José Lourenço Pereira da Silva
Kariel Antonio Giarolo
Evandro Oliveira de Brito (Organizadores)
Textos da V Jornada Nacional de
Pesquisa na Pós-Graduação em
Filosofia da UFSM
Promoção Programa de Pós-graduação
em Filosofia da UFSM
Parceiro Editorial Editora Centro Universitário
Municipal de São José
2015
COMITÊ CIENTÍFICO
Presidente
Prof. Dr. José Lourenço Pereira da Silva
Membros
Prof. Dr. Frank Thomas Sautter
Prof. Dr. Rogério Passos Severo
Prof. Dr. Silvestre Grzibowsk
Capa Estevan Garcia Poll
Projeto gráfico e diagramação:
Kariel Antonio Giarolo e Evandro Oliveira de Brito
Revisão e correção ortográfica:
Kariel Antonio Giarolo
Parceiro Editorial
Editora Centro Universitário de São José
Atribuição - Uso Não-Comercial
Vedada a Criação de Obras Derivadas
100
M433i Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-
Graduação em Filosofia da UFSM / José
Lourenço Pereira da Silva, Kariel Antonio
Giarolo, Evandro Oliveira de Brito
(organizadores) – São José : Centro Universitário
Municipal de São José, 2015.
261 p.
ISBN 978-85-66306-14-9 (e-book)
1. Análise da Linguagem e Justificação 2.
Ética Normativa e Metaética 3. Fenomenologia e
Compreensão I. Silva, José Lourenço Pereira. II
Giarolo, Kariel Antonio. III. Brito, Evandro Oliveira. IV.
Título.
CDD 100
COMISSÃO ORGANIZADORA
Docentes
Prof. Dr. José Lourenço Pereira da Silva
Prof. Dr. Evandro Oliveira de Britto
Doutorando Kariel Antonio Giarolo
Equipe de Apoio
Álan Arruda Matos
Aline Ibaldo Gonçalves
Allana Focking
Bruna Brambatti
Bruno Martinez Portela
Cecília Noemí Rearte Terrosa
Cristina Gabriela Feiber
Guilherme de Freitas Soares
Guilherme Pinto Ravazzi
Karen Giovana V. C. Naidon
Mateus Romanini
Paulo Gilberto Gubert
Promoção
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSM
Apoio Institucional
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Centro de Ciências Sociais e Humanas
Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFSM
Departamento de Filosofia
7
Textos da V Jornada Nacional de Pesquisa na
Pós-Graduação em Filosofia da UFSM
SUMÁRIO
José Lourenço Pereira da Silva (UFSM)
Apresentação ........................................................................... 11
Alexandre Neves Sapper (UFPel) O estado de natureza no plano internacional sob a perspectiva
de Thomas Hobbes e a impossibilidade de paz perpetua ........ 13
Andrei Pedro Vanin (UNIFESP)
Scientia e contingência diacrônica e sincrônica em Duns Scotus
................................................................................................. 25
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann (UFSM)
Sartre e as relações intersubjetivas: entre o conflito e a
generosidade............................................................................ 39
Dinno Camposilvan Zanella (UFPel) Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva em Santo
Agostinho ................................................................................ 57
Evandro Oliveira de Brito (UFSM) Franz Brentano crítico de Franz Miklosich: considerações
brentanianas acerca do trabalho sübjektlose sätze .................. 77
8
Felipe Bragagnolo (UFSM)
Consciência intencional: uma análise levinasiana .................. 91
Giovane Martins Vaz dos Santos (PUC-RS)
Tiago Porto Pereira (PUC-RS)
Acerca do tempo: história, metafísica e virtualidade ............ 107
Kátia Marian Correa (UFSM)
Consciência e intencionalidade: Sartre e a fenomenologia ... 125
Leonardo Edi Ignácio (UFSM)
Paul Feyerabend: desfazendo mal-entendidos ...................... 135
Luana Talita da Cruz (UFPel)
Considerações acerca da influência de diferentes correntes
lógicas da antiguidade em boécio ......................................... 145
Marcelo Vieira Lopes (UFSM)
Da analítica existencial à metafísica do dasein: o tema da
liberdade ................................................................................ 153
Mariane Farias de Oliveira (UFRGS)
A diferença entre menção e caracterização dos endoxa na
filosofia de aristóteles ........................................................... 167
Paulo Henrique de Toledo (UFSM)
Thomas Nagel e a sorte moral ............................................... 179
9
Rômulo Eisinger Guimarães (UFSM)
ÉDIPO-REI NO STADTTHEATER KÖNIGSBERG ......... 191
Rudimar Barea (UFSM)
Fato e essência no método fenomenológico de Husserl ....... 207
Susie Kovalczyck dos Santos (UFSM)
Emoções e intencionalidade .................................................. 223
Vinícius dos Santos Brittes (UFSM)
Verdade e metafilosofia em Richard Rorty........................... 233
11
APRESENTAÇÃO
As Jornadas de Pesquisa na Pós-graduação em
Filosofia da UFSM chegam a sua quinta edição firmes no
objetivo de promover o debate e a divulgação das
pesquisas de discentes e docentes de Programas de Pós-
Graduação em Filosofia. O encontro, já consolidado
como evento nacional, tem contado com significativa
participação de estudantes e professores estrangeiros.
No mesmo propósito de ser um momento especial
de interlocução entre pesquisadores nos diversos estágios
e níveis de pesquisa e dos diferentes campos de
investigação filosófica, a V Jornada Nacional de Pesquisa
na Pós-Graduação em Filosofia da UFSM teve em sua
programação palestras representativas de três linhas de
pesquisa de nosso PPG Filosofia: Análise da linguagem e
Justificação, Ética Normativa e Metaética,
Fenomenologia e Compreensão; desse modo os
participantes puderam assistir e envolver-se nas
discussões sobre temas variados da tradição filosófica e
que são tratados sob perspectivas distintas.
Os trabalhos selecionados (majoritariamente de
mestrandos e doutorandos) aqui publicados indicam o
progresso e a qualificação no sistema de Pós-Graduação
em Filosofia no Brasil. A promoção da Jornada de
Pesquisa é uma contribuição que o Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UFSM e o Departamento de
Filosofia buscam oferecer para esse processo. É pois,
com muita satisfação que publicamos os artigos dos
participantes desse encontro, com o propósito de
12
consolidar o enriquecimento estimulado pelo debate e
pelo intercâmbio de ideias.
José Lourenço Pereira da Silva
13
O ESTADO DE NATUREZA NO PLANO
INTERNACIONAL SOB A PERSPECTIVA DE THOMAS
HOBBES E A IMPOSSIBILIDADE DE PAZ PERPETUA
Alexandre Neves Sapper1
Introdução
O presente artigo pretende problematizar e
analisar a impossibilidade Kantiana de Paz Perpétua na
perspectiva da filosofia política de Thomas Hobbes,
principalmente no que diz respeito à formação do Estado
(e de sua soberania) na filosofia deste autor, sua
representação e as três causas da guerra elencadas no
capítulo XIII do Leviatã, quais sejam: competição,
desconfiança e glória (HOBBES, T. 2004). Também é
pertinente salientar, para uma maior delimitação do
problema proposto, o retorno ao Estado de natureza no
âmbito internacional após a personificação do Estado
soberano perante outros Estados, estabelecendo-se um
estado de guerra constante no cenário internacional,
voltando ao status quo ante e tornando obsoletos o
conceito de soberania, sua importância e fundamento.
Neste sentido, o próprio Kant coloca sobre a
concepção de guerra que cada Estado vive em relação ao
outro na condição de liberdade natural e, portanto, numa
1 E-mail: [email protected];
Titulação: Bacharel em Direito pela UCPel; Licenciado em Filosofia,
Mestre em Ciências Sociais e Mestrando em Filosofia na UFPel. Professor
de Filosofia nas Redes Públicas Estadual, Municipal e na Rede Particular na
disciplina de Filosofia.
O estado de natureza
14
condição de guerra constante (CAYGILL, H. 2000, p.
167). Ainda corroborando com a questão, o próprio autor
acrescenta sobre a concepção de paz, deixando uma
lacuna sobre sua eficácia, dizendo que
na obra intitulada “A fundamentação da
metafísica dos costumes”, Kant descreveu
a paz perpétua como o “sumo bem
político” e uma ideia de razão prática em
relação à qual “devemos agir como se
fosse algo real, embora talvez não o seja”
(Idem, p. 251).
Conforme a citação acima e, sabendo-se que Kant
é ícone do idealismo alemão (WOOD, A. W. 2008), como
seria possível, então, uma unificação real cosmopolita
que formule uma liga de povos (KANT, 2008, p. 31)?
O professor Terry Nardin, da Universidade de
Wisconsin – Milwaukee, contrasta a questão afirmando
que
a justiça requer a independência e a
igualdade legal entre os Estados, o direito
de autodefesa, o dever de não-intervenção,
a obrigação de se cumprir os tratados e as
restrições sobre a conduta de guerra
(NARDIN, T. 1987, p. 270).
Kant propôs uma federação de Estados em
conformidade com os dizeres acima referidos, sendo esta
federação inserida no contexto do direito internacional,
marcando importante etapa da realização da ideia de Paz
perpétua. Na sua formulação, o autor alemão não
pretendeu desintegrar as soberanias dos Estados, mas
estabelecer uma liga de nações, não devendo envolver
nenhuma autoridade soberana da qual os Estados podem
Alexandre Neves Sapper
15
sair e cujos termos eles podem renegociar (CAYGILL,
H. 2000, p. 147).
O professor Wolfgang Kersting, colabora com a
questão no que tange ao projeto Kantiano, ensinando que
Entre os superadores estatais do status
naturalis, prevalece o mesmo status
naturalis, que as fortalezas territoriais
reduzem a meros provisórios jurídicos,
pois a proteção jurídica interna do Estado
pode ser destruída por uma guerra
repentina entre os estados
(ftp://ftp.cle.unicamp.br/pub/kant-e-
prints/vol.3-n.2-2004.pdf).
Na concepção de Hobbes, porém, a integração de
Estados em uma confederação não prosperaria, pois além
de entrar em contradição com a concepção de Soberania2
proposta pelo autor inglês no capítulo XXIX do Leviatã,
que menciona a contrariedade total da essência do Estado
em poder ser dividido (HOBBES, 2004), também
colidiria com as três causas da guerra acima descritas,
partindo da argumentação de que o Estado personificado
seria um indivíduo uno e entraria no Estado de natureza
no campo internacional.
Kersting, comentando, agora, sobre a questão de
Hobbes, coloca enfaticamente o seguinte:
O que é lícito para os indivíduos é,
contudo, vetado para os Leviatãs. Uma
transição organizadora de um pluriverso
político para um universo político global,
um árbitro global, não pode acontecer nos
estados hobbesianos. No nível da
2 Conceito originalmente proposto por Jean Bodin na obra intitulada
“Os seis livros da República”.
O estado de natureza
16
soberania estatal, a estratégia pacificadora
do despojamento de todos os direitos e de
todo o poder não pode ser repetida. Os
Leviatãs permanecem eternamente no
status naturalis. (Idem).
Assim, as três causas da guerra propostas na teoria
de Hobbes tomam um sentido exterior à formação do
Leviatã, pois este último surge para sanar o Estado de
natureza e a concepção de guerra entre todos contra
todos. Mas, em uma concepção internacional, os
“Leviatãs” retornariam a um novo Estado de natureza,
pois não existiria soberano exterior ao próprio Leviatã,
retornando, então, ao estado de guerra constante. Como
poderia, então, ser plausível um projeto de Paz perpétua
sob os auspícios de Kant em um Estado de natureza
internacional?
O referido texto, então, tentará demonstrar as
impossibilidades da proposta de Kant para uma
integração perfeita entre Estados, sob os mandamentos da
soberania e da Guerra propostos na obra de Hobbes.
1. Conceituação e histórico da concepção de
soberania
1.1 Conceito de Soberania na história e filosofia
Os referidos conceitos, como foram previamente
anunciados na introdução, são de extrema pertinência e
têm um caráter ilustrativo para uma melhor compreensão
dos capítulos sequenciais.
Alexandre Neves Sapper
17
Conceito de Soberania se congrue no poder
preponderante ou supremo do Estado, considerado pela
primeira vez como caráter fundamental em 1576, pelo
francês Jean Bodin1, que ditou “Os seis livros da
República”, onde pretendeu caracterizar de forma pétrea
o âmago da República ao enunciar o célebre conceito.
Assim, no Capítulo VIII do Livro I diz: “... a
Soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma
República, palavra que se usa tanto em relação aos
particulares quanto em relação aos que manipulam
todos os negócios de estado de uma República”.
O conceito expresso pelo jurista francês sofrerá
inúmeras variações no desenvolver histórico, conforme a
evolução do pensamento político e da realidade
histórica. Como se pode ver pela ordem dada no
desenvolver do conceito, que tem como autor sequencial
Hegel2, que assim preceitua sobre o tema:
As duas determinações, de os negócios e os
poderes particulares do Estado não serem
autônomos e estáveis nem em si mesmo,
nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas
de terem raízes profundas na unidade do
Estado - que outra coisa não é senão a
identidade deles - constituem a soberania do
Estado.
Hegel esclarece esta noção dizendo3:
1 Citação compilada do artigo de José Blanes Sala, do livro
“Contratos Internacionais e Direito Econômico no Mercosu l”.
CASELLA, Paulo Borba São Paulo: LTr, 1996, p. 707. 2 HEGEL, G. W. F. Princípios da Filosofia do Direito, (tradução
Orlando Vitorino). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.57. 3 Ibidem.
O estado de natureza
18
O idealismo que constitui a soberania é a
mesma determinação segundo a qual, no
organismo animal, as chamadas partes
deste não são partes, mas membros,
momentos orgânicos cujo isolamento ou
existência por si é enfermidade.
Essas determinações últimas de Hegel são
dirigidas contra o princípio afirmado pela Revolução
Francesa, de que a Soberania está no povo. Rousseau
qualificara de Soberano o corpo político que nasce com o
contrato social4 e assim definia o seu poder:
O corpo político ou soberano, cujo ser
deriva tão somente da santidade do
contrato, nunca pode obrigar-se, nem
mesmo em relação a outros, a nada que
derrogue aquele ato primitivo, que seria a
alienação de alguma parte de si mesmo ou
a sua submissão a outro Soberano. Violar
o ato graças ao qual existe significaria
anular-se; e o que nada é nada produz.
Portanto, no dizer do referido autor, o princípio da
soberania é ser o poder mais alto em certo território: não
significa poder absoluto ou arbitrário. Para a moderna
teoria do direito, a Soberania pertence à ordenação
jurídica, sendo entendida como a característica em
virtude da qual “acima da ordenação jurídico-estatal
não existe outra”.5
4 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social . São Paulo:
Martins fontes, 2005, p. 16. 5 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Trad.
Luís Carlos Borges. São Paulo, Martins Fontes; Brasília,
Editora Universidade de Brasília, 1990, p. 45.
Alexandre Neves Sapper
19
Segundo Kelsen, se admitirmos a hipótese da
prioridade do Direito Internacional, o Estado pode ser
considerado soberano apenas em sentido relativo; se
admitirmos a hipótese da prioridade do direito estatal,
pode ser chamado de Soberano no sentido absoluto e
originário da palavra.
1.2 A soberania em Hobbes
O ponto de partida para a apresentação da
concepção de soberania em Hobbes deve ser a sua
intenção para com outros Estados e sua convivência
pacífica. À sua obra não são encontradas referências que
pudessem buscar uma tentativa de integração entre
Estados. Nesse sentido, Paulo Paiva diz o seguinte acerca
do tema proposto:
Em Hobbes, as relações internacionais são
um meio, não um fim como na dimensão
interna da soberania que teorizou. Não se
está à procura da cristalização positiva da
lei natural, mas de uma postura
racionalmente dirigida, onde as relações
internacionais (sejam elas pacíficas ou
belicosas) são mais um instrumento para
que o soberano mantenha estável sua
autoridade interna. Deste prisma, portanto,
as relações internacionais não só são
fundamentais para a soberania e
prosperidade dos cidadãos (e em Hobbes
estes dois conceitos não se separam) de
O estado de natureza
20
uma Cidade, como é provável que a levem
ao choque com uma outra Cidade.3
A colocação acima relata bem o aspecto
Hobbesiano no que diz respeito a lógica da formação de
um Estado, pois esta lógica é fundada intrinsecamente
nas relações humanas e suas respectivas paixões4, que
levam o ser humano a nunca estar completo, satisfeito.
Ou seja, no âmbito “macro” (ou de Estados), o
surgimento e permanência de um Estado se dá em
contraposição a outro Estado soberano, segundo Hobbes,
evidenciando o “estado de guerra de todos contra todos”
(HOBBES, 2004) na esfera de Estados.
O fundamento da soberania nesse sentido está
justamente delimitada para proteger os Estados de outros
Estados, entrando necessariamente em outra orbita que
será analisada a seguir, que diz respeito a proposta
elaborada por Kant para uma “Paz Perpétua”.
2. A impossibilidade de uma sociedade
cosmopolita: a guerra de Hobbes
O projeto kantiano visou especificamente uma
comunidade de iguais para assegurar o desenvolvimento
e convivência pacífica entre os Estados. Kant previa
sobre a Paz perpétua o seguinte:
Para frear o ímpeto dominador dos
Estados e a homogeneização in-
discriminada dos povos, a natureza conta
3 http://www.unieuro.edu.br/downloads_2005/consilium_02_08.pdf
4 O respectivo tema sobre as paixões não será abordado no presente
trabalho por não ser objeto de estudo do mesmo.
Alexandre Neves Sapper
21
com os diferentes idiomas e religiões que,
por outro lado, contém sementes de ódio
pela diversidade e incitam guerras
fundadas na intolerância. Se isso era
verdade na época de Kant, também o é
hoje, como mostram os movimentos
fundamentalistas e os conflitos na Irlanda,
entre tantos outros.5
Segundo a citação acima sobre o tema, Kant previa
a polarização de Estados com mais condições de
sobrepujar os delimitantes, seja no âmbito econômico,
político ou cultural. A ONU foi uma tentativa de unificar
os Estados em um bem comum, pois Kant mesmo
afirmava que a paz não é algo natural, como pode-se
auferir a seguir:
Uma idéia central na concepção de Kant é
de que a paz não é um estado natural e
que, por isso, precisa ser instituída por
meio de um contrato entre os povos. Na
verdade, é o mesmo entendimento da paz
que está no âmago do trabalho atual da
Organização das Nações Unidas, que
também foi constituída com o fim de
trazer a paz.6
À citação acima parece concordar com a
necessidade de um contrato para uma convivência
pacífica entre as nações. No entanto, Kant não é tido
como um autor contratualista pelos seus comentadores,
ao contrário de Hobbes, que formulou a sua teoria
5http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view
File/407/304 6http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view
File/407/304
O estado de natureza
22
baseado em um contrato entre os súditos para eleger7 o
soberano. Para contrastar com esta proposta kantiana e
manter o objeto do presente texto, serão apresentadas as
três causas da guerra que Hobbes originalmente formulou
para delinear a guerra de todos contra todos, mas que
neste texto será transposta para a questão dos Estados,
que são: competição, desconfiança e glória (HOBBES,
2004, p. 111).
É redundante a afirmação de que as causas da
guerra mencionada por Hobbes e descritas acima podem
ser apontadas para a relação entre os Estados,
beligerantes ou não. Porém, a sua consequência implica
diretamente no cancelamento da proposta feita por Kant
de uma sociedade (federação) de Estados que delegam
algo em prol de uma comunidade pacífica. Os Estados
estão constantemente em movimentação de competição e
desconfiança, podendo a glória ser atribuída aos
movimentos nacionalistas que surgem e re-surgem
constantemente na ordem mundial.
Hobbes é enfático ao dizer sobre a guerra que
Na guerra, a força e a fraude são duas
virtudes cardeais. A justiça e a injustiça
não fazem parte das faculdades do corpo e
do espírito. [...] Não há propriedade nem
domínio, nem distinção entre o meu e o
teu; só pertence a cada homem aquilo que
ele é capaz de conseguir, e apenas
7 É comum ocorrerem equívocos na interpretação do contrato em Hobbes na
questão que diz respeito aos súditos, pois estes elegem um soberano, mas
este, por sua vez, não estipulou nenhum contrato com os súditos. Esta
afirmação deixou diversas lacunas na história da filosofia, na qual diversos
autores passaram a denominar o autor Thomas Hobbes como autor
autoritário, ou absolutista. Na verdade, objetivamente, não há obrigação
formal entre os súditos e o soberano, pois este foi instituído no cargo, e não
convencionado.
Alexandre Neves Sapper
23
enquanto for capaz de conservá-lo. É pois
esta a miserável condição em que o
homem realmente se encontra, por obra da
simples natureza. (HOBBES, 2004, p.110)
O autor inglês encerra a questão colocando que o
medo da morte e o desejo daquelas coisas que são
confortáveis são motivados pelas paixões.
Especificamente quanto à questão abordada no presente
artigo, pode-se auferir que somente por medo da morte
(violenta) os homens estabelecem acordos. No caso dos
Estados soberanos pode-se dizer, então, que são feitos
acordos. Mas com um Estado mais forte, ou, com
“soberano dos soberanos”. Neste caso, uma ideia
cosmopolita mostra não ter respaldo de prosperidade na
teoria política apresentada até o momento.
Conclusões
O presente artigo tentou ilustrar sob uma
perspectiva realista das relações internacionais, na qual o
idealismo kantiano ilustrado em sua Paz Perpétua não
teria validade (ou receptividade) na contraposição a obra
de Hobbes, principalmente, como foi demonstrado, sob as
concepções de Estado, Soberania e Guerra à obra do
filósofo inglês.
A perspectiva realista das relações internacionais
defende o fato de os Estados viverem, nas suas relações
recíprocas, sem a existência de um governo mundial,
significando essencialmente um estado de anarquia no
âmbito internacional. De maneira formal, há uma
igualdade de direitos e obrigações entre os Estados, mas
O estado de natureza
24
a materialidade e as circunstâncias (ou paixões..) fazem
com que esses direitos e obrigações sejam dirimidos por
um Estado mais forte. Ou seja, não há força coercitiva,
de forma supra-estatal, para coagir o Estado com maior
força.
Assim, fica caracterizada situação anárquica
internacional. Nesse sentido, o conceito de soberania que
vinha sendo diluído pelos defensores do processo de
integração, independente do lócus, volta a sua posição de
destaque, pois este conceito é imprescindível à
manutenção do Estado.
Referências Bibliográficas
ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações .
Brasília: 1962.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofa. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes,
2005.
KANT, Imannuel. A paz perpétua e outros opúsculos .
Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 2008.
NARDIN, Terry. Lei, moralidade e as relações entre os
Estados. São Paulo: Forense Universitária, 1987.
WOOD, Allen w. Kant. Porto Alegre: Artmed, 2008.
25
SCIENTIA E CONTINGÊNCIA DIACRÔNICA E
SINCRÔNICA EM DUNS SCOTUS
Andrei Pedro Vanin1
Introdução
A comunicação tem por objetivo apresentar a noção de
contingência e de scientia em Duns Scotus. Para tal,
primeiramente apresenta-se a distinção entre contingência
diacrônica e sincrônica, seguindo a interpretação de Knuuttila
(1981) e Pich (2008). A seguir deter-nos-emos na noção de
scientia buscando esclarecer o modo pelo qual ocorre o
conhecimento. A escolha desses temas se justifica basicamente
por representarem um importante marco no pensamento e na
filosofia de Duns Scotus. Mas não é só isso. As análises do
franciscano a respeito da noção de contingência e, em
decorrência disso, de modalidade lógica têm chamado a
atenção das pesquisas recentes. A noção sincrônica de
modalidade – que, em síntese, permite possibilidades
alternativas em dado momento de tempo – e a noção de
possibilidade lógica sugerem que Scotus tenha sido o primeiro
a pensar tais noções e, por consequência, influenciado o
desenvolvimento da noção de mundos possíveis, seja em
Leibniz, seja as desenvolvidas no final do século XX
(NORMORE, 2013, p. 169 e 203-204; VOS, 2006).
Já a noção de scientia em Duns Scotus, como observa
Pich (2013, p. 43), “[...] não é importante só como um capítulo
1 Mestrando em Filosofia da UNIFESP. Bolsista Capes. E-mail:
Scientia e contingência
26
da história da recepção da epistemologia aristotélica, ao final
do século 13; acima e antes disso, ela é importante para a
epistemologia como tal e como um capítulo central da própria
filosofia scotista”. Deve-se notar que as interpretações a
respeito de tal noção, seja no próprio Scotus, seja buscando um
paralelo com a noção de episteme em Aristóteles,
contemporaneamente, não são unânimes. Seguindo
rapidamente a apresentação de Pich (2013), pode-se eleger pelo
menos quatro pontos de vista a respeito do tema. O primeiro
ponto a respeito da noção de scientia é se Scotus “aceita a
concepção aristotélica tradicional de conhecimento científico”
(PICH, 2013, p. 37) tal e qual. O segundo consiste nas
interpretações de Sondag (1996) e Boulnois (1998), segundo as
quais o modelo scotista de scientia representa, de fato, um novo
relato do conhecimento científico (PICH, p. 38). A terceira
interpretação é a de Lauriola (1981), segundo a qual Scotus, no
Prólogo da Ordinatio, apresenta duas definições de ciência
(PICH, p. 42). Por fim, a interpretação baseada especialmente
em Lectura d. 39 q. 1-5, a respeito do “[...] conhecimento
verdadeiro de Deus acerca dos futuros contingentes [...]”
(PICH, 2013, p. 42), apresentada por Vos Jaczn et al (1994) faz
parte do que Scotus considera como parte da scientia. O que
pretende-se porém nesta comunicação é rapidamente apresentar
as características que cumprem o papel de scientia e explicitar
as noções de contingência diacrônica e contingência sincrônica.
1. Contingência diacrônica e contingência sincrônica
No prólogo da Ordinatio p. 4, q. 1-2, n. 208, Scotus
atribui quatro condições para se ter conhecimento científico,
scientia: certeza, necessidade, evidência das premissas e
método silogístico. Estando a necessidade posta numa das
condições para algo poder ser dito possuidor de scientia,
Andrei Pedro Vanin
27
exclui-se, a princípio, a possibilidade desta surgir de verdades
contingentes. Para o correto entendimento desta problemática
se faz necessário investigar o modo pelo qual Scotus entende a
noção de contingente.
O modo pelo qual Scotus procura responder os
problemas relacionados ao conhecimento de entes futuros
pressupõe o entendimento do conceito de contingente (e, por
sua vez, a noção de tempo), bem como a noção de vontade
(PICH, 2010, p. 249). Antes de explicitar tais noções em
Scotus, é pertinente observar que o desenvolvimento destas
questões tem como plano de fundo a problemática do
necessitarismo greco-árabe, que em síntese pode ser
apresentado por estes três modos:
a) algo é de si formalmente necessário, mas, ao
mesmo tempo, causado através de um outro; b)
algo é de si formalmente necessário, mas, ao
mesmo tempo, depende de um outro; c) algo é
de si formalmente possível, mas necessário por
meio de um outro, quando este outro causa com
necessidade (PICH, 2008, p. 36).
Scotus é obrigado a abandonar tal tese por basicamente
dois motivos: 1) vai contra a crença da teologia que Deus criou
o mundo livremente; 2) se há contingência no mundo, sustentar
tal tese acarreta filosoficamente “[...] a inexistência de uma
mediação causal que se responsabilize pelo contingente” (idem,
p. 36). Provando a existência da contingência no mundo,
Scotus deve, por plausibilidade filosófica, demonstrar que esta
tem início na causalidade do primeiro ente necessário e
imutável (PICH, 2008, p. 37), já que, caso contrário, não teria
como explicar a relação da primeira causa com as coisas
contingentes e nem o fato de Deus ter a capacidade de agir
livremente.
Scotus opta, portanto, por um indeterminismo para
explicar os contingentes futuros, ao invés de um determinismo.
Scientia e contingência
28
O determinismo, em síntese, defende que tudo o que acontece é
determinado causalmente por algo que aconteceu, e que nada
pode acontecer diferentemente do que acontece (PICH, 2006,
p. 129). Para sustentar um indeterminismo, Scotus precisa
provar que o primeiro princípio – causador de todas as coisas –
age, ele mesmo, de forma não necessária, e também provar que
há contingência no ato volitivo do ser humano (PICH, 2008, p.
42-43).
Antes de avançar, faz-se necessário relembrar que
Aristóteles buscou uma interpretação indeterminista, mas que,
em última análise, parece ser mais correto afirmar que ele
defende um determinismo. Na obra Da Interpretação (19 a 7-
23), o Estagirita abre espaço para uma interpretação
indeterminista ao afirmar que, de enunciados futuros singulares
em matéria contingente, não se tem como determinar se o
evento é verdadeiro ou falso antes que este ocorra. Para
sustentar tal tese, necessita-se restringir o princípio de
bivalência e, em decorrência, os primeiros princípios, o que
forçaria uma interpretação, especialmente do livro IV da
Metafísica, um tanto quanto dúbia e, por isso, alguns
comentadores sustentam ser errado atribuir a Aristóteles uma
roupagem indeterminista ou trivalente da verdade.
A noção de modalidade em Aristóteles se dá em
momentos sucessivos no tempo:
segundo Aristóteles, a afirmação “A senta” é
verdadeira, mas será falsa depois que A se
levantou. Os valores de verdade referidos à
modalidade estão sujeitos à frequência
temporal, de modo que se pode dizer que “se
um enunciado verdadeiro ora, é verdadeiro
todas as vezes que é proferido, ele é
necessariamente verdadeiro. Se o seu valor de
verdade muda no tempo, ele é possível. E se um
enunciado é falso todas as vezes que é
Andrei Pedro Vanin
29
proferido, ele é impossível” (GHISALBERTI,
2013, p. 189).
Arthur Lovejoy, ao formular o princípio de plenitude –
“nenhuma possibilidade genuína permanece para sempre não-
realizada” –, afirma que Aristóteles não aceitaria o princípio
por inteiro, porque este rejeita o fato de tudo aquilo que é
exclusivamente atual ser também possível (Metafísica, IX, 3,
1046 b 29-32). Não obstante, se cada possibilidade genuína,
por ser verdadeira, deve ser verificada num determinado
momento do tempo (GHISALBERTI, 2013, p. 189), então
deve-se admitir que, se Aristóteles não aceitaria tal princípio,
ao menos o princípio de plenitude formulado por Lovejoy está
intimamente inspirado na concepção de modalidade
desenvolvida pelo Estagirita.
O mérito de Aristóteles está em unir temporalidade e
modalidade, mas, para manter coerência com a teoria da
verdade exposta na Metafísica, ele não pode defender um
indeterminismo. Tal digressão textual deve-se ao fato que, na
Idade Média, buscaram-se soluções contra o determinismo,
mas que permaneceram sendo aristotélicas (PICH, 2008, p. 40),
baseadas, em sua maioria, por confusões e análises falaciosas
de proposições modais temporalmente não qualificadas
(KNUUTTILA, 1981, p. 167).
Seguindo a interpretação de Pich (2008) e Knuuttila
(1981), pode-se afirmar que a base do problema está na
distinção entre proposições modais in sensu composito e in
sensu diviso, ou seja, proposições de dicto e de re, que são
ambíguas em Aristóteles porque a possibilidade pode se referir
a uma suposta realidade em predicados ao mesmo tempo, ou
em momentos diferentes. Quando se analisa uma proposição
possível, e diferencia-se, segundo uma modalidade lógica, em
sensu composito ou em sensu diviso, tal proposição é analisada
em termos de uma distinção “entre a simultaneidade e a não
simultaneidade da realização dos predicados”. Esta teoria é
Scientia e contingência
30
denominada estática porque, segundo Knuuttila (1981, p. 169),
“[...] as noções modais são, em última análise, reduzidas a
termos extensionais, que significam apenas meios de classificar
o que acontece em um e em nosso mundo, em diferentes
momentos no tempo”.
Para apresentar a resposta de Scotus, a teoria estática da
modalidade deve-se, como já apontado acima, provar que há
contingência no ato volitivo do ser humano e provar a
contingência do ato volitivo da primeira causa causadora de
todas as coisas. Para a primeira consideração, precisa-se
analisar a obra Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 45-52. Ao deter-se
nesse texto, se torna clara a distinção entre contingência
sincrônica e diacrônica. Já para a segunda consideração, seria
necessário analisar o texto de Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 53-61.
Com efeito, Duns Scotus se afasta da interpretação estática ou
de uma interpretação diacrônica do contingente:
[...] segundo o qual, nenhuma autêntica
possibilidade pode permanecer não realizada na
sucessão temporal, e institui um modelo
sincrônico, com base no qual se admite que
alguma coisa, que existe ou acontece, possa ser
ou acontecer de modo diverso no mesmo
instante de tempo. Por isso a contingência
exprime a “possibilidade” que se deem “simul”
dos opostos. Esta possibilidade é estabelecida
em relação a uma ação causal que proceda
através da inteligência e da vontade
(GHISALBERTI, 2013, p. 189).
Para entender como se estrutura tal questão, faz-se
mister apresentar rapidamente a noção de possibilidade lógica
(ou potência). Num primeiro aspecto, semântico, entende-se
uma potência lógica “[...] quando os extremos são de tal modo
unidos, ainda que não repugnam um ao outro, mas podem ser
unidos, ainda que não haja uma possibilidade na realidade [...]”
Andrei Pedro Vanin
31
(SCOTUS, Lectura I, d. 39, q. 1-5, n 49, p. 110). Em outras
palavras, uma possibilidade lógica se diz, então, da relação de
termos que não se repugnam (termos que não encerram
contradição) e podem unir-se a uma proposição possível
(PÉREZ-ESTÉVES, 2006, p. 289). Contudo, há outro aspecto
da possibilidade lógica a considerar, a saber: o fato de a
vontade livre, no mesmo instante de tempo que produz um ato
volitivo a, poder também produzir um ato volitivo oposto, não
a (PÉREZ-ÉSTÉVES, 2006, p. 289).
Esta possibilidade lógica, porém, não é segundo
o fato de a vontade ter sucessivamente, mas sim
no mesmo instante: pois, no mesmo instante no
qual a vontade tem um ato de querer, no mesmo
e para o mesmo [instante] ela pode ter um ato
oposto de querer, – tal como se for considerado
que a vontade tão-somente tem existência por
um único instante e que, naquele instante, quer
algo, em que, então, não pode querer e
desquerer sucessivamente, e, contudo, para
aquele instante e naquele instante no qual quer
a pode desquerer a, pois querer para aquele
instante e naquele instante não é da essência da
própria vontade, e nem é uma propriedade
natural dela; portanto, [isso] se segue dela
acidentalmente (SCOTUS, Lectura I, d. 39, q.
1-5, n 50 , p. 111).
Essa passagem já aponta para alguns aspectos da
contingência sincrônica, já que a possibilidade lógica atribui à
vontade o fato de que, no mesmo e para o mesmo (in eodem et
pro eodem) instante que esta tem uma volição, pode ter um ato
oposto (PICH, 2008, p. 55). Entendendo Scotus que a liberdade
– tanto humana como divina – é a capacidade que a vontade
tem de, no mesmo instante que quer algo a, poder querer não
querer (desquerer) algo (diga-se não a), isso implica conceber a
liberdade como oposta a toda determinação. Pelo fato de, no
Scientia e contingência
32
mesmo e para o mesmo instante de tempo que a vontade tem
uma volição a, poder querer uma volição não a, – seu oposto –,
implica conceber a liberdade como uma indeterminação, isto é,
ter a possibilidade de querer sempre entre duas alternativas
distintas o seu contrário (PÉREZ-ÉSTÉVEZ, 2006, p. 289).
Feita essa rápida caracterização da possibilidade lógica, pode-
se avançar para algumas definições a respeito do contingente.
O ‘contingente’ existente numa ação e no mundo se
origina sempre de algo querido para o ser atual, quando o
contrário disso também poderia se dar, exatamente quando
aquele se dá. O contingente é, em oposição à definição
aristotélica, não tudo aquilo que é non-necessarium ou non-
sempiternum – contingência em termos de uma ‘possibilidade
simétrica’ de ser e de não ser – dentre os componentes do
mundo infralunar. Antes, o contingente metafísico deve ser
entendido, [...], através da causalidade contingente da vontade
com base num conceito de contingência sincrônica. Nesse
sentido, o conceito de contingência sincrônica, além de servir à
sua concepção de liberdade da vontade, é o cerne da conhecida
crítica de Scotus à interpretação estatística da modalidade,
segundo a contingência diacrônica (PICH, 2006, p. 133-134).
O correto entendimento do conceito de contingente em
Scotus está calcado no esclarecimento da noção de
contingência sincrônica, que se passa a analisar a partir das
passagens na obra Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 47-52. O primeiro
ponto a considerar é que não há vontade na liberdade “[...]
enquanto ela quer, ao mesmo tempo, objetos opostos, porque
[esses] não são simultaneamente termo de uma única potência”
(SCOTUS, Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 47), já que isso implica em
uma impossibilidade lógica. Agora, do fato de a vontade ter
“[...] liberdade para atos opostos, com respeito a objetos
opostos” (idem, n. 47) tem-se dupla possibilidade e
contingência: “[...] a vontade se rende sucessivamente a objetos
opostos [...]”; e o segundo – que já foi explicitado acima
Andrei Pedro Vanin
33
quando apresentava-se a noção de possibilidade lógica – é
quando “[...] os extremos são de tal modo possíveis que não
repugnam um ao outro, mas podem ser unidos ainda que não
haja uma possibilidade na realidade” (ibidem, n. 49). Em outras
palavras, a dupla possibilidade e contingência da vontade são
“a de querer sucessivamente objetos opostos e a de querer
contemporaneamente objetos opostos, que, porém, não podem
ser na realidade escolhidos porque ela opera de modo
sucessivo” (GHISALBERTI, 2013, p. 190).
De se notar que em Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 45, Scotus
apresenta três maneiras pelas quais a vontade é dita livre: 1)
para atos opostos; 2) por meio dos atos opostos é livre para
objetos opostos; e 3) é livre em relação aos efeitos que produz.
Todavia, não basta para a definição “[...] de contingência que a
vontade possa querer objetos opostos – através de atos opostos
– ‘na sequência do tempo’ (successive). A liberdade da vontade
exige mais do que uma possibilidade diacrônica” (PICH, 2008,
p. 53). Se, para definir a contingência, bastasse entender a
capacidade que a vontade tem de querer objetos opostos na
sequência de tempo, proposições de possibili estruturadas em
termos opostos seriam verdadeiras segundo o sensum divisionis
(PICH, 2008, p. 53). Scotus apresenta tal problemática do
seguinte modo:
E, segundo esta possibilidade, são distinguidas
proposições de possibilidade que são feitas de
[termos] extremos contrários e opostos, tal
como ‘algo branco pode ser negro’: e, segundo
o sentido de divisão, [esta] é uma proposição
verdadeira, conforme os extremos são
entendidos como tendo uma possibilidade para
tempos diversos, como ‘algo branco em a pode
ser negro em b; donde essa possibilidade resulta
na sucessão. E assim também esta [proposição]
‘a vontade que ama algo pode odiar [esse] algo’
é verdadeira, no sentido de divisão (SCOTUS,
Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 48)
Scientia e contingência
34
Scotus, todavia, almeja mais do que simplesmente
entender a contingência da vontade como atos que ocorrem
sucessivamente. Permanecer neste ponto seria sustentar, ainda,
uma contingência diacrônica: a “[...] vontade teria
temporalmente antes uma relação contingente com o querer e
só depois uma relação contingente com o desquerer” (PICH,
2006, p. 136). O que está em questão é o fato de a vontade, no
mesmo e para o mesmo instante de tempo, querer a, e, no
mesmo e para o mesmo instante, não querer a. Tal
consideração pode ser chamada, como aponta Pich (2008, p.
54), de “fórmula scotista da sincronia de possibilidade”: “[...]
no mesmo instante no qual a vontade tem um ato de querer, no
mesmo e para o mesmo [instante] ela pode ter um ato oposto de
querer [...]” (SCOTUS, Lectura I, d. 39 q. 1-5 n. 50).
O contingente, assim caracterizado, leva à conclusão de
que o indeterminismo presente no mundo está fundado na
liberdade e na contingência da vontade (PICH, 2008, p. 61). A
contingência, entendida sincronicamente, torna possível a
explicação da contingência no mundo, e permite a Scotus
explicar o motivo pelo qual algumas coisas não são
determinadas, já que, com tal caracterização, o contingente
segue-se do contingente.
A noção de scientia deve ser entendida tendo como
pano de fundo essa noção de contingente. Uma alternativa para
tal problemática é elucidar a diferença entre conhecimento
intuitivo e abstrativo em Scotus – que não entraremos em
maiores detalhes aqui. Apenas a título de conclusão como
afirmou-se acima, é inegável a existência da contingência no
mundo. A pergunta que resta é como então pode algo possuir
scientia, se uma das condições desta é não se basear em
verdades contingentes? O conhecimento abstrativo capta as
quididades, ou seja, aquilo que há de necessário nos entes
contingentes, já que este conhecimento capta o objeto
Andrei Pedro Vanin
35
indiferente a sua existência, podendo assim alcançar algo de
necessário nas coisas contingentes (CEZAR, 1996, p. 20) e
estabelecer assim, a scientia baseada nos entes contingentes, já
que o conhecimento abstrativo consegue captar o que há de
necessário no contingente. Em última análise não estou
plenamente satisfeito que apenas a distinção entre
conhecimento abstrativo e intuitivo consegue satisfazer a noção
de scientia. A noção de possibilidade, vontade e contingência
sincrônica, como tentou-se elucidar, cumprem um papel
importante na teoria do conhecimento de entes contingentes em
Scotus.
Considerações finais
O objetivo desta comunicação foi apresentar
rapidamente a noção de contingência e suas implicações com a
noção de vontade e possibilidade lógica, para evidenciar, então,
a distinção entre contingência diacrônica e sincrônica, bem
como a maneira pela qual Scotus consegue defender um
indeterminismo sem incorrer em maiores problemas.
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39
SARTRE E AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS:
ENTRE O CONFLITO E A GENEROSIDADE
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
1
Introdução
O presente estudo assume como tarefa a tentativa de
responder a seguinte pergunta: “É possível afirmarmos a
compatibilidade entre as teses presentes em O ser o nada
relativas à alteridade e a liberdade, e as teses sobre as mesmas
temáticas expostas nos Cahiers pour une morale?”. A questão
acima apontada e sua referência à moralidade, em Sartre,
demonstra uma aparente incompatibilidade. Uma vez que em O
ser e o nada a liberdade radical está referida a uma
subjetividade demasiado independente e que vive as relações
intersubjetivas sob o signo do conflito. Já nos Cahiers pour une
morale a liberdade pode converter-se em autêntica e esta
mesma dimensão da autenticidade, quando referida aos outros,
pode tornar-se uma relação harmônica. Assim, tomando por
base as obras acima citadas, se poderia oferecer uma resposta,
satisfatória, sobre a importância e o que representa uma moral
da conversão e seu papel quanto às relações intersubjetivas. Por
outro lado, é somente a partir da análise conjunta da obra
sartriana que é possível demonstrar que a conversão da
1 UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, RS. E-mail:
Sartre e as relações intersubjetivas
40
liberdade, contida nos Cahiers pour une morale, é compatível
com as teses expostas em O ser e o Nada.
No entanto, o problema da moralidade, em Sartre,
quando pensado em relação a alteridade, somente pode ser
pensado se levarmos em consideração a forma paradoxal como
este se apresenta em seu pensamento. Por um lado, a moral
parece ocupar um lugar de destaque em suas preocupações
filosóficas. Isto pode ser evidenciado desde os seus primeiros
esboços filosóficos das décadas de 1930-1940 contidos em
Diário de uma guerra estranha, em O ser e o nada, na
conferência O existencialismo é um humanismo, em
depoimentos e entrevistas cedidas ao longo de sua vida. Por
outro lado, mesmo com a publicação póstuma dos Cahiers
pour une morale, parece haver uma inconsistência teórica entre
os resultados presentes entre este e O ser e o nada. Pois, nesta
última, Sartre descreve uma liberdade solitária que procura
totalizar-se enquanto projeto de ser e que busca mascarar essa
sua estrutura fundamental, além disso, descreve as relações
com o Outro sob a perspectiva do conflito. Já nos Cahiers pour
une morale, Sartre desenvolve uma teoria da conversão que,
mesmo formalmente, descreve a possibilidade desta mesma
subjetividade tematizar o fracasso de seu projeto fundamental e
escapar da má-fé, e, fora isso, descreve a relação com os outros
sob a perspectiva da generosidade, ou seja, uma relação
harmônica.
Para início da reflexão, se é necessário colocar as
seguintes perguntas: Seria possível assumir um projeto
marcado pela autenticidade e não mais pela má-fé? Poderia se
pensar na relação com os outros não mais sob o signo do
conflito? Haveria como conciliar duas perspectivas da
liberdade e sua relação com a alteridade? Pensa-se que estas
perguntas podem ser respondidas se pudermos compreender
essas duas perspectivas sobre a liberdade do Para-si como
momentos distintos de uma mesma liberdade, e que estas
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
41
perspectivas, no plano teórico, se complementam mutuamente.
Significa, sobretudo, que dos resultados alcançados em O ser e
o nada surge a possibilidade de se pensar em possíveis
implicações morais, e que estas, podem ser encontradas em
grande parte nos Cahiers pour une morale, principalmente
quando Sartre trata da teoria da conversão da liberdade.
1. A dimensão ontológica do conflito das liberdades:
as relações intersubjetivas n’O ser e o nada
N’O ser e o nada a relação com os outros é descrita por
Sartre sob o ponto de vista do conflito, como o mesmo afirma:
“As descrições que se seguem devem ser encaradas, portanto,
pela perspectiva do conflito. O conflito é o sentido originário
do Para-si.” (SN, p. 454). O conflito na relação intersubjetiva
se dá pelo fato de que cada Para-si capta o Outro, a maneira de
um objeto, ou seja, como um Em-si2. A objetivação do Outro
revela que este pode tornar-se parte do projeto fundamental de
um Para-si, e ao mesmo tempo pode se tornar meio para
realização do projeto deste outro Para-si que o revela, já que
ambas as subjetividades estão imersas no seio de um mesmo
mundo. Trata-se da tensão contínua da afirmação da liberdade
individual e da fuga da objetificação do Para-si pelo olhar do
Outro. É a partir disso que Sartre caracteriza as relações com o
Outro.
N’O ser e o nada as relações intersubjetivas são
descritas sob a perspectiva do conflito, e, portanto, um âmbito
de relações em que não há espaço para a autenticidade. Sob
esse aspecto, a presença do Outro representa a perda do mundo
2 “O sentido profundo da análise de Sartre é que a relação sujeito-sujeito
não consegue deixar de ser uma relação sujeito-objeto; no fundo, ele pensa
a relação do para-si com o para-si a partir da relação do para-si com o em-
si”. (BORNHEIM, 2000, p. 93).
Sartre e as relações intersubjetivas
42
do Para-si, pois o que ocorre é que “[...] o Para-si tenta
assimilar a liberdade do outro.” (SN, p. 454). Por esta razão a
conduta fundamental é a reassunção daquilo que foi perdido
procurando suprimir o Outro. Entretanto, para a constituição do
mundo do Para-si, há a necessidade do Outro, e, portanto, é
preciso preservá-lo em certo sentido.
O reconhecimento do Outro ultrapassa os limites de
uma experiência de conhecimento marcada pela relação entre
sujeito e objeto. O Outro é visto como um Para-si, uma
subjetividade além de um corpo. Nesse reconhecimento da
alteridade é possível apreender o Outro como sendo portador
de um mundo, como sendo projeto e, portanto, reconhecer que
possui os seus próprios fins e projetos. Dessa forma, o que é
reconhecido não é apenas Outro corpo que se apresenta diante
da percepção, mas se reconhece uma unidade sintética entre
consciência e corpo. Sendo um Para-si, é uma transcendência
captável e, portanto, não se limita a pura apreensão do dado.
No entanto, se não há a possibilidade de apreensão do Outro
em uma experiência de conhecimento, resta somente a ideia de
que a sua apreensão é uma experiência originária e não a
posteriori. Assim, a presença do Outro se dá na e para a
consciência, pois, sua existência é parte da estrutura
fundamental do Para-si. O reconhecimento do Outro surge
graças ao poder de negação da consciência, pois para que este
exista para a consciência é preciso que haja uma negação
interna do Para-si, ou seja, apreender o Outro como não sendo
o Para-si que “sou”, e, portanto, o reconhecimento de uma
subjetividade e não um objeto do mundo. Além da negação
interna, o que possibilita o reconhecimento da alteridade é a
disposição fundamental do Para-si para ser visto. A
consequência disso é que as subjetividades se reconhecem
mutuamente pela disposição constante de olhar o Outro como
um Para-si e ter consciência de ser visto pelo mesmo. Dessa
forma, ver implica ser visto.
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
43
Avançando nas descrições sobre o reconhecimento do
Outro, Sartre aponta a possibilidade de reconhecimento dos
projetos e da liberdade dos outros nessa relação originária. Esse
reconhecimento é possível porque ao apreender o Outro é
possível também, se observar as situações em que está
engajado, apreendê-lo como se lançando rumo a diferentes fins
futuros, e, portanto, o reconhecimento de que este é um projeto
individual ou uma totalização em curso. Entretanto, a
disposição original para ser visto implica uma série de novos
problemas, como por exemplo: a própria constituição do Para-
si e a objetificação de seu ser.
A experiência de ser visto provoca no Para-si uma
desagregação de seu mundo, e este passa a ser captado pelo
Outro. Dessa forma, a descentralização do mundo do Para-si,
faz com que este seja captado ao modo de um objeto entre
outros. O aparecimento do Outro e a experiência do olhar
modificam o Para-si tornando-o assim uma exterioridade, e,
portanto, como parte do mundo, como um Em-si. Entretanto,
para que o Para-si possa obter algum conhecimento objetivo
sobre si necessita que esse dado objetivo passe necessariamente
pelo juízo do Outro. Dessa forma, os juízos objetivos que o
Para-si pode efetuar sobre si são mediados pela presença do
Outro que o qualifica. O mesmo se dá com a apreensão do
corpo que é captado pelo Outro como estando situado no
mundo, como um corpo entre outros corpos espacializados e
que pode servir para a realização de seus empreendimentos.
Assim, o Para-si está impossibilitado de fazer uso de seu corpo
como instrumento para si mesmo, pois como visto
anteriormente, se constitui como uma unidade sintética, e,
portanto, não poderia fazer uso de seu próprio corpo a partir de
uma perspectiva exterior, como um instrumento. Essa
objetividade do corpo e das qualificações do ser do Para-si é
revelada, conforme Sartre (2005), pelo fenômeno do olhar.
Trata-se, de um fenômeno em que o Outro capta o Para-si de
Sartre e as relações intersubjetivas
44
uma forma que este jamais poderia se captar, do mesmo modo
que o Para-si capta o Outro como este nunca poderá ser
captado por si mesmo.
O Para-si, por ser desejo de ser um Em-si-Para-si, se
caracteriza como perpétua totalização em curso. No entanto, a
apreensão do Outro pelo olhar se dá de maneira ambígua, pois
ao mesmo tempo em que há o reconhecimento de que este é um
projeto livre, há também a apreensão do Outro como uma
totalidade acabada, e, portanto, como objeto, como coisa.
Desse modo, o olhar do Outro, faz com que a liberdade do
Para-si se veja ameaçada, uma vez que ao apreendê-lo
enquanto coisa, o qualifica como ser acabado e não mais um
projeto livre que por meio da transcendência procura se
totalizar. No entanto, essa apreensão do Para-si pelo Outro
como um Em-si, revela algo que o sujeito é incapaz de realizar
por si mesmo: a objetivação de seu próprio ser. Essa
objetivação do Para-si somente pode ser realizada a partir do
Outro que o qualifica deste modo, pois é impossível ao Para-si
ser ao mesmo tempo sujeito e objeto para si. Assim, portanto,
a intersubjetividade em Sartre revela a essência da realidade
humana enquanto falta ou inacabamento. Pois, a possibilidade
de ser um Em-si-Para-si se encontra petrificada na apreensão
que o Outro faz desse Para-si, e já que a subjetividade do Outro
é impossível de se atingir ou vivenciar, o desejo de ser se
encontra irrealizável no Outro que apreende o Para-si como
totalidade acabada.
Pelo olhar do Outro o Para-si é arrancado de seu
mundo, e, assim, vê sua liberdade ameaçada, pois o Outro o
apreende para realizar os seus próprios desígnios e o qualifica.
Assim, de súbito, apareceu um objeto que me
roubou o mundo. Tudo está em seu lugar, tudo
existe sempre para mim, mas tudo é atravessado
por uma fuga invisível e fixa rumo a um objeto
novo. A aparição do outro no mundo
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
45
corresponde, portanto, a um deslizamento fixo
de todo o universo, a uma descentralização do
mundo que solapa por baixo a centralização que
simultaneamente efetuo (SN, p. 330)
Por conseguinte, o Para-si deixa de ser soberano nas
qualificações de seu próprio ser. Nas palavras de Sartre: “[...] o
ser-visto constitui-me como um ser sem defesa para uma
liberdade que não é minha liberdade.” (SN, p. 344) A dimensão
do conflito se instaura na medida em que há o reconhecimento
de que a subjetividade alheia possui o poder de fazer uso do
projeto livre do Para-si para a realização de seus fins e da
impossibilidade de este ter controle absoluto sobre as
qualificações alheias que fazem de seu ser. O Outro é assim
uma presença descrita como ameaça constante dos possíveis
projetos do Para-si, uma vez que a presença do Outro é
original, não há como escapar desta. Nesse sentido se constitui
a dimensão do conflito entre as liberdades.
A relação ao Outro é descrita por Sartre como
essencialmente conflituosa. Duas liberdades ao entrarem em
contato, originariamente, para resgatar o seu ser que foi
arrancado de si pelo Outro, tentam limitar a liberdade alheia
por meio de diferentes expedientes, por isso, recorrem a
diferentes tentativas de utilizar-se do Outro como meio para
realização de certos fins. Estas tentativas de posse da liberdade
do Outro se caracterizam em uma dimensão ontológica
originária pelo simples fato de que a liberdade é o único limite
para a mesma, o que, por conseguinte, revela que as atitudes
em relação ao Outro são dadas a partir da tentativa de limitar a
sua liberdade. “Em suma, o outro pode existir para nós de duas
formas: se o experimento com evidência, não posso conhecê-
lo; se o conheço, se atuo sobre ele, só alcanço o seu ser-objeto
e sua existência provável no meio do mundo. Nenhuma síntese
dessas duas formas é possível.” (SN, p. 384) Assim, as relações
humanas se dão basicamente sob duas formas principais: a) a
Sartre e as relações intersubjetivas
46
tentativa de apoderar-se da liberdade do Outro reconhecendo a
sua alteridade; b) o próprio conflito das liberdades. Para a
primeira, Sartre descreve a conduta amorosa, a linguagem e o
masoquismo, e para a segunda, a indiferença, o desejo e o
sadismo.3 Se nenhuma das tentativas de apoderar-se da
liberdade do Outro são possíveis de ser realizados, resta
somente o desejo de suprimir o Outro para que este não seja
mais o guardião dos juízos objetivos sobre o Para-si. Trata-se,
aqui, do ódio, da tentativa de eliminar o Outro. No entanto,
essa tentativa também se frustra, pois os juízos que o Outro faz
do Para-si não deixam de ter existido com a sua eliminação.
Além disso, com a morte do Outro, se elimina completamente a
possibilidade do Para-si modificar os juízos alheios. Assim, a
morte do Outro representa a derrota do Para-si, pois com a sua
morte o conhecimento objetivo que tinha de si mesmo se
desvanece, transformando-o em objeto petrificado, acabado.
Afora a relação intersubjetiva marcada pelo conflito e as
tentativas fracassadas de fuga da liberdade, Sartre anuncia a
possibilidade de uma moral edificada sob o conceito de
responsabilidade.
A ontologia não pode formular de per si
prescrições morais. Consagra-se unicamente
àquilo que é, e não é possível derivar
imperativos de seus indicativos. Deixa entrever,
todavia, o que seria uma ética que assumisse
suas responsabilidades em face de uma
realidade humana em situação. [...] Todas essas
questões [...] só podem encontrar sua resposta
3 No entanto, não se descreverá aqui cada uma destas atitudes, pois o
objetivo é demonstrar a tentativa de posse e o conflito das liberdades como
relação originária descrita em O ser e o nada, para posteriormente
confrontar com a descrição da intersubjetividade presente nos Cahiers pour
une morale.
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
47
no terreno da moral. A elas dedicaremos uma
próxima obra. (SN, pp. 763; 765).
Essas respostas, além das que estão dispersas em
diferentes escritos, podem ser visualizadas com maior
evidência na obra póstuma Cahiers pour une morale (1983) ao
se debruçar sobre o tema da conversão da liberdade. Nesta
obra, trata-se, sobretudo, de uma liberdade que não vive mais
intersubjetivamente no conflito, mas que adere a generosidade
como possiblidade de relação harmoniosa, e, assim, em uma
autêntica relação com os outros. Além disso, é caracterizada
como autêntica liberdade individual, pois apesar de reconhecer
o seu fracasso enquanto realização do desejo de ser um Em-si-
Para-si, se assume como única responsável pela constituição da
realidade humana em situação.
2. O aspecto moral da liberdade convertida e a
intersubjetividade harmônica
Se em O ser e o nada Sartre nos mostra o olhar do
Outro como revelador da subjetividade do Para-si, nos Cahiers
pour une morale, nos mostra o Outro como um Para-si
revelado. Na obra de 1943 a relação com o Outro é descrita
sem levar em consideração o aspecto desta relação após a
conversão. A relação autêntica descrita nos Cahiers pour une
morale não é uma simples supressão do conflito das liberdades,
mas a afirmação desta relação originária e também de uma
possível relação harmoniosa. N’O ser e o nada há ausência da
esfera do reconhecimento e da compreensão da liberdade do
Outro, pois esta se revela como tensão constante, como luta,
como afirmação de uma liberdade diante de outras liberdades.
Na obra posterior é possível constatar justamente aquilo que
faltava na anterior, ou seja, a dimensão do reconhecimento e da
compreensão da liberdade do Outro como apelo e
Sartre e as relações intersubjetivas
48
generosidade. No entanto, é preciso ressaltar que esta relação
não suprime a tensão e o conflito das liberdades, mas sim
preserva e vivencia esta relação ao mesmo tempo em que
vivencia a relação harmônica. Trata-se, portanto, de uma
relação marcada pela ambiguidade, pois por um lado o Outro é
tido como um objeto dado à consciência e por outro como
liberdade que é apreendida em meio aos seus próprios fins.
A vivência desta ambiguidade no plano moral é o que
Sartre descreve como a possibilidade de autenticidade, e esta
consiste na apreensão do Outro enquanto liberdade em seus
próprios fins e não mais como objeto ou como possibilidade de
incorporação na realização de fins puramente individuais; e,
sobretudo, do reconhecimento da dimensão de sua contingência
e vulnerabilidade diante do mundo. Sartre afirma: “Se eu
entendi o que é um homem e operei a conversão, eu não quero
simplesmente que o projeto seja realizado, eu espero que ele o
seja pelo homem, ou seja, através da contingência e da
fragilidade.” (CPM, p. 522). A relação autêntica descrita nos
Cahiers pour une morale é uma relação de apreensão da
liberdade do Outro como exigência para a realização da
mesma. Por isso, a forma dessa relação se dá pela via do apelo
e da generosidade. A relação autêntica com o Outro não
comporta uma anulação do projeto individual ou negação do
Para-si para a realização dos fins do Outro. O que está em jogo
aqui, não é a elevação de uma liberdade sobre a outra, mas sim,
o reconhecimento das mesmas como impensáveis sem a
dimensão do projeto fundamental e sem a exigência do apelo e
a generosidade da resposta de uma subjetividade que apreende
a outra no seio de seu ser.
Nas relações concretas com o Outro, a generosidade,
apesar de descrita por Sartre em apenas um exemplo4, que
deixa a desejar em termos concretos, indica a possibilidade de
4 Cf. CPM, p. 290. O exemplo em questão é o do homem que corre em
direção a um ônibus.
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
49
realização da mesma a partir de três atitudes fundamentais. A
primeira atitude consiste no Para-si transcender o todo a partir
de seus próprios fins, apreendendo a liberdade do Outro como
objeto qualificado, o que, por conseguinte, significa a não
compreensão e a supressão da liberdade do Outro. A segunda
atitude do Para-si em relação ao Outro está próxima das
descrições contidas em O ser e o nada, pois significa
reconhecer os fins do Outro e ao mesmo tempo apropriar-se
desses fins. O que continuaria em uma relação de
inautenticidade, pois os fins do Outro se tornam objetos de
realização dos fins do Para-si. A única forma de atitude
autêntica descrita por Sartre seria compreender os fins do
Outro, ao mesmo tempo em que se preserva a autonomia de
realização desses mesmos fins, afirmando que: “A única forma
autêntica do querer é querer que o fim seja realizado pelo
Outro. E querer aqui é se engajar na operação. Mas não para
realizar a si mesmo: para modificar a situação de tal sorte que o
Outro possa operar.”(CPM, p. 290). A generosidade que ocorre
na relação autêntica com o Outro, consiste em não abdicar dos
próprios fins, mas a partir da compreensão dos fins do Outro,
em um ato de generosidade, possibilitar que ele realize também
os seus fins na medida em que o Para-si se dispõe livremente
para realizar os fins do Outro.
É possível afirmar que há uma ambiguidade na relação
do Para-si autêntico com a realidade humana e nas suas
relações com o Outro. Pois, ao mesmo tempo em que pretende
uma busca por autenticidade pelo reconhecimento e
tematização do projeto fundamental enquanto fracasso, existe a
possibilidade de tornar esse fracasso edificante sob o pronto de
vista moral. Seja a partir da construção da possibilidade de um
mundo completamente humano, seja pelo reconhecimento da
liberdade do Outro e da exigência de não abandonar os
próprios fins, ou uma relação de generosidade na qual se adota
livremente os fins do Outro. Como conciliar a ambiguidade
Sartre e as relações intersubjetivas
50
entre o fracasso inevitável da realização do projeto
fundamental e a dimensão do conflito presentes em O ser e o
nada, e a realização da realidade humana por uma
subjetividade que se reconhece autêntica e se relaciona com os
outros sob uma perspectiva harmônica descrita nos Cahiers
pour une morale?
Nos Cahiers pour une morale Sartre dedica atenção ao
tema da conversão moral, a qual consiste em uma conversão de
uma liberdade alienada em liberdade autêntica. Assim, a
conversão da liberdade torna-se a condição necessária para a
efetivação de uma moral, entendida por sua vez como
possibilidade de realização humana ao converter-se. Essa
conversão é possível graças à reflexão pura que faz com que o
Para-si se reconheça como o ser pelo qual toda realidade
humana é possível, ao mesmo tempo em que reconhece que
este empreendimento somente é realizável em sua absoluta
contingência e finitude. Assim, se em O ser e o nada há a
descrição do Para-si como fuga da liberdade e queda na má-fé,
nos Cahiers pour une morale a moral viria a complementar os
resultados de sua ontologia de modo a estabelecer uma
autêntica liberdade, algo que não caberia nas descrições da
obra de 1943. Pois, nesta, a liberdade era descrita sob o aspecto
pré-moral. Não se trata de uma liberdade que se transforma em
outra, mas sim, de uma liberdade que resgata a si de sua
condição de “queda” na inautenticidade. Assim, a liberdade
convertida é tratada como a passagem de uma liberdade que se
encontra alienada e degradada para a descoberta da essência
própria dessa liberdade.
Na conversão, pela via da reflexão purificante, a
consciência recupera o seu caráter espontâneo, e, desse modo, a
moral em Sartre é pensada a partir de possibilidades autênticas
de uma consciência purificada. Melhor dizendo: a consciência
purificada deixa de negar a sua contingência absoluta, deixa de
estar submersa na má-fé, deixa de procurar identificar-se com o
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
51
Em-si, e assim, converte-se em autêntica. No entanto, é esta
uma conversão permanente, pois não se baseia em novos
valores absolutos, caso assim o fosse deixaria de ser livre.
Trata-se de uma liberdade que necessita a todo instante
afirmar-se como fundamento de tudo e que ao mesmo tempo
nada lhe serve de fundamento além de si mesma. Assim, a
conversão está associada à ideia de escolha, pois escolher e
fazer a si mesmo implicam constantes “conversões” motivadas
pelo estranhamento a si causado pela falta de nexo causal entre
um projeto atual e outro passado. A conversão, portanto,
adquire um sentido de ser permanente5, por isso a liberdade
continua disposta para mudar ou permanecer como estava.
Dessa forma a conversão se traduz em uma das múltiplas
formas da liberdade.
Para Sartre, “[...] a base única da vida moral deve ser a
espontaneidade, isto é, o irrefletido.” (CPM, p. 12). Assim, a
inautenticidade possui prioridade ontológica sobre a
autenticidade, pois para que haja a conversão da liberdade – e
esta se dá no plano reflexivo – é necessário haver também o
plano irreflexivo como base fundamental a partir da qual se
pode tematizar ou questionar as razões do fracasso do desejo de
ser, pois “[...] a reflexão nasce como um esforço da consciência
para se recuperar” (CPM, p. 19). As razões pelas quais o
homem efetua a passagem de uma reflexão impura para uma
pura é, em um primeiro momento, motivada pela experiência
do Outro que leva o Para-si a descobrir que a sua liberdade
inalienável é o motivo de sua própria alienação6. Outra razão é
5 “A moralidade: conversão permanente. No sentido de Trotsky: revolução
permanente. Os bons costumes: não são nunca bons porque são costumes.”
(CPM, p. 12). 6 “Por alienação entendemos um certo tipo de relação que o homem tem
consigo, com o outro e com o mundo, e em que ele põe a prioridade
ontológica do Outro. O Outro não é uma pessoa determinada, mas uma
categoria ou, se quisermos, uma dimensão, um elemento. Não há objeto ou
sujeito privilegiado que deva ser considerado como Outro, mas tudo pode
Sartre e as relações intersubjetivas
52
a descoberta do fracasso de determinar-se como um Em-si-
Para-si. Por estes motivos, é que a inautenticidade é o ponto de
partida para a possível conversão da liberdade, e esta conversão
se dá, sobretudo, no terreno moral.
No modo de ser autêntico ocorre a rejeição do projeto
fundamental de ser um Em-si- Para-si. Assim, a ideia de não
mais apropriar-se do Em-si se liga a assunção de uma
existência que se reconhece em sua absoluta contingência,
facticidade e finitude como estas vem à tona na reflexão pura.
Como consequência, há também a rejeição da fuga na má-fé.
Dessa maneira, o indivíduo autêntico mantem uma relação
original com o seu próprio projeto, visto que o único valor que
seus projetos possuem são aqueles eleitos pelo mesmo. Como
afirma Sartre: “Chegamos, pois, ao tipo de intuição que
desvelará a existência autêntica: uma contingência absoluta que
não se tem senão a si para se justificar assumindo-se, e que não
pode assumir-se senão no interior de si.” (CPM, p. 498).
Contudo, esse desvelamento somente se dá por meio da ação
concreta, e esta pressupõe criação de si e do Outro.
Dessa forma, o modo de existir autêntico pressupõe a
generosidade como estrutura fundamental, pois o Para-si
“Salva o Ser que, com efeito, não será nunca Para-si mas para
um existente que é para-si” (CPM, p. 500). A reflexão pura
torna explícito que o modo fundamental do agir humano é a
generosidade, o que em parte justifica a afirmação de que o
Para-si é o ser que faz com que apareça o ser. Além do
aparecimento do ser e de outras formas de generosidade, é
possível citar o reconhecimento da liberdade do Outro e do
reconhecimento de seus projetos individuais, o que
possibilitaria uma livre eleição dos fins do Outro sem abdicar
de seus projetos individuais. Dimensão esta, que caracterizaria
ser Outro e Outro pode ser tudo.” (CPM, p. 396) Mais adiante:
“Compreendo-me através de meus bens e das minhas obras e dou-me o tipo
de ser do objeto.” (CPM, p. 484-485).
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
53
as relações autênticas com os outros, e, portanto, um ponto de
convergência do ambíguo tratamento que Sartre da ao
problema moral da liberdade e seus empreendimentos
intersubjetivos.
N’O ser e o nada, como descrito anteriormente, as
relações intersubjetivas estão marcadas pelo signo do conflito e
nesse sentido a responsabilidade também se estende a essa
perspectiva, pois “[...] os outros, enquanto transcendências-
transcendidas, tampouco são mais do que ocasiões e
oportunidades, a responsabilidade do Para-si se estende ao
mundo inteiro como mundo-povoado” (SN, p. 681, grifos do
original). Por outro lado, em O existencialismo é um
humanismo, descreve a esfera da responsabilidade sobre os
outros em diversos momentos a partir do desejo de afirmação e
conquista da liberdade dos outros, pois a liberdade individual
estaria atrelada à liberdade alheia. “E querendo a liberdade,
descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos
outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa” (SN, p.
40). Dessa forma, afirma o aspecto moral da liberdade que não
é destacado em O ser e o nada. Porém, esse mesmo aspecto
moral da liberdade está presente em seu escrito póstumo de
1983, Cahiers pour une morale, no qual a liberdade é descrita
em seu outro modo de ser. Uma liberdade autêntica capaz de
reconhecer os fins dos outros e adota-los livremente sem
abdicar dos seus projetos individuais. Nesta obra, Sartre
procura tratar um outro aspecto da liberdade e da alteridade que
faltam em O ser e o nada, no qual a liberdade é caracterizada
essencialmente como má-fé e a intersubjetividade como
conflito. É preciso ressaltar aqui que, apesar da publicação
póstuma dos Cahiers pour une morale, o mesmo foi redigido
no período de elaboração de O existencialismo é um
humanismo, publicado pela primeira vez em 1946, e, talvez, a
mudança de um discurso puramente ontológico para uma
preocupação com o plano moral seja o reflexo de uma época
Sartre e as relações intersubjetivas
54
em que suas preocupações estavam voltadas para exigências
externas e preocupações pessoais acerca de uma
fundamentação ética do existencialismo.
A descoberta do Outro no período que se segue à
publicação de O ser e o nada foi expresso publicamente da
seguinte maneira:
O outro é indispensável para minha existência,
tanto quanto, ademais, o é para o meu
autoconhecimento. Nestas condições, a
descoberta do meu íntimo revela-me ao mesmo
tempo, o outro como uma liberdade diante de
mim, que sempre pensa e quer a favor ou
contra mim. (EH, p. 34, grifo nosso)
Assim, afirma a possibilidade de ultrapassar a má-fé e
pensar a intersubjetividade não mais sob o signo do conflito,
mas como uma relação harmônica em que o que está em jogo
não é mais a elevação de uma subjetividade sob a outra para a
realização de seus projetos individuais, mas duas liberdade que
colocadas diante uma da outra respondem ao apelo da outra sob
diferentes formas de generosidade, como por exemplo, a
possibilidade de reconhecer os projetos do Outro e adotar os
seus fins em uma relação harmônica. Possibilidade esta,
visualizada nos Cahiers pour une morale.
Conclusões inacabadas
Nos Cahiers pour une morale, Sartre, põe em evidência
o outro modo de ser da liberdade. Essa liberdade é descrita sob
a possibilidade da autenticidade, a qual consiste em, por meio
da reflexão pura, descobrir que o projeto fundamental de torna-
se um Em-si-Para-Si está fadado ao fracasso. No entanto, não
se trata de uma resignação, mas a descoberta de que o homem é
Artur Ricardo de Aguiar Weidmann
55
o único responsável pelo que faz de si mesmo e da realidade
humana. Nas relações autênticas com os outros a dimensão do
conflito não é suprimida, porém Sartre indica que há
possibilidade de reconhecimento do apelo do Outro. Assim,
procura demonstrar que nas relações autênticas é possível
ultrapassar o conflito e estabelecer uma harmonia
intersubjetiva mesmo que temporária. Essa harmonia se daria
pela via de uma resposta moralmente responsável de uma
subjetividade que reconhece os fins do Outro como apelo para
generosamente adotar os seus fins. Portanto, a relação autêntica
com o Outro significa, sobretudo, que existe a possibilidade de
duas subjetividades que, colocadas uma diante da outra, não
mais se relacionam como meios para realização de seus
respectivos projetos, mas sim a livre adoção dos fins do Outro
sem que seja necessário abdicar dos seus próprios fins.
Se em O ser o nada o encontro das liberdades é
marcado pelo conflito, nos Cahiers pour une morale Sartre
abre a possibilidade do reconhecimento destas liberdades e,
portanto, a possibilidade de resposta de uma subjetividade que
apela pelo reconhecimento dos fins de sua ação em uma
relação autêntica vivida sob uma perspectiva harmônica. Trata-
se, portanto, de uma moral fundada no apelo e na resposta de
subjetividades que, colocadas diante uma da outra, possibilitam
a autonomia de realização de seus respectivos projetos
individuais.
No entanto, é preciso levar em consideração que a
exposição desse outro aspecto da liberdade contido nos Cahiers
pour une morale, não resolve por completo as questões
deixadas em aberto em O ser e o nada. Assim, se a proposta
desta pesquisa é investigar a compatibilidade entre as teses
sobre a liberdade e a alteridade, especialmente a partir de O ser
e o nada e dos Cahiers pour une morale, é preciso investigar o
percurso das intenções da filosofia moral de Sartre para que
esta deixe de ser compreendida como um simples paradoxo
Sartre e as relações intersubjetivas
56
insolúvel, e sim como uma ambiguidade necessária para a
fundação de uma ontologia moral.
Referências bibliográficas
BORNHEIN, Gerd A. Sartre: metafísica e existencialismo.
São Paulo: Perspectiva, 2000.
SARTRE, Jean-Paul. A Transcendência do Ego seguido de
Consciência de si e Conhecimento de si. Trad. e intro. de
Pedro M. S. Alves. Lisboa: Edições Colibri, 1994. [TE]
_____. Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard, 1983.
[CPM]
_____. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica.
13ª ed. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2005. [SN]
_____. O existencialismo é um humanismo. 3ª ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2014. [EH]
57
LINGUAGEM SENSITIVA E LINGUAGEM
INTELECTIVA EM SANTO AGOSTINHO
Dinno Camposilvan Zanella1
Introdução
Aurélio Agostinho, em latim Aurelius Augustinus,
religioso e teólogo cristão, Doutor da Igreja sistematizou a
doutrina cristã com enfoque neoplatônico. É considerado "o
último dos antigos" e o "primeiro dos medievais", Santo
Agostinho foi o primeiro filósofo a refletir sobre o sentido da
história, mas tornou-se acima de tudo o arquiteto do projeto
intelectual da Igreja Católica. Nasceu em Tagaste, atualmente
Suk Ahras, na Numídia, atual Argélia, em 13 de novembro de
354 d.C. Seu pai chamava-se Patrício e era um homem pagão e
de posses, que no final da vida se converteu ao cristianismo.
Sua mãe era uma cristã de muita fé e chamava-se Mônica, e
posteriormente tornou-se santa. Agostinho estudou retórica em
Cartago, onde aos 17 anos passou a viver com uma concubina
com quem teve um filho chamado Adeodato.
Cada vez mais interessado pelo cristianismo,
Agostinho, que era pagão, viveu longo conflito interior.
Voltou-se para o estudo dos filósofos neoplatônicos, renunciou
aos prazeres físicos e em 387 d.C. foi batizado por santo
1 Possui Graduação no curso de Filosofia na Universidade Federal de
Pelotas. É atualmente Mestrando do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Pelotas como bolsista CAPES. Tendo
a orientação do professor Dr. Sérgio Ricardo Strefling para a realização
deste artigo. E-mail: [email protected]
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
58
Ambrósio, junto ao filho Adeodato. Tomado pelo ideal da
ascese, decidiu fundar um mosteiro em Tagaste, onde nascera.
Nesta época perdeu a mãe e, pouco depois, o filho. Ordenado
padre em Hipona (391 d.C.), pequeno porto do Mediterrâneo,
também na atual Argélia, foi em 395 d.C. feito bispo-coadjutor
de Hipona, passando a titular com a morte do bispo diocesano
Valério. Não tardou para que fundasse uma comunidade
ascética nas dependências da catedral.
Em sua vida e em sua obra, Santo Agostinho
testemunha acontecimentos decisivos da história universal,
como o fim do Império Romano e da antiguidade clássica. O
poderoso estado que durante meio milênio dominara a Europa
esfacelava-se em lutas internas e sob o ataque dos bárbaros.
Em 410 d.C., Agostinho viu a invasão de Roma pelos
visigodos e, pouco antes de morrer, presenciou o cerco de
Hipona pelo rei dos vândalos, Genserico. Nesse clima, em que
os cismas e as heresias eram das poucas coisas que
prosperavam, ele estudou, ensinou e escreveu suas obras. As
principais obras de santo Agostinho são: “Contra
Acadêmicos”2, “De Trinitate”
3, “De civitate Dei”
4,
“Confissiones”5, “De vita Beata”
6 e “De libero arbitro”
7.
2 Contra os Acadêmicos: No retiro de Cassicíaco, logo após sua conversão,
Agostinho escreveu este diálogo. Realizando uma engenhosa argumentação
sobre os sentidos como fonte de verdade. O erro está nos juízos que se faz
sobre as sensações e não delas próprias. A sensação como tal não é falsa,
mas quando expressa uma verdade externa ao próprio sujeito torna-se falsa.
Assim, os céticos não poderiam refutar se alguém dissesse: “Eu sei que isto
me parece branco.” Limito aqui a minha percepção encontrando ai a
verdade, verdade da qual não pode ser negada, ou contestada. Agora se
digo: “Isto é branco.” Aqui neste caso, há a possibilidade de se cometer
erro. Pois, existiria uma verdade absoluta que estaria implicada na
percepção do objeto. 3 Da Trindade: sistematização da teologia e filosofia cristãs, divulgada de
400 a 416 em 15 volumes. 4 A Cidade de Deus: divulgada de 413 a 426, em que são discutidas as
questões do bem e do mal, da vida espiritual e material, e a teologia da
Dinno Camposilvan Zanella
59
Contra o maniqueísmo, sustenta a liberdade do homem;
contra o pelagianismo, o valor da graça. A visão agostiniana da
história é completamente diferente da visão da graça: não mais
ciclos que se repetem periodicamente, mas um caminho em
linha reta que sobe da terra para o céu. No pensamento de
Santo Agostinho, o ponto de partida é a defesa dos dogmas
(pontos de fé indiscutíveis) do cristianismo, principalmente na
luta contra os pagãos, com as armas intelectuais que advém da
filosofia helenístico-romana, em especial dos neoplatônicos
como Plotino. Para pregar o Novo Evangelho, é indispensável
história. Aqui Agostinho leva a argumentação a cerca do conhecimento, as
ultimas consequências antecipando desta forma o cogito cartesiano com a
afirmação: “Si fallor sum.” “Se me engano, eu sou, pois aquele que não é
não pode ser enganado.” Assim, Agostinho afirmava a certeza da própria
existência. 5 Confissões: sua autobiografia, divulgada por volta de 400; e muitos
trabalhos de polêmica (contra as heresias de seu tempo), de catequese e de
uso didático, além dos sermões e cartas, em que interpreta minuciosamente
passagens das Escrituras. 6 A vida feliz: Solilóquios é o título que o próprio Agostinho deu a esta
obra, que se compõe de 2 livros e 35 capítulos, 15 no Livro I e 20 no Livro
II. A obra é inacabada, como se lê no fim do Livro II. Um terceiro livro
estava previsto, no qual Agostinho trataria especificamente do tema da
inteligência relacionado com a imortalidade da alma. Infelizmente não o
temos, porque os trabalhos pastorais logo iriam absorver totalmente o tempo
de Agostinho. Após sua conversão, ele retirou-se em Cassicíaco, uma aldeia
ao norte da Itália, cuja localização atualmente dificilmente se pode
identificar. Ali lhe fora cedido o uso de uma chácara por um nobre senhor
de nome Verecundo, onde Agostinho passou os primeiros anos após sua
conversão, em companhia de sua mãe Mónica e de seus amigos, para total
dedicação ao estudo, à filosofia, à meditação e satisfação de seu anseio: a
procura de Deus e da verdade, tema central desta obra. O método usado
nesta obra e em outros diálogos escritos nessa época é o de perguntas e
respostas. Era o método pedagógico utilizado na época, em que o instrutor
ou professor dialogava com o discípulo, levando-o a uma conclusão através
de raciocínios, às vezes até absurdos, para chegar à conclusão desejada. 7 O Livre-arbítrio: Afirma que o mal não deriva de Deus, mas das criaturas,
à medida que não é uma realidade positiva, mas uma privação da realidade.
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
60
conhecer a fundo as Escrituras, que só podem ser bem
interpretadas por meio da fé, pois apenas esta sabe ver na
revelação, a verdade divina. Compreender para crer e crer para
compreender, tal é a regra a seguir.
O problema8 a ser discutido é a relação entre
linguagem, educação e fala. Enfatizando como acontece a
comunicação no pensamento filosófico de Santo Agostinho.
Problema que Agostinho tenta resolver em suas obras. O
problema de como chegamos à verdade (“onde ela está?”).
Com relação à linguagem questiona-se: “Como nos
comunicamos?”, “Esta comunicação é realizada de que
maneira?” A função da palavra numa tentativa de transmissão
de conhecimento. “Uma linguagem exterior é capaz de mostrar
a verdade, dar significado por si só?”. Para a solução destes
problemas pretendo usar o conhecimento filosófico contido em
algumas de suas obras, a saber: “Confissões” e “De Magistro”.
Na obra “Confissões” pode-se perceber o desenvolvimento da
temática acerca do conhecimento humano. Trata-se de
conhecer as coisas a partir de uma confissão sincera, de quem
busca, a partir dos erros e acertos cometidos na vida, assim
conhecer a verdade. Esta busca é realizada na forma de oração:
uma súplica a Deus para que o ilumine na tentativa de
encontrar a verdade. Nesta reflexão, Agostinho questionará
seus atos, questionará também o conhecer, em especial a busca
pelo conhecimento verdadeiro: “Onde reside?” “Quando
estamos falando ou escrevendo podemos errar em nossas
afirmações?” “Estes erros cometidos por nós nos tornam
8 O primeiro problema filosófico abordado por Agostinho após sua
conversão foi o dos fundamentos do conhecimento, pois, na época, era
preciso de uma resposta urgente. Discussão que antes era realizada nos
limites da “Nova Academia platônica”, sendo dominada pelas analises de
Arcersilau (315-241 a.C) e Carnéades (214-129 a.C), que sustentavam a
tese de que não é possível encontrar um critério de evidência absoluta e
indiscutível, o conhecimento limitando-se ao meramente verossímil,
provável ou persuasivo.
Dinno Camposilvan Zanella
61
ignorantes?” “Nossa memória intelectiva, ou o conhecimento
interior, é capaz de fazer com que saibamos usar a
comunicação de maneira adequada?” “O conhecimento só pode
ser adquirido pelo estudo do mundo interior, pela alma?”. Na
obra “De Magistro”, podemos perceber por meio do diálogo
com o filho Adeodato, o desenvolvimento do problema da
relação entre linguagem e educação. Problema resolvido no
transcorrer do diálogo. Diálogo que parte de questionamentos
do tipo: “O que se deseja quando se fala?”, ou seja, quando nos
comunicamos temos alguma pretensão, algum desejo advindo
daquela comunicação. “Qual é a pretensão que se tem quando
estamos falando?” “Como é realizada a educação de uma
pessoa, a relação entre ensinar e aprender?” “O conhecimento
está no interior de cada ser humano?”. São questões que o
santo aborda na tentativa de encontrar o conhecimento
verdadeiro, do qual não se pode suspeitar ser falso ou conter
erro.
A obra de Santo Agostinho é imensa, de extraordinária
riqueza. Antecipa o cartesianismo e a filosofia da existência;
funda a filosofia da história e domina todo o pensamento
ocidental até o século XIII, quando dá lugar ao tomismo e à
influência aristotélica. Voltando à cena com os teólogos
protestantes (Lutero e, sobretudo, Calvino), é hoje um dos
alicerces da teologia dialética. Santo Agostinho morreu em
Hipona, em 28 de agosto de 430 d.C. E nessa data, é festejado
como doutor da igreja.
1. Linguagem sensitiva (primitiva)
Na obra “De Magistro”, ou “Do Mestre”, Agostinho9
por meio de um diálogo com seu filho Adeodato10
, apresenta
9 Nas citações Santo Agostinho aparecera como: AG.
10 Nas citações Adeodato aparecera como: AD.
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
62
um texto com amplo aspecto para o pensamento filosófico
quanto para pedagogia. O que tange entorno desta obra é, uma
problematização filosófica acerca da educação, em um sentido
de relacionar: linguagem, forma de comunicação, ensino e
aprendizagem. O que a torna uma obra importante para a época
e para a compreensão de uma epistemologia agostiniana.
O “De Magistro” coloca-se, bem no meio da grande
problemática filosófica da época, ou seja, esta no centro do
problema filosófico inerente a educação, cultura e transmissão
de conhecimento. Inicia os questionamentos na tentativa de
responder a possíveis perguntas: “Como é possível à
educação?” ou a outra pergunta anterior: “É possível
efetivamente à educação?” Ou seja, pretende-se aqui tratar
sobre a relação mestre e aluno, o que se mostra no capítulo
primeiro da obra, que desta relação a uma constante entre
ensinar, por parte do mestre e aprender, por parte do aluno.
Agostinho começa sua obra não criando discussões
sobre tais problemas, mas sim com possíveis soluções acerca
de: “Como e possível à educação?” O que não é questionado
logo de inicio, mas sim a “utilidade da linguagem”. Qual a
utilidade da linguagem, para que serve e por que usamos do
modo como a usamos?
A linguagem é um instrumento prático através
da qual estamos em grau de ensinar e de dar
informações, de evocar a memória fatos ou
conceitos e recordá-los aos outros: ela expressa
a vontade de quem fala. O pensamento de
Agostinho, ainda que não tematize diretamente
o problema da pedagogia, parte, porém, de uma
verdadeira e própria equação entre a educação
ou, ao menos, o ensinamento, e a própria
linguagem11
.
11
SANTOS, Bento Silva. O De Magistro de S. Agostinho e o Problema da
Linguagem, p. 4.
Dinno Camposilvan Zanella
63
Todavia, o que Agostinho realmente questiona neste
primeiro capitulo em relação à utilidade da linguagem é: “O
que queremos quando falamos12
?"
AG — Que te parece que pretendemos fazer
quando falamos? AD — Pelo que de momento
me ocorre, ou ensinar ou aprender. AG — Vejo
uma dessas duas coisas e concordo; com efeito,
é evidente que quando falamos queremos
ensinar; porém, como aprender? AD — Mas,
então, de que maneira pensas que se possa
aprender, senão perguntando? AG — Ainda
neste caso, creio que só uma coisa queremos:
ensinar. Pois, dize-me, interrogas por outro
motivo a não ser para ensinar o que queres
àquele a quem perguntas?13
Seu filho responde que se pretende: “ou ensinar, ou
aprender” “aut docere, aut discere”. O que Agostinho não
aceitou como resposta, em parte, pois não pretende negar, mas
fazer alguns acertos, ou seja, reformular a resposta, corrigindo
certos equívocos. Embora entre os termos: “aut docere, aut
discere”, Agostinho prefira usar somente o termo: “docere”,
pois quem fala também esta aprendendo além de ensinar, e
com relação a esse ensina Agostinho ainda acrescentaria antes
de “discere”, “commemorare”, que é o ensinamento não só para
com os outros, mas também fixar o conhecimento em nós e em
12
A definição do que chamamos “falar” é dada no De Magistro I, 2: “Qui
enim loquitur suae voluntatis signum foras dat per articulatum sonum” (“O
que fala mostra exteriormente o sinal de sua vontade pela articulação do
som”). Nesta definição entram os seguintes elementos: uma vontade
interna, que dá a conhecer o que quer; alguns sinais com os quais manifesta
seu desejo; alguns sons articulados, ou palavras, que são veículo de ideias:
não são simples sons ou vozes, como os que podem emitir os animais, mas
são articulados, formando grupos de sílabas que expressam uma realidade e
emitem exteriormente o que há dentro da vontade e do pensamento. 13
AGOSTINHO, Santo. De Magistro, I.
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
64
nossa memória, “quoddam genus docendiper
commemorationem”14.
Agostinho refutara esta posição de Adeodato com os
exemplos do canto e da oração. Será que com o cantar não nos
propomos também a ensinar e aprender como o que foi
afirmado inicialmente que acontece com o falar? Quem canta
só emite palavras, sons, não que quem escute de repente esteja
interessado em ensinar. Uma das formas de ensinar que o Santo
coloca como uma das mais valiosas é a recordação. Pois a
usamos de dois modos: para ensinar e aprender, ao lembrarmos
as recordações em nós mesmos e nos outros, como pode
acontecer quando cantamos. O que Adeodato discorda porque,
para ele, quando cantamos não nos interessamos pelas
lembranças, mas sim um agradar-se, deleitar-se com os
prazeres e a beleza do canto.
AG — Compreendo o que queres dizer; mas
não percebes que o que te deleita no canto não é
senão uma certa modulação do som, que, pelo
fato de se poder acrescentar ou subtrair às
palavras, faz com que uma coisa seja o falar e
outra o cantar? Em verdade, também com a
flauta e a citara se emitem modulações, cantam
também os pássaros, e nós mesmos, às vezes,
entoamos um motivo musical sem palavras, o
que se pode chamar canto, mas não fala;15.
Portanto, segundo Agostinho, o canto não pode ser
considerado como fala porque não haveria uma intenção de
ensinar e aprender no cantar, como propomos no inicio, como
fundamento para o falar. O que no canto estaria mais para uma
14
Este modo de ensinar per commemorationem parece aludir à doutrina
platônica da reminiscência, mas Agostinho jamais admitiu o mito da
preexistência das almas, e igualmente ignorou a teoria da reminiscência. A
doutrina da iluminação supriu à da reminiscência platônica. 15
AGOSTINHO, Santo. De Magistro, I.
Dinno Camposilvan Zanella
65
relação de modulação de som e palavras em um ritmo. Não
havendo uma pretensão de transmissão de conhecimento, um
simples deleite dos prazeres sensoriais faz com que o animo da
pessoa que canta para si, ouve ou canta para outros, fique em
um estado de felicidade momentânea. Mas ainda não seria o
auge de sua felicidade, o qual seria a paz.
Com relação à oração, Adeodato irá questionar a
respeito do que rezamos e também do que estamos falando. Se
falamos, é porque estamos buscando ensinar e aprender. O que
não pode ocorrer, pois, em uma oração. Não há a pretensão
nem de ensinar e nem de aprender, ou ainda de relembrar algo
a Deus. Como poderá ser observada na citação, essa é a
resposta de Santo Agostinho ao questionamento sobre a oração.
AG — Tenho a impressão de que não sabes
que, se nos foi ordenado rezar em lugares
fechados, expressão que significa o espaço
secreto da alma, o foi porque Deus não quer ser
lembrado de algo ou ensinado por nossas
palavras, para conceder-nos o que desejamos.
Quem fala, pois, dá exteriormente o sinal da sua
vontade por meio da articulação do som: mas
devemos procurar Deus e suplicar-lhe no mais
íntimo recesso da alma racional, que se
denomina o homem interior; quis Ele que fosse
este o seu templo. Não leste no Apóstolo: "Não
sabeis que sois o templo de Deus e que o
espírito de Deus 1 Mt 6,6. habita em vós", e que
"Cristo habita no homem interior?" E não
reparaste no que diz o Profeta: "Falai dentro
dos vossos corações e nos vossos leitos
arrependei-vos: oferecei os sacrifícios da justiça
e confiai no Senhor"? Onde crês que se podem
oferecer os sacrifícios da justiça a não ser no
templo da mente e no íntimo do coração? Onde
se fizer o sacrifício, aí também se há de orar.
Por isso não são de mister palavras quando
rezamos, isto é, palavras soantes, exceto, talvez,
no caso do sacerdote que expressa pela palavra
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
66
o seu pensamento, mas não para que Deus, e
sim os homens ouçam, e, por meio do
consentimento na recordação, sejam elevados
até Deus. Ou não pensas assim?16.
Esta objeção criada por Adeodato, sobre o canto e a
oração, demonstra que a linguagem nem sempre será uma
instrução, mas toda a instrução será necessariamente uma
forma de linguagem. Ao passo que sem falar, ou poder
exprimir seus conhecimentos, um mestre jamais poderá
ensinar. Do mesmo modo ocorre com a oração, pois não há
uma intenção de lembrar Deus ou de ensiná-lo pelas palavras.
Pois, na oração Deus não faz outra coisa senão ouvir a nossa
oração. Acontece, pois, que o Senhor da vida não nos ensina as
palavras, mas pelo significado delas, aquilo que devemos
aprender, ou seja, as coisas que as pessoas pedem em suas
preces.
AG — Entendeste certo: creio também teres
notado, apesar de haver quem não concorde,
que, mesmo sem emitir som algum, nós
falamos enquanto intimamente pensamos as
próprias palavras em nossa mente; assim, com
as palavras nada mais fazemos do que chamar a
atenção; entretanto, a memória, a que as
palavras aderem, em as agitando, faz com que
venham à mente as próprias coisas, das quais as
palavras são sinais17.
Podemos notar que, até mesmo quando não emitimos
nenhum tipo de som, ou seja, quando não emitimos som algum,
estamos, portanto, falando no interior da nossa mente, nos
nossos pensamentos. O que caracteriza os sons que fazemos
como maneiras de chamar a atenção pela memória. No entanto,
a memória que as palavras aderem são as próprias coisas
16
Ibidem. 17
Ibidem.
Dinno Camposilvan Zanella
67
realmente ou sinais derivados das palavras produzidas a partir
da mente.
2. Linguagem intelectiva (iluminação divina)
O questionamento que faço agora é: “O ser humano
conhece a verdade de que maneira?” Como aprendemos?
Como temos um conhecimento das coisas, das palavras, dos
significados que cada um dos sinais representa? Assim, chego à
questão que Agostinho mostra no capítulo X do livro “De
Magistro”: “Qual a diferença entre ensinar e significar?”
Exposto na citação abaixo.
AG — Ensinar e significar são a mesma coisa
ou diferem em algo? AD — Creio que a
mesma. AG — Fala corretamente quem diz que
nós usamos de sinais (que significamos) para
ensinar? AD — Sem dúvida. AG — Se alguém
dissesse que ensinamos para usar sinais (para
significar), não seria facilmente refutado pela
afirmação precedente? AD — Seria. AG — Se,
portanto, usarmos os sinais para ensinar, não
ensinamos para usar os sinais: uma coisa é
ensinar e outra é usar os sinais (significar). AD
— Dizes a verdade, e eu não respondi
corretamente dizendo que são a mesma, coisa.
AG — Agora, responde a isto: quem ensina o
que é ensinar o faz usando sinais ou
diversamente? AD — Não vejo como o poderia
fazer diversamente. AG — Então é falso o que
há pouco disseste, isto é, que não se pode
ensinar sem sinais a quem pergunte o que é
ensinar, porque estamos vendo que nem isto
sequer podemos fazer sem usar sinais, pois me
concedeste que uma coisa é usar sinais
(significar) e outra ensinar. Se são duas coisas
diferentes e uma se mostra pela outra, quer
dizer que não se mostra certamente por si,
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
68
como te pareceu. Portanto, nada encontramos
até agora que possa ser mostrado por si, salvo a
palavra, que, entre as outras coisas, significa
também a si mesma: porém, por ser ela também
um sinal, nada temos que pareça poder ensinar-
se sem sinais.18.
No transcorrer do diálogo, entre Agostinho e seu filho,
chegam ao questionamento exposto acima que: o “significado”
e o “ensinar” seriam a mesma coisa e são correspondentes entre
si ou não. Mesmo que inicialmente aparente alguma
correspondência entre estes dois termos, a citação acima nos
traz o entendimento de que não é bem deste modo que as
pessoas têm o conhecimento, detém o saber, ou melhor, são
capazes de chegar à verdade.
Entendamos esta relação entre ensinar e significar.
Segundo Agostinho, é correto que sejam usados os sinais,
também entendidos como significado, para podermos ensinar.
Pois, é este significar que dá a explicação sobre aquilo que se
pretende ensinar, ou seja, é o sinal de representação de um
objeto, gesto ou som, por exemplo, que seria o ensinar. E o
ensinar seria buscar os sinais, ou o seu significado. Diante
disso afirmamos como verdade: ensinar e significar seriam a
mesma coisa.
Agostinho discorda dessa posição, pois se usamos
sinais para ensinar, não podemos ensinar para aprender sinais.
Todavia, uma coisa é ensinar e outra coisa deve ser o
significar. Então, é falso que ensinar e significar são iguais, e
que não se pode ensinar sem que emitamos sinais. E uma coisa
se mostra pela outra, mas não que sejam mostradas por si,
como sendo iguais. Por não poder mostrar por si, a única coisa
que até o momento pode significar a si mesma é a “palavra” e
que não se pode ensinar sem sinais. Desta forma o
conhecimento se dá pelos sinais que se apresentam por meio
18
AGOSTINHO, Santo. De Magistro, X.
Dinno Camposilvan Zanella
69
das palavras, gestos e sons entre outras formas de
comunicação.
Mas este conhecimento que se dá pelos sinais, ou pelo
que aprendemos das palavras, é o conhecimento verdadeiro, a
verdade? O bispo irá afirmar que as palavras mostram que nós
não aprendemos nada além de palavras: “porque, se o que
não é sinal não pode ser palavra, não sei também como
possa ser palavra àquilo que ouvi pronunciado como
palavra enquanto não lhe conhecer o significado”19
. Só se
pode ter conhecimento depois que temos o conhecimento das
coisas. Logo, o conhecimento completo das palavras não é
dado só pelo que ouvimos, pois somente com o som das
palavras não temos capacidade de entender nem mesmo as
palavras que imaginamos saber ou conhecer o significado.
“Com efeito, não tivemos conhecimento das palavras que
aprendemos nem podemos declarar ter aprendido as que
não conhecemos, senão depois que lhes percebemos o
significado, o que se verifica não mediante a audição das
vozes proferidas, mas pelo conhecimento das coisas
significadas20”. Ao serem proferidas palavras, é perfeitamente
razoável que se diga que nós sabemos ou não sabemos o que
significam; se o sabemos, não foram elas que no-lo ensinaram,
apenas o recordaram; se não o sabemos, nem sequer o
recordamos, mas talvez nos incitem a procurá-lo.
Se disseres que daqueles objetos que servem
para cobrir a cabeça e dos quais temos o nome
(coifas) apenas através do som podemos
adquirir noção só depois de vê-los; e que,
portanto, nem sequer o seu nome conhecemos
completamente senão depois de conhecermos
os próprios objetos; e se acrescentares que, no
19
Idem, XI. 20
Ibidem.
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
70
entanto, de nenhum outro modo, senão pelas
palavras, conseguimos aprender o que se narra
a respeito dos três jovens, isto é, que com sua fé
e religião venceram o rei e as chamas, quais
foram os hinos de louvor que cantaram a Deus,
quais as honras que mereceram do próprio
inimigo, responder-te-ei que todas as coisas
significadas por aquelas palavras já eram de
nosso conhecimento. Pois eu já tinha na minha
mente o que significa três jovens, o que é forno,
o que é fogo, o que é rei, o que quer dizer ser
preservado do fogo e, finalmente, todas as
outras coisas significadas por aquelas palavras.
Mas desconhecidos, como aquelas "saraballae"
(coifas), ficam para mim os jovens Ananias,
Azarias e Misael; nem os seus nomes me
ajudaram ou poderiam ajudar a conhecê-los. E
confesso que, mais que saber, posso dizer
acreditar que tudo aquilo que se lê naquela
narração histórica aconteceu naquele tempo
assim como foi escrito; e os próprios
historiadores a que emprestamos fé não
ignoravam esta diferença.21
.
“Certamente não diria isto se não julgasse necessário
pôr uma diferença entre as duas coisas”22
. Portanto, creio tudo
o que entendo, mas nem tudo que creio também posso
entender. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que
creio tenho o conhecimento verdadeiramente. “E não ignoro
quanto é útil crer também em muitas coisas que não conheço,
utilidade que encontro também na história dos três jovens”23
.
Pois, não podendo saber a maioria das coisas, sem, porém o
quanto é útil acreditar nelas. No que diz respeito a todas as
coisas que compreendemos, não consultando a voz de quem
fala, a qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós
21
Ibidem. 22
Ibidem. 23
Ibidem.
Dinno Camposilvan Zanella
71
reside à própria mente incitada talvez pelas palavras a consultá-
la.
Quem é consultado ensina verdadeiramente e este é
Cristo, ser que habita no homem interior, isto é, a virtude
incomutável de Deus e a sempiterna Sabedoria que toda alma
racional consulta, mas que se revela a cada um quanto é
permitido pelas sua própria boa ou má vontade. “E se às vezes
há enganos, isto não acontece por erro da verdade consultada,
como não é por erro da luz externa que os olhos, volta e meia,
se enganam: luz que confessamos consultar a respeito das
coisas sensíveis, para que no-las mostre na proporção em que
nos é permitido distingui-las”24
. Ou seja, a verdade habita o
interior do ser humano. Não são as simples coisas, ou os sinais,
ou as simples palavras que é o conhecer. Mas, sim o mais
intimo do homem, no seu interior, ai está à verdade, o
conhecimento, o verdadeiro saber. Ou como escrito acima:
“Quem é consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo”.
Ao recordar-vos, ultrapassei todas aquelas
partes da memória que os animais também
possuem, porque não vos encontrava entre as
imagens dos seres corpóreos. Cheguei àquelas
regiões onde tinha depositado os afetos da
alma. Nem mesmo lá vos encontrei. Entrei na
sede da própria alma, na morada que ela tem na
memória – pois o espírito também se recorda de
si mesmo –, e nem ai estáveis. Assim a alegria,
a tristeza, o desejo, o temor, a lembrança, o
esquecimento e outras paixões semelhantes,
assim também não podeis ser o meu espírito,
porque sois o seu Senhor e seu Deus. Tudo isso
muda. Vós, porém, permaneceis imutável sobre
todas as coisas, e, apesar disso, dignastes-Vos
24
Ibidem.
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
72
habitar na minha memória, desde que Vos
conheci.25.
A solução de Agostinho ao problema da linguagem tem,
portanto, um caráter metafísico-teológico: a verdade como tal não
é engendrada em nós pelas palavras do magistério humano, mas
pela presença de uma “Verdade Interior”, que transcende a alma.
A experiência pensante é adquirida paralelamente à experiência
sensível. Podemos constatar a lei de interioridade fora da alma, há
agentes estimuladores ou admoestadores e sinais; a
espontaneidade da alma permanece intacta, pois ela se apropria
destes sinais e os interpreta: é do seu próprio interior que ela tira a
substância do que aparentemente lhe é mostrado pelos sinais que
vem das coisas que temos acesso pelos sentidos, ou por alguma
outra forma de comunicação.
Considerações finais
Após estudarmos e analisarmos o tema, certificamo-nos
quanto é, e o quanto foi importante para a sociedade medieval e
para a história, a doutrina filosófica de Santo Agostinho, em
especial a sua “teoria do conhecimento”. Constatou-se que no
limiar da Era Cristã, houve a necessidade da criação de uma
teoria educacional, uma epistemologia que compreendesse os
problemas do conhecimento. Em contrapartida, houve o
surgimento de homens brilhantes e corajosos que efetivaram a
conjunção do pensamento histórico para dar uma urgente
resposta ao ceticismo da época. Mas, a verdade religiosa
encontrada pelo bispo africano, um dos mais importantes da
Igreja, oriundo de Tagaste, mais tarde consagrado Agostinho
de Hipona, pode ser considerada como a grande resposta da
época para o problema do conhecer verdadeiramente as coisas.
25
Idem, X, 25, p: 284.
Dinno Camposilvan Zanella
73
Agostinho apresenta primeiro um tratado sobre a linguagem e a
educação sensitiva, exterior, primitiva. Linguagem que percebe
como não verdadeira, pois, o conhecimento advindo desta
relação de comunicações não transmite nenhum tipo de
conhecimento. São palavras, gestos por si mesmos, sem que
haja qualquer tipo de significado. Muito menos nossas falhas
de compreensão ou no entendimento das conversas, que nos
tornam ignorantes, por não querermos admitir, ou perceber a
verdade, como se um véu encobrisse a nossa razão.
O filósofo africano, como dito acima, dá uma resposta
satisfatória para época. A sua resposta tem fundamentação na
“teoria da Iluminação Divina”. Doutrina que visa explicar
como é possível para o homem ter o conhecimento das
verdades eternas. Doutrina que seja absolutamente verdadeira,
que não seja um engano ou uma falha na compreensão humana.
Esta teoria proposta pelo bispo faz parte de uma metáfora
recebida por meio da leitura de Platão, que mostra na alegoria
da caverna ser o conhecimento (em última instância, o bem, e o
sol que ilumina o mundo inteligível). Onde todas as
proposições são verdadeiras, há realmente verdade porque elas
são previamente iluminadas pela luz divina. Agostinho
aproxima-se de Platão segundo o qual todo o conhecimento é
“reminiscência”, mas Agostinho afasta-se ao entender a
percepção do inteligível na alma, não como um conteúdo do
passado, mas como irradiação divina no presente. Deus é a luz
eterna de onde procede a Verdade. Acredito que a grande
mensagem deixada pelo filósofo seja: “Crer para entender,
entender para crer”26
. Mostra a necessidade de termos fé para
que possamos entender e assim conhecer a verdade que reside
no interior do ser humano.
26
Sl 43.
Linguagem sensitiva e linguagem intelectiva
74
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77
FRANZ BRENTANO CRÍTICO DE FRANZ
MIKLOSICH: CONSIDERAÇÕES BRENTANIANAS
ACERCA DO TRABALHO SÜBJEKTLOSE SÄTZE
Evandro Oliveira de Brito 1
Introdução
A Em 1889, Brentano publicou sua teoria ética e,
abandonando definitivamente o expressivismo proposto na
Psicologia do ponto de vista empírico (1874), sustentou um
cognitivismo moral2 ao afirmar que este se fundamentava na
descrição da consciência desenvolvida segundo os critérios de
sua Psicologia descritiva, a qual seria publicada em pouco
tempo (BRENTANO, 1969, p. 3-4). Essa obra sobre ética,
intitulada A origem do conhecimento moral (Vom Ursprung
sittlicher Erkenntnis), trouxe como apêndice uma resenha já
publicada em 1883, na qual Brentano havia analisado as
pesquisas do linguista Miklosich sobre os verbos impessoais
nas línguas eslavas.
Ora, merece uma cuidadosa atenção o fato de que
Brentano iniciou sua resenha afirmando que o título,
Subjektlose Sätze (Proposições sem sujeito), atribuído por
Miklosich para a segunda edição, era de fato o mais
1 Bolsista de pós-doutorado CAPES/PNPD no Programa de Pós-graduação
em Filosofia da UFSM. [email protected] 2 Este tema foi tratado detalhadamente em Psicologia e ética – o
desenvolvimento da ética na filosofia do psíquico de Franz Brentano
(BRITO, 2012).
Franz Brentano crítico de Franz Miklosich
78
apropriado, pois “o autor não se preocupava apenas com a
natureza de um grupo de línguas; ele estava preocupado com
uma tese de significância muito mais extensa" (BRENTANO,
1971, p. 183). Com isso, Brentano pretendia sustentar que o
novo título se adequava melhor aos propósitos do trabalho
porque indicava o caminho para a grande descoberta ocorrida
na linguística, lógica e teoria do conhecimento, da qual ele
mesmo participara com sua teoria exposta na obra Psicologia
do ponto de vista empírico (1874) e aprimorara nos trabalhos
que constituíram a obra Psicologia descritiva, escritos entre
1889 e 1891.
No intuito de expor a relevância do trabalho de
Miklosich para a filosofia brentaniana do psíquico, tomaremos
como objeto da nossa apresentação a questão principal da
investigação do linguista, apontada por Brentano, quando este
afirmou que Miklosich não se preocupou com a natureza de
apenas um grupo de línguas, uma vez que estava interessado
em uma tese de significância muito mais ampla. A saber: a tese
de que uma proposição é, fundamentalmente, um conceito
(concebido como uma função) e não uma síntese entre sujeito e
predicado.
Assim, trataremos de reproduzir alguns pontos da
análise brentaniana, os quais afirmavam que a extensão
universal de tal tese consistiria no fato de que toda expressão
linguística estaria estruturada sobre uma única forma
proposicional, ou seja, todas as proposições seriam constituídas
da mesma forma lógica.
As seguintes definições, apresentadas por Inwood
(1992, p. 200), servirão para esclarecer, mais adiante, o ponto
principal do texto, uma vez que se trata de apontar a identidade
entre a forma lógica da proposição (Satz) e a estrutura formal
do juízo (Urteil) que fundamentaria a lógica, tal como
Brentano a concebia. Neste sentido, proposição (Satz) e juízo
(Urteil) são tomados ambiguamente do seguinte modo.
Evandro Oliveira de Brito
79
Satz deriva de setzen (assentar, colocar, por,
fixar etc.) e é, pois, alguma coisa posta no chão
ou posta em determinada situação ou condição.
Tem grande variedade de sentidos (por
exemplo, sedimento e resíduos), mas o seu
significado comum em filosofia e no uso
corrente é o de "sentença”, “proposição".
Enquanto que Urteil consiste em conceitos,
Satz consiste em palavras: é um Urteil expresso
em palavras. Mas, está frequentemente mais
perto de "proposição" do que de "sentença": por
exemplo, o que denominamos a "LEI" ou
“PRINCÍPIO" de (NÃO-) CONTRADIÇÃO é,
em alemão, o Satz de contradição”.
Para tornar compreensível, então, a recepção
brentaniana da teoria desenvolvida por Miklosich, nós
exporemos dois pontos específicos de sua resenha, a saber:
i) Miklosich segundo Brentano: como Brentano
interpretou a questão fundamental do trabalho de
Miklosich?
ii) Brentano para além de Miklosich: como Brentano
identificou os resultados da investigação de
Miklosich com os resultados sua própria teoria do
conhecimento?
Vamos ao primeiro ponto.
1. Miklosich segundo Brentano.
Com o proposito de contextualizar esta apresentação,
faremos primeiramente menção a alguns elementos relevantes
da biografia de Miklosich.
Franz Brentano crítico de Franz Miklosich
80
Franz Miklosich3 nasceu em 20 de novembro de 1813
em RadomerŠČak, Eslovênia, e morreu em 07 de março de
1891, em Viena. Formou-se na Universidade de Graz e, entre
1850 e 1886, lecionou na Universidade de Viena. Portanto, foi
colega de Brentano nessa universidade a partir de 1874.
Miklosich ficou conhecido como o linguista austríaco e
esloveno, pois foi o fundador dos estudos histórico-
comparativos de gramática em línguas eslavas.
Franz Miklosich fez uma importante contribuição aos
estudos eslavos com a publicação de textos eslavos medievais,
incluindo Codex Suprasliensis (1851), Apostuluse codice
monasterii ŠiŠatovac paleoslovenice (1853), Nestor’s
Chronicle (1860) e as fontes sobre a história dos eslavos
(Monumenta serbica, 1858). Ele estudou literaturas eslavas e
foi o fundador do estudo comparativo da poesia épica eslava,
além de ter estudado também direito eslavo e etnologia.
As principais obras de Miklosich trataram da
lexicologia e gramática comparativa das línguas eslavas (vols
1-4., 1852-1875). O primeiro e o terceiro volumes deste
trabalho foram, mais tarde, completamente revisados e
publicados na segunda edição revisada do vol. 1 (1879) e vol. 3
(1876). Ele também estudou as influências transversais das
línguas eslavas e as línguas dos povos vizinhos, incluindo os
húngaros, romenos, albaneses e a língua dos ciganos.
Apresentados, assim, alguns dos temas vinculados ao
trabalho de Miklosich, podemos retornar ao nosso ponto por
meio da recolocação da pergunta que nos interessa responder
na primeira parte desta apresentação. A saber: como Brentano
interpretou a questão fundamental do trabalho de Miklosich?
Nas palavras do próprio Brentano, esta questão foi
apresentada do seguinte modo:
3 As informações biográficas sobre Miklosich estão em The Great Soviet
Encyclopedia e foram citadas pelo The Free Dictionary on-line.
Evandro Oliveira de Brito
81
Nós queremos aqui, no entanto, considerar
especialmente a questão principal e esclarecer
de modo breve do que se trata realmente. É uma
antiga asserção da lógica que o juízo consiste
essencialmente em uma ligação ou separação,
em uma relação de representações uma para
com outra. Mantida quase unanimemente por
mais de dois mil anos, ela também exerceu
influência sobre outra disciplina. E, assim, nós
encontramos com os gramáticos, desde a
antiguidade, a doutrina de que não é dada e não
pode se dar qualquer forma simples de
expressão de juízos, além da categórica, a qual
liga um sujeito com um predicado
(BRENTANO, 1971, p. 184. Tradução nossa).
O núcleo do problema explicitado por Miklosich, como
afirmou Brentano nesta citação, estava no fato de que tanto a
lógica como a gramática afirmavam que o juízo se definia
basicamente como uma ligação ou separação entre uma
representação e outra. Deste modo, e exatamente por conta
desse pressuposto, havia surgido a dificuldade de explicar a
natureza de certas proposições, tais como es regnet (chove), es
blitzt (relampeja) e es rauscht (há ruído).
Em língua portuguesa, essa questão é clara. Pois, se, de
um lado, estivesse o pressuposto lógico de que a estrutura
proposicional teria a forma do juízo categórico (S é P), do
outro lado, estariam as proposições que não se encaixariam
nessa estrutura, pois elas não possuem sujeito (ou, em certos
casos, predicado). Elas são exatamente as proposições que
Miklosich investigou e Brentano retomou: chove; relampeja; e
há ruído. Assim, ao menos em língua portuguesa, fica explícita
a impossibilidade de se encontrar a forma do juízo categórico
(S é P) em tais proposições sem sujeito.
De modo análogo ao que se explicita na língua
portuguesa, as proposições “chove” e “há ruído” evidenciaram
o paralelo encontrado por Miklosich e Brentano entre a língua
Franz Brentano crítico de Franz Miklosich
82
alemã e as línguas eslavas. Pois, tal como a língua portuguesa
nos mostra, o sujeito explicitamente inexistente nas proposições
“chove” e “há ruído” não poderia ser considerado como algum
tipo de sujeito oculto, pressuposto pelo pronome neutro ‘es’
presente na língua alemã. Assim, o pressuposto de que uma
proposição teria a forma do juízo categórico (S é P), vinculado
ao modo de conceber a função do pronome neutro ‘es’ da
língua alemã (ou seu correlato nas línguas ocidentais), havia
ocultado algo tão evidente para todos os pesquisadores da
tradição ocidental. Considerada essa a questão central,
Brentano ressaltou, a partir da análise de Miklosich, algumas
tentativas fracassadas de explicar a suposta existência de tal
ligação entre sujeito e predicado naquelas proposições sem
sujeito (Subjektlose Sätze). Seguindo o linguista, ele descreveu
algumas das propostas de solução para mostrar a razão do seu
fracasso.
Na primeira proposta de solução destacada por
Brentano, Miklosich avaliou as tentativas de se estabelecer o
sujeito, tanto para a proposição es regnet (chove), como para a
proposição es rauscht (há ruído). No caso específico da
proposição es regnet (chove) havia a sugestão, proposta por
antigos pesquisadores, a qual afirmava que o sujeito seria Zeus.
Neste caso, ressaltou Brentano seguindo a recusa da solução
apresentada por Miklosich, “tal como alguns pensaram, quando
se diz es regnet (chove), o sujeito não nomeado, designado pelo
‘es’ indefinido, seria Zeus e o sentido seria Zeus regnt (Zeus
chove)” (BRENTANO, 1971, p. 185). O problema estava no
fato de que está solução simplória se tornava imediatamente
falsa quando aplicada à proposição es rauscht (há ruído), pois,
continuou ele, “quando se diz es rauscht (há ruído) seria
evidente, então, que Zeus não poderia ser o sujeito”
(BRENTANO, 1971, p. 185). Nem mesmo seria válida a
segunda proposta de solução, a qual havia afirmado que “aqui
o sujeito seria das Rauschen (o ruído) e, então, o sentido da
Evandro Oliveira de Brito
83
proposição seria das Rauschen rauscht (o ruído rui)”
(BRENTANO, 1971, p. 185). Se isso fosse possível, no caso da
proposição es regnet (chove) tal solução estabeleceria das
Regnen (a chuva) como seu sujeito, uma vez que a proposição
seria, então, der Regen regnet (a chuva chove).
A falha nessas tentativas de procurar um sujeito oculto
para as proposições sem sujeito, como uma tentativa de
justificar a forma da proposição categórica, também ficava
evidente no caso das proposições es fehlt an Geld (falta
dinheiro) e es gibt einen Gott (é dado um Deus ou há um
Deus). A análise de Miklosich citada por Brentano é a seguinte.
Quando se diz es fehlt an Geld (falta dinheiro),
então consequentemente o sentido deveria ser
das Fehlen an Geld fehlt an Geld (a falta de
dinheiro falta dinheiro). Mas isso não é
aceitável. E, então, em vez disso, se esclarece
aqui que o sujeito seria Geld (dinheiro) e o
sentido da proposição seria Geld fehlt an Geld
(dinheiro falta dinheiro). Certamente isso seria,
a rigor, uma violação mais grave contra a
unidade desejada da explicação. E se, tapando
os olhos, talvez se pudesse escondê-la, não
seria mais possível alcançar um sentido
aceitável quando se encontrasse proposições
como es gibt einen Gott (é dado um Deus ou há
Deus), onde novamente nas proposições einen
Gott Geben gibt einen Gott (um Deus dá um
Deus) ou das Geben gibt einen Gott (o Dado dá
um Deus) ou, ainda, Gott gibt einen Gott (Deus
dá um Deus). (BRENTANO, 1971, p. 185.
Tradução nossa).
Ao apresentar a evidência manifesta pelas proposições
sem sujeito enunciadas em línguas eslavas, análogas a
evidência que encontramos em tais proposições quando
enunciadas na língua portuguesa, a análise de Miklosich impôs
à Brentano uma nova questão. Pois, afirmou ele, “seria preciso
Franz Brentano crítico de Franz Miklosich
84
pensar, aqui, em um modo de explicação totalmente diferente.
Mas onde seria possível encontrá-la?”.
2. Brentano para além de Miklosich:
Como Brentano identificou os resultados da
investigação de Miklosich com os resultados sua própria teoria
do conhecimento?
Segundo Brentano, a análise das proposições sem
sujeito (tais como chove, relampeja etc.) levou Miklosich a se
opor a duas teses comumente aceitas pela tradição, a saber: a
tese lógica; e a tese gramatical.
a. A tese lógica afirmava que “o juízo consistia
essencialmente em uma ligação ou
separação, em uma relação de uma
representação com outra” (BRENTANO,
1971, p. 184).
b. A tese gramatical afirmava que “não havia
uma forma expressão mais simples do juízo
que a categórica, a qual ligava um sujeito a
um predicado” (BRENTANO, 1971, p. 184).
Essa oposição de Miklosich, ainda segundo Brentano
(1971, p. 186), estava dirigida contra aqueles que, como
Steinthal, negavam toda a correlação entre gramática e lógica e
refutava, ao mesmo tempo, os ataques que, precisamente em
razão dessa correlação, os psicólogos e os lógicos poriam
contra sua teoria. Portanto, a grande virtude encontrada por
Brentano nesse ataque, levantado por Miklosich, consistia em
reconhecer a verdadeira estrutura dos juízos a partir da
estrutura das proposições sem sujeito, pois a ele pareceu ser
falso que um conceito fosse relacionado a outro em todo juízo,
Evandro Oliveira de Brito
85
uma vez que “frequentemente o juízo é apenas a afirmação ou
negação de um fato simples” (BRENTANO, 1971, p. 187).
Este era, então, o ponto fundamental da interpretação de
Brentano, pois, segundo ele, a tese de Miklosich não apenas
estava correta, mas ela também havia chegado às mesmas
conclusões que ele mesmo chegara nas investigações
psicológicas desenvolvidas em sua Psicologia do ponto de
vista empírico (1874) e aprimorara nos trabalhos que
compuseram sua Psicologia descritiva, elaborados entre 1888 –
1891.
A tese brentaniana envolvia um conjunto de
especificidades que foge aos propósitos deste trabalho. No
entanto, é preciso ressaltar que ela, supondo os fundamentos da
filosofia do psíquico aprimorados para a Psicologia descritiva
(1888 – 1891), sustentava os três pontos seguintes, os quais
permitiram recepcionar os resultados do trabalho de Miklosich.
b) Toda proposição pode ser descrita na forma de um juízo
existencial.
c) Todo juízo existencial pode ser descrito como uma
relação intencional de segunda classe (diploseenegie),
sendo, portanto, um fenômeno psíquico que pressupõe
uma representação (relação intencional de primeira
classe).
d) Enquanto relação intencional fundamental, toda
representação consiste num ato intencional dirigido a
um objeto imanente.
Tal como analisamos pormenorizadamente em outro
trabalho4, esses três pontos resultaram conjuntamente do
aprimoramento da filosofia brentaniana, apresentado entre
1888-1891.
4 A esse respeito, conferir BRITO (2013), especialmente o terceiro capítulo
intitulado Os fundamentos da descrição dos fenômenos no contexto da obra
Psicologia descritiva (p. 125-180).
Franz Brentano crítico de Franz Miklosich
86
Nesse contexto de época, Brentano corrigiu sua
primeira teoria da intencionalidade apresentada na obra
Psicologia do ponto de vista empírico (1874) e chamou passou
a chamar a atenção para aquela que seria a correta separação
entre a classe das representações (ideae) e a classe dos juízos
(judicia), tal esta como fora apresentada por Descartes à
história da filosofia. Segundo a análise brentaniana, a correta
separação cartesiana entre a classe das representações (ideae) e
a classe dos juízos (judicia) resultava da seguinte descrição.
O juízo seria descrito como um ato de afirmação ou
rechaço da representação (e não mais como um ato de
afirmação ou rechaço do conteúdo representado, como em
1874). Isso significava que a descrição do juízo seria orientada
pela estrutura de predicação encontrada em Aristóteles, ou seja,
[(A)é] ou [(A é b)é], mas, além disso, Brentano reconhecia na
teoria cartesiana uma especificidade desse mesmo ato. Tratava-
se da afirmação ou do rechaço da relação intencional que
constituiria o ato de representar, ou seja, da representação (e
não do representado), pois a análise brentaniana descrevia a
ideae como uma função assimétrica para redefinir a noção de
representação.5
5 É interessante anteciparmos uma parte do comentário de Twardowski que
desenvolveremos adiante. O próprio Twardowski fez referência ao modo
como Brentano concebeu essa noção de representação e, também, deixou
indicada a recepção cartesiana, pois Twardowski afirmou que a noção
brentaniana de objeto secundário era o ato e o conteúdo tomado em
conjunto. Além disso, como veremos adiante, essa representação consistia
no objeto ao qual o juízo se referia intencionalmente. “Embora Brentano
designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito
aqui (na obra de Twardowski), ele entende por objeto secundário de uma
representação o ato e o conteúdo tomados em conjunto, na medida em que
ambos, durante a atividade de representar um objeto, são apreendidos pela
consciência interna, e aí a representação torna-se assim consciente”.
Twardowski, Kasimir. Para a doutrina do conteúdo e do objeto das
representações, Uma investigação psicológica, p. 62-63, nota 2.
Evandro Oliveira de Brito
87
Aqui está, então, o ponto tangencial que nos interessa
nessa posição epistemológica, pois Brentano não reconhecia a
noção moderna de juízo (relação entre ideias) no âmbito da
teoria do conhecimento cartesiana. A análise brentaniana
esclareceu que a noção cartesiana de juízo não poderia ser
descrita como uma atribuição de um sujeito a um predicado [A
é B]. Tal como descreve a citação a seguir, Brentano nos fez
lembrar, também em 1889, que uma composição de “ideias”
ou uma “ideia composta”, por si só, nada mais seria que uma
parte (ou o correlato) da representação (ou do ato). Do mesmo
modo, uma “ideia” simples seria também uma parte (ou o
correlato) da representação (ou do ato). Isso significava que a
representação, como um ato intencional, estava referida a um
objeto imanente, portanto, tendo uma representação como base,
um juízo seria uma referência intencional a essa representação,
fosse ela um ato que se referisse a um correlato simples ou
composto:
Sempre que se queira, é possível juntar e referir
várias representações umas às outras. Por
exemplo, quando dizemos: uma árvore verde;
uma montanha de ouro; um pai de cem filhos;
um amante da ciência. No entanto, se nada for
feito além disso, não se expressa juízo algum.
Também é certo que o julgar, como o desejar,
implica sempre um representar. Mas, não é
certo que várias representações se refiram umas
às outras como sujeito e predicado. Isto
acontece quando digo: Deus é justo. Mas, não
quando digo: existe um Deus. (BRENTANO,
1969, p. 17. Tradução nossa).
Esse era o ponto convergente entre Descartes e
Brentano, tal como expõe a citação acima.
Ora, se Brentano estabeleceu que não haveria como
conceber a noção de ideia hobbesiana e lockiana em sua
filosofia do psíquico, então não haveria também como
Franz Brentano crítico de Franz Miklosich
88
conceber juízo ou conhecimento como relação entre ideias,
segundo a fórmula do juízo categórico (S é P). Tendo esse
pressuposto em elaboração, o trabalho de Miklosich serviu
perfeitamente para corroborar sua teoria do psíquico.
Conclusão
Tal como expusemos, Brentano se valeu da tese
fundamental de Miklosich, a qual estabelecia que, a partir da
sua forma, as proposições sem sujeito explicitavam que o juízo
seria apenas a afirmação ou a negação de um fato simples. Em
outras palavras, Brentano utilizou o fenômeno linguístico
estudado por Miklosich para corroborar sua teoria de que todo
juízo sintético é redutível a um juízo tético, pois todo juízo
possui a forma de ato intencional de segunda classe.
Ao pressupor sua própria teoria, Brentano incorporou
algumas reformulações à tese de Miklosich com o exclusivo
propósito de complementá-la e consolidá-la filosoficamente,
embora as tenha classificado como reformulações secundárias.
De modo breve e alusivo, podemos dizer que tais
complementações estabeleceriam que: a) por um lado, as
proposições denominadas proposições sem sujeito também
seriam, por definição, proposições sem predicado; e b) por
outro lado, a forma da proposição seria, na verdade, universal
e sua extensão seria ilimitada.
Não poderemos analisar aqui, no escopo desta
apresentação, os pressupostos e as implicações das
complementações brentanianas propostas para a teoria de
Miklosich, pois esta será a tarefa de um trabalho futuro.
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ich
91
CONSCIÊNCIA INTENCIONAL: UMA ANÁLISE
LEVINASIANA
Felipe Bragagnolo1
Introdução
Ao iniciarmos nossos estudos sobre a fenomenologia
defrontamo-nos com conceitos como consciência e
intencionalidade, ambos conceitos centrais dessa área de
estudo. Esses conceitos, distantes de fazerem referência às
análises realizadas pela neurociência, ou seja, que parte de
métodos com bases empíricas, na fenomenologia, são pensados
antes como condições de possibilidade do conhecimento. Tanto
a consciência como a intencionalidade nos remetem a uma
tradição longínqua do pensamento filosófico, onde pensadores
como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Guilherme de
Ockham a tradição empirista inglesa envolveram-se
profundamente na discussão desses temas.
No entanto, o que faz da fenomenologia a
fenomenologia, essa que surge em meados do século XIX, é a
reflexão realizada pelo pensador Edmund Husserl. Sua reflexão
sobre a consciência e a intencionalidade, que se iniciaram com
a influência de seu professor e mestre Franz Brentano, e, a
partir de questões trazidas pela tradição antes referida,
principalmente aquelas realizadas pelos empiristas e
naturalistas do século XIX e seus antecessores, oportunizaram
conclusões até então desconhecidas. De forma bastante
1 UFSM – Universidade Federal de Santa Maria. E-mail para contato:
Consciência intencional
92
resumida e até demasiadamente simplória, podemos dizer que a
concepção de intencionalidade fornecida pela tradição
filosófica, que destacava-se diante das demais até Husserl, era
a de que a intencionalidade seria algo como uma ponte entre a
realidade empírica e a consciência, ou ainda, a intencionalidade
era como um atributo, uma característica da consciência
(LEVINAS, 2004, p. 68ss).
Husserl desfaz essas concepções. A intencionalidade na
fenomenologia não é, somente, concebida como meio para
explicar a relação da consciência com a realidade empírica,
nem mesmo, para responder estritamente a questão acerca de
como o sujeito cognoscente alcança o objeto empírico. A
intencionalidade na fenomenologia surge como uma ideia
teórica riquíssima que nos revela uma perspectiva bastante
distinta daquela proposta pela tradição antecessora de Husserl.
Nesse breve artigo, nosso objetivo torna-se, além de
apresentar brevemente a concepção da intencionalidade
proposta por Husserl a partir da leitura de Levinas, apresentar a
esfera da consciência denominada de esfera passiva. Essa
discussão está perpassada pela leitura do livro La teoria
fenomenológica da intuição de Levinas, mais especificamente
o capítulo denominado “Teoria fenomenológica do ser: a
intencionalidade da consciência”. Esse trabalho justifica-se
quando percebemos em Levinas o desejo de mostrar um outro
lado da consciência não estudado por Husserl com tamanho
rigor como a consciência teórica. Acreditamos que o valor fim
de tal investigação está em possibilitar uma nova compreensão
sobre a sensibilidade e a ideia da ética, tão bem desenvolvidas
posteriormente por Levinas.
Felipe Bragagnolo
93
1. Consciência intencional
A consciência na fenomenologia husserliana não seria
mais compreendida como uma substância fechada em si
mesma, concepção essa que perpassava o período medievo
(LEVINAS, 2004, p. 70). Entretanto, a consciência somente
seria consciência enquanto ato intencional, ato que se
transcende. A intencionalidade em Husserl apresenta-se para
além da compreensão de uma ponte entre a consciência e o
mundo, como também, ultrapassaria a compreensão de um
atributo da consciência. A intencionalidade é pensada na
fenomenologia husserliana como constituinte da subjetividade
mesma do sujeito. “A intencionalidade constitui a
subjetividade mesma do sujeito. Sua substância mesma consiste
em transcender-se” (LEVINAS, 2004, p. 69, grifo do autor).
No entanto, o que significa esse transcender-se da consciência?
Significa que Husserl coloca no coração da consciência a
necessidade do contato direto, sem mediação, com o mundo e
os objetos. A intencionalidade, originariamente, nos coloca em
relação com algo exterior a consciência, nos lança para fora da
esfera imanente.
Mas longe de resumirmos a questão da intencionalidade
ao problema do conhecimento, “[...] a ideia de intencionalidade
nos permite ir mais além do problema sujeito-objeto”
(LEVINAS, 2004, p. 70). Ao analisarmos mais profundamente
a intencionalidade percebemos que a relação sujeito e objeto
não é a única forma de doação da consciência. A
intencionalidade não se reduziria a esfera do conhecimento, da
doação do objeto, mas sim, relacionar-se-ia com as mais
diferentes formas do sujeito se posicionar diante do mundo e
das coisas, como na esfera afetiva, na esfera prática e na esfera
estética (LEVINAS, 2004, p. 71). Essas formas de vida
também se caracterizariam por sua relação com o objeto
(LEVINAS, 2004, p. 71), entretanto, possuiriam sua
Consciência intencional
94
particularidade, não se constituiriam da mesma forma que a
esfera teórica da consciência, que sempre nos revelaria o
objeto. “Toda valoração é valoração de um Wertverhalt (estado
de valores), todo desejo, desejo de um Wunschverhalt, etc. O
atuar vai dirigido a ação; o amar, ao amado; a satisfação, ao
satisfatório, etc.” (HUSSERL, 2006, § 117, grifo do autor).
Seria em função de a intencionalidade não fazer somente
referência à esfera teórica da consciência que a mesma poderia
se dar de uma maneira diferente dessa (LEVINAS, 2004, p. 72-
73).
Os atos volitivos e afetivos possuem modos específicos
de transcenderem-se, de tenderem para algo fora de si
(LEVINAS, 2004, p. 72). Nas palavras de Husserl,
O modo como uma ‘simples representação’ de
um estado-de-coisas visa a este seu ‘objeto’ é
diferente do modo do juízo que toma o estado-
de-coisas por verdadeiro ou falso. Mais ainda,
uma coisa é o modo da suposição e outra o da
dúvida, o modo da esperança e do temor, da
satisfação e do desprazer, do desejo e da
aversão [...]. (HUSSERL, L.U., 2012, V, § 10,
grifo do autor).
Esses diferentes modos de visar algo revelariam a
intencionalidade da consciência. Segundo a análise de Husserl,
o sujeito ao dirigir o seu olhar para algo visaria um
determinado objeto a partir desses diferentes modos. O objeto
vivido intencionalmente pelo sujeito teria “em seu modo
mesmo de ser vivido, uma autêntica prerrogativa de ser”
(LEVINAS, 2004, p. 72), sendo a vida consciente a fonte
mesma da ideia de ‘ser’ do objeto. Logo, não seria somente a
esfera teórica da intencionalidade que revelaria a vida concreta,
no entanto, a vida concreta, a vida vivida seria revelada
também pelos diferentes atos intencionais que a constituem.
Conforme a leitura apresentada por Levinas, os atos volitivos e
Felipe Bragagnolo
95
afetivos seriam os atos responsáveis por inserir o sujeito na
vida concreta (LEVINAS, 2004, p. 72). Para esse filósofo, “[...]
vemos que o mundo real não é simplesmente um mundo de
coisas relativas ao ato perceptivo (ato puramente teórico). O
mundo real é um mundo de objetos de uso prático e de valores”
(LEVINAS, 2004, p. 72, grifo do autor).
Parece-nos que Husserl não teria dado tamanha ênfase
ao estudo que Levinas está propondo, ou ainda, que a própria
tradição filosófica não teria visto esse tema como central nas
análises de Husserl. Mas, esse possível fato não exclui a
importância e os apontamentos já realizados por Husserl sobre
esse tema, tanto que temos nesse uma obra bastante densa e
volumosa sobre a esfera passiva da intencionalidade
denominada Analyses Concerning Passive and Active
Synthesis: Lectures on Transcendental Logic (2001), dentre
outras.
Logo, sabendo da centralidade desse tema, Levinas
volta a sua atenção para esse campo de estudo, pois
As qualidades inerentes as coisas que fazem
que essas nos importem
(Bedeutsamkeitsprädikate), que fazem que nos
sejam apaixonantes, que as temamos, que as
queiramos, etc., não devem ser excluídas da
constituição do mundo, não devem ser tão só
atribuídas a reação ‘inteiramente subjetiva’ do
homem com o mundo. (LEVINAS, 2004, p.
72)2.
Seria a partir dos atos volitivos e afetivos da
consciência que as qualidades inerentes das coisas apareceriam,
revelando, assim os objetos e o mundo como algo que
importariam ao sujeito, que o interessaria, que o cativaria.
2 O conceito “Bedeutsamkeitsprädikate” em alemão pode ser traduzido para
o português como: predicados de importância.
Consciência intencional
96
Esses diferentes atos, como bem lembra Levinas, “[...] não
devem ser excluídos da constituição do mundo” (LEVINAS,
2004, p. 72) e não devem ser, tão somente, questões atribuídas
a esfera ‘subjetiva’ do homem que está no mundo. “Essas ditas
qualidades se dão em nossa vida como correlativas as
intenções, sendo necessário considerá-las como pertencentes à
esfera objetiva” (LEVINAS, 2004, p. 72) da consciência, em
outras palavras, essas ditas qualidades se dão juntamente com a
esfera que nos revela o objeto enquanto tal.
Dizer que esses atos pertencem à esfera objetiva da
consciência não significa dizer que o modo como eles se
apresentam partem de uma representação de base. A
intencionalidade não se apresenta somente a partir desse modo
de doação. Conforme Levinas, a noção husserliana de
intencionalidade é mais ampla (LEVINAS, 2004, p. 72).
Atentamos para a explicação fornecida por ele sobre essa
questão: A intencionalidade “[...] expressa unicamente o eixo
geral de que a consciência se transcende, de que se dirige para
algo que não ela mesma, e que, possui um sentido. No entanto
‘ter um sentido’ não equivale a representar” (LEVINAS, 2004,
p. 72-73, grifo do autor). Logo, nem todos os atos tem algo
claro em sua base como uma representação, contudo, possuem
algo, possuem um sentido. “O ato de amor tem um sentido, no
entanto, isto não quer dizer que possua uma representação do
objeto amado e um sentimento puramente subjetivo,
desprovido de sentido, que acompanharia aquela
representação” (LEVINAS, 2004, p. 73, grifo do autor). É
próprio do ato de amor dar-se enquanto uma ‘intenção de
amor’, “intenção irredutível a representação puramente teórica”
(LEVINAS, 2004, p. 73). Esses diferentes atos, dentre eles os
volitivos e afetivos, revelam-se como ultrapassando a
representação, indo para além dela, não se limitando a esse
modo de dar-se da consciência.
Felipe Bragagnolo
97
Levinas radicaliza a sua análise mostrando que as coisas
e o mundo não podem ser compreendidos com base no ato
teórico da consciência. Para esse, as coisas e o mundo sempre
escapam ao ato teórico da consciência. Almejando exemplificar
essa questão apresentemos o exemplo que ele apresenta:
[...] um livro [...] não se reduz ao mero eixo de
estar aí, diante de nós, como um conjunto de
propriedades físicas. É mais bem seu caráter
prático e usual o que constituem sua existência.
Esse nos é fornecido de uma maneira
completamente distinta de uma pedra, por
exemplo. (LEVINAS, 2004, p. 73).
Levinas, através desse exemplo, apresentaria um outro
modo de dar-se das coisas que fariam delas algo para nós
diferente daquele modo proposto pelo ato teórico da
consciência. O ato teórico objetivante3 do mundo não seria aqui
excluído, no entanto, cederia o lugar central da doação de
significado de algo para o ato da esfera valorativa, afetiva e etc.
Retirar-se-ia a atenção da esfera teórica da consciência e
colocar-se-ia na esfera prática, na esfera existente. Tais
características, perceber as coisas e o mundo a partir de seu
caráter prático e usual, revelariam as coisas e o mundo como
algo que não poderiam ser reduzidos somente a esfera da
consciência teórica, pois as coisas e o mundo nos seriam
apresentados para além de seus predicados objetivos, nos
seriam apresentados enquanto objetos de interesse ou não do
sujeito. Desse modo,
3 Alguns atos da consciência são chamados de ‘atos objetivantes’. Tais atos
se caracterizam especificamente por fornecerem algo sobre as coisas e o
mundo. Nas Investigações Lógicas esses atos não levam em consideração os
atos volitivos, afetivos da consciência, pois esses atos não revelariam nada
sobre as coisas (LEVINAS, 2004, p. 90).
Consciência intencional
98
A vida concreta, fonte da existência do mundo,
não é puramente teórica, apesar da especial
dignidade que esta tem para Husserl. A vida
concreta é uma vida de ação e de sentimento, de
vontade e juízo estético, de interesse e
desinteresse, etc. (LEVINAS, 2004, p. 73, grifo
do autor).
O mundo correlativo dessa vida prática certamente seria
o mundo teórico, no entanto, esse mesmo mundo objetivado
pela vida teórica consistiria em um mundo querido, sentido,
mundo de ação, de beleza, de bondade, de feiura e de maldade
(LEVINAS, 2004, p. 73).
A compreensão da vida enquanto atividade teórica e,
também como, atividade volitiva e afetiva a partir da
intencionalidade apresentam-se como algo extremamente
importante no pensamento levinasiano. Segundo o filósofo
francês, essas diferentes noções da intencionalidade
“constituem na mesma medida a existência do mundo,
compõem sua estrutura ontológica na mesma medida que as
categorias puramente teóricas da espacialidade, por exemplo”
(LEVINAS, 2004, p. 73, grifo do autor). Como em Husserl a
esfera teórica da consciência obtivera, em certa medida, mais
atenção, agora Levinas busca mostrar que existem outras
esferas merecedoras de tamanho destaque, tendo em vista que
também possuem papel central na constituição da estrutura
ontológica do ‘ser’.
Porque vontade, desejo, etc., são intenções que
constituem, na mesma medida que a
representação, a existência do mundo e não se
reduzem a serem elementos da consciência
desprovidos de toda a relação com o objeto, a
existência mesma do mundo possui uma
estrutura rica, sempre distinta de acordo com os
diferentes domínios. (LEVINAS, 2204, p. 73-
74).
Felipe Bragagnolo
99
A intencionalidade revela-se para nós como constitutiva
de todas as formas de consciência. “No entanto até esse
momento temos nos ocupado da consciência explícita,
desperta, ‘ativa’, como Husserl a chama” (LEVINAS, 2004, p.
74, grifo do autor). Entretanto a consciência não se limita a sua
esfera de claridade e distinção, aonde cada ato se articula
nitidamente. Ao realizarmos a epoché direcionamos nossa
atenção para a compreensão da articulação desses diferentes
atos. Porém, alguns atos revelam-se com maior facilidade de
mapeá-los, já outros atos não nos parecem ser tão claros como
aqueles. Não conseguimos com a mesma facilidade mapear os
atos e seus correlatos nessa outra esfera da consciência, a
esfera passiva, dos atos volitivos e afetivos. Como se
apresentaria essa nova esfera da consciência? O que essa esfera
da consciência nos revelaria? Tal esfera da consciência é
distinta da esfera objetiva, teórica e atual?
A intencionalidade seria o ato constitutivo de todas as
formas de consciência. “No entanto, até esse momento temos
nos ocupado da consciência explícita, desperta, ‘ativa’, como
Husserl a chama” (LEVINAS, 2004, p. 74, grifo do autor).
Entretanto a consciência não se limita a sua esfera de claridade
e distinção, aonde cada ato se articularia nitidamente. Por um
lado, como vimos até esse momento, temos a esfera da
consciência ativa, teórica, que nos doa o mundo e os objetos.
Por outro lado, defrontamo-nos com a esfera passiva, inatual da
consciência. Essa esfera nos revelaria a vida em sua
radicalidade, a vida em sua concretude. Vida que é perpassada
pela ação, pelos sentimentos, pela vontade, por juízos estéticos
(LEVINAS, 2004, p. 73).
Conforme avançamos na análise da esfera passiva da
consciência parece-nos que deparar-nos-íamos com a
concepção de um ‘eu’ envolvido com o mundo e os objetos que
o circundam. Um ‘eu’ que não somente compreende o mundo e
Consciência intencional
100
os objetos, mas que vive através deles, que está envolvido junto
a eles. Assim, a atividade teórica da consciência parece como
que partilhar o mesmo espaço do ato intencional com a esfera
passiva.
A vida consciente não se articularia somente a partir da
esfera de claridade e distinção dos atos, esfera ativa. Todavia,
na esfera passiva da consciência os atos que a compõem não se
revelariam da mesma forma que na esfera ativa. Conforme
Levinas, retomando Husserl, a esfera passiva da consciência
também apareceria como ‘consciência de algo’ (LEVINAS,
2004, p. 74). No entanto, o plano de fundo da consciência ativa
não é nem conteúdo de consciência, nem sua matéria
desprovida de intencionalidade (HUSSERL, Ideias I, 2006, §
84). O plano de fundo da consciência é uma esfera objetiva
(LEVINAS, 2004, p. 74). A diferença existente entre a esfera
ativa e a esfera passiva pressupõem a intencionalidade. Ambas
esferas são diferentes modalidades da intencionalidade
(LEVINAS, 2004, p. 74). O ponto central de análise dessas
diferentes modalidades está na ‘atenção’ depositada sobre o ato
por elas realizado. “Dentro de cada intencionalidade, a atenção
traduz a maneira em que o eu se relaciona com seu objeto. No
ato de atenção, o eu vive ativamente; é, em certa medida,
espontâneo e livre” (LEVINAS, 2004, p. 74). Já nos atos
desprovidos de ‘atenção’, “na esfera potencial, o eu não se
ocupa diretamente com as coisas dadas. Não se dirige
ativamente e espontaneamente para o objeto” (LEVINAS,
2004, p. 74).
O foco de Levinas, com base na constatação acima, está
sobre o ‘eu’ que vive nos diferentes atos da consciência
(LEVINAS, 2004, p. 78). Isso se dá em função de Levinas
desejar aprofundar a sua investigação diante do caráter pessoal
da consciência, pois “a vida psíquica não é uma corrente
anônima no tempo. O vivido pertence sempre a um eu”
Felipe Bragagnolo
101
(LEVINAS, 2004, p. 78)4. A intencionalidade não pode assim,
ser reduzida unicamente a sua esfera constituinte do mundo e
dos objetos, mas também, deve ser considerado a esfera que
apresenta o ‘eu’ como passividade.
Versaria dessa consideração a descoberta de um ‘eu’
que viveria nos diferentes atos da consciência e que se revelaria
de diferentes modos – enquanto ‘receptividade’,
‘espontaneidade’ e ‘intencionalidade’ – nos diferentes atos da
consciência.
Nos atos de atenção, nos atos de juízo criativo e
de sínteses, de afirmação e de negação, esta
atividade do eu, esta espontaneidade, em todas
as suas formas, deve ser respeitada e levada em
conta pela descrição antes de toda
interpretação. Em alguns destes atos
‘posicionais’, o eu vive não como passivamente
presente neles, se não como um centro de
radiação, ‘como a fonte primeira de sua
produção’. (LEVINAS, 2004, p. 79, grifo do
autor).
Nesses diferentes atos posicionais algo como um fiat do
‘eu’ seria revelado (LEVINAS, 2004, p. 79). Levinas, nessa
citação, apresenta um ‘eu’ que vive em seus diferentes atos, um
‘eu’ que apareceria como imerso nessas vivências. Levinas
4 Husserl modifica sua postura da obra Investigações Lógicas para Ideias I
no que se trata o ‘eu’ e a intencionalidade. Na primeira obra citada Husserl
nega o ‘eu’ como um elemento das intenções. “O eu se identifica com a
totalidade das intenções que preenche um lapso de tempo e que são
reciprocamente complementárias” (LEVINAS, 2004, p. 78). Já em Ideias I,
o ‘eu’ aparece “como um elemento irredutível da vida consciente. Os atos
surgem, por assim dizer, de um eu que vive em ditos atos” (LEVINAS,
2004, p. 78-79). Essa nova visão apresentada por Husserl permite que
façamos a distinção entre os diferentes modos de vivência do ‘eu’ nos atos.
Esse se apresenta como ‘receptividade’, como ‘espontaneidade’ e como
‘intencionalidade’ da consciência (LEVINAS, 2004, p. 79).
Consciência intencional
102
evidência a compreensão de que em muitos dos atos da
consciência o ‘eu’ seria o centro de radiação desses diferentes
atos. Logo, o ‘eu’ participaria como fonte primeira de produção
de sentido, de significado de alguns dos atos da consciência.
Levinas, ao se referir aos atos que possuem algo como
um fiat do ‘eu’, desvela a esfera potencial do ‘eu’, a esfera
passiva.
Mas embora o eu seja ativo e possa ser
percebido no cogito explícito, atual, não deixa
de ter relação com a esfera potencial da
consciência, e isso precisamente porque se
encontra, de um certo modo, apartado da
mesma. Esse eixo, esse afastamento determina
de maneira positiva a esfera potencial: essa
deve sua potencialidade precisamente em
função de o eu se apartar dela. A possibilidade
mesma, própria do eu, de afastar-se do campo
potencial e de regressar a ele, pressupõem uma
filiação de princípio de dito campo ao eu. O
plano de fundo da consciência pertence ao eu
como seu; é, por assim dizer, o campo da sua
liberdade. (LEVINAS, 2004, p. 79).
Essa possibilidade mesma acabaria por apresentar um
campo próprio do ‘eu’. O ‘eu’ seria compreendido
fundamentalmente como aquele que não se revela em sua
totalidade em seus atos teóricos, mas que sempre permanece,
mesmo que em partes, velado, encoberto. A capacidade que o
‘eu’ possui de sair e regressar desse campo revela uma pertença
de princípio do ‘eu’ a essa condição (LEVINAS, 2004, p. 79).
Diante dessas considerações, o campo potencial da consciência
apresenta-se como pertencendo ao ‘eu’ como ‘seu’.
O ‘eu’ não se reduziria a um ponto vazio puramente
formal de onde emanariam todos os atos de consciência, pelo
contrário, o ‘eu’ teria um caráter de pessoa (LEVINAS, 2004,
Felipe Bragagnolo
103
p. 78). O que parece interessar a Levinas é analisar a relação
existente entre a intencionalidade e o ‘eu’, pois
o eu não é uma parte real da cogitação como,
por exemplo, as sensações. O eu se anuncia na
cogitação de uma maneira especial que permite
Husserl conceber sua presença na consciência
como uma ‘certa transcendência na imanência
da consciência’. ‘O eu puro não é uma vivência
(Erlebnis) como outras, nem uma parte
constitutiva da vivência’5. (LEVINAS, 2004, p.
80, grifos do autor).
O ‘eu’ revelar-se-ia para além da esfera ativa da
consciência. O ‘eu’ se anunciaria nessas diferentes cogitações,
mas a sua forma pura, o ‘eu’ puro, estaria para além da
vivência imanente dos atos da consciência. Por isso, nos
parece, que Husserl afirma uma certa transcendência na
imanência. O ‘eu’ em sua pureza sempre parece permanecer
escondido, revelando-se pouco a pouco, de momento em
momento, nas suas diferentes vivências. Para Levinas a
intencionalidade nos revela a transcendência do ‘eu’ na
imanência da consciência. Essa revelação não supõe nenhuma
alteração da noção de intencionalidade, somente apresenta um
novo campo de investigação (LEVINAS, 2004, p. 80).
A consciência não se converte de novo, com a
introdução do eu, em uma ‘substância que
descansa sobre si mesma’ e que teria
necessidade da intencionalidade para
transcender-se. Ela é primeiramente
intencionalidade. É só dentro desse fenômeno,
respeitando seu modo transcendental de existir,
que podemos distinguir um lado subjetivo e
outro objetivo, um eu e um objeto. Podemos
5 O sentido da palavra real nessa citação é de que o ‘eu’ não é parte
constitutiva da realidade de algo (LEVINAS, 2004, p. 80).
Consciência intencional
104
falar de um eu, de um ponto do qual emergem
os atos, apenas como característica interna da
intencionalidade. (LEVINAS, 2004, p. 80, grifo
do autor).
A noção de ‘eu’ pressuporia a noção de
intencionalidade (LEVINAS, 2004, p. 80). O ‘eu’, contudo,
pertenceria e somente seria revelado em sua radicalidade a
partir da noção de intencionalidade apresentada pela
fenomenologia.
Considerações finais
A teoria fenomenológica de Husserl nos oportunizou
um campo vasto e rico de investigações vindouras. Levinas
representa o filósofo que, tendo estudado o pensamento de
Husserl e tido a oportunidade de conviver junto a ele,
posteriormente pode, em certa medida, vislumbrar novas
leituras, ou ainda, aprofundar temas somente apontados por seu
mestre. Como percebemos no decorrer desse artigo, Levinas
mostrou que a atenção de Husserl sobre a consciência estava
em torno principalmente dos ‘atos objetivantes’ do mundo e
das coisas. Todavia, Levinas volta sua atenção para outro
âmbito da consciência, retirando o seu olhar da esfera teórica
da consciência e buscando aproximar-se da esfera passiva. A
vida que não se resume a vida teórica, a vida contemplativa,
mas, apresenta-se também como vida afetiva, vida volitiva,
perpassada, roubada de certa maneira pelos desejos, pela
vontade, pelo interesse ou desinteresse do sujeito diante
daquilo que o cerca.
A intencionalidade também nos revela a passividade e
um ‘eu’ que vive em seus atos objetivantes. Um ‘eu’ implicado
com os objetos e o mundo, uma subjetividade, em certa
medida, encarnada nos atos da consciência. A noção de
Felipe Bragagnolo
105
intencionalidade é radicalizada em Levinas, radicalizada
porque aprofunda a análise do ‘eu’ que vive juntos aos atos da
consciência. Tais atos que compõem a esfera passiva da
consciência foram apresentados por Levinas não como
quaisquer atos da consciência, mas, que em certa medida
constituem da mesma forma que os atos da esfera ativa a
estrutura ontológica do ‘eu’.
Com essa nova abordagem da intencionalidade, da vida
objetivante somos levados a navegar em novas águas, a buscar
novas terras, a mudarmos nossa atenção da esfera ativa para a
esfera passiva. Acabamos por assim dizer, sendo roubados pela
vida concreta. Findamos assim essa análise, que ainda continua
em andamento, questionando-nos para onde seremos levados,
para onde seremos conduzidos a partir dessa nova abordagem
fenomenológica sobre a vida em sua radicalidade. A
fenomenologia de Levinas, analisada desde sua rica influência
husserliana, desafia-nos a aprofundar cada vez mais nossa
investigação, não deixando de lado ou esquecendo a vida que
atravessa, que perpassa a nossa existência.
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SOKOLOWSKI, R. Introdução à Fenomenologia. São Paulo:
Loyola, 2004.
107
ACERCA DO TEMPO: HISTÓRIA, METAFÍSICA E
VIRTUALIDADE
Giovane Martins Vaz dos Santos1
Tiago Porto Pereira2
Introdução
O conceito de tempo é definido na filosofia,
inicialmente, como a ordem mensurável do movimento. Essa
conceitualização esteve presente na Antiguidade e no Medievo
e não era de difícil aceitação, já que o movimento, as relações
de causa e efeito e o deslocamento no espaço não sofriam
grandes problematizações. A maior questão em relação ao
tempo estava ligada à oposição entre o mundo terreno e o
mundo divino ou inteligível, sendo a temporalidade
exclusivamente terrena e responsável pela mensuração dos
objetos físicos. Porém, a criação de novos meios de transporte
e comunicação, as descobertas sobre as mudanças ocorridas em
ciclos temporais e a existência de espaços sem objetos físicos
criaram novos problemas que apontaram para a necessidade de
novas reflexões sobre o conceito. Com o advento do
ciberespaço, a virtualização do espaço e do tempo trazem
novos problemas para a filosofia e as ciências sociais,
1 Acadêmico de Filosofia da PUCRS, bolsista de iniciação científica pelo
CNPq. E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Filosofia pela PUCRS, bolsista pelo CNPq. E-mail:
Acerca do tempo
108
modificando as relações de causa e efeito e o modo como
percebemos a passagem do tempo. A seguir, faremos a
exposição da concepção de tempo em Newton e em Leibniz.
Posteriormente, trataremos da questão da existência do tempo,
analisando os argumentos de J.M.E. McTaggart. Por fim,
trataremos do tempo virtual, analisado pelo sociólogo Manuel
Castells.
1. Newton e a tese do espaço e do tempo absolutos
Na sua obra intitulada Principia Mathematica, Newton
defende a existência do tempo e do espaço absolutos. Sobre o
tempo absoluto, Newton utiliza a distinção da astronomia entre
o tempo relativo e o tempo absoluto: a equação do tempo era
utilizada para corrigir diferenças que surgiam na passagem do
dia solar, o padrão de contagem de tempo da época. Durante
um ano, por exemplo, a duração de um dia solar pode variar em
até vinte minutos. A visão de uma taxa de rotação constante da
Terra, representada pelo sistema ptolemaico e pela cosmologia
aristotélica, foi superada pelo matemático e astrólogo alemão
Johannes Kepler (1571-1630), que afirmou que a rotação da
Terra pode ocorrer com maior velocidade quando o planeta
está mais próximo do Sol.
A necessidade de uma equação do tempo, para Newton,
se sustenta no fato de que nenhum movimento é uniforme.
Todo movimento é subjetivo, sofrendo alterações de forças que
o aceleram ou retardam. O tempo absoluto, por sua vez, não é
nada mais do que a duração da existência das coisas, não
sofrendo, portanto, a influência de qualquer força externa. Nas
palavras do cientista:
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui
sempre igual por si mesmo e por sua natureza,
Giovane Santos e Tiago Pereira
109
sem relação com nenhuma coisa externa,
chamando-se com outro nome “duração”; o
tempo relativo, aparente e vulgar é certa medida
sensível e externa de duração por meio do
movimento (seja exata, seja desigual), a qual
vulgarmente se usa em vez do tempo
verdadeiro, como são a hora, o dia, o mês, o
ano. (NEWTON, 1996, p. 24)
Assim como o tempo, o espaço também poderia ser
definido como sendo relativo e absoluto:
O espaço absoluto, por sua natureza, sem
nenhuma relação com algo externo, permanece
sempre semelhante e imóvel; o relativo é certa
medida ou dimensão móvel desse espaço, a
qual nossos sentidos definem por sua situação
relativamente aos corpos, e que a plebe
emprega em vez do espaço, como é a dimensão
do espaço subterrâneo, aéreo ou celeste
definida por sua situação relativamente à terra.
Na figura e na grandeza, o tempo absoluto e o
relativo são a mesma coisa, mas não
permanecem sempre numericamente o mesmo.
(NEWTON, 1996, p. 24-25)
Em outras palavras, quando apontamos uma dimensão
do espaço, estamos falando do espaço relativo, que é parte do
espaço absoluto. O espaço absoluto, que “ permanece sempre
semelhante e imóvel”, não pode ser referido a partir de um
observador ou a partir de outros objetos. Para Newton, o
espaço e o tempo absolutos são “atributos de Deus”, sendo o
espaço infinito o atributo da Imensidade de Deus e o tempo
infinito o atributo da Eternidade divina. Leibniz, por meio de
correspondências com Clarke, se opôs às afirmações de
Newton sobre o espaço e o tempo absolutos.
Leibniz (2000) se opõe, inicialmente, à afirmação de
Newton de que o espaço e o tempo absolutos são “atributos de
Acerca do tempo
110
Deus”. Leibniz expõe em três argumentos principais os
motivos que tornam a tese de Newton insustentável: a) se o
espaço absoluto é uma propriedade de Deus, então o espaço faz
parte da essência divina. Ora, segundo Newton, o espaço tem
partes. Logo, a essência de Deus também tem partes; b) se o
tempo é identificado como a imensidão divina, então os objetos
que estão no tempo também fazem parte da essência de Deus;
c) seguindo o Princípio da Razão Suficiente e considerando a
hipótese da existência de um espaço e de um tempo absolutos,
não é possível encontrar uma razão para que Deus coloque as
coisas em um lugar do espaço e não em outro, assim como não
há razão para criar o mundo em um tempo e não em outro, já
que o espaço e o tempo absolutos são uniformes e imutáveis.
Após rejeitar a existência do espaço e do tempo
absolutos de Newton, Leibniz formula sua própria teoria acerca
dos dois temas. Para o filósofo, o espaço e o tempo são
constituídos por relações, onde a) o tempo é um conjunto de
acontecimentos temporais; e b) se observarmos todos os
instantes do mundo em um único instante de tempo,
perceberemos a existência das relações espaciais entre todos os
objetos.
Todos os acontecimentos mantém uma relação temporal
com todos os outros acontecimentos. Um acontecimento pode
ocorrer antes, simultaneamente ou depois de outro
acontecimento. Assim, o tempo não pode existir em si mesmo,
mas somente nas relações temporais. Neste sentido, Leibniz
não encontra grandes problemas para justificar sua tese. Sobre
o espaço, no entanto, o filósofo é confrontado com a seguinte
objeção: em um determinado instante de tempo, podemos notar
a existência de um espaço vazio entre dois ou mais objetos, de
modo que estes fiquem isolados e não exista qualquer relação
espacial entre eles. A saída que Leibniz encontra está nas
relações possíveis: o espaço não é apenas um conjunto de
relações efetivas, mas também um conjunto de relações
Giovane Santos e Tiago Pereira
111
possíveis que não existem mas poderiam existir. Deste modo, o
espaço vazio que há na nossa galáxia, por exemplo, pode ser
imaginado como um conjunto de relações possíveis entre
objetos. Após analisarmos a questão do tempo e do espaço
absoluto em Newton e Leibniz, discutiremos o tema do tempo
na filosofia contemporânea, onde o filósofo McTaggart trouxe
importantes contribuições.
2. McTaggart e a irrealidade do tempo
O filósofo inglês J.M.E. McTaggart (1866-1925)
estudou e lecionou durante grande parte de sua vida no Trinity
College, em Cambridge, tendo sido membro fundador da
escola do idealismo britânico. Seu campo de estudos era
principalmente metafísica, ficando conhecido pelos seus
argumentos contra a realidade do tempo e sobre a definição de
duas séries temporais: A e B, conforme dissertaremos abaixo
em linhas gerais.
Para começar a nossa exposição da teoria do filósofo
inglês, consideremos duas posições acerca da posição no
tempo, da forma com que ele se apresenta a nós diretamente:
de um lado, cada posição é presente, passado e futuro, não
deixando espaço para distinções; de outro, temos um evento
que é anterior a outro e posterior a um terceiro, havendo
distinções permanentes. Quanto a essas duas considerações,
McTaggart nomeia a primeira de série A e a segunda de série
B. Qualquer evento pode pertencer a uma ou outra série, ainda
que haja diferenças substantivas entre elas. Analisando mais
profundamente, podemos afirmar que para a série A os eventos
mudam constantemente de lugar, ou seja, existe um movimento
dinâmico entre eles. Por outro lado, a posição dos eventos na
série B não muda (GARRET, 2008, p. 81), havendo apenas
uma passagem de um status (ou marcação temporal) a outro:
Acerca do tempo
112
um evento futuro torna-se presente e, logo, se tornará passado.
Sendo assim, se um acidente automobilístico ocorreu ontem à
noite na minha rua, sempre foi e sempre será verdadeiro que
ocorreu de fato ontem à noite.
Feita essa breve introdução às séries do tempo,
gostaríamos de abordar a polêmica tese do filósofo. Ainda que
estabeleça essa diferenciação entre as duas séries temporais,
McTaggart argumenta no relevante artigo intitulado The
unreality of time (1908) que a existência do tempo é uma
ficção, ou seja, o tempo é irreal.
Parece altamente paradoxal afirmar que o
tempo é irreal e que todas declarações que
envolvem sua realidade são errôneos. Tais
afirmações envolvem uma saída da posição
natural da humanidade que é muito maior do
que o envolvido na declaração da irrealidade do
espaço ou a irrealidade da matéria. Para cada
experiência do homem há uma parte – seus
próprios estados conhecidos por ele por
introspecção – que nem mesmo parecem ser
espaciais ou materiais. Mas nós não temos
experiência que não pareça temporal. Mesmo
nossos julgamentos que o tempo é irreal
aparecem eles mesmos no tempo.3
(McTAGGART, 1993, p. 23)
3 Tradução nossa para a passagem: “It seems highly paradoxical to assert
that time is unreal, and that all statements which involve its reality are
erroneous. Such an assertion involves a departure from the natural position
of mankind which is far greater than that involved in the assertion of the
unreality of space or the unreality of matter. For in each man's experience
there is a part – his own states as known to him by introspection – which
does not even appear to be spatial or material. But we have no experience
which does not appear to be temporal. Even our judgements that time is
unreal appear to be themselves in time”.
Giovane Santos e Tiago Pereira
113
Metodologicamente, antes de lidar com a tese central
do seu artigo, o filósofo questiona qual série é fundamental
para a realidade do tempo, A ou B, realizando uma análise dos
dois conceitos. Procedendo dessa forma, McTaggart conclui
que se tempo implica mudança, a série A pode prevalecer,
considerando que as mudanças devem mudar suas relações
com o tempo, assim como suas qualidades relacionais: a queda
de um castelo de areia na Inglaterra muda a natureza das
pirâmides do Egito (exemplo de McT). Se analisarmos a
hipótese pelo outro lado, a que a série B constitui o tempo
independente da série A, as mudanças precisam ser possíveis
fora desta. Se supormos que as distinções de passado, presente
e futuro não se aplicam à realidade, como que a mudança se
aplicaria a ela?
A série B do tempo não permite mudanças, visto que
um evento N sempre se situará após um evento M e antes de
um evento O. Independente de como seja analisado, as
posições são fixas: tomemos, por exemplo, a Copa do Mundo
de Futebol ocorrida em 2014 aqui no Brasil; sabemos que ela
ocorreu após a Copa de 2010 e que antecede o evento de 2018.
Nada poderá mudar esse fato. Para que houvesse uma mudança
nessa série, um evento M deveria deixar de ser M
gradualmente para se tornar N, ou seja, haveria um devir de M
para N. Contudo, tal coisa é impossível para a série B do
tempo, pois ela é dependente de relações permanentes entre
eventos, não deixando espaço para estes deixarem de existir
como eventos ou se transformarem em algo diferente.
Para o filósofo, o que caracteriza a mudança somente
pode ser encontrado quando investigamos a série A do tempo.
Segundo sua teoria, se tomarmos um evento como referencial –
retornemos ao nosso exemplo anterior, o da Copa do Mundo de
2014 – em uma perspectiva anterior – digamos em 2008 –, esse
evento estaria em um futuro ainda distante; conforme
avançamos, esse futuro se aproxima gradualmente até se tornar
Acerca do tempo
114
nosso presente e, em seguida, fazer parte do nosso passado.
Essas características são as únicas que aceitam mudança,
estando elas presentes somente na série A. Portanto, se não
houver a série A, não existe mudança real. Se isso é correto,
então a série B sozinha não é suficiente para constituir o tempo,
uma vez que tempo envolve mudança e esta só consegue existir
como temporalidade, como anterior ou posterior, onde essas
relações que conectam tais eventos são relações de tempo. A
conclusão que McTaggart chega é de que a série B depende da
série A para existir, pois sem esta não existe tempo, logo não
há a possibilidade daquela existir. Sendo assim, a série A é
mais fundamental que a B para o tempo.
Estabelecidas as diferenciações entre os tipos de séries
referentes ao tempo e com a conclusão de que a série A é mais
fundamental para o tempo, o filósofo retorna para a sua tese
central do artigo, a de que o tempo é irreal. Partindo da
refutação da série que há pouco parecia defender, chegamos ao
que ficou conhecido como o Paradoxo de McTaggart. Para
compreendermos essa teoria, consideremos as seguintes
asserções:
a) Todo evento é passado, presente e futuro.
b) Nenhum evento pode ser passado, presente e futuro.
Logo:
c) A série A do tempo é contraditória.
Explicando as posições, na premissa a) é exposto que
todos eventos carregam em si as três posições: um dia foi
futuro, agora é presente e logo será passado; na premissa b),
McTaggart assume que essas três posições são incompatíveis,
não podendo estar presentes ao mesmo tempo; logo, a
conclusão c) afirma a contradição dentro da série A do tempo,
visto que nada pode possuir características contraditórias sob o
ponto de vista lógico.
De acordo com suas observações, cada evento deve
ocupar uma posição por vez, não as três ao mesmo tempo. Isso
Giovane Santos e Tiago Pereira
115
significa que quando dizemos que um evento é passado,
afirmamos que ele não está mais presente e que ele não
ocorrerá em seguida. Essa característica exclusiva é um ponto
essencial para a mudança e, portanto, para o tempo. Sendo
assim, as únicas mudanças que podemos ter é do futuro para o
presente e do presente para o passado (McTAGGART, 1993, p.
32). Contudo, se aceitarmos que essas características são
incompatíveis somente enquanto simultâneas, ou seja, que não
há contradição quando elas se apresentam sucessivamente,
teremos um sentido em que a premissa a) é verdadeira, mas b)
é falsa; um sentido em que b) é verdadeira e a) é falsa; logo, o
argumento a-c é inválido, pois possui premissas conflitantes.
A saída oferecida por McTaggart dessa objeção é
evitarmos a acusação de contradição nas três posições –
passado, presente e futuro – da série A, recorrendo a três
posições secundárias: N é presente, foi futuro e será passado. O
problema é que agora existem nove posições nessa série
secundária! Além disso, todo evento ocupa cada uma dessas
posições da série A. Como resolver esse problema? Segundo o
filósofo, podemos recorrer à distinções de flexões verbo-
temporais mais complexas, passando assim para um terceiro
nível. Contudo, ainda teremos posições que conflitarão entre si,
sendo necessário passar para um quarto nível. Sendo assim,
sempre podemos avançar um nível para escapar de
contradições; contudo, em cada novo nível que se escalona o
discurso, as contradições persistem (McTAGGART, 1993, p.
32-3; GARRET, 2008, p. 86). Dessa forma, conforme assinala
Garrett (2008), “a 'resposta óbvia' [de McTaggart], afinal de
contas, não é assim tão óbvia” (GARRET, 2008, p. 86).
A conclusão do filósofo inglês é que a realidade da
série A do tempo é contraditória, logo deve ser descartada,
assim como mudança e tempo, visto que estas necessitam desta
série. Além disso, a série B também deve ser rejeitada, pois ela
depende do tempo, estando, assim, atrelada à série A. A
Acerca do tempo
116
polêmica conclusão defendida por McTaggart é a de que nada
muda nem está no tempo: o que existe é a nossa percepção
presente das coisas, que as captura mais ou menos como elas
não são, ou seja, nossa percepção se apoia em uma ilusão das
coisas mesmas.
A realidade da série A, então, leva a uma
contradição e deve ser rejeitada. E, desde que
nós temos visto que mudança e tempo requerem
a série A, a realidade da mudança e tempo deve
ser rejeitada. E também a realidade da série B,
uma vez que ela requer o tempo. Nada é
realmente presente, passado ou futuro. Nada é
realmente anterior ou posterior do que outra
coisa ou temporariamente simultânea. Nada
realmente muda. E nada está realmente no
tempo. Sempre que nós percebemos algo no
tempo – que é a única maneira na qual, em
nossa experiência presente, nós percebemos as
coisas – nós o estamos percebendo mais ou
menos como ele não é na realidade.4
(McTAGGART, 1993, p. 34)
3. Sociedade em rede: intemporalidade e simultaneidade
Apesar das observações filosóficas de J.M.E.
McTaggart e outros teóricos, tempo e espaço são conceitos que
comumente se encontram relacionados, tanto na natureza
4 Tradução nossa para a passagem: “The reality of the A series, then, leads
to a contradiction, and must be rejected. And, since we have seen that
change and time require the A series, the reality of change and time must be
rejected. And so must the reality of the B series, since that requires time.
Nothing is really present, past, or future. Nothing is really earlier or later
than anything else or temporally simultaneous with it. Nothing really
changes. And nothing is really in time. Whenever we perceive anything in
time – which is the only way in which, in our present experience, we do
perceive things – we are perceiving it more or less as it really is not.”
Giovane Santos e Tiago Pereira
117
quanto na sociedade. O espaço, na teoria social, representa um
suporte material para o compartilhamento do tempo nas ações
sociais, ou seja, implica a construção da simultaneidade. Para
acadêmicos como Manuel Castells, o desenvolvimento de
tecnologias de comunicação podem ser entendidas como um
processo de descolamento gradual da contiguidade
proporcionada pelo espaço e o compartilhamento do tempo,
sendo o espaço de fluxos uma oportunidade organizacional e
tecnológica de se praticar a simultaneidade sem necessitar da
contiguidade (CASTELLS, 2009, p. 34). Esses avanços
tecnológicos se refletem na nossa sociedade ao passo que
influenciam diversas instituições, passando do mercado
financeiro até o mundo do trabalho. Na presente seção do
nosso trabalho, buscamos expor como se dá a construção desse
“novo” tempo, constituído na sociedade em rede5.
Presente na sociedade em rede, temos uma virtualização
do tempo conferida por um sistema multimídia eletronicamente
integrado proporcionado pela Internet. Dessa forma, Castells
(1999) assinala que dentro dessa configuração o tempo
transformou-se de duas formas, reportando-se à simultaneidade
e à intemporalidade. O fluxo contínuo e instantâneo de
informações em escala global em conjunção com a cobertura
em tempo real de acontecimentos locais tornam a
instantaneidade temporal de eventos socioculturais uma
realidade. Uma vez que o acesso a esses acontecimentos é
dinâmico, todos indivíduos podem participar das construções
históricas em movimento. Além disso, a comunicação mediada
por computadores (CMC) nos oferece a possibilidade de
manter conversações em tempo real com as mais diversas
pessoas, independente de sua localização geográfica, o que nos
5 Termo cunhado por Manuel Castells que representa a atual configuração
social permeada pelos usos de dispositivos multimídia conectados à
Internet, constituindo uma rede orgânica entre pessoas e corporações.
Acerca do tempo
118
proporciona a possibilidade de discussões multilaterais, sendo
isso possível de forma escrita ou a partir de videoconferências.
Castells (1999) ressalta que “a intemporalidade do
hipertexto de multimídia é uma característica decisiva de nossa
cultura, modelando a memória das crianças educadas no novo
contexto cultural” (CASTELLS, 1999, p. 486-7). Tal fenômeno
é constatado ao observarmos as novas gerações e a sua
facilidade com que crianças e jovens se adaptam aos usos de
ferramentas multimídias eletrônicas nos usos cotidianos, seja
com finalidades recreativas ou educacionais. Respondendo a
finalidades específicas, na Internet a temporalidade das
informações são ordenadas de forma que o resultado final seja
um tempo não-sequencial que representa, de certa forma, uma
totalidade da produção cultural à disposição humana. O
sociólogo põe em contraste essa ordenação com a que outrora
era utilizada pelas enciclopédias: esta catalogava uma série de
conhecimentos humanos a partir de uma ordem alfabética,
enquanto aquela oferece as informações conforme os impulsos
do agente ou decisões previamente estabelecidas pelos
produtores do conteúdo. Sendo assim, Castells (1999) observa
que “[…] toda a ordenação dos eventos significativos perde seu
ritmo cronológico interno e fica organizada em sequências
temporais condicionadas ao contexto social de sua utilização.
Portanto, é simultaneamente uma cultura do eterno e do
efêmero” ( CASTELLS, 1999, p. 487. Grifo do autor). A
eternidade se dá pois abrange passado e futuro das expressões
culturais, enquanto sua efemeridade resulta da dependência
sofrida pela sua organização aos contextos e objetivos das
construções culturais solicitadas.
Na sociedade em rede, a ênfase no
sequenciamento é reversa. A relação ao tempo é
definida pelo uso de tecnologias de informação
e comunicação em um implacável esforço de
aniquilar o tempo ao negar a sequência: de um
Giovane Santos e Tiago Pereira
119
lado, por comprimir o tempo (como em
transações financeiras globais ocorridas em
frações de segundos ou a prática de multitarefas
generalizadas, comprimindo mais atividades em
um tempo estabelecido); por outro lado, por
obscurecer o sequenciamento de práticas
sociais, incluindo passado, presente e futuro em
uma ordem randômica, como no hipertexto da
Web 2.0 ou obscurecimento de padrões do ciclo
da vida, tanto no trabalho quanto na
paternidade.6 (CASTELLS, 2009, p. 35)
Para o sociólogo espanhol, a teoria de Leibniz acerca do
tempo é valiosa. Segundo ela, simpliciter, o tempo é a ordem
de sucessões de coisas: não havendo as coisas, não haveria o
tempo. De acordo com sua argumentação, nossos
conhecimentos científicos atuais não conflitam com essa
conceitualização leibniziana, sendo ela uma forma de melhor
compreendermos as mudanças atuais da temporalidade. Isto
posto, Castells sustenta que seu conceito de tempo intemporal –
isto é, a temporalidade atual – “ocorre quando as características
de um dado contexto, ou seja, o paradigma informacional e a
sociedade em rede, causam confusão sistêmica na ordem
sequencial dos fenômenos sucedidos naquele contexto”
(CASTELLS, 1999, p. 489). Entende-se disso que a
intemporalidade é uma anomalia causada por um evento na
linha de tempo em que está inserida. A confusão que ocorre,
nesse caso, pode ser representada como uma compressão dos
6 Tradução nossa para a passagem: “In the network society, the emphasis
on sequencing is reversed. The relationship to time is defined by the use of
information and communication technologies in a relentless effort to
annihilate time by negating sequencing: on one hand, by compressing time
(as in split-second global financial transactions or the generalized practice
of multitasking, squeezing more activity into a given time); on the other
hand, by blurring the sequence of social practices, including past, present,
and future in a random order, like in the electronic hypertext of Web 2.0, or
the blurring of life-cycle patterns in both work and parenting.”
Acerca do tempo
120
fenômenos, com vistas à instantaneidade, ou na forma de
descontinuidade randômica dentro dessa cadeia de eventos.
Como exemplos empíricos desse tempo intemporal abstrato,
Castells ressalta as transações financeiras das bolsas de valores
realizadas em frações de segundos, empresas que utilizam
jornadas de trabalho flexíveis, indeterminação do ciclo de vida,
guerras instantâneas, tempo variável de serviço, entre outros.
Todos esses fenômenos misturam sistemicamente a ocorrência
de distintos tempos (CASTELLS, 1999, p. 489).
Ponto importante a ser ressaltado é que o tempo
intemporal pertence ao espaço de fluxos, enquanto o tempo
biológico, a disciplina tempo e a sequencialidade posta
socialmente oferecem os lugares onde se aplicam, ao passo que
estruturam ou desestruturam a segmentação das sociedades.
Seguro dessa argumentação, o sociólogo afirma que na nossa
sociedade o espaço modela o tempo, realizando a inversão de
um modelo histórico: “fluxos induzem tempo intemporal,
lugares estão presos ao tempo” (CASTELLS, 1999, p. 490).
Toda a ideia de progresso que fundamenta a nossa sociedade há
dois séculos baseia-se nos movimentos da história norteada
pela razão e fazendo vistas a um impulso de forças produtivas,
passando ao largo de restrições sociais e culturas vinculadas ao
espaço. Dessa forma, o domínio do tempo e o controle do ritmo
dominaram superfícies e, com o avanço da crescente
industrialização, transformaram o espaço a partir do processo
de constituição do estatismo e do capitalismo.
Ainda que a análise de Castells abarque várias amostras
empíricas de temporalidades, a experiência humana não se
reduz apenas a estas, visto que a construção do tempo e do
espaço são diferenciados socialmente. A multiplicidade
espacial de lugares desconectados uns dos outros apontam para
diversas temporalidades, desde o tempo biológico ao tempo
Giovane Santos e Tiago Pereira
121
disciplinar imposto pelo relógio7. Algumas funções e
indivíduos conseguem transcender a esse tempo multifacetado,
enquanto outros simplesmente se resignam e seguem a sua vida
da maneira que conseguem. Contudo, Castells observa que
existe lugar para a contradição nesse sistema, encarnado em
movimentos sociais que buscam substituir esse modelo
predominante da sociedade em rede. Dessa forma, em vez de
simplesmente aceitarem a configuração dada tais como uma
máquina aceita sua programação passivamente, grupos
ambientais propõem viver a vida na sua totalidade, a partir de
uma perspectiva cosmológica. Esses grupos tendem a
considerar nossas vidas como parte de um processo evolutivo
da espécie, em conexão direta com um sentimento de
responsabilidade para com as gerações futuras (CASTELLS,
2009, p. 35).
Considerações finais
Os conceitos de tempo analisados no nosso trabalho não
sofrem sua extinção ao longo do tempo, ou seja, não são
eliminados e substituídos por um novo conceito mais atual que
passa a predominar por um novo período de tempo. As análises
de Newton e Leibniz no século XVII, McTaggart no século XX
e Castells atualmente, acerca do tempo, ainda fazem sentido
em diferentes setores sociais e espaciais da sociedade
contemporânea. O cálculo criado por Newton para a medida do
tempo por meio do movimento é pré-requisito fundamental em
qualquer currículo escolar. A definição de Leibniz de que o
tempo é um conjunto de relações temporais ainda encontra
fundamentação no mundo atual, repercutindo na tese defendida
7 Nos seus livros publicados em 1999 e 2009, Castells explora mais a fundo
esses e outros tipos paralelos de tempo, o que não faremos neste trabalho
devido a sua extensão.
Acerca do tempo
122
por Castells. No entanto, essa definição não é mais
predominante: em uma sociedade em rede, o acesso aos
eventos ocorridos no mundo inteiro e aos objetos virtuais pode
ser instantâneo, problematizando a relação temporal entre
eventos de Leibniz, e dando base para a tese de Castells sobre o
tempo intemporal.
Referências bibliográficas
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Leibniz and Clarke. 2007. Disponível em:
<http://www.earlymoderntexts.com/pdfs/leibniz1715_1.pdf>.
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Oxford University Press, 2009.
GARRETT, Brian. Metafísica: conceitos-chave em Filosofia.
Porto Alegre: Artmed, 2008.
LEIBNIZ. Novos ensaios sobre o entendimento humano.
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McTAGGART, John. “The unreality of time”. In: Le
POIDEVIN, Robin (ed.); MACBEATH, Murray (ed.). The
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NEWTON. Princípios matemáticos. Coleção Os Pensadores .
São Paulo: Nova Cultural, 2000.
Giovane Santos e Tiago Pereira
123
RYNASIEWICZ, Robert. Newton's Views on Space, Time,
and Motion., The Stanford Encyclopedia of Philosophy. 2014.
Disponível em:
<http://plato.stanford.edu/archives/sum2014/entries/newton-
stm/>. Acesso em 22 nov. 2014.
125
CONSCIÊNCIA E INTENCIONALIDADE: SARTRE E A
FENOMENOLOGIA
Kátia Marian Correa1
Num denso e conciso estudo (Uma idéia fundamental
da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade na obra
Situações I – críticas literária)2, Sartre propôs uma leitura
ousada das teses nucleares da fenomenologia husserliana e,
principalmente, sobre o conceito de intencionalidade. Isso se
explica por ser a concepção de intencionalidade muito cara à
tradição fenomenológica, sendo inclusive retomada por muitos
filósofos, entre eles, o próprio Sartre. Em sua obra magna O ser
e o nada: ensaio de Ontologia Fenomenológica Sartre teve a
preocupação de explicitar os elementos de sua filosofia
existencial em perspectiva fenomenológica, mas há outras
obras que poderiam ser citadas, aqui, tais como O imaginário,
Esboço para uma teoria das emoções, A transcendência do
Ego, etc.
Nossa proposta é examinar o referido estudo sobre a
intencionalidade. Sartre parte de teses de filósofos
contemporâneos seus (idealistas e realistas), dizendo que
1 Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]
2 Trata-se de uma pequena consideração de Sartre à respeito da
intencionalidade de Husserl. A mesma foi originalmente publicada em La
Nouvelle Reveu Française, n. 304, janeiro de 1939, pp-129-31 [N.T].
Posteriormente o texto foi adicionado à obra Situações I – Críticas
Literárias, compondo um dos volumes das Situations, ensaios políticos e
literários escritos entre os anos 1947 e 1965.
Consciência e intencionalidade
126
predomina entre eles um conceito assimilador de
conhecimento. Objetos tais como uma mesa, um rochedo e
uma casa são, numa perspectiva epistemológica estrita,
realidades que deverão perder sua alteridade para entrar no
domínio do sujeito. Eles se tornarão conteúdos da consciência.
O conhecer seria, assim, assimilação, unificação e, finalmente,
identificação. Tudo, em certo sentido, se torna uma realidade
mental. Não há, por assim dizer, um contato direto e autêntico
da consciência com o mundo, mas sim redução de tudo o que é
exterior ao domínio da mente devoradora. Eis, para Sartre, o
modelo teórico que será posto em causa pela originalidade da
noção husserliana de consciência. Como se dá este
questionamento?
A consciência em sentido fenomenológico não absorve
o mundo exterior fazendo dele algo imanente. Por quê? Porque,
em fenomenologia, a consciência é doadora de sentido.
Relacionamo-nos às coisas por que estas aparecem a nós, se
mostram como dotadas de interesse, de repulsa, de indiferença,
etc.
Ora, a palavra relação é esclarecedora, pois a
consciência humana está essencialmente voltada a objetos. A
intencionalidade é uma saída para o mundo, ou ainda: é um
estar junto a objetos, antes de estar em si mesma. O que se
percebe empiricamente não é uma informação que possa
prescindir das significações intencionais que somente a
consciência poderia trazer. Vale, no entanto, ressaltar que não
se trata de um dualismo consciência-mundo, uma vez que, ao
intencionar algo, a consciência não está apenas representando
subjetivamente este algo, e sim, encontrando um “objeto” tal
como este fora visado por ela. Dizer consciência é dizer relação
intencional a objetos, mas, para Sartre, este direcionamento
implica mais do que relação teórica, pois para ele nós somos no
mundo, existimos em meio às coisas e aos outros e, sendo
assim, a própria consciência é presença no mundo.
Kátia Marian Correa
127
Perguntamos, agora: o que entender por fenômeno?
Para Sartre trata-se de algo que pode ser explicado do seguinte
modo. “O que o fenômeno é, é absolutamente, pois se revela
como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é
absolutamente indicativo de si mesmo” (Sartre, 2011, p. 16).
Sartre afirma, retomando Husserl, que não se podem dissolver
as coisas na consciência. O conhecimento não é o ato pelo qual
as coisas se tornam conteúdos mentais. Em certo sentido, é a
consciência que já está sempre fora de si mesma, ou seja, é
sempre orientação intencional a algo de outro. Eis por que a
consciência não pode ser naturalizada, vale dizer, não se
enquadra numa perspectiva filosófica que faz da natureza física
a realidade em sentido forte, transformando todo fato psíquico
num fenômeno derivado dos acontecimentos causais do mundo
físico. Ora, em fenomenologia, mundo e consciência não são
realidades separadas. Dizer que a consciência é
intencionalidade é propor que, mesmo que sejamos seres da
natureza, tudo o que é significativo depende de uma atividade
constituinte da própria consciência, inclusive as teses que
filósofos e cientistas sustentam em relação ao mundo empírico
e factual. O mundo exterior, que faz de nós corpos reais
existentes como tantos outros, não pode desmentir a atividade
intencional que permite pensá-lo como “coisa material”, “ser
real”, “fatos”, “objetos culturais”, etc. Todos esses termos
dependem, por essência e necessidade, da atividade
constituinte da consciência. Husserl toma a consciência como
fato irredutível, isto é, que não pode ser reduzido a nenhuma
realidade objetiva, uma vez que ela é, antes de tudo, um fluxo
de vivências intencionais.
A consciência, mesmo sendo um acontecer psicológico
ou empírico-real, pode ser vista como consciência pura, isto é,
como uma vida espiritual que não cessa de doar sentido, isto é,
de encontrar o mundo sob a forma de atos de percepção, de
intelecção, de valoração, de realizações práticas, etc. Dessa
Consciência e intencionalidade
128
maneira, pode-se afirmar que a consciência sai de si mesma,
“explode para o mundo”, para dizer segundo os próprios
termos de Sartre. Tal interpretação da fenomenologia mostra
que não há, na consciência, um interior, como se ela fosse um
recipiente contendo pacotes de ideias e representações. Nas
palavras de Sartre: “ela (a consciência) não é nada senão o
exterior de si mesma, e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser
substância, que a constitui como uma consciência.” (2005, p.
56). Eis a luta incessante da consciência para não se tornar um
em-si, ou seja, uma substância, uma coisa.
Retomemos Husserl. Uma vez que a consciência possui
correlatos intencionais, então não fica difícil perceber por que
ela abarca todos os vividos. Esta possibilidade, para Husserl,
remete ao trabalho de um Ego, de um Eu puro ou
transcendental. “Dessa maneira, a consciência possui em si
mesma um ser que é seu, que não é alcançado em sua essência
mesma absoluta pela eliminação fenomenológica.”
(HUSSERL, 2006, p. 83-84). É mediante a ciência
fenomenológica que se podem estudar e aprofundar-se as
questões relativas às estruturas e peculiaridades da consciência.
Não seria, então, forçar as coisas dizendo que, em sentido
fenomenológico, a consciência é abertura ao mundo? Husserl
não é um idealista que fez da intencionalidade um viver
subjetivo que faz do mundo uma construção dominada
egologicamente?
Eis, para nós, a importância da interpretação sartreana
de Husserl. Mesmo discordando do pai da fenomenologia sob
muitos aspectos (a importância que o Ego tem para Husserl é
um deles), Sartre nos diz que, pela intencionalidade, já é
possível notar uma preocupação com as questões que
perpassam a mundaneidade, e é exatamente isso que pode
posteriormente explicitar ou pelo menos descrever elementos
fundamentais da existência humana. Aqui, vale mencionar o
influxo da filosofia de Heidegger sobre as análises sartreanas
Kátia Marian Correa
129
do existir humano, lembrando que, para o autor de Ser e
Tempo, importa principalmente buscar incessantemente
explicitar o sentido do ser, tomando-se como ponto de partida
um ente que se convencionou chamar de ser-aí (Dasein), que
não é senão o próprio existente humano que se encontra aí,
lançado no mundo. No caso de Sartre, estar-no-mundo implica
a ideia de movimento. Em suas palavras: “Ser é explodir para
dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e de
consciência para subitamente explodir-como-consciência-no-
mundo.” (2005, p. 56-57).
A consciência tem necessidade de existir como
consciência de outra coisa que ela mesma (em termos
husserlianos isto se chama intencionalidade). Husserl e outros
fenomenólogos não tomam a consciência humana somente em
sua atividade teórica. O conhecimento é apenas uma entre
outras maneiras possíveis da consciência. Conforme Sartre, a
consciência pode ser descrita de múltiplos modos: consciência
que ama, que manifesta temor, que odeia, etc. sendo que, em
todas essas modalidades, o existente humano pode encontrar
algo do próprio mundo, ou ainda, pode compreender que o
mundo, graças à intencionalidade, se desvela a nós de modos
imprevisíveis e sempre mais ricos. O sentimento de ódio que
alguém nutre em relação a outrem, por exemplo, também é
uma maneira de explodir em direção ao mundo, de modo tal
que outrem lhe aparece ou se revela como sendo repugnante,
odioso, irritante, etc. Nas palavras de nosso autor: “Eis que
essas famosas reações “subjetivas” – ódio, amor, temor
simpatia – que boiavam na malcheirosa salmoura do Espírito
de repente se desvencilham dele: são apenas maneiras de
descobrir o mundo.” (2005, p. 57). Portanto, com essa citação
de Sartre, pode-se concluir que é o próprio mundo que,
instantaneamente, se desvenda para os homens tendo em vista
as várias modalidades intencionais (amor, ódio, juízo estético,
valor, etc.).
Consciência e intencionalidade
130
A interpretação de Sartre é aguda e ousada: “Husserl
reinstalou o horror e o encanto nas coisas.” (2005, p. 57). Por
quê? Porque mostrou que o que chamamos mundo não é outro
senão aquele que se revela a nós mediante os vários modos de
ser visado e vivenciado pela consciência. A ideia de uma “vida
interior” se esvai, uma vez que o movimento intencional faz de
nós, do início ao fim, realidades humanas imersas no mundo, e
é aí que podemos nos descobrir em nossa própria condição:
existentes que nunca são isto ou aquilo de modo fixo, acabado,
determinado. Somos, fundamentalmente, seres indeterminados,
livres, responsáveis por conferir ao existir um sentido que
ninguém poderá, de fora, nos trazer.
Ao resgatar as contribuições de Husserl e com isso da
tradição fenomenológica que antecede sua filosofia existencial,
Sartre não deixa de criticar a ideia husserliana de Ego (a
consciência de estar consciente). Por quê? Porque não é preciso
que o Para-si se lembre de que todos os movimentos que
realizou foram feitos por um “Eu”. Caso alguém pergunte: “o
que se está fazendo?” não é necessário responder remetendo ao
mesmo “Eu”. Sartre explica que, na consciência instantânea,
não é necessário à presença de um Ego transcendental. Basta
apenas um fluxo consciente da ação em processo, em
movimento. “A consciência é consciência de si, antes ou
depois da reflexão.” (Rodrigues, 2010, p. 27).
Expliquemos um pouco mais esta crítica. Sartre explica que a
consciência é de dois tipos: a refletida e a irrefletida. O
segundo tipo de consciência também é consciência de si, sendo
necessário para a reflexão, porque fornece a unificação de toda
a consciência, ou seja, conserva a “corrente” da consciência
consciente de si mesma. Aqui não se têm o intuito de discutir e
desenvolver as concepções de consciência refletida e
irrefletida, mas, sim salientar ao leitor que a consciência dita
irrefletida manifesta um cogito pré-reflexivo que é
Kátia Marian Correa
131
indispensável, sendo mesmo a condição de possibilidade para
que possamos falar de um cogito, em sentido cartesiano.
Mas vale ressaltar o seguinte: é graças ao cogito, em
sentido cartesiano, que se pode revelar uma vivência do tipo
irrefletida. É ele que, em última instância, pode ver que o Ser
da consciência se apresenta antes dele. Ora, esse ser da
consciência não pode reduzir-se a um saber teórico. Ele é
apenas a condição da consciência, uma manifestação
espontânea da mesma. Husserl já falava que a consciência não
é possível antes de ser (fato), isto é, de seu próprio viver, e
isso, na nossa perspectiva, explica por que Sartre insistiu sobre
a fórmula: no existencialismo, a existência precede a essência
(Sartre, 1987).
Concluamos com algumas ponderações críticas
presentes na obra O Ser e o Nada. Com Husserl, Sartre afirma
que a consciência possui um existir irredutível a toda
objetivação. Mas, por outro lado, afastar-se-á do pensamento
husserliano no que diz respeito ao ser do fenômeno. Para
Sartre, após ter escrito as Investigações lógicas, Husserl teria
assumido uma posição e uma orientação extremamente
idealista. Além do mais, Sartre entende que Husserl não evita
que se caia de novo no dualismo, a saber, aquele do finito e do
infinito.
É verdade que as reflexões de Sartre caminham para
uma espécie de “ontologização” do problema do conhecimento
com os recursos da fenomenologia husserliana, mas tal
fenomenologia não via uma possibilidade efetiva da
abordagem do problema do ser. O que se percebe é que ambos
os propósitos, a saber, de Husserl e Sartre são distintos, e isso
pode ser ilustrado pela seguinte passagem da obra Ideias I de
Husserl: “A passagem à subjetividade transcendental não
deseja conduzir-nos ao fundamento do mundo, mas sim ao
‘fundamento radical de todas as funções de conhecimento”
(1950, p. 37).
Consciência e intencionalidade
132
No que diz respeito a Sartre, pode-se dizer que ele
chega a um problema de ordem ontológica: o Ser do fenômeno.
Se for verdade que, para que exista uma consciência, é
necessário já existir de antemão um objeto a ser transcendido,
algo que é anterior a ela mesma, e da qual ela nasce, será
também verdade que o ser do fenômeno não depende da
consciência para existir. Por quê? Porque o ser do Ser do
fenômeno já está dado anteriormente de alguma maneira.
Assim, conclui-se que a própria consciência transforma-se em
“prova ontológica” da existência do Ser do fenômeno. O ser do
fenômeno deve ser algo transfenomenal, isto é, deve ser
irredutível às leis da aparição. Eis por que, com a ideia de
intencionalidade, chega-se não só ao problema teórico
enriquecido pelas análises rigorosas da consciência e de seus
objetos, mas também e, sobretudo, de uma discussão
ontológica da própria consciência no mundo como um Nada,
um movimento interminável de negação, de compromisso com
o mundo, de liberdade.
Referências bibliográficas
HUSSERL, Edmund, Ideias para uma fenomenologia pura e
para uma filosofia fenomenológica: introdução geral a
fenomenologia pura. Tradução Márcio Suzuki. Aparecida,
São Paulo: Ideias & Letras, 2006.
RODRIGUES, Malcom Guimarães, Consciência e má-fé no
jovem Sartre: a trajetória dos conceitos. São Paulo: ED.
UNESP, 2010.
SARTRE, Jean-Paul, Críticas Literárias (Situações I), São
Paulo: EDUSP, 2009.
Kátia Marian Correa
133
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A
imaginação; Questão de método. 3ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1987. (Os pensadores).
SARTRE, Jean-Paul, O ser e o nada – Ensaio de ontologia
fenomenológica. Tradução Paulo Perdigão, 20ed. Petrópolis:
Vozes, 2011.
135
PAUL FEYERABEND: DESFAZENDO MAL-
ENTENDIDOS
Leonardo Edi Ignácio1
Um dos pensadores mais polêmicos e que obteve muitas
críticas mal dirigidas e, na esmagadora maioria das vezes,
infundadas no território da filosofia da ciência foi, sem dúvida,
Paul Feyerabend. Austríaco e detentor de uma formação plural
que inclui Física, Matemática, Astronomia, Teatro e Produção
de Óperas, esse filósofo teve ampla repercussão dentro da
chamada “nova filosofia da ciência”, sendo frequentemente
caracterizado negativamente pelos “grandes metodologistas”.
Esta formação acadêmica plural, a nosso ver, inequivocamente
desempenhou um papel fundamental para a consagração do seu
mal-entendido e infame “vale-tudo” (anything goes) e que,
para alguns de seus críticos lhe rendeu à insígnia de “o pior
inimigo da ciência”. Algumas outras críticas a ele endereçadas
são muito pesadas, tal como a de que sua filosofia da ciência é
um conto de fadas, ou mesmo a mais corriqueira delas, a saber,
a que Feyerabend despreza a ciência. Pretende-se, nesse
trabalho, demonstrar que Feyerabend, ao contrário do que é
frequentemente exposto, oferece critérios para a atividade
científica, assim como seu anarquismo teórico não é irracional,
mais precisamente, que racionalidade prática/teórica e ciência
são coisas distintas, não se podendo incluir uma na outra.
Um dos livros que mais causou impacto na filosofia da
ciência depois da “Estrutura das Revoluções Científicas” de
Thomas Kuhn foi, indubitavelmente, “Contra o Método” de
1 Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:
Paul Feyerabend
136
Paul Feyerabend. Lançado em 1975, Feyerabend o escreveu
sob a influência de seu grande amigo Imre Lakatos ao qual
também dedicou essa obra que, segundo o nosso autor, era um
dos poucos que entendia sua filosofia. Neste livro, Feyerabend
tenta responder três questões fundamentais, a saber; O que é
ciência? O que há de tão formidável na ciência? Como
devemos usar a ciência, e quem decide a questão? Além destas
questões ele também defende a ideia de que “tudo-vale”, dito
de outro modo, isso caracterizaria o que o autor veio a
denominar mais tarde de anarquismo teórico, ou, dadaísmo
epistemológico, isto é, uma corrente pluralista que propõem
igualdade de condições tanto para a pesquisa especializada,
assim como para diletantes e, além destes, para campos que, na
visão dos “racionalistas2”, não são considerados ciência tais
como a magia, vodu, acupuntura, alquimia, além de outros.
Esta ideia que tudo-vale é tomada frequentemente como um
princípio de Feyerabend, o que é um erro, visto que, para
Feyerabend:
Tudo-Vale não é um ‘princípio’ que sustento —
não penso que princípios possam ser
proveitosamente usados e discutidos fora da
situação concreta da pesquisa que supostamente
afetam — mas é a exclamação aterrorizada de
um racionalista que examina a história mais de
perto (FEYERABEND, 2011a, p.08).
O leitor pouco familiarizado com Feyerabend pode ter
dificuldades para entendê-lo, uma vez que nosso autor não se
prende a uma única forma de método seja ele escrito ou não.
Dizemos isso, pois algumas páginas adiante Fayerabend afirma
o seguinte sobre o anarquismo teórico:
2 Racionalista aqui significa, antes de tudo, um crente no método da ciência.
Leonardo Edi Ignácio
137
Está claro, então, que a ideia de um método
fixo ou de uma teoria fixa da racionalidade
baseia-se em uma concepção demasiada
ingênua do homem e de suas circunstâncias
sociais. Para os que examinam o rico material
fornecido pela história e não têm a intenção de
empobrecê-lo a fim de agradar a seus baixos
instintos, a seu anseio por segurança intelectual
na forma de clareza, precisão, “objetividade” e
“verdade”, ficará claro que há apenas um
princípio que pode ser defendido em todas as
circunstâncias e em todos os estágios do
desenvolvimento humano. É o princípio de que
tudo vale3 (FEYERABEND, 2011a, p.42).
Embora possa parecer, para alguns autores, que
Feyerabend nada mais está fazendo do que atribuir um novo
conjunto de regras para a ciência, não é essa a pretensão do
filósofo aqui estudado, pois:
Essa impressão certamente seria errônea. Minha
intenção não é substituir um conjunto de regras
por um conjunto da mesma espécie. Minha
intenção, ao contrário, é convencer a leitora ou
leitor que todas as metodologias, até mesmo as
mais óbvias, têm seus limites4. A melhor
maneira de exibir isso é demonstrar os limites e
mesmo a irracionalidade de algumas regras que
ela ou ele tende a considerar básicas. No caso
da indução (inclusive a indução por
falseamento), isso significa demonstrar quão
bem o procedimento contraindutivo pode ser
apoiado por argumentação. Recorde-se, sempre,
que as demonstrações e a retórica empregada
não expressam nenhuma “convicção profunda”
de minha parte. Elas apenas mostram quão fácil
é fazer, de maneira racional, que alguém nos
3 O grifo é de Feyerabend.
4 O grifo é de Feyerabend.
Paul Feyerabend
138
siga cegamente. Um anarquista é como um
agente secreto da Razão de modo que solape a
autoridade da Razão (FEYERABEND, 2011a,
p.47).
Podemos perceber que Feyerabend tenta eliminar a
crença cega na Razão5 e isso não implica em dizer que o autor
menospreze a ciência. Na verdade, Feyerabend chega a afirmar
que a ciência está doente e que o anarquismo por ele defendido
vem de encontro à ciência como um remédio. Ora, todo e
qualquer remédio que tomamos, nós o fazemos por um
determinado tempo e é essa a intenção de Feyerabend, isto é,
libertar a ciência de dogmas infundados e mesmo prejudiciais à
própria atividade cientifica, os quais são resultantes da crença
cega no racionalismo. Não obstante, há outros autores que
sugerem que o anarquismo teórico de Feyerabend deve ser
entendido como um alargamento do falibilismo, ou seja:
O melhor ângulo para compreender o conjunto
da obra de Paul Feyerabend é considera-lo
como um alargamento do falibilismo. O que
Feyerabend procura, uma e outra vez, é mostrar
que não há nenhuma forma de garantir a
verdade nem a falsidade de uma teoria
científica, mesmo com recurso a experiência;
que é irrealizável o projeto de encontrar um
fundamento seguro para o conhecimento,
mesmo que o fundamento procurado seja
5 A palavra Razão sempre aparece em seus escritos do modo exposto acima.
Isto significa dizer que Feyerabend critica o dogmatismo presente na
ciência, ou seja, procura demonstrar que o método científico é apenas mais
um entre muitas metodologias diferentes e divergentes, e é um erro pensar
que é o único método verdadeiro. Essa comparação poderia ser
exemplificada através do papel que a Igreja desempenhou na Idade Média
quando ela arrogava ser a única religião verdadeira e o mesmo, para o nosso
autor, ocorreria com o cientista que postularia que sua metodologia é a
verdade absoluta e deve se sobrepor aos demais campos.
Leonardo Edi Ignácio
139
empírico; que não passa de uma ilusão a
pretensão de que, se garantimos uma adequada
base empírica às teorias científicas, cada nova
teoria científica aceite pela comunidade
cientifica será necessariamente melhor como
representação do real do que suas antecessoras
(PORFÍRIO, 2010, p.01).
Para Feyerabend, não existe tradição boa e nem
tampouco má, as tradições simplesmente são boas ou más
somente na medida em que participamos de alguma delas como
observadores ou participantes. Assim sendo, quando estamos
imerso em alguma tradição na qualidade de observadores
“normalmente dizemos que certos grupos aceitam
determinados padrões, ou falam muito bem desses padrões, ou
querem que os adotemos” (2011b, p.30). De outro modo,
“quando falamos como participantes, igualmente usamos com
frequência os padrões sem qualquer referência a sua origem ou
aos desejos daqueles que usam” (2011 b, p.30).
Poderíamos aclarar melhor essa última aduzindo que,
por vezes, “dizemos que as teorias devem ser falsificáveis e
livres de contradição e não quero que as teorias sejam
falsificáveis e livres de contradição” (2011b, p.30). A partir
disso, podemos identificar dois modos diferentes pelos quais os
participantes ou observadores de uma determinada tradição
decidem uma questão coletivamente, isto é, através de um
intercâmbio guiado, ou de um intercâmbio aberto. “No
primeiro caso, alguns ou todos os participantes adotam uma
tradição específica e aceitam apenas aquelas respostas que
correspondem a seus padrões” (2011b, p.38). O debate
racional, diga-se de passagem, se enquadraria como uma forma
de intercâmbio guiado ao qual Feyerabend não demonstra
muito apreço como já podemos perceber, uma vez que “uma
sociedade baseada na racionalidade não é inteiramente livre”
(2011b, p.39) afinal de contas, teríamos que fazer o jogo dos
intelectuais. Com respeito ao intercâmbio aberto, ele “é
Paul Feyerabend
140
orientado por uma filosofia pragmática e a tradição adotada
pelas partes não é especificada no começo e se desenvolve à
medida que o intercâmbio vai ocorrendo” (2011b, p.39).
Dentro de um intercâmbio aberto “os participantes mergulham
nas maneiras de pensar, nos sentimentos e nas percepções uns
dos outros” (2011b, p.39) de um modo tal que as ideias deles, e
mesmo suas percepções de mundo estão sujeitas a se
transformarem completamente, ou seja, “passam a ser pessoas
diferentes, participando de uma tradição nova e também
diferente” (2011b, p.39).
Esta última abordagem, como já fora dito, leva em
consideração a teoria pragmática da observação, a qual que não
será aqui objeto de estudo pormenorizado. Thomas Kuhn, na
“Estrutura das Revoluções Científicas” (2007) também fez
considerações semelhantes às de Feyerabend e isso se dá
precisamente em períodos pós-revolucionários, pois de acordo
com o primeiro “os proponentes de paradigmas competidores
discordam seguidamente quanto à lista de problemas que
qualquer candidato a paradigma deve resolver. Seus padrões
científicos ou suas definições de ciência não são os mesmos”
(KUHN, 2007, p.190). Além disso, Kuhn também chega a
afirmar que, após uma revolução científica os cientistas
trabalham em um novo mundo o que aqui se assemelha a
passagem anterior de Feyerabend.
Outra coisa que temos que ter em mente é a crítica de
Feyerabend as cosmologias e aos padrões usualmente aceitos e
que, por sinal, são dois, a saber, o Idealismo e o Naturalismo.
Não obstante, uma terceira posição é sugerida como
alternativa, ou seja, o anarquismo ingênuo. “O idealismo pode
ser dogmático e crítico. No primeiro caso, as regras propostas
são consideradas finais e imutáveis; no segundo, há a
possibilidade de mudança” (2011b, p.42). O idealismo também
peca, segundo Feyerabend, por não levar em consideração as
práticas, mas somente os padrões abstratos, isto é, as regras e a
Leonardo Edi Ignácio
141
lógica. Já com respeito ao naturalismo, “regras e padrões são
obtidos por uma análise das tradições” (2011b, p.43) e o
problema aqui é justamente saber qual tradição escolher haja
vista que a ciência “não é uma tradição, e sim muitas, e,
portanto, faz surgir diversos padrões parcialmente
incompatíveis” (2011b, p.43). No que toca ao anarquismo
ingênuo, aqui nós encontramos uma resposta aos critérios
oferecidos por Feyerabend para a escolha de teorias, vez que o
anarquista ingênuo reconhece as limitações das regras e dos
padrões oferecidos pelas teorias científicas. O anarquista
ingênuo está na posse de duas possibilidades, a saber, a
primeira estabelece que “tanto as regras absolutas quanto as
dependentes de contexto tem seus limites” (2011b, p.42) e
disso ele pode inferir uma segunda possibilidade, ou seja, “que
todas as regras e padrões não têm qualquer valor e devem ser
abandonados” (2011b, p.42). Feyerabend concorda com a
primeira, mas não com a segunda, mais precisamente:
Argumento que todas as regras têm seus limites
e que não há uma racionalidade abrangente; não
defendo que devemos proceder sem regras ou
padrões. Também argumento em favor de uma
explicação contextual, mas, uma vez mais, as
regras contextuais não devem substituir as
regras absolutas, apenas complementá-las6.
Além disso, sugiro uma nova relação entre
regras e práticas. É essa relação, e não uma
regra específica que caracteriza a posição que
desejo defender (FEYERABEND, 2011b,
p.43).
Deve-se observar aqui que a posição demonstrada no
parágrafo anterior exibe a fase “madura” de Feyerabend por
assim dizer, uma fase em que as afirmações anteriormente
sustentadas são reformuladas e algumas abandonadas. A partir
6 Os grifos são de Feyerabend.
Paul Feyerabend
142
disso é possível observar uma grade diferença entre o seu livro
“Adeus a Razão” e “A ciência em uma Sociedade Livre” uma
vez que a posição de complemento das regras é mantida nesse
último livro e um abandono radical das regras é proposto no
primeiro.
Não obstante, devemos ainda considerar a relação
Razão e prática. Nesta etapa, duas posições, de acordo com
Feyerabend, são esboçadas. A primeira nos informa que “a
razão orienta a prática e sua autoridade é independente da
autoridade de práticas e tradições e molda a prática de acordo
com suas necessidades” (2011b, p.33). Essa posição
caracteriza-se como sendo a versão Idealista da relação. A
segunda nos aponta que “a razão recebe tanto seu conteúdo
quanto sua autoridade da prática” (2011b, p.33), ou seja, “ela
descreve a maneira como a prática funciona e formula seus
princípios subjacentes” (2011b, p.33). Essa última posição é
denominada de naturalismo e segundo Feyerabend com
frequência se atribui a Hegel, ainda que de modo errado. No
que concerne a estas duas tradições Feyerabend acha ambas
insuficientes, e isso se dá por distintas razões. Em primeiro
lugar podemos afirmar que o idealista não está disposto a
apenas “agir racionalmente”, além disso, o idealista exige que
suas ações racionais tenham resultados, e que estes
correspondam também no mundo em que ele habita. No que
tange ao naturalismo, a primeira escolha deste é “escolher uma
prática bem sucedida” (2011b, p.33) e, a partir disso ele obtém
a “vantagem de estar do lado certo” (2011b, p.33). O problema
do naturalismo é que “basear padrões em uma prática e parar
por ai pode perpetuar para sempre os defeitos dessa prática”
(2011b, p.33).
Devido à insuficiência das duas práticas anteriores,
Feyerabend sugere que elas não são coisas distintas, senão que
formam parte de um único e mesmo processo dialético. Sua
sugestão, por fim, é que a ciência deve partir de padrões
Leonardo Edi Ignácio
143
cosmológicos antropologicamente mais amplos e podemos
aclarar isso através de um exemplo, mais precisamente através
do estudo do viajante que, ao se guiar por um mapa, e na
medida em que percorre o trajeto que lhe incumbe faz
alterações complementares no mapa referindo-se a novos
caminhos, ou mesmo a coisas novas que, por vezes, não
constam no mapa original.
Por fim, tentamos responder nesse trabalho aos
equívocos cometidos contra a filosofia de Paul Feyerabend,
assim como demonstrar que este filósofo não elimina todas as
regras da atividade científica, ao contrário, ele estabelece
padrões cosmológicos e antropológicos mais gerais que
complementam a ciência a fim de que ela consiga se
desenredar dos preconceitos oriundos de um racionalismo cego
que impede o progresso da ciência.
Referências bibliográficas
FEYERABEND, P. Adeus a Razão. São Paulo: Editora
UNESP, 2010.
________. A Ciência em uma Sociedade Livre. São Paulo:
Editora UNESP, b, 2011.
________. Contra o Método. São Paulo: Editora UNESP, a,
2011.
HACKING, Ian. Representar e Intervir. Rio de Janeiro:
EDUERJ, 2012.
KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São
Paulo: Perspectiva, 2007.
________. A Tensão Essencial. Lisboa: Edições 70, 1980.
LAKATOS, Imre. História de la Ciencia y sus
Reconstruciones Racionales. Tecnos, Madrid, 1987.
Paul Feyerabend
144
LAKATOS, Imre e MUSGRAVE, Alan (Orgs). A Crítica e o
Desenvolvimento do Conhecimento São Paulo:
Cultrix/EDUSP, 1979.
SILVA, Porfírio. A teoria pragmática da observação. Kairos. Revista
de Filosofia & Ciência, Lisboa, n. 1, p. 75-92, 2010. Disponível
em: <http://kairos.fc.ul.pt/nr%201/A%20teoria%20pragmática%20da%20o
bservação.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2014.
145
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA INFLUÊNCIA DE
DIFERENTES CORRENTES LÓGICAS DA
ANTIGUIDADE EM BOÉCIO
Luana Talita da Cruz1
A importância de Boécio durante a Idade Média se dá,
em grande parte, por sua obra oferecer uma ligação entre a
antiguidade tardia e o mundo medieval cristão especialmente
através da combinação de suas influências e do modo como às
utilizou em suas traduções e comentários. A relevância da
disciplina de lógica nos estudos de Boécio é bastante clara
quando se considera o modo como o filósofo responde a certas
questões como, por exemplo, o problema dos universais2. Mais
do que isso, em se tratando de lógica durante o período
medieval, não se pode negar que Boécio foi reconhecido como
uma das autoridades, se por mais nada, por suas traduções e
comentários dos tratados lógicos aristotélicos. Conforme
Gilson aponta:
A obra de Boécio é multiforme, não havendo
um só de seus aspectos que não tenha
influenciado a Idade Média, mas em parte
alguma sua autoridade foi mais difundida do
que no terreno da lógica. Devemos-lhe um
primeiro comentário sobre a Introdução
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade
Federal de Pelotas. <[email protected]> 2 Há que se considerar que, pelo menos, parte de seus argumentos são
encontrados em um dos comentários de Boécio a um texto considerado
como introdução a lógica aristotélica.
Considerações acerca da influência
146
(Isagoge) de Porfírio, traduzida em latim por
Mário Vitorino, e um segundo comentário
sobre a mesma obra retraduzida por ele mesmo;
uma tradução e um comentário das Categorias
de Aristóteles; uma tradução e dois comentários
do De interpretatione, um para principiantes,
outro para os leitores já mais avançados; as
traduções de Primeiros Analíticos, Segundos
Analíticos, Argumentos sofísticos e Tópicos de
Aristóteles; depois, uma série de tratados de
lógica: Introductio ad categoricos syllogismos,
De syllogismo categorico, De syllogismo
bypotbetico, De divisione, De differentis
topicis; enfim, um comentário sobre os Tópicos
de Cícero, que chegou incompleto até nós.
Pode-se dizer que, pelo conjunto desses
tratados, Boécio tornou-se o professor de lógica
da Idade Média até o momento em que, no
século XIII, o Organon completo de Aristóteles
(isto é, o conjunto de suas obras de lógica) foi
traduzido em latim e diretamente comentado.
Aliás, a obra lógica do próprio Boécio será
objeto de uma descoberta progressiva.
(GILSON, 2001. p. 160)
Assim sendo, de modo algum se questiona a
familiaridade do filósofo com o tema e, ao se reconhecer o
tempo e esforço dedicado à tradução, estudo e comentário de
tais obras, pode-se aceitar que se dê certo destaque à menção
de seus comentários e traduções àquelas do corpo aristotélico.
Todavia, ainda que se possa considerar que a lógica encontrada
na obra de Boécio seja, em grande parte, apenas um comentário
à lógica aristotélica, restringir seu conhecimento apenas a essa
teoria lógica pareceria, no mínimo, insensato, especialmente ao
se considerar que os estudos do autor não se restringiram as
obras de Aristóteles, nem mesmo as obras de Aristóteles
isoladas de qualquer comentário.
Luana Talita da Cruz
147
Pode-se encontrar nos escritos de Boécio, pelo menos,
duas teorias lógicas cuja influência merece certo destaque, a
saber, a teoria dos Silogismos Hipotéticos e a Teoria das
Inferências. No entanto, conforme Marenbon ressalta, Boécio
trata dos Silogismos Hipotéticos da forma confusa que o tema
era abordado durante a antiguidade tardia.
Além da silogística aristotélica, uma lógica de
termos, havia a lógica proposicional
desenvolvido pelos estóicos. Ao final da
Antiguidade havia sido completamente
confundida com a lógica de termos silogística
aristotélica. O escrito de Boécio De syllogismis
hypotheticis (Sobre Silogismos Hipotéticos) é a
melhor evidência dessa confusão que
sobreviveu.3 (MARENBON, 2007, p. 37)
Tal confusão, ao menos em Boécio, parece ocorrer na
medida em que o filósofo considera a lógica proposicional
estoica também uma lógica de termos, oferecendo uma leitura
de proposições como predicados4.
Há ainda que se considerar a Teoria de Inferências com
que Boécio se preocupa no De differentiis topicis. Tendo
comentando os Tópicos de Cícero, que trata de argumentos de
cunho retórico cuja validade não é necessária, Boécio se afasta
do autor ao argumentar que as máximas proposicionais
propostas por ele deveriam ser avaliadas conforme sua força,
sendo esta dependente de sua proximidade com uma verdade
3 Tradução livre de “Besides Aristotelian syllogistic, a term-logic, there was
the propositional logic developed by the Stoics. By late antiquity it had
become thoroughly confused with the term-logic of Aristotelian syllogistic.
Boethius’s monograph De syllogismis hypotheticis (‘On Hypothetical
Syllogisms’) is the best surviving evidence of this confusion.”
MARENBON, 2007. p. 37 4 É possível encontrar uma breve explicação de tal confusão em Boécio em
MARENBON, 2003.
Considerações acerca da influência
148
lógica5. Dessa forma, o autor parece oferecer uma interpretação
que considera mais correta à teoria de Cícero.
Todavia, ainda que em diversos comentários acerca de
questões sobre o tema Boécio pareça tender a posição
aristotélica, não se pode assumir que o filósofo considere a
lógica como condição anterior as ciências. Conforme Magee
aponta, Boécio argumenta mais de uma possível interpretação
para o uso da lógica, pois “(…) lógica possui seu próprio
objetivo filosófico, mas também é o que descobre e avalia
argumentos em outras áreas da filosofia.”6 Mais do que isso, a
ideia de que Boécio parece assumir posições conflitantes em
relação a sua interpretação da lógica, ora se posicionado ao
lado de Aristóteles e utilizando-a como conditio sine qua non,
ora aceitando o posicionamento estoico e conferindo à lógica
grau de ciência, não oferece de fato conflito se considerarmos
a proximidade do autor com a escola neoplatônica.
Cabe ressaltar que o neoplatonismo “também
incorporavam elementos de outras escolas, especialmente dos
estóicos, cujo pensamento os neoplatônicos desacreditavam e,
ainda assim, acima de tudo na ética, absorviam”7, a fim de
propor uma interpretação que julgasse correta dos escritos de
Platão. Assim, pode-se dizer que a escola oferecia uma
5 Marenbon sugere quarto razões para se considerar os escritos de Boécio
acerca dos Tópicos, em particular: 1. Seu crescente interesse pelo assumo,
parecendo acreditá-lo complementar a outras teorias, nos anos anteriores a
sua sentença; 2. sua influência durante o período medieval; 3. Sua
importância como uma das únicas fontes acerca do tema; 4. esclarecimento
no tratamento de Boécio acerca de inferências proposicionais e
condicionais. 6 Tradução livre de “(…) logic has its proper philosophical aims but is also
what discovers and evaluates arguments for application in other areas of
philosophy.” MAGEE, 2002. p. 216 7 Tradução livre de: “It also incorporated elements from other schools,
especially the Stoics, whose thinking the Neoplatonists disparaged and yet,
in ethics above all, absorbed.” MARENBON, 2007. p. 2
Luana Talita da Cruz
149
abordagem flexível o suficiente para que uma teoria pudesse
ter aspectos ao mesmo tempo criticados e incorporados e,
portanto, os estudos neoplatônicos de Boécio, ao menos na
leitura de Porfírio através de Isagoge, sugere a ideia de que o
filósofo não encontraria problemas em um posicionamento
aparentemente, para nós, conflitante em seu tratamento da
lógica.
Mesmo que não se procure, aqui, argumentar qual
posicionamento filosófico ou, até mesmo, se o pensamento de
Boécio deveria ser classificado de acordo com determinada
escola. Todavia, o reconhecimento das fontes que o filósofo
utiliza bem como do impacto que tais referências têm para a
compreensão e interpretação de seus escritos não podem ser
ignorados. A leitura da Consolação da Filosofia exige, no
mínimo, uma exegese cuidadosa.
Ao se considerar os argumentos lógicos que permeiam a
principal obra de Boécio, a saber, Consolação da Filosofia,
sobretudo o livro V, parece pouco razoável desconsiderar que
as influências do autor não se limitam aquelas do Organon.
Sendo que nesse livro encontra-se o argumento deveras
importante acerca da presciência divina e livre-arbítrio, o qual
grande parte da argumentação proposta na obra parece
pressupor, bem como as considerações do filósofo acerca da
necessidade, de modo que se pode oferecer uma interpretação
mais confiante acerca de tais influências uma vez que já se está
familiarizado, ao menos minimamente, com estilo do autor ao
tratar de argumentos lógicos ou de fundamentação lógica.
Assim sendo, há que se considerar, para um estudo
aprofundado, que não apenas Boécio conheceu e estudou
outras correntes lógicas além daquela proposta por Aristóteles,
mas seus comentários e até mesmo interpretações, algumas das
quais, consideradas hoje como meras confusões, não podem ser
apenas ignorados ao se buscar uma melhor compreensão de sua
obra. Ainda que seu projeto fosse muito além da lógica, há que
Considerações acerca da influência
150
se levar em conta que o tema foi considerado por ele
importante o suficiente para ser estudado com afinco antes de
dedicar-se a outros tópicos.
Mesmo que se aceite, e quanto a isso há, de fato, pouca
ou nenhuma dúvida, que Boécio pretendia transmitir os
ensinamentos aristotélicos, as próprias influências do autor
modificam seu projeto, na medida em que seus comentários
passam a conter também outras teorias. Ainda que a ideia de
uma lógica aristotélica pura em Boécio pareça, nesse caso, por
demais superficial para se considerar como uma possibilidade
plausível para uma leitura mais aprofundada de sua obra, não
se pretende, entretanto, com isso negar toda e qualquer
influência da lógica aristotélica para o autor, pois
(...) ainda que Boécio estivesse, de fato,
transmitindo uma doutrina fortemente
influenciada pelo estoicismo, ele acreditava
estar transmitindo o pensamento aristotélico.
Em seus trabalhos sobre argumentos tópicos, a
posição é um pouco diferente por causa da
importância do romano Cicero. Outra fonte
principal de Boécio aqui é Themistius, um
seguidor de Aristóteles, mesmo vivendo no
século IV, quando neoplatonismo era
dominante.8 ( MARENBON, 2003. p. 65)
Parece razoável observar esse ponto ainda sem esquecer
que o filósofo divide a filosofia especulativa em natural,
matemática e teológica, indicando alguma simpatia pelo
posicionamento aristotélico. No entanto, as diferentes
8 Tradução livre de: “(…) though Boethius was in fact conveying a doctrine
heavily influenced by Stoicism, he believed that he was transmitting
Aristotelian teaching. For his works on topical argument, the position is
slightly different because of the importance of his fellow Roman, Cicero.
But Boethius’s other main source here is Themistius, a follower of Aristotle
although living in the fourth century, when Neoplatonism was dominant.”
MARENBON, 2003.
Luana Talita da Cruz
151
influências que se pode encontrar em Boécio, até mesmo na
interpretação de algumas dessas influências, exigiriam alguma
justificação ao defender que o autor, de fato, compromete-se
com um posicionamento ou outro, especialmente quando
grande parte das teorias lógicas que comentou permeiam e
servem de apoio para os argumentos da Consolação.
Referências bibliográficas
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Victor Watts. London: Penguin Books, 1999.
GIBSON, M. (ed.) Boethius. His Life, Thought and
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GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Encontrado
em: <http://www.scribd.com/doc/100624544/Etienne-Gilson-
A-Filosofia-Na-Idade-Media-Filosofia-Medieval>. Último
Acesso em: 23/11/2014.
MAGEE, John. “Boethius”. In.: Blackwell companions to
philosophy: A companion to philosophy in the middle ages.
Oxford: Blackwell Publishing, 2002.
MARENBON, John. Boethius, New York: Oxford University
Press, 2003.
______________. Medieval Philosophy: An Historical and
Philosophical Introduction. Cambridge: Cambridge
University Press, 2007.
______________. "Anicius Manlius Severinus Boethius". In.:
The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2013
Edition), Edward N. Zalta (ed.). Encontrado em:
<http://plato.stanford.edu/archives/sum2013/entries/boethius/>.
Último Acesso em: 20/05/2014.
SPADE, Paul Vincent. “Boethius against Universals: The
Argument in the Second Commentary On Porfiry. Último
Considerações acerca da influência
152
Acesso em: 25/12/2014. Encontrado em:
<http://www.pvspade.com/Logic/docs/boethius.pdf>
153
DA ANALÍTICA EXISTENCIAL À METAFÍSICA
DO DASEIN: O TEMA DA LIBERDADE
Marcelo Vieira Lopes1
1. O tema da liberdade em Ser e Tempo
A questão da liberdade em Ser e Tempo têm, como
grande parte dos enunciados fenomenológicos expressos por
Heidegger, uma ambiguidade fundamental, constitutiva, que
não deixa reduzi-lo a um sentido único, que pode ser expresso
em termos de uma caracterização geral do termo. Buscaremos
analisar no que se segue as transformações implicadas no
conceito de liberdade, delimitado entre o período da analítica
existencial (Ser e Tempo, 1927) e os rumos tomados por tal
conceito, naquela que é caracterizada como a “década
metafísica” de Heidegger (CROWELL, 2000), a saber, o
período imediatamente posterior a Ser e tempo, até a chamada
virada (Kehre) do seu pensamento2. Começaremos com uma
breve caracterização da noção de liberdade no contexto de Ser
e tempo. Como já apontamos brevemente, a noção de
1 Graduando do curso de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail: [email protected]
2 Não entraremos na discussão do que significa a chamada Kehre do
pensamento heideggeriano. Apenas apontaremos a sugestão de alguns
autores, tal como JARAN, 2010, que sugere que o projeto de uma
metafísica do Dasein, posterior a Ser e Tempo, traria uma virada antes
mesmo da virada (Kehre), no interior do próprio projeto metafisico de
Heidegger.
Da analítica existencial à metafísica do dasein
154
liberdade, como boa parte das noções heideggerianas, são
ambíguas e/ou não discutidas de maneira aprofundada, mas são
como que “jogadas” dentro de um contexto ontológico
existencial. Dessa forma, para compreendermos minimamente
o que significa a noção de liberdade no horizonte da analítica
da existência, é preciso que se faça uma breve caracterização
do projeto visado por esta. Não nos deteremos nos seus
pormenores, somente numa rápida exposição de suas linhas
gerais, em vista da clarificação para a delimitação do conceito
de liberdade.
A analítica existencial surgida em Ser e Tempo, tem
como meta uma investigação de caráter transcendental, visando
à explicitação daquelas estruturas mais básicas do ente humano
na compreensão de algo enquanto algo determinado, isto é,
daquilo que Heidegger denomina “ser”. Embora não com este
nome, investigações recentes mostram que já aparecem traços
de uma investigação semelhante na obra do jovem Heidegger.
(ESCUDERO, 2010). Dado que ser é sempre ser de um ente,
Heidegger elege o Dasein - o ente que possui o modo de ser da
existência como ente privilegiado para a análise de suas
estruturas. A partir de uma correta compreensão do modo de
ser deste ente, diferenciando-o em relação a outros modos de
ser, tais como a disponibilidade (Zuhandenheit) e a
subsistência (Vorhandenheit), com vistas à investigação do
sentido de ser em geral, mostra-se que o Dasein é o ente
primeiro a ser investigado, anterior ao projeto de investigação
sobre o sentido de ser. É somente a partir da determinação
particular desse ente cujo modo de ser é o da existência
(Existenz), que se tornará possível a investigação do sentido de
ser em geral.
O sentido de ser da existência na sua determinação, não
pode ser apreendido categorialmente, como uma coisa, mas
antes, apenas como modos, maneiras de ser, como
possibilidades. A partir da noção de possibilidade, podemos
Marcelo Vieira Lopes
155
caracterizar a existência, modo de ser do Dasein, como
articulando-se, basicamente em dois modos: autenticidade e
inautenticidade. Na divisão I de Ser e tempo, o Dasein lançado
no mundo dos afazeres cotidianos, desde sempre ocupado é
como que privado de liberdade. O Dasein decaído nas formas
inautênticas de vida, já desde sempre incorporou tacitamente
regras e condutas constitutivas de uma herança histórica. O
Dasein que aparece na divisão I deve ser liberado em suas
possibilidades mais íntimas, algo que só poderá dar-se a partir
dos recursos metodológicos e explicativos fornecidos pela
divisão II. Nesse sentido, a noção de Angústia desempenha um
papel metodológico de grande utilidade para o reconhecimento
do Dasein em sua liberdade. Há, porém de destacarem-se dois
níveis de liberdade em Ser e Tempo, tendo como pano de fundo
a diferença ontológica. É justamente nesse sentido que
falávamos no início de nosso trabalho de uma ambiguidade
constitutiva de tais termos.
Segundo a noção de diferença ontológica - que não
aparece textualmente em Ser e Tempo, mas opera como
pressuposto, é preciso distinguir a noção de liberdade em
sentido ontológico-existencial, isto é, como transcendental,
condição de possibilidade do ôntico e a liberdade existenciária,
isto é, a projeção livre em possibilidades concretas. Nesse
sentido, fala-se de uma “Afirmação apodítica” da noção de
liberdade: dado que o Dasein é ser-no-mundo, enquanto ser-no-
mundo possui as características ôntico-ontológicas deste ente
que é mundano. Se a partir da divisão II, principalmente
através da noção de angústia, pode-se encontrar algo assim
como um Dasein livre, “desconectado” dos afazeres cotidianos,
pode-se também afirmar que há uma liberdade constitutiva do
modo de ser da existência. Assim, com as delimitações feitas
acima com base na diferença ontológica, caracteriza-se o
Dasein como ente dotado de uma liberdade ontológica
inalienável. Em resumo, no horizonte de Ser e Tempo, a
Da analítica existencial à metafísica do dasein
156
modalidade apodítica da afirmação diz que seja qual for o ente
dotado da estrutura de ser-no-mundo, este deve ser livre (HAN-
PILE, 2013.). Deste ponto de vista, a liberdade é coextensiva
ao Dasein, na medida em que desempenha o papel de uma
compreensão projetiva como o seu em-vista-de: isto significa,
em poucas palavras, que a liberdade ontológica no contexto de
Ser e Tempo implica a condição de possibilidade de toda a
agência concreta do Dasein.
Como condição de toda a agência do Dasein, a
liberdade abre um espaço normativo, isto é, a capacidade de
vinculação a entes a partir do em-vista-de. Em outros termos,
podemos dizer que o Dasein é capaz de uma autodeterminação
vinculada a leis e normas, mas ainda assim responsivo a elas. A
liberdade de vinculação aparece como requisito para
comportamentos com entes dos mais diferentes tipos. Nesse
sentido, este requisito não é imposto externamente ao Dasein,
isto é, “Não há valores ou leis independentes de nós mesmos: a
liberdade prática é uma autolegislação.” (INWOOD, 1999).
Nesse sentido, o Dasein é livre, embora sempre responsivo aos
entes em conformidade com o em-vista-de.
Também a partir de uma concepção existencial de
liberdade, tal como Heidegger pretende apresentá-la, podemos
dizer que a liberdade, jamais pode ser considerada como um
processo de tipo causal. Se assim fosse, utilizaríamos o modelo
de causa e efeito na caracterização de um tipo ontológico
diferenciado como é o Dasein, implicando, portanto, tomarmos
o modelo teórico-científico, característico do modo de ser do
ente subsistente (Vorhandenheit). Esta forma de compreender a
liberdade existencial equivocar-se-ia ao assimilá-lo com um
ente meramente natural, subsistente. Para não incorrer neste
erro categorial, é necessário que se tome o Dasein em termos
de possibilidade, ao invés de atualidade. A liberdade, neste
sentido, não pode ser explicada em termos causais, mas ao
contrário, deve ser tomada como um “fato”, “não causado ou
Marcelo Vieira Lopes
157
fundado, mas a condição de todo fundamento e causação”
(INWOOD, 1999). Esta noção nos dá condições para
compreendermos a liberdade ligada à existência como
transcendência para mundo, noção que aparecerá nos textos
imediatamente posteriores à Ser e Tempo.
Voltando ao tema da liberdade no horizonte conceitual
de Ser e Tempo, é necessário que se dê o passo além da divisão
I, onde o Dasein ainda é privado de liberdade, caracterizado
através de termos como, perda, alienação, etc. É nesse sentido
que a divisão II desempenha um importante papel na
descoberta do Dasein e de sua própria liberdade. Na
manifestação do fenômeno da angústia, o Dasein confronta-se
com a liberdade para a escolha de si mesmo. Isto é, o Dasein é
“livre para a liberdade de escolher-se a si mesmo ou não. Em
caso afirmativo, tornar-se-á existencialmente livre” (HAN-
PILE, 2013). A ligação da liberdade ontológica, atravessado
pelo conceito de angústia, com nossa liberdade existenciária,
afirma o caráter de escolha da escolha de si mesmo como uma
“escolha finita” (HAN-PILE, 2013). Isto é, uma vez posto em
estado de angústia, o Dasein não mais pode retornar a seu
estado anterior de não-angustiado. Frente a esse estado de
angústia que obriga o Dasein a escolher – embora essa escolha
possa dar-se negativamente (escolher não escolher a si
mesmo), só assim este se torna existencialmente livre. “O
escolher escolher a si mesmo” como a dupla estrutura da
escolha mostra o caráter de liberdade do Dasein angustiado,
enquanto podendo assumir sua historicidade autêntica, de
maneira ontologicamente livre.
2. Críticas à concepção kantiana de liberdade
Nos termos da discussão de Heidegger sobre o
problema da liberdade, buscando pensá-la em suas
Da analítica existencial à metafísica do dasein
158
determinações ontológicas, um importante interlocutor com
relação ao tema é Immanuel Kant. Na interpretação
heideggeriana da concepção de Kant sobre o problema da
liberdade, afirma-se que esta basicamente, consiste em pensar o
universo em termos cosmológicos, como um todo entrelaçado
causalmente. Desse ponto de partida, a liberdade consistiria em
um tipo especial de causa não redutível ao nível material de
causação, mas inserindo-se nesse entrelaçado. Liberdade aqui
aparece ligada a noção de uma “causa livre”, com o poder de
iniciar novas séries causais sem ser por elas mesmas causada.
Na discussão kantiana, segundo Heidegger, a concepção
metafísica tradicional do conceito de liberdade orientada a
partir da noção de causalidade, atinge o seu expoente mais
paradigmático. A liberdade, desenvolvida em termos kantianos
bifurca-se entre uma liberdade em sentido cosmológico e em
sentido prático. Segundo Heidegger é pela via cosmológica da
noção de liberdade que será pensada a liberdade humana. Mas
pensar a liberdade humana em termos causais não faz justiça
àquilo que Heidegger chama o fenômeno originário da
liberdade, a saber, o caráter possibilitador da liberdade na
abertura para mundo e para o ser, característica do ente
humano. A liberdade, pensada em termos de causalidade, só
pode ocorrer em dependência de seu sentido originário. Ela é
antes fundada e derivada de uma noção mais primitiva da
liberdade.
Apoiando a crítica de Heidegger a essa noção de
liberdade em termos causais, surgem as teses de que: 1. A
liberdade, pensada em termos de causalidade, conduz a uma
tendência reificadora do fenômeno, tratando-a como fenômeno
intramundano, isto é, derivado; e 2. Ainda a liberdade pensada
em termos causais é incapaz de dar conta do fenômeno
específico da liberdade humana, entendido primariamente
como transcendência, abertura para mundo. A concepção
kantiana de liberdade fica presa ainda ao domínio de uma
Marcelo Vieira Lopes
159
ontologia da presença, reificando uma estrutura fundamental do
ente humano (VIGO, 2011).
Nos termos da concepção desenvolvida por Heidegger
sobre o problema da liberdade humana, esta também se bifurca,
à maneira kantiana, mas difere radicalmente desta. Tal
bifurcação consiste basicamente na caracterização de uma
liberdade negativa e outra positiva. A liberdade negativa ganha
esse status por ser sempre “liberdade de...” e diz respeito ao
fato intramundano de um “chegar a ser livre”, de uma
desvinculação, ou seja, libertando-se de toda determinação
alheia. Livre nesses termos é tudo aquilo que não está
vinculado. Já com relação à segunda via da liberdade, a
positiva, esta é caracterizada como um “ser livre para...”. Isso
significa, distanciando-se da concepção negativa, que tal “ser
livre para...” reside em termos de uma autodeterminação para.
Esta concepção dialoga como já observamos, com a
perspectiva bifurcada da experiência da liberdade em Kant.
Porém, em Kant, ao contrário do que acontece em Heidegger, a
liberdade transcendental, que é expressa em termos
cosmológicos, logo, causais, é aquela que funda e determina a
liberdade prática, aquela própria do ser humano. A recusa de
Heidegger da doutrina kantiana é justamente frente a esse
embate: por que Kant jamais abandona uma concepção da
liberdade humana caracterizada em termos meramente causais?
(VIGO, 2011).
A liberdade para Heidegger, concebida em termos de
causa livre, fica ainda, sem mais, refém de uma noção geral e
indiferenciada de causalidade orientada desde a ideia de
efetivação, ou produção de efeitos (VIGO, 2011). Assim,
também a liberdade prática fica como que presa a uma noção
de causalidade natural que não diz respeito à apreensão do
correto modo de ser do ente humano. Nesse sentido, a
abordagem heideggeriana parece levantar dois problemas a
partir da leitura de Kant. O primeiro relaciona-se à nivelação
Da analítica existencial à metafísica do dasein
160
da questão da liberdade com a ontologia da presença, através
da noção de efetivação, remetendo a ideia de uma realidade
efetiva (Vorhandenheit). Para Heidegger, o modo de ser do
“ente que é livre” (VIGO, 2011) permanece inquestionado na
investigação kantiana. O segundo problema, intimamente
relacionado ao primeiro, reclama que a noção de liberdade
assim esboçada não caracteriza corretamente o modo de ser do
ente livre, e que, ao não fazê-lo, não considera a transcendência
constitutiva do ente humano, compreendido como Dasein.
Assim, a concepção que toma a liberdade em termos causais
não a reconhece como fenômeno derivado e intramundano, na
medida em que está relacionado à causação entre entes. Um
nível mais básico de liberdade, fundante da concepção vulgar é
pensada desde o ponto de vista da transcendência do Dasein
para o mundo, mundo aqui compreendido como horizonte de
todo aparecer dos entes intramundanos (VIGO, 2011).
Dizer que a liberdade tem um tipo fundamental de
conexão com a transcendência do Dasein significa dizer que é
exatamente por que o Dasein é livre a nível ontológico que há a
possibilidade de uma abertura para mundo e o encontro com
entes intramundanos. A pergunta pela essência da liberdade
revela-se então como uma pergunta diretriz de toda a
metafísica, na medida em que não é outra pergunta senão a
pergunta pelo ser do ente. (VIGO, 2011). A problemática da
liberdade traz assim o caráter essencialmente mostrativo da
liberdade, isto é, como aquilo que detém as condições de
possibilidade do aparecimento dos entes. Portanto, todo o
comportamento com relação a entes, sua vinculação, só é
possível mediante o reconhecimento dessa estrutura mais
básica do fenômeno originário da liberdade.
Marcelo Vieira Lopes
161
3. Metafísica do Dasein como metafísica da
liberdade
Aquilo que frequentemente é caracterizado como uma
virada metafísica do pensamento heideggeriano, isto é, uma
“virada já antes da virada” (JARAN, 2010) após a analítica
existencial de Ser e Tempo, também se compreende como uma
virada no interior da própria ontologia fundamental, no sentido
de preencher lacunas que somente as duas seções de Ser e
Tempo não seriam capazes de responder, tal como o fenômeno
originário da liberdade. No projeto geral de uma metafísica do
Dasein, o termo “metafísica” adquire um sentido muito
especial. Diante da recusa de uma metafísica no sentido
tradicional, ou ontoteológica, na linguagem heideggeriana, a
metafísica, no sentido originário que é atribuído por Heidegger
é tomada como característica fundamental do modo de ser do
Dasein. Como característica fundamental desse ente, o Dasein
aparece bifurcado em dois modos fundamentais, a saber,
Existência (Existenz) e Ser-lançado (Geworfenheit),
correspondendo essas, por sua vez às duas estruturas que na
metafísica tradicional, ao menos desde Aristóteles, foram
tomadas por um lado como ontologia e por outro, teologia.
Dessa forma, o estatuto da analítica da existência humana que
Heidegger concebe como sendo o primeiro passo no programa
de uma interpretação das condições formais do aparecer dos
fenômenos em uma experiência significativa, aparecido em Ser
e Tempo, transforma-se radicalmente em um empreendimento
metafisico no período posterior à sua obra magna, entre 1927 e
1930.
À luz dessa noção de metafísica do Dasein, aparece a
chamada metontologia na forma de uma transformação
imanente da ontologia fundamental, como o questionamento do
ente no todo, isto é, da teologia na linguagem tradicional ou
Ser-lançado (Geworfenheit) à luz das conquistas da ontologia
Da analítica existencial à metafísica do dasein
162
fundamental. É nesse sentido, portanto, que ontologia
fundamental e metontologia juntas darão inicio a uma
metafísica do Dasein desde o fim de Ser e tempo até o começo
dos anos 1930. Em certa medida, a metafísica do Dasein afasta-
se do projeto de Ser e Tempo e trata, muito antes, do vínculo
radical que entrelaça o existir do homem ao ente no todo, ou
teologia (Geworfenheit). Retirando daí a conceptualidade
necessária para o tratamento da natureza humana, caracterizada
como a “finitude no homem” (HEIDEGGER, 1996) e para o
reencaminhamento da questão do ser, não mais apenas em
termos da temporalidade, mas agora relacionado à
transcendência, ou liberdade do Dasein.
A partir dessa unidade temática, a metafísica do Dasein
pode ser lida como uma “hermenêutica da vincularidade
humana a entes” e culmina em um novo conceito de homem, o
homem como “formador de mundo” (HEIDEGGER, 2006). É
no período intermediário entre Ser e Tempo e os anos 30 que
Heidegger concebe a ideia de uma “liberdade metafísica”
situada no seio da relação do Dasein com o mundo, assim, no
seio de todo questionamento ontológico. Nesse sentido, antes
de uma superação da metafísica operada pelo filósofo, é
necessário que falemos um pouco do caráter positivo que este
pretendeu fornecer à metafísica do Dasein, metafísica
compreendida nos termos que já explicitamos. O conceito de
metafísica que Heidegger busca desenvolver, sob o nome de
uma “metafísica científica”, desvincula-se de entes como Deus
ou o mundo, em sentido ôntico, aquilo que ele chamará de o
“conceito vulgar de metafísica”, mas antes, busca lidar
sobriamente com uma “ciência transcendental do ser”
(HEIDEGGER, 2012).
Central para o desenvolvimento do projeto de uma
metafísica do Dasein é a noção de transcendência.
Transcendência, nesse período refere-se a uma relação de
“ultrapassamento” do Dasein em relação aos entes. Na medida
Marcelo Vieira Lopes
163
em que possui compreensão de ser, o Dasein já os transcendeu.
A transcendência, nesse sentido, pertence desde sempre ao
Dasein como uma constituição fundamental de seu ser,
ocorrendo anteriormente a todo e qualquer comportamento
dirigido a entes, e nesse sentido, como condição de
possibilidade. O desenvolvimento da noção de transcendência
operante em Sobre a Essência do Fundamento, como uma
definição da essência do Dasein não mais em termos de
cuidado (Sorge), agora indica a perspectiva desde sempre
“ultrapassante” do comportamento do Dasein com relação aos
entes. É sobre a base da noção de transcendência que
encontramos o desenvolvimento da noção de liberdade, central
para a problemática e o desenvolvimento de uma metafísica do
Dasein.
A concepção de uma metafísica do Dasein passa então,
como tentamos mostrar, por dois momentos constitutivos: 1. A
noção de liberdade e sua confrontação com a doutrina kantiana
e 2. A metafísica pensada por Heidegger como repetição
(Wiederholung) da problemática aristotélica, a saber, a
bifurcação entre ontologia e teologia, ou ainda, o problema do
ente enquanto ente e do ente no seu todo. (JARAN, 2010).
Considerações finais
A passagem do projeto da analítica existencial de Ser e
Tempo, para uma metafísica do Dasein, como pensamos ter
demonstrado, é atravessada por um paralelo entre ontologia
fundamental e metontologia. Ambos os temas na tentativa de
convergir para a discussão do problema da filosofia primeira e
da teologia. Passando pela formulação dos conceitos de
transcendência e de liberdade, como conceitos chaves dessa
fase do pensamento heideggeriano, podemos ver seu papel
como intrinsecamente ligado a elas.
Da analítica existencial à metafísica do dasein
164
Na concepção heideggeriana, corresponderão aos
conceitos chave da ontologia tradicional (semelhante às
características da noção de cuidado na ontologia fundamental),
a noção de Existência (Existenz) e Ser-lançado (Geworfenheit).
Apresenta-se assim, no pano de fundo heideggeriano, ao
abordar o problema da filosofia primeira e da teologia
aristotélica, o seu correspondente existencial, a saber, o
problema do ser e do mundo, determinados agora como o
“conceito autêntico da metafísica” (HEIDEGGER, 2012).
Deixamos então, a perspectiva, que não poderá ser
concluída neste espaço, de reconstruir a metafísica do Dasein
em três diferentes momentos: 1. A passagem da ontologia
fundamental de Ser e Tempo; 2. A fase transcendental de Sobre
a Essência do Fundamento; e 3. A fase correspondente ao
problema da liberdade de A Essência da Liberdade Humana,
que perdura até o fim de seu empreendimento metafísico.
(JARAN, 2010). O esboço que tentamos oferecer de uma
metafísica do Dasein é caracterizado então como atingindo seu
ponto mais alto na caracterização do conceito metafísico de
liberdade – considerado como a condição de possibilidade de
toda liberdade concreta, ôntica.
Referências bibliográficas
CROWELL, Steven Galt. Metaphysics, Metontology, and the
End of Being and Time. Philosophy and Phenomenological
Research, Vol.LX, N° 2, 2000.
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165
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Tradução de Gred Ibscher Roth. México: Fondo de Cultura
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Petrópolis: Editora Vozes, 2012.
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Tradução de Ernildo Stein. Coleção Os Pensadores. São Paulo:
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International Journal of Philosophical Studies Vol. 18(2), 205–
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y el Problema de la Libertad. In: AINBINDER, Bernardo
(Editor). Studia Heideggeriana. Heidegger-Kant. Vol. 1,
Buenos Aires: Editoral Teseo, 2011.
167
A DIFERENÇA ENTRE MENÇÃO E
CARACTERIZAÇÃO DOS ENDOXA NA FILOSOFIA DE
ARISTÓTELES
Mariane Farias de Oliveira1
I.
Sabemos pelos textos de Aristóteles que “ta endoxa”
são as opiniões reputadas, compartilhadas pela maioria (que se
distingue, por sua vez, da multidão “ói pollói”), ou pelos
sábios, ou, ainda, pelos mais ilustres dentre eles, e, por serem
crenças valorizadas por Aristóteles no sentido de serem
elencadas, na maior parte de seus tratados, ao início de cada
investigação, quem se propõe a investigar determinado assunto
deve, portanto, estar atento a este seleto grupo de opiniões que
parecem possuir caráter autoritativo sobre o objeto de
investigação. Nessa medida, Aristóteles indica mais do que, em
uma primeira leitura, podemos entender como a importância de
que “ta endoxa” não sejam ignorados no percurso
investigativo, mas sim que eles sejam os próprios componentes
da análise que o Estagirita empreende em determinados
tratados.
No entanto, entender os endoxa como opiniões
reputadas e salientar a necessidade de sua presença em
determinadas investigações ainda nos diz muito pouco acerca
de sua natureza e do papel ou, ainda, dos papéis que as
1 (UFRGS). E-mail para contato: [email protected].
A diferença entre menção e caracterização
168
opiniões reputadas desenvolvem na filosofia de Aristóteles,
especialmente em sua filosofia moral. Encontramos diversas
recomendações acerca do uso dos endoxa para diversos tipos
de investigação (cf. EE I 3 1214b30, EE I 6 1216b26-35, EE
VII 1 1235a 30-32, EN I 5, 1095a27-29, EN VII 1, 1145b5,
Ret. I 2 1356b30-34)2, mas somente duas caracterizações em
sentido próprio surgem do texto de Aristóteles como uma
tentativa de definição ou, pelo menos, apresentação das
opiniões reputadas qua reputadas (Tóp. I 1 e I 10).
A distinção entre menção e caracterização é uma
tentativa de conferir inteligibilidade ao curioso fato de que é
comum, em boa parte dos tratados aristotélicos, que o filósofo
dê uma indicação prévia de seu procedimento investigativo, o
que geralmente inclui os endoxa, mas, apesar de inúmeras
menções às opiniões reputadas, não apresenta nenhuma
definição desse ponto central de seu método, o que nos leva a
pensar que estaria implícita a ideia de que os endoxa já foram
definidos em outro texto, quando apenas mencionados. O que
entendemos aqui como “menção” é uma evocação de um termo
técnico sem defini-lo ou caracterizá-lo. O que entendemos
como “caracterização” é uma tentativa de definição que não se
faz suficientemente explanatória para ser tomada stricto sensu
como tal. Uma definição, grosso modo, possui o elemento
explanatório capaz de abranger e explicar a natureza do objeto
em todos os casos, ou seja, universalmente.
Diante dessas distinções, vejamos agora as
caracterizações que surgem nos Tópicos: Endoxa, por outro lado, são aquelas [opiniões]
que se baseiam no que pensam todos, a maioria
2 As obras serão abreviadas de acordo com o que se segue: Ethica
Eudemia (EE), Ethica Nicomachea (EN), Retórica (Ret.) e Tópicos
(Tóp.).
Mariane Farias de Oliveira
169
ou os sábios, isto é, a totalidade dos sábios, ou a
maioria deles, ou os mais renomados e ilustres
entre eles. (100b20-22)
Ora, uma proposição dialética é uma questão
em consonância com a opinião (endoxon)
sustentada por todos, ou pela maioria, ou pelos
sábios (todos os sábios, a maioria destes ou os
mais afamados entre estes) e que não é
paradoxal […]. (104a10-12)
A segunda passagem encontra-se em outro contexto de
discussão dos Tópicos, acerca das proposições dialéticas, que
não será contemplado em nosso trabalho, mas o importante é
atentar para o fato de que é retomada a caracterização de Tóp. I
1. Isso parece indicar que Aristóteles pretendeu ter
estabelecido, no início do tratado, determinadas noções-chave,
como, por exemplo, a de endoxon, de que se utilizará nas
futuras discussões que impõe. Em Tóp. I 1 vemos uma possível
formulação de definição stricto sensu, do tipo “x é y”, em que
“y” é o elemento explanatório da natureza de “x”, e explica,
portanto, todo e qualquer caso instanciado por “x”. No entanto,
o definiens de um endoxon não parece suficientemente
explanatório, pois o critério discriminatório dos endoxa é
bastante fraco por sua ambiguidade na medida em que admite
três “níveis” de caracterização: as crenças sustentadas por
todos ou a maioria, a totalidade dos sábios ou a maioria deles
ou apenas alguns dentre eles que sejam ilustres. O entendemos
por caráter ambíguo e, consequentemente, fraco do definiens,
aqui, é o fato de que essa aparente definição é disjuntiva e não
há, na teoria da definição aristotélica, nenhuma maneira de
haver definições disjuntivas. Isso significa que definiens não
pode ser tomado em sua totalidade (a maioria, os sábios e os
mais ilustres), pois eles não conformam um único elemento
explanatório – pois há possibilidade de conflito entre suas
opiniões, tornando disjuntivo este grupo.
A diferença entre menção e caracterização
170
Podemos tomar como estabelecido que a caracterização
dada nos Tópicos não nos diz que os endoxa significam, não
nos fala satisfatoriamente sobre sua natureza, mas aponta-nos
um aspecto dessas opiniões: seu caráter reputável. Contudo,
isso não significa que tal apontamento nos diga pouco a
respeito dos endoxa. Temos pelo menos duas maneiras de ler
essa passagem que apresentam ênfases diferentes na
compreensão do caráter reputável: (1) a reputabilidade
amparada na tese geral da tendência humana à verdade, se
entendermos esta passagem indicando uma ordem decrescente
de reputabilidade a partir da aceitação dos endoxa; e (2) a
reputabilidade amparada igualmente pelos três “subgrupos”
mencionados – todos (ou a maioria), os sábios (ou a maior
parte deles), ou os mais ilustres dentre os sábios –, que advêm
de uma leitura de Tóp. I 1 em que Aristóteles não estaria
privilegiando nenhum dos subgrupos qua subgrupo, mas a
reputabilidade seria encontrada através de outra coisa, a saber:
um método ou procedimento.
No primeiro caso, se extrairmos as consequências do
sentido “decrescente” do critério da reputabilidade e da
tendência do homem à verdade, podemos dizer que os endoxa
são dignos de aceitação porque tendem maximamente à
verdade. Podemos dizer também, de modo inverso, que quanto
mais aceitação um endoxon obtiver, mais indicações teremos
de que ele aponta para a verdade, ou, nas palavras de Berti,
“serão verdadeiros na maior parte dos casos” (p.75).
Há um problema que se coloca ao darmos como critério
de reconhecimento dos endoxa a máxima aceitação comum e o
fato de que isso é explicado pela tendência do homem à
verdade. De fato temos fortes razões pelo trecho mencionado
de EE I 6, por exemplo, a aceitar que a própria natureza do
homem garanta sua tendência à verdade. Mas isso parece não
ser condição suficiente para assegurar que suas crenças, de
modo geral, terão a mesma tendência e para assegurar que
Mariane Farias de Oliveira
171
quanto mais homens sustentarem tal crença, mais probabilidade
ela apresenta de ser verdadeira. Essa condição certamente é
necessária para indicar a reputabilidade e tendência à verdade
das opiniões, mas seria preciso ainda garantir que não haja a
possibilidade de que acidentalmente todos os homens estejam
errados a respeito de determinada crença – o que contraria
todas às menções de Aristóteles de que devemos confiar e
utilizar os endoxa como pontos de partida na investigação,
comprometendo, assim, a reputabilidade e o caráter autoritativo
desse grupo seleto de crenças.
Uma tentativa de afastar essa possibilidade se encontra
no segundo tipo de ênfase dada à reputabilidade que
pretendemos explorar, a saber: a necessidade de um método,
ou, mais especificamente, de um trabalho analítico diante do
conjunto dos endoxa. Nesta perspectiva, Barnes não abandona
a ideia de que os homens tendam naturalmente à verdade e que
isso seja uma das condições de reconhecimento e
reputabilidade dos endoxa, mas, para tentar afastar a
possibilidade de que, a respeito de determinada crença, todos
possam estar errados, Barnes interpreta a caracterização de
Tóp. I 1 como um “elenco” daquelas opiniões que são dignas
de análise, mas não parece ver mais ou menos reputabilidade
nos endoxa, uma vez que sua descrição do conflito parece
exigir igual autoridade entre as crenças:
De novo, ta endoxa podem conflitar: se a
maioria dos homens está em desacordo com os
sábios, ou com os mais reputáveis dentre eles;
ou se os sábios estão em desacordo entre si; ou
se já alguma disputa entre os mais reputáveis
dos sábios – em todos esses casos, opiniões
opostas serão igualmente endoxa. (2010, p.197)
A questão da reputabilidade, tal como entendida por
Barnes, parece ser mais profícua na medida em que nos fornece
mais meios de partir para a discussão do que possam significar
A diferença entre menção e caracterização
172
os endoxa quando consideramos a suposição do conflito entre
eles. A suposição do conflito faz parte do que Barnes chamou
de “método dos endoxa”, cuja tese principal é de que a
prescrição contida em EN VII 1 – da qual trataremos em breve
–, que supõe o procedimento analítico que mencionamos
anteriormente, sustentaria um método comum que Aristóteles
desenvolve em suas investigações. Dito isto, consideraremos
agora o que Barnes considera ser o “método dos endoxa” e,
dessa maneira, partiremos para a análise das menções aos
endoxa, saindo do domínio da caracterização em que nos
encontrávamos até o momento, analisando duas menções que
dizem respeito a prescrições metodológicas: uma da Ethica
Nicomachea e outra da Ethica Eudemia.
II.
Para falar do suposto método, Barnes parte de uma
conhecida menção aos endoxa que surge ao começo da
discussão acerca da akrasia na Ethica Nicomachea VII 1 (=EE
VI, 1). Nela, Aristóteles faz a seguinte prescrição
metodológica: “A exemplo do que fizemos em todos os outros
casos, passaremos em revista o que nos aparece e, após discutir
as dificuldades, trataremos de provar, se possível, a verdade de
todas as opiniões reputadas a respeito desses afetos da mente –
ou, senão todas, pelo menos do maior número e das mais
autorizadas (...)” (EN VII 1, 1145b2-6).
Barnes (2010, p. 183) distingue três importantes passos
a partir dessa prescrição: (1) estabelecer (τιθέναι) o que parece
ser o caso, (2) percorrer (διαπορεῖν) as aporias ou dificuldades
e (3) provar (δεικνύναι) o que for possível das opiniões
reputadas. Os passos (1) e (2) são praticamente inseparáveis na
análise, pois o próprio levantamento doxográfico leva-nos à
constatação das aporias. Segundo Barnes, haverá aqui dois
Mariane Farias de Oliveira
173
momentos de compreensão das opiniões reputadas: (1) o
primeiro será o momento do levantamento dessas opiniões, que
chamaremos de “endoxa preliminares” ou “indícios”, pois
podem apresentar inconsistências, de maneira que, por
definição, não consistirão em um conjunto, dado que um
conjunto precisa ser consistente. Essa listagem preliminar das
opiniões reputadas, uma vez que essas opiniões disputam a
verdade, costumeiramente de maneira confusa, como nos
indica Aristóteles, levar-nos-á às aporias a serem percorridas,
uma vez que muitas opiniões estarão em conflito. E (2) o
segundo momento será o que, depois de percorridas as aporias,
teremos os “endoxa clarificados” ou “modelos”. Dito isso, fica
claro que o processo de percorrer as aporias citado na
passagem visa, em última análise, preservar o máximo possível
dos endoxa estabelecidos no início, de modo a formar um
conjunto consistente através da análise das inconsistências
presentes nas próprias opiniões.
Sobre o terceiro passo, (3) “provar o que for possível
das opiniões”, este será o resultado de “percorrer as aporias” e
reformular as opiniões reputadas de tal maneira que estejam o
mais clarificadas possíveis para formarem um conjunto
consistente. Barnes (2010, p.185) identifica a noção de
“provar” com uma espécie de resolução dos problemas que o
levantamento preliminar dos endoxa provocou. Sobre este
ponto, o comentador ainda ressalta que a verdade será
encontrada exclusiva e exaustivamente no conjunto
remanescente das opiniões reputadas. O que conseguimos
entender aqui por “exaustivo” concerne ao fato de que esses
endoxa formarão um conjunto maximamente consistente, ou
seja, nenhuma outra opinião poderá fazer parte dele sem torná-
lo inconsistente, e, portanto, sem deixar de ser um conjunto. No
entanto, como entender o que o intérprete afirma sobre a
verdade ser encontrada “exclusivamente” nos endoxa
remanescentes, “provando” o que for possível das opiniões?
A diferença entre menção e caracterização
174
Poderíamos objetar aqui que, se essa noção de prova for dada
sem qualificações, ou seja, que a partir dela seja possível
provar o que for o caso no percurso da busca definicional, os
endoxa não poderiam ser, ao mesmo tempo, os pontos de
partida e qualquer tipo de prova. Acreditamos que a análise da
menção aos endoxa encontrada na prescrição metodológica da
Ethica Eudemia possa ser útil para mostrar que essa objeção
não se segue se qualificarmos a noção de prova como o uso dos
endoxa como “modelos” ou paradigmas:
Deve-se tentar buscar a convicção acerca
de todos esses assuntos por meio dos
argumentos, empregando como indícios e
modelos o que nos aparece. Com efeito, o
melhor é que seja manifesto que todos os
homens concordem com o que será dito e,
se não, ao menos que todos concordem de
certo modo – o que, sendo conduzidos por
argumentos, eles farão. De fato, cada um
possui algo apropriado em relação à
verdade, a partir do que é necessário provar
de certo modo sobre esses assuntos. Com
efeito, partindo do que é dito com verdade,
mas não de modo claro, haverá também
clareza aos que prosseguem, tomando
sempre o que é mais cognoscível dentre o
que habitualmente se diz de modo confuso.
(EE I 6, 1216b26-35).
Na primeira sentença, o filósofo pretende definir
justamente como e por que caminho se deve partir para chegar
à verdade acerca dos assuntos morais, ou, pelo menos, a
concepções mais claras. Empregar “indícios” é usar os endoxa
como pontos de partida, a fim de clarificá-los para chegar a
premissas ou hipóteses utilizadas como “modelos” da
investigação. Em seguida, sua segunda asserção parece
Mariane Farias de Oliveira
175
justificar a primeira, pois “é melhor que todos concordem” no
sentido de que será mais fácil estabelecer os endoxa como
modelos, de maneira que o levantamento inicial das opiniões
reputadas já poderá conformar um conjunto. Se isso não for o
caso, Aristóteles prossegue: dado que todos os homens tendem
à verdade – asserção que parece ser dada como justificativa
final do argumento –, precisamos provar este “algo” com que
cada um pode contribuir com a verdade, a saber: as opiniões
reputadas. Só que, neste sentido, elas já serão indícios, mas não
modelos, pois não estão clarificadas, de onde vem a
necessidade, novamente, de percorrer as aporias para
estabelecer um conjunto consistente e, finalmente, provar “o
que esses homens têm de fato a contribuir com a verdade”, que
será conformar os indícios de que se partiu, os endoxa não
clarificados, aos modelos ou paradigmas estabelecidos a partir
da clarificação dos endoxa.
Ora, parece ser justamente este o tipo de prova exigido
na Ethica Nicomachea VII 1 (EE = VI). O que se prova não é a
verdade que encerra a busca definicional, não é uma prova
definitiva de argumento, mas sim uma prova de um endoxon
como premissa ou, ainda, de um conjunto de endoxa como
conjunto de premissas, que, clarificadas, poderão constituir a
investigação. O que isso nos mostra é que devemos tratar a
noção de verdade e prova aqui em um sentido generoso e
dentro do próprio “método dos endoxa” proposto por Barnes,
pois o que se está provando, em última análise, é a
remanescência de um endoxon preliminar, daquilo que
Aristóteles prescreveu como o primeiro passo do procedimento
em EN VII 1, agora em um conjunto consistente e
propriamente “filosófico” – no sentido em que será utilizado
como “modelo” no tratado para dar prosseguimento à busca
definicional.
A diferença entre menção e caracterização
176
III.
Dessa maneira, vimos que tanto a caracterização quanto
as menções aos endoxa são necessárias para a compreensão de
sua natureza e do método aristotélico. A caracterização, como
uma quasi-definição, aponta para o caráter reputável que os
endoxa compartilham e nos permite fazer duas leituras de sua
reputabilidade, sendo possível, assim, interpretar de duas
maneiras sua natureza. Tentamos defender aqui a leitura de
Barnes acerca da natureza dos endoxa, que nos permite avançar
ao possível método que elas conformam, cujo procedimento
pode ser encontrado em menções presentes nas éticas que, além
de explicitá-lo, também justificam a necessidade de sua
presença.
Dito isso, embora a caracterização dos Tópicos seja de
toda relevância para nos apontar uma direção para
compreensão dos endoxa, pouco saberíamos acerca de seu
papel nos tratados se Aristóteles não as mencionasse ao início
de suas investigações. O que nos mostra, portanto, que as
prescrições metodológicas cumprem um papel de elucidação
não só de procedimentos investigativos, mas também de seus
elementos.
Referências bibliográficas
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traduction, notes, bibliographie et index par Catherine
Dalimier. Paris: Flammarion, 2013.
ARISTOTE. Topiques. Tome I: Livres I-IV. Texte établi et
traduit par Jacques Brunschwig. Paris, Les Belles Lettres,
1967.
Mariane Farias de Oliveira
177
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Oxford: Oxford University Press, 1991.
ARISTOTLE. Eudemian Ethics – Books I, II, and VIII.
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Clarendon Press, 1996.
ARISTOTLE. Eudemian Ethics. Translated and edited by Brad
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ARISTOTLE. The complete works of Aristotle (v. I). Topics.
Princeton: Princeton University Press, 1984.
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BARNES. “Aristóteles e os Métodos da Ética”. In: ZINGANO,
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BERTI, E. “La valeur épistémologique des endoxa chez
Aristote”. In: Dialectique, Physique et Métaphysique – Études
sur Aristote. Paris: Louvain, 2008.
179
THOMAS NAGEL E A SORTE MORAL1
Paulo Henrique de Toledo2
Introdução
Sorte é um fato inalienável da vida humana. Não apenas
não podemos escapar à sorte, devido à nossa condição, como
não podemos querê-la, porque lado a lado com a sorte
caminham as coisas que fazem a nossa vida ter sentido3. A
vulnerabilidade à sorte é um componente essencial das nossas
vidas, mas tal perspectiva representa uma ameaça à agência
independente, o que é um problema para a moralidade4. Desta
forma, “tanto a sorte é parte integral da ética, quanto os
componentes de uma boa vida são fundamentalmente objetos
de sorte5”.
O problema da sorte moral foi cunhado pela primeira
vez em 1976, no par de artigos publicados na revista The
Proceedings of the Aristotelian Society, de Bernard Williams e
Thomas Nagel, intitulados, ambos, Moral luck. Nestes artigos,
tanto Williams, quanto Nagel, apresentaram uma série de
exemplos para tentar contestar a alegada imunidade da moral
no que diz respeito à sorte.
1 Artigo composto para a V Jornada Nacional de Pesquisa na Pós-
Graduação em Filosofia da UFSM, em novembro de 2014. 2 Mestrando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
UFSM, sob orientação do prof. Dr. Ricardo Bins di Napoli. 3 Athanassoulis (2005), p. 18.
4 Nussbaum (2009), p. 3-5.
5 Athanassoulis (2005), p.18.
Thomas Nagel e a sorte moral
180
O presente artigo procura esclarecer o problema da
sorte moral a partir do artigo Moral luck de Thomas Nagel.
Começaremos esboçando o princípio do controle, uma intuição
que remonta ao coração de nossas concepções morais, bem
como o problema de seguir tal princípio em nossos juízos de
valor ou responsabilidade. Na segunda parte do texto,
olharemos de perto os quatro tipos de sorte moral estipulados
por Nagel, apresentando os exemplos para melhor
esclarecimento de cada problema.
1. O princípio do controle
Enquanto Bernard Williams apresenta uma visão
antiteorista da moral, apontando um possível paradoxo em
nossas concepções sobre a moralidade, Nagel nos dá uma
definição, um princípio. Ele diz que “pode ser chamado de
sorte moral quando um aspecto significativo do que alguém faz
depende de fatores além do seu controle, e ainda continuamos a
tratá-lo como objeto de avaliação moral6”. Tal princípio é
intuído a partir da Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, de Immanuel Kant. Nesta obra, de papel
fundamental para nossas noções de moralidade, Kant afirma
que:
A boa vontade não é boa por aquilo que promove
ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer
finalidade proposta, mas tão somente pelo querer,
isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma
[...] Ainda mesmo que por um desfavor especial
do destino, ou pelo apetrechamento avaro duma
natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa
vontade o poder de fazer vencer as suas
intenções, mesmo que nada pudesse alcançar a
6 Nagel (1993), p. 59.
Paulo Henrique de Toledo
181
despeito dos seus maiores esforços, e só afinal
restasse a boa vontade (é claro que não se trata
aqui de um simples desejo, mas sim do emprego
de todos os meios de que as nossas forças
disponham), ela ficaria brilhando por si mesma
como uma joia, como alguma coisa que em si
mesma tem o seu pleno valor. A utilidade ou a
inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este
valor7.
Contudo, como Nagel afirma em seu artigo, apesar dos
esforços de Kant, nós acabamos por avaliar os agentes
moralmente com base nos produtos da boa vontade,
incondicionada e incondicional, mas até mesmo aqueles fatores
que estão além do controle (vontade) dos agentes.
A questão determinante aqui é que Nagel está tratando
de juízos morais, ou seja, da atribuição de responsabilidade:
louvor ou culpa a determinado agente por determinada ação.
Em outras palavras, avaliar moralmente um agente é dizer se
suas ações foram boas ou ruins; isto é geralmente
acompanhado seja por um elogio ou uma censura pela ação em
questão. O ponto de Nagel é que se percebemos que a ação em
questão não está no controle do agente, não estamos inclinados
a culpá-lo ou elogiá-lo, mesmo que possamos atribuir a ele
responsabilidade.
Por exemplo: imagine que você está na casa de um
amigo e, no meio da conversa, um gato passa correndo por
entre suas pernas. Assustado, você dá um passo para o lado e
acaba derrubando um vaso que estava, há gerações, na família
de seu amigo. Você é responsável por ter quebrado o vaso,
porém, não há culpa a ser atribuída a você: a situação estava
além do seu controle (devido ao susto) e você não teve
intenção alguma de fazê-lo.
7 Kant (1974), p. 110.
Thomas Nagel e a sorte moral
182
Do princípio do controle podemos inferir o corolário:
dois agentes não podem ser avaliados diferentemente se as
únicas diferenças entre eles são devidas a fatores além dos seus
controles. Mesmo assim, tendemos a atribuir uma culpa maior
àquele que acertou o tiro e matou sua vítima do que àquele que
por motivos quaisquer (como um pássaro atravessando a
trajetória da bala, por exemplo) não consegue realizar o
assassinato. O fato é que o homicida é responsável pela morte
de alguém, enquanto aquele que não obteve sucesso em sua
tentativa de homicídio, não. Contudo, no que tange à intenção,
ou a vontade, ambos os agentes se assemelham.
Podemos, também, julgar mais duramente um motorista
bêbado que atropela uma criança do que àquele que retorna a
sua casa sem causar dano algum, mesmo que devamos atribuir
a mesma responsabilidade para ambos motoristas. O problema
da sorte moral é a tensão entre a intuição que o status moral de
alguém não pode ser afetado pela sorte e a possibilidade da
sorte desempenhar um papel determinante no status moral de
um agente. O que Nagel sugere, é que tal intuição é correta e é
um dos pilares de nossas noções sobre a moralidade, mas que a
sorte inevitavelmente influencia a idoneidade moral de um
agente8.
O princípio do controle declara que somos passíveis de
juízos morais apenas na medida em que nossas ações estão em
nosso controle. Mas devemos ter em mente que existem muitas
formas de juízos morais. Podemos ter em mente os juízos
aretaicos, que dizem respeito ao caráter de um agente moral, se
ele é “bom” ou “mau”, por exemplo. Ou podemos julgar
estados de coisas, juízos axiológicos, concernentes às ações das
pessoas como “bons” ou “maus”. Podemos, também, julgar
ações como “corretas” ou “erradas” – os juízos deônticos. Há
também os juízos de responsabilidade, culpa ou louvor9. Tais
8 Latus (2001), p.5.
9 Nelkin (2013); Justin (1996).
Paulo Henrique de Toledo
183
distinções entre espécies de juízos pode ser lida em paralelo
com a distinção que Nagel faz entre os tipos de sorte moral10
.
2. Quatro tipos de sorte moral
Nagel aponta quatro tipos de casos onde a sorte
influencia na moralidade. Podemos chamá-las de sorte
resultante, sorte circunstancial, sorte constitutiva e sorte
causal. A sorte resultante diz respeito ao resultado da ação. A
sorte circunstancial diz respeito às circunstâncias, ou seja, os
tipos de situações, os graus de tentação ou dificuldades que o
agente moral atravessa. A sorte constitutiva diz respeito ao
caráter do agente moral, quem ele é, quais são suas inclinações,
capacidades e temperamento. A sorte causal, por fim, diz
respeito a como o agente é determinado pelas circunstâncias
antecedentes: aqui entramos no debate entre livre arbítrio e
determinismo, o que acarreta nossas atribuições de
responsabilidade ao agente11
. A seguir, vamos olhar mais
detalhadamente cada tipo de sorte moral.
2.1 Sorte resultante
Sorte resultante, ou sorte consequencial, diz respeito ao
modo como as coisas acontecem. Nagel aponta a sorte
resultante como o caso que Kant tinha em mente na passagem
já citada da Fundamentação. Nagel ilustra a relevância dos
resultados efetivos das ações de um agente em dois tipos de
casos: (a) casos de negligência e (b) casos de decisão sobre
incerteza12
. Vamos considerar cada um destes casos.
10
Araújo (2011), p. 172. 11
Nagel (1993), p. 60. 12
Ibidem, p. 61.
Thomas Nagel e a sorte moral
184
Imagine duas situações semelhantes onde alguém é
negligente ao não apagar uma fogueira, acesa por outro agente.
Na primeira situação, digamos, uma forte chuva cai e,
apagando o fogo, impede que algo pior aconteça. Na segunda
situação, porém, uma casa próxima pega fogo e, no incêndio,
uma criança acaba morrendo. É obvio que em ambas situações
o resultado se deve por fatores além do controle do agente, no
sentido de que está além do controle do agente que a chuva
caia, por exemplo. Neste caso, o resultado é determinado por
pura sorte, boa ou ruim. Como ambos os agentes foram
negligentes, pode parecer que ambos são culpados e
responsáveis no mesmo grau. Contudo, tendemos a julgar cada
um dos casos diferentemente. Até mesmo os agentes em
questão avaliariam diferentemente suas negligências: enquanto
o “sortudo” poderia sentir uma leve culpa, o desafortunado se
censuraria muito mais duramente pelo terrível resultado de sua
ação13
.
Nos sistemas legais, também, a relevância de resultados
fortuitos é uma suposição básica no julgamento das ações de
um agente. Para usar um exemplo já dado, vemos uma grande
diferença na pena pela tentativa de homicídio dos homicídios
efetivos, mesmo que tenha sido apenas uma questão de sorte
que tal homicídio tenha sucedido14
.
Outro caso onde a avaliação moral depende do
resultado é nas ações feitas por incerteza. Nagel ilustra este
caso com o exemplo do revolucionário15
. Se alguém decide
levantar uma revolução contra um governo tirano, tal agente
está assumindo um risco moral. Se for bem sucedido, será
considerado um herói moral, um salvador. Se falhar, contudo,
pode ser culpado pela morte de cidadãos inocentes16
.
13
Statman (1993), p. 13-4. 14
Ibidem, p. 14. 15
Nagel (1993), p. 61-2. 16
Statman (1993), p. 15.
Paulo Henrique de Toledo
185
Casos de negligência e incerteza, contudo, possuem
suas semelhanças e diferenças. Em ambos os casos o agente é
julgado com base nos resultados de sua ação. Também, em
ambos os casos, o agente contribui de algum modo com o
resultado, seja por negligência ou por boa ou má deliberação.
Em casos de decisão sob incerteza, mesmo que o agente possa
ter deliberado bem, ele pode ser responsável pelo resultado.
Contudo, em casos de negligência, o agente é sempre digno de
culpa, independente do resultado, sendo este determinante no
grau de culpabilidade no status moral do agente17
.
2.2 Sorte circunstancial
A sorte circunstancial, também chamada de sorte
situacional, se refere às circunstâncias em que o agente se
encontra. Nagel usa o exemplo do nazismo para ilustrar este
problema.
Os cidadãos comuns da Alemanha nazista poderiam
agir heroicamente e se opor ao regime. Enquanto os cidadãos
de outros países, podem nunca chegar a tal nível de
culpabilidade por apoiar um governo tirano, muitos alemães
podem ser culpados pelo simples fato de terem nascido na hora
e na época errada. Para Nagel, “julgamos as pessoas por aquilo
que elas fazem, ou falham em fazer, não apenas por o que elas
fariam se as circunstancias tivessem sido diferentes18
”.
Considere o caso de um oficial nazista que recebe
ordens de cometer atos desumanos. Ele seria digno de culpa
moral mesmo que as circunstâncias que o levaram a cometer
tais atos estivessem além de seu controle. Mas, se por outros
motivos, contudo, ele fosse transferido pela sua empresa para
uma filial na Argentina, em 1929, é possível que tenhamos uma
17
Ibidem, p. 15. 18
Nagel (1993), p. 66.
Thomas Nagel e a sorte moral
186
avaliação moralmente diferente sobre ele. Muitas vezes, o que
fazemos, ou deixamos de fazer, se deve pelas circunstancias
onde nos encontramos. E isto não impede que, por ventura,
sejamos julgados negativamente por isso. Este é o caso da sorte
circunstancial.
Um exemplo clássico que podemos encontrar na
literatura de sorte circunstancial é o de Raskolnikov, na obra
Crime e Castigo, de Dostoiévski. Raskolnikov, um jovem
educado para esperar um certo estilo de vida, de certa riqueza e
autonomia para liberar-se em seus impulsos acadêmicos, acaba,
assassinando uma velha usurária por seu dinheiro. As
circunstâncias que o conduziram a cometer tal ato são
complexas e não estão no total controle do jovem. O fato de ter
de sobreviver com pouco dinheiro, ver sua irmã tendo que se
casar com um homem velho para sobreviver, o fato de a velha
usurária não ser uma boa pessoa (e segundo quem a conhece
não “merecer estar viva”), tudo acaba conspirando para que
Raskolnikov tome sua decisão (e Dostoiévski genialmente
constrói o teste moral pelo qual o personagem passa) e acabe
cometendo o crime.
Outros casos de sorte circunstancial dizem respeito aos
dilemas morais. Nestes casos, o agente se vê entre a escolha de
dois cursos de ação que podem ser considerados ruins. Desta
forma, as circunstâncias levam o agente a não poder escapar do
erro. Mesmo que Nagel afirme que os dilemas morais sejam
casos incomuns de sorte circunstancial, podemos admitir que
eles sejam casos padrão de sorte circunstancial. Certo que há
apenas um curso de ação correto a seguir, o agente sempre terá
a tentação (moral) de seguir o outro curso. Como no caso de
Agamenon, que teve de sacrificar sua filha Ifigênia à Ártemis,
para que os bons ventos soprassem quando o exército grego
partisse para a guerra de Tróia19
. Ele teve todas as razões para
não fazê-lo: ele teve má sorte circunstancial.
19
Williams (1973), p. 173
Paulo Henrique de Toledo
187
2.3 Sorte Constitutiva
A sorte constitutiva diz respeito ao caráter do agente,
ou, em outras palavras a quem o agente é. Os traços de
personalidade, as disposições. Como nossos genes, os cuidados
que tivemos e outras influências ambientais contribuem para
nos tornar quem somos – e como não temos controle sobre isto
– podemos inferir que aquilo que somos é, em muitos aspectos,
uma questão de sorte20
. Nagel comenta que não devemos
louvar ou culpar as pessoas por qualidades que não estão sob
seus controles.
A influência da sorte constitutiva representa um estrago
em nossas intuições de que iniciamos em igualdade dentro da
esfera moral, e que todos nós temos a mesma condição para
atribuição de responsabilidade. Se a existência da sorte
constitutiva não for descartada, temos de aceitar que não somos
todos iguais, e que certas pessoas tem vantagens ou
desvantagens em comparação com as outras, ao menos no que
diz respeito da ação moral. Tal consideração, sobre a
inevitabilidade de algumas de nossas decisões morais, deve ter
algum impacto em nossas noções de responsabilidade e
culpabilidade21
.
A discussão sobre a sorte constitutiva remonta à
importância da relação entre natureza e moralidade. Aristóteles
já falava da distinção entre tendências naturais, objetos da
sorte, e escolhas racionais e disposições desenvolvidas, objetos
da moralidade. Mas, como podemos dizer que nossa habilidade
de fazer escolhas e formar nosso próprio caráter não é,
também, uma questão de sorte?
20
Nelkin (2013), p. 4. 21
Athanassoulis (2005), p. 21.
Thomas Nagel e a sorte moral
188
4.4 Sorte causal
Por fim, temos a sorte causal, ou sorte em “como
alguém é determinado por circunstâncias antecedentes”. Este é
o tipo de sorte menos trabalhado por Nagel em seu artigo. Ele
aponta que a sorte causal remonta ao velho debate do livre
arbítrio. O problema, a qual Nagel se refere, reside no fato de
que nossas ações – mesmo os atos da mais boa vontade – são
consequências de algo que não está em nosso controle. Se
assim o for, nem nossas ações, nem mesmo nossa vontade, são
livres. E, desde que a liberdade é a base para a atribuição de
responsabilidade, não podemos ser responsáveis por nossa
vontade22
.
Esta relação entre a controvérsia sobre determinismo e
livre arbítrio e as considerações sobre a sorte causal podem,
como se sugere, ser aplicada ao problema da sorte moral como
um todo. Assim como as preocupações sobre a compatibilidade
entre livre arbítrio e determinismo, as preocupações sobre a
sorte moral iniciam quando percebemos o quanto daquilo que
deveria ser moralmente significante sobre nós mesmos é
simplesmente empurrado sobre nós, quer queiramos ou não23
.
Considerações finais
O problema da sorte moral foi cunhado para ser um
paradoxo. O próprio Nagel assume que o problema
aparentemente não tem solução24
. Apesar disso, desde os anos
70, vários autores remontaram à questão tentando solucioná-lo
em partes ou totalmente. Algumas críticas foram feitas aos
tipos de sorte apontados por Nagel – seja na contribuição para
22
Nelkin (2013), p. 4. 23
Latus (2001), p. 8. 24
Nagel (1993), p. 68.
Paulo Henrique de Toledo
189
enriquecimento dos argumentos ou na elaboração de uma
crítica negativa, sobre a (não) validade dos mesmos.
De todo modo, o problema parece, a despeito do debate
subsequente, ainda estar aberto. Mesmo que haja aqueles que
negam a sorte moral como um todo, ainda podemos encontrar
elementos em diversos exemplos morais, como os que
trabalhamos neste artigo, onde a sorte parece sim influenciar
nossas concepções sobre a moralidade.
Contudo, há algo em nossas concepções sobre agencia
moral que é incompatível, tanto com a ideia das nossas ações
serem eventos, ou os agentes, coisas. Mas, na medida em que
determinantes externos daquilo que alguém fez é gradualmente
exposto, seja nos efeitos de suas consequências, caráter ou da
própria escolha, vai se tornando claro que podemos (e talvez
devamos) olhar nossas ações como eventos, e os agentes como
coisas.
Assim, sob esta perspectiva, se torna cada vez mais
delicado atribuir real responsabilidade aos agentes. Por mais
que possamos pensar uma agência livre, parece complicado, no
mundo real, nos nossos juízos cotidianos, pensar a agência e os
próprios agentes como livres de fatores fortuitos. Uma das
consequências possíveis, de assumirmos a existência de uma
sorte moral, ou de aderirmos ao princípio do controle, seria de
cancelarmos (ou refrearmos) nossos juízos morais.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Fernando. Sorte moral, caráter e tragédia pessoal.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC,
2011.
ATHANASSOULIS, Nafsika. Morality, moral luck and
responsibility. London: Palgrave Mcmillan, 2005.
Thomas Nagel e a sorte moral
190
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos
costumes. Coleção Os Pensadores 1ed., Vol. XXV. São Paulo:
Abril Cultural, 1974.
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Philosophy, 2001.
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Moral luck. State University of New York Press, 1993.
NELKIN, Dana K. Moral Luck. Stanford Encyclopedia of
Philosophy, 2013.
NUSSBAUM, Martha. A fragilidade da bondade: fortuna e
ética na tragédia e na filosofia grega. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
STATMAN, Daniel (Ed.). Moral luck. State University of
New York Press, 1993.
WILLIAMS, Bernard. Problems of the self. Cambridge:
Cambridge University Press, 1973.
191
ÉDIPO-REI NO STADTTHEATER KÖNIGSBERG
Rômulo Eisinger Guimarães1
Entendendo o que chegou até nós sob o título Poética2
(Perí Poietikés) como Da arte poética (Perí Téknes Poietikés)
tem-se uma noção sobre o que aborda a obra aristotélica: trata-
se, aqui, de uma espécie de manual, o qual busca mostrar como
se produz – conscientemente – uma obra de arte (GRASSI ,
1975, p. 121).
Sem perder de vista a pintura, a música e as demais
artes, Aristóteles discorre de modo mais expressivo sobre a
tragédia, definindo esta sumariamente como “imitação de uma
ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em
linguagem ornamentada [...] não por narrativa, mas mediante
atores, e que, suscitando o ‘terror e a piedade, tem por efeito a
purificação dessas emoções’” (ARISTÓTELES, POI, §§ 13-
14). Disso se segue que a tragédia (i) enquanto “imitação”
(mimese) – entendida como “um tipo especial de representação
[...], grosso modo, representação ficcional” (BARNES, 1995,
p. 265-276) – está ligada a um sentimento de prazer, pois
1 Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]
2 Quanto às citações das obras de Aristóteles e Kant atenho-me às
paginações originais, utilizando ainda as seguintes abreviações: Crítica da
Faculdade do Juízo (CFJ), Ética a Nicômaco (ET. NIC.), Fundamentação da
Metafísica dos Costumes (FMC), Poética (POI), Política (POL). Quanto aos
grifos destas e das demais obras, os itálicos dizem respeito aos textos
originais; negritos são grifos meus.
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
192
[...] imitar é congênito no homem (e nisso
difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele
o mais imitador, e, por imitação, aprende as
primeiras noções), e os homens se comprazem
no imitado. [...] Tal é o motivo por que se
deleitam perante as imagens: olhando-as,
aprendem e discorrem sobre o que seja cada
uma delas (ARISTÓTELES, POI, 1448 b 4-9);
e (ii) enquanto algo que tem por efeito a purificação dos
sentimentos de terror e piedade (catarse) – consistindo na
“razão de ser da tragédia” (BARNES, op. cit., p. 277) de modo
que “o profundo sucesso [da catarse] vale como sinal de
qualidade [da tragédia]” (HÖFFE, 2008, p. 71) – deve ela, a
tragédia, ser elaborada de tal modo que suscite tais sentimentos
no espectador – e isso através da boa construção de um mito.
Sendo tragédia imitação não de qualquer ação, mas de
uma ação de caráter elevado – completa, com sentido em si
mesma (GRASSI, op. cit., p. 126), isto é, mimesis da práxis – o
modo, a forma como é tramada a ação, a composição das
palavras se dá através do mito trágico (fábula, estória), o qual é
distinguido por Aristóteles do mito tradicional. Tomemos o
exemplo do rei tebano Édipo – enquanto figura mitológica, “de
cuja história se possa tirar argumento de tragédias”
(ARISTÓTELES, POI, 1454 a 9) – e da personagem
apresentada por Sófocles em Édipo-Rei como “o primeiro dos
homens”, tal que “ninguém em sua cidade podia contemplar
seu destino sem inveja” (SÓFOCLES, 2013, p. 92). Se tragédia
é mimese de uma ação completa que suscita sentimentos de
terror e piedade, e como tal produz um prazer que lhe é
próprio, o sentimento de prazer é prazer com a imitação, pois
reconhecendo como ficção, sentimos prazer com algo que
usualmente não sentiríamos3. Assim, se sentimos prazer com a
3 E.g., “coisas que olhamos com repugnância” (Cf. ARISTÓTELES, POI, §
14).
Rômulo Eisinger Guimarães
193
peça de Sófocles é porque se trata de uma imitação, de uma
fábula que modela (torna uno) um determinado recorte da vida
do rei tebano. O mito trágico “ordena o assunto de modo
unívoco e decidido, destaca-o da sua restante conexão com o
mundo” (AUERBACH, 2013, p. 16) de tal forma que a
integridade da ação não seja prejudicada.
Diferente do que se passa com o historiador – o qual se
ocupa da realidade ordinária, do que é/foi (expondo “não uma
ação única, mas um tempo único” (ARISTÓTELES, POI, 1459
a 17), i.e., eventos que não tem uma relação de necessidade
entre si, transcorrendo “de maneira muito menos uniforme,
mais cheia de contradições e confusões” (AUERBACH, op.
cit., p. 16) – não é ofício do poeta narrar o que aconteceu, mas
representar o que poderia acontecer, o que é possível/plausível
segundo a verossimilhança e a necessidade. Consistindo o mito
trágico do “conjunto elaborado de elementos escolhidos
segundo uma ordem necessária, que se opõe à diversidade
aleatória dos acontecimentos reais” (COSTA, 1992, p. 22), não
se preocupa o poeta com o fato empírico. Não obstante, dentro
da lógica da construção da tragédia, deve haver uma coerência
– lógica esta que convence o público, leva-o a reconhecer (que
reconhece) como plausível o que se apresenta diante dele,
sendo a base da catarse – o efeito produzido pela tragédia – a
purgação/purificação de suas emoções.
Embora uma definição unívoca da função e do
significado do termo “catarse” tenha se mostrado um dos
maiores problemas dentre as interpretações do texto
aristotélico4, aponta-se, habitualmente, para dois significado na
4 Para uma relação ilustrativa das versões e interpretações propostas, do
século XVI ao século XVIII, ao problema “catarse de/catarse operada por
sentimentos de terror e piedade”, ver o comentário de Eudoro de Sousa do §
27 Cf. ARISTÓTELES. Poética (tradução, prefácio, introdução,
comentários e apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1986.
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
194
tradição pré-aristotélica (quais sejam: um significado medicinal
– referente à purgação, ao efeito de laxativos –; e um
significado religioso – referente à purificação de “pessoas
infectadas”) e que ainda hoje são objeto de disputa entre
comentadores5. Recorrendo à Política, busco aqui uma
justificação de minha preferência à catarse enquanto
purificação de emoções, pois uma vez que Aristóteles afirma
que
[...] alguns [indivíduos] são particularmente
predispostos a este movimento [da alma. i.e., às
paixões]; mas, [por efeito] dos cânticos
sagrados, quando se servem daqueles que são
aptos a produzir na alma a exaltação religiosa,
vemo-los pacificados, como se tivessem sido
sanados e purificados (ARISTÓTELES, POL,
1342 a 4 ss.)
não se atribui à arte o poder de eliminar as emoções, mas antes,
purifica-las – entendendo com isso tornando-as
“apropriadamente sentidas (BARNES, op. cit., p. 279). Até
aqui não fica claro, contudo, de que maneira a tragédia
possibilitaria que “sentíssemos algo de modo apropriado” e,
ainda, o que significaria isso para o espectador. A fim de
buscar uma resposta, devemos atentar àquilo que Aristóteles
expõe sobre a construção do mito trágico e o objeto da mimese.
5 Ao passo que Sousa e Barnes sejam mais favoráveis à uma vinculação da
catarse (e do prazer trágico que dela decorre) à purificação dos sentimentos
de terror e piedade (Cf. SOUSA, E. A essência da tragédia. In.:
ARISTÓTELES. Poética (tradução, prefácio, introdução, comentários e
apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da
Moeda, 1986, p. 99 e BARNES, J. Rhetoric and poetics. In.: IDEM (ed.).
The Cambridge companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University
Press, 1995, pp. 277-279), Höffe parece entendê-la em seu significado
medicinal (Cf. HÖFFE, O. Aristóteles (trad. Roberto Hofmeister Pich).
Porto Alegre: Artmed, 2008, p. 70).
Rômulo Eisinger Guimarães
195
***
É já na primeira definição da tragédia onde Aristóteles
afirma que a imitação da ação completa (e sua consequente
trama dos fatos, i.e., o mito) produz sentimentos de terror e
piedade no espectador (e, prosseguindo, diz que o efeito da
tragédia é a purificação desses sentimentos) (ARISTÓTELES,
POI, 1449 b 24). Evidente é que nem todo mito suscitará tais
sentimentos, e o próprio Aristóteles indica o que seria “a
situação trágica por excelência”6. Imitando casos que suscitem
terror e piedade, a tragédia não deve representar nem homens
muito bons que passem da boa para a má fortuna – o que soaria
repugnante –, nem homens maus que passem da má para a boa
fortuna – visto que não há nada menos trágico – uma vez que
isso “não é conforme aos sentimentos humanos, nem desperta
terror ou piedade” (ARISTÓTELES, POI, 1453 a). Melhor
seria se se tratasse de um caso intermediário (como Édipo, por
exemplo) o qual, ainda que dotado de prestígio e fortuna,
considerado o “primeiro de todos os mortais” nem por isso
igualado aos deuses (SÓFOCLES, op. cit., p. 7). Se Édipo,
homem honrado de resto (e, não obstante, homem como
qualquer um de nós) incorresse em um erro (hermatia) não em
função de seu caráter – antes, por desconhecimento – de tal
modo que seu sofrimento seja (em parte) desmerecido e ele,
Édipo, torna-se “culpado sem ter culpa”, tal situação geraria
em nós – espectadores da tragédia – simultâneos sentimentos
de terror (pelo “semelhante desditoso”) e piedade (pelo “que é
infeliz sem o merecer”) (ARISTÓTELES, POI, § 69).
A tragédia, enquanto mímesis da práxis, dá a conhecer
as “possibilidades humanas” (GRASSI, op. cit., p. 128).
Através da representação de um erro cometido por uma figura
exemplar, determinados conflitos éticos tornam-se mais
aparentes, distanciados de quaisquer conflitos cotidianos.
Enquanto manifestação das possibilidades das ações humanas e
6 Denominação dada por Eudoro de Sousa no Cap. XIII da Poética
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
196
suas consequências, pode-se atribuir à tragédia uma certa
“importância educativa” (IDEM, p. 143) uma vez que aquele
que participa dela, “mesmo permanecendo só ‘espectador’,
reconhece nelas as próprias possibilidades e perigos,
alcançando a autoconsciência” (IDEM, pp. 148-149). Mas o
que, de fato, se aprende na tragédia?
***
Do que foi dito até então, pode-se perceber que o texto
de Aristóteles nos leva a crer que não apenas o prazer trágico
está, de certa forma, ligado a um (re)conhecimento – no qual o
espectador reconhece (que reconhece) como plausível o que
está diante dele –, mas que, pela simultânea angústia e
comiseração originada pela situação trágica (do herói em
grande sofrimento, em sua desgraça imerecida) nossos
sentimentos são “purificados”, tornam-se “mais
apropriadamente sentidos – sentidos em momentos mais
apropriados, em relação a pessoas mais apropriadas”
(BARNES, op. cit., p. 279) etc. Ora, quão distinto é esse
“sentir-de-maneira-apropriada” da exposição aristotélica das
virtudes, onde tratando da temperança, define temperante como
aquele que
[...] ocupa uma posição mediana [...] [o qual]
nem aprecia as coisas que são preferidas pelo
intemperante [...] nem, em geral, as coisas que
não deve, nem nada disso em excesso [...]não
sofre nem anseia por elas quando estão ausentes
ou só o faz em grau moderado e não mais do
que deve, e nunca quando não deve, e assim por
diante [?] (ARISTÓTELES, ET. NIC., 1119 a
10)
Não estaria então o espectador “purificado de suas
emoções” mais apto a orientar-se pela regra justa da mediania?
Com isso, a tragédia aristotélica propicia ao espectador
(i) de um ponto de vista estético, um sentimento de prazer
Rômulo Eisinger Guimarães
197
advindo da imitação, do reconhecimento; e (ii) de um ponto de
vista moral não apenas um exemplo das possíveis
consequências de suas ações, como também, pela purificação
das emoções do espectador (efeito catártico) a possiblidade
deste senti-las de maneira apropriada – e não mais do que
deveria. Em outras palavras, a tragédia condiciona o espectador
a agir segundo a regra justa da mediania – no que consiste a
excelência característica da virtude dentro da ética aristotélica
(ARISTÓTELES, ET. NIC., 1106 b 20).
***
Voltando à situação hipotética supracitada, estou
disposto a acreditar que Kant admitiria que existe um
sentimento de prazer na tragédia correspondente ao prazer
trágico proposto por Aristóteles (o prazer da imitação, do
reconhecimento), mas que, todavia, este não corresponde ao
sentimento prazer que determina um juízo-de-gosto estético
puro. Pois seria aquele um prazer associado ao conhecimento
(reconhecimento), e este, um prazer produzido pelo jogo-livre
de suas faculdades cognitivas (livre justamente por não formar
conhecimento).
Já na introdução de sua Crítica da Faculdade do Juízo,
Kant aponta que, embora
[...] nós já não sentimos mais qualquer prazer
notável ao apreendermos a natureza [...]
mediante conceitos empíricos, pelos quais a
conhecemos segundo suas leis particulares [...]
[,] esse prazer já existiu noutros tempos, e
somente porque a experiência mais comum não
seria possível sem ele foi-se gradualmente
misturando com o mero conhecimento sem ser
especialmente notado (KANT, CFJ, B XL)
e com isso pode-se pensar que não descartaria o “prazer de
(re)conhecer” defendido por Aristóteles na Poética. Não
obstante, importa para Kant (se tratando de um juízo-de-gosto
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
198
estético) o prazer genuinamente estético resultado da
adequação de um objeto (quer seja uma árvore, uma flor, ou –
porque não? – uma apresentação teatral de Édipo-Rei) às
faculdades de conhecimento (imaginação e entendimento)
postas em relação harmônica em um juízo reflexionante7.
Se para Aristóteles o prazer que é próprio à tragédia –
inerente aos sentimentos de terror e piedade – pode surgir “por
efeito do espetáculo cênico, mas também [...] [pode] derivar da
íntima conexão dos atos [i.e., do mito bem construído afim de
suscitar tais sentimentos no espectador], [sendo que] este é o
procedimento preferível” (ARISTÓTELES, POI, §§ 74-75),
Kant, por sua vez afirma que regras de poéticas de produção
não servem para determinar o prazer genuinamente estético
(KANT, CFJ, B 141).
Em verdade, o que desde o início distingue a Poética
aristotélica da Crítica da Faculdade de Juízo Estética é o fato
de que da primeira extraem-se regras de produção (Perí
Poietikés/Perí Téknes Poietikés) de obras de arte – que forma
deve assumir tal objeto para produzir um determinado efeito
em nós –; ao passo que a segunda versa sobre nosso
ajuizamento (a forma de nossa reflexão) sobre aquilo que
denominamos “belo”. E nesse sentido que deve ser claro o que
Kant tem em mente com o aspecto formal (da reflexão) de um
objeto. Não se trata, aqui, de características – por assim dizer
físicas, materiais – do objeto –, antes, é seu aspecto formal
7 Há de se ter em mente, sobretudo, que a Crítica da Faculdade do Juízo
opera no âmbito da reflexão, e não na esfera da formação de
conhecimentos empíricos determinados. Não por isso, porém, seja ilegítimo
pensarmos o que se encontra além dos limites de nosso conhecimento –
antes, seja mesmo necessário que o façamos (Cf. KANT, CFJ, B XLII).
Com efeito, Kant sugere-nos a tomar o juízo reflexionante quase como uma
função compensatória do conhecimento (em especial se tratando de juízos
teleológicos) e que, embora ocorra na esfera do conhecimento, não produz
conhecimento propriamente dito.
Rômulo Eisinger Guimarães
199
referente à organização de nossas faculdades de conhecimento
relativamente à representação deste objeto.
Claro é que, quando Kant inicia uma argumentação
poetológica8 – e não mais restrita ao juízo-de-gosto –,
inevitavelmente fala da forma do objeto no primeiro sentido (o
que aparentemente gera uma ambiguidade na argumentação
desenvolvida na terceira Crítica).
Mas se tratando de um juízo-de-gosto estético, o que
nos levaria a chamar um objeto “belo” não é a forma da
conformidade a fins do objeto no sentido de como (de que
forma) o mito é construído. Antes, trata-se de como esse objeto
é percebido pela constelação formal das faculdades
transcendentais daquele que julga. O prazer genuinamente
estético, para Kant, não diz respeito ao objeto, mas ao sujeito,
àquilo que acontece com suas formas puras de conhecimento.
Um dado objeto <Gegenstand> que afeta o sujeito –
que adentra sua percepção sensível de forma passiva pelas
formas puras da intuição (Espaço e Tempo) –, para ser
transformado em conhecimento, deve o próprio sujeito evocar
suas faculdades de conhecimento (Imaginação e Entendimento)
e, num ato de sua espontaneidade, classificar isso (este
Gegenstand) segundo as categorias a priori do Juízo: é só então
que pode-se falar com propriedade que se conhece o objeto
<Objekt>.
Pode este mesmo sujeito, entretanto, interromper o
percurso do conhecimento e, por assim dizer, fazer outra coisa
com aquilo que adentra sua intuição sensível que não formar
conhecimento empírico determinado do que seja o objeto em
questão. Evocando suas faculdades sem o fim de produzir
conhecimento, o sujeito “esquematiza sem conceitos” (KANT,
CFJ, B 146), de modo que Imaginação e Entendimento são
8 Como, por exemplo, no § 17 sobre o Ideal de beleza que parece não de
encaixar muito bem no contexto da argumentação kantiana sobre juízos-de-
gosto estéticos puros.
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
200
postos em um jogo-livre no qual ele, o sujeito, reflete
(reflexiona) sobre a própria forma de conhecer os objetos e
desta “percepção refletida” (IDEM, B XLVI) surge o
sentimento de prazer genuinamente estético.
O ponto aqui é que, para Kant, qualquer objeto
<Gegenstand> que adentre nossa percepção sensível como
possível objeto de conhecimento – e uma vez conhecido, passa
de Gegenstand a Objekt – é, também, candidato legítimo a
possibilitar em nós o desencadeamento de outro uso de nossa
faculdade de juízo, um uso reflexionante. Notório é que alguns
objetos seriam mais propensos a estimular esta reflexão, mas
isso não exclui o fato de que qualquer objeto de conhecimento
é passível de reflexão.
Tratando-se de uma tragédia grega tal como Édipo-Rei,
(i) se para Aristóteles o sentimento de prazer relaciona-se aos
sentimentos de terror e piedade suscitados no espectador, e
estes não são continuamente produzidos, mas estão vinculados
a determinados pontos da trama, os quais envolvem a mudança
da boa para a má-fortuna do herói – que cai em um grande
sofrimento do qual é “culpado sem ter culpa” –; (ii) aquilo que
Kant define como o sentimento de prazer genuinamente
estético não é gerado em um momento determinado da
tragédia: a qualquer momento (e não necessariamente pelo
mito, mas também pelo próprio espetáculo cênico) o
espectador pode evocar suas faculdades de conhecimento sem,
contudo, alcançar um conceito determinado ao objeto do juízo.
Assim todo o desenrolar da tragédia – com todos os elementos
que a constituem – é, potencialmente, apto a provocar um
estado mental reflexivo no espectador e do qual provém o
sentimento de prazer genuinamente estético (em linhas gerais,
se o espectador é capaz de um juízo do tipo “Aquilo é uma
cortina”, não há nada que o impeça de realizar um juízo do tipo
“Aquela cortina é bela – com efeito, tampouco se faz
necessário que realize seu juízo deste modo, i.e., pode fazê-lo
Rômulo Eisinger Guimarães
201
da seguinte forma “Aquilo é belo”, sem sequer formar
conhecimento empírico de que se trata de uma cortina).
(Ainda sobre como Kant e Aristóteles veem a produção
de obras de arte convém um breve comentário. Com efeito, a
Poética, como dito, aparece-nos como uma espécie de manual
de produção de uma – bela – obra de arte. E neste ponto
Aristóteles mostra-se tão criterioso na descrição dos elementos
que constituem uma tragédia e, principalmente, na qualidade de
cada um destes elementos – chegando, a hierarquizar os meios
que o poeta dispõe para melhor atingir seus objetivos como,
por exemplo, referindo-se ao reconhecimento, diz-nos que
“melhores são os que derivam da própria intriga [i.e., da
peripécia, da construção do mito]” (ARISTÓTELES, POI, §
98) – que por vezes dá a impressão de que qualquer um que
obedeça suas recomendações estaria apto a escrever, por
exemplo, Édipo-Rei. E Aristóteles não parece oferecer
refutação alguma à pergunta “Porque Sófocles e não eu ou
você poderia escrever Édipo-Rei?” O mesmo, contudo, não se
passa com Kant, o qual, resistente a essa “poética de cartilha”
poderia argumentar que o que difere uma tragédia escrita por
qualquer um de nós da tragédia de Sófocles é o espírito, i.e., a
capacidade de vivificar as faculdades de conhecimento, de pô-
las em um jogo-livre. A isso se soma o que vem sendo dito até
então, a saber: que não apenas o sentimento de prazer não
deriva exclusivamente do mito bem construído, mas que um
mito bem elaborado não dá qualquer certeza da vivificação das
faculdades de conhecimento num juízo reflexionante e, por
conseguinte, não necessariamente suscita um sentimento de
prazer genuinamente estético no espectador. O que se passa na
– mera – construção do mito – e isso vale tanto para Sófocles
quanto para qualquer um de nós – é a estruturação de uma
completude, i.e., um recorte uno que “não se encontra nenhum
exemplo na natureza” (KANT, CFJ, B 194); contudo, “uma
história pode ser precisa e ordenada, mas sem espírito” (IDEM,
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
202
B 192). O fato de uma tragédia ser formalmente perfeita não
oferece garantia alguma de que a mesma desperte um
sentimento de prazer genuinamente estético no público. O que
confere, segundo Kant, esta capacidade à obra seria o espírito,
plasmado pela faculdade do artista de apresentação de ideias
estéticas e uma obra assim constituída “dá muito a pensar, sem
que contudo qualquer pensamento determinado, i.e., conceito
possa ser-lhe adequado” (IDEM, B 193). Com isso fica visto
porque Kant rechaça regras de poéticas de produção: porque
não há nada determinado que possa ser utilizado na elaboração
uma obra de arte a fim de, necessariamente, provocar o jogo-
livre das faculdades de conhecimento de quem ajuíza tal obra.)
***
Por fim, no que toca à esfera da moralidade, Kant até
poderia reconhecer certo valor no “exemplo” dado pela
tragédia de Sófocles como sustasis ton pragmáton (GRASSI,
op. cit., p. 135) – como recomendação da práxis, da ação
completa com um fim em si mesma que envolve uma sabedoria
prática (ARISTÓTELES, ET. NIC., 1140 a 2 – b 25) – mas isso
permanece longe do que tem valor genuíno para a moralidade,
pois “[embora] não se poderia [...] prestar pior serviço à
moralidade do que querer extraí-la de exemplos” (KANT,
FMC, B 29), e embora estes “tornam intuitivo aquilo que a
regra prática exprime de maneira mais geral, [...] nunca pode
justificar que se ponha de lado o seu verdadeiro original, que
reside na razão, e que nos guiemos por exemplos” (IDEM, B
30), uma vez que o princípio supremo da moralidade assenta
fora do mundo físico (da natureza sensível), i.e., no inteligível.
Não obstante, “a espontaneidade no jogo das faculdades
de conhecimento, cujo acordo contém o fundamento [do]
prazer [estético] [...] promove ao mesmo tempo a receptividade
do ânimo ao sentimento moral” (KANT, CFJ, B LVII).
Kant retoma esta ideia mencionada já na introdução da
terceira Crítica no § 59 da mesma, intitulado “Da beleza como
Rômulo Eisinger Guimarães
203
símbolo da moralidade”. Aqui Kant afirma que aquele que
realiza um juízo-de-gosto estético (reflexionante), que no
ajuizamento de um dado objeto põe suas faculdades de
conhecimento em um jogo-livre, experimenta um estado de
auto-afecção que se aproxima (mas não se identifica) a “um
estado-de-ânimo provocado por juízos morais” (IDEM, B 260).
Com isso Kant sugere que o ajuizamento de um objeto
dito “belo” consiste em um tipo de reflexão análogo – daí a
figura do símbolo, aqui distinta do uso corrente simplesmente
contrastado do modo de representação intuitivo – à reflexão
moral, concordando o juízo-de-gosto estético e a reflexão
moral “simplesmente segundo a regra deste procedimento [...]
simplesmente segundo a forma da reflexão” (IDEM, B 255).
Se “o estado mental, que produz a mera contemplação
do objeto belo [...], instancia um estado de coisas genérico, que
caracteriza todos os sujeitos do conhecimento empírico”
(KULENKAMPFF, 1992, p. 71), o que justificaria uma
pretensa comunicabilidade do sentimento de prazer resultante
de uma experiência genuinamente estética tem caráter
subjetivo, i.e., refere-se a algo que acontece no sujeito – e isso
segundo “o pressuposto de que todos os homens têm por assim
dizer a mesma constituição” (IDEM, p. 79).
Com efeito, ainda que “na medida do possível elimina-
se aquilo que no estado da representação é matéria, i.e.,
sensação, e presta-se atenção pura e simplesmente às
peculiaridades formais de sua representação ou de seu estado
de representação” (KANT, CFJ, B 157), aquilo que alguém
tenta comunicar com seu juízo “Isto é belo” (sensus communis
aestheticus) – e não simplesmente “Isso é belo para mim” –
tem caráter meramente subjetivo. E nesse sentido, por
exemplo, difere da Lei Moral, calcada num Factum da Razão
que, para Kant, possui validade objetiva.
Já em sua “Doutrina de Método da Faculdade de Juízo
Teleológica” Kant afirma que
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
204
as belas artes [e não só estas, mas também o
belo na natureza] [...] que por um prazer
universalmente comunicável [...] ainda que não
façam o homem moralmente melhor <sittlich
besser>, tornam-no porém civilizado <gesittet
machen>, sobrepõem-se em muito à tirania da
dependência dos sentidos e preparam-no assim
para um domínio no qual só a razão deve
mandar (IDEM , B 395).
Com isso Kant não afirma que o belo é moral. Antes,
pode-se com boas razões pensar que o estado de reflexão que
nos encontramos durante um juízo reflexionante– e do qual
provém o sentimento de prazer – nos deixa em condições de
assumir uma postura moral – sobretudo porque aquele que
julga algo como “belo” o faz não com base em suas condições
particulares, mas dentro de uma pretensa perspectiva
universalmente válida (a qual, distinta do que ocorre em juízos
morais, não baseia-se em conceitos determinados, e que, ainda
sem a mesma dignidade teórica de uma ideia da Razão ou de
uma forma pura do Entendimento, não é o juízo-de-gosto
estético algo que deva ser posto de lado dentro do sistema
crítico da Razão).
***
Do exposto acima penso ficar evidentes algumas
diferenças entre a Poética aristotélica e a teoria kantiana dos
juízos-de-gosto estéticos puros: (i) que a primeira versa sobre
uma poética de produção de “obras belas”, ao passo que a
segunda volta-se para o ajuizamento daquilo que chamamos
“belo” e (ii) que aquela apresenta-se como um manual definido
e valorativo-hierárquico de como o poeta deve construir sua
obra; enquanto esta não se baseia em quaisquer regras que
justifiquem ou fundamentem o juízo-de-gosto estético – uma
vez que estamos no âmbito da reflexão e não mais da
determinação.
Rômulo Eisinger Guimarães
205
Curioso é, todavia, que Kant, na situação hipotética
elaborada no início deste trabalho, poderia ter acesso àquilo
que Aristóteles propõe em sua Poética: experienciaria algo de
estético e algo relativo à moral – muito embora tanto este
“estético” quanto este “moral” não condissessem àquilo que
para Kant seja genuinamente estético e genuinamente moral.
Este poderia seguramente afirmar: “Sim, ao assistir Édipo-Rei,
tive uma experiência estética e vivenciei algo que, por assim
dizer, levou-me a tocar a esfera da moralidade”, conquanto não
estaria necessariamente fazendo referência àquilo proposto por
Aristóteles.
E finalmente cabe indagar se Kant admitiria uma
experiência do tipo catártica tal como apresentada por
Aristóteles de forma quase aforística no § 27 de sua Poética –
que pela purgação dos sentimentos de terror e piedade o
homem reconhece suas possibilidades.
Disponho-me a acreditar que o filósofo de Königsberg
não apenas assumiria o valor da experiência catártica, como na
sua terceira Crítica assinala algo que se aproxima da ideia
aristotélica quando, no segundo livro da Crítica da Faculdade
de Juízo Estética, aponta que o sujeito diante do dito “sublime”
aproxima-se do suprassensível, i.e. do universo moral, pois “na
medida em que podemos ser conscientes de ser superiores à
natureza em nós e através disso também à natureza fora de
nós” (IDEM, B 109) reconhecemo-nos como habitantes de dois
mundos: o da natureza sensível e o inteligível. Discorrer mais
detalhadamente, contudo, sobre o efeito catártico do sublime
em Kant é tarefa que reservo a outro trabalho.
Referências bibliográficas
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textos José Américo Motta Pessanha). São Paulo: Nova
Cultural, 1987.
Édipo-Rei no Stadttheater Königsber
206
_______. Poética (tradução, prefácio, introdução, comentários
e apêndices de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1986.
AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na
literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2013.
BARNES, J. (ed.). The Cambridge companion to Aristotle.
Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
COSTA, L. de M. A Poética de Aristóteles: mimese e
verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992.
GRASSI, E. Arte como antiarte: a teoria do belo no mundo
antigo (trad. Antonieta Scarabelo). São Paulo: Duas Cidades,
1975.
HÖFFE, O. Aristóteles (trad. Roberto Hofmeister Pich). Porto
Alegre: Artmed, 2008.
HÖFFE, O. Kant (trad. Christian Viktor Hamm e Valerio
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KULENKAMPFF, J. Do gosto como uma espécie de sensus
communis, ou sobre as condições da comunicação estética
(trad. Peter Naumann). In.: ROHDEN, V. (Org.). 200 anos da
Crítica da Faculdade do Juízo de Kant. Porto Alegre:
UFRGS, 1992.
KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo (trad. Valerio
Rohden e António Marques). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2012.
________. Fundamentação da Metafísica dos Costumes
(trad. Paulo Quintela). Lisboa: Edições 70, 2011.
SÓFOCLES. Édipo-Rei (trad. Paulo Neves). Porto Alegre:
L&PM, 2013.
207
FATO E ESSÊNCIA NO MÉTODO
FENOMENOLÓGICO DE HUSSERL
Rudimar Barea1
1. A Fenomenologia de Husserl
Edmund Husserl2 foi um dos filósofos mais influentes
do século XX, marcando dentro da tradição filosófica passos
importantes para a continuidade dos debates contemporâneos.
A sua principal contribuição vem de seu método de pesquisa; a
fenomenologia3, tema que abre campo de investigação para
vários temas filosóficos, desde elementos antropológicos e
ontológicos, bem como para a constituição de valores e da
ética, além de influenciar outros movimentos filosóficos e
1 Bacharel em Filosofia pelo Instituto Superior de Filosofia Berthier
(IFIBE); Mestrando em Filosofia na UFSM: bolsista CAPES/FAPERGS
trabalhando ‘A questão da empatia de Edith Stein' sob orientação do
Professor Silvestre Grzibowski. ([email protected]) 2 Husserl nasceu em Prossnitz (na Morávia) em 1859. Estudou matemática
em Berlim, onde seguiu os cursos de álgebra de Weierstrass. Laureou-se
em1883 com uma tese sobre o cálculo das variações. Em Viena, seguiu as
aulas de Brentano [...]. Morreu em 1938. Ao morrer, Husserl deixou grande
quantidade de inéditos (cerca de quarenta e cinco mil páginas
estenografadas), que, salvas com grande esforço durante a guerra pelo padre
belga Hermann van Breda, constituem agora o “Arquivo Husserl” de
Louvain (REALE, 2008, p. 180). 3 A palavra fenomenologia é derivada de duas palavras gregas: fenômeno
(aquilo que se mostra/aparece, se manifesta) logia (pensamento, capacidade
de refletir); no entanto poderíamos dizer que fenomenologia é uma reflexão
sobre um fenômeno que se mostra, segundo Ales Bello o problema está em
saber; “o que é que se mostra e como se mostra” (2006, p. 18).
Fato e essência
208
culturais4. Husserl fora considerado por muitos como um
revolucionário na pesquisa filosófica, como afirma Stein, que,
foi sua discípula, aluna e assistente:
Querer enquadrar Husserl nos esquemas das
escolas tradicionais é um esforço em vão. A
filosofia do nosso tempo se divide em dois
grandes grupos: por um lado encontramos a
filosofia católica que continuava a tradição
escolástica, sobretudo, de São tomas de Aquino
e a filosofia que insistentemente se
autodenomina “moderna” que nasce com o
renascimento e alcança seu ponto culminante
com Kant (STEIN, 2003, p. 40).
Para Stein, Husserl cumpre esse papel de rompimento
com as tradições decorrentes até a modernidade; “Quando
começou a filosofar de forma independente não se deixou
conduzir por nenhum escrito precedente, se não por as questões
mesmas” (2003, p. 41). Sokolowski, pesquisador
contemporâneo da fenomenologia confirma a argumentação, e,
reafirma a sua influência nas pesquisas filosóficas pós-
modernas: “Ele não pode ser considerado o continuador de
uma tradição que tomou forma antes dele; mesmo Martin
Heidegger, como competente filósofo que era, pode ser
compreendido somente na tradição aberta por Husserl” (2012,
p. 223).
Para adentrar na concepção do método fenomenológico
proposto por Husserl, é exigida do pesquisador dedicação plena
e espírito filosófico, pois, a tarefa da fenomenologia pretende
4 A fenomenologia influenciou muitos outros movimentos filosóficos e
culturais, tais como: hermenêutica, estruturalismo, formalismo literário e
desconstrutivismo. Durante todo o século XX foi o maior componente
daquilo que se denominou “filosofia continental”, em oposição à tradição
“analítica” que tipificou a filosofia na Inglaterra e nos Estados Unidos
(SOKOLOWSKI, 2012, p. 11).
Rudimar Barea
209
colocar em base firme todos os procedimentos científicos e
experiências pré-científicas, como uma nova forma de
orientação.5Com efeito, avançar progressivamente até uma
realidade mesma, seria um processo necessário para definir
com precisão os termos e as coisas em si, o que caracteriza a
fenomenologia como uma ciência das essências, como Husserl
define em sua obra capital Ideias I:
A fenomenologia pura ou transcendental não
será fundada como ciência de fatos, mas como
ciência das essências (como ciência ‘eidética’);
como uma ciência que pretende estabelecer
exclusivamente ‘conhecimento de essências’ e
de modo algum ‘fatos’. [...] A passagem à
essência pura proporciona, de um lado,
conhecimento eidético do real, mas de outro, no
que respeita a esfera restante, ela proporciona
conhecimento eidético do irreal. (2000, p. 28).
Husserl atribui à fenomenologia a tarefa de ser uma
ciência ‘a priori’, ‘eidética’, que possibilita o estudo em torno
das essências, como também da ciência das essências. Por um
lado quer afirmar a autonomia daquela ciência física -
matemática, e de outro lado, reivindicar a prioridade da
pesquisa fenomenológica, que tem uma tarefa essencial:
Determinar os gêneros supremos de concreções
no círculo de nossas intuições individuais e,
desta maneira, levar a cabo uma distribuição de
todos os seres individuais intuídos segundo
regiões do ser, cada uma das quais designando
por princípio, já que por fundamentos eidéticos
5A tarefa da fenomenologia consiste em colocar sobre uma base firme todos
os procedimentos científicos (tal como se exercitam nas ciências positivas)
e as experiências pré-científicas do qual estas se fundam; em suma toda a
atividade do espírito que reivindica para si o caráter racional [...]a filosofia,
por sua vez, tem que converter em objeto de sua investigação tudo aquilo
que os outros âmbitos supõem como evidentes (STEIN, 2003, p. 61).
Fato e essência
210
radicais, uma ciência (ou grupo cientifico)
eidética e empírica diferente. (2006. 57).
Para chegar a esta nova ciência que busca ser diferente
da lógica pura, Husserl destaca que foi preciso “traçar um
esquema como exemplo de constituição fundamental, dela
proveniente, de todos os conhecimentos e objetividades de
conhecimento possíveis” (2006, p. 56). No entanto, para obter
sucesso seu método deveria se diferenciar dos demais, e ai
surge o aspecto da redução fenomenológica, como um
caminho6 para se chegar à compreensão do sentido das coisas.
O caminho encontrado seria o da redução fenomenológica,
pelo qual, o ser humano na atribuição de suas capacidades
busca de compreender o sentido das coisas, mas para isso deve
suspender - “colocar entre parênteses” - o que é factual,
delimitando a pesquisa na direção das coisas mesmas, ou seja,
na sua essência.
2. A redução fenomenológica: Do fato a essência.
Em poucas palavras é impossível destacar todos os
aspectos e peculiaridades do método fenomenológico7, bem
como a importância da redução eidética e transcendental na
proposta husserliana. No entanto, nos centraremos em fazer
uma análise levando em conta os aspectos que estão
correlacionados a fatos e essência, temas estes que estão
presente no objetivo da fenomenologia segundo Husserl, assim
como segue:
6 Do Grego: Méthodo: ‘odos’ que designa estrada e ‘meta’ que significa por
meio de, através. 7Os leitores que ainda não conhecem o método fenomenológico, indica-se a
leitura de Ideias I de Husserl.
Rudimar Barea
211
A fenomenologia procede elucidando
visualmente, determinando e distinguindo o
sentido. Compara, distingue, enlaça, põe em
relação, separa em partes ou segrega momentos.
Mas tudo do puro ver, do olhar que capta a
essência do fenômeno. Não teoriza nem
matematiza; não leva a cabo explicações
algumas no sentido da teoria dedutiva. Ao
elucidar os conceitos e proposições
fundamentais que, como princípios, dominam a
possibilidade da ciência objectivante [...],
terminam onde começa a ciência objectivante.
É, pois, ciência, num sentido totalmente
diferente, com tarefas inteiramente diversas e
com um método completamente distinto. A sua
peculiaridade exclusiva é o procedimento
intuitivo e ideador dentro da mais estrita
redução fenomenológica, é o método
especificamente filosófico, na medida em que
tal método pertence essencialmente ao sentido
da critica do conhecimento e, por conseguinte,
ao de toda a critica da razão em geral (2008, p.
87).
Nesta passagem que se refere às lições que Husserl
proferia ainda em 1906-1907, podemos perceber que sua
proposta, desde já, tende para a diferença das ciências
objetivas, destacando a importância de um método que possa
clarificar e captar a essência dos fenômenos, o que seria
possível, no entanto, por um procedimento intuitivo que chegue
ao fenômeno puro, assim como propõe posteriormente em
Ideias I:
Colocamos fora de ação a tese geral inerente à
essência da orientação natural, colocamos
entre parênteses tudo o que é por ela abrangido
no aspecto ôntico: isto é, todo este mundo
natural que está constantemente “para nós aí”,
“a nosso dispor”, e que continuará sempre aí
como “efetividade” para a consciência, mesmo
Fato e essência
212
quando nos aprouver colocá-la entre parênteses.
Se assim procedo, como é de minha plena
liberdade, então não nego este “mundo”, como
se eu fosse sofista, não duvido de sua
existência, como se fosse cético, mas efetuo a
epoché “fenomenológica”, que me impede
totalmente de fazer qualquer juízo sobre
existência espaço-temporal (HUSSERL, 2006,
p. 81).
A epoché8 fenomenológica permite o sujeito que está
em relação de conhecimento frente ao fenômeno, chegar até a
essência de sua manifestação. Na orientação fenomenológica o
sujeito distingue a facticidade e a essência de cada fenômeno.
No segundo parágrafo de Ideias I, Husserl escreve em poucas
palavras a “inseparabilidade de fato da essência”, do qual
destacamos sua posição: “Dito de maneira bem geral, o ser
individual é, qualquer que seja sua espécie, ‘contingente’. Ele é
assim, mas poderia por sua essência ser diferente” (2006, p.
34). Seguindo essa perspectiva, os fatos – que são estudados
nas ciências empíricas, psicológicas – compõe a facticidade da
essência, conforme explica Husserl:
Se dissemos que “por sua essência própria”
todo fato poderia ser diferente, com isso já
exprimíamos que faz parte do sentido de todo
contingente ter justamente uma essência e, por
conseguinte, um eidos a ser apreendido em sua
pureza, e ele se encontra sob verdade de
essência de diferentes níveis de generalidade.
Um objeto individual não é meramente
individual, um este aí!, que não se repete; sendo
“em si mesmo” de tal e tal índole, ele possui
8Epoché. É um termo grego que quer dizer “suspensão do consentimento”:
suspensão do consentimento ou do juízo típica atitude do ceticismo antigo e,
particularmente, de Pirro. Dentro do pensamento contemporâneo, a epoché
é conceito fundamental da fenomenologia de Husserl (REALE, 2005, p.
183).
Rudimar Barea
213
sua especificidade, ele é composto de
predicáveis essenciais que têm de lhe ser
atribuídos (“enquanto ele é como é em si
mesmo”), a fim de que outras determinações
secundárias, relativas, lhe possam ser
atribuídas. Assim, por exemplo, todo som tem,
em si e por si, uma essência e, acima de tudo, a
essência geral “som em geral”, ou antes,
“acústico em geral” – entendido puramente
como o momento a ser extraído por intuição do
som individual (isoladamente ou por
comparação com outros como “o que há de
comum”) (2006, p. 35).
A reflexão que Husserl propõe como metodologia de
busca das essências não exclui a existência dos fatos, pelo
contrário, eles existem, mas são passíveis de análise mais
aprofundada. Com estas indicações em forma de apontamento,
passa-se agora para uma análise básica dos passos que indicam
a redução fenomenológica, que trata intrinsecamente da
distinção epistemológica que o ser humano tem a capacidade
de fazer entre o que é fato e essência.
2.1 A redução eidética
Na redução eidética o ser humano se orienta na direção
de compreender o sentido das coisas, no entanto, nem todas as
coisas são compreendidas imediatamente. Segundo Husserl
para compreender o sentido das coisas, usamos de intuição
individual, mas não podemos ficar restrito a esta intuição.
É certo, por conseguinte, que nem uma intuição
de essência é possível sem a livre possibilidade
de voltar o olhar para um algo individual
“correspondente” e de formar uma consciência
exemplar - assim como também intuição
individual alguma é possível sem a livre
Fato e essência
214
possibilidade de efetuar uma ideação e de nela
direcionar o olhar para as essências
correspondentes [...] Às diferenças eidéticas
entre as intuições correspondem relações de
essência entre “existência” [...] e “essência”,
entre fato e eidos (2006, p. 38 -39). [grifos do
autor]
A essência das coisas, como se percebe não se dá
apenas de maneira individual e também não está apenas em
face de uma percepção externa do fenômeno. Na medida em
que se avança na argumentação fenomenológica percebe-se
que a busca do sentido das coisas já pressupõe a sua existência.
Husserl não nega os fatos, ele busca entender qual é o sentido
desses fatos existirem, não de maneira individual, mas em
essência. Portanto, para ele quem busca a verdade “precisa ter a
apreensão intuitiva da essência como seu alicerce de fundação”
(2006, p. 39). Citamos outro exemplo:
Façamos uma experiência semelhante às que
Husserl propõe: alguém bate a mão sobre a
mesa, identificamos logo que é um som. Todos
nós identificamos esse som. Como o fazemos?
Imediatamente, intuitivamente. Escutamos
qualquer coisa e dizemos “é um som”. Sempre
o fazemos assim, se não pudermos fazer é por
algum problema, mas não havendo problema,
somos capazes de intuir, isto é, colocar em
perspectiva a essência, o sentido da coisa
(ALES BELLO, 2006, p. 22-23).
Como explica Ângela Ales Bello, Husserl não se
preocupa com o fato de que existe o som, isso nós sabemos. Se
ele é alto ou baixo, se grada ou não, tudo isso não importa para
a reflexão da essência, ele (o som, ou, o “fato”) existe e tem
diferenças, mas, somente chegamos à essência se buscamos o
sentido da coisa em si, ou seja, o que é o som? Investiga-se as
características essências da estrutura do som que lhe dão
Rudimar Barea
215
sentido, por exemplo, o som de um instrumento musical, do
barulho dos automóveis ou uma conversa entre vizinhos, etc.,
caracterizam “sons”, que são diferentes em suas
particularidades, mas tem uma estrutura essencial que permite-
nos dizer que é um som.
No entanto a tarefa deste primeiro passo que é a
redução eidética é a busca de captar o sentido da coisa em sua
essência, pra isso é preciso tomar distância do fato em si para
buscar o seu sentido, podemos até nos referir aos dados
empíricos, factuais, imaginários, mas isso não implica em uma
realidade individual existente, sendo que para o conhecimento
concreto será preciso uma visão eidética.
2.2 A Redução Transcendental
O aspecto da redução transcendental é um dos
argumentos mais difíceis em Husserl, mas é preciso entender
pelo menos em linhas gerais qual é a sua contribuição dentro
do método fenomenológico. Sabemos pela redução eidética que
o ser humano busca sentido, mas agora a tarefa é outra; para
Husserl precisaríamos responder: porque o ser humano busca
sentido? E também, quem é este ser humano que busca
sentido?
Vamos tentar explicar com um exemplo o que significa
o aspecto transcendental. Entramos em uma sala de aula, na
qual temos vários objetos, mesa, cadeira, quadro, todos esses
objetos são do conhecimento dos seres humanos que usufruem
deles. Mas, se um dia ao entrar na sala de aula algum destes
objetos não estiverem dentro da sala, será possível uma
reflexão sobre estes objetos faltantes? Sim, pois, sabemos que
eles existem, não estão ali fisicamente, mas, temos a ideia de
como eles são e pra que servem. Tomando outro exemplo, se
Fato e essência
216
um objeto está com defeito, posso intuir essencialmente outro
melhor, que pode nem existir ainda, mas tenho a ideia de sua
existência. Por conseguinte, podemos dizer que “existem”
coisas passíveis de serem refletidas que estão fora do nosso
alcance físico, aquilo que temos como ideia, que concebemos
como consciência de, que está em esfera de reflexão
transcendental.
Com efeito, pela redução transcendental podemos sair
da esfera dos atos de percepção, de compreensão do sentido,
para a esfera do ser humano; “a percepção é uma porta, uma
forma de ingresso, uma passagem para entrar no sujeito, ou
seja, para compreender como é que o ser humano é feito”
(BELLO, 2006, p. 30). Como os atos de consciência do ser
humano buscam sentido das coisas e, no entanto, qual é o
sentido desses atos perceptivos, que são caracterizados como a
imaginação, a recordação, a expectativa, a fantasia, a empatia.
2.3 Da redução à intersubjetividade
O que vimos até agora é um esforço de mostrar a
importância da redução fenomenológica. No entanto, a busca
solipsista de fundamentação pela epoché apenas abre caminho
para uma descrição de conhecimento, que prescindirá de
vivências intersubjetivas transcendentais para uma descrição
fenomenológica mais precisa do conhecimento das essências.
Com efeito, aa confirmação do ego é necessária para o
fundamento basilar das verdades, mas que para a confirmação
das verdades essenciais é necessária a passagem do solipsismo
à intersubjetividade.
Portanto, não o ego cogito, mas, sim, uma
ciência do ego, uma Egologia pura, devera ser o
fundamento mais basilar da Filosofia no sentido
cartesiano da Ciência Universal, e deverá
Rudimar Barea
217
fornecer pelo menos o terreno para a sua
absoluta fundamentação. De fato, esta ciência
existe já – é a Fenomenologia Transcendental
mais basilar e, portanto, não a Fenomenologia
plena, à qual compete obviamente, fazer o
caminho ulterior do solipsismo transcendental
para a intersubjetividade transcendental
(HUSSERL, 2013, p. 10).
Husserl pretende fazer a diferenciação de seu método,
particularmente dialogando com Descartes, pois, segundo
Husserl a máxima que chega a redução proposta por Descartes
está na auto-experiência do próprio ego, que é experiência
apenas dele e nada altera no mundo. Husserl, aponta que a
experiência-de é experiência-de-alguma-coisa: “A propriedade
fundamental dos modos de consciência em que eu, enquanto
eu, vivo, é a chamada intencionalidade, é, em cada caso, o ter
consciência de qualquer coisa” (2013, p. 11). Seguimos um
exemplo de Husserl para deixar claro esse papel do sujeito
perante o mundo enquanto ser de auto-experiência-mundano:
A percepção da casa, mesmo quando inibo a
atividade da crença perceptiva, é, tomada tal
como a vivo, precisamente percepção deste e
justamente desta casa, aparecendo desta e
daquela maneira, mostrando-se com
precisamente estas determinações, de lado, de
perto, ou de longe (2013, p. 11).
Esse perceber a casa, que é um objeto empírico factual,
está na intencionalidade da consciência que intui este objeto
singular, como reitera Husserl: “Cada objeto designa, porém,
uma estrutura regular para a subjetividade transcendental”
(2013, p.20), ou seja, enquanto essência da consciência. Essa
realidade em si, se pode dizer que é em si porque está em
relação conosco. Somos nós que dizemos que ela é o que é,
sendo esse um dos fundamentos da pesquisa fenomenológica
Fato e essência
218
proposta por Husserl. Mas, o conhecimento perceptivo, só é
possível pelos seres humanos dentro de suas vivências, que
confirmam o conhecimento das coisas intersubjetivamente.
Pensemos então que repentinamente em um
ponto temporal, no interior do tempo co-
constituído, com o mundo solipsista se
apresenta em meu domínio de experiência,
corpos, coisas que se entendem e são
entendidas como corpos de homens. Agora,
pela primeira vez, existem para mim, homens
com os quais posso entender-me. E me entendo
com eles sobre as coisas, que em um novo
tempo estão aí em comum para nós. Então se
mostrará algo bem notável: que extensos
complexos de enunciados cósicos, que eu tenho
feito sobre a base das experiências anteriores,
em trechos temporais anteriores, experiências
todas que concordam esmeradamente, não são
confirmadas por meus companheiros de agora;
que estas experiências não meramente, digamos
lhes faltem a eles [...] se não que se encontra
em constante conflito com o que eles
experimentaram (2005, p. 112) [grifos do
autor].
No campo do entendimento entre os seres humanos, o
pensamento solipsista fica limitado ao conhecimento de fatos
individuais, quando no entanto por meio do aspecto
intersubjetivo os seres humanos podem confirmar o
conhecimento dos fatos e das essências. Avançando na
discussão poderíamos dizer que sem o aspecto da
intersubjetividade seria difícil determinar a essência dos fatos.
Com isso, entramos no campo das vivências, do qual nos
utilizamos da epoché e podemos fazer uma reflexão sobre essa
mirada, que está diante de nós, do qual estou voltado diante do
objeto aqui e agora, imerso neste fundo de experiências muito
Rudimar Barea
219
mais vasto, e que nos ajuda a distinguir o fato e essência
daquilo que se manifesta como consciência-de.
3. O mundo da vida entre fato e essência
Afirmamos neste trabalho que fato e essência são
inseparáveis e estão presentes em toda a reflexão husserliana.
Quando se abre a reflexão para a esfera do mundo da vida,
queremos pontuar que os seres humanos em suas vivências
seguem distinguindo entre fatos e essências para o
fortalecimento de nossos conhecimentos. Se ficássemos
contentes com o que já temos viveríamos no mundo dos fatos
já dados e confirmados pelos nossos antepassados, pelo
contrário, como seres humanos que buscam o conhecimento e
que vivenciam outras experiências, ainda muito se tem para
tirar do velamento o que é essencial e não está dado pelas
verdades cientificas factuais.
A verdade científica, objetiva, é exclusivamente
a verificação daquilo que o mundo, de fato, é,
tanto o mundo físico como o espiritual. Mas
pode o mundo, e a existência humana nele, ter
na verdade um sentido, se as ciências só
admitirem como verdadeiro aquilo que é deste
modo objetivamente verificável, se a história
não tiver mais nada a ensinar senão que todas
as figuras do mundo espiritual, todos os
vínculos da vida que a cada passo mantêm o
homem, os ideais, as normas, se formam e
voltam a se dissolver como ondas fugazes, que
sempre assim foi e será, que a razão sempre terá
de se tornar o sem-sentido, a benfeitoria, uma
praga? Será que podemos nos satisfazer com
isso, será que podemos viver neste mundo, cujo
acontecimento histórico não é outra coisa se
não um encadeamento interminável de ímpetos
Fato e essência
220
ilusórios e amargas decepções? (HUSSERL,
2012, p. 3-4).
Toda filosofia só tem sentido a partir da vida. Sem a
vida não é possível à filosofia. Estamos imersos em um mundo
que nos envolve (Umwelt) do qual eu faço parte, sou
coexistente, não somente com coisas, mas, com outros sujeitos
humanos, com valores, cultura, que não pode ser sistematizado
por uma ciência objetiva. O acesso à coisa em si (essência dos
fatos) é possível porque cada ego é possuidor de vivências
intersubjetivas e possibilitam o conhecimento em troca
reciproca. O conhecimento é possível quando o ser humano se
dá conta de suas vivências, que pertencem ao mundo, ao
mesmo tempo em que está dialogando com o mundo de forma
intersubjetiva.
[...] experimento em mim mesmo, no âmbito da
minha vida consciente transcendental, tudo e
cada um, e experimento o mundo não
simplesmente o meu mundo privado, mas como
um mundo intersubjetivo, dado a cada um e
acessível nos seus objetos, e neles experimento
os outros enquanto outros e, ao mesmo tempo,
enquanto uns para os outros, para cada um
(HUSSERL, 1994, p. 46.).
A intersubjetividade que possibilita a confirmação dos
conhecimentos obtidos individualmente, se dá somente quando
existir uma abertura ao outro, ou seja, do reconhecimento de
nossos semelhantes que tem a mesma estrutura, possuem a
mesma essência e fazem parte do mesmo mundo, que
habitamos em conjunto.
Rudimar Barea
221
Referências bibliográficas
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Jacinta Turolo Garcia e Miguel Mahfoud. Bauru, São Paulo:
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Roma, 2003.
223
EMOÇÕES E INTENCIONALIDADE
Susie Kovalczyk dos Santos1
Na literatura filosófica muito se recorre à
intencionalidade das emoções para se rejeitar teorias
sentimentalistas acerca da natureza das emoções. Considerando
esse tipo de crítica, ou se adota uma teoria cognitivista, como
Solomon (2008), ou uma teoria híbrida, como Goldie (2000),
ou ainda se aponta uma alternativa para explicar a
intencionalidade das emoções como uma característica não
intrínseca das mesmas, sustentando, como Prinz (2004; 2005),
uma teoria sentimentalista. Abordarei teses desses três autores
acerca da intencionalidade das emoções, avaliando suas
implicações para a consideração da natureza das mesmas.
1. Intencionalidade dos estados mentais
A noção de intencionalidade é compreendida, explica
Jacob (2014), como a capacidade de estados mentais de serem
sobre, de representar, de serem direcionados a coisas,
propriedades e estados de coisas. O termo tem origem na
escolástica medieval, derivado do latim intentio, derivado, por
sua vez, do verbo intendere, que significa estar direcionado a
um objetivo ou coisa. Desse modo, se eu tenho uma crença ou
um desejo, eu creio em algo ou desejo algo, e aquilo em que
creio ou que desejo é o objeto da intencionalidade do meu
1 Universidade Federal de Santa Maria. [email protected]
Emoções e intencionalidade
224
estado mental de crença ou desejo. Se todos os estados mentais
possuem intencionalidade não é ponto pacífico. Para Brentano
(2009), por exemplo, o que caracteriza os fenômenos mentais
enquanto tais é o direcionamento a um objeto, e todos e apenas
os fenômenos mentais são dotados de intencionalidade. Searle
(2002) discorda: Se eu disser que eu tenho uma crença ou um
desejo, fará sempre sentido perguntar: “Em que,
exatamente, você acredita?”, ou: “O que você
deseja?”, e não poderei responder, “Ah, eu só
tenho uma crença e um desejo sem acreditar em
nada nem desejar coisa alguma”. Minhas
crenças e meus desejos devem ser sempre
referentes a alguma coisa. Mas meu nervosismo
e minha ansiedade não-direcionada não
precisam ser referentes a alguma coisa, nesse
sentido. Tais estados são caracteristicamente
acompanhados por crenças e desejos, mas os
estados não-direcionados não são idênticos às
crenças ou aos desejos. Segundo minha
explicação, se um estado E é Intencional, deve
haver uma resposta para perguntas como: A que
se refere E? Em que consiste E? O que é um E
tal que? (SEARLE, 2002, p. 2, grifos do autor)
Por “deve haver uma resposta” Searle não está exigindo que a
resposta possa ser fornecida. Primeiramente porque ele
concede que consciência e intencionalidade não coincidem, e
posso não estar ciente de qual o objeto de meu estado mental
em um dado momento. Em segundo lugar, porque o autor
desvincula a linguagem e intencionalidade: “parece-me óbvio”,
afirma Searle (2002, p. 7), “que os recém-nascidos e muitos
animais que, em um sentido ordinário, não possuem uma
linguagem nem realizam atos de fala apresentam, mesmo
assim, estados Intencionais”. Novamente se afastando de
Brentano, Searle (2002) defende que também a linguagem
apresenta intencionalidade, mas de um modo derivado,
diferentemente dos estados mentais, cuja intencionalidade seria
Susie Kovalczyk dos Santos
225
intrínseca, ponto que aqui não será explorado. Searle (2002)
assinala ainda que alguns estados mentais têm ou não
intencionalidade conforme as diferentes circunstâncias:
Por exemplo, assim como há formas de
exaltação, de depressão e de ansiedade em que
se está simplesmente exaltado, deprimido ou
ansioso sem se estar exaltado, de deprimido ou
ansioso a respeito de coisa alguma, há também
modalidades desses estados em que se está
exaltado porque ocorreu isso e aquilo, ou
deprimido ou ansioso com a perspectiva disso
ou daquilo. A ansiedade, a depressão e a
exaltação não-direcionadas não são
Intencionais, enquanto que os casos direcionais
o são. (SEARLE, 2002, p. 2)
Estados mentais são ditos representacionais graças à
intencionalidade. É o que Maslin (2009, p. 289-90) clarifica ao
dizer que certos “estados intencionais, tais como crenças,
pretendem representar como o mundo é realmente. Se o mundo
é como a crença o representa como sendo, a crença é
verdadeira; de outra forma ela é falsa”. Searle (2002, p. 15)
também enfatiza o caráter representacional da intencionalidade
por quando afirma que “todo estado Intencional compõe-se de
um conteúdo representativo em um certo modo psicológico”.
Tal conteúdo é proposicional, seja ele linguisticamente
realizado ou não.
Nos casos em que esse conteúdo é uma
proposição completa e há uma direção de
ajuste, o conteúdo Intencional determina as
condições de satisfação. Condições de
satisfação são condições que, tal como
determinadas pelo conteúdo Intencional, devem
ser alcançadas para que o estado seja satisfeito.
(...) se tenho uma crença de que está chovendo,
o conteúdo de minha crença é: que está
Emoções e intencionalidade
226
chovendo. E as condições de satisfação são: que
esteja chovendo (...). Uma vez que toda
representação – seja esta feita pela mente, pela
linguagem, por imagens ou por qualquer outra
coisa – está sempre submetida a determinados
aspectos e não a outros, as condições de
satisfação são representadas sob determinados
aspectos. (SEARLE, 2002, p. 17, grifos do
autor)
2. Intencionalidade e natureza das emoções
Os modelos contemporâneos para a explicação da
natureza das emoções constituem teorias sentimentalistas,
cognitivistas ou híbridas. Teorias sentimentalistas, como a de
Prinz (2004), caracterizam emoções como sentimentos,
entendidos como estados mentais desprovidos de conteúdo
cognitivo ou representacional. Teorias cognitivistas, como em
Solomon (1977), identificam emoções a estados
representacionais, tais como juízos e crenças. Considerando as
objeções a ambos os tipos de teoria, alguns teóricos
propuseram vias alternativas à adoção de um desses pontos de
vista extremos, optando pela proposta, como Goldie (2000), de
uma teoria híbrida, defendendo que emoções são constituídas
necessariamente por elementos cognitivos e afetivos. A
atribuição de intencionalidade às emoções é importante para
essa distinção, uma vez que é empregada a fim de diferenciar
emoções de sentimentos. Uma objeção tradicional às teorias
sentimentalistas acerca da natureza das emoções, apresentada
por De Sousa (2013), é que emoções, diferentemente de
sentimentos corporais, são estados intencionais. Assim,
emoções teriam uma propriedade da qual meros sentimentos
carecem, não podendo, portanto, ser assimiladas a estes.
Defensor de um modelo cognitivista acerca da natureza
das emoções, Solomon (1977) explica que emoções são
Susie Kovalczyk dos Santos
227
essencialmente intencionais e constituem-se em juízos. Quando
alguém faz um juízo de caráter emocional, afirma o autor, o
envolvimento é tal que produz uma reação fisiológica, e os
sentimentos são apenas efeitos das emoções. Conforme essa
abordagem, sensações e sentimentos não são necessários para a
emoção. O que há de essencial em todas as emoções é alguma
cognição, ainda que não se esteja reflexivamente ciente dela.
Sem tal engajamento, isto é, sem avaliações, crenças ou juízos
acompanhando sentimentos, não há emoção: a pessoa pode se
sentir desconfortável, mas na ausência de um objeto
amedrontador, esse sentimento não conta como medo, por
exemplo. Quanto a experimentos em que se induz sensações a
partir da administração de químicos ou impulsos elétricos,
Solomon (2008, p. 12, tradução minha) mantém sua posição,
refletida no exemplo de que “[s]e a ira neurologicamente
provocada não inclui algum objeto de irritação, tal reação (o
que quer que possa ser) não pode ser raiva”.
Acusando os teóricos cognitivistas de promoverem uma
visão “intelectualizada” das emoções, Goldie (2000; 2002)
propõe uma teoria híbrida em que intencionalidade e
sentimento são essenciais para as emoções, apresentando-as
como complexas – englobam sentimentos, pensamentos,
mudanças corporais, percepções e disposições para ter outros
pensamentos, sentimentos e para agir –, episódicas, dinâmicas
– tais elementos que compreende vêm e vão ao longo do tempo
– e estruturadas – consistem em partes de uma narrativa, na
qual estão inseridas. Segundo ele, muitos filósofos incorrem
em erro ao atribuir a intencionalidade das emoções a crenças e
desejos, descartando o elemento que parece central do ponto de
vista de quem vivencia uma emoção, que é o sentimento.
Partindo da rejeição de que crenças e desejos que acompanham
as emoções possam sozinhas esgotar a intencionalidade da
Emoções e intencionalidade
228
emoção, Goldie propõe a noção de sentimento direcionado2 a
um objeto – que é o objeto da emoção, podendo ser uma coisa,
pessoa, ação, evento etc. – que, juntamente com os sentimentos
corporais, faz parte das emoções. O que Goldie denomina
sentimentos corporais envolve, de um lado, as sensações que
alguém tem em função de sua condição corporal, tais como as
sentidas graças a alterações musculares e hormonais, por
exemplo; e de outro, as sensações que alguém tem a partir do
contato físico com objetos, como a sensação tátil que se tem ao
encostar-se a uma superfície gelada, que o autor relaciona às
condições da superfície do corpo. Sentimentos corporais e
sentimentos direcionados são intencionais. Goldie explica que
o sentimento direcionado possui intencionalidade por se dirigir
a um objeto que está para além do sujeito. Assim, se um sujeito
S está irritado, está irritado com algo, alguém ou com uma
situação, que é o objeto da emoção em questão. Os sentimentos
corporais, por sua vez, têm sua intencionalidade dirigida ao
próprio corpo, parte do corpo ou mudança corporal do sujeito
que experimenta esse sentimento.
É possível, entretanto, manter uma posição
sentimentalista acerca da natureza das emoções e defender que
emoções possuem intencionalidade. É o caso de Prinz (2004;
2005), que defende uma versão da teoria sentimentalista de
James (1884), afirmando que emoções, enquanto sentimentos
corporais, não possuem objetos intencionais intrinsecamente.
Prinz propõe a noção de atitudes emocionais, que seriam
atitudes proposicionais que relacionam causalmente emoções e
representações de objetos e estados de coisas. Diante de tais
ocorrências, diz-se que a emoção tem o conteúdo dessas
representações como seu objeto intencional, como em seu
exemplo de que, se há conexão causal entre pensar sobre o
2 feeling towards
Susie Kovalczyk dos Santos
229
governo e sentir raiva, então se diz que se está com raiva do
governo.
A possibilidade de identificar os objetos da emoção às
causas da mesma são postos em questão por De Sousa (2013),
que afirma que, embora tal identificação se dê muitas vezes, há
exemplos em que isso não é possível, como quando um sujeito
S está irritado com o sujeito R em decorrência dos efeitos do
álcool no organismo de S – a causa da irritação é a embriaguez;
o objeto, o sujeito R. O autor defende que o objeto intencional
da emoção é uma propriedade implicitamente atribuída pela
emoção a seu alvo, foco ou objeto proposicional, e que nem
todas as emoções contam com um objeto intencional, sendo
que às que não o possuem seria mais adequado chamar
humores, em vez de emoções. Solomon (2008), por sua vez,
defende que humores têm por objeto o mundo como um todo.
Considerações finais
Ainda que não haja consenso quanto à natureza das
emoções, ou seja, se são cognições, sentimentos ou uma
combinação de afetos e cognições, os diversos modelos
propostos na tentativa de estabelecer o que as constitui
essencialmente precisam considerar que emoções são, em
geral, estados intencionais. Emoções são direcionadas a algo,
ainda que o sujeito dessas emoções não esteja reflexivamente
ciente disso.
As perspectivas aqui sumariamente apresentadas
interpretam de diferentes maneiras esse aspecto das emoções.
Embora Solomon esteja certo ao colocar a intencionalidade
como central para as emoções, sua proposta falha em dois
pontos. Primeiramente, ao condicionar o aspecto intencional a
estados cognitivos e, em segundo lugar, ao conceder aos
sentimentos um papel contingente na constituição das emoções.
Emoções e intencionalidade
230
Uma visão alternativa e que não incorre nos mesmos erros é
apresentada por Goldie, com seu modelo mais abrangente
acerca da natureza das emoções. A grande vantagem da teoria
proposta por Goldie é relacionar afetividade e intencionalidade:
mesmo que ele inclua crenças e desejos como integrantes das
emoções juntamente aos sentimentos, são os sentimentos
também portadores de intencionalidade. É uma solução para a
crítica, tradicionalmente direcionada aos cognitivistas, de que
seres com aparato cognitivo não plenamente desenvolvido, por
assim dizer, possuem emoções – o que impediria que emoções
fossem identificadas essencialmente a estados cognitivos.
Entretanto, há ainda a possibilidade de se defender que
emoções são, em última análise, sentimentos, sem desprezar a
importância de sua intencionalidade. É o que defende Prinz ao
atribuir a intencionalidade das emoções às causas delas, ainda
que negue que emoções sejam estados intrinsecamente
intencionais. O principal problema dessa abordagem, como
apontado, é que, muitas vezes, o que as emoções têm por
objetos intencionais difere daquilo que as causa.
Destarte, considerar a centralidade do aspecto
intencional para as emoções não pode ofuscar o elemento que
parece central do ponto de vista de quem vivencia uma
emoção, que é o sentimento. E, como visto, é possível conciliar
ambos os elementos.
Referências
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Susie Kovalczyk dos Santos
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233
VERDADE E METAFILOSOFIA EM RICHARD RORTY
Vinícius dos Santos Brittes1
1. O problema com a tradição e a perspectiva de
Rorty sobre a verdade
Alguns autores descrevem o quadro intelectual
contemporâneo sobre a verdade como cindido entre relativistas
e absolutistas (cf. BLACKBURN, 2006). De acordo com este
quadro, os relativistas são aqueles que sustentam que a verdade
é relativa ao sujeito, a um grupo, a uma civilização, há um
tempo e lugar determinados, enfim, que a verdade é sempre
dependente de seja o que for. Por outro lado, os absolutistas
defendem que a verdade é objetiva, ou seja, não dependente de
nenhum tipo de item da lista acima, mas unicamente da
realidade ou da maneira como as coisas são. Rorty defende que
os pares desta disputa jogam um jogo de cartas marcadas, e que
tal contenda não é mais fundamental para a investigação
filosófica. Para ele, esta disputa ocorre apenas dentro de um
determinado quadro conceitual que tem suas raízes em Platão.
Tal como qualquer questão ou problema filosófico,
compreender a verdade permanece sendo um desafio, pois não
existe acordo consensual por parte dos filósofos sobre o que é a
verdade ou o que ela significa, nem como podemos
adequadamente entende-la, ou seja, também não existe um
método (consensualmente) adequado para investiga-la. As
1 E-mail: [email protected]
Verdade e metafilosofia
234
teorias da verdade, da maneira como foram sendo
desenvolvidas pela tradição filosófica, em especial após a
virada linguística, compreenderam o problema da verdade de
muitos modos distintos e apresentaram soluções diferentes para
cada um (cf. KIRKHAM, 2003). O século XX foi
possivelmente o mais fértil em teorias sobre a verdade, mas
também nele encontramos os pontos de vista segundo o qual a
verdade não é algo a respeito do que podemos (ou deveríamos)
fornecer alguma definição cabal, ou ainda, que a verdade
sequer seja algo sobre o qual deveríamos ter qualquer teoria
filosófica. Davidson, por exemplo, defendeu a primeira
postura, Rorty a segunda. Entretanto, embora Rorty tenha
afirmado que a verdade não é um tópico filosófico interessante,
ele certamente não seguiu sua própria conclusão, dado que em
inúmeros escritos seus a verdade aparece como um tema
central.
Para bem compreender as elucubrações de Rorty sobre
a verdade, é útil, antes de tudo, esboçar o pano de fundo donde
emerge suas criticas a maioria dos problemas filosóficos,
inclusive a verdade. Tento fornecer isto brevemente no
parágrafo que segue.
No projeto filosófico de Platão, metafísica e
epistemologia estão intimamente relacionadas. Na busca pelo
conhecimento genuíno Platão cindiu o mundo em dois, mundo
natural ou sensível e mundo inteligível. Com esse dualismo
primordial, que é o centro do pensamento platônico, emergem
as dicotomias aparência/realidade e opinião/conhecimento.
Para Rorty, o pressuposto fundamental do projeto de Platão
esta na ideia de que nós, seres humanos, e de modo algum os
outros animais desprovidos de racionalidade, podemos
transcender nossa finitude existencial nesta vida por meio da
contemplação (conhecimento genuíno) de algo eterno,
imutável, absoluto. No caso de Platão, eram as formas ou
ideias inteligíveis, mas este anseio permaneceu de diferentes
Vinícius dos Santos Brittes
235
modos ao longo da história da filosofia, como a palavra ou
mensagem de Deus durante os séculos católicos, a estrutura do
universo para muitos cientistas naturais, ou simplesmente a
Verdade, singular, única. Qualquer destas coisas exibe (para
aqueles que podem conhecê-las) uma imperturbabilidade
existencial completamente alheia aos interesses humanos. O
quadro conceitual rico em dicotomias inaugurado por Platão é
aperfeiçoado no período moderno por Descartes, que concebe a
mente como aquilo a que temos acesso privilegiado, o que dá
ensejo a mais dualismos que são ainda hoje basilares na
investigação filosófica: a relação da mente com o corpo, e das
representações mentais com a realidade (com a virada
linguística este dualismo foi atualizado para a relação da
linguagem com o mundo). Assim, em sua leitura da história da
filosofia (em especial da filosofia moderna, na qual Kant
representa o expoente máximo), Rorty assevera que certa
“imagem” vem dominando a agenda filosófica e impondo
problemas que “naturalmente” surgem a um espirito
investigativo. Esta imagem é a da mente como um espelho,
contendo representações mais ou menos precisas sobre o que
esta fora dela - sobre o mundo -, por conseguinte, deve haver
um tipo especial de investigação (e de teorização) que é capaz
de dizer quando as nossas representações representam bem a
realidade e quando não o fazem; esta investigação é a filosofia
(qua epistemologia). Esta é a imagem da filosofia como um
tipo de conhecimento fundante (já que investiga, descobre e/ou
postula os critérios de correção das representações) e da mente
como um espelho da natureza. Aceita esta imagem, alguns
problemas surgem “naturalmente”: quais são os fundamentos
do conhecimento? A mente humana descobre (realismo) ou
cria (idealismo) a realidade? Qual a relação entre a mente e o
corpo? Um possível resumo deste paragrafo seria o de que a
suposição de que existe um modo como o mundo é em si
mesmo (à parte de qualquer descrição) gera o problema de
Verdade e metafilosofia
236
como podemos saber se nossas descrições de fato se referem à
realidade.
A tradição filosófica sempre se viu as voltas com a
tarefa de garantir nosso conhecimento da realidade (como ela
é), e o conceito de verdade desempenhou um papel chave neste
empreendimento, principalmente ao se supor que a verdade
(tendo em vista o quadro acima) é o que nos possibilita
diferenciar o aparente do real, a crença justificada do
conhecimento, na medida em que nossas crenças e
representações correspondem à realidade. Para Rorty, a noção
da verdade como correspondência mostra exemplarmente o
anseio em sermos guiados por lago maior que nós próprios, “A
ideia de verdade como algo que persuade por sua própria
causa, não por ser boa para nós, ou para uma comunidade real
ou imaginária, é o tema central dessa tradição [a tradição
cultural ocidental, centrada na noção de busca pela verdade]”
(RORTY, 2002, pg. 37) - e, neste sentido, ele chega a afirmar
que a verdade se tornou um substituto para Deus (cf. RORTY,
2009, pg. 159). Mas este não é o único problema que Rorty
apresenta em sua rejeição da verdade como correspondência. É
possível identificar outras razões de que lança mão para sua
rejeição:
a) explicar a verdade em termos de
correspondência não é esclarecedor, “(...)
várias centenas de anos de esforços não
conseguiram extrair um sentido interessante da
noção de ‘correspondência’ (quer de
pensamentos às coisas, quer de palavras às
coisas)” (RORTY, 1999, pg. 17) e, portanto, a
ideia de correspondência é inútil.
b) não existe a maneira pela qual o mundo
gostaria de ser descrito, dado que a realidade
não possui uma natureza intrínseca. Assim,
nossas crenças não podem ser tornadas
Vinícius dos Santos Brittes
237
verdadeiras pelo mundo (ou pelo que quer que
seja), “não há maneira de sairmos fora de nossas
crenças e de nossa linguagem para encontrar
algum teste que não a coerência.” (RORTY,
1994, pg. 183).
c) deveríamos adotar uma perspectiva darwiniana
sobre a linguagem, entendendo-a como uma
habilidade adaptativa, ao invés de como um
meio de representar a realidade,
[os pragmatistas] levaram Darwin e a biologia a
sério, eles tinham um motivo adicional para
desconfiar da ideia de que as crenças
verdadeiras são representações corretas, pois a
representação, em oposição ao comportamento
adaptativo cada vez mais complexo,
provavelmente não combina com uma história
evolucionária. (RORTY, 2005, p. 4 - 5).
O que Rorty acredita que a verdade faz por nós, então?
Um dos pontos centrais de seu pragmatismo é a maneira como
ele concebe a verdade. Como vimos, sua posição em relação a
este tópico é marcada pela repulsa a concepção da verdade
como correspondência que, como esboçado acima, enraíza-se,
para Rorty, no anseio por algo absoluto. A origem de seu ponto
de vista crítico esta no pragmatismo americano, nomeadamente
James e Dewey, passando pelo segundo Wittgenstein, por
Quine e Sellars, e ganhando plena maturação sob a influência
da obra de Donald Davidson.
A visão de Rorty sobre a verdade tem inicio a partir da
teoria pragmática da verdade2, e o pragmatismo, da maneira
2 Desconsidero aqui a questão sobre se existe uma teoria pragmática da
verdade, dado que os autores ditos “pragmáticos”, além de discordarem
amplamente entre si, também apresentam inconsistências internas em suas
perspectivas (Sobre este ponto, cf. KIRKHAM, 2003, p. 118 - 119). Dessa
forma, ao afirmar que Rorty recebe influencia de uma teoria pragmática da
Verdade e metafilosofia
238
que Rorty o entende, é fundamentalmente antiessencialismo
(não existe nada substancial no conceito de verdade, ou seja,
este termo não designa nenhuma essência ou propriedade
metafísica); rejeição dos dualismos filosóficos tradicionais (tais
como fato-valor) e a ideia de que as únicas restrições à
investigação são as conversacionais “[...] nenhumas restrições
gerais derivadas da natureza dos objetos, ou da mente, ou da
linguagem, mas apenas as restrições particulares fornecidas
pelas observações dos nossos companheiros investigadores”
(RORTY, 1999, p. 236 - 237). A noção de verdade que emerge
ao se conceber o pragmatismo desta maneira não terá a forma
de uma explicação sobre o conteúdo profundo do termo, ou
ainda, que o próprio termo “verdade” deva ser usado para
explicar algo como a conexão entre a linguagem e o mundo.
Desta forma, resta então unicamente mapear nossos usos do
termo “verdadeiro” e ver o que fazemos quando o empregamos.
No ensaio Pragmatismo, Davidson e a Verdade
(RORTY, 2002), Rorty apresenta três usos de “verdadeiro” em
nosso discurso,
(i) uso endossador é aquele onde simplesmente
expressamos nossa aprovação diante de um
enunciado,
(ii) uso acautelado ocorre ao dizermos “Sua
crença em S está perfeitamente justificada,
mas talvez não seja verdadeira”, e o
(iii) uso descitacional, que nos permite “dizer
coisas metalinguísticas do tipo ‘S é
verdadeiro se ____’”.
Fica claro que esta não é uma teoria sobre a verdade. E
é evidente também que a verdade assim concebida não faz
verdade, estou apenas indicando que sua perspectiva sobre a verdade
contem elementos do que Peirce, James e Dewey, por exemplo, disseram
sobre o assunto.
Vinícius dos Santos Brittes
239
nenhuma referencia ao mundo, mas apenas aos usuários da
linguagem. Isto parece entrar em conflito com nosso “realismo
de senso comum”, pois acreditamos fielmente que nossas
crenças verdadeiras se referem ao mundo, e que são tornadas
verdadeiras por ele. Supondo, então, que eu diga (e acredite)
que “há um pássaro lá fora na janela”, se me perguntado como
sei disso, posso responder “por que vi”, então o que garante a
objetividade de minha crença, o que faz com ela seja
verdadeira, é minha capacidade de representar a realidade
como ela é (para mim e para outros). Contudo, seguindo as
criticas de Rorty, a ideia da realidade como ela é deve ser
abandonada. Como posso então justificar minha crença sobre o
pássaro? Para Rorty, ela esta justificada no momento em que
dou razões para ela e que aqueles que a requerem aceitam estas
razões. A verdade, segundo o ponto o “b” descrito acima, não
vem de lugar algum que não do próprio intercambio linguístico
entre as pessoas - ter crenças verdadeiras é uma condição para
usar a linguagem de modo competente.
Assim, deve o realismo de senso comum ser
abandonado? Somente se ele for metafisico. Somente se ele
pretende ser uma teoria da verdade, como alguns filósofos
tentaram fazer. Mas o realismo de senso comum não precisa
pressupor uma natureza intrínseca da realidade, ou seja,
podemos continuar a acreditar que nossas crenças representam
o mundo. Ele pressupõe apenas que a realidade é independente
de nossas crenças sobre ela. Quando dizemos que nossas
crenças representam a realidade, temos a pretensão de que o
que dizemos (nossas descrições, no linguajar de Rorty) não
determina a existência daquilo que estamos tentando exprimir.
A linguagem continua a se referir ao mundo, mas não há
porque dar um segundo passo e afirmar que ela é uma copia tal
e qual o mundo é em si mesmo. O ponto de discórdia nisto
tudo, em relação à Rorty, é que podemos continuar a acreditar
Verdade e metafilosofia
240
num mundo (de eventos e objetos) independente de nossas
descrições. Putnam sugere a seguinte analogia:
Embora eu não possa sair de minha própria pele
e comparar o futuro tal como será depois de
minha morte, com meus pensamentos e ideias
sobre o futuro, eu realmente não posso por essa
razão parar de supor que existem eventos que
irão acontecer depois de minha morte e adquiro
um seguro de vida com o intuito de afetar o
curso desses eventos. (PUTNAM, 2008, pg.
136)
Desta forma, podemos seguir Rorty em sua critica a
teoria da verdade como correspondência, mas não precisamos
ser eliminativistas em relação à ideia de “corresponder” ou
“referir” a realidade, como sua critica sugere.
2. A estratégia argumentativa de Rorty
A abordagem de Rorty de tópicos filosóficos como a
verdade é controversa e incômoda, sua estratégia
argumentativa não visa resolver os problemas com que debate,
antes, intenta mostrar que eles não precisam necessariamente
ser vistos como problemas. Michael Willians denomina esta
posição de “diagnose teórica”, ela consiste na demonstração
dos pressupostos assumidos tacitamente que dão origem a um
modelo inteiro de investigação.
Se esses pressupostos podem ser desafiados
com sucesso, então os problemas que eles dão
origem podem sensatamente ser postos de lado,
e as tentativas de resolvê-los a nível teórico se
tornam ociosas. Isto é o que ocorreu com outras
disciplinas no passado: demonologia e
astrologia judicial, por exemplo. Para Rorty, a
Vinícius dos Santos Brittes
241
epistemologia merece o mesmo destino.
(WILLIAMS, 2000, pg. 191)
Nesta citação é possível vislumbrar porque a
abordagem de Rorty é inquietante (ou até merecedora de
desdém) para muitos dos filósofos contemporâneos: seu ponto
de vista torna supérfluo muito do que vem sendo dito e
defendido sobre o conhecimento e a verdade. Evidentemente,
para aqueles que não se deixam convencer ou influenciar por
seus pontos de vista, ele não precisa ser levado em
consideração3. Atualmente, a epistemologia, a qual Rorty
pretendeu ser uma espécie de coveiro, continua a ser uma
importante e debatida área da filosofia. Entretanto, penso que
as considerações metafilosóficas de Rorty podem deixar uma
marca profunda na autoimagem da filosofia, ainda que suas
conclusões mais radicais não vinguem, e no que segue, tentarei
dizer por que.
Rorty é uma espécie de filosofo “terapeuta”, num
sentido aproximadamente wittgensteiniano da palavra: alguém
que busca dissolver certos problemas filosóficos ao esclarecê-
los. Mas ele faz isto de um modo peculiar, tentando
esquadrinhar a origem histórica dos problemas filosóficos e
3 É possível fazer aqui uma comparação entre a atitude de Rorty diante dos
problemas tradicionais da epistemologia e a atitude do segundo
Wittgenstein diante dos problemas filosóficos em geral. É famosa a
controvérsia de Wittgenstein com Popper durante uma conferencia em
Cambridge nos anos quarenta. Wittgenstein defendia o ponto de vista, tão
radical quanto o de Rorty, de que não existem problemas filosóficos
genuínos, de que as questões filosóficas não passam de perplexidades
linguísticas, ao contrário, para Popper os problemas filosóficos eram reais
(Sobre esta controvérsia, cf. EDMONDS e EIDINOW, 2010). A história
parece ter seguido Popper nesta conclusão, mas, paradoxalmente, a
influência de Wittegenstein se mostrou bem maior. A lição favorável a
Rorty que se pode tirar deste caso é a de que mesmo ideias filosóficas
radicais podem se mostrar profícuas para o desenvolvimento da filosofia.
Verdade e metafilosofia
242
mostrando a marca da contingência em tais problemas. Neste
ponto ele se afasta de Wittgentein, para quem os problemas
filosóficos eram, de fato, pseudoproblemas. Para Rorty, não há
problema em reconhecer a legitimidade dos problemas
filosóficos - eles são problemas genuínos, porém apenas dentro
de um conjunto de ideias, pressupostos e valores determinados
que lhes confiram inteligibilidade, mas que podem, em todo
caso, serem postos de lado (cf. WILLIAMS, 2000, pg. 191).
Suas considerações envolvem o seguinte tipo de questão: por
que deveríamos levar adiante o vocabulário e o modo de pensar
que nos deixa com um problema relativo à fundamentação do
conhecimento, que nos leva a um abismo entre a realidade e
aparência, e a entender a verdade como correspondência a
realidade? É possível conceber o conhecimento como algo que
não necessite de fundamentos e a mente como algo que não
contém representações que, se corretas, correspondem à
realidade? A diagnose teórica pretende fornecer as respostas.
Rorty não oferece (ou, ao menos, pretende não
oferecer) uma argumentação sistemática que demonstre, por
exemplo, a falsidade da concepção correspondencial da
verdade (ou da mente como espelho da natureza). Antes,
pretende nos incitar a deixar de conceber a verdade, ou o
conhecimento, ou a justificação, ou ainda a moralidade, de
certa maneira (a maneira como estes termos
predominantemente são concebidos pela filosofia). Ele faz isso
por meio dos seguintes passos: (i) exibindo a contingencia do
vocabulário que confere inteligibilidade a estes termos, e, mais
importante, (ii) mostrando que é inútil continuar a entender a
verdade, ou o conhecimento, por exemplo, de um determinado
modo. Sua obra mais influente, A Filosofia e o Espelho da
Natureza, apresenta seu mais pleno desenvolvimento do ponto
(i). O critério principal, então, pelo qual Rorty julga a
viabilidade de um vocabulário é a utilidade.
Vinícius dos Santos Brittes
243
A questão que nos importa, a nós, pragmatistas,
não é saber se um debate faz ou não sentido, se
ele remete a problemas reais ou não reais, mas
determinar se esse debate terá um efeito na
pratica, se ele será útil. Nós nos perguntamos se
o vocabulário pelo qual se exprime esse debate
é passível de ter um valor prático, sabendo que
a tese do pragmatismo é: se esse debate não tem
incidência prática, então ele também não deve
ter incidência filosófica, segundo a fórmula de
William James. (ENGEL e RORTY, 2008, p.
54 - 55).
Diante disso, poderíamos objetar que a filosofia sempre
foi encarada como uma pratica eminentemente teórica, tanto
que, uma imagem comum associada a ela é a do filosofo
meditando confortavelmente em uma poltrona, completamente
alheio ao mundo ao seu redor. Mas esta imagem perde alcance
tão logo se constata que a filosofia, ao longo de sua historia,
sempre esteve envolvida com questões sociais e politicas.
Neste sentido, a ênfase de Rorty no “valor prático” parece
indicar que ele favoreceria apenas um tipo de filosofia
“engajada”. Mas isto é um erro. Alguns dos maiores heróis
filosóficos de Rorty são Davidson, Wittgenstein, Quine e
Sellars, autores que pouco ou nada escreveram sobre política,
ética ou critica social, tratando em suas carreiras
predominantemente de temas de filosofia da mente e da
linguagem. Qual seria então o valor pratico que Rorty vê
nestes autores, pelos quais ele tem tanta admiração e que nunca
praticaram de maneira alguma um tipo de filosofia engajada?
Esta resposta pode ser encontrada na maneira como
Rorty compreende a filosofia. Segundo ele, a Filosofia, com
“F” maiúsculo, é a busca por algo maior que nós mesmos (a
Realidade, a Verdade, as coisas como elas são), é a realização
do anseio transcendente delineado acima. Mas filosofia, com
“f” minúsculo, é simplesmente a busca por um caminho que
Verdade e metafilosofia
244
harmonize os diferentes anseios e interesses da sociedade em
uma época, e esta busca acaba por resultar na formação de
novas formas de vida. Assim, estes filósofos nos fornecem um
novo vocabulário para descrevermos as praticas humanas, a
nós mesmos e ao mundo, vocabulários onde verdade,
significado, conhecimento, linguagem, razão e ação não
acarretam questões do tipo “O que é verdadeiramente real?”,
“Como é possível escaparmos do ceticismo?” e “Os valores
morais são objetivos ou subjetivos?”. Um vocabulário que, na
opinião de Rorty, cria condições para que possamos
compreender as empresas humanas (investigar a natureza,
buscar uma sociedade mais justa) por referencia a nossos
interesses cambiantes e não por problemas e questões distintos,
perenes, que forçosamente se impõe ao intelecto. A mudança
de mentalidade (ou, para usar uma expressão de Rorty, de
nossa rede de crenças e desejos) que estes pensadores nos
proporcionam resulta em mudança de comportamento, o que
pode se tornar, por fim, em mudança social. Por exemplo,
Galileu e seus seguidores descobriram, e os
séculos subsequentes confirmaram amplamente,
que se obtém muito melhores prognósticos
pensando as coisas como massas de partículas
colidindo cegamente umas com as outras em
vez de as pensar como Aristóteles pensou –
animisticamente, teleologicamente e
antropomorficamente. (RORTY, 1999, pg. 267)
A partir de Galileu, um novo paradigma teórico e
comportamental passou a se desenvolver na investigação da
natureza. Talvez de modo menos emblemático os heróis de
Rorty citados acima também operaram cada um a seu modo,
redescrições úteis de problemas da reflexão filosófica. Neste
sentido, podemos chegar à conclusão de que as próprias
reflexões metafilosóficas de Rorty possuem valor pratico, pois
o que mais ele faz com seus pontos de vista radicais senão
Vinícius dos Santos Brittes
245
reorientar (ao redescrever) a natureza e a tarefa própria da
filosofia – da contemplação e da busca por essências a uma
ferramenta de mudança social?
3. Breve defesa da diagnose teórica
A marca wittgensteiniana no filosofar de Rorty é ainda
mais profunda do que ele reconhece. O segundo Wittgenstein
legou a Rorty, e a muitos outros, a ideia de que a linguagem é
fundamentalmente uma pratica social e que é ilusório tentar
transcender esta prática para atingir algum padrão de correção
de nossas crenças que não seja a própria prática. Um ponto
importante é de que as práticas sociais humanas, entre elas a
linguagem, se transformam, modificam-se através do tempo. É
este elemento temporal que dá à diagnose teórica seu valor
principal. Não se trata de dizer que a história da filosofia é
essencial para se filosofar, mas que esta atividade humana,
como qualquer outra, esta sujeita à transformação no tempo. A
primeira vista isto é um truísmo inofensivo, mas do ponto de
vista de Rorty, significa que as questões, os problemas, os
conceitos e os métodos filosóficos mudam radicalmente, de
modo que não existe um tópico ou um método que seja distinto
da atividade de filosofar.
O historiador e filósofo politico britânico Isaiah Berlin
concebia as questões filosóficas como aquelas que não
sabemos onde procurar as respostas, que não possuem nenhum
método consensual de resolução. Assim, por exemplo,
[...] não era nenhum erro considerar a
astronomia uma disciplina ‘filosófica’,
digamos, no inicio da Idade Média: enquanto as
respostas a perguntas sobre as estrelas e os
planetas não eram determinadas por observação
ou experimentos e cálculos, mas dominadas por
noções não empíricas como aquelas, por
Verdade e metafilosofia
246
exemplo, de corpos perfeitos determinados a
seguir caminhos circulares por suas metas ou
essências interiores [...], não era claro como as
questões astronômicas podiam ser resolvidas
[...] (BERLIN, 2005, pg.52)
Se seguirmos Berlin e assim concebermos a natureza
dos problemas filosóficos, não mais veremos a hermenêutica, a
fenomenologia, a análise conceitual, a desconstrução e, por
fim, a diagnose teórica de Rorty, como tentando constituir o
método filosófico por excelência, aquele que alcança a
verdade, mas como caminhos alternativos, mesmo que
excludentes, para a concepção e resolução dos problemas
filosóficos – problemas que não possuem nenhum método
consensualmente adequado de resolução. Este ponto de vista
acaba por promover um ideal de tolerância para as buscas
intelectuais da reflexão filosófica, e creio que Rorty estaria de
acordo que tal perspectiva possui, por isso, valor prático.
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Wittgenstein. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
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KIRKHAM, Richard. Teorias da verdade. São Leopoldo:
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PUTNAM, Hilary. O colapso da verdade e outros ensaios.
Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2008.
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RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de
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_____. Consequências do Pragmatismo. Lisboa: Instituto
Piaget, 1999.
_____. Filosofia como política cultural. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
_____. Objetivismo, Relativismo e Verdade, Escritos
Filosóficos 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
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