UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
TALITHA MIRIAN DO AMARAL ROCHA
QUEM DIRIGE EM SO GONALO DIRIGE EM QUALQUER
LUGAR: UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PRTICAS E
REPRESENTAES DA GUARDA MUNICIPAL DE SO GONALO
(RJ).
Niteri
2015
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
TALITHA MIRIAN DO AMARAL ROCHA
QUEM DIRIGE EM SO GONALO DIRIGE EM QUALQUER
LUGAR: UMA ETNOGRAFIA SOBRE AS PRTICAS E
REPRESENTAES DA GUARDA MUNICIPAL DE SO GONALO
(RJ).
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Antropologia da Universidade Federal Fluminense como
requisito parcial para a obteno do Grau de Mestre
Vnculos temticos: Cultura Jurdica, Segurana Pblica e administrao de conflitos
Linha de pesquisa do orientador e coorientadora: Cultura Jurdica, Segurana Pblica e
administrao de conflitos
Niteri
2015
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
B
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R672 Rocha, Talitha Mirian do Amaral.
Quem dirige em So Gonalo, dirige em qualquer lugar: uma etnografia sobre as prticas e representaes da Guarda Municipal de So Gonalo (RJ). / Talitha Mirian do Amaral Rocha 2015.
147 f.
Orientador: Edilson Mrcio Almeida da Silva. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia, 2015.
Bibliografia: f. 140-147.
1. So Gonalo (RJ) Guarda Municipal 2. Trnsito urbano So Gonalo (RJ) 3. Segurana pblica So Gonalo (RJ) I. Silva, Edilson Mrcio Almeida da. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Cincias Humanas e Filosofia. III. Ttulo. CDD 363.2
______________________________
Prof. Orientador Dr. Edilson Mrcio Almeida da Silva
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Profa. Coorientadora Dra. Ana Paula Mendes de Miranda
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Profa. Dra. Joana Domingues Vargas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
______________________________
Profa. Dra. Glaucia Pontes Mouzinho
Universidade Federal Fluminense
______________________________
Prof. Dr. Jorge da Silva
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Para meus pais, Joo Bosco Rocha e
Odete Maria do Amaral Rocha
AGRADECIMENTOS
As palavras que vou expressar certamente sero poucas para demonstrar o quanto sou
grata pelo apoio e ajuda que tive durante a minha caminhada at a finalizao desta
pesquisa. Por isso, agradeo de antemo a todos que de alguma maneira fizeram parte
nesse meu processo de aprendizagem, j que cada um com quem convivi foi, sem dvida,
essencial em todo esse caminho. Contudo, seria injusta se no agradecesse nominalmente
a algumas pessoas.
Inicialmente, sou muito grata ao meu orientador, Edilson Mrcio Almeida da Silva, pelo
apoio, dedicao e, principalmente, pela pacincia em todos os momentos de orientao.
Edilson, muito obrigada por todos os conselhos dados e todas as conversas que tivemos.
Sem isso, certamente, no teria condies de finalizar esta dissertao!
Agradeo tambm professora Ana Paula Mendes de Miranda que, alm de minha
coorientadora, possibilitou-me participar do Sub-Projeto Desenvolvimento e
Monitoramento de Indicadores de Segurana Social e de Segurana Pblica a partir dos
atendimentos realizados pela Guarda Municipal de So Gonalo. Ana, obrigada por todas
as oportunidades e por todo apoio que voc sempre me deu.
Aos professores que compuseram minha banca: professor Roberto Kant de Lima,
professora Joana Vargas, professor Jorge da Silva, professora Glaucia Mouzinho. Muito
obrigada pela gentileza de terem aceitado meu convite. Fico muito honrada de ter o meu
trabalho examinado por professores e profissionais que eu admiro tanto.
Agradeo tambm professora Ktia Sento-S Mello que, ainda na defesa do projeto, me
deu sugestes e crticas valiosas para a continuao do trabalho de campo.
CAPES, sou grata pela bolsa de estudos que me foi concedida durante esses dois anos
de mestrado.
Aos meus amigos e companheiros de pesquisa e/ou de Programa: Bris Maia e Silva,
Cristina Marins, Charles Rodrigues, Diano Massarni, Joelma Azevedo, Leonardo
Pompont, Roberta Boniolo, Roberta Correa, Sandro Massarni e Victor Rangel. Agradeo
muito pelas importantes contribuies que deram ao meu trabalho e pela leitura atenta que
tiveram! As questes que vocs levantaram foram muito importantes para construo
desta dissertao.
Agradeo aos colegas e professores do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas
(NUFEP) e do Instituto de Estudos Comparados em Administrao Institucional de
Conflitos (InEAC), que sempre esto dispostos a contribuir na formao de qualquer um.
No poderia deixar de citar minha imensa gratido aos guardas municipais de So
Gonalo, pela generosidade de terem me recebido to bem desde o primeiro momento que
l estive.
Sou grata tambm a todos meus amigos, de Resende e de Niteri, que sempre me
apoiaram. Obrigada por entenderem meus momentos de ausncia e por partilharem
comigo momentos to importantes da minha vida.
Por fim, mas no menos importante, agradeo minha famlia. Aos meus pais, Joo Bosco
Rocha e Odete Maria do Amaral Rocha, pelo amor incondicional e pelo apoio emotivo e
financeiro nessa minha caminhada. Obrigada por tudo que vocs me proporcionaram e por
colocarem minha educao como prioridade na vida de vocs. Agradeo tambm a meu
irmo e companheiro para todos os momentos, Josu Augusto do Amaral Rocha, pelo
exemplo de luta e de dedicao. Vocs so a base da minha vida e tudo que sou devo aos
trs.
RESUMO
O principal objetivo desta dissertao analisar as prticas e representaes que so
acionadas pelos guardas municipais de So Gonalo (RJ) durante o trabalho de regulao
do trnsito. Almeja-se, ainda, refletir sobre o papel dessa instituio na rea de Segurana
Pblica, visto que, embora a Constituio de 1988 no deixe claro qual sua funo,
ultimamente, algumas aes tm sido adotadas no sentido de uma pretensa
descentralizao do poder federativo e estadual de tomada de deciso em relao s
polticas pblicas de segurana. Para isso, foi realizado um trabalho de campo entre
novembro de 2013 e novembro de 2014, buscando, por meio da observao direta,
compreender a atuao profissional dos guardas municipais, em um contexto no qual o
trnsito representado como catico e desorganizado. Alm disso, ressalta-se que, mesmo
que o municpio possua mais de um milho de habitantes, as relaes que so construdas
nas ruas e nos seus espaos pblicos so pautadas pela pessoalidade e proximidade, o que
produz efeitos na atuao da Guarda Municipal. Por fim, assinala-se que o contexto
sociocultural em que a instituio est inserida influencia na maneira como se do as aes
dos guardas municipais, levando-os a construir um saber prtico e localmente estabelecido
a partir de suas prticas cotidianas.
Palavras-chave: Segurana Pblica, Guarda Municipal, trnsito
ABSTRACT
The present work aims to investigate practices and representations evoked by guardas
municipais in So Gonalo (RJ), while carrying out traffic control duties, taking into
consideration their position in a context strongly focused on public security at the
municipal level. For this purpose, we carried out fieldwork between November 2013 and
November 2014 in order to better understand, through direct observation, the performance
of the guardas municipais in So Gonalo. Although Brazilian Federal Constitution
(1988) states that the functions of Guarda Municipal are related solely to protecting
public property, we can notice that what defines their duties may vary according to the
particular needs of each city. As to So Gonalo, we seek to demonstrate that, despite
being regarded as chaotic and disorganized, the traffic constitutes a significant issue. In
order to know its importance, we aim to discuss native category associated with that city
which somehow allow us to understand why the traffic is defined in that way. We also
discuss some points concering the performance of the officers and how they view it. At
last, we stress that they do not act uniformly, but rather guided by bom senso, a locally-
constructed practical knowledge which empowers them to decide on when to follow either
formal or informal plans.
Keywords: Public Security, Guarda Municipal, traffic
SUMRIO
1. Introduo .................................................................................................................... 10
2- So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade .................................... 29
2.2. O Alcntara e a pequena ndia .......................................................................... 38
2.3. O Centro da cidade e o Rodo de So Gonalo: construindo e demarcando as
diferenas ..................................................................................................................... 46
2.4. As ruas do Centro durante os grandes eventos da cidade .................................... 50
3. A Guarda Municipal de So Gonalo: funes, atribuies e representaes ............ 54
3.1. Regulamento Interno ............................................................................................ 55
3.2. Autoridade e Poder: estrutura hierrquica do Comando da Guarda Municipal ... 58
3.3. Ser ou estar guarda municipal? Pensando a maneira como os agentes se classificam
..................................................................................................................................... 66
3.4. Entre o bom e o mau setor: trnsito de bairro, o buraco e a proximidade.75
3.5. Punies ................................................................................................................ 81
3.6. Outras atribuies da Guarda Municipal de So Gonalo: pensando sobre o papel e
a(s) identidade(s) ......................................................................................................... 86
4. Prticas e Representaes dos guardas municipais no trnsito de So Gonalo ......... 88
4.1. Como fazer o trnsito fluir? Entre o plano formal e informal .............................. 91
4.2. A formao de um saber prtico ........................................................................... 98
4.3. Cada caso um caso: instrumentos necessrios para a construo de um saber103
4.4. Proximidade e pessoalidade: construindo relaes e identidades ...................... 109
4.4.1. As mltiplas relaes e identidades no espao pblico .................................. 110
4.4.2. As relaes personalizadas entre as instituies e um dilogo informalmente
constitudo ................................................................................................................. 117
4.5. Respeito e autoridade: a multa e a arma ............................................................. 121
4.5.1. Em busca de uma legitimidade ....................................................................... 126
4.6. Reciprocidade, jeitinho e esquema ..................................................................... 129
5. Consideraes Finais ................................................................................................. 134
6. Referncias Bibliogrficas......................................................................................... 141
10
1. Introduo
Com base em um amplo levantamento da produo bibliogrfica produzida sobre
as temticas da violncia, criminalidade, segurana pblica e justia criminal no Brasil,
Kant de Lima, Misse e Miranda (2000) apontam que h, hoje, um campo do conhecimento
cujos estudos empricos tm, cada vez mais, buscado explicitar os modos de
funcionamento das instituies ligadas execuo e planejamento das aes relativas
segurana pblica. No o fazem para critic-las, mas, fundamentalmente, para entender
como funcionam. O meu trabalho est orientado por esse tipo de perspectiva, ou seja, mais
do que apontar defeitos ou enfatizar faltas e ausncias dos agentes/rgos da rea de
segurana pblica, pretendo entender qual a lgica com que eles operam, focando,
especificamente, no caso, na atuao da Guarda Municipal1 de So Gonalo (RJ).
A frase que intitula este trabalho Quem dirige em So Gonalo dirige em
qualquer lugar faz referncia a uma representao associada, de modo recorrente, ao
trnsito do municpio, segundo a qual esse seria caracteristicamente catico e
desorganizado. Como, em So Gonalo, o trnsito regulado pela Guarda Municipal, tive
por objetivo analisar as prticas e representaes cotidianamente acionadas pelos agentes
durante o desempenho do seu ofcio, considerando no s a referida representao do
trnsito, como tambm o lugar ocupado por aquela instituio num contexto de nfase na
municipalizao da Segurana Pblica.
O contato do Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal
Fluminense (NUFEP/UFF), do qual fao parte, com o contexto emprico de So Gonalo
comeou no ano de 2007, quando foram realizados o diagnstico e o plano de segurana
municipal. Desde ento, tm sido realizadas reflexes sobre o papel do municpio nas
polticas de Segurana Pblica e, mais especificamente, sobre a atuao da Guarda
Municipal. Um exemplo o trabalho de Barbosa, Mouzinho, Kant de Lima e Silva (2008),
que destaca como uma possvel atribuio do poder da polcia para a Guarda Municipal
poderia ser capaz de afast-la de sua principal vocao, qual seja: a administrao de
conflitos baseada em relaes de proximidade e aes preventivas.
1 No presente trabalho utilizo a expresso Guarda Municipal para se referir instituio, j para me reportar
aos agentes uso o termo guarda municipal, em minsculo.
11
No Brasil, a questo da Segurana Pblica compete, formalmente, ao chamado
Sistema de Segurana Pblica, que composto por diversos rgos em nveis federal,
estadual e municipal. As diretrizes gerais desse sistema foram elaboradas pela
Constituio Federal de 1988, prevendo, entre outras coisas, quais seriam os rgos
responsveis por sua manuteno. No artigo 144, definido que a segurana pblica um
dever do Estado e, tambm, responsabilidade de todos. Esse artigo estabelece que o papel
da polcia, tanto militar quanto civil, cabe ao governo estadual. Dessa forma, grande parte
das polticas pblicas desenvolvidas na rea de segurana elaborada pelo poder estadual.
Em relao ao papel dos municpios, o artigo prev, somente, que eles podero constituir
guardas municipais destinadas proteo dos bens, servios e instalaes, conforme
dispuser a lei (Brasil, 1988, art 144, 8o).
Ao procurarem compreender o funcionamento das Guardas Municipais do pas,
alguns autores questionaram a maneira como a definio de suas funes aparece no texto
constitucional (Brasil, 1988). Vargas e Oliveira Junior (2010), por exemplo, destacaram
que a parte da Constituio que define o papel das Guardas Municipais considerada
ambgua, no estabelecendo, com preciso, como a segurana pblica deve ser tratada em
mbito municipal. Mello (2011) tambm assinala que, no artigo 144 da Constituio, no
se definem claramente as competncias e rotinas de trabalho nas Guardas, nem o seu lugar
em meio a outras instituies ligadas Segurana Pblica. Dada a relativa impreciso do
texto constitucional, o municpio acabou, assim, por assumir, formalmente, um papel
secundrio no que concerne implementao e elaborao das polticas da rea.
Em contrapartida, os ltimos programas e planos de segurana pblica
desenvolvidos no pas tm buscado incentivar as aes municipais, estimulando a
descentralizao do poder no que concerne tomada de decises relativas s polticas de
segurana pblica (Brasil, 2000, 2003, 2007). Nesse sentido, em mbito nacional, pode se
dizer que, pelo menos, formalmente, desde 2000, os municpios vm tendo um maior
destaque no campo da segurana pblica. Tanto o , que a atuao das Guardas
Municipais objeto de ateno dos dois primeiros programas e planos de segurana
pblica elaborados em mbito federal. Contudo, se, no de 2000, h meno participao
das Guardas no ordenamento do trnsito e um incentivo criao da instituio fora de
padres militares, no Programa Segurana Pblica para o Brasil, publicado em 2003,
assinala-se que a Guarda Municipal no possui funes e metas bem definidas, o que,
consequentemente, a priva de uma identidade institucional formalmente estabelecida. Em
12
lugar disso, haveria, to somente, um princpio orientador da ao dos guardas municipais
relacionado com a ideia de que eles devem atuar junto populao, habilitados a
compreender a complexidade pluridimensional da problemtica da segurana pblica e
agir em conformidade com esta compreenso, atuando, portanto, como solucionadores de
problemas (Brasil, 2003, p. 58). J em 2007, com a implementao do Programa
Nacional de Segurana Pblica com Cidadania (PRONASCI), as aes municipais de
combate e preveno da violncia comearam a ganhar um pouco mais de destaque,
difundindo-se, inclusive, para alm da Guarda Municipal. Isso pode ser observado, por
exemplo, com a criao dos Gabinetes de Gesto Integrados Municipais (GGIM) e dos
Conselhos Comunitrios de Segurana Pblica.
Nesse sentido, cabe reconhecer que o governo federal tem apresentado estmulos
atuao dos municpios no que concerne s polticas de segurana, ainda que muitas delas
continuem sendo preferencialmente desenvolvidas e implementadas pelos governos
estaduais. Um desses incentivos advm da Secretaria Nacional de Segurana Pblica
(SENASP), que, juntamente com o Ministrio da Justia, vem liberando recursos para que
os municpios invistam na rea. Isso ocorre porque posto que as prefeituras, por estarem
mais prximas s populaes locais e, portanto, conhecerem (ou deveriam conhecer)
melhor suas peculiaridades e demandas, estariam mais aptas a implementar polticas de
administrao dos conflitos no-repressivas. Por isso, pelo menos formalmente, o
incentivo municipalizao da Segurana Pblica pode ser entendido como parte de um
esforo na busca pela consolidao de um Estado Democrtico de Direito2 no Brasil.
Em sua tese de livre docncia, Amorim (1975) aponta que, historicamente, a
administrao pblica federal nunca adotou polticas de descentralizao, mas, sim, de
desconcentrao do poder, o que tem, por consequncia, a manuteno de uma rede de
dominao imposta pelo poder central aos poderes locais. Embora o trabalho de Amorim
tenha como foco a burocracia do nordeste do Brasil, pode se afirmar que, a despeito de
seus avanos, o atual movimento de municipalizao da segurana pblica tem esbarrado
no mesmo tipo de centralismo poltico, posto que as aes municipais permanecem
submetidas regulao federal. Da vem a concluso tomada de emprstimo da sociloga
de que no vivemos propriamente um quadro de descentralizao, mas de desconcentrao
de certas polticas de segurana, uma vez que as mesmas so induzidas pela esfera central
2 Anteriormente a 1988, no perodo do Regime Militar (19641985), a segurana pblica era tratada em
nvel de Segurana Nacional e, por conta disso, no era tratada como direito e responsabilidade de todos.
13
e, portanto, continuam direta ou indiretamente submetidas s tomadas de deciso e aos
recursos federais.
Nesse particular, Vargas (2010) observa que a suposta descentralizao das
polticas pblicas assumiu uma caracterstica peculiar na rea de segurana, j que a
Constituio no conferiu protagonismo aos municpios no que tange s funes de
elaborao e desenvolvimento das polticas pblicas do setor. Prova disso reside no fato
de que o texto constitucional, embora tenha previsto e, pode se dizer, estimulado a criao
das Guardas Municipais no por acaso, foi tambm restritivo ao seu mandato, no
especificando a sua organizao, funcionamento ou atribuies (ibid., p. 47).
A ideia de elaborar um sistema integrando as informaes e aes das instituies
ligadas Segurana Pblica foi apresentado, pela primeira vez, em 2004, junto com o
Programa Segurana Pblica para o Brasil (2003), atravs do Sistema nico de
Segurana Pblica (SUSP). O projeto, que foi reelaborado em 2007, depois da
implementao do PRONASCI, tinha o objetivo de propiciar a articulao entre aes
federais, estaduais e municipais no campo da segurana pblica e justia criminal,
integrando, tambm, os prprios rgos de segurana (Miranda, 2008). Os principais eixos
de atuao eram: gesto unificada da tecnologia da informao; gesto do sistema de
segurana; formao e aperfeioamento de policiais; valorizao das percias e a melhora
da produo de prova; preveno da violncia e instalao de ouvidorias independentes; e,
finalmente, modernizao da gesto da segurana pblica nos rgos de segurana
pblica.
O projeto, embora tenha sido considerado estrategicamente interessante, acabou se
confrontando com uma srie de obstculos. Segundo pesquisadores da rea (Miranda,
2008; Miranda, Oliveira, e Paes, 2010; Ribeiro e Silva, 2010; e Azevedo e Vasconcelos,
2011), um dos mais evidentes reside na resistncia quanto divulgao dos registros
produzidos por cada uma das instncias envolvidas, o que dificulta a efetiva integrao
dos dados e informaes sobre criminalidade, violncia e justia, tal qual proposto pelo
SUSP (Miranda, 2008). Isso ocorre, conforme assinalam Azevedo e Vasconcelos (2011),
devido desarticulao verificada tanto no Sistema de Segurana Pblica quanto no
Sistema de Justia Criminal, o que tem a ver com as disputas por prerrogativas entre as
agncias que o compem. De acordo com os autores,
A inexistncia de padro de registro unificado para os casos, o descompasso entre
as formas organizacionais das diferentes agncias [...] e as deficincias e
http://lattes.cnpq.br/9208010575645615http://lattes.cnpq.br/2285619103268687
14
incapacidades histricas de comunicao entre todas as agncias so alguns dos
indicadores dessa desarticulao. A prpria ideia de Sistema de Justia Criminal
parece mais um artifcio conceitual (e quase retrico) utilizado por ns, cientistas
sociais, para referirmo-nos a um objeto por vezes inatingvel empiricamente.
(Ratton apud Azevedo e Vasconcelos, 2011, p 64).
Como apontam diversos estudos da rea de Cincias Sociais3, a noo de sistema
pressupe harmonia, comunicabilidade e interdependncia entre os seus elementos, de tal
maneira que a alterao em uma das partes, consequentemente, causa efeito no conjunto.
Nesse sentido, pode se afirmar que no h, na verdade, um Sistema de Segurana Pblica
no Brasil, posto que no se verifica uma integrao sistmica entre os rgos e instituies
que o compem. Todavia, embora no seja possvel encar-lo como um sistema
propriamente dito, no h como avaliar corretamente a atuao de instituies como, por
exemplo, as Guardas Municipais sem levar em conta as relaes que os seus agentes
estabelecem com outros agentes da rea de segurana pblica. Como pretendo apontar no
decorrer do trabalho, a relao da Guarda Municipal de So Gonalo com outras
instituies se d, sobretudo, por meio das relaes pessoais que os seus agentes
estabelecem entre si, o que, de alguma maneira, promove a difuso de algumas ideias e
valores como, por exemplo, as derivadas da influncia militar sobre as prticas e
representaes dos agentes da Guarda. No caso especfico de So Gonalo, desde a
elaborao do Plano Municipal de Segurana Pblica, pelo Ncleo Fluminense de Estudos
e Pesquisas (NUFEP/UFF), em 2008, notrio que muitos dos guardas municipais, apesar
de reclamarem da disciplina militarizada que lhes imposta, ainda desejam possuir um
status semelhante ao dos militares. Como irei ressaltar, muitos deles acreditam que a
instituio a que pertencem somente ter credibilidade diante dos outros rgos de
segurana pblica e do pblico em geral se os seus atributos puderem ser comparados aos
da Polcia Militar.
Em contraposio a esse tipo de influncia na organizao e constituio das
Guardas Municipais, foi instituda, em agosto de 2014, a lei 13.022, tambm conhecida
como Estatuto Geral das Guardas Municipais. Essa lei afirma que as Guardas so
instituies de carter civil, ficando, assim, proibida a incorporao de princpios militares
em sua estrutura hierrquica e, tambm, nos seus regulamentos disciplinares. Do ponto de
vista legal, buscou-se, fundamentalmente, definir a abrangncia e esmiuar as
3 Alguns autores que trataram e discutiram a noo de sistema nas Cincias Sociais foram Durkheim (2009),
Radcliffe-Brown (2013) e Lvi-Strauss (1991).
15
competncias das Guardas Municipais no Brasil. Desse modo, se o texto constitucional
centrava o papel das Guardas Municipais somente na proteo do patrimnio pblico, com
o Estatuto Geral das Guardas Municipais, as suas funes teriam se ampliado
significativamente, conforme possvel observar abaixo:
Captulo III
Das Competncias
Art. 4o competncia geral das guardas municipais a proteo de bens, servios,
logradouros pblicos municipais e instalaes do Municpio.
Pargrafo nico. Os bens mencionados no caput abrangem os de uso comum, os
de uso especial e os dominiais.
Art. 5o So competncias especficas das guardas municipais, respeitadas as
competncias dos rgos federais e estaduais:
I - zelar pelos bens, equipamentos e prdios pblicos do Municpio;
II - prevenir e inibir, pela presena e vigilncia, bem como coibir, infraes penais
ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, servios e
instalaes municipais;
III - atuar, preventiva e permanentemente, no territrio do Municpio, para a
proteo sistmica da populao que utiliza os bens, servios e instalaes
municipais;
IV - colaborar, de forma integrada com os rgos de segurana pblica, em aes
conjuntas que contribuam com a paz social;
V - colaborar com a pacificao de conflitos que seus integrantes presenciarem,
atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas;
VI - exercer as competncias de trnsito que lhes forem conferidas, nas vias e
logradouros municipais, nos termos da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997
(Cdigo de Trnsito Brasileiro), ou de forma concorrente, mediante convnio
celebrado com rgo de trnsito estadual ou municipal;
VII - proteger o patrimnio ecolgico, histrico, cultural, arquitetnico e
ambiental do Municpio, inclusive adotando medidas educativas e preventivas;
VIII - cooperar com os demais rgos de defesa civil em suas atividades; IX -
interagir com a sociedade civil para discusso de solues de problemas e projetos
locais voltados melhoria das condies de segurana das comunidades;
X - estabelecer parcerias com os rgos estaduais e da Unio, ou de Municpios
vizinhos, por meio da celebrao de convnios ou consrcios, com vistas ao
desenvolvimento de aes preventivas integradas;
XI - articular-se com os rgos municipais de polticas sociais, visando adoo
de aes interdisciplinares de segurana no Municpio;
XII - integrar-se com os demais rgos de poder de polcia administrativa, visando
a contribuir para a normatizao e a fiscalizao das posturas e ordenamento
urbano municipal;
XIII - garantir o atendimento de ocorrncias emergenciais, ou prest-lo direta e
imediatamente quando deparar-se com elas;
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9503.htm
16
XIV - encaminhar ao delegado de polcia, diante de flagrante delito, o autor da
infrao, preservando o local do crime, quando possvel e sempre que necessrio;
XV - contribuir no estudo de impacto na segurana local, conforme plano diretor
municipal, por ocasio da construo de empreendimentos de grande porte;
XVI - desenvolver aes de preveno primria violncia, isoladamente ou em
conjunto com os demais rgos da prpria municipalidade, de outros Municpios
ou das esferas estadual e federal;
XVII - auxiliar na segurana de grandes eventos e na proteo de autoridades e
dignatrios; e
XVIII - atuar mediante aes preventivas na segurana escolar, zelando pelo
entorno e participando de aes educativas com o corpo discente e docente das
unidades de ensino municipal, de forma a colaborar com a implantao da cultura
de paz na comunidade local.
Pargrafo nico. No exerccio de suas competncias, a guarda municipal poder
colaborar ou atuar conjuntamente com rgos de segurana pblica da Unio, dos
Estados e do Distrito Federal ou de congneres de Municpios vizinhos e, nas
hipteses previstas nos incisos XIII e XIV deste artigo, diante do comparecimento
de rgo descrito nos incisos do caput do art. 144 da Constituio Federal, dever
a guarda municipal prestar todo o apoio continuidade do atendimento.
(BRASIL, Lei n 13.022, 2014, art. 4 e 5)
Como possvel se notar na reproduo acima, com a aprovao da lei 13.022, fica
estabelecido que uma das possveis funes da Guarda Municipal diz respeito ao exerccio
das competncias de trnsito, desde que essas lhes sejam formalmente conferidas. No caso
de So Gonalo, foi sobre tal exerccio, suas prticas e representaes que recaiu a minha
ateno.
***
Meu interesse pelo tema surgiu quando realizei uma etnografia na Guarda
Municipal de Rio Bonito (RJ), que posteriormente resultou no meu trabalho monogrfico
de concluso da graduao em Cincias Sociais, intitulado Telefone sem fio: Uma
etnografia do processo de registro dos atendimentos prestados pela Guarda Municipal de
Rio Bonito (Rocha, 2013)4. Para produzi-lo, procurei compreender as diferentes vises dos
agentes envolvidos nos processos de registro dos atendimentos, desde o momento em que
o fato operacional ou administrativo acontecia, passando pelo registro propriamente dito,
at chegar aos seus possveis usos e destinos. Em relao a este trabalho, foi possvel
perceber que as funes que um guarda municipal deve realizar, muitas vezes, no so
4 Durante o desenvolvimento dessa pesquisa, fui bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciao
Cientfica (PIBIC).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art144http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art144
17
formalmente conhecidas nem pela populao e nem pelos prprios agentes, o que
prejudica a construo de uma identidade institucional formal que sirva de base para a sua
atuao (Miranda, Mouzinho e Mello, 2003; Mello, 2011).
O presente trabalho corresponde a um desdobramento da minha participao no
subprojeto Desenvolvimento e Monitoramento de Indicadores de Segurana Social e de
Segurana Pblica a partir dos atendimentos realizados pela Guarda Municipal de So
Gonalo, coordenado pela professora Ana Paula Mendes de Miranda e integrante do
Instituto Nacional de Cincia e Tecnologia Instituto de Estudos Comparados em
Administrao Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). O objetivo do subprojeto era
compreender o processo de classificao das ocorrncias atendidas pelos agentes da
Guarda Municipal, visando o desenvolvimento de um banco de dados que viabilizasse a
construo de um painel de indicadores para o monitoramento das polticas pblicas de
segurana.
Durante o desenvolvimento do projeto, Azevedo (2012) observou que os registros
realizados em livros de ocorrncias e no Talo de Registro de Ocorrncia (TRO) no
eram organizados para subsidiar o trabalho da instituio e, sim, para resguardar o
guarda de eventuais problemas ou, ento, para punir outro(s) agente(s). A autora concluiu
que a introduo do TRO no alterou a maneira como eram registrados os atendimentos,
percebendo, assim, que no adianta ter o melhor programa de computador para estruturar
um banco de dados se os agentes envolvidos no compartilharem da mesma lgica
(Miranda, Azevedo e Rocha, 2014). A no sistematizao das informaes levou os
pesquisadores do projeto a desenvolvermos uma pgina virtual, chamada Informaes
sobre conflitos no espao Urbano CEU5 , que se constituiu enquanto uma proposta
alternativa frente ao cenrio encontrado, possibilitando, por essa via, a construo de um
instrumento que contribusse para o aperfeioamento e a acessibilidade dos registros
realizados6. A partir das informaes inseridas no site, observamos que os casos
categorizados como Coliso sem vtima constavam como os principais atendimentos
registrados pelos guardas municipais desde o incio de 2010 at agosto de 2013. Com isso,
comecei a perceber que a principal atividade da Guarda Municipal de So Gonalo era a
organizao do trnsito da cidade e, a partir de ento, passei a ter interesse em
compreender como ocorre essa atividade e quais so os instrumentos usados pelos agentes
5 URL: < http://www.uff.br/ceu-ineac>. Acesso: 16/11/2015.
6 As informaes presentes na pgina virtual so oriundas do Talo de Registro de Ocorrncia (TRO).
http://www.uff.br/ceu-ineac
18
para a sua organizao. Em 2010, em razo do subprojeto supracitado, acompanhei o
trabalho dos guardas municipais por um perodo de trs meses, observando, sobretudo, a
sua atuao na regulao do trnsito pelas ruas da cidade. Posteriormente, j inserida no
Programa de Ps-Graduao em Antropologia (PPGA), da Universidade Federal
Fluminense, para cursar o mestrado, voltei a realizar observao direta das atividades
desenvolvidas pelos guardas, inspirada pela questo que acabou por se tornar o meu objeto
de pesquisa.
A primeira vez que fui a So Gonalo foi no incio do ano de 2010. Antes disso, j
tinha escutado, algumas vezes, a mxima que intitula este trabalho, e foi ela que guiou
minhas primeiras idas cidade. Com o passar do tempo, medida que frequentava as suas
ruas, fui observando o trabalho dos guardas municipais e percebendo que a representao
associada ao trnsito no municpio correspondia a uma imagem genrica e
homogeneizante. No entanto, no poderia desconsider-la, muito embora, ao analisar o
trabalho dos guardas municipais de So Gonalo, tenha me dedicado a compreender o
contexto no qual a instituio estava inserida, de modo a identificar at que ponto a
atuao da Guarda Municipal dialogava com esse tipo de representao, assim como com
as demais ideias e valores presentes no entorno social.
O fato de o meu lcus de pesquisa ser em So Gonalo me proporcionou o acesso a
algumas informaes que serviram de base preliminar para a realizao da pesquisa.
Alguns colegas e companheiros da Universidade Federal Fluminense moram e/ou
possuem famlia nessa cidade, e, por isso, conversar e trocar ideias com eles, a respeito
dos meus interesses de pesquisa, me ajudou a entender um pouco da representao que os
moradores tm do municpio, principalmente, quando se trata do trnsito. Muitas vezes,
quando falava da pesquisa para algum que morava ou tinha alguma relao com o
municpio, escutava diversos comentrios sobre as caractersticas do trnsito do Alcntara,
inclusive sobre o porqu do ditado que nomeia este trabalho. Apesar de meus colegas e
amigos no terem sido, propriamente, os interlocutores da pesquisa, o dilogo com eles foi
til para que eu comeasse a refletir a respeito das questes das quais iria me ocupar. De
certa maneira, era como se eles, em nossas conversas sobre o trnsito da cidade,
estivessem me introduzindo no universo com o qual eu iria lidar durante o trabalho de
campo.
Como disse, j tinha feito algumas incurses e observaes para o projeto de
pesquisa do qual tinha participado anteriormente. Contudo, a tarefa de comear a fazer
19
trabalho de campo naquela Guarda Municipal, agora movida por novas inquietaes e
perguntas, fazia parecer como se estivesse iniciando minha primeira experincia
etnogrfica.
1.1- Um (re)comeo
Era a primeira semana de novembro de 2013 quando voltei a frequentar e
acompanhar o trabalho dos guardas de So Gonalo. A agente Fabiana7, que tinha mais de
vinte anos na instituio, convidou a mim e outros colegas para fazermos uma palestra
sobre nossa pesquisa8. A palestra seria dirigida nova turma de guardas municipais que
havia sido convocada no meio do ano. Como tinha ocorrido em outras oportunidades, a
agente ficou responsvel por organizar o curso de formao dos novatos. Segundo ela, sua
base para estruturar o curso foi a Matriz Curricular Nacional para as Guardas Municipais,
e, a partir da, ela buscava parcerias com outras instituies ou, mesmo, com guardas que
pudessem ministrar os contedos da grade curricular. Antes de participar da palestra que
eu e meus colegas iramos fazer, fui at o colgio onde estavam sendo ministradas as aulas
do curso para, de alguma maneira, comear a me aproximar dos agentes. O colgio ficava
na Avenida Maric, ao lado de um grande supermercado. Quando cheguei, os recrutas9 e
demais guardas j estavam em uma sala, esperando o palestrante do dia. Assim que entrei
na sala, os guardas olharam para trs, achando que era eu quem iria fazer a palestra.
Cumprimentei a guarda Fabiana e um outro agente que estava ao seu lado. Sentei-me
numa carteira ao fundo da sala, um pouco longe de onde eles estavam. Antes da fala do
palestrante, um guarda chamado Walace tinha dado uma aula para os recrutas sobre
Tcnicas de telecomunicao, focando no alfabeto fontico que deve ser utilizado em
comunicaes com rdio e na possibilidade de se montar uma rede de comunicaes na
Guarda Municipal. Um pouco antes de o agente terminar, o palestrante chegou. Era um
senhor vestido de terno, que, depois fiquei sabendo, se tratava de um agente da Polcia
Federal. O guarda Walace, ento, interrompeu sua aula para apresentar o palestrante:
Bom dia senhores, aqui est o senhor Fernandes, agente da Polcia Federal, que dar,
7 Optei por usar nomes fictcios para preservar a identidade dos agentes
8 Os colegas que tambm foram convidados a participar da palestra para a Guarda Municipal de So
Gonalo foram: Joelma de Souza Azevedo e Marcos Vincius Moura. 9 Recrutas era a maneira como os demais guardas municipais se referiam aos guardas que ainda estavam
em processo de formao.
20
hoje, uma palestra sobre o Estatuto do Desarmamento. Um, dois!. Assim que o agente
concluiu a frase, os recrutas levantaram, ficaram em posio de sentido e falaram: Trs,
quatro! em um tom de voz elevado, s voltando a se sentar quando o agente da Polcia
Federal falou descansar.
Durante a aula, o palestrante focou nos pontos necessrios para a obteno do porte
de arma de fogo. Por conta disso, a discusso sobre a sua pertinncia ou necessidade na
atividade da Guarda foi o tema central naquela manh. A guarda Fabiana havia dito que,
h algum tempo, eles fizeram uma pesquisa entre os guardas de So Gonalo para saber a
sua opinio sobre o assunto. Segundo ela, os guardas, em sua maioria, eram favorveis ao
armamento da Guarda, mas ela acreditava que, para isso, era preciso que o comando e
demais gestores tambm estivessem de acordo. O guarda Walace, por sua vez, disse que
no era nem a favor nem contra o armamento da Guarda, mas que, na sua viso, seria
preciso, antes de mais nada, discutir qual a funo da Guarda Municipal para, s ento,
decidir quais eram os equipamentos e treinamentos realmente necessrios.
Observar cenas como essas, alm de outras ocorridas durante as aulas do curso, me
fizeram notar que havia alguns valores e princpios militares influenciando, de alguma
forma, a ao daqueles agentes, a despeito de seu papel estar mais ligado administrao
dos pequenos conflitos existentes nas ruas e no trnsito. Comecei a perceber isso mais
claramente quando passei a frequentar, com regularidade, as ruas da cidade, observando e
acompanhando o trabalho deles.
1.2- Algumas observaes metodolgicas
Depois de assistir a algumas palestras realizadas durante o curso de formao da
turma 22 mil10
, passei a acompanhar os estgios11
. Essa atividade era a forma como os
guardas municipais mais antigos ensinavam aos recrutas como deveriam atuar na
organizao e nos atendimentos prestados no trnsito. Ficava, normalmente, um grupo de
dois ou trs guardas mais novos com um outro agente mais antigo. A primeira vez em que
10
Conforme irei explicar posteriormente, os guardas municipais de So Gonalo se classificam de acordo
com as turmas de ingresso na instituio. Os dois nmeros iniciais da matrcula dos agentes servem para
diferenciar a turma a que cada um pertence. 11
Estgio era a maneira como os guardas municipais chamaram as primeiras incurses dos recrutas no
trabalho junto aos guardas mais antigos nas ruas da cidade.
21
testemunhei esse tipo de atividade foi no Alcntara, quando acompanhava o trabalho dos
recrutas Mrcia, Jnior e Umberto, ento supervisionados pelo guarda Fbio. A partir de
ento, passei a ir com mais frequncia a esse bairro, no s para observar o trabalho dos
guardas municipais, como tambm para conhecer as suas ruas.
Mesmo j tendo ido algumas vezes a So Gonalo, aquela realidade era um pouco
distante da minha, j que moro na cidade vizinha, Niteri. Lembro-me, at hoje, de uma
situao que me fez perceber isso, quando passei pela primeira vez na frente de um
inusitado estabelecimento comercial. Fiquei um tempo na frente da loja, tentando entender
o que era aquilo. Na frente do estabelecimento, ocupando uma parte da calada, ficavam
algumas mesas com verduras e legumes. Ao fundo, havia um balco com um senhor logo
atrs. Compondo o ambiente, havia, ainda, um freezer com carnes e algumas pessoas
fazendo compras. No canto esquerdo, uma parede inteira era ocupada por gaiolas com
galinhas vivas e presas. Fiquei um tempo ali, observando, quando percebi que o senhor
atrs do balco me olhava fixamente, e, por isso, decidi ir embora sem saber, afinal, o que
era o estabelecimento, se um aougue, um armazm ou uma verduraria. Depois,
conversando com uma guarda, descrevi a loja e perguntei o que era. Ela me respondeu, em
tom de gozao: Ah, o abatedouro! Tem muitos por aqui.. A situao me fez
compreender que o que tinha naquele bairro ainda era muito estranho para mim, assim
como eu tambm era uma estranha naquele lugar. Passei, ento, a flanar pelas ruas sem um
ponto fixo de observao, buscando, de alguma maneira, realizar aquilo a que Da Matta
(1978) se referiu como a primeira operao do ofcio do etnlogo: a transformao do
extico em familiar (p. 04). Com o passar do tempo, medida que os guardas iam se
acostumando com minha presena, tambm fui me acostumando com a deles e com as
ruas, de modo que aquilo que antes me surpreendia passava tambm a fazer parte do meu
dia-a-dia.
Passei a frequentar as ruas de So Gonalo em novembro de 2013, quando os
guardas da ltima turma eram ainda recrutas. Continuei fazendo campo no municpio
at novembro de 2014. Ia de duas a trs vezes por semana cidade, acompanhando e
observando o trabalho dos guardas nas ruas do Alcntara e do Centro. Durante a
realizao do projeto sobre as formas de registro dessa Guarda, percebi que a maior parte
deles envolvia coliso sem vtima e com vtima e se concentrava no Alcntara. Por isso,
num primeiro momento, minha inteno era fazer trabalho de campo observando apenas a
atuao dos guardas que trabalhavam nesse bairro. Com o passar do tempo, os prprios
22
guardas comearam a me perguntar por que eu no ia aos setores12
localizados em outros
bairros, incentivando-me a ir ao Centro, j que l, segundo eles, havia menos movimento
de veculos e pessoas. Resolvi comear, ento, ainda no incio de 2014, a ir ao Centro de
So Gonalo. L tambm se concentrava grande parte dos setores de atuao dos
guardas responsveis pela regulao do trnsito. Por conta do trabalho de campo, acabei
frequentando mais o Centro e o Alcntara, embora tambm tenha ido a outros setores,
como os que ficam no bairro Paraso e no Coluband.
Chegava a So Gonalo por volta das nove horas e ficava at as 18 horas, mais ou
menos. Quando estava ainda no nibus, indo de Niteri para So Gonalo ou fazendo o
caminho inverso, procurava conversar com passageiros enquanto prestava ateno no
itinerrio que fazamos at chegar ao meu destino. Como, no incio, So Gonalo se
mostrava relativamente distante de minha realidade, esse exerccio me ajudava a
compreender como as pessoas usufruam e se apropriavam daqueles espaos. Quando
chegava ao Alcntara ou ao Centro, procurava andar pelas ruas e observar as primeiras
movimentaes da manh: os comerciantes abrindo suas lojas, os camels montando suas
barracas, as filas dos nibus com destino ao Rio de Janeiro e a Niteri aumentando.
Andava pelas ruas da cidade para conhecer um pouco melhor aquela realidade, procurando
me perder em cada local potencialmente capaz de me surpreender com o novo e o
diferente. Por vezes, apenas procurava por um guarda municipal ao qual, caso no
conhecesse, prontamente me apresentava.
A observao direta foi uma estratgia metodolgica importante. Quando no
estava andando pelas ruas, mantinha-me prximo a um guarda, procurando observar seu
trabalho e sua interao com o entorno. Tambm conversava com eles; mas, na maior
parte das vezes, ficava um pouco afastada para no atrapalhar e/ou interferir
demasiadamente em suas aes. Aproximava-me, porm, quando ocorriam imprevistos,
tais como, colises, acidentes, pequenos conflitos etc. Buscava no ficar muito tempo
junto a um nico guarda. Durante o dia, ia de um lado a outro do bairro observando o
trabalho de diversos agentes e conversando com eles. A observao do trabalho dos
guardas foi realizada, portanto, do ponto de vista de um transeunte, mesmo porque nunca
cheguei a dirigir pelas ruas da cidade.
12
Setor a maneira como os guardas municipais de So Gonalo denominam os locais de trabalho no
trnsito da cidade.
23
Ao andar pelas ruas e vagar pelas esquinas, era confrontada com uma srie de
informaes, sons e significados difceis de assimilar em sua totalidade. Da emerge a
necessidade do exerccio de transitividade a que me submeti frente aos variados
estmulos que surgem quando se observa a cidade, mesmo que de uma determinada
perspectiva (Caruso, 2009). Essa estratgia foi empregada, tambm, por Caruso (2009) em
sua tese de doutorado intitulada Entre ruas, becos e esquinas: por uma antropologia dos
processos de construo da ordem na Lapa carioca. No caso, o trabalho de campo da
autora foi marcado por um exerccio de transitividade (p. 37), que lhe permitiu
compreender as especificidades na relao espao-tempo observadas no contexto em
questo. Ao demonstrar o desafio de experimentar a cidade em sua totalidade, ela (2009)
enfatiza que
os fragmentos de realidade que compem o mosaico da vida metropolitana trazem
baila o desafio de observar o que est em movimento, em repensar, o que para
qualquer antroplogo crucial, que definir o seu ponto de observao. Nesse
sentido, o trabalho etnogrfico na metrpole imps o desafio de perambular pela
cidade, num estado de deriva (p. 37, grifos da autora)
Em grande medida, o meu trabalho de campo tambm foi marcado por esse
perambular pela cidade, por esse estado de deriva (p. 38) que me levava a flanar e
transitar pelos mais variados caminhos percorridos no s pelos guardas municipais, como
tambm por outros agentes que transitavam pela cidade. Observar essa interao entre os
guardas municipais e demais agentes era importante para perceber como os seus espaos
de atuao eram construdos, assim como para compreender as ideias e valores presentes
nos mltiplos atendimentos prestados. A arte de perambular ou de flanar pelas ruas de So
Gonalo me permitiu perceber de que maneira diferentes agentes construam seus trajetos,
revelando, assim, a forma como significavam as suas relaes e os seus pertencimentos
quele(s) espao(s).
Conforme comecei a vagar pelas ruas, percebi que os guardas mais antigos em
atividade no Alcntara j me conheciam, sobretudo, por conta do mencionado projeto de
que participei. Mesmo assim, muitos deles se sentiam intimidados a conversar comigo, j
que no sabiam se a pesquisa que eu estava fazendo poderia exp-los de alguma forma.
Alguns chegaram a me perguntar se eu tinha alguma ligao com o secretrio de
Segurana Pblica da cidade, desconfiados de que eu poderia ser algum tipo de espi ou
algo assim. Deve ser mesmo algo incmodo ter alguma pessoa ao seu lado observando o
24
seu trabalho sem se saber ao certo quem ela ou o que pretende fazer. Por mais que eu me
apresentasse e falasse qual era meu objetivo, todas as vezes em que me dirigia a um agente
com o qual no tinha proximidade, permanecia uma certa desconfiana sobre quem eu era
e as razes que me levavam quelas ruas. Devido ao curso de formao e palestra que
ministrei, j tinha conseguido construir uma relao de proximidade com os guardas
municipais mais novos, inteirando-os, antecipadamente, da minha inteno. Por isso, num
primeiro momento, o trabalho de campo acabou se centrando na observao do trabalho
dos guardas municipais que tinham entrado na instituio no ano de 2013.
Com o passar do tempo e medida que ia mais vezes a campo, fui criando maior
intimidade com os outros guardas municipais, mesmo com aqueles mais antigos que, a
princpio, me evitavam. Percebi que estava comeando a ser aceita entre eles quando
comearam a lembrar do meu nome. No incio, como disse, alguns acreditavam que eu
estava indo ao Alcntara para vigi-los. Gustavo, um agente que possua trs anos na
instituio, era um deles. O guarda chegou at a me falar isso algumas vezes, mesmo que,
reiteradas vezes, eu tentasse explicar o que fazia ali. Certo dia, estava prximo entrada
do terminal de nibus, ao lado dos guardas Las e Gustavo, e esse perguntou, mais uma
vez, qual era o meu nome. Depois de responder, ele me questionou sobre a pesquisa.
Expliquei novamente e, ento, o agente me falou um pouco da sua maneira de atuar ali. A
partir de ento, ele e sua colega no esqueceram mais o meu nome, passando a se mostrar
mais abertos a conversar comigo, inclusive sobre os assuntos relacionados ao seu trabalho.
Assim como aconteceu no Alcntara, inicialmente, minha presena tambm foi
vista com certa desconfiana pelos guardas que atuavam no Centro de So Gonalo. Mas,
medida que a pesquisa se desenvolvia, tambm construa com eles uma relao de maior
proximidade. certa altura, minha presena nas ruas do Alcntara e do Centro j tinha se
tornado to comum que passei a escutar frases como: J pode se tornar guarda!, Vou te
dar um apito para puxar o trnsito tambm. ou, ainda, S falta vestir a farda!.
Percebi que construir uma relao de proximidade com as guardas que trabalhavam
no Alcntara foi essencial para que os demais agentes, inclusive homens, me aceitassem.
Inicialmente, elas se sentiam mais vontade com minha presena, mostrando-se curiosas
sobre meu trabalho e conversando bastante comigo. Na maioria das vezes, as respostas s
minhas perguntas geravam interaes mais detidas, ou seja, no eram monossilbicas
como aquelas que alguns guardas homens forneciam em uma primeira aproximao. Criei
uma intimidade maior com as guardas Flvia e Las, ambas pertencentes ltima turma de
25
agentes que entraram na instituio. Com elas, conversava desde assuntos relacionados a
sua atuao profissional at curiosidades sobre cabelo e maquiagem. Las, por exemplo,
chegou at a me dar um presente quando estava prximo do meu aniversrio. As duas, em
diferentes momentos, passaram a me convidar para lanchar ou acompanh-las at o local
onde costumavam tomar gua e ir ao banheiro. Estar presente nesses momentos de
informalidade, em que os guardas poderiam ficar sem a cobertura13
e sem a rigidez que o
uniforme exigia, foi essencial no s para criar uma proximidade maior com os demais
agentes, mas, tambm, para conhecer e entender quem era cada um deles. Alguns guardas
tinham, mais ou menos, minha idade, outros eram mais velhos. Nas conversas que
tnhamos, passava a conhecer um pouco da famlia de cada um, o que faziam em seus
momentos de folga, as situaes que ocorreram por aquelas ruas nos dias em que eu no
estava presente etc. Com o passar do tempo, j sabia os locais onde eles costumavam
comer, os horrios em que chegavam ou iam embora, aqueles que eram reconhecidos
como dures e aqueles que eram vistos como bonzinhos. Muitas vezes, ia lanchar com
os guardas, andava com eles pelas ruas, de um lado a outro do setor, e participava de
uma srie de momentos de suas rotinas dirias.
Com o passar do tempo, alguns guardas comearam a acreditar que a realizao da
pesquisa seria uma forma de divulgar ou, at mesmo, de dar visibilidade ao seu trabalho.
Foram vrias as vezes em que escutei que eu deveria colocar minha pesquisa em uma
matria de jornal para que a populao, de alguma forma, pudesse ver o que os guardas
fazem diariamente. O guarda Fbio, por exemplo, mencionou isso algumas vezes. Ele era
um dos criadores de um jornal que, alm de veicular reportagens com contedos sobre a
instituio, apresentava notcias sobre variedades, tendo como fonte os jornais e pginas
virtuais de grande circulao. Outros guardas achavam que eu deveria escrever uma
matria no jornal contando os problemas estruturais da cidade, tais como os relativos
sinalizao e ao asfaltamento das ruas. Diante de tais expectativas, procurava deixar
claro que eu no era jornalista e no tinha inteno de fazer uma matria de jornal, mas
um trabalho acadmico, tendo por base aquilo que eu estava observando em suas rotinas
dirias.
Para a realizao da pesquisa, assumi como pressuposto epistemolgico que a
etnografia busca compreender o outro atravs dos atos de olhar, ouvir e escrever, trs
faculdades fundamentais para o fazer antropolgico (Cardoso de Oliveira, 1998, p.17).
13
Cobertura o nome dado pelos guardas municipais ao bon que faz parte do uniforme oficial.
26
Nesse sentido, vagar, perambular, flanar pelas ruas de So Gonalo, sem um ponto fixo de
observao, a fim de experimentar a cidade e realizar observao direta do trabalho dos
guardas municipais, foram, sem dvida, as estratgias metodolgicas que mais utilizei
durante o ano em que empreendi o trabalho de campo. No entanto, empreguei tambm
outros recursos que foram igualmente importantes para a construo dos dados. Por meio
de entrevistas informais, busquei entender como era a atuao dos guardas nas ruas, assim
como obter informaes especficas sobre a instituio a que serviam. Muitas vezes, ficava
prxima dos guardas, em seus setores, e conversava sobre situaes ocorridas naquele
momento ou em outro qualquer, sobre as quais ainda me restavam dvidas. Quando no
tinha muita proximidade com o agente, costumava fazer perguntas mais amplas para, de
alguma forma, iniciar uma conversa. Fazia perguntas como, por exemplo: Como sua
relao com a populao que passa por aqui? ou O que voc faz para organizar o
trnsito no seu setor?. A partir da, dispunha-me a escutar aquilo que o guarda tinha a
dizer e, em seguida, fazia uma ou outra pergunta para dar sequncia ao dilogo.
A partir de um roteiro pr-estruturado, fiz, tambm, entrevistas com alguns guardas
que trabalhavam na sede da instituio e com o Comandante da Guarda Municipal de So
Gonalo. Por conta da pesquisa anterior, j conhecia parte dos guardas, tendo, inclusive,
proximidade com alguns deles. Contudo, o fato de ter ido mais vezes s ruas do que sede
fez com que me aproximasse mais dos agentes do trnsito e acabasse me distanciando dos
guardas que ficavam na base14
. Todas as vezes em que ia l, era bem recebida; os
agentes me ofereciam caf, diziam para eu voltar mais vezes e respondiam prontamente s
minhas perguntas. Todavia, por no possuirmos mais tanta proximidade, as conversas e
entrevistas informais j no fluam to bem. No raro, eles se mostravam mais
preocupados em me ouvir do que em falar, dando respostas curtas para o que era
perguntado. Por isso, optei por realizar entrevistas pr-estruturadas com guardas que
ocupavam posies hierarquicamente destacadas, como, por exemplo, a guarda Fabiana,
que era assessora da Ronda Escolar e trabalhava no setor administrativo. O mesmo se
passou com o guarda Abreu, que trabalhava no setor responsvel por fazer as escalas de
servio15
e alocar os guardas nos setores e postos fixos16
de trabalho. Em ambas as
14
Base era a maneira como os guardas municipais que trabalhavam nas ruas chamavam a sede da
instituio. 15
Escala de servio um documento produzido pela Guarda Municipal de So Gonalo a fim de distribuir
os agentes de acordo com os plantes e horrios de trabalho disponveis. 16
Postos fixos era a maneira como os guardas municipais denominavam os locais de trabalho em prdios
pblicos.
27
ocasies, pedi permisso antecipada para fazer as entrevistas, retornando num dia
posterior para realiz-las, com base num roteiro previamente estruturado. A entrevista com
o Comandante seguiu o mesmo protocolo.
Acompanhar pginas e grupos no Facebook foi, tambm, importante para
comear a compreender as vises dos guardas municipais e de moradores de So Gonalo
a respeito de alguns assuntos de meu interesse. Durante a pesquisa, acompanhei duas
pginas17
que faziam postagens sobre temas como as mazelas por que o municpio
passava. Tanto aquilo que era publicado quanto os comentrios feitos por pessoas que
curtiam as pginas foram importantes para eu comear a perceber qual era a viso que
parte da populao tinha a respeito de determinadas reas, assim como da cidade em geral.
Adicionar alguns interlocutores da guarda municipal ao meu perfil em uma rede social
tambm foi importante para construir uma relao de maior proximidade com alguns
agentes. Percebi que estar aberta para compartilhar alguns assuntos, tambm virtualmente,
poderia ser uma forma de manter ou cultivar o vnculo estabelecido. De certa forma, era
como se, com isso, eu me aproximasse um pouco mais de um mundo que ainda estava
relativamente distante. Por isso, alm de adicion-los, procurei fazer parte dos grupos nos
quais os guardas partilhavam assuntos entre si, como, por exemplo, sobre as motivaes
que os levaram a organizar uma manifestao que ocorreu em novembro de 2014.
Participei, tambm, de grupos e comunidades dos quais guardas de todo Brasil faziam
parte e nos quais eram discutidas pautas mais gerais, como as referentes votao da lei
13022, chamada de Estatuto Geral das Guardas Municipais.
Antes de tratar especificamente dos contextos em que a Guarda Municipal de So
Gonalo est inserida, importante ressaltar que optei por utilizar nomes fictcios para, de
alguma forma, preservar a identidade dos guardas com quem mantive contato. Alm disso,
procurei, tambm, mudar ou ocultar os nomes das ruas e pontos de referncias que faziam
parte dos documentos oficiais e internos a fim de respeitar o sigilo dessas informaes.
No que se refere estrutura desta dissertao, alm de uma introduo e das
consideraes finais, ela composta de mais trs captulos. No captulo dois, denominado
So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade, enfatizo que, muito antes
de a lei 13.022 ser sancionada, o trnsito j era uma questo cara ao municpio.
17
A saber: So Gonalo da depresso (URL: .
Acesso: 16/11/2015) e So Gonalo tenso (URL: .
Acesso: 16/11/2015).
https://www.facebook.com/SaoGoncaloDaDepressao?ref=ts&fref=tshttps://www.facebook.com/saogoncaloetenso?ref=ts&fref=ts
28
Concentro-me em apresentar So Gonalo, descrevendo mais pormenorizadamente o
bairro do Alcntara18
e o Centro da cidade, onde concentrei meu trabalho de campo. De
maneira geral, o objetivo do captulo discorrer sobre algumas categorias nativas que se
costumam associar cidade e que, de alguma maneira, ajudam a entender por que o seu
trnsito descrito como catico e desorganizado. Isso, por consequncia, contribui para a
compreenso das formas de atuao da Guarda Municipal de So Gonalo.
No terceiro captulo, intitulado A Guarda Municipal de So Gonalo: funes,
atribuies e representaes, empenho-me em apresentar alguns pontos relativos ao
funcionamento da instituio e maneira como ela costuma ser representada por seus
membros. Nesse sentido, so expostas: as competncias previstas no Regulamento Interno
da Guarda Municipal de So Gonalo; a maneira como a autoridade e a estrutura
hierrquica tendem a ser vistas pelos agentes que trabalham nas ruas; a forma como esses
guardas classificavam a si mesmos e seus locais de trabalho; as punies normalmente
estabelecidas etc.
No quarto captulo, cujo ttulo Prticas e representaes dos guardas municipais
no trnsito de So Gonalo, me dedico a descrever a atuao desses agentes na regulao
do trnsito da cidade. A exemplo do que foi observado por outros pesquisadores (Miranda,
2002; Mello, 2011), o bom senso aparece enquanto uma categoria chave para se
entender a maneira como eles agem, que, por vezes, tem como base o plano formal e, em
outras ocasies, o plano informal. So apresentadas vrias situaes que nos permitem
entender de que maneira eles classificam os atendimentos e suas aes, como, por
exemplo: o que preciso para fazer o trnsito fluir; quais os aspectos que devem ser
levados em conta para saber quando multar e quando no; quais as maneiras de se usar o
apito; quando as relaes de proximidade e pessoalidade devem ser levadas em conta; por
que o porte de arma de fogo continua sendo exigido por alguns guardas; e, no menos
importante, como so estabelecidas as relaes de reciprocidade no trnsito.
18
Neste trabalho, fao referncia ao bairro como o Alcntara, assim como alguns guardas municipais e
demais agentes o chamavam. Por isso, esclareo que, mesmo em possveis situaes em que no seria
preciso us-lo, utilizo o artigo definido o para me aproximar da maneira como esse bairro era, por vezes,
caracterizado.
29
2- So Gonalo e suas representaes: pensando sobre a cidade
Ao distinguir o objeto de estudo do lcus de uma pesquisa, Geertz (1989)
estabelece que os antroplogos no estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanas...),
eles estudam nas aldeias. (p. 32). Nesse sentido, antes de observar como os guardas
municipais organizavam o trnsito de So Gonalo, foi preciso me familiarizar um pouco
mais com aquele contexto emprico que era, at ento, relativamente distante de mim. Por
isso, conforme mencionado, procurava conversar com amigos e colegas que moravam ou
nasceram em So Gonalo, a fim de ter acesso a informaes iniciais sobre a cidade.
Desde ento, j escutava a mxima quem dirige em So Gonalo dirige em qualquer
lugar. Ao me dizerem essa frase, eles no pretendiam enfatizar a destreza dos motoristas
que transitavam pelas ruas da cidade, mas pr em evidncia uma imagem do trnsito que
seria, supostamente, catico e desorganizado.
Neste captulo, procuro explorar os aspectos e efeitos simblicos que acompanham
esse tipo de representao construda sobre o trnsito de So Gonalo. Considero o termo
representao da maneira proposta por Durkheim (2009), segundo a qual as ideias que
os homens tm sobre si so forjadas no interior das relaes, coletivamente, ultrapassando,
assim, a autonomia dos indivduos. importante ressaltar que, segundo o autor, as ideias
alimentam os fazeres, muito embora as prticas no sejam estritamente um reflexo daquilo
que se pensa. Dessa maneira, dependendo do contexto, ideias e prticas podem tanto se
coadunar como se contrapor.
Essa discusso possui uma relao direta com o objetivo deste captulo, j que
pretendo analisar como se constitui a morfologia social de So Gonalo, especialmente
dos bairros do Alcntara e do Centro da cidade. Assim como definiram Mauss (2013) e
Halbwachs (2006), a morfologia social tem a ver com a maneira como, a partir de
determinados usos e costumes, so organizadas e estruturadas as relaes num
determinado contexto socioespacial. Com base nessa perspectiva, procurei mapear a
maneira como as ruas dos referidos bairros so ocupadas e utilizadas pelos agentes que
nelas transitam e/ou atuam, de modo a compreender, com isso, como tais espaos so
socialmente construdos.
2.1. So Gonalo: nomes e esteretipos
30
So Gonalo uma cidade que fica na regio metropolitana do Rio de Janeiro, a
apenas vinte quilmetros da capital. Sua populao estimada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE), em 2014, consta de 1.031.903 de habitantes, uma das
maiores do estado19
. O municpio faz divisa com Niteri, Maric e Itabora, apresentando
uma ampla extenso territorial de 247.709 km (Mapa 1).
Mapa 1 Municpio de So Gonalo
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatsticas. URL:
. Acesso: 25/08/2014.
Os 91 bairros de So Gonalo (Mapa 2) esto divididos em cinco distritos (Mapa
3). So eles: So Gonalo (distrito sede), Ipiiba, Monjolo, Neves e Sete Pontes20
(Quadro
1).
19
URL. Acesso: 01/04/2015 20
As informaes oficiais so oriundas da pgina virtual oficial da prefeitura municipal de So Gonalo.
URL: . Acesso: 13/01/2015.
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=330490&search=||infogr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpiohttp://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?lang=&codmun=330490&search=||infogr%E1ficos:-dados-gerais-do-munic%EDpiohttp://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=330490http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php
31
Mapa 2 Bairros de So Gonalo
Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de 2015 s 10h32min
Mapa 3 Distritos de So Gonalo
Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de 2015 s 10h25min
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.phphttp://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php
32
Quadro 1 Diviso dos bairros de So Gonalo por distritos
Fonte: Prefeitura Municipal de So Gonalo. Disponvel em:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php. Acesso em 13 de janeiro de 2015 s 10h38min
O Centro (tambm apontado, no Quadro 1, como rodo de S.G.) e o Alcntara se
encontram no primeiro distrito da cidade. Grande parte dos nomes das localidades,
principalmente, dos primeiros bairros, se refere s fazendas, indstrias ou portos que antes
existiam na regio. Em meados do sculo XX, quando a cidade comeou a crescer
industrialmente, muitas fazendas comearam a fazer loteamentos, o que deu origem a
muitos dos bairros hoje existentes. Segundo um guarda municipal, essa transformao do
municpio tem consequncias diretas na maneira como o trnsito da cidade se apresenta na
atualidade:
http://www.pmsg.rj.gov.br/mapas.php
33
So Gonalo era, antes, tudo fazenda. At pouco tempo, era tudo mato. Depois,
foram vendendo as fazendas para fazer loteamentos de casas. [] por isso que,
aqui, tem todas essas ruas estreitinhas. No se v uma avenida grande, no teve
planejamento, tudo rua. Agora, qualquer coisa que acontece fica tudo parado [o
trnsito].
(Joo, guarda municipal h 13 anos)
Durante o trabalho de campo, percebi que vrias categorias nativas eram
empregadas para fazer referncia cidade de So Gonalo, tais como: Manchester
Fluminense, cidade invadida, cidade dormitrio e cidade das praas. A partir do
que depreendi, cada uma delas diz respeito a um perodo da histria do municpio, de
modo que, para analis-las corretamente, preciso respeitar uma sequncia, ao mesmo
tempo, lgica e cronolgica. Durkheim (2009) j nos demonstrou que as categorias usadas
por nossos interlocutores fazem parte de um sistema classificatrio, o que pressupe que
elas possuem significados que, quando decodificados, permitem compreender a lgica
com que operam em determinado sistema. Com isso, o que pretendo enfatizar que, a
partir do tipo de categoria que os agentes empregam para se referir cidade, possvel
entender o tipo de compreenso que levada em conta sobre So Gonalo.
No ano de 1948, o IBGE realizou uma Sinopse Estatstica, abrangendo dados
sobre os municpios brasileiros ento existentes. A pesquisa englobou os aspectos
histricos, geogrficos e censitrios da dcada. So Gonalo havia se emancipado
politicamente havia pouco mais de 50 anos, e sua populao era de apenas 94.446
habitantes. Em relao produo industrial, o documento afirma que:
Atualmente, o Municpio de So Gonalo atingiu um elevado grau de
desenvolvimento e prosperidade econmica. O seu parque industrial considerado
um dos mais importantes do Estado e mesmo do pas, tendo localidade merecida
a cognominao de Manchester Fluminense. Nos setores social e agrcola,
intenso o progresso que se verifica, ensejando a que se tenha So Gonalo como
uma das mais produtivas e adiantadas comunas fluminenses.
(IBGE, 1948, p. 05)
34
Como mostra a pesquisa do IBGE, a partir da dcada de 1940, o municpio chegou
ao auge de sua produo e concentrao industrial, fazendo com que So Gonalo
figurasse como um dos mais importantes plos industriais do antigo estado do Rio de
Janeiro. Segundo Araujo e Mello (2014), o processo de industrializao da regio foi
deflagrado por iniciativa do setor privado que, quela altura, contava com incentivos
oferecidos pelo governo federal. Essa poca de pujana econmica rendeu ao municpio a
alcunha de Manchester Fluminense, em analogia famosa cidade industrial britnica21
.
Uma das consequncias desse alardeado crescimento econmico foi a ida de amplos
segmentos sociais, das mais diversas procedncias, para o municpio em busca de
trabalho.
A esse respeito, o jornal O So Gonalo enfatiza, na edio comemorativa do
aniversrio de 119 anos da cidade, publicada em 2009, que, poca, muitas pessoas
foram do nordeste do pas e do interior do estado para a cidade. A matria reala, ainda,
que, por estar perto da ento capital do estado, Niteri, e da capital federal, Rio de
Janeiro, [So Gonalo] ocupava lugar estratgico nesse fluxo migratrio.22
. Como
assinala Mendes (2002), por conta da grande afluncia de migrantes, o municpio passou
pelo mais alto crescimento populacional de sua histria, o que ocasionou a ampliao do
movimento de loteamentos de antigas fazendas, a que j fiz meno. A denominao de
cidade invadida est diretamente relacionada a esse momento histrico, j que foi depois
do perodo de crescimento econmico que ocorreu uma maior diversificao da
populao, haja vista que vrios tipos de pessoas, com diferentes origens e modos de vida,
passaram a conviver num mesmo espao.
Segundo Guedes (1997), esses so episdios importantes na constituio da
identidade do gonalense (p. 58). Tal identidade, como qualquer outra, construda de
forma contrastiva e relacional, sendo que, no caso de So Gonalo, as fronteiras
simblicas que separam seus habitantes de niteroienses e cariocas se revelam de forma
especificamente significativa. Isso se d por meio das representaes produzidas pelos
21
A cidade britnica a qual estou me referindo Manchester, importante, at hoje, pelo seu grande centro
industrial e econmico. Durante a Revoluo Industrial, no sculo XIX, a cidade comeou a ganhar uma
posio central para o desenvolvimento da Inglaterra, j que l se concentrava grande parte das industrias
fabris. Engels (2008), quando escreveu sobre a situao dos trabalhadores na Inglaterra, j falou da
importncia da cidade para a industrializao do pas e enfatizou, tambm, a misria e as pssimas condies
de trabalho que os operrios e proletariados possuam. 22
A matria est disponvel em URL:
. Acesso: 18/03/2015.
http://www.osaogoncalo.com.br/esg+119+anos/2009/9/22/2271/uma+cidade+em+constante+transformacaohttp://www.osaogoncalo.com.br/esg+119+anos/2009/9/22/2271/uma+cidade+em+constante+transformacao
35
autointitulados gonalenses histricos (que possuem uma forte identificao com a
cidade), segundo as quais os desenraizados teriam transformado So Gonalo numa
cidade-dormitrio (ibid., p.59). Numa entrevista realizada pela autora, um antigo
morador fala da reconfigurao da cidade a partir da invaso desses gonalenses
desenraizados:
uma So Gonalo que, se voc chegar a e perguntar quem nasceu em So
Gonalo, s as criancinhas com menos de cinco anos, porque os outros tm origem
fora de So Gonalo. Essas pessoas vieram pra ocupar os terrenos dos
loteamentos, porque elas j eram fruto do xodo rural, da especulao imobiliria
do Rio de Janeiro... Ento o que aconteceu? Essas pessoas fizeram uma So
Gonalo absolutamente diferente, desenraizadas, elas no conhecem algumas a
maioria delas no passam nem por aqui, os nibus sobem pela Rodovia Amaral
Peixoto, se voc perguntar a elas onde fica o centro administrativo, onde fica a
prefeitura, elas no sabem. Ento, essa uma outra So Gonalo.
(Guedes, 1997, p. 60)
De acordo com essa viso, a cidade teria sido invadida por gonalenses
desenraizados, que no conhecem e no se identificam com o municpio, o que a
transformou em uma outra So Gonalo, muito diferente daquela que era conhecida
como a Manchester Fluminense. Segundo essa perspectiva, a invaso da cidade
tambm estaria relacionada posterior decadncia industrial que o municpio sofreu.
Sobre essa decadncia, Araujo e Melo (2014) observam que o processo de crescimento
industrial teve pouco flego, em pouco tempo, os investimentos industriais deram sinais
de esgotamento, e, j no incio da segunda metade do sculo, deu-se incio ao processo de
esvaziamento industrial (p. 84). De acordo com esses autores, por mais que as indstrias
contassem com incentivo fiscal para permanecer na cidade, o tardio investimento em obras
infraestruturais, como em gua e saneamento bsico, fez com que vrias delas passassem a
deixar o municpio a partir da dcada de 1970. Ao apontar como essa decadncia
econmica afetou mais especificamente o bairro de Neves, Guedes (1997) afirma que,
nessa poca, aconteceu o fechamento de fbricas, como, por exemplo, a Companhia
Fluminense de Manufatura, a Fiat Lux e algumas indstrias de conservao de pescado
(p.68).
O descompasso entre a grande procura de empregos e a pouca oferta fez com que
a populao passasse a procurar empregos na capital do estado e, tambm, na ento capital
federal, Rio de Janeiro. Em consequncia, So Gonalo passou a ser conhecida como uma
36
cidade dormitrio. At os dias de hoje, o municpio assim caracterizado, conforme
podemos ver na introduo da Leitura Tcnica do Plano Diretor da Cidade23
:
Terceiro municpio mais populoso do Estado do Rio de Janeiro So Gonalo
caracteriza-se como cidade dormitrio. Essa situao no recente; distante
apenas cerca de 10 km de Niteri, h muitos anos verifica-se entre as duas
localidades um intenso movimento de migrao pendular diria, concentrando-se
em So Gonalo o reservatrio de mo-de-obra e as funes complementares,
sobretudo de moradia para os trabalhadores, ficando Niteri com as tarefas
produtivas e de acmulo do capital.
(So Gonalo, 2006)
A intensa frequentao das praas, nos mais diversos bairros de So Gonalo, tem
relao direta com uma das maneiras como a cidade costuma ser representada. A primeira
vez que escutei a expresso cidade das praas ocorreu quando um guarda municipal
conversava comigo a respeito das obras que um antigo governante municipal havia
realizado na cidade. Naquela ocasio, lembrei que esse governante, ao tentar eleger seu
sucessor, exaltava o fato de ter revitalizado grande parte das praas da cidade. Segundo o
guarda, a campanha que elegeu o referido gestor ficou popularmente conhecida como
campanha do tijolinho e contava com a seguinte frase de impacto: Vamos reconstruir
So Gonalo. o que, no caso, significava, fundamentalmente, pavimentar ruas e
construir praas. O agente, ento, me disse que So Gonalo sempre foi a cidade das
praas, elas sempre foram importantes para a vida dos bairros. Posteriormente, em outras
conversas com guardas municipais e alguns colegas, voltei a escutar essa expresso. No
entanto, a ideia de se encarar So Gonalo como a cidade das praas parece ser
relativamente recente, no porque no houvesse praas antigamente ou porque as pessoas
no as frequentassem, mas porque a valorizao pblica desses espaos como um
patrimnio dos gonalenses tem a ver com um contexto histrico bastante atual. claro
que a Praa do bairro Trindade24
, a Praa dos Ex-combatentes25
, a localmente conhecida
23
A Leitura Tcnica do Plano Diretor do municpio de So Gonalo, pode ser vista na ntegra na seguinte
pgina virtual, URL:. Acesso: 18/03/2015. 24
O bairro de Trindade se localiza no terceiro distrito da cidade. 25
A praa dos ex-combatentes est localizada no bairro Paraso, mais especificamente, no quarto distrito de
So Gonalo. No centro dessa praa, encontra-se uma rplica de um tanque de guerra, em homenagem aos
http://www.pmsg.rj.gov.br/urbanismo/plano_diretor/leitura_tecnica/index.htm
37
Praa Z Garoto26
ou quaisquer outras praas da cidade possuem diferenas e
peculiaridades quanto s formas de sociabilidade nelas desenvolvidas. No me cabe, aqui,
enfatiz-las ou discuti-las. Entretanto, acredito que esse um aspecto importante para a
compreenso do modo como muitas das relaes sociais so estabelecidas em So
Gonalo, sobretudo, no que concerne pessoalidade tpica das interaes desenvolvidas
em tais espaos. impossvel no passar pela praa do bairro Trindade, por exemplo,
numa sexta ou num sbado noite, e no encontrar ela cheia tanto de jovens como,
tambm, de famlias com suas crianas. Nesse sentido, So Gonalo ser reconhecida
enquanto cidade das praas significa se identificarem e se assumirem a familiaridade, a
pessoalidade e a coletividade, por exemplo, enquanto caractersticas importantes para a
construo das relaes sociais na cidade.
Outro ponto abordado por Guedes (1997), e que, ainda hoje, muito representativo
de So Gonalo, diz respeito proximidade social do municpio com queles da chamada
Baixada Fluminense, a saber: Nova Iguau, Nilpolis, So Joo de Meriti e Duque de
Caxias. Se levarmos em conta somente os termos geoespaciais, percebemos, como
demonstrado no primeiro mapa (Mapa 1), que So Gonalo se situa na outra margem da
Baa de Guanabara e no tem nenhuma proximidade com tais municpios. Entretanto,
apesar de essas cidades no estarem fisicamente prximas, suas caractersticas sociais as
aproximam. Essa questo vai ao encontro de uma crtica feita por um guarda municipal
durante meu trabalho de campo. Era muito comum que os agentes reclamassem dos
pedestres, tanto por no atravessarem na faixa como por o fazerem com o sinal aberto para
carros. Em uma dessas circunstncias, um guarda me disse que So Gonalo parecia ser
uma extenso da Baixada Fluminense, j que a Baixada uma terra sem lei, e So
Gonalo parece que tambm . Os pedestres nunca acham que as leis de trnsito tambm
valem para eles. Desse ponto de vista, embora So Gonalo e a Baixada Fluminense
estejam a quilmetros de distncia um do outro, sendo, portanto, fisicamente distantes,
esses dois espaos acabam por ser representados como semelhantes e, desse modo,
socialmente prximos (Park, 1979), uma vez que recebem o esteretipo de terras sem
lei, onde pedestres e motoristas acreditam que podem tudo.
gonalenses que serviram na Segunda Guerra Mundial. URL:
. Acesso: 14/01/2015. 26
A praa Z Garoto oficialmente conhecida como Praa Estefnia de Carvalho e se localiza no bairro Z
Garoto. O nome do bairro e o nome popular da praa se referem a um comerciante, filho de imigrante
portugus, que possua um armazm prximo de onde se encontra a praa hoje em dia. URL:
. Acesso: 14/01/2015.
http://www.saogoncalo.rj.gov.br/historia.phphttp://www.saogoncalo.rj.gov.br/historia.php
38
Ao desenvolver os seus estudos em um bairro habitado por imigrantes pobres
descendentes de italianos (ento identificado como Corneville), Foote-Whyte (2005) se
defrontou com uma srie de representaes previamente construdas sobre o local. A rea
era vista como problemtica e degradada, com altos ndices de criminalidade e
delinquncia juvenil, o que foi gradativamente superado medida que era realizada a
pesquisa emprica por meio da qual o autor conseguiu lanar um outro olhar sobre aquela
realidade. De certa forma, foi um movimento parecido com esse que tentei empreender ao
realizar a pesquisa em So Gonalo. Busquei, fundamentalmente, ir alm de um olhar
generalizante e homogeneizante para, a partir da pesquisa emprica, confront-lo com a
lgica local conforme foi apresentada pelo(s) ponto(s) de vista nativo(s) a que tive acesso.
2.2. O Alcntara e a pequena ndia
Comecei a frequentar as ruas do Alcntara em novembro de 2013. Desde o
primeiro dia, tive contato com os diversos sons e movimentos caractersticos daquele
local. O calor escaldante do vero j se anunciava. As ruas e caladas estavam cheias de
camels27
, assim como de possveis compradores, por conta do Natal que se aproximava.
Era preciso prestar muita ateno ao andar pelas caladas para no pisar nos produtos que
os ambulantes estendiam no cho ou, mesmo, para no tropear em algum caixote ali
deixado ao acaso. Alguns camels montavam barracas provisrias com caixotes e
madeiras, ocupando grande parte das caladas. Esses espaos eram como uma espcie de
quebra-cabea, onde cada coisa tinha o seu lugar: uma parte da calada era destinada aos
camels, outra era ocupada pelas enormes filas de pessoas que esperavam nibus, e o
que restava era destinado ao fluxo de pessoas que iam e vinham em sentidos contrrios.
Aquelas que estavam com mais pressa cortavam caminho pelos cantos das ruas. Nesse dia,
apesar de j conhecer alguns guardas municipais, resolvi no conversar com eles.
Interessava-me observar as atividades e as maneiras como aqueles espaos eram ocupados,
o que, mal sabia eu, levaria muito mais do que um dia.
O bairro do Alcntara um dos importantes plos de negcios e comrcio de So
Gonalo. Como mostra o Quadro 1, ele fica situado no primeiro distrito da cidade. L se
27
Apesar de saber que as categorias camel e ambulante possuem diferenas quanto ao uso, emprego as
duas com o mesmo sentido, assim como alguns guardas municipais o faziam.
39
encontram lojas de eletrodomsticos, lojas de mveis, bares, agncias bancrias,
lanchonetes, hospitais, supermercados, escolas, clnicas, shopping centers e diversos
outros edifcios comerciais. Quando vagava, pelas primeiras vezes, nas ruas do bairro,
ainda tomada de um estranhamento inicial, indagava-me sobre como era possvel
aglutinar, em um mesmo local, linhas comerciais e de servios to diferentes, que iam
desde barbeiros, sapateiros e abatedouros at lojas de grife, alm de grandes redes de
fast food.
A localmente conhecida rua da feira (Rua Joo Caetano) se destaca pelo
comrcio de txteis, contando com muitas lojas conhecidas no setor varejista. Alm dos
inmeros e variados estabelecimentos comerciais, a rua apresenta uma grande
concentrao de ambulantes em toda a sua extenso, que destinada, exclusivamente,
ao fluxo de pessoas (Fotografia 1). Quando andava por essa rua, ficava sem saber