III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 1
COMPETÊNCIA E MERCADO NA PRODUÇÃO DOS SENTIDOS DO ESTILO LITERÁRIO ENTRE INTELECTUAIS MARANHENSES
Franklin Lopes Silva1
RESUMO
O presente trabalho apresenta algumas dimensões de análise e princípios metodológicos que têm sido aplicados no desenvolvimento de nossa dissertação de mestrado. Mais especificamente, detêm-se sobre as possibilidades de investigação das relações existentes entre condicionamentos objetivos e os usos da literatura como estratégia de afirmação intelectual no Maranhão.
Palavras-chave: Intelectuais. Literatura. Condicionantes Sociais.
ABSTRACT
This paper presents some aspects of analysis and methodological principles that have been applied to the development of our master thesis. More specifically, they hold up on the possibility of investigating the relationship between conditioning purposes and uses of literature as a strategy to claim intellectual property in Maranhão.
Keywords: Intellectuals. Literature. Social constraints.
Toda ação é uma conjuntura. Partindo desta constatação também a “literatura”
em suas formas e “estilos” diversos deve também ser concebida como um “encontro de
séries causais independentes” (BOURDIEU, 2008, p. 24), podendo, portanto, ser detalhes
distintivos compreendidos como indícios (GINZBURG, 2006; 1990) para a compreensão
das dinâmicas sociais que subjazem à produção “literária”, localizadas histórica e
geograficamente. Orientando-nos por este princípio pretendemos apresentar aqui os
fundamentos teóricos e metodológicos que têm sido operacionalizados no desenvolvimento
de nossa dissertação de mestrado, no que tange à análise da produção dos sentidos
discursivos manifestos nos “estilos literários”, compreendidos aqui enquanto competências
individuais incorporadas e sujeitas aos condicionamentos de um mercado linguístico que
opera um efeito paradoxal entre os agentes, posto que, supostamente concebido apenas
como um mecanismo comum de comunicação, sustêm-se principalmente pela ênfase nas
experiências singulares, ou seja, submetidas a condicionantes e, portanto, disposições
incorporadas diversificadas, porque socialmente diferenciadas. Limitado o espaço e os
1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Maranhão.
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dados que por ora detemos para tal exposição, nos deteremos aqui apenas a
esboçar alguns resultados parciais e o caminho que temos trilhado para concluí-los.
Esta perspectiva de trabalho demonstra-se ainda relevante por nos munir de
ferramentas conceituais que nos possibilitem investigar as estruturas simbólicas de
dominação inscritas nas práticas dos agentes, fornecendo-nos informações consistentes
quanto aos condicionantes sociais de recrutamento de “elites intelectuais” no Maranhão.
Considerando-se ainda que as reflexões presentes neste artigo se amparam em um conjunto
de dados produzidos em uma pesquisa ainda em desenvolvimento sobre a constituição do
espaço intelectual maranhense, a partir da qual temos constatado a ausência de universos
sociais com lógicas de funcionamento relativamente autônomas – instâncias de
consagração e capitais específicos e, consequentemente, a inexistência de subcampos de
produção cultural também específicos, dentre eles o literário –, poderemos também por
tais processos investigativos identificar a pertinência e os limites relativos à aplicabilidade
de um esquema analítico desenvolvido em universos sociais diversos ao que nos propomos
investigar, policiando-nos assim quanto a possíveis efeitos de homologia.
Ainda quanto à noção de “intelectuais” utilizada neste artigo, cabe observar que,
inserindo-se nossa perspectiva de trabalho entre os estudos acerca dos condicionantes
sociais dos processos de seleção de elites culturais, este termo, embora sugira uma
consideração desta camada social como objeto de estudo, será tratada aqui apenas como
tema empírico, tomando-se, isto sim, por objeto de análise os recursos e princípios de
legitimação que estruturam suas práticas e os condicionam a tomadas de posição distintas
em disputa pelo monopólio dos princípios de legitimação e consagração sob a égide de
“intelectuais”, detendo-nos aqui ao “estilo literário” como um destes recursos acionados.
Para tanto, temos seguido no desenvolvimento desta pesquisa a orientação
metodológica de que para a compreensão das posições e tomadas de posição de
determinados agentes ou grupos é necessário aplicarmos o modo de pensar relacional
como princípio dessubstancializador de noções como a “literatura” e seus “estilos”
diversificados, ou seja, compreendendo-os a partir de sua inserção em um espaço social de
posições múltiplas, situando os agentes e instituições em que atuam em suas relações
objetivas, investindo nas lutas de classificação e desclassificação mútuas, analisados a
partir de sua inserção em um espaço social determinado.
Pretendemos, assim, esquivar-nos dos equívocos de acepção da escrita destes
agentes à semelhança de uma autocriação da produção literária que pretenda descrever o
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“processo de perpetuação da [literatura] como uma espécie de partenogênese, a
[literatura] engendrando-se a si própria, fora de qualquer intervenção do mundo social”
(BOURDIEU, 2004, p. 20). De forma ilustrativa, podemos dizer quanto à nossa concepção
de análise dos textos literários e seus “estilos” – sob o risco de simplificação – que a escrita
dos papéis, em seu conteúdo e forma, se engendra nas práticas dos agentes, condicionadas
pelas relações objetivas que atuam como um “sistema de exclusão” (FOUCAULT, 2006, p.
14) que se estabelecem entre estes e o conjunto de instituições em que se inserem (formais
ou informais), acionando recursos (tangíveis ou intangíveis) nas disputas que travam em
torno do monopólio dos princípios de legitimação da “boa literatura”, afirmação social e
consagração.
O recurso metodológico que utilizamos sintetiza ainda uma postura investigativa
que pretende superar, além do modo de pensar substancialista, duas concepções bastante
difundidas no seio das ciências sociais, principalmente em se tratando de análises sobre a
produção cultural (literatura, arte, ciência etc.), criticamente denominadas – e não raro
apenas superficialmente e com intuito depreciativo – de “internalista” e outra
“externalista”. Fazendo eco às observações feitas por Bourdieu, se pode dizer, muito
sucintamente, e apenas a guisa de síntese de suas críticas a esses modelos explicativos, que
a primeira – “internalista” –, assim denominada por tratar “as obras culturais [...] como
significações atemporais e formas puras que pedem uma leitura puramente interna e a-
histórica, que exclui qualquer referência, tida como ‘redutora’ e ‘grosseira’, a
determinações históricas ou a funções sociais” (Idem, p. 55). Limitada a um estado de doxa
institucionalizada pelo sistema escolar, tem sua forma mais acabada no estruturalismo, que
lhe conferiu uma “aura de cientificidade”, no entanto, cuja hermenêutica tenderia a tratar
as obras culturais “como estruturas estruturadas sem sujeito estruturante” (Idem). Ressalte-
se, no entanto, entre os estudos de obras culturais influenciadas por este modelo de análise
a formulação de Michel Foucault através da operacionalização da noção de campo de
possibilidades estratégicas, ao passo que se dispõe a uma investigação rigorosa dos
“livros” e das “obras” em superação de qualquer perspectiva de unicidade e continuidade,
enfatizando que “não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é
preciso tratá-lo no jogo de sua instância” (FOUCAULT, 1971, p. 21).
Quanto à segunda perspectiva analítica, de caráter “externalista”, se pode dizer, de
forma igualmente resumida e incorrendo na repetição dos riscos de reducionismo, que esta
se baseia na vinculação direta entre as obras e as características sociais dos seus autores,
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tendo entre seus principais trabalhos aqueles levados a cabo por alguns teóricos
de orientação marxista, destacando-se em torno dos estudos sobre as obras literárias Lucien
Goldmann e George Lukács, cujas ressonâncias também podem ser percebidas no Brasil
através das produções de autores como Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder e Michel
Löwi2. Nesta abordagem, “pressupõe-se que compreender a obra é compreender a visão de
mundo do grupo social que estaria sendo expressa através do artista, agindo como uma
espécie de médium” (BOURDIEU, 2005, p. 59). Outrossim, a expectativa é, em última
instância, demonstrar a relação entre a produção cultural, (literatura, música, ciência etc.) e
os interesses da classe social cujo autor está inserido. Porém, à revelia das críticas pueris,
esta abordagem não se limita às relações de determinação direta entre uma “superestrutura”
ideológica, determinada pelas “razões” de Estado, e a “infraestrutura” material e
econômica de uma sociedade. Considerando, isto sim, principalmente a partir do
empreendimento analítico da ontologia marxista “lukacsiana”3, o mérito de propor às
análises literárias a consideração de que “o ‘estilo de vida’ de uma época é o que
estabelece o liame entre as condições econômicas e a produção artística” (HEINICH, 2008,
p. 31). De forma muito semelhante o fará Lucien Goldmann em seu livro “A Sociologia do
Romance”, ao desenvolver uma análise marxista para além das determinações entre
“superestruturas” e “infraestruturas”, pretendendo demonstrar as relações intermediárias
entre estes dois planos de análise, destacando as correlações entre “a história da forma
romanesca e a história da vida econômica nas sociedades ocidentais” (GOLDMANN,
1976), ao passo que correlaciona as visões de mundo de um grupo social e as estruturas
literárias de suas obras.
Portanto, elaborando analiticamente o espaço de relações de força em que se
inserem os “intelectuais” poderemos analisar relacionalmente as estratégias4 de afirmação
dos agentes (alianças, investimentos, recursos sociais acionados etc.) no interior deste
espaço e as relações dialéticas que mantêm com as determinações externas a ele,
apropriando-nos das ferramentas analíticas desenvolvidas pelas perspectivas
“externalistas” e “internalistas”, superando suas “oposições” e considerando-as de forma
interdependente. Assim, poderemos compreender os condicionantes sociais das
2 Algumas destas leituras podem ser encontradas em Goldmann (1976); Löwy (2005); Lukács (s.d.); Konder (2007).3 Cf. principalmente, Teoria do Romance; Escritos sobre literatura; Estética literária.4 A noção de estratégia aqui utilizada não diz respeito a um cálculo sistemático, mas à relação – também não plenamente inconsciente – entre as disposições incorporadas ao longo das trajetórias dos agentes e o que está em jogo no espaço social em que se inserem.
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possibilidades de acesso aos bens simbólicos, para além da redução às
determinações econômicas, atendo-nos também às disposições incorporadas (gosto,
referências, práticas etc.) pelos agentes, tomando por parâmetro analítico suas origens
sociais e o processo de incorporação de suas “afinidades artísticas”, efetivando uma
dessubstancialização das ilusões do gosto “puro” e “desinteressado” e demonstrando as
correlações existentes entre as disposições incorporadas e as possibilidades de inserção e
atuação no espaço intelectual maranhense.
Quanto ao teor das “obras” e “estilos literários” adotados, compreendemo-los em
sua dupla natureza, material e discursiva (CHARTIER, 2010), atendendo às lutas travadas
entre os agentes e instituições em torno da produção “literária” no interior de um
microcosmo social que intermedia as determinações externas a ele: é esta relação que dá
existência ao fenômeno, conforme as transformações operadas entre os escritores e os
diferentes gêneros e concepções artísticas que defendem, acompanhando também as
transformações conjunturais relacionadas à política e à economia, por exemplo5.
Para tanto, serão de grande importância as informações relativas à constituição
social de um conjunto de agentes selecionados – neste caso sob o critério de ingresso na
carreira literária entre os anos de 1945 e 1964 no Maranhão – e das instituições em que se
inseriram como espaços de atuação. Quanto a estas últimas nosso intuito é medir o grau de
autonomia e heteronomia, ou seja, de refração às pressões externas sofridas pelo
microcosmo literário analisado em relação aos demais domínios em que atuaram (ou atuam
ainda), como a política, a economia ou mesmo outros espaços de produção cultural.
Importa ressaltar que para a compreensão da produção “literária” a partir da
relação de homologia entre a estrutura das “obras” e a estrutura do campo literário e para a
constatação de que as tomadas de posição estariam determinadas pela estrutura das
relações objetivas entre os agentes, seria necessário que se configurasse, no contexto ao
qual nos propomos a analisar, um espaço de relativa autonomia no que tange à produção
cultural, o que implicaria, em termos sintéticos, na existência de princípios de
hierarquização e concorrência próprios. No entanto, importantes estudos quanto à
fragilidade institucional em universos sociais de semelhantes características ao maranhense
vêm sendo desenvolvidos, como os realizados por Coradini (2003), Grill e Reis (2010),
Reis (2007), Neris, (2009); Pécaut (1990) e Sigal (1996), onde demonstram que em
5 Estas duas esferas de atuação serão enfatizadas por nós em nossa dissertação de mestrado, dada a importância que adquirem como espaços privilegiados de atuação e afirmação social dos agentes em análise, conforme constatamos na primeira etapa desta pesquisa (Cf. SILVA, 2010).
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condições periféricas, tal como o lócus de análise deste trabalho, não se
configura uma dada situação que se poderia conceber como de relativa autonomia dos
campos, implicando em diferentes processos de constituição dos agentes e suas relações
com as instituições e as lógicas de concorrência entre si, imbricadas entre diferentes
domínios de atuação. Assim, a elaboração analítica do espaço literário aqui realizada
ampara-se nas abordagens desenvolvidas pelos autores supracitados, de forma a substituir a
ênfase sobre as determinações entre as posições sociais de origem, destinos sociais e
tomadas de posição pelo destaque à intersecção e amálgamas das lógicas e espaços de
atuação dos agentes.
Constituído o espaço de relações sociais e suas estruturas significantes (GEERTZ,
1989) em que interagem estes “intelectuais” poderemos, então, investigar os “estilos
literários” em que investem, concebendo-os enquanto tomadas de posição estrategicamente
acionadas e associadas às posições que ocupam nas disputas pela afirmação de uma
linguagem legítima (BOURDIEU, 2008, p. 29-58). Assim, as experiências variáveis dos
indivíduos passam a ser analisadas a partir da inserção destes agentes em um mercado
lingüístico generalizado, cujas regras generalizantes relativas aos impositivos denotativos
se impõem a todos cabendo às estratégias conotativas, relacionadas aos “estilos”, de cunho
desviantes ou conservadoras, o caráter “singular” de suas experiências “literárias” neste
espaço.
Neste processo de adesão às lógicas do jogo e apropriação dos recursos sociais
relevantes à hierarquização e consagração intelectual que se estabelecem e reconfiguram-se
acompanhando as transformações conjunturais, cumprem as instituições formais um
importante papel, seja pela apropriação e reivindicação como epígonos da notoriedade de
que são investidos os “personagens ilustres” que as representam, conferida por um
processo de cristalização biográfica destes “ícones”, seja por concentrarem funções
legitimadoras e reprodutoras de títulos e rituais distintivos entre os agentes. Por exercerem
“localmente” este papel, duas destas instituições têm destacada importância no
desenvolvimento deste trabalho: o Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão e a
Academia Maranhense de Letras. Estas trazem entre seus “patronos” e “fundadores”
nomes “consagrados” na historiografia maranhense, cultivados como estratégia de
afirmação pessoal; em alguns casos construindo-se sentidos de grupo6, em torno dos quais
se aglutinam reivindicando-se continuadores do legado de uma “tradição literária”
maranhense, ou mesmo tomados como referenciais a serem superados, geralmente pelos
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que se encontram fora deste tipo de instituição, motivados pela caracterização
de uma “literatura “marginal e “inovadora”, que busca outros estilos, temáticas e formas de
reconhecimento, em oposição a uma literatura “acadêmica”.
A respeito de uma função consagradora conferida às Academias de Letras ou a
Institutos dedicados aos domínios da história e geografia regionais, é exemplar a
declaração feita por Jomar Moraes, quando ocupava ainda a presidência da AML:
As Academias também trabalham com uma tese chamada: dos expoentes. Acho que devem pertencer às Academias aquelas pessoas que são expressivas de um povo na literatura, preferentemente, e que podem influir na política ou em outros ramos de atividade. Alguém que é muito importante como médico, por que não estar lá? Alguém que é muito importante como jurista, por que não estar? [...] na média, ou preponderantemente, uma das coisas que eu acho que deve marcar a Academia, é que eu acho que a Academia não é ponto de partida, não é da natureza dela. Ela é ponto de chegada. O normal, mais sério, é que elas cheguem lá porque já foram reconhecidas. A Academia consagra. (In: NUNES, 2000, p. 219).
Pretendendo o entrevistado resumir neste trecho o perfil dos candidatos à
“imortalidade”, conjuga-se à exigência da notoriedade literária e ao reconhecimento das
“obras” como expressão de um “povo”, a atuação no domínio político “ou em outros ramos
de atividade”. Subrepticiamente, o trecho reforça também a importância das formações
acadêmicas em medicina e direito para a ocupação destas posições de destaque, indicando-
nos, apenas como exemplo, alguns recursos exigidos ao pertencimento desta “elite
intelectual” e sua consequente consagração “literária” via inserção na Academia
Maranhense de Letras.
Outro elemento importante a ser ressaltado quanto às instituições de consagração
no contexto analisado, diz respeito à sua dependência da “benfeitoria” de atores políticos
para o seu estabelecimento, indício relevante para percebermos as limitações e
dependências do domínio intelectual em relação ao político em contextos periféricos
(SIGAL, 1996; PÉCAUT, 1990) e as relações de heteronomia que se estabelecem entre os
espaços de produção cultural e o espaço do poder político.
Quatro governadores do Maranhão figuram, ao lado de Sebastião Archer (que concedeu o atual prédio de funcionamento da AML), na galeria dos benfeitores da instituição, a saber: Urbano Santos, que [...] considerou-a de utilidade pública, previu que o Estado lhe daria sede condigna e determinou que a Imprensa Oficial lhe editasse regularmente a Revista;
6 A ideia de sentidos aqui utilizada corresponde às prerrogativas inerentes àqueles que comungam uma causa vivida, dedicando-se constantemente para a elaboração, atualização e reconstrução de narrativas históricas e “geracionais” e que contribuem para a definição de pertencimentos a redes de relações sociais ou para o reconhecimento social de reputações que podem ser acionadas estrategicamente pelos agentes.
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João Castelo [...] autorizando o Poder Executivo a pagar mensalmente à Academia subvenção correspondente a 10 salários mínimos; João Alberto Souza, [...] aprovou convênio celebrado com o hoje extinto SIOGE (Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Maranhão); o gov. Jackson Lago [restabeleceu] a subvenção suprimida, fato que o tornou membro da Galeria dos Benfeitores da Academia (MORAES, 2008. In: O Guesa Errante, 2006).
Esta maior heteronomia dos espaços e formas de produção e consagração
“literária”, tal como ocorre em contextos periféricos, se deve principalmente, como
demonstram as pesquisas já mencionadas, ao peso maior de critérios externos e sua
imbricada relação de dependência e inserção no domínio político, posto que, por conta de
sua incipiente institucionalização, os espaços de produção “literária” nestes contextos não
dispõem de uma relativa autonomia de suas redes de determinações objetivas, o que
corresponderia a um conjunto de constrangimentos prováveis a limitar as orientações e
práticas dos agentes, bem como suas possibilidades de inserção neste espaço através do
exercício de hierarquização e consagração de algumas técnicas, escolas e problemáticas
possíveis.
Também o equilíbrio quantitativo, identificado a partir dos dados que possuímos7,
entre as formas de reconhecimento na forma de títulos e premiações vinculadas à produção
“literária” e às condecorações estatais concedidas aos agentes em análise, pode ser
percebido como um elemento representativo das estratégias de reconhecimento destes
produtores culturais submetidos a relações de força dissipadas, dado o alto grau de
interferência e porosidade entre os domínios político e literário. Isto implica em
modalidades difusas no processo de consagração destes “intelectuais”, o que se
exemplifica pela confluência entre premiações estritamente referentes a publicações
específicas ou ao conjunto da “obra”, e condecorações estatais com reconhecimentos que
vão desde medalhas de “mérito cultural” por serviços prestados à “sociedade” – ao passo
que consagram também contribuem para dar continuidade à consagração de nomes
“ilustres” de um passado “glorioso” da “intelectualidade maranhense” – (Medalha João
Lisboa, Medalha Graça Aranha, Medalha Gonçalves Dias, Medalha Sousândrade etc.), a
homenagens pelo envolvimento militar em importantes conflitos (como a Medalha do
Pacificador da Guerra concedida aos que serviram na FEB – Força Expedicionária
7 Dispomos de um banco de dados com informações biográficas, montadas em quadros sinópticos, de 132 agentes, cujas variáveis são: nasc./morte; cidade natal/falecimento; profissão dos pais; família/dados gerais; influências literárias; gênero(s) literário (s); publicações (primeira e última); instituições a que se filiou; engajamento; cargos públicos; cargos eletivos; movimentos culturais; premiações/condecorações; trunfos; handcaps; atributos pessoais; profissões; inter-reconhecimentos.
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Brasileira – durante a II Guerra Mundial; Medalha da Associação dos Veteranos
da FEB; Medalha Dom Henrique de Sagres etc.).
Portanto, transitando os agentes por domínios diversos, suas posições devem ser
percebidas levando-se em conta suas atuações tanto nas instituições estatais quanto nas que
se pretendem estritamente “literárias” e independentes das relações de poder, assim como
suas respectivas formas de reconhecimentos e retribuições concedidas. Ou seja, a análise
das relações entre os agentes deve considerar também as instituições em que eles se
movimentam, principalmente em contextos como este em que a ação das obras sobre as
obras – do mercado linguístico que regula a produção “literária”, que também aqui se
exerce por intermédio dos autores – não atende apenas às pulsões estéticas delimitadas a
partir das posições que ocupam na estrutura de um microcosmo literário, mas submetem-se
a imposições e possibilidades estruturais que, embora também específicas e historicamente
situadas, configuram-se de forma mais complexa dadas as interpenetrações entre os
domínios de atuação dos agentes.
A análise da produção dos sentidos discursivos acerca dos “estilos literários”
prescinde ainda de uma investigação do sistema de desvios no qual estes são produzidos,
situados no espaço das obras contemporâneas. Esta etapa fundamental para a análise das
disposições dos agentes no espaço literário, exige, inelutavelmente, a “apreensão estrutural
do respectivo autor” que se apreende a partir das “relações objetivas que definem e
determinam sua posição no espaço de produção” (BOURDIEU, 2004, p.177-178).
Tal empreendimento pode ser realizado pela análise de fontes como entrevistas,
livros e prefácios de livros, artigos em jornais, textos biográficos etc. produzidos acerca
destes agentes, identificando-se assim alguns elementos que se destacam a partir do
trabalho de produção ideológica de suas vidas (Cf. BOURDIEU, 2005, p. 74-89) e
cruzando-os com as características mais distintivas entre seus perfis sociais. Isto nos
possibilitará a demonstração das relações existentes entre as condições sociais de ingresso
na carreira literária, a posição que ocupam no espaço literário maranhense pelos usos de
recursos sociais herdados ou adquiridos por novos investimentos (obtenção de títulos
escolares valorizados, experiências em outros estados ou no exterior, inserção em
movimentos culturais etc.) e a objetivação destas características em alguns fragmentos de
publicações, sob a forma de microanálises estilísticas. Em síntese, o que se pretende é por
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em prática a compreensão de que a estrutura interna das obras é também reflexo
da estrutura do espaço social no qual o próprio autor está situado.
Outrossim, os “estilos” e temáticas “literárias” em que investem acompanham a
expectativa de reconhecimento que possuem e os “estilos de vida” construídos pelo
trabalho de produção ideológica de suas “biografias” (BOURDIEU, 2005, p. 74-89). Neste
processo, a importação de referenciais oriundos de países mais “centrais” insere-se entre os
importantes recursos estrategicamente acionados por alguns dos “intelectuais” que
analisamos nas disputas que travam. A exemplo disso, não é mero acaso – tampouco
cinismo – a lista de autores enfatizada por Nauro Machado quando indagado acerca de suas
principais influências literárias. Figuram entre elas: Dostoiévski, Thomas Mann, Rimbaud,
Mallarmé, Bocage, Baudelaire etc. O domínio desses referenciais e a reivindicação de um
assemelhamento de suas “biografias” passa a ser utilizado como um trunfo relevante nas
disputas intelectuais, servindo-lhe também como um reparo à ausência de outros recursos
mais valorizados socialmente, tal como pudemos identificar com respeito à titulação
escolar de nível superior, a inserção em importantes redes de relações sociais ou a
experiência com movimentos culturais ou políticos em contextos de maior destaque
nacional. A guisa de exemplo, o trecho seguinte:
Minha poesia, posterior à daqueles anos iniciais, fez-se influenciar, sobretudo, por paradoxal que seja, pela leitura apaixonada dos grandes romancistas mundiais, como Dostoiévski, com sua angústia metafísica e dolorosa consciência do mal, e Thomas Mann, pelo seu incurso nos domínios sombrios da morte e da arte. Minha poesia, seus sonetos que o digam, foge por completo aos cânones daquela geração [refere-se à “geração de 45”], que reputo, contudo, importante pela expressividade de alguns nomes que a compõem [refere-se com frequência a Lucy Teixeira, José Chagas, e Ferreira Gullar]8.
Outra importante dimensão de análise se nos apresenta com respeito às
disposições incorporadas e a inserção em espaços de socialização diversos e os
condicionantes individuais das “razões de agir” dos agentes, ou seja, resta-nos a
problemática relativa aos alcances de um modelo analítico tipológico, evitando tomá-lo
como princípio homogeneizante para a análise da produção dos sentidos do estilo literário
no universo social a que nos detemos. Bernard Lahire referindo-se à relação dialética entre
unicidade e multiplicidade da subjetividade, presentes na articulação entre a perspectiva
estruturalista e fenomenológica, respectivamente, observa que é necessário “encontrar no
trabalho empírico os elementos de confirmação” (LAHIRE, 2002, p. 19), etapa sobre a
qual temos investido e cuja continuidade se dará na investigação dos apontamentos
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indicados neste artigo, a partir da análise de novos dados ainda por produzir
com entrevistas de longa duração centrando-nos em dimensões diversas – escola, trabalho,
família, sociabilidade, lazer, práticas culturais e os cuidados com o corpo (Cf. LAHIRE,
2004) – das trajetórias de dois casos exemplares no que tange às lógicas cruzadas de
atuação no espaço social elaborado. Por estes registros pretendemos concluir nossa
perspectiva de análise de uma dimensão mais geral, investigando os condicionantes sociais
de ingresso e atuação na carreira literária, a outra mais particular, centrada nos processos
8 Entrevista concedida a Ricardo Leão em maio de 2003 (Grifo nosso). Disponível em: http://litterofagia.blogspot.com/2009/12/entrevista-de-nauro-machado.html
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