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Oficina 3 - Danças Circulares Sagradas na América Latina
Yara Aparecida Couto1
Sinopse: Fundamentado em estratégias pedagógicas que enfatizam princípios e conceitos das
Danças Circulares Sagradas na América Latina. Essa ênfase se dará a partir do reconhecimento
da dança como um campo integrado às artes, às manifestações milenares, permitindo aflorar
crenças, mitos, símbolos coletivos, nos seus gestos interpretativos e expressivos; uma vivência
lúdica e criativa, da beleza, dos corpos, dos ritmos, gestos e olhares, que evocam a essência
humana.
Palavras-chaves: danças circulares sagradas; educação; cultura corporal; América Latina.
Desde os primórdios da humanidade a dança sempre esteve presente na vida dos homens
e mulheres, provocando grandes transformações na cultura, na comunicação e no movimento
humano. Os seres humanos descobriam novas formas gestuais de seus corpos através da
observação das mudanças na natureza, da sutileza dos movimentos em animais ou até mesmo dos
fenômenos naturais. A princípio, o movimento era motivado por impulsos religiosos, profanos,
fúnebres, guerreiros, como ritual e também como importante instrumento de transferência
cultural. A associação dos movimentos aos seus significados funcionais de sobrevivência foi se
modificando ao longo da história (ELMERICH, 1987).
A dança, um dos conteúdos da cultura corporal, tem um papel fundamental na produção
de cultura, pois sempre foi e ainda é uma maneira de expressão humana. Arqueólogos,
paleontólogos, antropólogos e historiadores nos indicam que a dança deixa marcas de sua
passagem na história da humanidade. Os mais antigos documentos coreográficos revelam a dança
como primeira manifestação lúdica e expressiva da arte humana. Esses registros do
comportamento humano emergem vivos há mais de trezentos séculos, conforme adverte o
folclorista e escritor Câmara Cascudo (2004). Instrumentos de pedra, utensílios de barro, pinturas
rupestres e restos de rituais pesquisados, de acordo com esses especialistas, nos levam a
compreender um pouco mais a essência e o mistério do humano, sua busca original pela arte,
religião e, até mesmo, pelo desenvolvimento científico.
As danças circulares são manifestações da criatividade coletiva e através delas podemos
reafirmar a possibilidade de reabrirmo-nos para as configurações coletivas nas diferentes culturas
do mundo. Além de novas celebrações, as danças foram, primeiramente, veículos de uma
sabedoria que sobreviveu a mudanças de linguagem, localização, religião e nacionalidade por
1 Professora do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana da Universidade Federal de São
Carlos (DEFMH/UFSCar); Membro da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana
(SPQMH) e do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF); Doutoranda em
Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).
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centenas e até milhares de anos. Nos dias de hoje representam uma retomada de antigas formas de
expressão de diferentes povos e culturas, acrescidas de novas criações, coreografias, ritmos e
significações próprias de homens e mulheres inseridos na realidade atual. Uma vez que a maioria
delas está ligada à história dos povos, trazem na sua essência a qualidade de estimular a
socialização e de resgatar o caráter participativo e a união de todos os indivíduos, sem distinção
ou hierarquia (WOSIEN, 2000). Como fonte de conhecimento, coloca-nos em contato com uma
linguagem completa e complexa, proveniente da única propriedade verdadeira e inseparável de
que o ser humano dispõe para manifestar sua essência, sua cultura, sua história, sua beleza: o
corpo!
Contudo, em séculos recentes a civilização européia perdeu contato com a
sustentabilidade ambiental, cultural, ética e, em lugar disso, lamentavelmente, tornou-se sinônimo
de forças de colonização e exploração. O processo vivido principalmente pelas civilizações
ocidentais avançadas colaborou para a decadência das práticas culturais tradicionais, como as
danças sagradas, tanto marcadas pela repressão do corpo, formalizando uma dissociação profunda
entre mente e corpo, como pela racionalização, industrialização e crescimento urbano, que foram
fatores, que pouco a pouco encaminharam a vida das pessoas, de modo a se distanciarem do
sentido mais profundo de convivência e coroamento da vida pela dança.
Na atualidade perdemos nossa ligação com a terra, com o ato de comungar coletivamente
rituais de passagem, como o de plantar, semear, colher, o do nascimento, da morte, da celebração
da vida, entre outros. Com isso a vivência do ser humano cada vez mais se dissocia do mundo,
das suas raízes, das vivências lúdicas, expressivas e coletivas, havendo um constante movimento
de distanciamento e desconhecimento do nosso patrimônio cultural.
Percebemos que há transformações ocorridas na configuração da dança ao longo do
tempo, influenciada também por conexões contextuais entre a dança e as outras áreas da cultura.
No entanto, reencantar o conhecimento das civilizações desaparecidas, ou de povos
marginalizados, no grande movimento da globalização é uma possibilidade de aprofundar a
compreensão da humanidade em seu maior sentido.
As pesquisas de campo são de fundamental importância para reconhecer a rica sabedoria
das danças nos gestos e atos mais simples dessas culturas, que celebram a vida através de rituais,
os quais estabelecem contato, elos, com sua herança ancestral e memória arcaica. Além do mais,
como procuramos aprendê-las e compreendê-las, e acima de tudo dançá-las com alegria,
entusiasmo e celebração, estamos ajudando a mantê-las vivas e com elas um mundo de sabedoria.
O reconhecimento da presença de diferentes culturas, africana, indígena, européia, suas
crenças e saberes, práticas e hábitos culturais, na contínua constituição de nosso patrimônio, da
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nossa identidade, muito oscilaram entre intolerâncias, desqualificações, purificações,
folclorização de suas expressões, atividades e exercícios que promoveram perspectivas
pacificadoras e legados tranqüilizadores, como ocorreu na formação cultural de nosso povo, e que
ainda pode ser verificada (ANTONACCI, 2006). No entanto, as raízes afro-indígenas
permanecem vitais em nosso patrimônio cultural. Elas se concentram em autos populares, com
também em múltiplas manifestações, entrelaçando elementos culturais convergentes em termos
de motivos, cenas, enredo dramático, intercalado de bailados, cantos, danças, bem como
elementos históricos e lúdicos brasileiros.
Entretanto, temos a cultura latina a qual nos revela a importância das histórias fundadas
sobre as descobertas arqueológicas e antropológicas dos povos indígenas. Essas arqueologias
mostram em diversas expressões a evolução e o desenvolvimento humano, sendo verificado tanto
nos costumes, hábitos, presentes na culinária, vestimentas, artesanatos, instrumentos musicais,
danças folclóricas, música, obras de arte, como por meio da tecelagem, agricultura, atividades
religiosas, ritual sagrado, entre outros temas, como os instrumentos de manuseio ao trabalho,
artesanato, expressões marcadas pelas suas tradições religiosas, arquitetônicas e artísticas,
compondo, assim, um extenso cenário de produção e criação humana. Vale salientar a
importância de recuperar e valorizar esse rico conhecimento!
Sem dúvida ainda hoje há uma forte identidade cultural, característica dos países latinos,
e que pode ser constatado nas manifestações do seu povo. Percorrer esse rico universo cultural
revela-nos que a crença do povo ainda resiste aos nossos dias, aos nossos valores pós-modernos.
O passado arcaico dessas civilizações está muito presente na vida das pessoas, são memórias
vivas que são ressignificadas no dia-a-dia dessa nação; pois que culturalmente ensinaram-nos
formas de cultivar a terra, curar doenças e o modo de vida entrelaçada à terra que herdaram.
A cultura ameríndia na América Latina e suas origens revelam um povo que ainda cultua
suas crenças nos antepassados, na tradição, na forte relação com as forças da natureza, e que são
revividas e cultuadas através dos mitos de criação, dos rituais sagrados e do trabalho, da própria
vida e história desse povo. Uma civilização em que a religião, história, arte e educação se
interpõem, configurando uma cultura provedora e alimentada pelos mitos e tradições, que tecem
um grande conhecimento cultural, marcado pelas origens e raízes dessa civilização, e as quais
compõem hoje sua própria contemporaneidade.
Nesse momento há que se refletir sobre a importância de nossa herança cultural, de
nossas origens, em que nos perguntamos: onde estão nossas referências culturais, que nos
mediam nesse mundo globalizado? Quais são as nossas tradições culturais comungadas nos
nossos dias? São afro-indígenas, européias e/ou latino-americanas? O que sabemos e
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manifestamos das nossas tradições? Nós a conhecemos pelas nossas próprias experiências
coletivas? Quais são as nossas manifestações culturais pós-modernas? Será que a forte existência
de valores próprios de nossa cultura poderia ajudar-nos a encontrar um equilíbrio de identidade,
não se submetendo, mas resistindo em parte, a essa deterioração que o consumo provoca em
nossos desejos? E mais, qual a cultura que estamos engendrando e formalizando nos dias de hoje?
Hoje nos confrontamos com novos paradigmas estabelecidos pelo conhecimento
científico, pela incessante transformação da vida das pessoas no acesso a informações e
tecnologias, que desencadeiam cada vez mais nova postura, comportamentos e uma outra ética. A
elaboração deste processo, de vivência plena, una e originária, exige o encontro de outros
pressupostos, que permitam a integração desse conhecimento. Entretanto, explorar novos
caminhos pela rica diversidade cultural manifestada, aproximando, relacionando, contrapondo,
reafirmando, mobilizando conhecimentos, é o que enriquece, conduzindo-nos a aproximar-nos de
nossas origens, raízes, como de conhecer outras realidades, delineando, assim, novas
oportunidades para nos consagrarmos como “seres humanos” potencialmente criativos.
A educação transcende a perspectiva de mera transmissora de instrumentos utilitários
direcionados ao sucesso profissional, ou somente à formação técnica com bases fragmentadas,
pois o pensamento não concebe o fechamento da vida em um sistema único. Ela pode, sim,
encaminhar-se a partir de tudo o que construímos e elaboramos, o que faz necessário valorizar a
diversidade cultural e desenvolver também a criatividade; um processo educativo na formação e
apropriação humana.
Nesse sentido, ampliar horizontes culturais, geralmente muito restritos, pode ser um meio
de explorar novos conhecimentos sobre civilizações e culturas ignoradas, presentes em nossa
arqueologia, antropologia, memória ancestral. Não se trata da persistente perpetuação ou
imobilização do passado, mas, sim, da valorização do que gerações anteriores realizaram,
caminhos estes que permitem traçar a possibilidade de revelar a riqueza e a expansão da dança e
da educação: um encontro entre dança e educação, entre fazer/saber e os vestígios do
conhecimento humano, compondo, assim, nosso real e verdadeiro patrimônio cultural, fonte de
mobilização para a aprendizagem, transmissão de conhecimento e saber.
Neste caminho sensível a Dança pode ser considerada um conhecimento constitutivo das
artes e pode ser contemplada como forma de linguagem e como manifestação cultural. Tudo isto
nos leva de volta às Danças Circulares Sagradas. Essas danças referem-se às Danças Populares de
todas as regiões do mundo; assim como os cantos tradicionais e junto com eles, elas têm o poder
dos costumes, que se transmitem de geração para geração. Além do seu ritmo próprio, este ritmo
que transmitimos à terra com os pés e com o corpo, há nelas o poder do ritmo das gerações
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sucessivas, que as retomam pelo poder dos gestos mil vezes repetidos, ritualisticamente e
fervorosamente. As danças carregam a marca celular e memória instintiva de todos que se foram
antes, dançando estes mesmos passos e rituais. Nesse sentido todos somos dançarinos,
considerando que o verbo dançar em grego orce-omai (orque-omai) é derivado de or-numi (or-
numi), cujo significado é fazer levantar, despertar, fazer nascer (LORTHIOIS, 1998)!
Além do mais a autora e pesquisadora Antonacci aponta em seu texto “Tempos e
Histórias Silenciados” (2006), a importância e o potencial, que ritmo e dança assumem na
constituição de identidades, preservação e transmissão de costumes e tradições pelos
movimentos. A configuração espacial na dinâmica da dança, de sensibilidade corporal
memorizada, mostra-nos necessário pesquisar modos de expressão, comunicação e preservação
de memórias culturais, uma vez que compõem, assim, universos: lúdico, ritualístico, festivo,
traços de força, orgulho, criatividade ou vontade, em que poderá realizar-se uma educação do
“eu” inteiro - corpo e espírito, inteligência, emoções e sensibilidade - a totalidade e integridade
humanas.
De modo que, o elemento lúdico revelado e reafirmado pelas expressões humanas,
possibilita ampliar o campo de argumentações e de significados, são momentos reveladores! E
quando comungado coletivamente em encontros, festas, e até mesmo no trabalho, entre tantas
outras possibilidades humanas, configura-se corpos e rituais como monumentos históricos nas
transmissões de tradições, crenças, valores e conhecimentos.
Nas danças circulares sagradas há um espaço lúdico, para que as pessoas integrem-se
como partes de uma totalidade, que se une em roda; o corpo na dança, no contato com o sagrado,
com as raízes, a vivência lúdica da beleza, dos símbolos. Pois, há nelas uma perspectiva de
múltiplas manifestações culturais, sendo traçadas em cada ritmo, gesto, passo, movimento,
símbolo, cultura, linguagem mítica, identidade cultural, encaminhando, assim, um espaço lúdico e
criativo de adaptabilidade, equilíbrio, sensibilidade e abertura ao desconhecido, sempre de modo
pleno de sentido, significado e de forma festiva, como sugere Wosien (2000).
Este mestre das danças reforça, mais uma vez, que a dança pode revelar um momento de
vivência plena e unificada! Mesmo porque, e não por acaso, a tradição cultural das gerações, na
simplicidade dos movimentos e padrões básicos da dança, repetidos através do tempo, abre uma
continuidade de seu potencial criativo e do fluxo incessante da vida, que não cessa de produzir a
si própria das mais diversas e diferentes formas, expressões e sentidos!
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Referências
ANTONACCI, Maria Antonieta. Tempos e histórias silenciados. PUCviva. São Paulo, ano 7, n.
28, p.6-11. out/dez, 2006. (ISSN 1806-3667).
CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura: pesquisas e notas de etnografia geral. São
Paulo: Global, 2004. 726p. (ISBN 85-260-0873-0).
ELMERICH, Luis. História da dança. 4ªed. São Paulo: Nacional, 1987. 360p.
LORTHIOIS, Celine. As danças circulares na roda da vida. In: RAMOS, R.C.L. (Org.). Danças circulares sagradas: uma proposta de educação e cura. São Paulo: TRIOM/ Faculdade Anhembi
Morumbi, 1998. p.27-41. (ISBN 85-85464-16-X).
WOSIEN, Bernhard. Dança: um caminho para a totalidade. Trad. Maria Leonor Radenbach e
Raphael de Haro Júnior. São Paulo: TRIOM, 2000. 157p. (ISBN 85-85464-35-6).