D. Afonso III, já este território desvinculado do Torrão e fora da alçada dos espatários, figura como pertencendo ao termo de Évora.

Seja como for, a leitura efectuada às movimentações militares, cujos ecos chegaram até nós, tornam patente uma certa “urgência” em direcção ao Guadiana e de Mértola por parte da Ordem de Santiago.

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A consumação por conquista deste vasto território alentejano a sul de Alcácer e do Torrão, permitirá aos Espatários uma sólida base militar e de segurança que permite dedicarem-se totalmente à tomada do Algarve, sem a concorrência directa de outros poderes rivais!

A iniciativa partirá do Comendador de Alcácer, Pai Peres Correia após a conquista de Aljustrel em 1235, pouco depois do Alvito.

Os bons resultados obtidos pelos Espatários e os problemas internos do reino português que cada vez requerem mais atenção, forçam o soberano português D. Sancho II a delegar nas Ordens militares a iniciativa militar.

Sabendo “a priori”, que para o esforço de conquista a sede alcacerense dos Espatários se encontra cada vez mais recuada em relação à geografia do campo de batalha e que Mértola quando for conquistada reunirá as melhores condições, D. Sancho II emite um documento onde se lê (sic) “…Ipsi (frates Ordinis militie Sancti Jcobi) debent ibi tenere conventum suum ad defensionem et tuitionem et conquisitionem regni mei”36

A braços com a guerra civil que se instala, entre D. Sancho II e o seu irmão, o futuro D. Afonso III, a Ordem de Santiago fica por sua iniciativa a conquistar o território que virá a ser conhecido por Reino do Algarve.

Reflexões à parte, o Torrão parece emergir na documentação portuguesa em 1249, numa altura em que termina a conquista do Algarve, a Ordem de Santiago olha com mais tempo para o seu património, procurando rentabilizá-lo.

Os tempos começam a ser outros e a “Reconquista” tinha terminado. O Torrão será emancipado do termo de Alcácer e assume-se como sede de município.

Em 1260 temos a notícia de que estava encomendada por um cavaleiro chamado Fernando Vermudes e poucos anos depois, no tempo do Mestre Pedro Escacho as suas rendas ascendiam a 1 800 libas.

No século XIV, o castelo já tinha caído em ruína. A Ordem vai investir 2 000 libras na sua recuperação, mas o trabalho ficou incompleto, porque era necessário mais 1 000 libras.

Apesar da ausência de dados documentais que permitam testemunhar a presença de uma comunidade islâmica no Torrão após a conquista de 1233, admitimos que ela terá existido!

Seja como for, a sua memória terá chegado até ao século XVIII onde nas palavras do Pároco do Torrão, quando fala da Fonte Santa (sic) “… e dizem ser obra dos Mouros, o que não duvido: porque ainda a terra cheira muito a elles, ...”37.

Nos finais do século XV, são referidos alguns elementos da minoria judaica do Torrão.

A necessidade de serem efectuadas monografias temáticas sobre o Torrão, em contexto Medieval, Moderno e Contemporâneo, nos mesmos moldes já existentes para Alcácer do Sal, obriga-nos a encerrar por aqui este capítulo.

36 Ibidem, Marques (1996), p. 44 37 MACEDO, Carla (2009) INQUÉRITOS PAROQUIAIS DE 1758 NO CONCELHO DE ALCÁCER DO SAL: Resposta da Freguesia de Torrão. Neptuno, ADPA (prelo)

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Capítulo 5.

Monumentos da Área Urbana do Torrão:

1. Nota prévia

Não se pretende neste capítulo efectuar a síntese histórica de cada monumento existente na vila do Torrão, mas unicamente chamar a atenção para a sua existência, procurando mostrar porque vale a pena uma visita demorada a cada um deles.

Arquivo da DGMN

2. Imagens da Região e da Vila do Torrão, nos finais do século XIX e inícios

do XX. 2.1. Segundo Leite de Vasconcelos (1889)

Em finais do século XIX, Leite de Vasconcelos empreende uma das suas “famosas” excursões arqueológicas ao Alentejo, com início em Alcácer e passando pelo Torrão.

Num relato ao gosto da época, deixou-nos estes apontamentos pitorescos (sic):38

“Na manhã de 28 de Dezembro despedia-me dos meus amigos de Alcácer do

Sal, e dirigia-me para a pátria de Bernardim ou Bernaldim Ribeiro. 38 VASCONCELOS (1898) Excursão Archeologica ao sul de Portugal. Arqueólogo Português, Vol. IV, Lisboa, p.114

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A estrada que conduz de Alcácer para o Torrão é solitária, como em geral succede no Alemtejo. Atravessei vários riachos, chamados ribeira de Alfevre, ribeira de Algalé, etc.”

“A manhã estava ennevoada, e por isso pouco pude apreciar dos panoramas

d´estes sítios. De longe em longe passa junto do meu trem um carro alemtejano, guiado por um homem alto, de jaqueta e chapéu desabado; durante uns segundos ouvem-se os chocalhos das mulas que o levam, depois tudo volta à solidão e ao silencio, só cortado pelo ruído do vehiculo em que vou. Nem uma venda se vê, em que possa dar-se uma gotta de vinho ao cocheiro, para o fortalecer contra a friagem matutina: só encontrei uma fonte; mas água não a queria ele!

Um pouco antes de se chegar á ponte de Algalé, o Sado deixa de ser navegável, e muda de nome: fica chamando-se ribeira do Sadão”

“ Á volta, se bem me lembro, do meio-dia, avistava eu a pátria do “Senhor das Saudades”, como Garrett chama a Bernardim Ribeiro no Auto de Gil Vicente. O nevoeiro havia-se desfeito, e o sol brilhava com toda a sua luz. Primeiro atravessei o Xarrama, numa bella ponte: o rio espreguiça-se num leito de pedras, zoando e espumando; pelas margens vê-se roupa estendida, que enxuga ao sol. Depois de uma pequena subida, entrei na villa, que é de ruas estreitas e casas baixas. Apesar de o intuito da minha visita consistir apenas em proceder a algumas investigações archeologicas, eu ia absorvido na memoria de Bernardim Ribeiro: e por isso experimentei certa commoção, quando o carro começou a rodar nas ruas da villa. Aqui nasc~era com effeito no sec. Xv o novellista da Menina e moça, o poeta das Saudades, cujos cantos exprimem tanto ao vivo a alma portuguesa, sempre melancholica e apaixonada! Mas d´elle, nem sequer um vestígio material achei na villa; nada que tornasse lembrado aos seus conterrâneos

Coitado do pastor

Pobre, mal aventurado…

Pelo lado archeologico também nada se me deparou, digno de nota. A igreja, de três naves, tem um portal manuelino; e há no interior d´ella várias sepulturas com inscripções portuguesas: mas estes assumptos não entram no meu programma de estudos. Só num arrabalde da villa encontrei uma pequena construcção romana, feita de opus Signinum, e que talvez fosse depósito de água; em volta, muitos fragmentos de tegulas. O sitio chama-se Fonte Santa: há lá realmente uma fonte, mas tão caiada e modernizada, que nada revela já hoje da importância cultual que de certo teve em tempos pagãos.

Demorei-me no Torrão apenas hora e meia. Ao Sr. Adelino Simões da Guia, pharmaceutico no Torrão, agradeço a

complacência com que me acompanhou, e me informou á cerca do que lhe perguntei” 39

39 VASCONCELOS (1898) Excursão Archeologica ao sul de Portugal. Arqueólogo Português, Vol. IV, Lisboa, p.115-116

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2.2. Um passeio botânico ao Torrão (publicado em 1902)40

“ Entre as Alcáçovas e o Torrão apeei-me por um pouco, acompanhando, a passo, a diligencia, que trepava lentamente uma ladeira extensa, mas pouco inclinada, orlada de altos Eucalyptos.”

“Perto do Torrão começam a apparecer alguns penedos de granito, e é sobre um leito d´esta rocha que correm e se despenham em pittorescas quedas as aguas claras do Xarrama. Nada mais inesperado do que esta cinzenta e amontoada penedia da ribeira, descrevendo um sulco profundo pelo meio de um terreno todo schistoso e amarellento”

“ Logo acima da margem esquerda do rio, e n´uma eminência do solo, fica a villa do Torrão, onde os Tavoras tinham o solar, que o Marquez mandou destruir e de que só escapou o velho templo que hoje serve de egreja matriz. Em tempos foi cabeça de concelho e teve um convento de frades franciscanos e outro de freiras, cujos edifícios se encontram em ruínas, actualmente, porém, está reduzido ás simples condições de uma villa modesta, cheia de silencio e de hervas nas ruas, não obstante o ser centro de uma das mais ricas e affamadas regiões agrícolas do Alemtejo, pela abundância e superior producção do trigo e do azeite.

Em volta d´ella, formando planícies extensas e pequenas collinas, com campos e charnecas, estende-se um terreno levemente ondulado, sobre o qual põem sombras aqui e alli, o verde-negro dos azinhos e a rama esfumarenta dos olivaes.

A cerca de um kilometro, para nascente, levanta-se a elegante ermida da Senhora do Bom Sucesso, muito branca, sobre uma pequena elevação do terreno e onde todos os annos, em Setembro, se faz a festa dos trabalhadores, com philarmonica e danças das raparigas”. 2.3. Carta do Torrão, publicado no Jornal Pedro Nunes de Alcácer do Sal, a 6 de Junho de 190841

“Esta villa, punge dize-lo, hoje votada quasi ao completo despreso, sem que tenha quem pugne pelos seus vitaes interesses, e out´ora tão florescente, chegando a constituir concelho, de que ainda resta embora em mau estado o edifício camarário, não deixa apesar d´isso de se tornar credora de ser considerada, já pela sua numerosa população e quantidade de fogos, já também pela sua importância agrícola, pois que produz e exporta em grande quantidade trigo, azeite, gados, vinho e outros productos agrícolas.

Pertence ao concelho de Alcácer do Sal, distante d´essa villa pouco mais de seis léguas, communicando-se por uma estrada da macadamisada,… “

“Todas as povoações, por mais humildes que sejam, procuram venerar e perpetuar os seus illustres patrícios, reliquías que constituem ufania e que se procuram guardar no mais respeitável sacrário.

Torrão também possue uma d´essas relíquias – Bernardim Ribeiro – distincto poeta, um dos mais talentosos e productores cérebros portugueses, de quem Garrett

40 SAMPAIO (1902). Um passeio botânico ao Torrão. Boletim da Sociedade Broteriana, XVIII, Fasc. 1-2, Coimbra, p.48 41 Iremos só trancrever alguns parágrafos. O original pode ser consultado no Fundo Local da Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal.

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disse que « não houve poeta portuguez que escrevesse mais com o sangue no coração»,…”

3. Monumentos da Área Urbana

Para mais informações, contactar: Junta de Freguesia do Torrão – [email protected] - Tel: 265 669 245 Museu Etnográfico do Torrão – Tel: 265 669 203 Gabinete de Arqueologia do Município de Alcácer do Sal – [email protected] Tel: geral da Câmara. Turismo do Município de Alcácer do Sal – [email protected] - Tel: 265 610 070/73 e fax 265 610 079. Morada – Praça Pedro Nunes, Antiga Casa do Revés nº 1 – r/c.

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7580-125 Alcácer do Sal

4. Roteiro Patrimonial

4.1. Património Arqueológico. 4.1.1. O Castelo do Torrão

Localizado no ponto mais elevado da vila, já nada existe da primitiva construção medieval.

Foram estas, as palavras que o pároco do Torrão usou para descrever o sítio do Castelo do Torrão, em 1758 (sic) 42

“…Paço do Gram Mestre Dom Jorge, a que chamão o Castello, hoje

arruinado, cercado de muro de taipa; o qual vizitou Dom Rodrigo de Meneses fidalgo da casa de Sua Magestade, Comemdador das Comendas da villa de Caçella e da Igreja do Salvador de Santarém, e Treze e João Fernandes Barregão Prior de Nossa Senhora do Castelo de Alcácer, ambos vizitadores, em Dezembro de mil e quinhentos secenta e sinco. E achou quatorze casas Altas forradas de cortiça; muitas Officinas, Cavalariças, e hoje tudo aruinado.

42 Os sublinhados são nossos. Fonte, MACEDO, Carla (2009) INQUÉRITOS PAROQUIAIS DE 1758 NO CONCELHO DE ALCÁCER DO SAL: Resposta da Freguesia de Torrão. Neptuno, ADPA (prelo)

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As intervenções arqueológicas de Carlos Tavares da Silva e Joaquina Soares, na década de 80 do século passado, puseram a descoberto um conjunto de estruturas que segundo os autores, serão de meados do século XVI, concordante com os fragmentos de cerâmica que sulcam a superfície envolvente.

O local encontra-se actualmente coroado por um depósito de água, pela igreja Matriz do Torrão e por casario particular que desde meados do século XX tem procurado ocupar o terreno ainda livre. No meio existe um vasto terreiro abandonado, cortado por uma rua pública.

Sobrevive localmente o sugestivo topónimo “Castelos do Torrão”, cuja denominação é elucidativa da intensa ocupação do local, desde o III Milénio antes de Cristo até ao presente.

A população do Torrão foi tecendo ao longo dos séculos, algumas lendas sobre o seu castelo, cuja expressão arquitectónica e dimensão continuamos a desconhecer.

As raras fontes documentais a ele alusivas, referem que teria: - Muros em taipa e várias torres. Em contexto Baixo Medieval, o que terá sobrevivido do castelo islâmico,

provavelmente referente à alcáçova, foi adaptado a “Paço” da Ordem de Santiago e estaria localizado junto à Igreja Matriz.

Admitimos que em contexto islâmico a cerca amuralhada incluísse parte da actual igreja matriz; presumível lugar da mesquita islâmica e que naturalmente, necessita de uma confirmação arqueológica.

A favor desta leitura, temos o topónimo inicial do edifício religioso, cujo orago estava consagrado a Santa Maria, muito ao gosto do século XIII e que se encontra associado à purificação dos espaços sagrados após a conquista cristã.

Em 1260 temos a notícia, que o Torrão estava encomendado a um cavaleiro chamado Fernando Vermudes e que poucos anos depois, no tempo do Mestre Pedro Escacho, as suas rendas ascendiam a 1800 libras.

Em meados do século XIV, o castelo já tinha caído em ruína. A Ordem vai investir 2 000 libras na sua recuperação, mas o trabalho terá ficado incompleto, porque era necessário mais 1 000 libras.

Pensamos antes, que provavelmente não terá havido interesse em recuperar a totalidade da cerca. De facto, os tempos já eram outros e a parte arruinada, permitiria a expansão da área urbana da vila ao longo do principal eixo de comunicação que se ia estruturando após o século XIII.

Só a igreja matriz resistia no espaço desactivado do castelo. É sintomático que o pároco do séc. XVIII quando fala da igreja matriz, refere taxativamente que esta se localiza fora da vila.

Para um melhor enquadramento histórico do Castelo do Torrão e o seu papel para a construção da realidade actual, aconselhamos a consultarem os capítulos 4, 5 e 7 deste livro.

Neste momento, não existe nenhum vestígio da estrutura militar medieval, mas vale a pena uma visita demorada ao local, por causa da paisagem magnífica e pela oportunidade de visitar a Igreja Matriz. 4.2 O Património Religioso

A Vila do Torrão pode ser comparada a um diadema, salpicado de jóias, que coroa uma colina que sobressai da paisagem envolvente.

Cada pedra preciosa corresponde a um monumento ou uma casa brasonada.

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É natural que grande parte do legado patrimonial que chegou até aos nossos dias, correspondam a Igrejas e a Ermidas, dada a importância que o sagrado e a protecção divina tinham nesses séculos passados.

O Torrão sempre foi uma terra de gentes devotas e preocupadas pelo próximo, tanto em contexto islâmico como no cristão.

O que chegou até aos nossos dias foi a sacralização dos espaços religiosos, tão necessários para darem sentido à vida, em épocas problemáticas de guerras, pestes e crises alimentares.

Curiosamente, do património militar, pouco ou nada sobreviveu até hoje, a não ser a memória e um relato ou outro fixado em palavras escritas

4.2.1. Igreja de Nossa Senhora da Assunção (Antiga Igreja Matriz de Santa Maria do Torrão)

Imponente construção, que molda a paisagem urbana do Torrão, sendo visível

a vários quilómetros. Este facto não é gratuito e tem a ver com a importância que teve após a

conquista do Torrão em meados do século XIII. Por alguma razão se localiza na área do antigo castelo.

Durante a Idade Média, tanto em contexto muçulmano como no Cristão, a localização dos imóveis obedecem a regras precisas. A sua volumetria e diálogo visual do conjunto, servem também como “marcas de poder” transmitidos aos habitantes e viajantes, mostrando a importância que teriam em determinada época.

O facto de o castelo ter desaparecido precocemente e de a Igreja matriz ter sobrevivido, mostra que o clero terá tido mais importância no Torrão que o aparelho militar aqui instalado, e que após a conquista do território, este ultimo terá começado a perder sentido!

Após a conquista definitiva do Torrão, provavelmente em 1233 (!), a “mesquita” terá sido purificada e transformada em Igreja cujo orago foi atribuído a Santa Maria, como era usual na época.

A primeira referência documental conhecida remonta a 1249 e figura no acordo estabelecido entre o Mestre da Ordem de Santiago e o Bispo de Évora, quanto ao teor do pagamento que esta local de culto teria que fazer a Évora.

É de aceitar que o edifício duacentista, estivesse dentro do recinto amuralhado islâmico, o qual consistia numa muralha em taipa, como é referida nas “Memórias Paroquiais” do século XVIII.

Terá sido consagrada nessa altura a Santa Maria, como era usual numa igreja localizada na sede administrativa de um concelho medieval.

Segundo o estudo de Cristina Gomes Pimenta43, sabemos que em 1510 a igreja era chamada de Santa Maria, denominação que ainda encontramos em 1534.

Em 1510 o Prior era Luís Carreira, processo da Ordem de Santiago. Tinha de Mantimento: 10 000 reais e com a tesouraria, 500 reais. Como obrigações, tinha a missa aos Domingos e festas, a cura das almas, por

acordo com os beneficiados. Sancho Garcia e João Dias, aparecem como beneficiados nesse ano de 1510. Nas obrigações, figuram todas as missas e rezar as horas no coro e ajudar às

missas do Prior e dar a unção e comunhão.

43 Pimenta, Maria Cristina Gomes, 2002, As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média: O Governo de D. Jorge, p. 225.

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Como confraria anexa, figura a de Nossa Senhora. Como Capelas anexas, figuram as de João Falcão, do Santo Espírito, de

Madalena Fernandes e de João Pinheiro. Segundo o mesmo estudo, (Pimenta, p. 225), para 1534, foram referenciados

os seguintes elementos: Prior: Diogo Rodrigues, capelão de D. Jorge, ausente. Capelães: Manuel Carreira e Pedro Eanes, clérigos de missa do hábito de

Santiago. Mantimentos: 2 moios de trigo e 1 000 reais Obrigações: missa em dias alternados com o outro capelão Confrarias anexas: de Nossa Senhora Capelas anexas: de João Falcão, de Santo Espírito, de Fernão Sousa Borges,

de Madalena Fernandes e de João Pinheiro. Segundo as Memórias Paroquiais, referentes à Vila do Torrão e escritas em

Junho 29 de 1758, pelo Prior da Matriz, Francisco Carneiro e Alves:

“6. Tem Igreja Matriz, e está em um alto para a parte do poente, fora da vila, junto ao Paço do Grã Mestre Dom Jorge, a que chamam o Castelo, hoje arruinado, cercado de muro de taipa, o qual visitou Dom Rodrigo de Menesses fidalgo da Casa de Sua Mejestade, Comendador das Comendas da vila de Cacela, e da Igreja do Salvador de Santarém, e João Fernandes Barregão Prior de Nossa Senhora do Castelo de Alcácer, ambos visitadores, em Dezembro de mil e quinhentos sessenta, e cinco.(...)

7. É o Orago da Matriz, Nossa Senhora da Assunção. Tem dez altares, o Altar

Maior bem adornado, capela grande, boa tribuna, e de Naves com colunas, como era a Igreja de São Nicolau da Cidade de Lisboa.

Primeiro colateral, a Senhora da Vitória dos Brancos. O Senhor Santo António, em cuja Capela está a venerável Imagem do Senhor dos Passos. Terceira Capela do Senhor Amaro com graves quadros, pintura antiga. Quarta capela é da Senhora do rosário, Imagem venerada, e prodigiosa; de grande estatura; cuja Capela, mandou fazer o Padre Semião Fernandes Ochoa; e Álvaro Correia de Freitas da vila de Alcácer do Sal; e servia de carueira, e fez escritura dela para a dita Senhora, que hoje se acha com grave tribuna; bem pintada, e ornada a Capela. A Senhora com bons vestidos: que tudo se deve à minha devoção, que tenho dito á dita Senhora dos Remédios 4.2.2. Nossa Srª da Albergaria.

Provavelmente terá correspondido a uma estalagem medieval, como o seu nome indica.

No século XV, o espaço profano foi transformada em Igreja, por iniciativa de D. Margarida de Areda.

Em 1636 foi englobada na Misericórdia do Torrão por ordem do Cardeal D. Henrique.

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4.2.3. Igreja do Carmo

A sua história ainda é mal conhecida. Localiza-se no edifício da actual sede da Freguesia do Torrão e antiga sede da vereação do Concelho do Torrão. Em meados do século XX foi aqui criada a Casa do Povo do Torrão.

A questão que se põe é o porque de uma Igreja do Carmo na vila do Torrão! - Faria parte de um convento na vila, entretanto desaparecido? - Consistia parte de património de um convento exterior ao Torrão? - Terá sido construído por iniciativa particular? Na realidade é pouco o que sabemos deste espaço religioso, actualmente

partilhado pela sede de freguesia do Torrão, possuindo no corpo da Igreja, onde funciona o pólo da biblioteca municipal de Alcácer do Sal.

Numa síntese, a Ordem do Carmo, nasceu da regra dada por St.º Alberto, patriarca de Jerusalém, aos Carmelitas em 1209 e aprovado pelo Papa Honório III, em 30 de Novembro de 1226.44

Como ordem mendicante, de início não podia ter bens e viviam “ o modelo da Igreja primitiva”

A gestão dos bens era efectuada por um frade designado para o efeito, que ia dando resposta às necessidades de cada um. Era, porém, permitido a posse de animais e aves para alimentação e burros ou mulas, consoante as necessidades.

A Ordem do Carmo entrou em Portugal em 1251, com a fundação de um convento na vila de Moura, num espaço doado pelos freires militares de S. João de Jerusalém (Hospitalários).

Estes vêm como padres espirituais dos Hospitalários. O grande impulso para a expansão da Ordem em Portugal é dado por D. Nuno

Alvares Pereira, com a fundação do Convento do Carmo em Lisboa. Quando se deu em 1834, a extinção das Ordens Religiosas, os seus bens foram

vendidos em hasta pública. A questão que fica em aberto, prende-se com a presença de uma Igreja do

Carmo no Torrão!

4.2.4. Convento das Freiras Clarissas45

Segundo os dados conhecidos, corresponde à primeira casa religiosa feminina construída na vila do Torrão e terá sido fundada em 1560.

1. Introdução46

A identificação em 2006, de uma enigmática estrutura “amuralhada” anexa ao convento de Nossa Senhora da Graça do Torrão, que em trabalhos anteriores 44 P.ª Casimiro Vloon, (O.carm), 1983, Carmelitas. Bens. Dicionário de História da Igreja em Portugal, Direcção de António Alberto Banha de Andrade, 2º V., p. 618-620. 45 Aproveitamos para a abordagem sobre esta casa monástica, o estudo que se encontra disponível ao público no Blog - Arqueo-Torrão, dado que não tinha sentido elaborar um texto complectamente novo que pouco dados novos iria adiantar. Carvalho (2008) O CONVENTO DE NOSSA SENHORA DA GRAÇA DO TORRÃO: Notas Bibliográficas de Freiras, com Fama de Santidade e Virtude, que nele habitaram nos séculos XVI/XVII 46 Aproveitamos o texto entretanto publicado no Neptuno de 2009, que versa este convento.

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defendemos ter uma génese muçulmana47, veio dar uma inesperada visibilidade a este monumento religioso que marca a paisagem urbana.

Desde logo sentimos a necessidade de efectuar uma abordagem monográfica a este conjunto monástico.

Afirmámos desde já que não é finalidade desta nota, efectuar o estudo exaustivo deste monumento, não só porque tal não seria possível no âmbito do espaço disponível neste livro, como para esse efeito, teríamos que ter acesso e “ler/transcrever” grande parte da documentação produzida no seu cartório.48

O nosso objectivo é mais modesto e pretende nas páginas seguintes dar início ao estudo deste monumento, começando por dar a conhecer alguma da documentação a que tivemos acesso.

Como já afirmamos anteriormente e é bom relembrar, a História do Torrão encontra-se por fazer e praticamente não existem monografias referentes aos principais monumentos da vila.

O que temos actualmente à nossa disposição correspondem a breves notas ainda elaboradas no século passado, que continuam importantes como ponto de partida, mas que já não dão resposta às actuais solicitações.

2. Breve Nota Histórica sobre a Origem do Convento

Este convento da Nossa Senhora da Graça, da Ordem de Santa Clara/Clarissas, era da Jurisdição do Ordinário.49

Tudo terá tido início em 1560. Segundo Jorge Cardoso50, cronista da vida religiosa que viveu no século XVII:

“ Edificou-se sobre certo casório de uma nobre matrona, chamada Britis Pinta,

que o foi muito mais por sua honestidade, e recolhimento (no) ano (de) 1560, de licença del Rei D. Sebastião, debaixo da invocação de S. Marta. Por cuja morte, outra matrona, parenta sua muito chegada, por nome Maria Pinta, se recolheu a ele, com suas criadas, e algumas donzelas da terra, as quais gastavão o tempo com singular louvor em actos de exemplares mortificações, e virtudes.”

Segundo o Pároco do Torrão51, “essas casas” correspondiam a uma capela de

Santa Marta e alguns anexos, onde vivia como beata e instituidora Maria Pinta: “... e obtiveram Licença da Mesa de Consciência para fundarem; ficando as ofertas para os Priores. Tem boa igreja de Abobada, bastante Convento, Cerca52, que lhe acrescentou o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Miguel de Távora, a quem são sujeitas: estão muito pobres...”

Segundo o Padre António Carvalho da Costa, publicado em 1708, mas cujas informações remontam ao século XVII, encontramos os seguintes elementos:53

47 Cronologia Almóada. 48 Cujo destino actual desconhecemos. 49 Chorão(2000) Conventos. Dicionário de História Religiosa de Portugal, Vol. C-I, p. 22. 50 Cardoso (1657), Agiologio Lusitano, Tomo II, p. 346 51 Carneiro Alves (1758). Vila do Torrão. Memórias Paroquiais. Leitura de Carla Macedo, publicado neste numero do Neptuno. 52 Esta “Cerca” que foi acrescentada ao convento pouco antes de 1758, corresponde à musalla. 53 Carvalho da Costa (1708) Corografia Portuguesa e Descripçam Topográfica do Famoso Reyno de Portugal. Tomo segundo, p. 484

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“....(tem um convento) de Freyras da mesma Ordem (Franciscanos), da invocaçaõ de Nª Senhora da Graça, que se fundou pelos annos de 1560, com licença del Rey D. Sebastião em humas casas de Brites Pinta, mulher nobre, & era naquelle tempo Recolhimento dedicado a S. Martha. Depois pelos annos de 1599, se fundou o Convento com esmolas, que a Infanta D. Maria lhe deo.

Curiosamente, Jorge Cardoso, o autor que mais informação nos transmite sobre

esta casa monástica, menciona no seu Agiologio Lusitano54, a ocorrência de uma “ordem divina” que vai dar o impulso necessário para a edificação deste convento.

O convento das Clarissas foi erguido no final do século XVI, sobre as casas e capela de S. Marta, junto à estrada que ia para Beja, numa das entradas da Vila.

A construção da Igreja e claustro obedeceram ao espaço disponível, tendo sido condicionado ao eixo viário então vigente.

De 1599, até meados do século XVIII, o edifício conventual correspondia ao espaço definido pelo corpo da igreja a norte e o claustro a sul.

Com base nas notas bibliográficas de algumas irmãs virtuosas que viveram nesta casa, desde a sua fundação até ao século XVII e que anexamos neste trabalho, ficamos a saber alguns elementos da estrutura arquitectónica do convento e aspectos do seu quotidiano que serão abordados noutros estudos.

Resumidamente, o convento tinha no primeiro andar o dormitório e no rés-do-chão ficava o refeitório. Um dos compartimentos servia de “enfermaria”.

Em termos de hierarquia interna, existiam as irmãs que estavam “proibidas” de sair do convento e que eram apoiadas por serventes, que não estando sujeitas ao voto da Ordem Monástica, teriam em princípio, maior liberdade de circulação, podendo ausentarem-se do convento de forma a executarem alguns serviços externos.

Em termos de organização do espaço edificado, para sudoeste, a estrada de Beja cortava a possibilidade de expansão da cerca conventual. É nesta banda, no outro lado da estrada, mas pertencente a outro proprietário, que existia ainda de pé, o que terá sobrevivido da musalla55, já despojada da sua memória. 56

Segundo as Memórias Paroquiais, esse espaço é laconicamente denominado de “Cerca” “..., que lhe acrescentou57 o Excelentíssimo, e Reverendíssimo Senhor Dom Frei Miguel de Távora, a quem são sujeitas: estão muito pobres...”

O facto de pertencer a um elemento da família Távora é outro dado a reter, dada a ligação familiar directa existente com o ultimo Mestre da Ordem de Santiago, D. Jorge, filho bastardo de D. João II.

Admitimos, mesmo sem provas documentais claras, que a referida “Cerca Amuralhada”, poderá ter pertencido aos Espatários, desde a conquista até uma data indeterminada após o século XVI, altura em que entrará no património dos Távoras.

54 Cardoso (Ob. Cit.), Tomo II, p. 346-347 55 Sobre a questão da musalla islâmica, os interessados podem consultar os nossos trabalhos, que estão referenciados na bibliografia e disponíveis no site do Município de Alcácer do Sal. 56 É provável que no século XVII/XVIII o local fosse encarado como simples cerca/muralha e que uma “tradição local (!)”, de natureza indeterminada, impedisse a alteração profunda do espaço. Apesar dos dados lacónicos, é de aceitar que os terramotos de 1530 e o de 1755 tenham afectado o Torrão. O que identificamos na textura exposta da torre (onde se localizava o miḥrāb), é a utilização de vários fragmentos de estuque de areia de cal de cronologia indeterminada. Será que estamos perante restos do antigo miḥrāb? 57 Esta palavra “acrescentou” é muito importante, porque representa uma prova documental de que a Cerca já existia de pé, em data anteriormente a 1758 e que nada tinha a ver com a arquitectura conventual, dado pertencer a outro proprietário. Achamos interessante o espaço pertencer a um elemento religiosos da poderosa família Távora, o que sugere que se tratava de um espaço cercado com algum prestígio. O texto não é claro sobre a data da doação, contudo admitimos que, dado que o doador ainda se encontrava vivo em 1758 e que as freiras se encontravam “muito pobres”, é provável que elas terão recebido esta Cerca pouco depois do terramoto de 1755. As fotos da cerca mostram claramente duas fases de construção, que provavelmente mostram a ocorrência de obras após esta calamidade que atingiu o Torrão.

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Desconhecemos como terá sido aceite pela vereação do Torrão a desactivação da estrada para Beja, contudo a “anexação” deste troço foi efectuada e consumada, mantendo-se actualmente. 3. Breves Apontamentos Bibliográficos: Anexo documental

A nossa base de trabalho incidiu na pesquisa efectuada na obra de Jorge Cardoso, o Agiologio Lusitano, escrito no século XVII e cujo último volume foi publicado no século XVIII.

Não se trata de um registo completo de todas as freiras que habitaram este convento, mas o seu autor quis dar a conhecer a vida e feitos milagrosos de algumas religiosas que de uma maneira ou de outra, foram consideradas santas ou virtuosas e como tal, merecedoras de registo para memória futura.

Estes elementos, permitem-nos tentar imaginar como seria o quotidiano num espaço conventual feminino nesta região após o Concilio de Trento e até ao final do século XVII. 3.1. Nota Prévia:

Mantivemos o texto original, contudo para facilitar a sua compreensão, procedemos à actualização de algumas palavras, mudando igualmente a paginação original, dado que os textos se encontram encadeados entre si, numa sequência contínua, sem parágrafos.

Muitas das vezes, o cronista não refere as datas dos acontecimentos que relata, mas dado que o convento foi fundado em finais do século XVI e o autor escreveu no século seguinte, estamos cientes que os relatos mencionados referem acontecimentos centrados no século XVII, provavelmente na primeira metade. 3.2. As Freiras. Sòr Maria da Cruz Franc. (28 de Março)

Em N. Senhora da Graça do Torrão, Arcebispado de Évora, o falecimento de Sòr

Maria da Cruz, origem, e princípio desta religiosa casa. Criou-se ela na da Infanta D. Maria, onde já se levantava às duas horas depois

da meia noite a orar, o que continuou consagrada a Deus por voto, levando-lhe a maior parte do dia este louvável, e santo costume, a que juntava estreita pobreza, trazendo hábito de xerga, seguindo as comunidades com austera vida.

Nunca usou de medicina, ou cura alguma nas enfermidades, nem por mais doente, que estivesse, comeu carne em festa, ou sábado, mais que o pior, e sobejos das outras, nem sendo velha, (não) consentiu (que) usassem com ela de algum mimo, ou regalo particular.

Rezava todos dias o Psalterio pelas almas, e era tão compassiva, que não podia ver matar uma ave, e por isso tinha muito particular cuidado dos gatos, os quais a seguião para onde quer que ia, e no refeitório a cercávão.

Sucedeu que fazendo a esta serva de Deus, Vigaria da casa, lhe disserão algumas religiosas motejando. Agora sabe V. R. o que há de fazer, ir à mesa travessa,

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rodeada de gatos. Ela ouviu, e calou. E depois chamadas a todas lhes fez Capitulo, dizendo:

- Bem vedes, que para mor de vós me deste autorização, e já disserão, que não era para o cargo, vós vos avisais, que estes três anos não entreis no refeitório, e esperais à porta, que eu terei cuidado de vos prover

Foi coisa admirável, e misteriosa, que como se tiverão uso de razão, se abstiveram o triénio, sem entrarem nele, esperando fora que a Madre viesse para lhes dar sua refeição (coisa publica, e notória na dita casa) e acabando o ofício, continuarão como dantes.

Veio esta santa velha no fim da idade a cair em cama, onde prosseguia a mesma vida, que em moça, até que (com santa inveja de suas companheiras) caminhou para os choros Angélicos, a quem todas imitávão, como modelo excelente de virtude, e exemplar de perfeição.

J. Cardoso, (1657), Agiologio Lusitano, II, 339, 340 Sòr Clemência de Jesus Clarissa (24 de Março)

No mesmo dia, em o convento de N. Senhora da Graça do Torrão, Arcebispado

d´ Évora, o óbito de Sòr Clemência de Jesus, religiosa penitente, & fervorosa na oração, que regava com grande copia de lágrimas, na qual foi vista por vezes, pregar-se ao lugar, onde a exercitava, porque o espírito a levava pelos ares.

Persuadida então das companheiras, que lhe declarasse algumas coisas das quais o divino Amante lhe dava a sentir, para mais louvavam, e engrandeceram suas misericórdias, nunca quis, antes molestava a todas, que guardassem silencio, quando fossem tão ditosas, que ele lhes comunicasse semelhantes favores, trazendo por exemplo aquelas palavras de seu Santo Patriarca: secretum meum mihi. Assentada no refeitório para comer, debulhava-se primeiro em lágrimas, e perguntando-lhe, porque chorava, respondia: Acho-me indigna de ter lugar na mesa de S. Clara; por ser sua humildade, que tanto a abatia, quando subia pela oração.

Chamada para o Sacramento da Penitencia corria a mor pressa, dizendo: Que não queria lhe preferisse ninguém na hora de sua salvação. Finalmente na última doença, por espaço de 18 dias, não levou nada para baixo, e rogada das religiosas, que comesse para poder com o mal, respondia com devoção: Non in solo pane viuit homo; e assim mesmo neles não falava mais que consigo, ouvindo-se-lhe uma vez entre dentes: Inimigo não tens, que fazer comigo, porque as esmolas, que despendi sendo porteira, forão com licença da prelada. E com estas palavras na boca: Sorores sobriae estote, & vigilate, quia aduersarius vester diabolus, tamquam leo rugies, &c.

Acabou, como viveu, com morte santa. J. Cardoso, (1657), Agiologio Lusitano, II, 304, 305

Sòr Mariana de Assunção Franciscana (18 de Abril)

Neste dia, em N. Senhora da Graça do Torrão, Arcebispado de Évora, deixou de

viver Sór Mariana da Assunção, a qual de muita pouca idade começou a dar mostras, que o soberano Amante a tinha escolhido para sua querida esposa, antecipando-lhe a graça prevenindo o uso da razão, jejuando, e orando perpetuamente, usando de vilíssimo habito pardo com honesto toucado, até que acompanhando a duas irmãs

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suas, que vinhão ser freiras no dito convento, tanto que abrirão a porta regular, entrou de romaria com elas, contra vontade de seus pais, e dos Prelados, porque era muito achacosa, e doente; mas forão tantas suas lágrimas, e soluços querendo-a logo por na rua, que mandou com censuras o Arcebispo D. Diogo de Sousa (remoto parente seu) que a deixassem ficar até constar a vontade divina.

Coisa maravilhosa! De improviso a desamparou a febre, e cobrou perfeita saúde com admiração de todos.

Passados alguns meses, querendo a Abadessa lançar-lhe o habito, recresceram duvidas sobre o dote, buscada neste começos para seus pais a levarem para casa, foi achada de joelhos em oração num entre forro, abraçada com um Crucifixo, banhada toda em lágrimas, meio com que elas a acharam-na mais depressa.

Vendo-se pois D. Mariana entre as servas de Deus numerada, tratou de as imitar, empregando-se em altíssima contemplação, na qual o celestial esposo lhe revelou notáveis segredos.

Destes felizes progressos em breve na virtude, por vezes (o) invejoso demónio, pretendeu inquietá-la, para isto se transformava em Anjo da Luz, fazendo-a a sentir em coisas contrárias a sua salvação.

E dando ela conta a seus Padres Espirituais, parecendo-lhes que estava iludida, foi examinada por graves, e doutos Teólogos, os quais averiguarão, que tivera vinte e duas revelações verdadeiras, e que nesta somente fora enganada, permitindo assim Deus para mais a humilhar.

E porque o negócio andava já na boca da comunidade, a Madre Abadessa (por conselho dos Confessores) lhe deu algumas penitências publicas, como tomar disciplina, servir na cozinha, andar sem chapins (calçada), comer com as serventes, e lavar os pés a todas, o que ela obrava com extraordinária alegria, e contentamento, não fazendo caso das injurias, e afrontas, com que era (sujeita) a toda a hora, mais que responder com sumida voz, quando lhe chamavão endemoniada: Também a meu Senhor Jesus Cristo o chamarão, e a serva não á de ser melhor, que o senhor.

Sobrevindo-lhe então um frouxo de sangue á boca, conhecendo daqui a brevidade da vida, pediu o sagrado Viático, e santa Unção, tremendo a casa ao tempo, que se lhe administrou.

De que ela com grande serenidade voltada para a Abadessa disse: São traças do inimigo, a quem não temo pela misericórdia divina.

Rendidas do sono as religiosas, que lhe assistirão, na madrugada do Sábado santo, bradou tão alto, que lhe dessem a candeia, que se ouviu no dormitório, e acudindo-lhe, repetiu o Credo pausadamente, e nas ultimas palavras

- Et vitam aeterenam Ame(m); foi gozar dela para sempre, em companhia das santas Virgens da Ordem.

J. Cardoso, (1657), Agiologio Lusitano, II, 628, 629

Sòr Francisca das Chagas Menorita. (2 de Maio)

No Convento de N. Senhora da Graça do Torrão, a saudosa memória da Madre

Francisca das Chagas, que de menina se entregou toda à virtude, padecendo logo gravíssimas tentações, maquinadas pelo inferno, das quais (ajudada do braço Superior) saia sempre vitoriosa.

Era tão aplicada à oração, e meditação, que gastava nela dias, e noites inteiras sem o sentir, com tão copiosos mares de lágrimas, que correndo em fio de seus olhos, banharão o lugar em que premeditava.

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Tomava graves penitências, e disciplina por suas mãos, repousava sobre áspera cortiça, passava quase todo ano sem se dejejuar, e desejava tanto padecer pelo Redentor, que continuamente lhe pedia atormenta-se seu corpo com tais dores, e chagas, que parecesse outro Job, até que mereceu ouvir de sua divina boca:

- Filha estás despachada à medida do teu desejo: com que ficou muito consolada.

Quando dali a poucos dias lhe nasceu um mordaz cancro na face esquerda, e tanto se apoderou da queixada, que em breve chegou ao ombro com notável disformidade, sobrevindo-lhe a tempos copiosos froxos de sangue, os quais (feita um protótipo de paciência) com inaudita alegria recolhia numa vasilha, que para isto trazia consigo, ficando muitas vezes quase morta; sem pulso, até que tornava, dizendo:

- Este é o favor que o soberano Rei da Gloria me prometeu: pelo qual lhe rendia multiplicadas graças, e muitas mais, depois que se viu segregada da Comunidade, por conselho dos Médicos, entendendo-se ser o mal contagioso.

Porem as Religiosas, como havia sido mãe de todas, obrigadas do excessivo amor que lhe tinham, nunca a desampararam.

As quais ela dizia confiadamente: - Madres por mais que continuem em me ver, não hão de contrair semelhante

mal, porque o Senhor assim mo prometeu, quando lho pedi, reservando só para esta pecadora, tão cordial mimo.

Neste estado preservaram seis meses, sem afroxar já mais de seus rigores, nem consentir roupa de linho no leito.

E vaticinando a morte, que seria no princípio de Maio, preparava para ela o sagrado Viático, e santa Unção, se foi em provizo ao refrigério eterno.

No dia seguinte, praticando na varanda duas Religiosas à prima noite cerca de sua salvação, levantando (por) acaso os olhos ao Céu, virão uma extraordinária luz, que lançava de si refulgentes raios, e no meio uma alvíssima pomba, com asas argentadas, como a pinta ou Psalmista, e gritando ambas:

- Lá vai a alma de Sòr Francisca para a glória. Acudirão a seus brados outras, que também participarão da mesma visão, e o

resto da casa, que naquele comenos estava em oração, entendeu o mesmo, porque querendo aquelas contar a estas, o maravilhoso sucesso, elas lho manifestarão primeiro, com que todas louvando ao Senhor, ficarão certas de sua predestinação.

J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 31, 32

Catharina de S. João (3 de Maio)

Neste dia, no Convento do Torrão, rematou seus breves, mas felizes anos, Catharina de S. João, servente desta santa Comunidade; em cujo humilde exercício, se mostrou sempre diligente, solicita, zelosa, e afável, atraindo a si com isto, as vontades de todas.

Passava a vida irrepreensivelmente, com tal pureza de consciências, que mereceu ver, três dias antes que expirasse, a Cristo crucificado, e a Maria Santíssima, a quem encomendou a perpetuidade desta casa, dizendo também coisas admiráveis, e celestiais, no espaço deles, até que voou sua cândida alma, como Pomba sincera, a descansar em ninho da eternidade, tendo somente vinte anos de idade.

J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 51

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Sòr Isabel do Rosário Clarissa (6 de Maio)

Em N. Senhora da Graça do Torrão, (Mosteiro de Clarissas no Arcebispado de Évora) a saída deste para o outro mundo de Sòr Isabel do Rosário, Freira de véu branco, em cujo sujeito resplandecia já no berço a santidade, onde parece a prevenio o Senhor, para mimola, e regalada esposa sua.

Crescendo pois na idade, e virtude, vendo-se alistada entre as servas de Deus, fez seu emprego na oração mental, delicioso pasto das almas, em que recebia singularíssimos favores do Céu, e na lição dos livros devotos, e espirituais, que lhe servirão de mestres para os saber conhecer, e estimar.

E com isto agradou tanto ao celestial esposo (a quem todos seus cuidados se dirigião) que sublimou uma alta contemplação, e intima união com ele, nomeando sempre a N. Senhor pelo seu Amado.

E por ter esta prerrogativa a Águia dos Evangelistas, lhe era tão afecta, que nos dias de suas Festas, corriam por sua conta os gastos, e esmolas das Missas. E assim mesmo ao mellifluo Bernardo, por ser amores da Rainha dos Anjos.

Era muito caritativa para as enfermas, desvelava-se em lhes assistir, e procurar o necessário de cada dia, não se apartando nunca da presença divina.

Na ultima enfermidade, conheceu dias antes, que dela havia de morrer, dizendo continuadamente:

- Graças vos dou Senhor, por ser já chegado o tempo de minha alma deixar o cárcere terreno, que há quarenta anos a detêm. Bendito sejais meu Amado, que brevemente vos hei-de ver às claras nessa Celestial Jerusalém, que tantas vezes passeie em espírito.

E desejando já de chegar àquela ditosa hora, confessou-se geralmente com muitas lágrimas, porem não comungou por causa dos vómitos, contendo-se com adorar o Santíssimo Sacramento, pedindo ao Sacerdote, que lhe desse a beijar a sagrada Hóstia, para consolação sua.

Tomou logo os Santos Óleos, e estando muito presente a tudo. Porque perguntando-lhe neste comenos certa Religiosa: - Se estava conforme co a divina vontade. Respondeu: - Paratum cor meum Deus, paratum cor meum. E vendo que se acabava a semana, prazo pelo Céu assinado, sem fazer

jornada, na noite da festa para o sábado, exclamou: - Ainda amanhã, Senhor, ainda amanhã. E inquirida a razão, não acudiu com ela, sendo que tinha os sentidos mito

espertos. E Quando depois virão que falecera ao Domingo, entenderão que se queixava

de ter mais um dia de vida. Abraçada então com um Crucifixo, pronunciando aquelas devotas palavras: - Christus factus est pró nobis obediens, vsque ad mortem, rendeo o galhardo

espírito. J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 97,98

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Sòr Catarina da Trindade. (22 de Junho)

Também no Convento de N. Senhora da Graça do Torrão, resplandeceu entre outras servas de Deus, a Madre Catarina da Trindade, que nunca faltou nas Comunidades, por maiores enfermidades que padecesse.

Era muito penitente, e abstinente, debreavase com açoites continuadamente, sem levar para baixo coisa de porte.

Sabendo que alguém se escandalizara dela, antes que se recolhesse, lançada a seus pés, com as mãos postas, lhe pedia perdão, dizendo:

- Que não isto virtude, mas obrigação da Regra. Três dias antes que expirasse, esteve sem ver, nem ouvir nada deste mundo,

dizendo coisas admiráveis do outro, e batalhando com o inimigo infernal, até que pronunciando com voz prateada:

- Laudate Dominum omnes gentes, partiu para o choro das santas Virgens, em idade de 28 anos, acompanhada de egrégios feitos.

J. Cardoso, (1666), Agiologio Lusitano, III, 787 4.2.6. Convento de S. Francisco do Torrão

O convento foi fundado em 1604, pela “…Serafica Observância, chamados

Xabreganos, por ser a cabeça da sua Província o Convento de Xabregas junto a Lisboa”, do Convento de invocação a Santo António, na vila do Torrão58

Foi instituída por Vasco Borralho de Villa Lobos e Missia Lopes, erguido sobre a capela de São Sebastião59.

Infelizmente são escassos os elementos actualmente disponíveis para efectuar a história deste imóvel religioso.

Sabemos que em 1772 a vila do Torrão tinha um professor de Gramática Latina e que esse ensino é referenciado em 1780 para o convento de São Francisco, onde igualmente se ensinava a ler e escrever.60 4.2.6. Ermidas da Freguesia do Torrão 4.2.6.1. O papel das Ermidas no Espaço rural do Torrão.

As ermidas em contexto medieval não se resumem só a espaços sagrados de devoção popular, objecto de romarias sazonais ligadas aos ciclos da natureza.

Numa tradição que remonta à Antiguidade Tardia, as ermidas localizadas nos arredores de uma estrutura urbana, contribuem para a defesa espiritual/sobrenatural dos seus habitantes acantonados dentro de muralhas, face aos perigos da época (cercos, banditismo, guerras).

58 CASTRO (1763) Mappa de Portugal Antigo e Moderno. Tomo Segundo, fol. 126 59 MACEDO (2009) INQUÉRITOS PAROQUIAIS (…): Resposta da Freguesia de Torrão. Neptuno, ADPA (prelo) 60 SERRÃO, Veríssimo (1979) HISTÓRIA DE PORTUGAL (1750-1807), p 258 e 450

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Daí a sua implantação em locais estratégicos, com boa visibilidade e as lendas

de carácter militar que por vezes acompanham a sua fundação. Esta mais-valia militar poderá ser encontrada, exposta em textos de alguns

estrategas militares do Período Moderno, que referem as ermidas como atalaias defensivas que contribuem para a defesa activa dos espaços urbanos.

4.2.6.2. Ermida de S. João dos Azinhais

Uma das jóias escondidas do património do Torrão, à sua espera. Local aprazível, surge como um oásis junto às águas da albufeira da Barragem

de Vale do Gaio. Ao longe é visível o casario branco da Vila do Torrão, coroado com as torres sineiras das suas igrejas.

A ermida actual, é uma construção de meados do século XVII, que assenta sobre estruturas de uma villa romana, que terá perdurado até ao Período Visigótico.

Nessa Fase, nas vésperas da conquista islâmica, foi erguida uma igreja dedicada a dois mártires hispânicos, Justo e Pastor, martirizados no tempo do imperador Diocleciano. A memória de espaço sagrado terá sido mantida ao longo dos séculos, mas também poderá ter sido o resultado da leitura da lápide de fundação da igreja, efectuada por algum clérigo conhecedor de latim, que no Período Medieval se tenha deslocado ao local. Temos o exemplo do que aconteceu na vizinha aldeia da Tourega/Évora, cuja má leitura de uma inscrição romana pagã esteve na origem de um episódio caricato, dado a conhecer por André de Resende no século XVI.

Enquanto não houver mais elementos documentais será prematuro avançar em hipóteses em relação a este local, entre o final do Período Visigótico e o século XVI.

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4.2.6.3. Ermida de S Fausto

Ermida localizada junto ao Torrão, na margem oposta do rio Xarrama, no alto de uma vasta colina.

Em termos de implantação e provável génese, assemelha-se ao padrão descrito para S. João dos Azinhais, contudo temos menos dados.

Leite de Vasconcelos leu a data de 1645, contudo ela já é referida como couta da Ordem no Foral dado ao Torrão por D. Manuel I.

A ermida actual, que datará de 1645, foi erguida sobre uma ocupação romana de tipologia indeterminada. O orago que possui, S. Fausto parece remontar à Antiguidade Tardia.

Nesta fase da Contra-Reforma, pós Concilio de Trento, assiste-se em Portugal e em Espanha, à sacralização progressiva de espaços sagrados, cristãos ou não, como forma de os conquistar para a verdadeira fé.

De referir que junto à ermida, ficam os restos de uma anta pré-histórica, onde segundo a lenda terá sido encontrada uma imagem do mártires.

S. Fausto, de forte devoção no Torrão, era o protector contra as febres, pragas e pestes.

A sua posição estratégica também representava uma mais-valia como atalaia para a defesa militar do Torrão. 4.2.6.4. Ermida de N ª S ª do Bom Sucesso

Alguns autores defendem a sua construção por iniciativa de D. Manuel I, no início do século XVI, contudo a documentação actualmente aponta para uma construção de raiz no do século XVIII, sobre um local “ermo”chamado Mosteiro Velho. Na realidade pouco sabemos da história desta ermida.

A ermida localiza-se num local ímpar em termos de visibilidade, permitindo um domínio do espaço circundante que entra mais no âmbito militar do que religioso.

Para sul é possível ver um conjunto de povoações, como Beja, Ferreira do Alentejo ou Odivelas.

Na linha do horizonte é visível a crista da serra de Grândola e à noite, as luzes de Alcácer do Sal, querendo isto dizer que com um sistema de almenaras (utilizando fogueiras) era possível comunicar directamente com Alcácer.

Por outro lado, dominava o espaço urbano do Torrão e o acesso à ponte do Xarrama.

Este é um dos raros locais localizados a norte onde é possível ver a ermida de S. João dos Azinhais. Não estamos perante uma coincidência, mas antes perante um conjunto de elementos que importa reflectir.

Todo este conjunto de elementos só tem sentido, se for ao encontro da “sacralização ulterior do espaço” e à devoção que ele teria na população do Torrão em contexto Medieval.

Retomando o que foi dito anteriormente, o local era denominado de Mosteiro Velho. Que construção seria essa61 ou a que memória estaria vinculada?

61 No local a cerâmica é escassa e quase toda do século XVIII, coerente com a construção existente, contudo foi recolhido um fragmento de parede, em cerâmica comum local, com decoração a pente, associado a marcas de corda, que só aparece em contextos do Emirato do Alqueva e na Alcaria do Alto da Queimada/Palmela.

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Dado que a sua localização estratégica no alto de uma colina lhe permite um controle visual excepcional, permitindo-o observar na linha do horizonte as serras de Grândola, Arrábida, as luzes de Alcácer, Palmela e Beja, estamos em crer que terá existido aqui ou próximo, uma atalaia, de génese provavelmente islâmica, que terá sido mantida. A persistência sagrada do espaço ao longo dos séculos, “Mosteiro Velho” permite supor que esse posto de vigilância islâmico poderia ter tido função de ribat.

De notar que estes ribates poderiam resumir-se a simples torres em taipa e alvenaria, ou até mesmo em material perecível, como madeira ou canas.

Em contexto islâmico, o que atribui o nome à estrutura, não é a função, mas sim o que as pessoas fazem nesse espaço, por isso não existe uma “norma arquitectónica específica”, o que também explica a sua “invisibilidade” em termos de documentação histórica e arqueológica.

O que prevalece é a “memória do espaço sagrado” e a devoção que as populações sentem em relação a ele, numa cumplicidade de gerações, em códigos e rituais que só os torranenses sabiam e praticavam

Anexo Documental

Autorização Régia para a edificação da Capela de Nossa Senhora do Bom Sucesso, no sítio do Mosteiro Velho (1729)62

“ D. João por graça de Deus Rei de Portugal etc. Faço saber aos que esta minha Provisão virem que tendo respeito ao que me representou o Juiz e mais irmãos da confraria de Nossa Senhora do Bom Sucesso erecta na ermida de S. João Baptista do termo da vila do Torrão que é da dita Ordem, em razão que pela pequenez da dita ermida onde está situada em lugar ermo, distante daquela vila meia légua, além do incómodo que no tempo do Inverno recebem de uma grande e caudalosa ribeira que atravessa a estrada que vai da dita vila para o sitio da sobredita ermida que por não ter ponte (63) lhe impede a passagem dos Pegões e a romagem aos devotos, com o produto do rendimento do terreno duma feira que se faz na mesma vila em dois de Agosto que Eu lhe havia concedido por esmola aplicar à dita Senhora, o qual produto há anos vai ficando em depósito para a mesma confraria e com algumas esmolas mais com que concorrem os devotos cristãos, pretendem os suplicantes edificar capela com invocação da mesma Senhora do Bom Sucesso no sitio do Mosteiro velho, que fica circunvisinho da dita vila, e tresladar para ela a imagem da mesma Senhora a donde a confraria com menos despeza e maior culto e xxx assistência decente dos votos a podem venerar, pedindo-lhe fizesse mercê conceder a dita licença para com o sobredito rendimento e esmolas poder edificar no dito sitio uma capela á mesma Senhora do Bom Sucesso. E tendo consideração ao referido e informação que se houve do Juiz da Ordem daquela comenda e resposta do meu procurador geral das ordens hei por bem e me praz conceder aos suplicantes a licença que pedem, para que possam edificar uma capela no sitio que apontam á dita Senhora do Bom Sucesso e tresladarem para ela a imagem da mesma Senhora com declaração que primeiramente 62 Documento fotocopiado existente no Fundo Local da Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal, anexo ao Diário de Campo de Gustavo Marques (1983) 63 Segundo este documento datado de 1729 é referido que não existe ponte, contudo alguns anos mais tarde, em 1758, o pároco do Torrão menciona a grande antiguidade desta ponte, que segundo a tradição popular, associada à capela de S. João Baptista, teria existido um antigo templo romano pagão, dedicado às “virgens Vestais”, referindo igualmente a abundância de vestígios antigos junto à ponte e ao nível do leito do Xarrama! Por outro lado, a identificação nos anos 80 do século passado, por João Carlos Faria, de um caminho romano no sítio da Calçadinha que se direcciona para esta estrutura, implica a existência de uma travessia consentânea com a via romana.

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farão escritura perante o Juiz da Ordem da dita Comarca, na qual ficará obrigada a renda do terrado da feira e seu produto para a fábrica da dita capela e sua conservação que os suplicantes e seus sucessores ficarão em tudo sujeitos ás definições da dita Ordem de Santiago e seus visitadores e ficará em tudo salvo o direito paroquial. Pelo que mando ao Juiz da Ordem da Comarca que na forma referida nesta minha provisão a cumpra inteiramente como nela se contem sendo passada pela Chancelaria da Ordem. El Rei N. Senhor o mandou pelos DD. Frei Miguel Barbosa Carneiro, e Joaquim Correia de Abreu Deputado do Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens. João da Silva da Cruz a fez em Lisboa Ocidental em 24 de Março de 1729. Lic. Vaz Preto Monteiro a fez escrever.

Interior da ermida de Nossa Senhora do Bom Sucesso, Torrão.

Um passeio botânico ao Torrão (publicado em 1902)64

“ A cerca de um Kilometro, para o nascente, levanta-se a elegante ermida da Senhora do Bom Sucesso, muito branca, sobre uma pequena elevação do terreno e onde todos os annos, em Setembro, se faz a festa dos trabalhadores, com philarmonica e danças das raparigas.

Dando-me informações do Torrão, escreve o Diniz Neves: « Do terraço que encima o pórtico d´esta ermida disfructa-se uma paizagem bella: de um lado, a poente, vê-se a casaria branca da villa dominada pela egreja matriz que se eleva sobre um montículo, ao fim, quasi á beira do abrupto declive forrado de oliveiras e azinhos que vai ter á ribeira – o Xarrama – de leito pedregoso e coleante; do nascente há toalhas de searas, alguns montes pondo notas brancas no verde melancholico da 64 SAMPAIO (1902). Um passeio botânico ao Torrão. Boletim da Sociedade Broteriana, XVIII, Fasc. 1-2, Coimbra, p.49

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planície, e por fim, longe, a barriga lisa e verde dos montes que nos escondem as terras de Alvito e Vianna. Para sul perde-se a vista: muito longe, á direita, negreja a Serra de Grândola; em frente, quando o ar está límpido, vê-se Ferreira e o grande massiço de eucalyptos por onde enfia a estrada que d´aqui conduz lá; para a esquerda, mais longe ainda, 12 leguas talvez, distingue-se a mancha de Beja. Do lado do norte é a paizagem mais accidentada e mais curta, denunciando a passagem tortuosa do Xarrama»

4.2.6.5. Ermida de São João Nepumoceno

Orago muito

interessante atribuído a uma ponte.

Pequena capela localizada junto à ponte romana do Torrão.

Fundação em data indeterminada, mas anterior a 1758.

O orago actual poderá ser posterior a 1729, ano em que este santo foi canonizado pela Igreja Católica.

Segundo a tradição, a capela foi mandada erguer por Severino José Xavier e outros devotos. Na Europa, este santo natural da

república Checa, é o padroeiro da Bohemia assim como das pontes e contra as calúnias.

Talvez seja essa a mensagem sagrada do espaço: - Protecção aos viajantes e comerciantes, numa altura em que o banditismo era um fenómeno endémico que assolava as rotas comerciais.

Seja como for, é patente a preocupação dos torranenses em relação aos comerciantes e viajantes, no decurso dos séculos. Este facto terá cimentado as devoções, como parecem serem os casos documentados da Igreja de Nª Sª da Albergaria e este de S. João Nepumoceno.

Anexo Documental

Autorização Régia para a realização de uma feira junto à ermida no dia 5 de

Agosto de cada ano (1718)65

65 Documento fotocopiado existente no Fundo Local da Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal, anexo ao Diário de Campo de Gustavo Marques (1983)

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“D. João por graça de Deus Rei de Portugal etc. Faço saber que havendo respeito do que por sua petição me representaram o Juiz e mordomos da Confraria de Nossa senhora do Bom Sucesso sita na ermida de S. João Baptista, do termo da vila do Torrão, para efeito de lhe conceder licença para no sitio da dita ermida se fazer em o dia cinco de Agosto uma feira em lugar da que se fazia em o sitio do Sado em dez de Agosto a qual se não faz há muitos anos, para com as esmolas dos devotos que concorrem á dita feira ir em aumento o culto e devoção da dita Senhora que é uma imagem muito milagrosa que continuamente está mostrando prodígios e visto o mais que alegam, informação que se ouviu pelo Provedor da Câmara de Beja, porque constou que ouvindo aos oficiais da Câmara da vila do Torrão sobre este respeito não fizeram nele duvida e a resposta do meu Procurador da Coroa a quem se deu a dita. Hei por bem que no sitio acima referido, em cinco do mês de Agosto de cada ano se possa fazer uma feira em que se vendam todas as mercancias que não forem proibidas, gado, cavalgaduras com declaração que se não há-de por imposição alguma para a confraria ás pessoas que frem á dita feira e esta provisão se cumprirá como nela se contem, posto que seu efeito haja de durar mais dum ano embargo da Ordem livro 2º paragrafo 4º em contra; e não pagarão novos direitos que lhes não lançarão como consta por certidão dos oficiais deles por não ser fraca esta feira.

El-Rei Nosso Senhor manda pelos DD. António dos Santos Oliveira, e António de Beja Noronha, ambos do seu Conselho e seus… do Paço. Tomaz da Silvaa fez em Lisboa aos 8 de Julho de 1718. Pagou-se do feito 200 reis. Baltazar Teles, Sinel de Cordes, António da Silva Oliveira, António de Beja de Noronha. Cordes. Por despacho do Desembargador do Paço, de 5 de Julho de 1718 em observância da lei de 24 de Julho de 171… José Galvão de Lacerda 11.200 rs. E assim o fez -450 rs.

Lisboa ocidental, 12 de Julho de 1718.

Dom Miguel Maldonado.


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