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Page 1: Territorio

Tiragem: 44021

País: Portugal

Period.: Diária

Âmbito: Informação Geral

Pág: 34

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Área: 27,07 x 29,83 cm²

Corte: 1 de 3ID: 47019867 06-04-2013

FotografiaViagem a PortugalComeçou por ser uma encomenda do Governo de Salazar, mas viria a tornar-se num momento marcante na alteração do paradigma da arquitectura portuguesa a meio do século XX. Olhado agora à distância de meio século, o Inquérito à Arquitectura Regional Portuguesa mostra-se também como um sinal de renovação na história da fotografi a portuguesa

“Isto não é uma exposi-

ção de arquitectura.”

Este podia ser o texto

de um aviso à entrada

da exposição de fo-

tografi a Território co-

mum, inaugurada na

quarta-feira na galeria

da Fundação EDP, no

Porto. Mas é preciso

falar de arquitectura e recuar no

tempo para entender aquilo que a

tornou possível.

Em meados da década de 1950, o

Governo do Estado Novo incumbiu

o Sindicato Nacional dos Arquitec-

tos de proceder ao levantamento da

arquitectura das diferentes regiões

do país, na procura de um mode-

lo normativo que lhe permitisse

identifi car “a casa portuguesa”, à

imagem dos ideários nacionalistas

que tinham sido cultivados em Es-

panha, Itália e Alemanha, sob os

regimes ditatoriais anteriores à II

Guerra Mundial.

Daqui nasceu o Inquérito à Arqui-

tectura Regional Portuguesa, leva-

do a cabo entre 1955 e 57 e editado

em livro em 1961 (teria depois três

novas edições). Mesmo não ten-

do obtido os resultados desejados

pelo regime, este foi um trabalho

fundamental para o que viria a ser

um novo paradigma para a arquitec-

tura portuguesa, uma base sobre a

qual toda uma nova geração de ar-

quitectos foi construindo o(s) seu(s)

modernismo(s).

O Inquérito foi realizado sob a coor-

denação de Francisco Keil do Amaral

por seis equipas de três arquitectos

cada, distribuídas por outras tantas

regiões do país com as suas câma-

ras fotográfi cas ao ombro. Francisco

Silva Dias e António Menéres, dois

dos poucos sobreviventes da equi-

pa de 18 arquitectos-fotógrafos que

entraram nessa “grande aventura”,

recordam ter usado, respectivamen-

te, uma Rolleifl ex e uma Agfa.

“O Salazar e, principalmente, o mi-

nistro das Obras Públicas, Arantes de

Oliveira, esperavam que confi rmás-

semos a existência de uma casa por-

tuguesa”, recorda Silva Dias, que fez

equipa com Nuno Teotónio Pereira

e António Pinto de Freitas no levan-

tamento da Zona 4 — Região Oeste,

Vale do Tejo e Península de Setúbal.

“Esse objectivo não foi correspon-

dido. Não havia uma arquitectura

nacional, mas uma reacção muito

espontânea das populações às con-

dições do lugar onde viviam”, diz o

arquitecto, agora com 82 anos, mas

que na altura era um jovem ainda a

acabar o curso na Faculdade de Belas

Artes de Lisboa.

António Menéres, com a mesma

idade, trabalhou na Zona 1 — Região

Norte, sob a orientação de Fernando

Távora (que tinha sido seu professor

nas Belas Artes do Porto e em cujo

atelier já trabalhava) e com outro jo-

vem, Rui Pimentel.

Menéres, o mais novo membro

da equipa de 18, confi rma a má re-

acção de Salazar ao resultado do

Inquérito — que custou 500 contos

(cerca de 185 mil euros aos preços

actuais), retirados do Fundo de De-

semprego. “Os governantes estavam

convencidos de que iríamos ‘fazer’

um catálogo mostrando a casa por-

tuguesa a construir em cada uma das

regiões”, relata. Ao contrário, o que

resultou do trabalho de campo mos-

trou “o que eram as respostas das

populações aos problemas postos no

mundo rural, cujo dia-a-dia era con-

sequência natural do seu trabalho e

da sua economia”. “A arquitectura do

milho, entre o Douro e Minho, exigia

as eiras, os espigueiros, os sequeiros,

enquanto no Alentejo as monocul-

turas tinham uma outra exigência,

os chamados montes alentejanos, e

na Costa Nova, em Mira, na pesca

de xávega os pescadores habitavam

em casas de madeira, construídas so-

bre pilares, evitando o assoreamento

provocado pelas areias empurradas

pelos ventos”, descreve António Me-

néres, em depoimento via email...

Keil do Amaral e Fernando Távora

— recorda Silva Dias — sintetizaram

assim o resultado perante os res-

ponsáveis do Estado Novo: “Há uma

superação das bases materiais”, ou

seja, a partir de materiais pobres —

granito, xisto, madeira... —, as pesso-

as conseguiam construir casas com

grande coerência”, diz.

Foi esta realidade que fi cou regis-

tada num espólio de dez mil fotogra-

fi as, de onde foram seleccionadas as

três centenas publicadas na primeira

edição do livro em 1961. Para a actual

exposição Território comum, foram

utilizadas cerca de cinco mil imagens,

a partir do trabalho de inventariação

que a Ordem dos Arquitectos (com

o fotógrafo José Manuel Costa Alves)

iniciou aquando do 50.º aniversário

da publicação do Inquérito (e que po-

de ser consultado em www.oapix.

org.pt).

Renovação da fotografi aSérgio Mah (n. Moçambique, 1970),

comissário da exposição, nota que

se “este espólio é fundamental pa-

ra pensar a história da arquitectura

portuguesa, ele é também o sinto-

ma de uma renovação na história

da fotografi a portuguesa”.

O comissário e professor da His-

tória da Fotografi a na Universidade

Nova de Lisboa nota que, na primei-

ra metade do século XX, esta arte

“praticamente não sofreu a infl uên-

cia dos movimentos modernistas, ou

então, nos anos 1930-40, tivemos um

modernismo sem vanguarda”. Num

meio cultural “bastante conserva-

dor e limitado”, quase circunscrito à

“fotografi a amadora de salão, muito

moldada pelo legado do naturalismo

pictórico”, as fotografi as realizadas

pelos arquitectos do Inquérito “trou-

xeram um olhar mais frio, directo e

despojado”, muito próximo já “da

frente humanista que tem os seus

ecos no realismo poético em França

e no neo-realismo em Itália”.

A centena de imagens que cons-

titui a exposição Território comum,

continua Sérgio Mah, “leva-nos a per-

ceber que há uma dimensão criati-

va, de exploração da fotogenia e das

ressonâncias estéticas da imagem,

que foram utilizadas de uma forma

muito livre e muito espontânea” por

aquele grupo de arquitectos. “O que

vemos nesta exposição é essa aven-

tura da autonomia do fotográfi co, da

possibilidade de desenvolver uma

fotografi a que tem um compromisso

profi ssional, mas ao mesmo tempo

havia uma liberdade para que os fo-

tógrafos se entregassem ao jogo das

Sérgio C. Andrade

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Área: 26,65 x 29,83 cm²

Corte: 2 de 3ID: 47019867 06-04-2013FOTOS: ORDEM DOS ARQUITECTOS

formas, da composição, da variação

dos pontos de vista.”

Francisco Silva Dias confi rma que,

de facto, “a fotografi a fazia parte da

cultura” dos arquitectos da época,

que, por outro lado, tinham Por-

tugal, o Mediterrâneo e o Atlântico

(1945), do geógrafo Orlando Ribeiro,

como “livro de cabeceira”. E Antó-

nio Menéres tinha-se mesmo inicia-

do na fotografi a ainda criança, tendo

à data do Inquérito já assumido esse

“vício” e registado, por exemplo, o

quotidiano do porto de Leixões e de

Leça da Palmeira.

Esses anos 1950 eram o tempo

em que outros arquitectos, como

Victor Palla e Costa Martins — que

em 1959 iriam editar esse álbum

fundamental para a fotografi a por-

tuguesa, Lisboa, Cidade Triste e Ale-

gre —, mas também Sena da Silva ou

Carlos Calvet, se distinguiam “por

uma prática fotográfi ca de índole

neo-realista sintonizada com os ecos

da vocação humanista consagrada

pela célebre exposição fotográfi ca

The Family of Man, organizada pelo

MoMA de Nova Iorque, em 1955”, es-

creve Sérgio Mah no jornal-catálogo

que acompanha Território comum

(e que tem ainda textos de José Ma-

nuel dos Santos, da Fundação EDP,

de João Belo Rodeia, da Ordem dos

Arquitectos, e do arquitecto João

Manuel Santa Rita).

Na visita em que guiou o PÚBLICO

à exposição ainda em montagem na

galeria da EDP, o comissário disse

que a sua preocupação foi “tratar as

imagens caso a caso”, e olhá-las na

sua “qualidade estética, para além

da sua relevância temática”.

São cem, todas quadradas e com

a mesma dimensão (36x36cm),

identifi cadas apenas com referên-

cia ao lugar e ao distrito. Não há

autores. “O Inquérito foi um tra-

balho colectivo”, nota Sérgio Mah.

“Eles não estavam a preparar uma

exposição de arte. Percebemos

que os arquitectos procuram fazer

imagens interessantes, mas nun-

ca comprometendo o objectivo

principal, que era tornar o terri-

tório legível através da imagem”.

“A fotografi a era, para nós, um

instrumento de análise, como o

desenho e a escrita. Mas havia uma

certa poética. Nós cuidávamos da

luz e do enquadramento”, confi r-

ma Silva Dias, que actualmente já

não fotografa — “a minha máquina

avariou, e as novas já não me in-

teressam tanto” —, mas escreve e

pinta, além de fazer parte da As-

sembleia Municipal de Lisboa.

António Menéres continua a

fotografar e a expor o seu vasto

espólio pessoal em diferentes lu-

gares, desde que há quatro anos

foi convidado a mostrar a arquitec-

tura popular portuguesa no Ceará,

no Brasil. Neste fi m-de-semana,

tem duas exposições no Alto Mi-

nho, em Ponte da Barca e em Ar-

cos de Valdevez, onde mostra Ar-

quitectura popular e memória do

tempo e do património construído,

que acompanhou o programa do

Colóquio Internacional de Arqui-

tectura Popular que hoje termina

nesta última vila do interior mi-

nhoto.

Reguengos de Monsaraz, Évora (foto acima)

À esquerda, de cima para baixo:Alandroal, Évora;Portimão, Faro;Fundão, Castelo Branco;Póvoa de Lanhoso, Braga

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O Inquérito à Arquitectura Regional é sinal de renovação na história da fotografi a p34/35

Viagem fotográfica a Portugal através da arquitectura


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