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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rosana Oleinik Pasinato
Pressupostos condicionantes da interpretação do direito tributário
Mestrado em Direito Tributário
São Paulo
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rosana Oleinik Pasinato
Pressupostos condicionantes da interpretação do direito tributário
Mestrado em Direito Tributário
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial
para a obtenção do título de mestre em
Direito Tributário, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Professora Doutora
Fabiana Del Padre Tomé.
São Paulo
2011
Banca Examinadora
_________________________
_________________________
_________________________
Dedico este trabalho à minha mãe, in
memoriam, e à minha filha, Victoria Pasinato,
com todo meu amor.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço ao Professor Paulo de Barros Carvalho,
pensador de primeira grandeza, por sua magnanimidade infinitamente demonstrada nas
oportunidades de crescimento intelectual que concede a seus alunos. Obrigada por toda a
consideração e apoio, especialmente por me acolher em seu Grupo de Estudos e no mestrado
da PUC-SP.
Agradeço à Professora Fabiana Del Padre Tomé, orientadora paciente
e dedicada e que me acompanha desde o Curso de Especialização em Direito Tributário da
PUC/COGEAE.
Agradeço a Tácio Lacerda Gama e Tathiane dos Santos Piscitelli,
pelos Cursos de Teoria Geral do Direito e Teoria da Interpretação do Direito, ministrados no
IBET, no ano de 2007. Esses cursos me introduziram à Filosofia e à possibilidade de pensar o
Direito.
Aos professores Marcelo Neves, Maria Rita Ferragut, Clarice von
Oertzen de Araújo e Robson Maia Lins, pelas aulas ministradas durante o curso de mestrado.
A meus companheiros de mestrado, especialmente Marina Figueiredo,
Guilherme Lopes de Moraes, Rodrigo Simões, Jean Simei, Rodrigo Simões, Renato Silveira,
Gyordano Kelton, Ramon Negócio e Ana Paula Herrera.
Aos membros do Grupo de Estudos idealizado e coordenado pelo
Professor Paulo de Barros Carvalho, em especial a Florence Haret e Lucas Galvão de Britto.
Ao IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, em especial à
Priscila Souza, pela oportunidade de participar de seus cursos de extensão como professora
seminarista.
Agradeço a Washington Pasinato, pela colaboração ao longo do curso.
Ao Ruy e ao Rafael da Secretaria de mestrado, pelo atendimento
exemplar.
A todos que de alguma forma colaboraram para a realização deste
trabalho.
RESUMO
O presente estudo visa estabelecer parâmetros para a interpretação do direito tributário, que
denominamos de pressupostos condicionantes. Conceber o direito como fenômeno de
linguagem e a atividade exegética como construção de sentido realizada pelo intérprete não
implica conferir-lhe uma subjetividade soberana, que prescinde da observância das
expectativas de significados presentes no contexto histórico-cultural em que é realizada. Após
a fixação de premissas filosóficas que respaldam a investigação dogmática, definem-se os
pressupostos que condicionam a exegese do direito tributário, o conceito de interpretação do
direito como um sistema de linguagem, a importância dos pressupostos para a exegese, e, a
partir de então, inicia-se o estudo das disposições sobre o tema presentes no ordenamento
jurídico e dos métodos de exegese tradicionalmente concebidos pela doutrina e que servem de
argumentos para decisões de nossos Tribunais.
Palavras-chave: Direito tributário. Interpretação. Pressupostos condicionantes.
ABSTRACT
The present study intends to establish parameters of law taxes interpretation, denominated
conditional presuppositions. Understanding the law as a language phenomenon and exegesis
activity as a meaning construction done by the interpreter, does not implicate empowering the
individual with an absolute subjectivity, which dispenses the observance of the meaning
expectations present at the historical and cultural context where it is done. After defining the
philosophical premises that will support our dogmatic investigations, the conditional
presuppositions of law taxes interpretation are defined, as well as the concept of law
interpretation as a prescriptive language system, his relevance and the study of the clauses
about the subject that are in the legal system and about the methods of exegesis traditionally
conceived by doctrine that support the arguments used in the Court begins.
Keywords: Tax Law. Interpretation. Conditional Presuppositions.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 09
CAPÍTULO 1 – A TEORIA DOS JOGOS DE LINGUAGEM E A
INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO ......................................................... 14
1.1 Esclarecimentos preliminares sobre o "giro linguístico" e a existência de fases que o
caracterizam ...................................................................................................................... 14
1.2 O conceito de "jogos de linguagem" ............................................................................... 19
1.3 As regras para construção de sentido nos jogos de linguagem ....................................... 22
1.4 A intenção na atividade interpretativa: análise crítica da mens legis e da mens
legislatoris ....................................................................................................................... 26
1.4.1 A inaplicabilidade do brocardo in claris cessat interpretatio ..................................... 31
CAPÍTULO II – A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO COMO
LINGUAGEM PRESCRITIVA E OS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES .......... 37
2.1 O conceito de interpretação e de pressupostos condicionantes ....................................... 37
2.2 A autorreferencialidade da linguagem jurídica ............................................................... 42
2.3 Os níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica e seu papel na
interpretação .................................................................................................................... 44
2.4 A regra-matriz de incidência tributária ............................................................................ 47
2.5 Fato e evento: a importância da distinção para construir-se o sentido jurídico ............... 52
2.6 O culturalismo, cultura jurídica e a interpretação do direito ........................................... 54
2.7 Valores e interpretação do direito .................................................................................... 59
2.8 Valores, princípios e interpretação .................................................................................. 66
2.9 A função do Preâmbulo da Constituição da República para a interpretação do
direito posto ..................................................................................................................... 70
CAPÍTULO III – A IMPORTÂNCIA DOS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES
PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO: VALIDADE E
CORREÇÃO DA NORMA JURÍDICA ............................................................................. 73
3.1 Ciência do direito e direito positivo: dois jogos de linguagem ....................................... 73
3.1.1 Direito posto: normas válidas ou inválidas ................................................................. 73
3.1.2 Ciência do Direito: proposições verdadeiras (corretas) ou falsas (incorretas) ........... 76
3.2 A intertextualidade .......................................................................................................... 79
3.3 Validade e correção da norma jurídica: dois pontos de vista distintos, mas
não isolados ..................................................................................................................... 81
CAPÍTULO IV – A REGULAÇÃO DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA NO
CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL .............................................................................. 85
4.1 As regras de interpretação presentes no Código Tributário Nacional ............................. 85
4.2 A aplicação das normas jurídicas tributárias: as leis interpretativas ............................... 87
4.3 A aplicação das normas jurídicas tributárias: "fato gerador pendente" e "fato gerador
futuro" .............................................................................................................................. 89
4.4 Interpretação e integração do direito tributário ............................................................... 93
4.5 A inexistência de hierarquia e taxatividade na aplicação do artigo 108 do Código
Tributário Nacional ....................................................................................................... 100
4.6 A vedação ao uso da analogia para criação de tributo .................................................... 101
4.7 Equidade ........................................................................................................................ 107
CAPÍTULO V – MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO ..... 112
5.1 Considerações iniciais ................................................................................................... 112
5.2 A interpretação literal ou gramatical ............................................................................. 115
5.3 A interpretação histórico-evolutiva ............................................................................... 118
5.4 Interpretação lógica ....................................................................................................... 120
5.5 Interpretação teleológica ............................................................................................... 123
5.6 Interpretação sistemática ............................................................................................... 125
5.7 O artigo 110 do Código Tributário Nacional e a interpretação sistemática .................. 130
5.8 A interpretação sistemática e os Tribunais Administrativos ......................................... 136
5.9 A interpretação econômica do direito tributário ............................................................ 141
VI – SÍNTESE CONCLUSIVA ......................................................................................... 146
Do capítulo I ......................................................................................................................... 146
Do capítulo II ........................................................................................................................ 148
Do capítulo III ...................................................................................................................... 149
Do capítulo IV ....................................................................................................................... 150
Do capítulo IV ....................................................................................................................... 151
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 155
9
PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES DA INTERPRETAÇÃO DO DIREITO
TRIBUTÁRIO
INTRODUÇÃO
A interpretação do direito tributário tem se apresentado como tema de
maior relevância para a doutrina1. Dentre os prováveis motivos que animam o interesse está a
ideia, bastante difundida entre os estudiosos, de que interpreta-se o direito para aplicá-lo2.
Pois bem. Ao analisar a interpretação do direito tributário, o cientista
se depara com intensos debates desenvolvidos no curso de processos administrativos e
judiciais, que, por seu turno, refletem enorme variedade de pontos de vista, responsáveis por
fundamentar as respectivas decisões proferidas pelas autoridades competentes, muitas vezes
consideradas contraditórias, incorretas ou mesmo arbitrárias. Ilustram a assertiva casos
recentes, nos quais a interpretação de termos como faturamento3, comunicação
4, leasing
5,
dentre outros, que denotam critérios utilizados pelo legislador para estabelecer a materialidade
dos tributos, foi a circunstância geradora de controvérsia e sobre a qual debateu-se até o
alcance de uma decisão.
Pelo prisma da Ciência do Direito, encontramos argumentos capazes
de justificar tamanha variedade de opiniões. Sob a influência de teorias filosóficas que se
desenvolveram a partir do movimento conhecido como "giro linguístico-hermenêutico"6,
introduziu-se com maior vigor no pensamento doutrinário a inexistência de uma solução única
1 A título de exemplo, citamos a opinião de Amílcar de Araújo Falcão. Em suas palavras: "um dos temas mais
árduos em direito tributário é a interpretação da lei tributária." (FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução do
Direito Tributário. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1959, p. 81). Ao discorrer sobre o tema, Paulo de
Barros Carvalho destaca que: "[...] a interpretação é tema fundamental e, sem ela, não teremos acesso ao
conhecimento do direito." (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 128). 2 Já o advertia Ferrara: "A actividade do intérprete tendente a apurar o conteúdo da lei e a desenvolvê-lo e
completá-lo, bem como a elaboração científica têm por último fim a aplicação. Porque o direito vive para se
realizar, e a sua realização consiste nem mais nem menos que na aplicação aos casos concretos." (FERRARA,
Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1937, p. 95). (destaques do autor).
Também nesse sentido, por exemplo, Bernardo Ribeiro de Moraes (Compêndio de Direito Tributário. Vol. II,
3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 173) e Luciano Amaro (Direito Tributário Brasileiro. 15. ed. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 205). 3 Ver RE 390.840, STF, Pleno, DJ 15/08/2006.
4 Ver REsp 402.047, STJ, 1ª Turma, DJ 09/12/2003.
5 Ver RE 592.905, STF, Pleno, DJe 05/03/2010.
6 O assunto será explicado com mais detalhes em local próprio da dissertação.
10
para os aplicadores do direito, que corresponda à extração da vontade da lei ou do legislador.
Sem embargo de adiantarmos as premissas que justificam os argumentos de nossa pesquisa,
esclarecemos que tais correntes da Ciência Jurídica compreendem a atividade interpretativa
como construção de sentido feita pelo intérprete a partir dos textos do direito posto. Nega-se
haver uma essência caracterizadora da natureza do direito a ser descortinada, que permita o
alcance de um sentido único e verdadeiro, mas um processo de compreensão que conta com a
subjetividade do exegeta7, imerso em determinado contexto histórico-cultural. A mudança de
foco premia, portanto, a possibilidade de relativização, que serve para explicar o dado
empírico consubstanciado na diversidade de decisões sobre um único tema e que muitas vezes
é tida como causadora de insegurança nas relações jurídicas.
Apesar de reconhecermos a procedência de tais considerações
teóricas, acreditamos que a subjetividade inerente à atividade exegética sofre
condicionamentos, a ponto de determinadas decisões serem qualificadas como teratológicas
ou arbitrárias. Muito embora o intérprete possua plena liberdade de pensamento ao atribuir
sentido à linguagem jurídica, não deve perder de vista a finalidade do direito, vale dizer,
influenciar a conduta humana em determinada sociedade que se pauta em valores
compartilhados por seus membros. Logo, o intérprete não é um sujeito isolado. As
expectativas de seus interlocutores devem ser levadas em consideração ao atribuir-se sentido
ao direito. O que foi dito aponta para a ideia de existência de pressupostos para o
desenvolvimento da atividade exegética.
Portanto, o objetivo central dessa pesquisa é justamente responder ao
seguinte problema: levando-se em consideração que interpretar o direito tributário é atribuir
sentido aos textos que o compõe, é possível concluir pela existência de pressupostos que
condicionam a atividade exegética? Em outro giro: o intérprete é livre para emitir qualquer
decisão sem levar em conta as expectativas de seus interlocutores?
O problema central que motiva a pesquisa, por óbvio, traz seus
desdobramentos. O primeiro deles é relacionar a existência dos pressupostos condicionantes
da interpretação do direito tributário com suas consequências, vale dizer, qual a importância
em apontá-los? Constituir-se-iam em limites para a autoridade competente?
7 O termo "exegese" e, por conseguinte, "exegeta" serão utilizados nesse trabalho como sinônimos,
respectivamente de "interpretação" e "intérprete".
11
Cumpre ressaltar que o direito posto, a exemplo do Código Tributário
Nacional, veicula dispositivos sobre sua interpretação. Esse fato, se analisado sob a
perspectiva dos pressupostos que a condicionam, é responsável por outras dúvidas a serem
enfrentadas pela pesquisa. Uma delas seria a seguinte: se interpretar é construção de sentido
que se faz a partir dos textos de direito, como diferençar a prática da analogia e da equidade?
O direito tributário mereceu, por parte do legislador, tratamento
detalhado na Constituição Federal, que se utiliza de conceitos de direito privado para definir
sua materialidade, sem, no entanto, estipular definição diversa. Partindo desse dado e da
existência de técnicas para a interpretação propaladas pela doutrina e comumente utilizadas
como justificativa das decisões pelos Tribunais, decorre a seguinte pergunta: houve por parte
do legislador a eleição de uma técnica de exegese, mais especificamente a sistemática, que
necessariamente deve condicionar a interpretação do direito tributário?
Há, ainda, outro desdobramento da pesquisa consistente na eleição de
um método que permita desenvolvê-la de forma coerente, conforme exige-se de um trabalho
acadêmico. Para tanto, os seguintes dados foram considerados: (i) a interpretação do direito é
tema de Teoria Geral, como pertencem, aliás, assuntos que formam a base do conhecimento
jurídico; (ii) a existência de peculiaridades no direito tributário que justificam o
desenvolvimento de pesquisas que versem sobre interpretação nessa área específica. O
próprio Código Tributário Nacional traz particularidades, a exemplo da proibição de analogia
para exigir tributo não previsto em lei, que por si só comporta laudas de análise. Por essas
razões, optamos pelo construtivismo lógico-semântico, método com forte carga de Teoria
Geral, mas que, ao mesmo tempo, deita raízes no direito tributário brasileiro, influenciando
parcela considerável do pensamento científico produzido sobre o assunto.
É de se ressaltar que o método não se constitui somente na forma
eleita pelo sujeito para se aproximar do objeto de estudos. Traz consigo uma compreensão
prévia do próprio objeto, o que influencia diretamente nas respostas às questões que
necessitam ser enfrentadas8. O construtivismo lógico-semântico interpreta o direito como um
sistema de linguagem prescritiva, como será abordado em capítulo próprio, e, em virtude
desse entendimento, responde não somente ao problema central da pesquisa, mas também às 8 Nesse sentido, Judith Alda Alves-Mazzotti e Fernando Gewandsznajder (O Método nas Ciências Naturais e
Sociais. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 2000, p. 112). Os autores rejeitam a possibilidade de "observação pura" do
objeto. Em suas palavras: "[...] a observação está sempre impregnada de teoria. Isto quer dizer que, ao realizar
o teste empírico de uma teoria, esta própria teoria influencia o 'fato' a ser observado, na medida em que impõe
o recorte, definindo as categorias relevantes e selecionando os aspectos e relações a serem observados."
12
perguntas subjacentes. Dessa maneira, o próprio conceito de interpretação e os pressupostos
que a condicionam serão fornecidos a partir da teoria expressa pelo método.
A essa altura da introdução, cabe um parêntese, com o objetivo de
esclarecer uma postura característica do construtivismo lógico-semântico, também
denominado método hermenêutico-analítico: a necessidade de um modelo filosófico que
estimule a investigação científica. Nesse sentido, estamos firmes com a lição de Paulo de
Barros Carvalho sobre o assunto, a seguir transcrita9:
Quero ressaltar que não sou filósofo do direito, mas compreendi, de há muito, que a
consistência do saber científico depende do 'quantum' de retroversão que o agente
realize na estratégia de seu percurso, vale dizer, na disponibilidade do estudioso para
ponderar sobre o conhecimento mesmo que se propõe construir. Expressando-me de
outra maneira, estou convicto de que o discurso da Ciência será tanto mais
profundo quanto mais se ativer, o autor, ao modelo filosófico por ele eleito para
estimular sua investigação. [...] O progresso da pesquisa científica fica na
dependência direta do apoio indispensável da Filosofia.
Portanto, a Filosofia, entendida como tipo de linguagem apta a questionar
os pontos de partida e as possibilidades das teorias científicas, é imprescindível no
desenvolvimento argumentativo de toda e qualquer pesquisa, por conferir-lhe vigor, profundidade
e consistência.
O modelo filosófico que sustenta o construtivismo lógico-semântico é o
"giro linguístico-hermenêutico", responsável por elevar a linguagem como problema central dos
debates e fundamento de todo o conhecimento. Confirma a tese, a proposta difundida por seu
expoente, Paulo de Barros Carvalho, que propugna pela interpretação do direito como um sistema
de linguagem10
.
Portanto, em virtude da escolha desse método, será utilizado o "giro
linguístico-hermenêutico" como fundamento filosófico da pesquisa, mais especificamente, o
pensamento expresso na segunda fase de Ludwig Wittgenstein, que se encontra na obra
Investigações Filosóficas11
. Conforme tese defendida pelo autor, a linguagem deixa de ser vista
como um simples instrumento figurativo do conhecimento sobre uma realidade absoluta e
previamente existente e passa a ser responsável por constituir inúmeras formas de vida, também
denominadas "jogos de linguagem". Nesse novo cenário, a linguagem ganha significação em
9 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 3 e 4.
Destaques nossos. 10
Conforme Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 11
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução Marcos G. Montagnoli; revisão da tradução
e apresentação Emmanuel Carneiro Leão. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
13
virtude de seu uso voltado para determinado fim, mediante regras reconhecidas pelos que
compartilham a mesma forma de vida. Assim se daria com o direito. Sua exegese dependeria do
uso feito pela comunidade jurídica, partindo de regras previamente estabelecidas.
Dessarte, no "capítulo I", estudaremos conceitos filosóficos fundamentais
presentes em Investigações Filosóficas e que são responsáveis por influenciar na caracterização
dos pressupostos condicionantes da exegese do direito tributário. O papel da linguagem, a
relativização da verdade, o que se constitui "seguir uma regra" em um jogo de linguagem e a
possibilidade de alcançar-se a intenção na atividade interpretativa serão explicados e relacionados
com posições defendidas pela doutrina e jurisprudência do direito tributário, especialmente com
aquelas que compreendem a exegese como a extração da vontade da lei e do legislador, presentes
nos enunciados legislativos.
Esclarecidos os fundamentos filosóficos, passamos a analisar, no
"capítulo 2", a interpretação do direito tributário como um sistema de linguagem, o que nos
capacitará a responder ao problema central da pesquisa, consistente em saber sobre quais seriam
os pressupostos condicionantes da interpretação do direito tributário.
No "capítulo 3", responderemos importante questão que se desdobra do
problema central do trabalho. Analisaremos quais os efeitos de se apontarem os pressupostos
condicionantes da interpretação do direito tributário, o que implica em relacioná-los com o
conceito de validade e correção da norma jurídica.
No "capítulo 4", analisaremos dispositivos do Código Tributário
Nacional que regulam a interpretação do direito, com base nos pressupostos aferidos no início do
trabalho.
No "capítulo 5", dedicar-nos-emos a apreciar as técnicas de exegese do
direito tributário, cotejando-as com a proposta de sua interpretação como um sistema de
linguagem e com o próprio direito posto, que, em nosso modo de compreender, prescreve a
exegese sistemática.
Por último, esclarecemos que toda a exposição será permeada pela
análise de decisões que versam sobre direito tributário, proferidas por nossos Tribunais judiciais e
administrativos, como medida didática tomada com o intuito de facilitar a exposição.
14
CAPÍTULO 1 – A TEORIA DOS JOGOS DE LINGUAGEM E A INTERPRETAÇÃO
DO DIREITO TRIBUTÁRIO
1.1 Esclarecimentos preliminares sobre o "giro linguístico" e a existência de fases que o
caracterizam
A primeira metade do século XX foi marcada pela transformação do
paradigma filosófico. A linguagem deixa de ser mero objeto de reflexão e se transforma no
fundamento do saber humano12
. A nova perspectiva que coloca a linguagem como alicerce do
conhecimento é denominada "giro linguístico", expressão atribuível ao filósofo Gustav
Bergmann13
. Contudo, o termo engloba distintas correntes de pensamento, que, de certa
forma, podem ser qualificadas como inconciliáveis, a partir da função que atribuem à
linguagem e sua interpretação.
Ao tomarmos como critério a significação de um termo, constatamos
que, num primeiro momento, o giro linguístico está a procura de uma linguagem ideal, capaz
de retratar o mundo de forma logicamente precisa. Compartilha do esquema filosófico
tradicional que atribui à semântica14
função meramente designativa, a ponto de compreender a
verdade de uma proposição como correspondência entre linguagem e realidade. À atividade
interpretativa somente caberia extrair uma essência supostamente existente na realidade e
comunicá-la por intermédio da linguagem. Pertence a esse período o Tractatus Logico-
philosopicus15
de Wittgenstein16
, que influenciou profundamente os pensadores do Círculo de
12
Karl-Otto Apel assim se posiciona: "O que é linguagem? É provável que nunca como no século XX tenha
havido uma consciência tão clara de que a palavra 'linguagem' aponta para um problema de fundamentos da
ciência e da filosofia – e não apenas para um objeto empírico das ciências, em meio a outros objetos
(intramundanos)". APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II. O a priori da comunidade de
comunicação. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 375. 13
SCAVINO, Dardo. La filosofia actual. Pensar sin certezas. 2. ed. Buenos Aires: Paidós, 2007, p. 12. 14
A semântica pode ser compreendida como o plano da linguagem, distinguível somente para fins didáticos,
que versa sobre sua relação com o objeto. 15
WIITGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. 3. ed. Tradução de Luiz Henrique Lopez dos
Santos. São Paulo: EDUSP, 2008. 16
Dentre outras passagens que corroboram a afirmação destacamos a proposição 2.12: "A figuração é um
modelo da realidade" (Ibid., p. 143). Sobre o assunto, leciona Manfredo Araújo de Oliveira que "a
importância da semântica de Wittgenstein se manifesta com mais evidência pelo fato de ela ser um excelente
exemplo do que é o horizonte de pensamento da semântica tradicional: ele tematiza e desenvolve
explicitamente os pressupostos ontológicos da semântica tradicional, bem como a tese da correspondência ou
da coordenação entre linguagem e realidade que é, sem dúvida, uma das teses tradicionais e centrais da
semântica do Ocidente, isto é, sua teoria da verdade." (OLIVEIRA, 2006, p. 114).
15
Viena17
, responsáveis por desenvolver a filosofia que veio a ser conhecida como Positivismo
Lógico18
.
Karl-Otto Apel19
reconhece a diferença atribuída à função da
linguagem, ao analisar seu papel no Tractatus Logico-philosophicus e em Investigações
Filosóficas, que podem ser estudados, respectivamente, como paradigmas que bem retratam
fases distintas do giro linguístico:
[...] A diferença em relação a antes [refere-se à diferença com relação ao Tractatus]
consiste, no entanto, em que agora a função da linguagem não é mais definida no
sentido do 'atomismo lógico' – e isso quer dizer: no sentido de um modelo de
'designação' de objetos que acompanha a lógica ocidental desde que ela começa a
existir, e que se dá no âmbito da 'representação' ou 'descrição' de estados de coisas.
Em lugar desse modelo de apreensão da linguagem [...] surge o novo conceito de
"jogos de linguagem". [...]. Esses "jogos de linguagem" diferem da linguagem do
sujeito extramundano ("transcendental") que havia sido concebida anteriormente e
que era una e retratadora do mundo – sobretudo por terem sido pensados como
unidades concretas (diversas mas aparentadas entre si) de uso lingüístico, forma de
vida e abertura de mundo.
No mesmo sentido, Bertrand Russell20
:
Nos últimos anos, os interesses de Wittgenstein deslocaram-se da lógica para a
análise lingüística [...]. Talvez uma interpretação correta do princípio básico da sua
teoria filosófica final seja a de que o significado de uma palavra é o seu uso. [...]
Wittgenstein repudia completamente a sua obra lógica anterior, o Tractatus. Naquele
tempo, parecia-lhe possível analisar todas as declarações decompondo-as em seus
constituintes simples e últimos, que não podem ser mais divididos. Às vezes essa
teoria é chamada de 'atomismo lógico' e tem muito em comum com doutrinas
racionalistas anteriores de elementos últimos e simples. É base de todas as
tentativas de elaboração de uma linguagem perfeita, que expressará tudo com
total precisão. Nos últimos anos Wittgenstein nega a possibilidade de se constituir
tal linguagem.
A concepção tradicional da linguagem que a entende como um
espelho da realidade é fundamento filosófico de teorias que versam sobre a interpretação do
17
Nome pelo qual um grupo de estudiosos das mais variadas áreas ficou conhecido nos anos 20 do século
passado. Reuniam-se em Viena com o objetivo de discutir a natureza do conhecimento científico. As ideias
propaladas pelo Tractatus Logico-philosophicus foi objeto do mais vivo interesse e de intensos estudos por
parte de seus membros. 18
Segundo Bertrand Russell, o Positivismo Lógico "sustenta que a soma total de nosso conhecimento é
propiciada pela ciência, e que a metafísica ao estilo antigo é estritamente verbosidade vazia. Não há nada que
possamos conhecer além da experiência [...] Trata-se do famoso princípio da verificabilidade, ou
verificacionismo […]". (História do Pensamento Ocidental. A Aventura das Idéias dos Pré-Socráticos a
Wittgenstein. 6. ed. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002). Sônia
Mendes aponta dentre as características fundamentais do Positivismo Lógico o critério da verificabilidade.
Somente seriam válidas as proposições analíticas, próprias da lógica e da matemática por serem tautologias e
as sintéticas próprias das ciências naturais, que necessitam de verificação empírica. (A validade jurídica pré e
pós giro lingüístico. São Paulo: Noeses, 2007, p. 16-18). 19
Op., cit., 2000, p. 82-83. Esclarecemos nos colchetes. 20
Op. cit., p. 448. (destaque nosso).
16
direito, a exemplo das que compreendem a exegese como a extração de um significado
presente na vontade da lei ou do legislador. À linguagem, portanto, caberia comunicar algo
preexistente, para além dela. Nesse sentido, Miguel Reale21
: "O primeiro dever do intérprete é
analisar o dispositivo legal para captar o seu valor expressional. A lei é uma declaração da
vontade do legislador e, portanto, deve ser reproduzida com exatidão e fidelidade."
No direito tributário, podemos citar, por exemplo, Luciano Amaro22
:
"Interpretar a norma jurídica consiste em identificar o seu sentido e alcance."
O próprio Código Tributário Nacional23
traz dispositivo sobre sua
interpretação inspirado na exigência de extrair-se da lei conteúdo único e previamente
existente. Trata-se de seu art. 111, que prescreve a exegese literal da legislação tributária que
disponha sobre suspensão ou exclusão do crédito, outorga de isenção e dispensa do
cumprimento de obrigações acessórias. A exigência da literalidade pressupõe que seja
possível atribuir sentido às situações a que se refere, sem qualquer conexão com o contexto
em que elas ocorrem, como se houvesse um sentido único e imutável a ser identificado,
consubstanciado provavelmente numa vontade prévia.
A jurisprudência de nossos Tribunais também reflete esse modo de
pensar. Em caso concreto24
, decidiu-se que empresa de transporte público na cidade de Porto
Alegre, ao se utilizar de micro-ônibus para prestar o serviço, não gozaria da isenção de
IPVA25
, pois a lei apenas contemplaria os ônibus. Na Ementa do acórdão, está justificado o
entendimento da seguinte forma: "In casu, a isenção é concedida a ônibus e não a micro-
ônibus, de tal sorte que não pode o intérprete/aplicador da lei estendê-la, diante da exegese
literal da isenção."
Como contraponto, citamos a decisão proferida pelo Tribunal gaúcho
que, diferentemente do Superior Tribunal de Justiça, concedeu a isenção de IPVA às empresas
que se utilizam de micro-ônibus para prestar serviços de transporte coletivo, com o seguinte
argumento:
21
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 275. 22
Op. cita, 2009, p. 205. Os destaques não estão contidos no original. 23
A partir de agora será referido somente por CTN. 24
STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial nº 953.130. Relator Ministro Humberto Martins. 25
Imposto sobre a propriedade de veículos automotores.
17
A regra do art. 4º, inciso VII, alínea b, da Lei Estadual nº 8.115/85, a qual concedeu
isenção do pagamento de IPVA aos ônibus, visou ao estímulo do transporte coletivo
de passageiros. No caso dos autos, os veículos (microônibus) adquiridos pela
empresa são utilizados na prestação desse serviço público, pelo que se impõe o
reconhecimento da isenção26
.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça denota que o contexto de
aplicação da norma foi desconsiderado, pois, conforme decisão recorrida, na cidade de Porto
Alegre os micro-ônibus transportam o público em linhas regulares, cumprindo o mesmo papel
de um ônibus. Por outro lado, sequer admite a variedade de significados de um termo. Haveria
uma correspondência exata e inequívoca entre o objeto "ônibus" e o conceito de "ônibus", de
tal sorte que, o contexto e a finalidade da isenção conferida ao transporte coletivo foi
desprezada.
Contudo, o fundamento filosófico que inspira esta pesquisa está
sedimentado em momento posterior do giro linguístico, que ficou conhecido como reviravolta
linguístico-pragmática ou giro linguístico-hermenêutico. Desenvolve-se nesse período a
consciência de que, com a linguagem, o ser humano realiza inúmeras atividades, compreende
o mundo e a si próprio, a ponto de se afirmar ser ela a gênese da realidade. Vilém Flusser27
bem ilustra essa forma de pensar:
Se definimos realidade como 'conjunto dos dados', podemos dizer que vivemos uma
realidade dupla: na realidade das palavras e na realidade dos dados 'brutos' ou
'imediatos'. Como os 'dados brutos' alcançam o intelecto propriamente dito em forma
de palavras, podemos ainda dizer que a realidade consiste de palavras e de palavras
'in statu nascendi'.
A partir do giro linguístico-hermenêutico, a interpretação assume
papel central nos debates científicos e filosóficos. Com a Ciência do Direito não poderia ser
diferente. Nesse sentido, Rodolfo Vigo28
, catedrático de Filosofia do Direito, constata que
A interpretação jurídica passa, especialmente no âmbito do direito continental, por
um momento de esplendor, talvez como nunca na história do pensamento jurídico.
Boa parte da bibliografia jusfilosófica que é hoje editada versa, de forma direta ou
indireta, sobre aquela temática.
A percepção de Vigo nos parece procedente. Se o conhecimento e a
própria realidade são constituídos pela linguagem, inexistindo uma essência que permita
26
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 1ª Câmara Cível, Acórdão nº 70006809115, Relator
Desembargador Túlio de Oliveira Martins, D.J. 19/10/2005. 27
FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2007, p. 40. 28
VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas
perspectivas. 2. ed. rev. e ampl. Tradução de Susana Elena Dalli Mura. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2010, p. 35.
18
extrair um sentido único, parece-nos lícito inferir que, em última instância, sempre estaremos
discutindo a interpretação. O estudioso ao eleger tema de sua preferência para pesquisa e
averiguação necessita enfrentar a disparidade entre sentidos possíveis e, dessa maneira, ainda
que indiretamente, depara-se com a interpretação.
Dardo Scavino29
, partindo dessa perspectiva filosófica, destaca o papel
que assume a interpretação, ao lembrar as palavras de Michel Foucault em conferência sobre a
filosofia de Nietzsche:
Se a interpretação nunca pode acabar é simplesmente porque não há nada que
interpretar. Não há nada previamente absoluto a interpretar, pois no fundo tudo já é
uma interpretação, cada signo é em si mesmo não a coisa que se oferece à
interpretação, senão a interpretação de outros signos30
.
A assertiva de que a realidade é criada pela interpretação da
linguagem, entendida em sentido amplo, vale dizer, não somente a verbal31
, se não explicada,
pode ser compreendida como uma espécie de alienação. O que se quer afirmar não é a
inexistência da matéria, do dado bruto, mas apenas que seu conhecimento é constituído pela
linguagem. É, portanto, fruto de uma interpretação. Os objetos configuram nosso mundo
porque os conhecemos, o que é possível somente pela linguagem. As células-tronco, por
exemplo, não existiam até o século passado. Com o desenvolvimento de teorias sobre o
assunto, isto é, com a produção de linguagem, passam a ocupar o ideário das ciências médicas
e da sociedade em geral, como comprova o debate judicial ocorrido no âmbito do Supremo
Tribunal Federal32
.
Voltamos ao problema central que motiva a pesquisa: se não há uma
essência que caracterizaria uma natureza imutável no direito posto, a ser desvendada pelo
intérprete, mas somente construção de sentido pelo uso da linguagem, qualquer significado
seria admissível?
Em Investigações Filosóficas, encontramos parâmetros que nos
permitem fundamentar respostas a essa questão. Passamos a explicá-los.
29
Op. cit., p. 39. Traduzimos livremente. 30
Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho aponta ser a inesgotabilidade uma das características da
interpretação. CARVALHO, Paulo de Barros. Poesia e direito – O legislador como poeta: Anotações ao
pensamento de Flusser. In: Florence Haret; Jerson Carneiro. (Org.). Vilém Flusser e Juristas – Comemoração
aos 25 anos do grupo de estudos de Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses, p. 57. 31
Outros exemplos de espécies de linguagem: gestual, musical, arquitetônica, lógica, pictórica etc. 32
ADIn 3.510 cujo objeto era o questionamento da constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança. Foi
julgada improcedente em apertada votação, na data de 29/05/2008, após intenso debate que envolveu
cientistas, religiosos e ampla comunidade de interessados.
19
1.2 O conceito de "jogos de linguagem"
No § 19 de Investigações Filosóficas33
, Wittgenstein demonstra a
amplitude de seu novo conceito, ao afirmar que "representar uma linguagem equivale a
representar uma forma de vida". Supera, portanto, sua função designativa e instrumental para
entendê-la como protagonista da realidade. A cada jogo de linguagem corresponderia uma
forma de vida, e entre elas não existiria uma característica comum, apenas uma semelhança34
.
A partir dessa premissa, o próprio direito pode ser compreendido como um jogo de linguagem
ou forma de vida, uma espécie particular de interação entre os homens, cuja função é
prescrever e estimular condutas.
O sentido da linguagem ficaria, portanto, dependente de cada contexto
no qual ela é utilizada. Inexistiria um sentido único e imutável, correspondente a uma essência
disposta numa realidade absoluta, como a seguir frisa Wittgenstein35
:
23. Mas quantas espécies de frase existem? Porventura asserção, pergunta e ordem?
– Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego do que
denominamos "signo", "palavras", "frases". E essa variedade não é algo fixo, dado
de uma vez por todas; mas, podemos dizer novos tipos de linguagem, novos jogos de
linguagem surgem, outros envelhecem e são esquecidos. (As mutações da
matemática nos podem dar uma imagem aproximativa disso). A expressão "jogo de
linguagem" deve salientar aqui que falar uma língua é parte de uma atividade ou de
uma forma de vida.
Com efeito, em Investigações Filosóficas de Wittgenstein, o sentido
da linguagem não nos é dado a priori, pela estrutura ontológica supostamente presente no
mundo, mas é determinado pelo seu uso em certo contexto. Portanto, o aspecto pragmático da
linguagem entra em cena. A semântica, isto é, o sentido das frases e das palavras será
solucionado a partir do contexto no qual são usadas.
Logo, nessa fase do pensamento do filósofo, inexistiria um sentido
imutável de um termo correspondendo à forma lógica do objeto designado, mas
possibilidades de significação, variáveis de acordo com o jogo de linguagem que se participa.
33
Op. cit., 2009, p. 23. 34
Em Investigações Filosóficas, § 67, p. 52, Wittgenstein explica o conceito de semelhança de família: "Não
posso caracterizar melhor essas semelhanças do que por meio das palavras 'semelhanças familiares'; pois
assim se sobrepõem e se entrecruzam as várias semelhanças que existem entre os membros de uma família:
estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, andar, temperamento, etc., etc. – E eu direi: os jogos formam
uma família." 35
Ibid., p. 26 e 27.
20
Este, por sua vez, também pode evoluir ou mesmo desaparecer. É o que se depreende do
seguinte excerto36
:
Podemos ver nossa linguagem como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças,
casas velhas e novas, e casas com remendos de épocas diferentes; e isto tudo
circundado por uma quantidade de novos bairros com ruas retas e regulares e com
casas uniformes.
Portanto, a linguagem e os diversos jogos que com ela se constituem
encontram-se sujeitos a modificações ao longo tempo, não se apresentando como algo
imutável e imune à influência de aspectos históricos, culturais e sociais.
O contexto que permite a atividade interpretativa e os diferentes
sentidos atribuídos pelos sujeitos não deve ser entendido somente como uma sequência
linguística ocorrida em determinado momento. Se alguém enuncia a expressão "abracadabra!"
para significar que possui dor de dente, como ponderado por Wittgenstein37
, não estará
comunicando seu sentir, porque a usa fora das regras que pertencem ao contexto. Portanto,
trata-se de um conceito mais amplo por equivaler a uma forma de vida e está necessariamente
atrelado à ideia de seguir uma regra. É o que nos explica Wolfgang Stegmüller38
:
Um "jogo de linguagem" consta, nas situações normais, de uma seqüência de
manifestações lingüísticas, a que se associa, ainda, uma determinada situação
externa, e a que se juntam, na maioria das vezes, outras ações. [...] Apesar de
Wittgenstein reiteradamente voltar a falar da atuação de palavras e de frases simples
[...] deve-se dizer que ele quase sempre tem em vista os contextos amplos e só
raramente contempla atos singulares do discurso.
Dessa forma, um lançamento tributário, por exemplo, não pode ser
considerado em si como um jogo de linguagem, mas como parte integrante de uma forma de
vida, a do direito posto. As autoridades administrativas e os contribuintes não são livres para
estipular seu agir naquele procedimento específico, na medida em que estão vinculados às
regras jurídicas previamente existentes.
Com efeito, ao tratarmos do contexto necessário à atribuição de
sentido como uma forma de vida ou jogo de linguagem, implícita está a ideia de seguir regras.
Afinal, todo e qualquer jogo imprescinde de um regramento.
36
WITTGENSTEIN, 2009, p. 23. 37
Ibid., p. 225, § 665. 38
STEGMÜLLER, Wolfgang. A filosofia contemporânea: introdução crítica. Vol. I. São Paulo: E.P.U.;
EDUSP, 1977, p. 449.
21
Fabiana Del Padre Tomé39
faz interessante comparação entre o direito
e a teoria dos jogos formulada por James P. Carse40
, e que pode nos auxiliar na exposição.
Parte a jurista da identificação de dois tipos de jogos: um finito, cujo objetivo é vencer, e
outro infinito, no qual se almeja a continuidade do jogo. Como princípio presente em ambas
as modalidades, há a necessidade de que os participantes aceitem jogá-los.
No jogo do direito positivo, essa aceitação seria presumida, conforme
disposto no artigo 3º da Lei de Introdução do Código Civil. Uma vez publicada a lei não seria
possível alegar seu desconhecimento, o que estabelece, de certa forma, a concordância
presumida dos seus destinatários, na condição de participantes do jogo. Além desse aspecto, há
de se observar, que pelas regras do jogo do direito nos Estados democráticos, os próprios
agentes enunciadores da lei representam os destinatários. Estes, por sua vez, os elegem em
virtude de propostas previamente apresentadas, o que também certifica a existência de um
presumível consenso entre legislador e cidadão, em tese, corresponsáveis pela edição da norma.
A autora concebe o direito como um jogo finito, disputado dentro do
jogo infinito das relações sociais, que limita a ação de seus jogadores por intermédio das
regras do jogo. Releva que: "Nos jogos finitos há, também, regras relativas ao que os
jogadores podem fazer uns aos outros e uns com os outros. São, todas elas, limitações
internas, caracterizando as chamadas regras do jogo."41
Dessa maneira, o intérprete do direito tem a plena liberdade de
construção de sentido, a ponto de construir normas que afrontam as regras mais basilares do
ordenamento jurídico. Todavia, ao torná-las objetivas no jogo de linguagem do direito
positivo, correrá sério risco de vê-las invalidadas por não respeitarem as regras relativas ao
jogo em questão. Isto é, quando tratamos de apontar pressupostos à interpretação do direito
tributário, não queremos limitar o pensamento humano, mas alcançar parâmetros de correção
para sua intersubjetividade, enquanto norma inserida no ordenamento jurídico.
Um juiz pode acreditar ser mais justo que a presunção42
seja aplicada
aos crimes de ordem tributária, dado o grau de dificuldade na prova que caracterize a
39
TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2005, p. 20-23. 40
CARSE, James P. Jogos finitos e infinitos: a vida como jogo e possibilidade. Tradução de Cláudia Gerpe
Duarte. Rio de janeiro: Nova Era, 2003. 41
Op. cit., p. 21. (destaque da autora). 42
A presunção é definida por Paulo de Barros Carvalho como "o resultado lógico mediante o qual, do fato
conhecido, cuja existência é certa, infere-se o fato desconhecido ou duvidoso, cuja existência é,
22
sonegação, por exemplo. Contudo, existe forte consenso que, segundo as regras do direito, a
tipicidade cerrada orienta prescritivamente o agir do julgador, quando a matéria é de ordem
tributária e penal43
. Dessa forma, o juiz terá de aplicá-las ao invés de seguir suas convicções
pessoais, sob o risco de ver sua decisão reformada no curso do processo.
Em suma, não cabe ao intérprete do direito simplesmente reproduzir a
compreensão que se tem dos fatos em outras formas de vida, na medida em que a linguagem
jurídica ao cumprir sua finalidade cria novo ambiente, com regras próprias que orientam o
agir dos sujeitos.
Mas, em que consiste seguir uma regra? Se não há uma
correspondência entre os textos do direito positivo e a intenção do legislador ou da lei que
impliquem a possibilidade de extrair sentido único, se estes variam conforme alterações no
contexto, como identificar quais seriam as regras para a construção de sentido?
1.3 As regras para construção de sentido nos jogos de linguagem
Há na ideia de jogo a existência de expectativas de comportamentos
que sejam intersubjetivamente aceitos como válidos. Seus participantes devem agir segundo
regras reconhecidas como as responsáveis por reger aquela atividade. Esse reconhecimento
está conectado a hábitos, instituições, que permitem não somente jogar o jogo, mas identificá-
lo. Wittgenstein44
nos explica que
Não é possível um único homem ter seguido uma regra uma única vez. Não é
possível uma única comunicação ter sido feita, uma única ordem ter sido dada ou
entendida uma única vez, etc. – Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma
ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (usos, instituições).
simplesmente, provável." A prova no procedimento administrativo tributário. (Revista Dialética de Direito
Tributário, n. 34, p. 109, jul. 1998), conforme citação feita por Fabiana Del Padre Tomé (op. cit., p. 130). 43
A título de exemplo, citamos trecho do acórdão proferido no Habeas Corpus 2008/0199759-8 pela 6ª Turma
do Superior Tribunal de Justiça, relatora Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG),
publicado em 16/02/2009, segundo o qual a denúncia oferecida seria inepta por atribuir crime contra a ordem
tributária a todos os membros da diretoria de uma empresa, de forma genérica, por mera presunção. Assim
está consignado na ementa: "PROCESSO PENAL – HABEAS CORPUS – CRIME TRIBUTÁRIO –
ATRIBUIÇÃO DO DELITO A TODOS OS MEMBROS DA DIRETORIA, POR MERA PRESUNÇÃO –
AUSÊNCIA DO VÍNCULO ENTRE UM DETERMINADO ATO E O RESULTADO CRIMINOSO.
DENÚNCIA GENÉRICA E CONSAGRADORA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA – ORDEM
CONCEDIDA PARA DECLARAR A INÉPCIA FORMAL DA DENÚNCIA E A CONSEQUENTE
NULIDADE DOS ATOS POSTERIORES". 44
Op. cit., 2009, § 199, p. 113.
23
Portanto, nos jogos de linguagem, equiparados pelo autor a formas de
vida específicas, que se caracterizam pela finalidade dos códigos linguísticos, há regras
intersubjetivamente válidas. Com efeito, para participar de um jogo de linguagem, como o
direito, que tem por função prescrever condutas, espera-se que os participantes utilizem-se de
determinados procedimentos e que cheguem a conclusões aceitas como resultado da aplicação
das regras da linguagem jurídica.
Wittgenstein torna o ato de seguir uma regra como algo objetivo, ao
diferençá-lo da crença que se segue a regra. Nas suas palavras45
: "Por isso, 'seguir uma regra'
é uma práxis. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E por isso não se pode seguir a
regra 'privatim'; porque, do contrário, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a
regra."
Dessa forma, pensar seguir uma regra não é segui-la. Infere-se, assim,
que a relativização da atividade interpretativa dentro de um jogo de linguagem, como o
direito, não é absoluta, sofre condicionamentos que estão sedimentados nas expectativas dos
demais participantes advindas do uso dos termos linguísticos. Norman Malcolm46
, ao estudar
o conceito de "seguir uma regra", presente em várias passagens de Investigações Filosóficas,
reafirma a necessidade de um critério intersubjetivamente válido para defini-lo, distinguindo-
o da perspectiva meramente subjetiva, como exposto por Wittgenstein no excerto acima
citado. Afirma o autor que,
Quando Wittgenstein diz que seguir uma regra é uma prática, penso que ele quer
significar que as ações de uma pessoa não podem estar de acordo com uma regra, ao
menos que elas estejam em conformidade com o modo comum de agir que é
demonstrado no comportamento de todos que tenham o mesmo treinamento. Isto
significa que o conceito de seguir uma regra implica no conceito de uma
comunidade de seguidores das mesmas regras.
Malcolm alude a um modo aproximadamente comum de agir entre
pessoas que possuam o mesmo treinamento, como uma diretriz para aferir-se o consenso e,
por decorrência, a regra. No direito, essa prática ou treinamento nos parece ser a técnica
compartilhada pelos membros da comunidade jurídica, que têm sua formação acadêmica
45
Op. cit., 2009, § 202, p. 114. 46
MALCOLM, Norman. Nothing is hidden: Wittgenstein's criticism of his early thought. Cambridge: Basil
Blackwell, 1989, p. 156. Traduzimos livremente do original em inglês: "When Wittgenstein says that
following a rule is a practice, I think he means that a person's actions cannot be in accord with a rule unless
they are in conformity with a common way of acting that is displayed in the behaviour of nearly everyone
who has had the same training. This means that the concept of following a rule implies the concept of a
community of rule-followers."
24
fundamentada na Ciência do Direito, que, muito embora constitua uma forma de vida distinta,
guarda intenso diálogo com o direito positivo, outro jogo de linguagem.
Observe-se que no direito posto, haveria uma aparente contradição
com a ideia de consenso como fator determinante para se compreender o que seria seguir uma
regra, pois o que prepondera é o dissenso, o litígio. Porém, a confusão é diluída, ao
ponderarmos que há consensos conformadores de ao menos dois blocos de interesses
distintos, que ocupam, nas lides judiciais, a posição de autor e réu e, nas administrativas, de
natureza tributária, a de contribuinte e ente competente para instituir e cobrar o tributo. Ao
entrarem em disputa, caberá ao Poder Judiciário, em última instância, decidir qual a
interpretação que irá regular a conduta. O consenso que prospera, portanto, somente é obtido
nas decisões que solucionam definitivamente os litígios. Se várias interpretações são tidas
como possíveis pelos participantes dos jogos de linguagem prevalecerá a regra que põe fim à
discussão, vale dizer, o trânsito em julgado de uma sentença ou acórdão não mais sujeitos à
ação rescisória47
.
Utilizamo-nos de um famoso caso para auxiliar na exposição48
do que
significa seguir uma regra. Trata-se do significado do termo "faturamento".
Ao exercer a competência atribuída pelo art. 195, I, da Constituição da
República, o legislador instituiu a contribuição para financiamento da seguridade social a
cargo da empresa, conhecida como COFINS, por intermédio da edição da Lei Complementar
nº 70. Sua base de cálculo seria o faturamento mensal, que recebeu definição estipulativa no
art. 2º da Lei Complementar, como sendo: "a receita bruta das vendas de mercadorias e de
serviços de qualquer natureza".
Com a edição da Lei 9.718/98, novo conceito de "faturamento" é
introduzido no sistema, por intermédio de seu art. 3º, com a finalidade de servir de base de
cálculo não somente da COFINS, mas também do PIS49
. A partir de então, o legislador
estipula que "faturamento" deve ser compreendido não mais como a receita das vendas de
mercadorias e serviços, mas como a totalidade das receitas auferidas, alargando sobremaneira
a base de cálculo do tributo, conforme a seguinte redação:
47
Conforme arts. 467 a 474 do Código de Processo Civil. 48
STF, RE 390.840, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 09/11/2005, DJ 15/08/2006. 49
Programa de Integração Social.
25
Art. 3º - O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta
da pessoa jurídica.
§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa
jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação
contábil adotada para as receitas.
Essa inovação no conceito de "faturamento" feriu regra do jogo de
linguagem do direito. A Constituição Federal reparte entre os entes tributantes, de forma
minudente, as materialidades possíveis dos tributos que se inserem em suas competências,
sem que, no entanto, estipule definição para os conceitos de direito privado de que se utiliza.
Por outro lado, conforme o disposto no art. 110 do CTN, o legislador e o intérprete do direito
tributário não estão autorizados a alterar os conceitos de direito privado utilizados na
Constituição Federal. Ao equiparar "faturamento" a "receita bruta", o legislador atribui um
significado considerado errado pela comunidade jurídica que compartilha das regras dessa
forma de vida, na medida em que, no direito privado, ambos não se equivalem.
Instado a manifestar-se, o Tribunal decidiu pela impossibilidade de
alargamento da base de cálculo do tributo, por contrariar o uso habitual do termo
"faturamento"50
. Não retomou a tese do sentido único presente em momento anterior ao giro
linguístico-hermenêutico. A decisão simplesmente demonstra que, no momento da decisão,
existiam sentidos possíveis no jogo de linguagem do direito posto51
.
A seguir, transcrevemos trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes,
que posicionou-se contra a inconstitucionalidade do dispositivo, dentre outros argumentos,
por considerar a inexistência de um único conceito legítimo de faturamento:
Ora, é evidente que não há uma definição constitucional de faturamento que
explicite todo o alcance deste vocábulo. O dispositivo constitucional em comento
utiliza o vocábulo faturamento sem qualquer complementação e adjetivação. E
tampouco se pode afirmar que o único conceito legítimo de faturamento seria aquele
adotado por Geraldo Ataliba [citado no recurso], por mais brilhante que seja52
.
A argumentação do Ministro está correta ao ressaltar a inexistência de
um sentido único possível ao termo "faturamento". Porém, falha ao não observar uma regra
do jogo de linguagem do direito posto manifestada pelo consenso em torno de significação
50
"TRIBUTÁRIO – INSTITUTOS – EXPRESSÕES E VOCÁBULOS – SENTIDO. A norma pedagógica do
artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o
conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou
implicitamente." 51
Esclarecemos que a Emenda Constitucional nº 20, publicada após a promulgação da Lei 9.718/98 alterou a
redação do artigo 195, I, da Constituição Federal, que passou a admitir a possibilidade de contribuição sobre
receita. 52
RE 390.840.
26
diversa ao termo, partilhado pela comunidade jurídica no contexto histórico-cultural da
enunciação do julgado. Nesse sentido, a lição de Tathiane dos Santos Piscitelli53
:
O equívoco do raciocínio do Ministro pode ser facilmente demonstrado: a adoção do
conceito doutrinário ou, como aludido neste trabalho, a significação consolidada na
comunidade jurídica, não representa afirmar que o único conceito legítimo de
faturamento seja aquele vinculado às entradas resultantes das vendas de mercadorias
ou prestações de serviços, mas sim asseverar que este significado reflete o uso da
linguagem e, assim, as regras do jogo às quais a comunidade jurídica está submetida.
É evidente que não se trata de significado imutável, mas, no atual momento
histórico, esse (e não qualquer outro) é o sentido aceitável da expressão.
Portanto, o caso concreto demonstrou uma significação atribuída ao
texto tida como inadmissível pela comunidade jurídica, vale dizer, incorreta e, em virtude
disso, recebeu a sanção da invalidade pelas autoridades competentes, que estabeleceram o
consenso que deve prevalecer sobre o tema.
1.4 A intenção na atividade interpretativa: análise crítica da mens legis e da mens
legislatoris
A intenção no segundo Wittgenstein não é critério para a significação
de um termo. O sentido é atribuído pelo uso em determinado contexto, consoante suas regras.
Há várias passagens em Investigações Filosóficas que confirmam a ideia. Destacamos duas
delas54, 55
:
A atitude espiritual não acompanha a palavra no mesmo sentido que um gesto a
acompanha.
[…]
E ter em mente é algo que se encontra na esfera da alma. Porém, é também algo
privado. É aquele algo intangível; comparável somente à própria consciência.
Essa é uma inovação proposta pelo segundo Wittgenstein. A filosofia
anterior, de modo geral, como vimos, por laborar a partir da verdade por correspondência,
tinha como principal objetivo da interpretação reproduzir uma essência existente na
realidade56
. Em decorrência desse ambiente, a Ciência do Direito compreendia a atividade
interpretativa, quando necessária em virtude de obscuridade do texto, como a busca da
53
PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Os limites à interpretação das normas tributárias. São Paulo: Quartier
Latin, 2009, p. 142. 54
Op. cit., 2009, § 673, p. 226. 55
Op. cit., 2009, § 358, p. 154. 56
Lembramos as palavras de Wittgenstein presentes na proposição 5.4711, do Tractatus Logico-philosophicus,
p. 225: "especificar a essência da proposição significa especificar a essência de toda descrição e, portanto,
a essência do mundo."
27
vontade da lei (mens legis) ou do legislador (mens legislatoris). Portanto, o
intérprete/aplicador seria o responsável por alcançar um sentido verdadeiro e pré-existente nos
enunciados jurídicos, extraído este das palavras que os compõem (mens legis), ou ainda,
contidos na vontade do editor da norma (mens legislatoris), tratando a atividade hermenêutica
de reproduzi-lo.
Nas palavras de Carlos Maximiliano57
, caberia ao intérprete:
Descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo
alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na
mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é determinar o sentido e o
alcance das expressões do direito.
Na esteira desse pensamento se posiciona um dos expoentes da
doutrina tradicional, Friedrich Karl von Savigny58
, que ressalta a necessidade de extração da
vontade do legislador na atividade exegética:
Toda lei deve expressar um pensamento de maneira tal que seja válido como norma.
Então, quem interpretar uma lei deve analisar o pensamento contido na lei, deve
pesquisar o conteúdo da lei. Primeiro é a interpretação: reconstrução do conteúdo da
lei. O intérprete deve se localizar no ponto de vista do legislador e, assim, produzir
artificialmente seu pensamento.
Haveria, portanto, segundo esse modo de compreender o direito e sua
interpretação, um sentido válido e verdadeiro, a priori presente no enunciado jurídico ou na
mente do legislador. Dessa maneira, interpretar corretamente o texto posto equivaleria a
desvendar essa vontade expressa na lei ou no espírito do legislador. Em nossa pesquisa,
pudemos notar que esse modo de compreender a interpretação dos textos jurídicos, ao menos
entre os tributaristas de maior renome, ainda é predominante, ou no mínimo bastante
recorrente.
Rubens Gomes de Sousa59
, por exemplo, ao tecer considerações sobre
os dispositivos que tratam da interpretação presentes no Código Tributário Nacional, parece
compartilhar das opiniões que admitem a necessidade de alcançar-se a vontade do legislador
para o desenvolvimento da atividade hermenêutica. Nas palavras do jurista:
57
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 1.
(destaques nossos). Observe-se, contudo, que o doutrinador não comunga da ideia de que o alcance da
vontade seria algo de todo possível. Nesse sentido, desaconselha o uso do método como única técnica
interpretativa, conforme se verifica na p. 24 de sua importante obra. 58
SAVIGNY. Friedrich Karl von. Metodologia Jurídica. Tradução de Heloísa Buratti. 1. ed. São Paulo: Rideel,
2005, p. 25. 59
SOUSA, Rubens Gomes de. Normas de interpretação no Código Tributário Nacional. In: RIBEIRO,
Bernardo de Moraes et al. Interpretação no direito tributário. São Paulo: Saraiva, EDUC, 1975, p. 365.
28
A dicotomia entre 'mens legis' e a 'mens legislatoris' repousa sobre a premissa de
que, uma vez editada a lei, ela adquire uma existência própria e autônoma,
obviamente não no plano normativo, mas no plano intelectual da interpretação,
diversa ou independente, não necessariamente oposta, mas não necessariamente
vinculada à intenção que teria tido seu autor. Confessamos, dentro de nossas
limitações, que nunca conseguimos entender como um texto, que por sua natureza é
uma formulação abstrata para aplicar-se a hipóteses quando estas se verifiquem em
concreto, possa adquirir uma vida própria e independente da orientação mental que
lhe deu origem. Afinal a lei (e por força dos nossos pecados talvez melhor do que
ninguém saibamos disto) é um produto de um esforço mental humano.
Amilcar de Araújo Falcão60
nos parece também compartilhar da visão
tradicional da dogmática jurídica sobre o tema da interpretação do direito tributário. Leciona o
renomado mestre:
Interpretar uma lei é declarar-lhe o sentido, o alcance. Não há, na interpretação,
qualquer atividade criadora ou inovadora. A atividade intelectual do exegeta é
meramente declaratória: êle declara o que se contém na lei […]
Roque Antônio Carrazza61
é taxativo ao atribuir à interpretação a
função de descobrir a mens legis. Em suas palavras:
[…] a interpretação é uma atividade cognoscitiva que visa a precisar o significado e
o alcance das normas jurídicas, possibilitando-lhes uma correta aplicação. Esta
tarefa, voltada, precipuamente, à descoberta da mens legis (da vontade do Estado
contida na norma jurídica), exige a constante invocação dos grandes princípios,
mormente em face das disposições incertas e das palavras equívocas ou polissêmicas
que costumam recamar nossos textos legislativos.
Vittorio Cassone62
, rechaçando a dicotomia entre mens legis e mens
legislatoris, considera que ambas as correntes de interpretação são válidas, devendo, contudo,
o intérprete dedicar-se com mais afinco à descoberta da vontade da lei, mas, sempre que
possível, também observar a vontade do legislador. Nas palavras do autor63
:
Em matéria de interpretação, quanto ao direito tributário cabe registrar, inicialmente,
a existência de duas correntes doutrinárias, a saber: uma resultante da dicotomia
entre mens legis (vontade da lei) e mens legislatoris (vontade do legislador). Kelsen,
em sua teoria, diz que, editada a lei, ganha ela autonomia e existência própria,
desvinculada da intenção do legislador, a que se dá o nome de interpretação
estritamente jurídica; outra para quem a interpretação deve levar em consideração
aspectos extrajurídicos, tais como a intenção do legislador averiguada pelo
desenvolvimento dos trabalhos legislativos e pela exposição de motivos; [...] penso
que o intérprete deve empenhar-se em descobrir com maior proficiência a mens legis
60
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1974, p. 48. 61
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 42. 62
CASSONE, Vittorio. Direito Tributário. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 151. 63
Ibid., p. 151.
29
(vontade da lei), mas, levando em consideração, sempre que cabível, a mens
legislatoris (vontade do legislador).
A análise de nossa jurisprudência demonstra o quão fundo fincou
raízes a compreensão da atividade interpretativa sob a óptica tradicionalista, que acabamos de
expor. Os aplicadores do direito encontram-se à procura da vontade do legislador ou da lei,
comungando, ainda que inconscientemente, da dogmática tradicional e da concepção de uma
linguagem instrumental, designativa.
Apenas a título ilustrativo citamos trecho de julgado recente64
, no qual
está consignado que: "O fato gerador, que é a prestação do serviço, há de ser limitado pela
vontade da lei. O intérprete, quer por meio da doutrina, quer por meio da jurisprudência, não
pode ampliar a natureza do fato gerador ou fazer a distinção, a seu respeito, não prevista em
lei."
Portanto, independentemente do acerto do julgamento, que afastou a
incidência de ICMS65
na prestação de serviços gráficos, verificamos que sua fundamentação
está numa suposta vontade da lei, tida como pressuposto, no exemplo dado, para uma decisão
correta. O significado de "serviço" seria extraído dessa vontade. Não se trata, sob essa
perspectiva, do uso do termo "serviço" em nosso contexto jurídico, segundo o qual, decorreria
uma compreensão acerca do tema, resultando em interpretações possíveis, admitidas pela
comunidade de intérpretes do direito.66
Consideramos que utilizar a extração da vontade do legislador, ou da
lei como critério da atividade interpretativa, ao invés do uso dos termos pela comunidade
jurídica, pode ter como consequência o estranhamento dessa decisão, a ponto de ser vista
como teratológica ou arbitrária. Afinal não há como saber ao certo qual seria a anseio do
legislador no momento da enunciação do texto de lei, ou ainda, se essa suposta e inalcançável
vontade poderia ser compatível com o contexto atual. As interpretações tidas como possíveis
são aquelas que respeitam as expectativas de significado existentes em determinada
comunidade jurídica, que se consolidam em virtude do uso da linguagem.
64
STJ, 1ª Turma, Resp. nº 83. 180, Rel. Min. José Delgado, D.J. 01/04/1996. 65
Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços. 66
Nesse sentido também o julgamento do Recurso Especial 2007/0138502-5, julgado em 31/08/2009, pela 2ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça, tendo como relator o Ministro Castro Meira, no qual se discutiu a não
retenção na fonte de CSLL, PIS e COFINS em virtude de prestação de serviços médicos sobre pagamento
efetuado por pessoa jurídica à outra pessoa jurídica prestadora de serviços médicos. Na Ementa está disposto
que: "1. Independentemente da forma de interpretação aplicada, ao intérprete não é dado alterar a 'mens
legis'."
30
Observamos em nossa pesquisa que, apesar de entendimento
preponderante, há muito a busca da vontade do legislador como critério para aplicação do
direito é posta sob suspeita pela Doutrina, que o rebate como único método de interpretação,
aceitando-o, porém, como um dentre os possíveis. Para Carlos Maximilano67
:
Reduzir a interpretação à procura do intento do legislador é, na verdade, confundir o
todo com a parte; seria útil, embora nem sempre realizável, aquela descoberta;
constitui um dos elementos da Hermenêutica; mas, não o único; nem sequer o
principal e o mais profícuo; existem outros, e de maior valia. Serve de base, como
adiante há de se mostrar, ao processo histórico, de menor eficiência que o
sistemático e o teleológico.
Com efeito, não é possível concordar na integralidade com a posição
compartilhada por doutrinadores do presente e do passado, que atribuem à atividade
interpretativa a busca da vontade da lei ou do legislador, pois o dado intrassubjetivo da
enunciação somente deixa marcas (novos textos) que necessitariam de interpretação. Como se
percebe, tais marcas, como a exposição de motivos, para a atividade hermenêutica, sob certa
perspectiva em nada diferem do corpo da lei. São textos e seu sentido precisa ser atribuído
pelo exegeta.
O grande vulto da hermenêutica nacional, sempre citado pelos
estudiosos quando a interpretação é o assunto, nos deixou consignada sua objeção quanto à
possibilidade de alcançar-se a vontade do legislador, no seguinte trecho de sua obra68
:
Eis aí a ficção; presume-se o impossível; que o legislador de decênios atrás previsse
as grandes transformações até hoje operadas, e deixasse, no texto elástico, a
possibilidade de abrigar no futuro direitos periclitantes, oriundos de condições
novíssimas. A sua visão profética atingiu não só os problemas jurídicos, mas o
estado de coisas que os fez surgir; de sorte que, educado em velha escola filosófica
ou econômica, ele atravessaria a História, esposando hoje os postulados de uma
corrente intelectual, amanhã os de outra, e assim sucessivamente, sempre renovado,
variando sempre, como um fenomenal Proteu.
Porém, como acima explicitado, conclui pela possibilidade da
utilização da vontade do legislador, desde que atualizada historicamente, com o que
discordamos, pelos motivos anteriormente expressos, mormente pela impossibilidade de se
alcançar a vontade do legislador ou da lei, já que a primeira se esvai na intersubjetividade e a
segunda atribui vontade a algo inanimado.
67
Op. cit., p. 24. 68
Op. cit., p. 21.
31
De acordo com os fundamentos presentes em Investigações
Filosóficas, inexistiria uma verdade contida no texto da lei a ser revelada pela exegese, já que
esta seria produto de uma construção da comunidade jurídica envolta na atividade
interpretativa e aplicadora do direito. A atividade hermenêutica69
, portanto, seria construtiva e
não reconstrutiva. Vale dizer: não caberia ao intérprete reproduzir uma vontade pré-existente
no texto, desvendando o verdadeiro sentido e alcance da norma. Igualmente, não seria
possível alcançar e esclarecer a vontade do legislador no ato da edição da norma, ou ainda,
atualizá-la, desvelando-se o que o legislador quereria ao analisar o caso por ele não previsto,
ao modo do pensamento histórico-evolutivo. A vontade do legislador seria simplesmente
intrassubjetiva, inalcançável, e o texto de lei, apenas o ponto de partida para a atividade de
construção de sentido.
1.4.1 A inaplicabilidade do brocardo in claris cessat interpretatio
Parece-nos possível concluir que, se não há como o sujeito extrair uma
essência do direito que corresponda à vontade da lei ou do legislador, a atividade
interpretativa estaria sempre presente, como a única maneira possível de compreendê-lo e, por
decorrência, aplicá-lo. Não haveria uma clareza suficiente em qualquer de seus dispositivos
que dispensasse a exegese.
Contudo, para parte da doutrina, a atividade interpretativa nem sempre
se faz necessária para a concretização do direito. Em linhas gerais, desconsidera-se a
construção de sentido que ocorre para sua compreensão e aplicação, premiando-se uma
verdade absoluta, plasmada no texto, cabendo ao intérprete apenas repeti-la. A interpretação
somente se daria em cenário obscuro. Admite-se seu uso apenas na eventualidade de dúvida.
As palavras de Paula Batista70
bem ilustram esse pensamento:
[…] interpretação é a exposição do verdadeiro sentido de uma lei obscura por
defeitos de sua redação, ou duvidosa, com relação aos fatos ocorrentes, ou
silenciosa. Por conseguinte, não tem lugar sempre que a lei, em relação aos fatos
sujeitos ao seu domínio, é clara e precisa. 'Interpretatio cessat in claris'.
Após a mudança de paradigma da filosofia, fomentado pelo giro
linguístico-hermenêutico, a posição de Paula Batista seria de difícil sustentação científica.
69
O termo "hermenêutica" é utilizado nesse contexto como sinônimo de interpretação. 70
Citado por Carlos Maximiliano (2008, p. 29). (destaques nossos).
32
Primeiramente, o "claro" e o "escuro" dependem do sistema de referência do intérprete71
.
Dessa maneira, o que pode ser absolutamente compreensível para alguns se apresenta, ao
mesmo tempo, como um problema para diversas pessoas.
Tais considerações foram efetuadas também por Rubens Gomes de
Sousa, que, apesar de buscar com a exegese a vontade do legislador, reconhece a inexistência
de clareza suficiente capaz de suprimir a atividade interpretativa. Para o autor, a interpretação,
ao contrário do que afirma Paula Batista, é elemento integrante da metodologia aplicativa do
direito. Em suas palavras72
:
Ora, em primeiro lugar é preciso saber o que é claro: e já teríamos ali um elemento
subjetivo, pois aquilo que é claro para um pode ser obscuro para outro e vice-versa
[...] Em contrário à tese de que a interpretação é um mecanismo ou um sistema
destinado a solver dúvidas, pensamos que é pacífico o entendimento atual de que a
interpretação é um elemento integrante da metodologia aplicativa do direito. Dessa
forma, a atividade interpretativa do direito posto, quando efetuada pelo sujeito
competente visa sua aplicação e não o esclarecimento de dúvidas.
Além disso, justamente por inexistir uma essência na linguagem, todas
as palavras padecem de ambiguidade e vaguidade73
e seu significado somente pode ser
definido pelo uso da linguagem.
Se admitidas tais considerações, seremos forçados a negar a existência
de zonas de clareza, nas quais a aplicação da lei se faria por uma espécie de dedução, isto é,
determinado texto de direito positivo, redigido de forma impecável, iluminaria o campo sobre
o qual se daria sua incidência, ao passo que outro, contendo obscuridades, implicaria a
presença de um juízo mais acurado, verdadeira interpretação, e somente após esse tratamento
seria possível atribuir-lhe sentido. Em nosso entendimento, todo e qualquer texto ganha
sentido por intermédio do sujeito, que o utiliza em determinado contexto ou jogo de
linguagem, visando a uma finalidade.
No direito tributário, como em qualquer outro campo jurídico, a
inexistência de clareza dos enunciados prescritivos fica patente nas infindáveis discussões
71
Sistema de referência pode ser compreendido como as interpretações feitas por nossos pares dentro de
determinado jogo de linguagem e sobre as quais reina o consenso de que estão corretas. 72
Op. cit., p. 363-364. 73
A vaguidade relaciona-se à imprecisão de uma palavra em conotar dada situação. Como exemplo clássico,
temos a calvície, pois não se sabe ao certo quantos fios de cabelo são necessários para que se reconheça
alguém como calvo. Ambiguidade relaciona-se à dificuldade de denotação de um conceito. É difícil de
precisar se determinado conceito pertence ou não a uma dada classe. A palavra "casa" pode denotar abrigo,
local onde se pratica determinada atividade (Casa Legislativa, por exemplo), orifício do vestuário, dentre
outros significados possíveis.
33
ocorridas em nossos Tribunais, cujo ponto de partida são textos, que se poderia afirmar,
segundo os que comungam a necessidade de interpretação somente na eventualidade de
obscuridade, como razoavelmente bem escritos e que, tomados em sua literalidade, seriam
isentos de dúvidas.
Elegemos como exemplo a imunidade conferida pelo artigo 150, VI,
"d" da Constituição da República. Na sua literalidade está disposto ser vedado aos entes
políticos instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua
impressão. Aplicando-se o brocardo in claris cessat interpretatio, dispensar-se-ia a atividade
do intérprete, afinal todas as palavras são conhecidas e, da sua arrumação na frase, nada de
obscuro estaria a demandar interpretação. Bastaria que o aplicador do direito fizesse a
subsunção da norma a fatos também supostamente isentos de qualquer questionamento ou
dúvida.
Todavia, mesmo num dispositivo aparentemente tão claro, não há
concordância, do ponto de vista pragmático, quanto a seu sentido, a ponto de ser submetido
constantemente ao crivo do Poder Judiciário. Temos em nossos Tribunais inúmeros
questionamentos que envolvem o vocábulo "livro" para fins de imunidade. Há dúvidas sobre
o alcance do conceito que abrangem o próprio produto final e ainda seus insumos. Vejamos,
por exemplo, julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, nos quais se reconhece
imunidade dos álbuns de figurinhas, do papel e dos cromos que os ilustram, compreendendo-o
como livros:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. ART. 150, VI, 'D' DA CF/88.
'ÁLBUM DE FIGURINHAS'. ADMISSIBILIDADE. 1. A imunidade sobre livros,
jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar
embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e
de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e
à educação. 2. O constituinte, ao instituir a benesse, não fez ressalvas quanto ao
valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade
cultural de uma publicação. 3. Não cabe ao aplicador da norma constitucional em
tela afastar deste benefício fiscal instituído para proteger o direito tão importante ao
exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qualidade
cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-
juvenil. Recurso extraordinário conhecido e provido74
.
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA: C.F.,
art. 150, VI, 'd'. I. – Papel destinado à fabricação de álbuns a serem completados por
cromos adesivos considerados tecnicamente ilustrações para crianças:
admissibilidade da imunidade tributária do art. 150, VI, 'd', CF. II. – Precedentes do
74
Recurso Extraordinário nº 221.239/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, v.u. DJ 06/08/2004, p. 0061.
34
STF: RE 221.239/SP. Ministra Ellen Gracie, DJ de 06.08.2004. III. – R.E.
improvido. Agravo não provido.75
Citamos, ainda, trecho de voto do Ministro Maurício Corrêa, que nos
traz o seguinte conceito: "o livro, como objeto de imunidade tributária, não é apenas o
produto acabado, mas o conjunto de serviços que o realiza, desde a redação até a revisão da
obra sem restrição dos valores que o formam e que a Constituição protege."76
Portanto, uma palavra como "livro", que poderia ser considerada clara
para os falantes da língua portuguesa, depende de seu emprego em determinado "jogo de
linguagem", para que o sentido lhe seja atribuído. No interior do direito posto, assume
significações múltiplas, como vimos nos exemplos transcritos, a ponto de um simples álbum
de figurinhas a ele ser equiparado. Para o direito, quando o assunto é imunidade, sua
significação contempla não apenas o produto final, o objeto encontrado nas estantes das
bibliotecas, mas denota variadas formas de expressão cuja finalidade é contribuir para o
acesso ao dado informativo e cultural por parte do público leitor77
.
Com o exemplo dado, reforça-se a tese defendida pelo giro
linguístico-hermenêutico, segundo a qual inexistiria uma essência reproduzida numa
linguagem precisa, que permitiria tamanha clareza a ponto de dispensar a interpretação.
Vaguidade e ambiguidade estão potencialmente em todas as palavras e seu sentido somente
pode ser esclarecido mediante o emprego em determinado contexto. Para Wittgenstein78
:
A denominação não é ainda nenhum lance no jogo de linguagem – tão pouco quanto
a colocação de uma peça de xadrez é um lance no jogo de xadrez. Pode-se dizer:
com a denominação de uma coisa não se fez nada ainda. Ela não tem nome, exceto
no jogo.
O significado de um termo depende de seu uso em específico jogo de
linguagem. E mesmo em seu interior, vários sentidos podem ser admitidos.
Talvez a clareza a que se refere parte da doutrina tradicional, apoiada
no brocardo citado, possa ser explicada por outra perspectiva, nos remetendo à ideia de
75
AgR nº 339.124/RJ, Rel. Min. Carlos Veloso. 76
RE (AgReg) nº 225.995/RS. 77
Outro exemplo que confirma a assertiva é a imunidade concedida às apostilas, conforme RE 183403/SP,
julgado pela 2ª Turma do STF , publicado no DJ em 04/05/2001, tendo como relator o Min. Marco Aurélio:
"IMUNIDADE – IMPOSTOS – LIVROS, JORNAIS, PERIÓDICOS E PAPEL DESTINADO À
IMPRESSÃO – APOSTILAS. O preceito da alínea 'd' do inciso VI do artigo 150 da Carta da República
alcança as chamadas apostilas, veículo de transmissão de cultura simplificado." 78
Op. cit., § 49, p. 42.
35
significado de base, como a existência de um forte consenso sobre determinado conceito.
Acreditamos ser esse o sentido das lições de Herbert L. A. Hart79
:
Os casos simples, em que os termos gerais parecem não necessitar de interpretação e
em que o reconhecimento dos casos de aplicação parece não ser problemático ou ser
'automático' são apenas casos familiares que estão constantemente a surgir em
contextos similares, em que há acordo geral nas decisões quanto à
aplicabilidade dos termos classificatórios.
Contudo, para que essa coesão de opiniões seja formada e aplicada
ordinariamente aos fatos, não se dispensa a atividade interpretativa. Não nos parece que, pela
via dedutiva, o intérprete realize mera subsunção entre fato e norma na chamada zona de
clareza e verdadeira decisão nos casos duvidosos80
, que se encontrariam, em oposição, numa
suposta zona de penumbra. Pelo contrário, reiteramos que a suposta "clareza" depende
umbilicalmente das interpretações reiteradas produzidas pelos utentes de determinado jogo de
linguagem, que decidem, em cada caso, se determinado fato se encontra amparado em norma
geral e abstrata.
Também do ponto de vista subjetivo, para que o intérprete considere
um texto claro, antes de tudo, terá que lhe atribuir sentido. O enunciado é apenas o ponto de
partida para sua atividade construtiva, capaz de atribuir significação ao disposto em lei.
Aplicando as premissas do construtivismo lógico-semântico, leciona Fabiana Del Padre
Tomé81
:
O adágio segundo o qual, 'na clareza da lei cessa a interpretação', não se sustenta.
Até mesmo para dizer que uma lei é clara, demanda-se interpretação, a qual pretende
dar, ingenuamente, aquele sentido unívoco. E isso ocorre exatamente porque quando
o legislador elabora o texto, tomado como suporte físico, não constitui a norma
jurídica, mas apenas um ponto de partida para a sua construção.
Dessa forma, o brocardo in claris cessat interpretatio pode ser
considerado, após o giro linguístico-hermenêutico, um erro de apreciação do fenômeno
jurídico e não é adotado por nesse trabalho como uma técnica hermenêutica. Contudo, ainda é
bastante utilizado em nossos tribunais como forma de justificar decisões82
, mormente
79
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 139. 80
Essa nos parece a posição, por exemplo, de Genaro R. Carrió, em seu Notas sobre derecho y lenguaje. 4. ed.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, p. 49 et seq. 81
TOMÉ, Fabiana Del Padre. Vilém Flusser e o Constructivismo Lógico-semântico. In: HARET, Florence;
CARNEIRO, Jerson (Orgs.). Vilém Flusser e Juristas. São Paulo: Noeses, 2009, p. 340. 82
A título de exemplo, citamos trecho de acórdão nº 00788834, proferido no Agravo de Instrumento nº
394.307-5, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Ministro Corrêa Vianna, publicado em 15/03/2005,
ao confirmar a legitimidade da recusa da Fazenda Estadual em aceitar nomeação à penhora de créditos
decorrentes de precatórios, com base no art. 11 da Lei 6.830/80, apesar do disposto no art. 78 do ADCT, com
36
interpretações que cingem-se à literalidade do texto, desconsiderando a visão sistêmica do
direito.
Portanto, os fundamentos filosóficos adotados nessa pesquisa são os
seguintes:
(i) A realidade é constituída pela linguagem;
(ii) Inexiste uma finalidade única da linguagem, dentre elas há a função que prescreve
comportamentos intersubjetivos e que constitui o jogo de linguagem do direito;
(iii) A atividade interpretativa não se constitui como a busca pela correspondência entre
linguagem e realidade, trata-se de atribuição de sentido dependente do uso de seus
termos dentro de determinado jogo de linguagem;
(iv) O "jogo de linguagem" se pratica mediante regras; isso significa que a interpretação é
por elas condicionada;
(v) Seguir uma regra é diferente de acreditar seguir uma regra e depende do consenso
existente sobre o assunto em determinada comunidade de usuários de uma linguagem;
(vi) A comunidade de usuários da linguagem do direito posto, que confere consenso sobre
usos possíveis a seus termos é formada por todos que possuem competência legal para
interpretá-lo e aplicá-lo e que possuam treinamento técnico para fazê-lo;
(vii) A vontade não se constitui critério aferível que dirija a atividade do intérprete. Essa
constatação presente em Investigações Filosóficas rechaça a teoria tradicional que
compreende a exegese como extração da vontade da lei ou do legislador existente
previamente nos dispositivos do direito;
(viii) Para atribuir-se sentido ao direito, a interpretação sempre é necessária, o que afasta a
máxima de que na clareza da lei dispensa-se a interpretação.
A partir dos fundamentos filosóficos declinados, passamos a abordar a
interpretação do direito tributário como sistema de linguagem.
redação dada pela E.C. nº 30/00: "Com o respeito de sempre aos que entendem que essa ordem apresenta
caráter relativo, o que se verifica até no Superior Tribunal, não há como esquecer de antigo e sempre
respeitado princípio: 'in claris cessat interpretatio'."
37
CAPÍTULO II – A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO COMO
LINGUAGEM PRESCRITIVA E OS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES
2.1 O conceito de interpretação e de pressupostos condicionantes
A perspectiva filosófica aberta pelo giro linguístico-hermenêutico
repercutiu nas Ciências Jurídicas. O próprio direito posto é visto por doutrinadores como um
fenômeno de linguagem. Gregório Robles83
, por exemplo, afirma ser o direito um texto e,
como tal, deve ser analisado:
É suscetível das análises típicas de qualquer outro texto. Por essa razão, a teoria do
direito pode ser caracterizada como uma teoria hermenêutico-analítica, ou, para
empregar uma palavra mais simples, comunicacional. Pragmática, semântica e
sintática são as três operações possíveis do texto jurídico.
A influência do giro linguístico-hermenêutico sobressaiu-se no direito
tributário brasileiro, com as teorias desenvolvidas por Paulo de Barros Carvalho e sua escola,
que se identifica por conceber, como método que orienta sua produção científica84
, o
construtivismo lógico-semântico – também denominado hermenêutico-analítico.
Essa maneira de pensar nega à atividade interpretativa a simples
função de representar uma suposta vontade da lei ou do legislador extraída dos textos de
direito positivo ou, simplesmente, enunciados prescritivos. Reconhece que seu papel é
construtivo, na medida em que o sujeito valora os textos legislativos e os fatos, atribuindo-
lhes sentido85
, isto é, formulando normas jurídicas. A exegese do direito estará sempre
presente como um processo que culmina em sua aplicação86
.
O direito é concebido como linguagem técnica, que se utiliza do
discurso ordinário e de termos científicos, para cumprir sua função de prescrever condutas
83
ROBLES, Gregório. O direito como texto. Quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de
Roberto Barbosa Alves. Barueri: Manole, 2005, p. 2 e 3. 84
Não estamos afirmando que o construtivismo lógico semântico seja a única vertente no direito brasileiro que
reflete a perspectiva filosófica do giro linguístico-hermenêutico. A título de exemplo, podemos citar autores
como Eros Roberto Grau, Heleno Taveiro Tôrres, Lênio Luiz Streck, Luiz Alberto Warat, João Maurício
Adeodato e Torquato da Silva Castro Junior. 85
Verifica-se, do conceito de interpretação presente no construtivismo lógico-semântico, que essa teoria se
afasta da ideia de verdade como a correspondência do enunciado com a realidade. A verdade é vista como
compatibilidade entre enunciados. 86
Enfatizamos que o termo "interpretação", como toda e qualquer palavra, é vago e ambíguo. Identificamos ao
menos dois sentidos possíveis: (i) como processo que atribui significação aos textos; e (ii) como produto que
se obtém ao final desse processo.
38
intersubjetivas. Em termos analíticos, a construção de sentido dos enunciados prescritivos,
com o auxílio da Semiótica87
, pode ser decomposta em quatro planos possíveis de se
percorrer88
e que justificam a ideia de equiparar o ato de interpretar a "atribuir valores aos
símbolos, isto é, adjudicar-lhes significações e, por meio dessas, referências a objetos."89
Os planos que decompõem o percurso gerador de sentido são
designados pelo construtivismo lógico-semântico como S1, S2, S3 e S4. O S1 é o da
literalidade textual ou suporte físico das significações jurídicas e equivale ao texto em sentido
estrito, vale dizer, aos enunciados que conformam o direito posto. É a partir desse dado
objetivo que o intérprete começa a construir o sentido normativo. No S2, observa-se a
atribuição de conteúdo aos enunciados prescritivos. O sujeito confere significação às palavras,
compondo frases que em momento posterior serão articuladas como juízos hipotéticos. Nesse
patamar o intérprete não se restringe ao texto correspondente ao S1, podendo fazer incursões
por outros enunciados do sistema e, ainda, dialogar com teorias científicas do direito e de
outras disciplinas. Momento seguinte, já no S3, o intérprete organiza os conteúdos que
atribuiu anteriormente em um juízo hipotético-normativo, composto de proposição
antecedente que implica, necessariamente, uma outra, denominada de consequente. Na
primeira, teremos um comportamento certificado em linguagem jurídica e, na segunda, a
determinação de um dever que vincula sujeitos de direito. Por fim, o intérprete compatibiliza
esse juízo com o sistema normativo, averiguando as relações de subordinação e coordenação.
É nesse patamar, S4, que o percurso se completa e a norma jurídica está pronta para sua
aplicação.
Esse processo seletivo de enunciados e atribuição de sentido com vistas à
construção normativa não pode ser compreendido somente do ponto de vista lógico90
. Se assim o
fosse, toda e qualquer interpretação estaria correta. O legislador ordinário que equiparou o
conceito de faturamento ao de receita bruta, conforme julgado anteriormente analisado, não
poderia sofrer qualquer censura e inexistiria fundamento para questionar seu erro.
87
Utiliza-se o termo "Semiótica" na acepção de "ciência dos signos que estuda os fenômenos de
representação", conforme definido por Clarice von Oertzen Araújo (Fato e Evento Tributário – uma análise
semiótica. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (Coord.). Curso de Especialização de Direito Tributário:
estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho: Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 335).
Observamos que "signo" é a unidade mínima de representação e relacionam objetos a significados. Aplicada
ao direito, permite-nos relacionar significações a condutas. 88
Conforme Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário. Fundamentos jurídicos da incidência. 5. ed. rev. e
ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 67-84). 89
Ibid., p. 66. 90
Ressaltamos que a semiótica é uma lógica dos signos, conforme Luís Alberto Warat (O direito e sua
linguagem. 2. versão. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995, p. 13).
39
O intérprete, ao movimentar os signos jurídicos, atribui-lhes sentido e
os valora, escolhendo um dentre os significados possíveis. Por isso, a liberdade de criação é
relativa, conforme leciona Hans Kelsen91
:
Assim como da Constituição, através da interpretação, não podemos extrair as
únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as
únicas sentenças corretas. De certo que existe uma diferença entre esses dois casos,
mas é uma diferença somente quantitativa, não qualitativa, e constitui apenas em que
a vinculação do legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais
reduzida do que a vinculação do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais
livre na criação do Direito do que este. Mas também este último é um criador do
direito e também ele é, nesta função, relativamente livre. Justamente por isso, a
obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que
nesse processo seja preenchido a moldura da norma geral, uma função voluntária.
O fator condicionante dessa relatividade e que justifica a correção ou
incorreção de sentido normativo é o emprego da linguagem efetuado pela comunidade
jurídica, que forma o sistema de referência do intérprete92
. Existe, por óbvio, a subjetividade
conformada pela experiência individual. Porém, o critério de correção é o conjunto de regras
de uso da linguagem no direito posto, de acordo como concebidas por seus usuários que, de
alguma forma, dominam sua técnica.
O uso nesse processo não abstrai o tempo e o espaço, tanto que os
sentidos tendem a se modificar. Tathiane dos Santos Piscitelli, a partir de estudos efetuados
sobre a Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer93
, conclui que
A compreensão dos textos jurídicos não se encontra apartada da história. O
intérprete do direito positivo, ainda que desconheça tal dado, está, inegavelmente,
imerso na história e figura-se como um ser histórico, que interpreta textos de direito
positivo de acordo com os valores vigentes na sociedade em dado momento
histórico.
A ideia de "horizonte histórico" e "cultura" complementam-se. A
palavra "cultura" é considerada como uma das mais complexas94
de se definir. Sua raiz latina
é colere, que pode significar cultivar, adorar, habitar e proteger, entre outras coisas. A ideia
básica é que o vocábulo designa o oposto de "natureza", implicando em práticas que a
91
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 393. (destaque nosso). 92
Lembramo-nos das lições de Leonidas Hegenberg: "Ao nascer, somos 'atirados' em um mundo. Diante de nós
uma 'circunstância' cheia de coisas, a que, aos poucos, nos ajustamos. Para que o ajuste não seja apenas
'físico', mas também intelectual, contamos com as interpretações que dela fizeram aqueles que nos
antecederam." (HEGENBERG, Leonidas. Saber de e saber que: alicerces da racionalidade. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2001, p. 19). 93
Op. cit., p. 65. 94
EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Tradução de Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora UNESP,
2005, p. 9. Segundo o autor, é a terceira palavra mais difícil de definir na língua inglesa.
40
alteram. Compreendida como toda transformação realizada pelo homem em seu entorno, com
vistas a implantar valores95
, dá-se num processo histórico. A assertiva pode ser confirmada
nas palavras de Miguel Reale96
, que a compreende como "conjunto de bens que a espécie
humana vem historicamente acumulando para a realização de seus fins específicos."
De forma semelhante, ao destacá-la como processo histórico, Maria
Luísa Portocarrero da Silva97
afirma ser a cultura "A sucessão histórico-efeitual das
configurações e dos testemunhos que o homem vai dando da sua dignidade, ao longo da
história".
Por esse prisma, o direito é um bem produzido pela cultura porque sua
finalidade é influir no meio social, ao prescrever condutas destinadas a realizar valores que
variam de acordo com o contexto histórico-cultural. Constitui-se como forma particular de
cultura, a cultura jurídica, que se produz com o uso de linguagem própria e regras
específicas, pois, com base em Wittgenstein, lembramos que o direito é uma forma de vida ou
"jogo de linguagem".
Esse aspecto integra o conceito de interpretação adotado nesse
trabalho, ao inserir o ato de adjudicar sentido aos símbolos com a finalidade de prescrever
condutas, no contexto histórico-cultural em que se desenvolve a atividade interpretativa do
direito98
.
Observe-se que não é proposto, em momento algum, o desprezo ao
texto em sentido estrito, uma espécie de decisionismo, segundo o qual o intérprete tudo pode.
Os enunciados são um objeto cultural utilizado para comunicar a prescrição jurídica. O
motivo de o constituinte escolher, por exemplo, a palavra "serviço", ao invés de
"comunicação", para delimitar a competência tributária concedida aos municípios99
é porque
esse símbolo refere-se, naquele momento histórico, a determinadas condutas. Por essa razão,
95
Conforme noção assente no construtivismo lógico-semântico, a exemplo do exposto por Paulo de Barros
Carvalho em Direito Tributário, Linguagem e Método (2008, p. 174-176). 96
REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 08. 97
SILVA, Maria Luísa Portocarrero. H.-G. Gadamer: a Europa e o destino das ciências humanas. In: REIMÃO,
Cássio (Coord.). Colóquio. H.-G. Gadamer: experiência, linguagem e interpretação. Lisboa: Universidade
Católica Editora, 2003, p. 25. 98
Parece-nos que esse conceito guarda pertinência com o método adotado para a pesquisa, na medida em que
Paulo de Barros Carvalho, ao expor sobre a interpretação do direito, afirma que adota a palavra
"hermenêutica" não como forma de estudar técnicas de interpretação, ao modo de Emilio Betti, mas na
acepção mais ampla da "hermenêutica filosófica" de Heidegger e Gadamer. (CARVALHO, 2010, p. 128). 99
Constituição Federal, art. 156, III.
41
o intérprete parte desse texto em busca de comportamentos que o concretizem. Como bem
explica Lourival Vilanova100
:
Os símbolos101
são entidades objetivadas, são fatos-do-mundo, identificáveis,
verificáveis intersubjetivamente: representam eles as pontes de comunicação entre
os sujeitos concretos, os pontos de encontro entre os participantes da comunidade,
tal que não se concebe a comunidade sem o discurso (com seus símbolos e
significações). [...] Os participantes da comunidade do discurso entendem porque
usam símbolos que se repetem, como entidades identificáveis, aos quais vão
uniformemente unidas as mesmas significações, que apontam como flechas
identificadoras para os mesmos objetos ou situações objetivas.
Segundo João Maurício Adeodato102
, os símbolos que compõem o
texto oferecem uma direção ao intérprete: "[..] O texto limita a concretização e não permite
decidir em qualquer direção, como querem as diversas formas de decisionismo."
Conceber o direito como fenômeno de linguagem, como exposto,
alterou substancialmente o entendimento sobre a atividade hermenêutica, que é vista como
atribuição de sentido aos enunciados prescritivos. Apesar da relatividade que decorre dessa
óptica, há pressupostos condicionantes da interpretação, que permitem considerar-se correta
determinada decisão. São eles: (i) o uso da linguagem feita pela comunidade jurídica formada
pelos sujeitos que participam na sua positivação e que possuem treinamento técnico com base
na Ciência do Direito; e (ii) o contexto histórico-cultural vigente no jogo de linguagem do
direito, no momento da enunciação normativa.
Com o intuito de melhor compreender a interpretação e seus
pressupostos condicionantes, problema que motiva nossos esforços, faz-se necessário analisar
um pouco mais detalhadamente as ideias que auxiliaram na construção do conceito que
acabou de ser exposto.
100
VILANOVA, Lourival. Teorias das formas sintáticas (anotações á margem da Teoria de Husserl). In:
______. Escritos jurídicos e filosóficos. Vol. 2. São Paulo: Axis Mundi/IBET, 2003, p. 152 e 153. (destaque
do autor). 101
Os "símbolos" são espécie de signo que representam algo, no caso do direito comportamentos. Os símbolos
são associados aos objetos pela convenção. "Um símbolo (sempre na terminologia de Peirce) não possui
outra motivação que não seja histórica ou convencional: em suma, é opaco ou arbitrário." (VOLLI, Ugo.
Manual de Semiótica. Tradução de Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Loyola, 2000, p. 44). 102
ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. In: BARRETO, Aires
Fernandino et al. Congresso do IBET, III. Interpretação e Estado de Direito. São Paulo: Noeses, 2006, p. 331.
42
2.2 A autorreferencialidade da linguagem jurídica
O direito posto é aqui estudado e compreendido como um jogo de
linguagem específico que tem por finalidade prescrever condutas intersubjetivas. Em outras
palavras, equivale a dizer que o direito é um sistema nomoempírico prescritivo, composto,
portanto, por proposições com referência empírica, que entram em relação, formando um todo
unitário cuja finalidade é prescrever condutas103
. A sinonímia entre "jogo de linguagem" e
"sistema" se apoia nos seguintes elementos: (i) ambos são compostos por proposições
voltadas para uma finalidade; e (ii) essas proposições se relacionam de acordo com regras que
não são somente de ordem sintática, na medida em que o próprio sentido de "seguir uma
regra" está vinculado a um uso, o que implica os aspectos semântico e pragmático da
linguagem jurídica.104
A digressão traz duas consequências muito importantes para a
interpretação do direito. A primeira delas é que se trata de sistema autorreferenciado105
, cuja
linguagem não se confunde ou se identifica necessariamente com a significação adotada por
outros jogos ou sistemas.
Kelsen fundamenta a autorreferencialidade na separação que faz entre
o "ser" e o "dever-ser", conforme exposto em Teoria Pura do Direito:
Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do
qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo
deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e que da circunstância de algo
ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo
deve ser se não segue que algo seja.106
Na mesma linha de raciocínio, Paulo de Barros Carvalho107
destaca a
autonomia do discurso jurídico prescritivo com relação às demais linguagens:
O discurso normativo, para reger os comportamentos entre pessoas, não pode ater-
se, pura e simplesmente, à linguagem mediante a qual aquelas condutas se efetivam
no meio social, sob pena de ficar tolhido pelos mesmos fatores que o condicionam.
Por isso mesmo, permite-se-lhe tanto confirmar proposições factuais como alterá-las
103
Conforme Marcelo Neves (Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 2-8). 104
Paulo de Barros Carvalho critica a visão que reconhece o sistema como formado exclusivamente por
linguagem lógica (op. cit., 2010, p. 170). 105
Observamos que a autorreferencialidade do sistema jurídico não é o mesmo que seu isolamento. Partimos da
concepção de que se trata de um sistema que dialoga com todos os demais, porém sua linguagem se reproduz
conforme regras próprias. 106
Op. cit., 2006, p. 6. (destaques nossos). 107
Op. cit., 2008, p. 163.
43
pela infirmação, total ou parcialmente, ao talante do legislador, com o que se
constrói o plano da facticidade jurídica.
Portanto, o direito é uma maneira específica de conviver, de
comunicar-se, valendo-se de linguagem apropriada, com características ímpares que a
distinguem de outros usos. Ao intérprete não é aconselhável perder essa perspectiva ou poderá
produzir sentido dissociado dessa específica forma de vida, como reconhecido no julgado que
nos auxiliará na exposição108
e que passamos a analisar.
No caso concreto, esclarecimentos prestados pelo Ministério do Meio
Ambiente afirmavam inexistir pesca de salmão do Atlântico e do Pacífico no mar territorial
brasileiro, e, portanto, não haveria similar nacional. Fundamentada nesse dado científico, a
Fazenda Pública propugnava, com base no inciso II, do artigo 111 do Código Tributário
Nacional, a exigibilidade do ICMS sobre a importação do referido pescado, por entender não
incidir a norma isentiva acordada entre os países signatários do GATT109
, que prevê o mesmo
tratamento tributário aos produtos importados, desde que exista similar nacional. De acordo
com seu raciocínio, se o salmão não possui similar nacional, não poderia receber o mesmo
tratamento do pescado brasileiro, isento de ICMS.
Ao decidir a lide, os julgadores afastaram a aplicabilidade de
interpretação literal como método hermenêutico110
e formaram consenso em torno da
existência de similaridade entre o salmão e os pescados nacionais, enquanto espécie desse
gênero, tornando assim possível o reconhecimento da incidência da norma isentiva do ICMS
em sua importação. Citou o acórdão a Súmula nº 71 do Superior Tribunal de Justiça, que já
havia reconhecido isenção do ICMS ao bacalhau importado dos países signatários do GATT.
Conforme informação do Ministério do Meio Ambiente, o salmão não
possui similar nacional. Trata-se de espécie que não é endêmica no mar territorial brasileiro,
constituindo a assertiva de inexistência de similaridade uma afirmação verdadeira para os
estudiosos da fauna marinha; todavia, não para a comunidade jurídica. Para o Poder
Judiciário, o salmão e o bacalhau são considerados similares aos pescados nacionais para fins
de isenção. Isto é, de acordo com o uso do termo no ordenamento jurídico, a similaridade
108
TJSP. Apelação Cível nº 127.456.5/5. 109
Sigla utilizada na língua inglesa para o que em português é conhecido como "Acordo geral sobre tarifas e
comércio". 110
Destacamos o trecho do voto do relator do acórdão, Desembargador Sérgio Pitombo: "Observe-se, de outra
sorte, que a denominada 'interpretação literal' inexiste, como método hermenêutico. Se a ideia era invocar a
interpretação gramatical, não há cabência, visto que não surge nenhum problema sintático".
44
ganha outra perspectiva que não a biológica, mas, sim, a jurídica, o que demonstra a
autorreferencialidade de sua linguagem.
A segunda consequência de se considerar o direito como um sistema
de linguagem prescritiva de condutas intersubjetivas é sentida na forma de compreendê-lo. Na
medida em que se constitui como um texto, seu entendimento pode ser potencializado com o
auxílio de ciências da linguagem. Tácio Lacerda Gama111
, ao destacar a existência de campo
comum de interesses entre as ciências jurídicas e as da linguagem, observa que "As ciências
jurídicas voltam-se, pois, para o mesmo objeto que as ciências da linguagem: o texto. Noutras
palavras, há identidade de objetos entre a ciência jurídica e outras ciências que têm no texto
seu objeto de estudos."
Dessa forma, parece-nos apropriada a análise dos planos sintático,
semântico e pragmático da linguagem jurídica, conforme discernido pela Semiótica,
destacando seu papel na exegese do direito tributário e sua relação com os pressupostos que a
condicionam.
2.3 Os níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica e seu papel na
interpretação do direito tributário.
No nível sintático, estão compreendidas as seguintes relações formais
existentes entre as unidades normativas: (i) enquanto conjunto ou sistema; (ii) no tocante à
sua composição interna, isto é, entre antecedente e consequente normativo; e (iii) entre norma
primária, que estipula o dever, e norma secundária, sancionadora da ilicitude112
.
O aspecto sintático do sistema de direito positivo lhe confere a
estrutura e a forma de relacionamento entre as normas jurídicas. Há regras de formação e
derivação da linguagem, reconhecidas pela comunidade jurídica, que devem, necessariamente,
ser observadas pelo intérprete. Espera-se que os comandos que forem construídos em
dissonância com tais elementos sofram as consequências previstas no ordenamento.
111
GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo:
Noeses, 2009, p. 04. 112
Conforme Paulo de Barros Carvalho: "É sintática a relação entre a norma da Constituição e aquela da lei
ordinária, assim como puramente sintático é o vínculo entre a regra que estipula o dever e a outra que veicula
a sanção. De ordem sintática, também, a estrutura intranormativa e, dentro dela, o laço condicional que une
antecedente (hipótese) a conseqüente." (op. cit., 2010, p. 132).
45
A título de exemplo, citamos decisão do Supremo Tribunal Federal113
,
que versou sobre os prazos de decadência e prescrição previstos nos artigos 45 e 46 da Lei
8.212/91114
. Com fundamento no art. 146, "b", III, da Constituição da República, reafirmou-se
ser a disciplina reservada à Lei Complementar, no caso o CTN, declarando-se a
inconstitucionalidade dos referidos dispositivos que estabeleciam prazo maior, de dez anos.
Nesse contexto, a lei ordinária foi produzida sem a observância das regras sintáticas da
linguagem jurídica, que determinam que as normas jurídicas devam ter como fundamento de
validade115
último a Carta da República.
A importância da investigação sintática da linguagem jurídica também
pode ser observada pelo papel que possui em reduzir complexidades para a interpretação dos
textos de direito positivo. Isso porque permite ao sujeito abstrair-se do emaranhado de
enunciados normativos e organizá-lo estruturalmente, a fim de compreender os componentes
básicos da norma jurídica e suas relações com outras normas. São dessa ordem as reduções
que permitiram estabelecer a regra-matriz de incidência, instrumento de enorme utilidade para
a interpretação do direito tributário feita no interior do sistema de direito positivo, ou ainda,
para a própria doutrina, ao tomá-lo como objeto de estudos.
No nível semântico, temos as significações do direito, no qual a norma
jurídica é relacionada à conduta a ser regulada. Paulo de Barros Carvalho116
nos explica que
[…] a semântica jurídica é o campo das significações do direito. É o meio de
referência que as normas guardam com relação aos fatos e comportamentos
tipificados. Essa relação é justamente a ponte que liga a linguagem normativa à
conduta do mundo social que ela regula.
Cumpre lembrar que, de acordo com as premissas utilizadas na
pesquisa, o conteúdo semântico atribuído pelo intérprete, para ser considerado como correto
pelos participantes do jogo de linguagem do direito, está condicionado pelo uso habitual dos
113
STF, Pleno, RE 556.664, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/06/2008. Na Ementa, está disposto:
"PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. MATÉRIAS RESERVADAS À LEI
COMPLEMENTAR. DISCIPLINA DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NATUREZA
TRIBUTÁRIAS DAS CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL.
INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 45 e 46 DA LEI 8.212/91 E DO PARÁGRAFO ÚNICO DO
ART. 5º DO DECRETO-LEI 1.569/77. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO.
MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE". 114
"Art. 45. O direito da Seguridade Social apurar e constituir seus créditos extingue-se após 10 (dez) anos
contados: […] Art. 46. O direito de cobrar os créditos da Seguridade Social, constituídos na forma do artigo
anterior, prescreve em 10 (dez) anos." 115
Uma norma válida é aquela que pertence a um dado sistema jurídico. Sobre o assunto exporemos maiores
detalhes em momento posterior deste trabalho. 116
Op. cit., 2010, p. 132.
46
termos. A semântica é, portanto, a instância que reflete a estabilização de tais usos em
determinado contexto histórico-cultural, na medida em que nos traz significados possíveis aos
textos jurídicos.
O nível pragmático da linguagem jurídica é aquele que nos permite
investigar seu uso pelos sujeitos participantes da comunidade jurídica. É nesse patamar que
podemos perceber a atualização dos textos pelo intérprete, consoante os valores presentes na
interpretação e aplicação do direito. Desconsiderar o aspecto pragmático da linguagem
significaria reconhecer que o sentido de uma mensagem deôntica existiria independente de
seu uso em determinado contexto, o que estaria em desacordo com a perspectiva aberta pela
segunda fase do pensamento de Wittgenstein e, por conseguinte, em desalinho com o giro
linguístico-hermenêutico e o construtivismo lógico-semântico.
Conforme leciona Clarice von Oertzen de Araújo117
, o nível
pragmático da linguagem é aquele que
Trata das relações significantes com os seus interpretantes, no caso, os usuários do
discurso normativo – nível dos significados deflagrados pelo uso efetivo das normas.
Compreende a instância da linguagem que traz a atualização do discurso normativo,
circunscrevendo-o ao campo da contemporaneidade e inscrevendo-o historicamente
numa dada cultura.
Portanto, para que uma linguagem permaneça viva, necessita ser
utilizada. Da mesma forma, para que o direito regule condutas, é necessário movimentar sua
linguagem, o que se faz mediante o uso pelos agentes competentes.
Muito embora o método adotado para a presente pesquisa, isto é, o
construtivismo lógico-semântico, porte em sua denominação os termos "lógico" e
"semântico", sem qualquer alusão ao aspecto pragmático da linguagem, não podemos concluir
que exista uma abstração do uso da linguagem pela comunidade jurídica como o elemento
constituidor do sentido de um termo.
Primeiramente, apontamos na nomenclatura do método o termo
"construtivismo", que, de acordo com Fabiana Del Padre Tomé118
, "É empregado para
denominar teorias que defendem a idéia de que há sempre intervenção do sujeito na formação
do objeto".
117
Op. cit., 2005, p. 340. 118
Vilém Flusser e o Constructivismo Lógico-semântico. In: HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson (Org.).
Vilém Flusser e Juristas. São Paulo: Noeses, 2009, p. 323.
47
O mesmo raciocínio é aplicado por Lourival Vilanova119
em suas
lições que confirmam a participação do sujeito na construção do objeto, a exemplo do trecho
citado:
O objeto não é algo já dado e definido, que o sujeito tão somente recolhe. O sujeito
comporta-se receptivamente, captando os 'data', mas informando esses dados,
imprimindo-lhes modos de síntese, modos que, ainda que fundados no material,
operam como construções de um protagonista criador.
Portanto, do ponto de vista científico, o uso da linguagem pelo sujeito
cognoscente seria fundamental para a constituição da própria ciência, na medida em que
sequer existiria o objeto sem a participação ativa de quem pretende conhecê-lo.
Transportando essa premissa do construtivismo para a interpretação
do direito positivo, ser-nos-ia lícito inferir que o sujeito (intérprete) ocupa papel central na
formação de sentido do objeto (textos do direito posto). Se, para movimentar as estruturas do
direito positivo, é necessária a atuação do ser humano que o interpreta e aplica, faz-se
imperioso reconhecer que o uso da linguagem jurídica é aspecto indissociável do plano
sintático e semântico e confere significado aos termos que a compõem. Aliás, o próprio
percurso gerador de sentido criado por Paulo de Barros Carvalho certifica esse pensamento,
pois, como se percebe, é o intérprete o responsável por selecionar os enunciados pertinentes e
construir norma compatível com o sistema.
2.4 A regra-matriz de incidência tributária
A regra-matriz de incidência tributária pode ser vista como técnica
analítica, lapidada pelo construtivismo lógico-semântico, consistente em dirigir a atenção do
interprete à estrutura formal da norma120
, o que facilita seu controle e produção no posterior
119
VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a Cultura. In: ______. Escritos Jurídicos e Filosóficos.
Vol. 2. São Paulo: Axis Mundi/IBET, 2003. 120
A expressão "norma jurídica" apresenta variedade semântica. Pode, por exemplo, referir-se somente à
construção de sentido feita a partir do texto ou, também, referir-se à norma jurídica em sentido estrito, que é
aquela que contém o mínimo necessário para regular uma conduta. Sua estrutura lógica corresponde à regra-
matriz de incidência. Um estudo semântico do termo "norma jurídica" foi efetuado por Paulo de Barros
Carvalho, em Direito Tributário, linguagem e método (2008, p. 139-145).
48
ingresso aos planos semântico e pragmático da linguagem jurídica121
. Segundo Fabiana Del
Padre Tomé122
,
A análise equivale a um processo de resolução ou decomposição do complexo em
algo mais simples. Nesse contexto, analisar equivale a decompor o objeto de estudos
em uma série de elementos que facilitam a compreensão do fenômeno que se
observa. No constructivismo lógico-semântico, o objeto de análise é a linguagem, a
qual se pretende reduzir ou traduzir a uma linguagem formal e cuja lógica e
procedimentos sejam claros, rigorosos e controláveis. É o que Paulo de Barros
Carvalho fez em relação às normas jurídicas tributárias, edificando a teoria da regra-
matriz de incidência tributária.
O expediente analítico de inspiração husserliana, que permitiu a
edificação dessa preciosa ferramenta para a interpretação do direito tributário, não contradiz
nossa afirmação inicial, de que o construtivismo lógico-semântico está entre as teorias que
colhem seus fundamentos na filosofia da linguagem constituída pelo giro linguístico-
hermenêutico. A teoria normativa derivada deste método compreende a norma jurídica como
construção de sentido feita pelo intérprete, o que significa que a decomposição analítica,
efetuada num primeiro momento, será novamente recomposta, preenchendo-se os elementos
estruturais que compõem a regra-matriz de incidência tributária com conteúdos possíveis, de
acordo com os aspectos semânticos e pragmáticos da linguagem jurídica. O momento
analítico, portanto, é uma instância de controle da linguagem jurídica, no qual se afere sua
estrutura, facilitando, enormemente, a posterior composição da norma em sua integralidade.
A regra-matriz de incidência tributária é, portanto, a estrutura lógica
da norma que institui o tributo no ordenamento jurídico. No seu antecedente, encontra-se a
descrição de um evento de possível ocorrência, de maneira que os destinatários da norma
possam identificar seu sucesso no contexto social em determinado espaço e tempo. Isto
equivale a dizer que há uma hipótese de incidência formada por uma ação tipificada,
composta de verbo e complemento, que nos oferece o critério material da regra-matriz de
incidência tributária, que, por sua vez, estará limitado aos seus condicionantes de espaço e de
tempo. São respectivamente os critérios espaciais e temporais da regra em questão. Em
linguagem formalizada, a estrutura do antecedente da regra-matriz de incidência tributária
pode ser assim descrita123
: Ht ≡ Cm (v.c) . Ce . Ct.124
121
Ibid., p. 146-147. 122
Op. cit., 2009, p. 325. 123
Conforme Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 149).
49
Preenchido o antecedente da regra-matriz de incidência com os
conteúdos possíveis e desde que vertido em linguagem admitida como competente pelo
direito, instaura-se de forma automática e infalível a relação jurídica em seu consequente.
Nele está previsto o vínculo entre dois ou mais sujeitos em torno de uma conduta, no caso do
direito tributário, o pagamento de determinada quantia em dinheiro. O sujeito ativo assumirá a
condição de exigir seu cumprimento, cabendo ao sujeito passivo observá-la. Temos, então, o
critério pessoal da regra-matriz de incidência tributária. Contudo, é necessário que os sujeitos
saibam o valor exato a ser levado aos cofres públicos, o que impõe a existência de um critério
quantitativo capaz de medir o impacto da exação, que configura-se pela base de cálculo e
alíquota. A representação formal do consequente normativo seria a seguinte125
: "Cst ≡ Cp
(sa.sp) . Cq (bc. al)".126
A estrutura lógica completa da regra-matriz de incidência tributária
pode ser assim formalizada: Ht ≡ Cm (v.c) . Ce . Ct.→ Cst ≡ Cp (sa.sp). Cq (bc. al).127
Portanto, certificado em linguagem competente para o direito, o evento previsto no
antecedente, em determinado espaço de tempo e lugar, necessariamente haverá a implicação
do consequente, no qual está prevista a obrigação tributária que se estabelece entre os sujeitos.
Reiteramos que a construção da linguagem jurídica e, portanto, sua
interpretação, não se limita ao plano formal, devendo a estrutura da regra-matriz de incidência
ser saturada com conteúdos de significação que sejam conforme os usos possíveis
reconhecidos por uma dada comunidade jurídica.
A análise de recente julgado128
, que considerou possível a incidência
do ISS129
sobre a operação de leasing financeiro, pode nos auxiliar na exposição.
O antecedente da regra-matriz de incidência tributária ou estrutura
lógica da norma que institui o ISS com fundamento constitucional no art. 156, III, da
Constituição da República, tem, como critério material, o verbo "prestar", acompanhado do
124
Desformalizando, temos que: "Ht" é a hipótese tributária; "≡" é o símbolo lógico do bicondicional; "Cm" é o
critério material; "v" é o verbo; "c" é o complemento; "Ce" é o critério espacial; "Ct" é o critério temporal; "."
o símbolo do conjuntor. 125
Conforme Paulo de Barros Carvalho (Ibid., p. 150). 126
"Cst" simboliza o consequente tributário, "≡" o bicondicional lógico, "Cp" é o critério pessoal, composto por
"sa" e "sp", respectivamente sujeitos ativo e passivo, "Cq" é o critério quantitativo composto pela base de
cálculo e alíquota e, finalmente, o conjuntor lógico ".". 127
O símbolo "→" quer significar a constante lógica condicional que equivale ao "se … então", da linguagem
desformalizada. 128
STF, Pleno, RE nº 592.905, Relator Min. Eros Grau. Julgado em 02/12/2009. 129
Imposto sobre serviços.
50
complemento "serviços de qualquer natureza", não englobando os serviços de transporte
interestadual e intermunicipal e de comunicação.
O termo "serviço" é compreendido por boa parte da doutrina como
uma obrigação de fazer algo anteriormente inexistente, consubstanciando um esforço humano
prestado a terceiros em caráter oneroso.
Aires Fernandino Barreto130
, ao lecionar sobre o critério material ou
hipótese de incidência do ISS, afirma ser esse "A conduta humana (prestação de serviço)
consistente em desenvolver um esforço visando a adimplir uma obrigação de fazer."
Paulo de Barros Carvalho assim se posiciona131
:
Só será possível a incidência do ISS se houver um negócio jurídico mediante o qual
uma das partes se obrigue a praticar certa atividade, de natureza física ou intelectual
recebendo, em troca, remuneração. Por outro ângulo, a incidência do ISS pressupõe
atuação decorrente do dever de fazer algo até então inexistente, não sendo exigível
quando se tratar de obrigação que imponha a mera entrega, permanente ou
temporária, de alguma coisa que já existe.
Humberto Ávila132
compreende que "A CF/88, ao utilizar o termo
'serviços' na regra de competência tributária municipal, incorporou o conceito
infraconstitucional pré-constitucional de obrigação de fazer, cujo núcleo semântico é o
esforço humano empreendido em benefício de outrem."
Marçal Justen Filho133
, ao tratar do critério material do ISS afirma ser:
"A prestação de utilidade (material ou não) de qualquer natureza, efetuada sob o regime de
Direito privado mas não sob o regime trabalhista, qualificável juridicamente como a execução
de obrigação de fazer, decorrente de um contrato unilateral."
Portanto, o critério material da regra-matriz de incidência que institui
o ISS somente poderá ser preenchido corretamente, se trouxer como conteúdo uma prestação
de serviços efetuada a terceiros, em caráter oneroso. No caso em análise, questionava-se o
disposto na Lei Complementar 116/03, item 15.09, que incluiu o leasing financeiro como
130
AIRES, F. Barreto. ISS na Constituição e na lei. São Paulo: Dialética, 2003, p. 423. 131
CARVALHO, Paulo de Barros. Não-incidência do ISS sobre atividades de franquia (franchising). RET,
56/65, julho-agosto de 2007. Conforme Leandro Paulsen (Direito Tributário. Constituição e Código
Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora;
ESMAFE, 2010, p. 390). 132
ÁVILA, Humberto. Leasing Financeiro: análise da incidência. Revista Dialética de Direito Tributário, n.
122. São Paulo, p. 120, nov. 2005. Conforme PAULSEN (2010, p. 390). 133
JUSTEN FILHO, Marçal. O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-lei nº 406. Revista Dialética de Direito
Tributário, n. 3, São Paulo, p. 66, dez. 1995.
51
prestação de serviços, por ter ferido a materialidade possível da exação, conforme
estabelecido pela Constituição da República, art. 156, III. Vale dizer, propugnava-se que
leasing financeiro não constitui prestação de serviços.
O contrato de leasing financeiro foi conceituado pelo Min. Eros Grau,
relator do julgado, como a modalidade na qual134
A arrendadora adquire bens de um fabricante ou fornecedor e entrega seu uso e gozo
ao arrendatário, mediante o pagamento de uma contraprestação periódica, ao final da
locação abrindo-se a este a possibilidade de devolver o bem à arrendadora, renovar a
locação ou adquiri-lo pelo preço residual combinado no contrato. No leasing
financeiro prepondera o caráter de financiamento e nele a arrendadora, que
desempenha a função de locadora, surge como intermediário entre o fornecedor e o
arrendatário. [...] Financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir.
A atividade desenvolvida no contrato de leasing financeiro,
conforme compreendida no direito privado, e de forma contrária ao entendimento do Min.
Eros Grau, não pode ser tida como obrigação de fazer e, portanto, prestação de serviço.
Trata-se de arrendamento mercantil, espécie do gênero locação135
, configurando-se numa
obrigação de dar. O arrendatário usufrui do bem que lhe é entregue por sua proprietária, a
arrendante, que, por sua vez, lhe transfere o direito de uso mediante determinado
pagamento. Ao final do contrato, poderá ser exercida a opção de compra.
A Constituição Federal não estipulou definição de serviços em seu
texto, portanto, conforme art. 110 do CTN, o intérprete estará vinculado ao uso do termo no
direito privado, que considera a atividade um arrendamento, espécie do gênero locação.
Nesse sentido, o voto divergente do Min. Marco Aurélio:
A partir desse enfoque é que a doutrina em peso quando versa serviço, sinaliza a
necessidade de existir não uma obrigação de dar, como ocorre no caso da locação,
mas uma obrigação de fazer, um esforço desenvolvido no tocante ao destinatário
dessa mesma obrigação de fazer. E tem-se a lição de Geraldo Ataliba, de Marçal
Justen Filho, de Hugo Brito, de Ives Gandra, de Carrazza no sentido de que não há,
no arrendamento – e o leasing é arrendamento, o leasing não deixa de ser espécie de
locação –, a preponderância da prestação de serviço.
134
RE 592.905, p. 5-6. 135
O STF já havia considerado, anteriormente, que o arrendamento mercantil não se constitui como um serviço,
conforme RE 116.121-3, julgado em 11/10/2000. Em sua Ementa está disposto: "IMPOSTO SOBRE
SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços
revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado a
contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido
próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código
Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional."
52
Observe-se, ainda, que o constituinte, ao distribuir as competências
legiferantes aos entes políticos em matéria tributária, foi de extrema minúcia. Nesse
contexto, a atividade de financiamento foi designada, pelo constituinte, no art. 153, V,
como possível critério material da regra-matriz de tributo que incida sobre operações de
crédito, instituído, posteriormente, pela Lei 8.894/94 e conhecido como IOF, sendo
competência exclusiva da União. Portanto, o julgado, nesse aspecto, parece-nos, inclusive,
ofender a própria Constituição Federal.
Na decisão que comentamos, o critério material da regra-matriz
assume significação diversa das expectativas de boa parte da comunidade jurídica,
treinada por técnicas advindas da Ciência do Direito. Do ponto de vista sintático,
desconsidera a regra do art. 110 do CTN e ingressa no plano semântico da linguagem
jurídica, atribuindo significação dissonante com o uso do termo "leasing".
2.5 Fato e evento: a importância da distinção para construir-se o sentido jurídico
O construtivismo lógico-semântico, ao trabalhar com o conceito de
funções predominantes da linguagem, coloca o direito na posição de um sistema ou jogo de
linguagem específico.
Tomando o sistema jurídico, ou jogo de linguagem do direito, como
referência, teremos no evento algo que ocorre fora do território do direito, vale dizer, que não
está constituído em linguagem jurídica. Assim, pode ser entendido o fato social que não
ingressou no ordenamento, já que carece da tradução em linguagem jurídica136
.
O fato jurídico, por sua vez, constituir-se-ia do evento vertido em
linguagem, da forma como admitido pelo direito, o que pressupõe a necessidade de observar
as regras que o sistema determina para sua produção, como a necessidade de provas lícitas
dentro de um processo judicial ou administrativo, ou ainda, da ação de sujeitos competentes
conforme procedimento e matéria determinados em lei. No magistério de Fabiana Del Padre
Tomé137
,
[...] Qualquer que seja o sistema que se examine, nele ingressam apenas os
enunciados compostos pela forma lingüística própria daquele sistema. Relatado o
136
Conforme Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 145-151). 137
TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005, p. 32-33.
53
acontecimento em linguagem social, teremos fato social; este, vertido em linguagem
jurídica, dará nascimento ao fato jurídico. Os fatos da chamada realidade social,
enquanto não constituídos mediante linguagem jurídica própria, qualificam-se como
eventos em relação ao mundo do direito.
Mais adiante, prossegue a autora138
, versando sobre a finalidade da
prova:
A tarefa daquele que produz a prova jurídica é semelhante à do historiador: ambos
se propõem a estabelecer fatos representativos de acontecimentos pretéritos, por
meio de rastros, vestígios ou sinais deixados por referidos eventos e utilizando-se de
processo lógico-presuntivo que permitam a constituição ou desconstituição de
determinado fato. Esse é o fim da prova: a fixação dos fatos no mundo jurídico.
A diferença entre fato e evento é um poderoso guia para o
intérprete na medida em que o auxilia a estabelecer critérios de pertinencialidade e
identificação do dado jurídico, ao ponto de Paulo de Barros Carvalho139
lecionar que
Em nenhum outro domínio do universo jurídico, a dualidade fato/evento manifesta
sua presença com tanta nitidez e vigor. Ou a mutação ocorrida na vida real é
contada, fielmente, de acordo com os meios de prova admitidos pelo sistema de
direito positivo, consubstanciando as categorias dos fatos jurídicos (lícito ou ilícitos,
pouco importa) e da eficácia que deles se irradia; ou nada terá acontecido de
relevante para o direito, em termos de propagação dos efeitos disciplinadores da
conduta. Transmitido de maneira mais direta: fato jurídico requer linguagem
competente, isto é, linguagem das provas, sem o que serão meros eventos, a despeito
do interesse que possam suscitar no contexto da instável e turbulência vida social.
Vejamos um caso concreto140
. A Fazenda Nacional não obteve
sucesso em comprovar que os valores aferidos na conta corrente do contribuinte teriam
origem diversa de suposta venda de imóvel; sendo assim, foi anulado o auto de infração
que questionava as informações prestadas em sua declaração de renda, afirmando haver
ocorrido a omissão de receitas. Se os cheques citados na Ementa realmente retratam o
pagamento da alegada venda de imóvel, do ponto de vista dos fatos sociais, não é possível
saber-se ao certo. Somente temos acesso às interpretações dadas a um evento. Porém, uma
138
Ibid., p. 177. 139
Prefácio do livro de Fabiana Del Padre Tomé, A prova no direito tributário, p. XVI e XVII. 140
TRF 1ª Região, 8ª T., Apelação nº 2001.33.00.010339-8, Relatora a Desembargadora Federal Maria do
Carmo Cardoso. "TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. VENDA DE IMÓVEL NÃO DECLARADA.
VALORES DEPOSITADOS EM CONTA CORRENTE. PRESUNÇÃO DE QUE OS VALORES
RECEBIDOS DECORREM DA VENDA. ANULAÇÃO DE AUTO DE INFRAÇÃO.
DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. 1. Demonstrando a parte autora que procedeu à
alienação de imóvel rural de sua propriedade, na mesma época em que foram depositados vários cheques em
sua conta corrente, e não fazendo a União prova de que os referidos valores não decorrem da venda em
referência, há que ser anulado o lançamento objeto do auto de infração, que entendeu pela existência da
omissão de rendimentos. 2. O inadimplemento da obrigação acessória não desonera o Fisco de comprovar os
fatos geradores da obrigação tributária. 3. Apelação e remessa oficial improvidas."
54
coisa é certa: para o direito não houve omissão de rendimentos. Portanto, suposto fato
social não logrou êxito em tornar-se um fato jurídico, havendo sucumbido a Fazenda,
justamente por não atentar-se à diferença entre fato e evento. O fato jurídico deve ser
provado para que alcance essa posição. O fato social, tido como evento, está fora do jogo
de linguagem do direito.
2.6 O culturalismo, cultura jurídica e a interpretação do direito
Como dito em capítulo próprio, a interpretação do direito tributário
sofre condicionantes de ordem histórico-cultural. O construtivismo lógico-semântico, ao
reconhecer esse fator que direciona a atividade de construção de sentido, toma como
referência o culturalismo.
Essa teoria teve origem na Escola de Baden141
, cuja ideia de
conhecimento veiculada na produção filosófica de seus expoentes apoiava-se também na
experiência, em oposição aos seus contemporâneos, os pensadores alemães de Marburgo,
segundo os quais, todo o elemento de sensibilidade deveria ser afastado na formação dos
conceitos lógicos, reduzindo o conhecimento a um puro logicismo142
. O culturalismo foi
responsável por dirigir o pensamento filosófico aos conceitos de valor e cultura.
No pensamento culturalista, há variações que seguem visões distintas
de seus principais autores sobre o conceito de cultura e de valor. Com efeito, não seria esse o
escopo de nossa pesquisa. No entanto, podemos afirmar que há um consenso em torno da
primazia da cultura sobre a pessoa humana, ressaltando-se no direito seu caráter
transpersonalista143
, isto é, intersubjetivo. Relacionando essa forma de pensar à busca de
pressupostos para a interpretação do direito tributário, revela-se a existência de uma cultura
jurídica compartilhada pelos participantes de determinado sistema de direito positivo, que se
sobrepõe às preferências individuais, o que importa na ideia de transpersonalismo e consenso.
Afinal, se o direito é transpessoal, para que determinada interpretação seja compreendida
141
Denomina-se "Escola de Baden", devido ao fato de que os primeiros expoentes do pensamento culturalista
terem ensinado em Heidelberg, cidade da região de Baden. (PAIM, Antônio. Problemática do Culturalismo.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 17). 142
Conforme REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3. ed. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, p.
173 et seq., 1998. 143
Conforme Miguel Reale (ibid., p. 199).
55
como correta, pressupõe-se como aceitável pelos membros da comunidade jurídica em que é
posta.
Portanto, a noção de cultura ultrapassa o individual e requer o
conceito de comunidade, na qual ela se desenvolve, como bem destaca Johannes Hessen144
:
O homem não é apenas indivíduo; é ao mesmo tempo um sêr social, um ens sociale.
Embora possua um sêr independente, com autonomia ôntica, não deixa de ser, por
outro lado, parte dum todo, como que membro dum organismo que é a comunidade
humana. Por sua vez, esta comunidade é o terreno onde cresce e se desenvolve a
Cultura humana.
Segundo os pensadores de Baden, há o empírico, o dado natural, que
está sujeito a uma causalidade natural. A este conjunto de elementos podemos denominar
"mundo do ser". Paralelamente a esta dimensão, existiria o "mundo do dever ser", relacionado
aos conceitos de ideal e de finalidade, formado pelos valores humanos historicamente dados.
O elo entre esses dois mundos residiria exatamente na cultura, um terceiro reino, que
representaria toda a produção humana tendente a modificar a natureza com o objetivo de
concretizar tais valores. Conforme Reale145
,
A cultura é, pois, o complexo rico e multifacetado reino da criação humana, de tudo
aquilo que o homem consegue arrancar à fria seriação do natural e do mecânico,
animando as coisas com um sentido e um significado, e realizando através da
História a missão de dar valor aos fatos e de humanizar, por assim dizer, a Natureza.
Apenas acrescentaríamos que os três reinos (ser, dever-ser e cultura)
são criados pelo sujeito a partir do uso da linguagem. O próprio ser, também denominado de
dado bruto ou de coisa-em-si, é construção humana feita pela linguagem, um dado cultural
por excelência, na medida em que sua compreensão é produto da intelecção. O objeto para o
qual se dirige a consciência humana, que o seleciona do emaranhado no qual está imerso o
sujeito, representa uma parcialidade, correspondendo ao recorte linguístico que o configura. O
conhecimento sobre esses reinos somente fará parte da cultura humana, se transformar-se em
dado objetivo, isto é, tornar-se intersubjetivo, for objeto de comunicação.
Note-se que os valores promovidos pela cultura não são absolutos,
independentes do sujeito, de cunho essencialista, imutáveis no tempo e no espaço, a exemplo
da compreensão exposta no pensamento de Hessen146
. Trata-se de valiosidade talhada no
144
HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Tradução de L. Cabral de Moncada. Coleção Stvdivm. Temas
filosóficos, jurídicos e sociais. São Paulo: Saraiva & Cia, 1946, p. 244. (destaques do autor). 145
Op. cit., 1998, p. 179. 146
Op. cit., 1946, p. 98 e 99.
56
processo histórico, no bojo de uma comunidade, que, muito embora possa ser estável, tende a
se modificar com as alterações ocorridas na sociedade ao longo do tempo, tornando os
possíveis sentidos atribuídos a um objeto – e, portanto, a interpretação que se dá aos símbolos,
inclusive os jurídicos –, sob essa perspectiva, inesgotável. Tais mudanças explicam
entendimentos variados sobre o mesmo assunto, valorações distintas que promove o intérprete
nos limites da cultura na qual está inserido e justificam as transformações em nossa
jurisprudência147
. Não queremos afirmar que em uma específica cultura somente uma
interpretação seria correta, variando o sentido atribuído apenas com as transformações
históricas. Dentro de uma dada cultura, de um mesmo período histórico, diversas
interpretações sobre um único tema são tidas como lícitas, como se fossem variações de um
tema musical. A ideia de transpessoalidade da cultura, a realização dos valores e a
interpretação que se dá ao mundo sofrem outras influências, que são do próprio indivíduo e
que justificam a diversidade de entendimentos acerca de um assunto específico.
Nas palavras de Raimundo Bezerra Falcão148
:
Os objetos são submetidos a 'um processo de revivescência, modificando-se à luz do
espírito de cada ser humano, ou de cada novo ser humano que, na condição de
sujeito cognoscente, mira-os, interpretando-os. Tal ser humano, contudo, não é
somente espírito subjetivo. É espírito objetivo também, em face da sua historicidade,
em função de sua culturalidade. E, ao revivescerem, os objetos se atualizam e, desse
modo, vão mantendo sua significação para o presente, sem se fecharem para o
passado, assegurada esta abertura para o pretérito pela tradição cultural e mantida a
utilidade significativa para o presente em razão dos quadros sócio-culturais do
momento. Atualização, pois, sem descontrole. E, estabilidade, em decorrência, sem
ranços imutáveis. É a cultura fertilizando a inesgotabilidade de sentidos.
Partindo de entendimento lastreado na visão do direito como objeto
cultural, afirma Paulo de Barros Carvalho149
a existência de condicionantes que dirigem a
interpretação, na medida em que a inesgotabilidade, advinda da relatividade das construções
de sentido, e a intertextualidade, procedente de diálogos com outros jogos de linguagem,
comportam limites:
Os predicados da inesgotabilidade e da intertextualidade não significam ausência de
limites para a tarefa interpretativa. A interpretação toma por base o texto: nele tem
início, por ele se conduz e, até o intercâmbio com outros discursos, instaura-se a
partir dele. Ora, o texto de que falamos é o jurídico-positivo e o ingresso no plano de
seu conteúdo tem de levar em conta as diretrizes do sistema.
147
Vide a descriminalização do adultério e o imposto do selo. 148
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 46. 149
Op. cit., 2008, p. 194.
57
As diretrizes do sistema, de que fala o autor, são aquelas fornecidas
pela cultura jurídica, que pretende implantar valores com a positivação de normas, em dado
espaço e momento histórico.
O culturalismo de que falamos possui forte viés construtivista. No
centro do universo, situa-se o ser humano, que edifica o mundo a partir de um a priori
cultural formado e transmitido pela linguagem no transcorrer de um processo histórico e
carregado de valores. Com isso, não se quer adotar posição subjetivista e gnoseológica150
, que
desconsidera o objeto no processo de elaboração do conhecimento, nem tampouco, privilegiar
o indivíduo em detrimento da coletividade de seres humanos conviventes no processo de
significação. O que se quer afirmar é tão-somente que o mundo não seria algo pronto e
acabado, mas fruto de construção humana, feita em linguagem, que busca a objetivação de
valores, sendo a cultura, justamente a "expressão e o resultado de todo conhecimento
humano."151
É o que podemos observar nas lições de Lourival Vilanova152
:
Ingressando no domínio das formas sociais, o sujeito, de certo modo, objetiva-se
(sem prejuízo de sua subjetividade, que cresce em profundidade e extensão, com a
multiplicação dos círculos sociais em que participa): adota 'maneiras de pensar,
sentir e querer' que preexistem e sobrevivem à sua existência individual posta e
imposta pelo contorno social, utiliza um aceno de experiência que já encontra,
concebe e manipula os objetos por intermédio de quadros de conhecimento e
valoração de que não foi autor, insere-se dentro de formações coletivas sem decisão
própria (família, classe, nação) e o social inteiro como que se condensa e lhe penetra
gradual e impositivamente por meio da linguagem, o fator de objetivação social por
excelência.
Dito de outro modo, a cultura é um ato de significação, de doação de
sentido que o ser humano outorga aos elementos que compõem seu ambiente. Dessa forma, a
própria norma jurídica pode ser entendida como objeto cultural. Segundo Raimundo Bezerra
Falcão153
, "Ela é uma alteração que o homem traça à sua própria conduta, limitando, em
níveis externos, a liberdade inerente à natureza humana".
150
Segundo Fabiana Del Padre Tomé, "Na trajetória da teoria do conhecimento observamos certa evolução em
que, de início, tomava-se o objeto ou o sujeito como determinantes para o conhecimento: eis a ontologia e a
gnoseologia, respectivamente" (op. cit., 2009, p. 328). 151
REALE, 2000, p. 15. 152
VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a cultura. In: ______. Escritos jurídicos e filosóficos.
São Paulo: Axis Mvndi, 2003, v. 2, p. 310. 153
Op. cit., 2010, p. 70.
58
Isto significa que o próprio direito é um objeto cultural, cujo traço
distinto é a finalidade de condicionar, influenciar comportamentos, moldando a liberdade
humana de agir, conforme padrões valorativos.
Linguagem, história e valores são elementos indissociáveis, que
constituem e transformam o ambiente humano, formando significações que compõem a
cultura. Todo o ato de fala é um ato cultural e valorativo, que se efetua em dado tempo
histórico. Transpondo tal raciocínio ao direito, temos que todo ato jurídico é um ato de fala e,
portanto, um ato cultural tendente à realização de um valor historicamente dado. A
interpretação do direito, portanto, é um processo que se desenvolve dentro dessa perspectiva e
seu produto será inserido no grande processo comunicacional que constitui a civilização
humana.
Essa afirmação não se constitui num círculo vicioso, na medida em
que a interpretação poderá inovar, tornando o direito mais adequado às necessidades que se
apresentam, alargando os horizontes jurídicos, dado seu aspecto histórico e axiológico;
porém, dentro da perspectiva dos pressupostos que adotamos, não de forma arbitrária, mas em
estreito diálogo com os utentes da linguagem jurídica, respeitando-se o consenso sobre
interpretações possíveis, que nada mais é que reconhecer o contexto cultural no qual ocorre a
exegese, os valores, as preferências de sentido dos participantes do jogo de linguagem do
direito, observando-se, ainda, as regras do sistema, premissa para que a decisão possa
prevalecer como justa.
Corrobora esse entendimento Raimundo Bezerra Falcão154
ao afirmar
que
O sentido não é imutável. Ele é sempre para o sujeito cognoscente, sem se olvidar a
ação do espírito objetivo sobre o sujeito cognoscente. Além disso, e por isso, o
sentido é criador. Tem força ôntica […] Efetivamente, no sujeito ou no indivíduo, o
sentido é mundo novo, é ser criado.
Contudo, o autor condiciona essa liberdade a uma racionalidade, que a
impede de ser equiparada ao tumulto, ao total descontrole. Em suas palavras:
Voltamos, mais uma vez, a insistir numa tecla que se nos afigura fundamental, a fim
de que ninguém julgue que estamos defendendo a existência de uma tal
fragmentação ou uma essencial variabilidade do sentido, a moldes que não se possa
cogitar de um mínimo de base comum, no que se reporta à apreensão de sentido, a
ponto desta operação se tornar alguma coisa inteiramente aleatória, uma obra do
154
Op. cit., 2010, p. 37.
59
acaso, como se a razão humana fosse um tiro na escuridão, ou um corisco em meio
ao tumulto do espírito. É claro que o espírito não é um tumulto. Não se misture a
liberdade do homem com o tumulto e a incerteza puros e simples.
Para Lourival Vilanova155
, a cultura seria "um fato de três dimensões:
aos objetos físicos se conferem significações, que partem de sujeitos (seus criadores ou
receptores), que entre si, por causa e em conseqüência dessas significações, estendem uma
teia de inter-relações sociais".
A cultura formaria um novo território, com a inter-relação dessas três
dimensões. Os objetos, nesse território valem pelo sentido que lhe são atribuídos, sendo que
tais sentidos passam a ser compartilhados no transpersonalismo que apresenta o dado cultural.
Assim ocorre com as interpretações no direito, e mais especificamente, no campo do direito
tributário, objeto de nossos estudos, o que nos permite inferir que a cultura é fator que limita a
atividade do exegeta.
Contudo, no intuito de alcançarmos maior precisão, falamos da
existência de uma cultura jurídica. Propugnamos durante nossa exposição pela existência de
uma linguagem jurídica, de natureza técnica, que se diferencia da linguagem ordinária, vale
dizer, da existência de um sistema jurídico em constante diálogo com o macrossistema social,
porém revestido de autonomia. No interior desse sistema jurídico, há a formação de uma
cultura criada pelo uso da linguagem em determinado tempo histórico com a finalidade de
realizarem-se os valores nele presentes. É nesse contexto, justamente, que se dá a
interpretação do direito, constituindo-se a cultura jurídica como pressuposto a ser observado
pelo exegeta.
2.7 Valores e interpretação do direito
Hessen156
afirma que a "cultura humana é uma realização de valores".
Dito de acordo com nossa perspectiva, o ser humano transforma o mundo em que habita,
constrói a cultura, ao realizar os valores idealizados historicamente, entendidos estes como
preferências por determinado conteúdo significativo. Na concepção de Tércio Sampaio Ferraz
155
Op. cit., 2003, v. 2, p. 284. 156
Op. cit., 1946, p. 55.
60
Jr.157
, "trata-se de centros significativos que expressam uma 'preferibilidade' (abstrata e geral)
por certos conteúdos de expectativa".
Assim ocorre também com o direito. Como objeto cultural, sua
interpretação e consequente aplicação, com a finalidade de regular condutas, concretiza
valores que estão presentes na cultura jurídica. Dessa maneira, os utentes da linguagem
jurídica possuem expectativas de concreção normativa que existem em virtude de valores
compartilhados. Parece-nos lícito supor que os jurisdicionados esperam de um processo
judicial, por exemplo, que a justiça seja feita. Acreditam, ainda, que devam participar de um
processo cujas partes sejam tratadas com isonomia. Dito de outro modo, justiça e igualdade,
por exemplo, são valores compartilhados pelos que se servem do sistema do direito positivo.
Ao construir a norma jurídica, isto é, ao atribuir um determinado
conteúdo significativo para o texto normativo, o exegeta emite juízo de valor, escolhe
significados de sua preferência. É claro que não estamos nos referindo ao sujeito apenas
enquanto indivíduo, retirando-lhe dos limites culturais e históricos que conformam seus
valores, posto ser "[…] a sociedade, quer dizer, a pluralidade, que dá o tom da legitimidade.
Não o indivíduo, enquanto ser singular. Este apenas agrega frações, mas não compõe,
sozinho, o todo da legitimidade. Não tem esse poder isolado de legitimação."158
Nesse mesmo sentido, Tércio Sampaio Ferraz Jr., que, ao explicar o
conceito de "valor", conforme acima citado, ressalta o consenso social. Afirma o autor159
:
"valores, são, assim, símbolos de preferência para ações indeterminadamente permanentes, ou
ainda, fórmulas integradoras e sintéticas para a representação do sentido de consenso social".
Aliás, o construtivismo lógico-semântico tem na historicidade uma
das características dos valores, na medida em que: "Eles vão sendo construídos na evolução
do processo histórico e social [...] Com efeito, os valores não caem do céu, mas vão sendo
depositados, gradativamente, ao longo da trajetória existencial dos homens."160
Portanto, ao dizer que o intérprete concretiza os valores na construção
normativa, imprescinde-se da noção de cultura, de historicidade e de coletividade que estão
implícitas nesse sujeito e em seu modo de se relacionar com o mundo. Como decorrência
157
FERRAZ, Jr. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão e dominação. 6. ed. São
Paulo: Atlas, 2008, p. 86. 158
FALCÃO, 2010, p. 27. 159
Op. cit., 2008, p. 86. 160
CARVALHO, 2008, p. 178.
61
desse ponto de vista, temos que a interpretação e a aplicação que se faz do direito positivo,
para não ser arbitrária, necessariamente deve ter como parâmetro as significações que a
comunidade de utentes da linguagem jurídica aceita como possíveis.
O construtivismo lógico-semântico, sob forte influência do
culturalismo161
aponta doze características dos valores. São elas:
(i) Bipolaridade: segundo esta característica, a todo valor se contrapõe
um desvalor: o belo e o feio, o bom e o mau, o justo e o injusto, o válido e o inválido são
exemplos da bipolaridade de que falamos. Nas palavras de Hessen162
:
Ao valor positivo contrapõe-se o negativo, chamando-se então a êste mais
pròpriamente 'desvalor'. Como já vimos, esta polaridade pertence à própria estrutura
essencial da ordem axiológica que assim se distingue fundamentalmente da ordem
do sêr a que é estranha uma tal estrutura.
Portanto, o valor não existiria enquanto "ser", tratando-se de algo
metafísico, posto ser logicamente impossível a um objeto feito de matéria física existir e ao
mesmo tempo inexistir.
Relacionando a bipolaridade característica dos valores ao tema da
interpretação do direito tributário, verificamos que, ao construir o sentido dos enunciados
prescritivos de direito, o sujeito decide por conteúdos que entende como os mais adequados.
O pedido que consta da petição inicial retrata o valor que pretende alcançar o autor da ação.
Este pedido é o que o sujeito ativo entende por justo. Qualquer outra decisão contrária à
pretensão deduzida representa um desvalor, a manutenção de uma injustiça. Tal contraposição
ilustra bem a bipolaridade presente nos valores.
(ii) Implicação recíproca: esta característica conota que os valores não
atuam isoladamente, mas há uma interdependência entre eles. Nas palavras de Aurora
Tomazini de Carvalho163
, "nenhum valor se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na
realização dos demais, o certo implica o justo que implica a liberdade".
Assim, para nos mantermos no exemplo dado, o pedido deduzido pelo
autor em juízo representa para este sujeito o justo. Todavia, para que o justo se realize, é
161
Conforme declarado por Paulo de Barros Carvalho, em Direito tributário, linguagem e método (2008, p.
176). 162
Op. cit., 1946, p. 105. 163
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito. O Constructivismo lógico-semântico.
São Paulo; Noeses, 2009, p. 256.
62
necessária a existência do devido processo legal, seguindo-se, assim, o procedimento previsto
em lei, com a citação da parte contrária para apresentar defesa, a permissão de produção de
provas e, ao final, com o pronunciamento de uma sentença válida para que o justo se
realizasse, mas, para tanto, também se realizaram outros valores, a exemplo da igualdade
(isonomia processual), da liberdade de estar em juízo deduzindo uma pretensão, da
democracia, na qual um terceiro, estranho à lide tem o poder de dirimir o conflito e assim por
diante.
(iii) Necessidade de sentido ou referibilidade: os valores sempre se
referem a algo, isto é, "o valor importa sempre uma tomada de posição do ser humano perante
alguma coisa, a que está referido"164
. Assim sendo, espera-se de uma sentença proferida por
um juiz que seja justa. Essa justiça poderá ser observada na forma como determina a
regulação da conduta. Portanto, o valor "justo" refere-se, no exemplo dado, a uma ação
judicial. Ganha sentido apenas com essa referibilidade.
(iv) Preferibilidade: o sujeito escolhe, toma uma posição dentre as
várias possíveis de acordo com seus ideais e interesses. Ao agir assim, valora algo em
detrimento de outras opções. O juiz, ao decidir pela procedência de uma dada ação proposta,
opta por uma posição porque a considera como a mais acertada para o caso. Isto é, dá a
preferência para a realização do pedido do autor, porque o considera justo.
(v) Incomensurabilidade: os valores não são passíveis de ser medidos.
Não há como mensurar-se quantitativamente o quão justa é uma sentença ou, noutro exemplo,
o quão bela é a foz do rio Amazonas.
(vi) Graduação hierárquica: os valores se encontram em relação
hierárquica com referência do sujeito que valora, podendo ser este o indivíduo ou uma
coletividade. Assim, em determinada sociedade, o valor "liberdade" pode estar em primeiro
plano, enquanto para outra a prioridade seria o valor "segurança", por exemplo, ocupando a
"liberdade" lugar de menos destaque.
Note-se, contudo, que na interpretação do direito a graduação
hierárquica dos valores que deverá prevalecer será a que consensualmente encontrar-se
presente nas manifestações dos participantes do jogo de linguagem jurídico. Dessa forma, um
juiz que tenha a certeza da culpa de um acusado, por exemplo, não poderá condená-lo sem o
164
CARVALHO, 2008, p. 177.
63
devido processo legal. O valor justiça será realizado de acordo com o procedimento
determinado pelas várias interpretações que dele fizeram os utentes da linguagem jurídica e
não pela simples valoração individual feita pelo juiz.
(vii) Objetividade: os valores necessitam dos objetos da experiência
para alcançarem objetividade. Tal característica relaciona-se com a inexistência de uma
essência nos valores, de um "ser". Portanto, o justo ganhará objetividade em uma sentença, ou
ainda, a liberdade em determinado artigo da Constituição Federal, por exemplo. Nas palavras
de Paulo de Barros Carvalho165
,
A objetividade é conseqüência da particular condição ontológica dos valores. Se eles
se configuram como qualidades aderentes, que os seres humanos predicam dos
objetos (reais e ideais), hão de querer, invariavelmente, a presença desses mesmos
objetos.
Com a objetividade, queremos afirmar que algo ou alguém portará um
valor, por nós mesmos atribuído. Nesse sentido, o valor a eles adere, tornando-os justos,
belos, corajosos, ou ainda, tiranos, quasimodescos e servis, o que é diferente de dizer que
dada sentença será sempre justa, determinada obra de arte será sempre bela, por trazerem
consigo esses valores. Os valores não fazem parte do mundo do ser, mas de um ideal
normativo166
(não necessariamente prescritivo) com o qual classificamos os objetos.
(viii) Historicidade: já falamos sobre essa característica dos valores
páginas atrás. Os valores se formam e se transformam no bojo da história, não existem de
forma estática, independentemente de qualquer condicionante de tempo e espaço. Em outras
palavras, não possuem uma essência. Tathiane dos Santos Piscitelli167
nos ensina que
O conteúdo dos valores é, então, contingente. Depende do momento histórico da
enunciação e, ainda, da tradição e dos pré-conceitos daquele que interpreta o
enunciado ou objeto […] A carga semântica dos valores é construída pela história e
no curso desta se modifica.
Dessa maneira, consignamos que a historicidade dos valores reflete-se
de forma direta na interpretação do direito, traçando limites na cultura jurídica, no qual o
exegeta a enuncia.
165
Op. cit., 2008, p. 178. 166
Por exemplo, as normas morais trazem um dever, porém não de cunho prescritivo. Isto é, não é possível que
o Estado-juiz assuma o cumprimento da norma de forma coercitiva, como ocorre com o dever-ser no direito. 167
Op. cit., 2007, p. 110.
64
(ix) Inexauribilidade: o valor não se esgota na medida em que
transcende o ser. Não possui uma forma física que o limite. Não é um objeto, mas adere a
eles. Uma decisão justa, por exemplo, não consome todo o justo, ao passo que um incêndio
em uma floresta pode consumir este bioma. Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho168
,
Mesmo que o belo seja insistentemente atribuído a uma obra de arte, sobrará esse
valor estético para muitos outros objetos do mundo. Tal transcendência é própria às
estimativas, de modo que o bem em que o valor se manifesta não consegue contê-lo,
aprisioná-lo, evitando sua expansão para os múltiplos setores da vida social.
A interpretação do mundo, que neste sentido pode ser considerado
como um texto em sentido amplo, é a forma que o ser humano possui para conhecer os
objetos e, como vimos, está intrinsecamente ligada à realização de valores, a ponto de Paulo
de Barros Carvalho169
conceituar que "interpretar é atribuir valores aos símbolos". Por sua
vez, Hessen170
leciona que "a verdade é que tomamos contato com as coisas não só pensando-
as, mas valorando-as". Com efeito, os valores não poderiam ser exauríveis em um único ato
hermenêutico, sob pena de não mais ser possível o conhecimento do mundo pela absoluta
ausência de critérios de preferências, de estimativas. Nada seria importante, inexistiriam fins a
serem realizados.
Nesse sentido, a inexauribilidade dos valores pode ser associada à
inesgotabilidade da interpretação. Se o valor "justiça", por exemplo, se exaurisse em um único
ato de interpretação e aplicação, o direito estaria enormemente prejudicado em sua identidade
cultural. Não poderia cumprir sua função de realizar justiça. O fato de as estimativas não se
exaurirem permite que o ato de conhecer e, portanto, de interpretar o mundo se renove. O
sujeito cognoscente poderá atribuir o valor "justo" para inúmeras outras decisões. Visto sob
esse ângulo, o ato de interpretar, de atribuir valores aos signos, pode ser inesgotável.
Paralelamente a inexauribilidade dos valores, a interpretação nos parece inesgotável, também
porque a significação não é extraída do texto, mas é construída pelo sujeito cognoscente, o
intérprete, cujos valores que compõem seu sistema de referência são sempre renovados, por
serem condicionados histórica e culturalmente.
(x) Atributividade: esta característica do valor enaltece o ato de
valoração. É o sujeito quem atribui qualidades aos objetos, de tal forma que "é uma relação
168
Op. cit., 2008, p. 178. 169
Ibid., p. 180. (destaque nosso). 170
Op. cit., 1946, p. 91.
65
entre o conhecimento e o objeto, tal que o sujeito, movido por uma necessidade, não se
comporta com indiferença, atribuindo-lhe qualidades positivas ou negativas."171
Renova-se, assim, a fala de que o sentido de um objeto não é dele
extraído, mas construído pelo exegeta. O sentido de "justo" não está no suporte físico da
sentença, mas na significação consensualmente atribuída a esses símbolos. Será tida como
"justa", se atender ao sentido de justiça presente no contexto, isto é, compartilhado pelos
utentes da linguagem jurídica.
(xi) Indefinibilidade: segundo leciona Hessen172
:
O conceito de 'valor' não pode rigorosamente definir-se. Pertence ao número
daqueles conceitos supremos, como os de 'sêr', 'existência', etc., que não
admitem definição. Tudo o que pode fazer-se a respeito dêles é simplesmente
tentar uma clarificação ou mostração do seu conteúdo. Assim a respeito do
conceito de valor.
O que pretendemos afirmar com essa característica apontada não é a
indefinibilidade do termo "valor", pois dissemos tratar-se de preferências por núcleos de
significação, mas do valor considerado enquanto tal. Afinal, que é justiça? Que é igualdade?
A resposta somente pode ser dada quando a estimativa ganha objetividade numa decisão
judicial, por exemplo.
A indefinibilidade dos valores não advém somente da necessidade de
elucidar-se o uso para a significação do termo. Não estamos nos referindo exclusivamente à
ambiguidade das palavras. É algo que vai além e decorre da natureza metafísica das
estimativas. O verbete "justiça"173
encontra a seguinte significação como preferencial: "1.
qualidade do que está em conformidade com o que é de direito; maneira de perceber, avaliar o
que é direito, justo".
A própria definição do dicionário aponta para uma qualidade, o que
remonta a necessidade de objetividade para a compreensão. Também faz menção ao justo, isto
é, volta ao ponto de partida.
Na interpretação do direito, o conceito de justiça bem demonstra essa
indefinibilidade. Faz-se justa uma decisão, ao considerar as partes com igualdade, como
171
Op. cit., 2008, p. 178-179. 172
Op. cit., 1946, p. 35. 173
HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, s.v.
justiça.
66
também o é aquela outra, que vê num dos polos da relação jurídica uma hipossuficiência
justificadora de favorecimento, proteção, como é o caso de micro e pequenas empresas
incentivadas e amparadas com forma de tributação simplificada. Isto comprova que não há
definições possíveis para os valores, que prescindam de sua aplicação de acordo com todas as
características acima descritas.
2.8 Valores, princípios e interpretação
Percorremos até aqui um caminho que nos permitiu concluir ser o
direito objeto cultural criação humana que tem por finalidade estabelecer padrões de conduta
e, dessa forma, realizar os valores historicamente presentes em determinada sociedade.
Corolário dessa reflexão, portanto, é o reconhecimento de que a norma jurídica porta valores
atribuídos pelo intérprete no processo de positivação do direito.
Porém, há valores que se mostram muito especiais para o legislador,
denotando forte carga axiológica, e que devem ser observados com total atenção pelo
intérprete/aplicador do direito. Estamos falando dos princípios. Relembramos, com o escopo
de corroborar a assertiva, que, ao analisarmos o aspecto sintático da linguagem jurídica,
descrevemos o direito como um sistema hierárquico de normas, no qual os princípios ocupam
posição de preeminência sobre todas as outras espécies normativas.
Com efeito, observa Paulo de Barros Carvalho174
:
As normas jurídicas estão sempre impregnadas de valor. Esse componente
axiológico, invariavelmente presente na comunicação normativa, experimenta
variações de intensidade de norma para norma, de tal sorte que existem preceitos
fortemente carregados de valor e que, em função de seu papel sintático no conjunto,
acabam exercendo significativa influência sobre grandes porções do ordenamento,
informando o vector de compreensão de múltiplos segmentos.
O autor, expoente do construtivismo lógico-semântico, no trecho
acima citado, refere-se aos princípios. Porém, em minudente, mas não exaustiva, análise do
emprego do vocábulo no universo jurídico, aponta quatro usos distintos do termo, a saber:
a) como norma jurídica de posição privilegiada e portadora de valor expressivo; b)
como norma jurídica de posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) como
valores insertos em regras jurídicas de posição privilegiada, mas considerados
independentemente das estruturas normativas; e d) como limite objetivo estipulado
174
Op. cit., 2010, p. 190.
67
em regra de forte hierarquia, tomado, porém, sem levar em conta a estrutura da
norma.175
Sob essa óptica, os princípios jurídicos podem significar norma-valor,
norma-limite-objetivo, valor ou limite objetivo176
. Optamos pelo emprego do termo como
"norma-valor" e "norma-limite-objetivo". Primeiro, por compreendermos ser o direito
somente composto por normas prescritivas de conduta que são construídas a partir dos
enunciados positivados177
. Dessa maneira, mesmo uma petição inicial que visa tão-somente
veicular um pedido, que poderá ser aceito ou não pelo magistrado, após o devido processo
legal, tem seu aspecto normativo. Constitui uma exigência do direito posto para o exercício da
competência jurisdicional e sua ausência implica a impossibilidade de decisão por parte do
magistrado178
, além, é claro, de sua constituição ser regulada por normas de direito
processual.
Outra razão, pela qual optamos pelo emprego da voz "princípios"
sempre como norma, seja norma-valor ou norma-limite-objetivo, é a premissa calcada na
Semiótica, segundo a qual não há construção de sentido no direito posto, sem que exista um
suporte físico. Na lição de Paulo de Barros Carvalho179
:
Sucede que as construções de sentido têm de partir da instância dos enunciados
lingüísticos, independentemente do número de formulações expressas que venham a
servir-lhe de fundamento. Haverá, então, uma forma direta e imediata de produzir
normas jurídicas; outra, indireta e mediata, mas sempre tomando um ponto de
referência a plataforma textual do direito posto.
Se assim o é, os princípios da segurança jurídica e da justiça, para nos
atermos aos exemplos, são construídos pelo exegeta a partir de várias estruturas normativas,
como as que concedem as garantias e os direitos individuais do art. 5º da Carta Magna, o que
reforça nossa opção pela significação de "princípio" como norma-valor e norma-limite-
objetivo.
175
Op. cit., 2010, p. 191. 176
TOMÉ, Fabiana Del Padre. Contribuições para a seguridade social à luz da Constituição Federal. 1. ed., 3.
tir. Curitiba: Juruá, 2004, p. 125. 177
Note-se que os enunciados prescritivos são suporte físico. Sem que o exegeta trilhe o percurso gerador de
sentido que culmina com a norma jurídica, não possuem significação. Daí a conclusão que o direito é um
conjunto de normas e não simplesmente de enunciados normativos. 178
Vide, por exemplo, artigos 128 e 282 do Código de Processo Civil. 179
Op. cit., 2008, p. 130.
68
A partir dessas digressões, podemos afirmar que os princípios, como
normas jurídicas fortemente impregnadas de valores, podem ser classificados de acordo com o
grau de objetividade.
Os princípios, enquanto norma-valor, trazem consigo a marca da
extrema subjetividade, encontrando-se, de forma implícita180
, no contexto do ordenamento
jurídico. Seus traços identificadores são exatamente os enumerados no tópico antecedente,
devendo ser analisados, portanto, no campo da axiologia. São construções normativas
realizadas a partir dos enunciados de direito positivo que não lhes fazem referência direta,
conceituando-os. Por serem valores, são indefiníveis, variando, com muita amplitude seu
conteúdo semântico. Assim se constituem os princípios da segurança jurídica e da justiça, por
exemplo, que podem ser construídos, tomando-se como base os enunciados do art. 150 da
Carta Magna, ou ainda, fundamentando-se no artigo 112 do Código Tributário Nacional,
dentre tantas outras possibilidades. Está no contexto dos utentes da linguagem jurídica a ideia
de que cabe ao direito realizar os valores "segurança jurídica" e "justiça", constituindo-se
papel do intérprete, ao construir a norma pautar-se por esses valores supremos.
A título de ilustração, citamos trecho de julgado do Superior Tribunal
de Justiça181
, Relator Ministro Luiz Fux, que relaciona, no caso concreto, a segurança jurídica
à prescrição. Nas breves palavras do julgador:
O conflito caracterizador da lide deve estabilizar-se após o decurso de determinado
tempo sem promoção da parte interessada pela via da prescrição, impondo segurança
jurídica aos litigantes, uma vez que a prescrição indefinida afronta aos princípios
informadores do sistema tributário.
Em outro julgado do mesmo Tribunal182
, relatado pelo Ministro
Benedito Gonçalves, equipara-se a segurança jurídica à autoridade da coisa julgada. Assim
afirma o Magistrado:
A violação a dispositivo de lei que propicia o manejo da ação rescisória, fundado no
art. 485, V, do CPC, pressupõe que a norma legal tenha sido ofendida na sua
180
Esclarecemos que todas as normas, como construção de sentido, fruto de interpretação dos textos de direito
positivo são implícitas. O que queremos dizer com a implicitude da norma-valor, que a distinguiria de uma
norma-limite objetivo, é que no texto do direito, em sentido estrito, não há um enunciado que faça uma
menção direta a tal estimativa. Não há uma definição no texto legal do que seja segurança-jurídica, justiça,
etc., apesar de serem valores presentes no ordenamento jurídico. 181
Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2009/0072772-1, Primeira Turma, publicado em 07/06/2010.
O objeto da lide é a prescrição de ação de execução fiscal. (destaques nossos). 182
Ação Rescisória 2009/0133141-5. Julgado publicado em 21/05/2010, cujo assunto é ação rescisória sobre
decisão transitada em julgado cuja matéria é a legitimidade de adicional de contribuição destinada ao
INCRA. (Destaques nossos).
69
literalidade pela decisão rescindenda, ou seja, é aquela teratológica que
consubstancia desprezo do sistema de normas pelo julgado rescindendo. Desse
modo, impede-se a utilização da ação rescisória para, por via transversa, perpetuar a
discussão sobre a matéria que foi decidida, de forma definitiva, por esta Corte
Superior, fazendo com que prevaleça, por isso, a segurança jurídica representada
pelo respeito à coisa julgada.
Por esse prisma, a norma-valor "segurança jurídica" ganha
objetividade e conteúdo semântico, no primeiro caso, na análise da prescrição e, no segundo,
na intangibilidade da coisa julgada, o que demonstra que os valores irradiam-se por todas as
normas jurídicas, mesmo na inexistência de um suporte físico que faça menção direta e literal
ao princípio. O conteúdo semântico será amplo e construído com um grau maior de
subjetividade, se comparado aos princípios que em si não são valores, mas tendem a realizá-
los em sua finalidade e possuem enunciados que os conceituam juridicamente.
Como norma-limite-objetivo, os princípios apresentam maior grau de
exteriorização, possuindo enunciados prescritivos que cercam, com sua expressão, a atividade
interpretativa. Como exemplo clássico, temos o princípio da anterioridade, que na seara do
direito tributário encontra assento no artigo 150, III, da Constituição da República, ou o da
legalidade, presente no inciso I, do mesmo dispositivo.
O princípio, visto como valor ou limite objetivo, porta uma
preferência do direito posto, da mais elevada hierarquia que se irradia por todo o ordenamento
jurídico. Dito com as palavras do Prof. Roque Antônio Carrazza183
:
Sendo o princípio, pois, a pedra de fecho do sistema ao qual pertence, desprezá-lo
equivale, no mais das vezes, a incidir em erronia inafastável e de efeitos bem
previsíveis: o completo esboroamento da construção intelectual, a exemplo, como
lembra Geraldo Ataliba, do que ocorreu na "Abóbada", de Alexandre Herculano.
Com efeito, apesar de ser essa a posição que nos parece a mais
apropriada para a interpretação do direito, há decisões de relevo nacional que acabam por
minimizar esse pressuposto de construção de sentido normativo. Como forma de bem ilustrar
essa situação, tomamos como paradigma a discussão sobre a prescritividade do Preâmbulo da
Constituição da República.
183
CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 37.
70
2.9 A função do Preâmbulo da Constituição da República para a interpretação do
direito posto
A interpretação dos enunciados normativos, para ser correta, deve
guardar estrita observância dos princípios que constam no ordenamento jurídico. Não nos
referimos somente aos de estatura constitucional, mas os que forçosamente permeiam todo o
ordenamento jurídico. Porém, para fins de estudos, elegemos normas-valor que se encontram
na Constituição Federal, pois, visto o direito como sistema de linguagem organizado
hierarquicamente, é forçoso reconhecer que tais princípios irão se irradiar por todo o
ordenamento jurídico.
Tomemos, assim, como exemplo, a decisão do Supremo Tribunal
Federal, na ADIN 2.076-5, Acre, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, segundo a qual, o
Preâmbulo da Constituição Federal, que porta valores como liberdade, segurança, bem-estar,
desenvolvimento, igualdade e justiça seria desprovido de relevância jurídica, pois "não se
situa no âmbito do direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do
constituinte"184
, servindo apenas como forma de proclamar ou exortar os princípios inscritos
na Carta185
.
Em virtude das premissas adotadas nesse trabalho, discordamos da
posição estampada no acórdão citado, cujo julgamento, nesse sentido, alcançou unanimidade
entre os Ministros da Corte Suprema. Entendemos ser o preâmbulo parte integrante da Carta
Magna por pertencer ao sistema de direito positivo. Isto é, trata-se de norma geral e
concreta186
que introduz o corpo da Constituição, cabendo a este reproduzir em detalhes os
valores naquele anunciados.
184
Palavras proferidas pelo Ministro Carlos Velloso, Relator da ADIN em seu voto, às fls. 226. 185
O Preâmbulo da Constituição da República promulgada em 05.10.1988 está assim enunciado: "Nós,
representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da
República Federativa do Brasil". 186
A norma geral e concreta é a responsável por introduzir outras normas no sistema. Em seu antecedente está
descrito acontecimento demarcado no tempo e espaço e a autoridade que o realizou. No consequente está o
exercício por certo sujeito competente para expedir norma jurídica, que se pretende por todos respeitada.
71
Sobre o assunto, ao sustentar a prescritividade do Preâmbulo da
Constituição da República, doutrina Paulo de Barros Carvalho187
que:
[O Preâmbulo] de todo modo, funciona como vetor valorativo, penetrando as demais
regras do sistema, impregnando-lhes fortemente em sua dimensão semântica. Por
isso mesmo é colocado no altiplano da Constituição. De lá, no lugar preciso de onde
começam todos os processos de positivação das normas jurídicas, irradiam-se
aqueles primados para os vários escalões da ordem legislada, até atingir as regras
terminais do sistema, timbrando os preceitos que ferem diretamente as condutas em
interferência intersubjetiva, com a força axiológica dos mandamentos
constitucionalmente consagrados.
Tomando por base o percurso gerador de sentido, é de se supor que no
próprio S1, ou sistema da literalidade textual, existam marcas dos princípios norteadores de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme determina o Preâmbulo da
Constituição da República. Todavia, caso ocorram incompatibilidades devido à composição
heterogênea das Casas Legislativas, fato esperado e bem-vindo numa sociedade democrática,
cabe ao exegeta/aplicador do direito modular a norma a ser construída com os valores que
iniciam o ordenamento jurídico. Assim, a significação dos enunciados prescritivos deve ser
escolhida (S2), articulada na forma de juízo implicacional(S3) e compatibilizada com o
sistema (S4), sempre em obediência às estimativas do legislador constituinte, que, de tão
valiosas, condensam os sentimentos com os quais teceram o ideal de Estado, exercendo o
Preâmbulo a função de contexto no qual as interpretações do direito ocorrem.
De outra maneira não poderíamos pensar, já que elegemos a premissa
segundo a qual, no sistema do direito positivo, somente existem normas, razão pela qual
tomamos o vocábulo "valor", ora como norma-valor, ora como norma-limite. Portanto, uma
vez que o Preâmbulo da Constituição da República inaugurou o ordenamento pelas mãos de
autoridade competente, de acordo com procedimento previsto pelo próprio sistema, trata-se de
norma válida, cuja função principal é a de prescrever condutas e não aconselhar politicamente
os intérpretes do direito.
Destacamos voto proferido pela Ministra Cármen Lúcia do Supremo
Tribunal Federal, Relatora no julgamento da ADIN nº 2.649-6, julgada em 2008 e que está em
consonância com o pensamento que expusemos. Ao argumentar, na defesa de seu ponto de
vista, a Ministra socorre-se dos valores da solidariedade, do bem-estar e da construção de uma
187
CARVALHO, Paulo de Barros. O Preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos. Revista
Direito GV, São Paulo. Vol. 6, n. 1, p. 295-312, jan.-jun. 2010, p. 302. O referido texto foi objeto de análise
no Grupo de Estudos coordenado pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, no decorrer do ano de 2009.
72
sociedade fraterna e sem preconceitos, afirmando a prescritividade do Preâmbulo da Carta
Magna. Nas suas palavras: "Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a
Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das
normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei nº 8.899/94."
Prossegue a Magistrada em sua construção hermenêutica sobre a
prescritividade do Preâmbulo, citando comentário sobre o assunto da lavra de José Afonso da
Silva, cujas palavras merecem ser relembradas:
O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados
valores supremos. 'Assegurar' tem, no contexto, função de garantia dogmático-
constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas
do seu 'exercício'. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o
objetivo de 'assegurar', tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em
favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de
destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdos
específicos.188
Portanto, neste segundo julgado, o Preâmbulo e os valores nele
presentes ganham a força da prescritividade, de forma a servirem como balizas para as
interpretações que se fizerem no ordenamento jurídico inaugurado pela Constituição da
República, promulgada em 05 de outubro de 1.988, com o que concordamos em gênero,
número e grau.
Em suma, os princípios, seja como norma-valor ou norma-limite-
objetivo, guardam vultosa relevância para a atividade de interpretar o direito. Impactam por
todo o ordenamento jurídico, comportando-se como guias para a construção de sentido
normativo.
Como já dissemos linhas acima, os princípios permeiam a
integralidade do ordenamento jurídico e estão presentes em todos os enunciados normativos,
constituindo-se os princípios constitucionais os de maior relevância, como decorrência lógica
da posição hierárquica que ocupam, ainda mais levando-se em conta o direito tributário, na
medida em que, por opção do legislador constituinte, o Sistema Tributário Nacional encontra
assento na Constituição da República. Todavia, consideramos ser desnecessária, para fins
desse trabalho, a análise descritiva de cada um dos princípios constitucionais.
188
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 22.
73
CAPÍTULO III – A IMPORTÂNCIA DOS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES
PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO: VALIDADE E
CORREÇÃO DA NORMA JURÍDICA
3.1 Ciência do direito e direito positivo: dois jogos de linguagem
Os jogos de linguagem caracterizam-se por suas regras e finalidades.
Em seu interior, as palavras possuem significados próprios, relacionando-se de maneira
particular, criando formas de vida ou realidades distintas189
. Utilizando-se do termo "sistema
de linguagem" como ideia sinônima ao conceito de jogos de linguagem, conforme visto no
capítulo anterior, podemos estabelecer a existência de dois sistemas distintos de linguagem
jurídica correspondentes à Ciência do Direito e ao direito positivo. Na concepção de Paulo de
Barros Carvalho190
, "São dois corpos de linguagem, dois discursos lingüísticos, cada qual
portador de um tipo de organização lógica e de funções semânticas e pragmáticas diversas."
A finalidade do direito positivo é estimular comportamentos com o
intuito de realizar valores. Decorrem desse emprego determinadas características de sua
linguagem que lhe são exclusivas e que a diferenciam do uso crítico-descritivo dos signos
pertencentes à Ciência do Direito.
3.1.1 Direito posto: normas válidas ou inválidas
A lógica que estrutura suas normas é a deôntica191
, ou estudo lógico-
formal dos conceitos normativos. Nessa perspectiva, a norma jurídica em sentido estrito192
é
vista como unidade mínima da linguagem do direito posto, uma proposição que contém
apenas o necessário para regular determinada conduta. É um juízo hipotético condicional, no
qual temos uma proposição antecedente que se liga a outra, denominada consequente, por
189
No § 23 de Investigações Filosóficas, p. 27 , Wittgenstein expõe a idéia da seguinte maneira: "Tenha
presente a variedade de jogos de linguagem nos seguintes exemplos, e em outros: ordenar, e agir segundo as
ordens, descrever um objeto pela aparência ou pelas suas medidas, produzir um objeto de acordo com uma
descrição (desenho), relatar um acontecimento [...]". 190
Op. cit., 2010, p. 33. 191
Conforme ECHAVE, Delia Teresa; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lógica, proposición y
norma. 7. reimp. Buenos Aires: Astrea, 2008, p. 120-124. 192
O termo "norma jurídica" é ambíguo. Pode denotar a norma jurídica em sentido amplo, isto é, o conteúdo
significativo atribuído ao direito posto. Quando acompanhada do qualificativo "em sentido estrito" refere-se
àquelas que possuem o sentido deôntico completo, vale dizer, trazem todos os elementos necessários para
delinear a regulação de conduta.
74
intermédio da vontade humana, responsável pela imputação do vínculo jurídico. Na lição de
Lourival Vilanova193
:
A norma jurídica, quer a norma primária, quer a secundária, são estruturas
condicionais. O que as distingue das estruturas de enunciados das leis naturais é a
incidência do operador 'dever-ser' sobre a relação de implicação. Sem a norma, a
relação entre A e B não se daria, realmente ou possivelmente.
A proposição antecedente descreve um fato de possível ocorrência
selecionado pelo legislador, de forma valorativa, para adentrar no universo jurídico. A
hipótese ou antecedente da norma não está adstrita aos valores de verdade ou falsidade, pois
seu objetivo não é conhecer o real, mas tão-somente tipificar um evento. Por sua vez, o
consequente da norma jurídica é responsável por prescrever as condutas intersubjetivas,
apresentando-se como proposição que veicula a relação entre dois ou mais sujeitos, que se
atêm à permissão, proibição ou obrigação de cumprir o comando.
Antecedente e consequente da norma jurídica são interligados por um
functor194
neutro interproposicional, o "dever-ser", também denominado "functor-de-functor".
O conectivo retrata a valoração efetuada pelo legislador, que as une como juízo condicional,
ou seja, ocorrendo o evento previsto na hipótese, deve realizar-se o disposto na tese. Da
mesma forma, no interior do consequente há a modalização valorativa do "dever-ser" que se
apresenta nas espécies de "proibido" (V), "permitido" (P) e "obrigatório" (O), ao referir-se à
conduta que se quer ver respeitada. Novamente nos servimos das explicações de Lourival
Vilanova:195
É a norma mesma, é o Direito positivo que institui o relacionamento entre o
descritor (hipótese) e o prescritor (tese). Agora, uma vez posta a relação, uma vez
normativamente constituída, a relação-de-implicação, como relação lógico-formal,
obedece às leis lógicas. [...] Assim sendo, tem-se functor deôntico com incidência
sobre a relação-de-implicação entre hipótese e tese e mais um functor deôntico no
interior da estrutura proposicional da tese. Ou em redução formal 'D(p→q)' [...]
Explicitando o interior de q, temos ' S' R S" ', onde R é a variável functoral [...],
cujos valores substituintes são as constantes deônticas 'permissão', 'proibição', e
'obrigação' […]
Assim sendo, temos condição de formalizar o quanto dito,
apresentando em simbolismo lógico a estrutura da norma jurídica: D[f→(S' R S")]. Este
enunciado lógico pode ser entendido da seguinte forma: "deve-ser que, dado o fato F, então se
193
VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2000, p. 96. (destaques do autor). 194
Conectivo lógico que une as duas proposições. 195
VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 93-95.
75
instale a relação jurídica R, entre os sujeitos S' e S"."196
Relação jurídica sempre irreflexiva,
diga-se de passagem, pela própria finalidade do direito que visa regular condutas
intersubjetivas.
Por outro giro, é possível discernir a existência da norma que
estabelece o dever, também denominada por Lourival Vilanova197
de primária e, ao lado
dela, outra, que, por sua vez, atribui consequências para o descumprimento desse dever.
Trata-se da norma sancionatória ou secundária. Dessa maneira, em caso de desobediência
da conduta determinada no consequente da norma jurídica primária, haverá a possibilidade
de a parte prejudicada requerer ao Estado-juiz a aplicação da sanção prevista pelo
ordenamento jurídico.
Podemos, então, formalizar a norma jurídica completa da seguinte
maneira: D{(p→q) v [p→-q)→S]}. Queremos afirmar com essa expressão o quanto segue:
"deve ser que na ocorrência do fato 'p' então se instale o conseqüente 'q', ou ainda, caso não se
verifique 'q' aplicar-se-á a sanção correspondente". Ambas as normas, primária e secundária,
são válidas simultaneamente, mas a aplicação de uma exclui a aplicação da outra, razão pela
qual utilizamos o disjuntor includente "v"198
.
Ressalvamos ser esta a estrutura da norma prescritiva de condutas
intersubjetivas presente no jogo de linguagem do direito posto, que varia apenas no aspecto
semântico, conforme o uso que é feito pela comunidade jurídica em determinado contexto
histórico-cultural199
. Em virtude da modalidade lógica que rege esse jogo de linguagem e de
sua finalidade, suas proposições não serão verdadeiras ou falsas, de acordo com o
desencadeamento do discurso normativo, mas válidas ou inválidas.
196
CARVALHO, op. cit., 2007, p. 20. 197
Conforme Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo (op. cit., p. 105). 198
Conforme Paulo de Barros Carvalho (op. cit., 2008, p. 139). 199
Em função da citada variedade semântica, Paulo de Barros Carvalho classifica as normas jurídicas em geral e
abstrata, geral e concreta, individual e abstrata e individual e concreta. Os termos "geral" e "individual"
referem-se aos sujeitos aos quais as normas são dirigidas. No primeiro caso, são indeterminados, no segundo
conhecidos. O termo "abstrata" designa a previsão de um evento que, se ocorrido e vertido em linguagem
competente, terá como efeito a instauração da relação jurídica presente no consequente normativo. A palavra
"concreta" refere-se ao evento ocorrido e vertido em linguagem competente. Da combinação desses
elementos teremos variedade de normas. Assim, por exemplo, a norma geral e abstrata prevê um evento que,
se ocorrido, em tese, a todos obriga. A norma individual e concreta certifica a ocorrência desse evento,
tratando-se de enunciado protocolar que contém a individualização dos sujeitos e o fato jurídico. A
classificação completa encontra-se em Direito Tributário, linguagem e método (op. cit., p. 127-131).
76
A validade é um conceito plurívoco e seu significado dependerá dos
critérios eleitos pelo cientista que a analisa200
. A validade é compreendida nesse trabalho,
conforme lições de Lourival Vilanova, ou seja, trata-se de relação de pertinencialidade que se
estabelece entre norma e sistema201
: "A validade (como reiteradamente sublinha Kelsen) é
existência [...] Norma não é válida per se, mas é válida porque tem relação de pertinência a
um dado sistema S."
A partir desse ponto de vista científico, para que uma norma jurídica
seja válida, deve ser introduzida no sistema por autoridade competente, conforme
procedimento estabelecido para esse fim. O controle que julgará se a autoridade que a
introduziu seria apta a fazê-lo e se o procedimento utilizado foi o prescrito em lei poderá ser
efetuado posteriormente, culminando, inclusive, em caso de inobservância desses requisitos,
com sua invalidade determinada pelo Poder Judiciário. Contudo, enquanto isso não ocorrer,
presume-se sua validade. Portanto, não se trata de uma qualidade da norma jurídica, como se
ela pudesse existir no sistema sem ser válida. Existência e validade no jogo de linguagem do
direito positivo são expressões sinônimas. A norma sempre será válida até posterior ato de
fala proveniente, em caráter definitivo, do Poder Judiciário202
.
Dissemos que a validade é um conceito construído pela Ciência do
Direito. Isso decorre em virtude do direito positivo não ter estipulado uma definição sobre o
instituto jurídico. Porém, é necessário relevar que a validade é critério que se aplica às normas
jurídicas no interior do jogo de linguagem do direito positivo. Somente normas jurídicas são
válidas ou inválidas. As proposições das ciências jurídicas são verdadeiras ou falsas, o que é o
mesmo que dizer que são corretas ou incorretas.
3.1.2 Ciência do Direito: proposições verdadeiras (corretas) ou falsas (incorretas)
No sistema crítico-descritivo da Ciência do Direito, cujo objeto é o
próprio direito posto, têm-se, de acordo com sua finalidade, características diferentes da
linguagem jurídica. Enquanto metalinguagem do direito posto, a lógica que rege as
200
Conforme MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2006, p.
168-171. O autor cita pesquisa de Daniel Mendonça, que, a partir do emprego do termo "validade", constata
quatro significações: (i) como obrigatoriedade; (ii) como aplicação; (iii) como pertinencialidade; e (iv) como
existência. 201
Op. cit., 2005, p. 32. (destaques do autor). 202
Conforme lições de Paulo de Barros Carvalho (op. cit., 2010, p. 82).
77
proposições desse sistema é denominada alética ou apofântica e, portanto, serão apreciadas de
acordo com sua "verdade" ou "falsidade". Não se trata aqui da correspondência entre a
proposição e a realidade, mas de relação entre duas linguagens, a que descreve e a que é
descrita. Portanto, uma proposição científica será verdadeira, se uma dada comunidade de
utentes considerar que houve descrição correta da linguagem-objeto. A estrutura formal da
proposição científica corresponde, portanto, a uma descrição configurando-se como "S (P"),
ou simplesmente, "S é P". Com a regra desse jogo de linguagem, temos a necessidade de
coerência do discurso científico, que, ao contrário do direito posto, não pode apresentar
contradições. Decorrência dessa característica são as leis do terceiro excluído, da identidade e
da não contradição203
, que devem ser observadas pelos sujeitos que partilham dessa específica
forma de vida.
É fundamental, para a solução do problema nuclear desse trabalho,
observar que o sistema de linguagem da Ciência do Direito não é simplesmente descritivo,
como se o sujeito fosse um mero retratista de uma realidade absoluta, que lhe entra aos olhos
como a claridade da luz. Em princípio, já há um obstáculo que infirma essa visão: a
impossibilidade de simplesmente descrever-se um objeto. Conforme nossas premissas, tanto o
sujeito, como o objeto são formados pela linguagem. O sujeito opta por aproximar-se do
fenômeno de certa maneira, de acordo com seu sistema de referência. Não se admite a
existência de "fato puro". Ao descrever um objeto, temos apenas uma visada sobre um de seus
aspectos. Não se trata de uma compreensão absoluta, mas sempre relativa. Tomemos como
exemplo o próprio direito. Podemos compreendê-lo do ponto de vista sociológico, histórico,
normativo, dogmático e assim por diante. São modos de aproximação, todos com o mesmo
grau de relevância, que colocam em evidência o aspecto que se quer compreender.
A relatividade que apontamos não advém somente do isolamento de
um dos ângulos do objeto, mas tem origem nos valores histórico-culturais do próprio
intérprete que opta, em determinado momento, por aproximar-se do fenômeno jurídico de
certa maneira. Isto é, ainda que se trate do mesmo tipo de aproximação, a Dogmática, por
exemplo, a variedade de pontos de vista é inegável. Comprovam a tese as inúmeras
203
Por "lei da identidade", podemos compreender que toda a proposição é equivalente a si mesma. Qualquer
variação de uso em determinado discurso científico deve ser elucidada. Por "lei do terceiro excluído",
conotamos que uma proposição, no mesmo discurso científico, somente pode ser verdadeira ou falsa. Não é
possível, por exemplo, afirmar que a linguagem cria e não cria a realidade. A "lei da não contradição"
estabelece que nenhuma proposição pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Conforme Lógica,
proposición y norma (ECHAVE; URQUIJO; GUIBOURG, op. cit., p. 83-87).
78
correntes científicas que descrevem o mesmo fenômeno204
. Portanto, inexiste o simples
descrever de um objeto como o direito. Sempre haverá o aspecto axiológico na
conformação da linguagem crítico-descritiva. Gregório Robles205
, destacando o direito
como objeto cultural, compreende ser
[…] impossível descrever qualquer fenômeno de cultura. O direito não é uma
realidade descritível, mas sim interpretável. A Dogmática não se limita a repetir
simplesmente o que diz a autoridade jurídica, especialmente o legislador. Toma
como ponto de partida a prescrição da autoridade, para, então, a partir dela, construir
o direito.
Lourival Vilanova206
afirma o caráter construtivo da Ciência do
Direito, dissociando-se, portanto, de um conceito meramente descritivo ou figurativo: "Tenha-
se ainda em conta que na obtenção dos conceitos fundamentais e dos princípios gerais do
sistema, a tarefa dogmática científica não é apenas re-construtiva do direito: é construtiva; não
é reprodutiva do objeto, mas produtiva."
Portanto, a Ciência do Direito interpreta o direito posto, seu objeto de
análise, e o compreende de acordo com suas próprias regras, estando condicionado o cientista
pelo horizonte histórico-cultural no qual sua produção científica é realizada. Assim, explica-
se, por exemplo, a razão pela qual os juristas das Escolas da Exegese e da Jurisprudência dos
Conceitos, predominantes no século XIX207
, partiram da existência de uma univocidade
semântica dos termos jurídicos, cabendo ao intérprete extrair o significado, a intenção que o
legislador quis imprimir ao texto (Escola da Exegese), ou ainda, esclarecer os conceitos
tecnicamente precisos utilizados pelo legislador (Jurisprudência dos Conceitos). O contexto
histórico-cultural de seus estudos era outro, anterior à revolução filosófica que inseriu a
linguagem como fundamento do conhecimento e da própria realidade.
204
Por exemplo, a questão da incidência das normas aos fatos. Há correntes dogmáticas que a admitem de forma
automática e infalível, isto é, ocorrido os fatos no sistema social a norma incide, sem a necessidade de
qualquer outro procedimento. Outras, como o construtivismo lógico-semântico, apontam a necessidade da
certificação do acontecimento em linguagem pelo direito tida como competente. Somente nesse momento é
que se daria a incidência da norma ao fato, que se constituiria, assim, como fato jurídico. 205
ROBLES, Gregório. Teoría del derecho. Fundamentos de teoría comunicacional del derecho. Vol. I, 2. ed.
Cizur Menor, Navarra: Thompson-Cívitas, 2006, p. 140. (fizemos tradução livre). 206
VILANOVA, Lourival. Norma jurídica-proposição jurídica. (Significação semiótica). Revista de Direito
Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano XV, n. 61, jan./mar. 1982, p. 14. 207
Conforme Marcelo Neves (op. cit. p. 197).
79
3.2 A intertextualidade
Observe-se, ainda, que os dois sistemas, o do direito positivo e o de
sua Ciência, não se encontram isolados, incomunicáveis. A Ciência do Direito faz parte da
pré-compreensão, ou sistema de referência, que permite a construção normativa no interior do
direito positivo. De acordo com nossas premissas, a técnica, aproximadamente comum,
desenvolvida a partir da Ciência do Direito, forma a comunidade jurídica. Os juízes,
advogados, promotores de justiça e demais protagonistas do processo judicial, por exemplo,
são formados pela Dogmática e, ao desenvolver seu ofício, interpretando os textos de direito
posto, utilizam-se também desse saber. A própria prática comprova essa tese.
Em caso concreto208
, afastou-se a incidência do ISS nas atividades de
franquia, apesar de contemplada na Lista anexa à Lei Complementar nº 116/03. O critério que
possibilitou a decisão foi justamente a classificação das obrigações, conforme
tradicionalmente é feita pelos juristas e o próprio conceito de franquia estudado pelo direito
privado. Reconheceu-se, assim, que "prestar serviços" é uma obrigação de fazer, que não seria
aplicável à atividade analisada, por ser ela um complexo de obrigações.
Nas sentenças proferidas pelos juízes, por exemplo, é bastante comum
a citação da Doutrina como argumento de autoridade capaz de auxiliar a justificativa das
decisões e o convencimento de seu acerto. A fundamentação de acórdão209
recente, proferido
pelo Superior Tribunal de Justiça, serve-se de lições de Paulo de Barros Carvalho sobre
isenção, o que auxilia a confirmar a assertiva:
O que o preceito da isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do
critério do antecedente ou do conseqüente, podendo a regra de isenção suprimir a
funcionalidade da regra-matriz tributária de oito maneiras distintas [...]. (Paulo de
Barros Carvalho, in 'Direito Tributário - Linguagem e Método', 2ª ed. Ed. Noeses,
São Paulo, 2008, pág. 521.
O mesmo é feito pelos advogados, com o objetivo de persuadir o juiz
da procedência de suas alegações. Tais argumentos compõem a linguagem técnica do direito
positivo, que se serve de conceitos científicos. Portanto, conforme observa Tácio Lacerda
208
STJ, 1ª Turma, REsp. nº 2007/0115791-3, Rel. Min. Luiz Fux. DJe. 14.09.2009. Está expresso na Ementa
que: "12. A mera inserção da operação de franquia no rol de serviços constantes da lista anexa à Lei
Complementar 116/2003 não possui o condão de transmudar a natureza jurídica complexa do instituto,
composto por um plexo indissociável de obrigação de dar, de fazer e de não fazer." 209
STJ, 1ª Turma, REsp. 1098981, Relator Min. Luiz Fux. DJe de 14/12/2010.
80
Gama210
, as normas jurídicas são tecidas sob a influência do diálogo entre o direito positivo e
a Ciência do Direito:
Os textos de direito positivo estão sempre em constante relação. Os sentidos
produzidos pela Ciência influenciam decisões no direito positivo, assim como as
disposições do direito positivo constituem o próprio objeto das considerações da
Ciência Jurídica. Dialogicamente, textos da Ciência e do direito positivo se
condicionam mutuamente [...]. E todos esses vínculos ocorrem sem que os dois
sistemas lingüísticos percam sua respectiva autonomia, como sistemas de linguagem
que cumprem papéis distintos.
O diálogo entre o direito positivo, a Ciência do Direito e outros jogos
de linguagem é um característica da interpretação do direito, que Paulo de Barros Carvalho
denomina "intertextualidade"211
:
A interpretação pressupõe a atividade que consiste em enfrentar o percurso gerador
de sentido, abrindo-se espaço para que o texto possa dialogar com outros textos, no
caminho da intertextualidade, em que se instala a conversação das mensagens com
outras mensagens, numa trajetória sem fim, expressão eloqüente da inesgotabilidade
das significações.
Conclui-se, portanto, que a Ciência do Direito é uma ciência, que,
devido à intensa influência que exerce sobre a comunidade de utentes da linguagem jurídica,
tem enorme importância prática, isto é, para a aplicação do direito tributário. É o que afirma
Gregório Robles212
ao observar que
[…] a dogmática jurídica ou Ciência do Direito é uma ciência prática. Essa ciência
não se limita a situar-se ante a realidade para contemplá-la, mas sim para construí-la
e, portanto, para criá-la, ainda que parcialmente. Portanto, a dogmática tem um
efeito gerador, produtor de normas.
No que diz respeito à interpretação do direito tributário, ou de
qualquer outro ramo, destacamos a importância da Ciência do Direito como um dos textos ou
elementos que compõem a pré-compreensão do intérprete e dos destinatários da mensagem
prescritiva, de forma a colaborar com o entendimento do que possa ser uma interpretação
plausível e não plausível perante determinado sistema jurídico.
210
Op. cit., p. 297. 211
CARVALHO, 2009, p. 57. 212
Op. cit., 2006, p. 143. (fizemos a tradução livre). Esclarecemos que o autor em questão considera o direito
como um fenômeno complexo, sendo um dos principais pontos de sua teoria a diferença entre ordenamento
(texto) e sistema (formado pela Ciência do Direito). A norma jurídica seria formada no plano do sistema,
portanto pela Ciência do Direito, que cumpriria um papel harmonizador do ordenamento, além da função
prática. Não nos utilizamos dessa concepção, posto que entendemos que a Ciência do Direito e o direito
positivo são dois planos ou sistemas distintos de linguagem, o que não nos impede de reconhecer o intenso
diálogo travado entre ambos e a função prática da ciência, na medida em que compõe o sistema de referência
do intérprete.
81
Portanto, da constatação das características dos jogos de linguagem do
direito positivo e de sua ciência, aliadas ao intenso diálogo que se estabelece entre ambos,
infere-se que a descrição crítica de pressupostos condicionantes à interpretação do direito
tributário auxilia na compreensão do direito no interior do sistema de linguagem
prescritivo213
.
3.3 Validade e correção da norma jurídica: dois pontos de vista distintos, mas não
isolados
Afirmar que uma norma jurídica foi construída sem a observância dos
pressupostos condicionantes da interpretação e, portanto, é incorreta não implica em sua
invalidade. Tratam-se de conceitos distintos que podem ser analisados, tomando-se a
referência do sistema de direito positivo, como decorrentes da postura do observador e do
participante.
Hart214
, ao tratar do conceito de obrigação, afirma existir dois aspectos
das regras, o externo e o interno. Para o jusfilósofo,
Quando um grupo social tem certas regras de conduta, este facto confere uma
oportunidade a muitos tipos de asserção intimamente relacionados, embora
diferentes; porque é possível estar preocupado com as regras, quer apenas como um
observador, que as não aceita ele próprio, quer como membro de um grupo que as
aceita e usa como guias de conduta. Podemos chamar-lhes os 'pontos de vista',
respectivamente 'interno' e 'externo'.
Associando as ideias de Hart ao direito tributário, Tácio Lacerda
Gama afirma que à Ciência do Direito corresponde a perspectiva do observador e aos órgãos
do sistema de direito positivo, a do participante. Nas suas palavras215
:
Os participantes seriam órgãos do sistema de direito positivo que interpretam e
aplicam normas, produzindo, assim, mais normas. Esses sujeitos positivam suas
interpretações. Já os observadores, diversamente, expõem aquilo que entendem da
leitura dos textos legais. Fixam conceitos, classificações e sugerem como deve ser
entendida uma norma. Ao fazer isso, produzem doutrina, ciência jurídica, não
direito positivo.
213
Essa inferência abrange todo e qualquer tema abordado pela Ciência do Direito Tributário, a exemplo de
Contribuições, provas, presunções etc. 214
HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 5. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2007, p. 98-101. 215
Op. cit., p. 128. (destaques nossos).
82
Dessa forma, os observadores estão vinculados às regras do jogo de
linguagem da Ciência, mas, com relação ao direito posto, influenciam nas decisões da
comunidade jurídica, entretanto seus enunciados não têm o poder de regular condutas.
Ninguém poderá deixar de recolher tributo em virtude de um parecer que considere a exação
inconstitucional. Consequência desse raciocínio é que a Doutrina, ao apreciar sua linguagem-
objeto, enuncia proposições que a considera "correta" ou "incorreta".
Por sua vez, os membros da comunidade jurídica, por serem
participantes do jogo de linguagem do direito posto, se voltam para a validade ou invalidade
da norma. Contudo, ressalte-se que apenas o Poder Judiciário tem a prerrogativa de emitir
enunciados vinculantes de forma definitiva, após o trânsito em julgado de suas sentenças. Os
demais membros da comunidade jurídica visam convencer a autoridade judicial competente,
da procedência de seus argumentos.
Nesse sentido, observamos que dentro do que denominamos
comunidade jurídica, formada por sujeitos que possuem treinamento na linguagem técnica do
direito posto, há uma subdivisão entre intérprete autêntico e não autêntico216
. Os primeiros são
os membros do Poder Judiciário que possuem a competência de emitir enunciados
prescritivos que vinculam as partes de forma definitiva. O subconjunto formado pelos não
autênticos compreende os demais membros da comunidade jurídica que buscam juízos de
validade sobre as construções normativas por eles realizadas.
Os juízos de correção da norma efetuados pelas ciências jurídicas são
importantes argumentos utilizados pelos participantes do sistema do direito posto, pois os
auxiliam na compreensão da linguagem jurídica, tendo em vista que entre esses jogos de
linguagem há intensa intertextualidade, conforme exposto. Nas considerações de Tathiane dos
Santos Piscitelli217
:
É evidente que o fato de a decisão poder ser qualificada como incorreta não resulta
na ausência do dever de cumpri-la, mas isso não afasta a importância de se
216
Para Hans Kelsen, "A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria
Direito." (2006, p. 394). No sentido que utilizamos, não encontram-se incluídas as autoridades
administrativas porque suas decisões não são alcançadas pelo trânsito em julgado. Note-se que, na ocorrência
de uma decisão administrativa ser favorável ao contribuinte, existirá falta de interesse em agir do órgão
tributante para provocar nova decisão do Poder Judiciário e não trânsito em julgado. 217
PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Os conceitos de direito privado como limites à interpretação de normas
tributárias: análise a partir dos conceitos de faturamento e receita. Congresso Nacional de Estudos
Tributários. Direito tributários e os conceitos de direito privado. PAULA JUNIOR, Aldo de et al. São Paulo:
Noeses, 2010, p. 1236.
83
reconhecer a existência de motivos jurídicos para criticá-la e, assim, construir
argumentos que afastem a produção de normas desse tipo no futuro.
Dessa forma, válido e correto é o julgado218
que excluiu a incidência
do ICMS sobre as atividades meramente preparatórias do serviço de comunicação, necessárias
para sua concretização, a exemplo da adesão e assinatura de tais serviços, apesar do texto do
Convênio ICMS nº 69/98219
.
Presume-se válida a norma construída pelo Tribunal por pertencer ao
sistema do direito posto, na medida em que foi introduzida por autoridade competente,
mediante procedimento processual previsto em lei. É correta, conforme juízo bastante
presente na Ciência do Direito. Roque Carrazza220
, por exemplo, em parecer citado pelo
Ministro Relator do julgado221
pondera:
O que estamos querendo expressar é que nenhuma dessas atividades-meio pode ser
havida, em si mesma, como serviço de comunicação. Todas, sem exceção, não
passam de condições para a execução deste mesmo serviço. Serviços
complementares que, em verdade, se voltam a atender à finalidade primordial do
contrato de prestação de serviços de comunicação, não podem ser considerados
isoladamente, para efeito de tributação por meio de ICMS. É que elas permitem a
fruição (ou a melhor fruição) dos serviços que ora se cogita. Sobremais, tributar a
atividade-meio, como se fosse a atividade-fim, vulnera os princípios da estrita
legalidade e da tipicidade fechada, que dão segurança jurídica aos contribuintes.
Segurança jurídica que, com seu corolário de proteção da confiança,
definitivamente bane o emprego da analogia in malam partem (cf. art. 108, § 1º, do
CTN).
Paulo de Barros Carvalho222
considera existir prestação de serviços de
comunicação, somente quando o emissor da mensagem toma os serviços de uma prestadora,
mediante remuneração, que, por sua vez, disponibiliza o canal apto para a transmissão da
mensagem e, nesse sentido, também afasta a possibilidade de incidência do ICMS nas
atividades-meio, a exemplo da que realizam os provedores de acesso à internet.
218
STJ, 1ª T., REsp. 402047, Relator Min. Humberto Gomes de Barros, D.J. de 09/12/2003. 219
Em sua Cláusula Primeira está disposto que "Os signatários firmam entendimento no sentido de que se
incluam na base de cálculo do ICMS incidentes sobre a prestação de serviços de comunicação os valores
cobrados a título de acesso, adesão, ativação, habilitação, disponibilidade, assinatura e utilização dos
serviços, bem assim, aqueles relativos a serviços suplementares e facilidades adicionais que otimizem ou
apliquem o processo de comunicação, independentemente da denominação que lhes seja dada." 220
Conforme CORAZZA, Edson Aurélio. ICMS sobre prestações de serviços de comunicação. São Paulo:
Quartier Latin, 2006, p. 87. (destaques do autor). 221
O que confirma o diálogo ou intertextualidade existente entre os jogos de linguagem do direito positivo e da
Ciência do Direito. 222
Conforme Direito Tributário, linguagem e método (2008, p. 657-666).
84
Portanto, uma norma jurídica será "correta" ou "incorreta", na medida
em que assim for considerada pelo jogo de linguagem da Ciência do Direito, e "válida" ou
"inválida", quando se tratar de juízo expresso no direito positivo.
85
CAPÍTULO IV – A REGULAÇÃO DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA NO
CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
4.1 As regras de interpretação presentes no Código Tributário Nacional
Rubens Gomes de Sousa223
, ao discorrer sobre a normativização das
soluções jurisprudenciais (súmulas), tece críticas sobre os dispositivos que visam regular a
interpretação no Código Tributário Nacional, por entender que são mecanismos tendentes a
dispensar a atividade intelectual de exegese da lei. Em seu entendimento:
Temos hoje uma tendência um tanto quanto exacerbada para se normativizar a
interpretação e com isto abolir a própria interpretação como atividade intelectual de
aplicação da lei. Em outras palavras, a interpretação se substitui ou se embute na
própria lei mediante a criação de uma segunda norma que interpreta a primeira.
De fato, o esforço tendente a normativizar a interpretação é visto em
nosso direito na atualidade, como confirma a possibilidade de efeito vinculante das súmulas
editadas pelo Supremo Tribunal Federal224
. Porém, não se trata de um dirigismo absoluto, que
transforme a atividade de exegese em mera subsunção lógica. Tais elementos norteadores,
assim como os demais enunciados que encontramos no direito positivo, para alcançar a
condição de norma jurídica apta a regular condutas intersubjetivas, necessitam que o sujeito
construa-lhes o sentido, conforme o uso observado pela comunidade jurídica em determinado
contexto histórico, valorativo e cultural. Após o exegeta atribuir-lhes significado e
compatibilizá-lo com o sistema225
, poderão as regras sobre a atividade interpretativa presentes
no ordenamento servir de parâmetro para o intérprete do direito tributário.
Dessa maneira, concluímos não ser possível abolir a interpretação por
veicular-se enunciados prescritivos que tenham por finalidade sua regulação. Contudo, são
textos que necessitam ser considerados pelo intérprete do direito tributário no percurso
gerador de sentido porque compõem a literalidade dessa área de regulação de condutas.
223
SOUSA, Rubens Gomes de. Normas de interpretação no Código Tributário Nacional. In: MORAES,
Bernardo Ribeiro de et al. Interpretação no Direito Tributário. São Paulo: EDUC/Saraiva, 1975, p. 368-369. 224
Conforme art. 103-A da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004. 225
Frisamos a compatibilização com o sistema por entendermos que uma correta construção de sentido
normativo deve percorrer percurso que permita juízo de sua constitucionalidade, o que não ocorre, por
exemplo, com o art. 111 do Código Tributário Nacional.
86
Carlos Maximiliano226
, já nos anos 20 do século passado, havia
tomado consciência da necessidade de interpretação dos dispositivos legais que, em princípio,
teriam a finalidade de regular a atividade exegética e, portanto, sob esse aspecto, em nada
difeririam as demais normas jurídicas. Para o autor,
As regras de Hermenêutica incluídas em um Código têm a mesma força compulsória
que outros preceitos ali consolidados, isto é, variável segundo a evolução; porquanto
devem ser interpretadas também de acordo com as condições sociais. Obrigatórias
em teoria, sofrem alterações sutis a sua aplicabilidade, à medida das necessidades e
conjunturas imprevistas e multímodas da prática e conforme a índole dos
dispositivos em cuja exegese se empregam.
Ricardo Lobo Torres227
, no mesmo sentido, critica os dispositivos
legais inseridos no Código Tributário Nacional que versam sobre o tema e ressalta a
necessidade de que sejam interpretados: "As normas sobre a interpretação e a integração do
Direito são ambíguas, insuficientes ou redundantes. Necessitam elas próprias de
interpretação."
Tathiane dos Santos Piscitelli228
, ao tratar das prescrições contidas no
Código Tributário Nacional, reforça a inexistência de um sentido contido no próprio texto e a
indispensabilidade de interpretação:
A eleição de tais normas como parâmetro de interpretação do direito tributário
somente é possível após a devida interpretação dos dispositivos e a fixação de seu
significado. Isso porque, antes disso, assim como todo o direito positivo, referidas
normas são textos desprovidos de significação que, destarte, necessitam ser
interpretados e cujo sentido será construído por um intérprete.
Portanto, os dispositivos inseridos no Código Tributário Nacional
sobre a interpretação devem trilhar percurso gerador de sentido, sempre dentro de um
contexto histórico, valorativo e cultural. Enquanto texto, em nada destoam das demais
normas. Após estabelecidos seus possíveis significados constituir-se-ão como normas
jurídicas aptas a vincular o intérprete.
226
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 80.
(destaque nosso). 227
TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tributário. 4. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006, p. 21. 228
PISCITELLI, op. cit., p. 47.
87
4.2 A aplicação das normas jurídicas tributárias: as leis interpretativas
O art. 106, I, do Código Tributário Nacional229
traz a figura da lei
interpretativa e permite sua aplicação a fato pretérito, sem que seja atribuída penalidade às
normas jurídicas construídas em desalinho com o sentido que pretende fixar aos dispositivos
interpretados. Estamos tratando de um texto introduzido no sistema com a suposta função
metalinguística230
de estabelecer como outro já existente deve ser compreendido.
Rubens Gomes de Sousa propugnava pela inexistência de enunciados
prescritivos meramente interpretativos. Na opinião do jurista, ao corrigirem dispositivos em
vigor, na medida em que supririam obscuridades ou omissões, conforme disposto no art. 1º,
§ 4º da Lei de Introdução ao Código Civil231
, constituir-se-iam como lei nova. Decorreria
desse entendimento a impossibilidade de conceder-se efeito retroativo aos dispositivos
denominados meramente interpretativos. Nas palavras do jurista232
:
Ora, a lei interpretativa é, ou pode ser entendida como, correção da lei interpretada,
pelo menos no sentido de sua complementação, porque terá reconhecido que a lei
interpretada carecia de esclarecimento por ser ou omissa, ou obscura, ou confusa,
ou, como dizia Beviláqua, 'hesitante'. Estas premissas pré-legais da lei interpretativa
já demonstram que é uma lei que visa suprir falhas da lei interpretada. Por
conseguinte, ela pode ser reduzida à correção da lei existente, de que fala a Lei de
Introdução, para pôr como norma que a lei que corrige outra considera-se lei nova.
'Ergo', não retroage, ao contrário do que dispõe o art. 106 do Código Tributário
Nacional.
Muito embora sob outros fundamentos, já que compartilhamos da
ideia de inexistência de clareza ou obscuridade na lei que bifurque a atividade do intérprete
em dedutiva ou interpretativa, concordamos com o jurista responsável pelo Anteprojeto do
Código Tributário Nacional. A lei interpretativa é lei nova e, portanto, não deve retroagir,
salvo para beneficiar o contribuinte quando dispuser sobre sanções233
.
A lei interpretativa em nada difere da suposta lei interpretada. Ambas
são textos que carecem de construção de sentido, que se dará no processo interpretativo
229
"Art. 106. A lei aplicar-se-á a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente
interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados." 230
A função metalinguística acontece no interior de um determinado discurso com o objetivo de esclarecer
determinados pontos. Conforme Direito tributário, linguagem e método (op. cit., p. 52-53). 231
Nas palavras do autor: "A Lei de Introdução, não obstante o seu nome incorreto, seria hoje o que chamamos
de Lei Complementar de caráter normativo, não limitada a um determinado ramo do direito, mas abrangente
de todos eles". (op. cit., p. 375). 232
Ibid., loc. cit. 233
Art. 150, III, 'a' da CF/88 e CTN, Art. 116, II.
88
realizado pelos utentes da linguagem jurídica. Constitui a lei interpretativa suporte físico ou
enunciado de norma que inova o sistema, ao tentar resolver incertezas advindas de
posicionamentos díspares adotados pelos aplicadores do direito, retirando sentidos possíveis
eventualmente dados às leis interpretadas.
Afirmando o caráter inovador da lei interpretativa e a impossibilidade
de sua retroatividade, leciona Pontes de Miranda234
que,
Nas democracias, com o princípio da irretroatividade da lei, a interpretação autêntica
ou nova lei, ou não tem outro prestígio que o de seu valor intrínseco, se o tem; é
interpretação como qualquer outra, sem qualquer peso a mais que lhe possa vir da
procedência: o corpo legislativo somente pode, hoje, fazer lei para o futuro,
ainda que a pretexto de interpretar lei feita.
Dessa maneira, compreendeu o Superior Tribunal de Justiça, ao
decidir pela irretroatividade do artigo 3º da Lei Complementar 118/05. O dispositivo foi
expressamente denominado pelo legislador como interpretativo do art. 168 do Código
Tributário Nacional e determinava como termo inicial do prazo de prescrição para ação de
repetição de indébito dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, a data do
pagamento antecipado e não a da homologação de seu lançamento235
. Por se tratar de
dispositivo interpretativo, a teor do art. 106, I, do Código Tributário Nacional, deveria
alcançar fatos já ocorridos, atribuindo-lhe eficácia retroativa.
Com efeito, não foi esse o entendimento da Corte Especial, por
considerar que a Lei Complementar 118/05 introduziu inovações no sistema, alterando os
sentidos possíveis dados ao art. 168, I, do Código Tributário Nacional. Consta do julgado236
que:
Sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito
tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de
tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no
art. 168 do CTN, tem início não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim
na data da homologação – expressa ou tácita – do lançamento. Segundo entende o
Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é
indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo
234
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi,
1970, p. XIII, conforme exposto em MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário
Nacional. Vol. II. São Paulo: Atlas, 2004, p. 166. 235
A redação do dispositivo da Lei Complementar 118/05 é o seguinte: "Art. 3º. Para efeito de interpretação do
inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do
crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do
pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei". 236
STJ, Corte Especial, AI nos EREsp nº 644.73, Relator Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 06/06/2007,
DJ 27/08/2007, p. 170.
89
art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início
o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a
repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador.
[...] O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados,
conferiu-lhes na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo
Judiciário. Ainda que defensável a 'interpretação' dada, não há como negar que
a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um
dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ,
intérprete e guardião da legislação federal.237
Confirma o julgado citado a teoria de que a lei interpretativa em nada
difere de uma lei nova. Ao sinalizar determinado sentido a ser obedecido pelo intérprete, em
detrimento de outros possíveis, inova o ordenamento jurídico e, portanto, somente poderá
retroagir para o benefício do contribuinte.
4.3 A aplicação das normas jurídicas tributárias: "fato gerador pendente" e "fato
gerador futuro"
Para o construtivismo lógico-semântico, como tentamos demonstrar
nos capítulos anteriores, a linguagem ocupa papel decisivo para o fenômeno jurídico. A
incidência normativa que movimenta o sistema e da qual depende a concreção do direito, está
atrelada a uma série de atos de fala que são comunicados pelas autoridades competentes aos
destinatários da norma238
. Sem essa contínua produção de linguagem não seria possível ao
direito realizar sua finalidade, consistente em estimular os jurisdicionados a agirem de acordo
com comportamentos tidos como valiosos pelo ordenamento jurídico.
Daí decorre que os eventos conotados na norma geral e abstrata
ganham concretude quando se tornam elementos perfeitamente individualizados em
enunciado denotativo, que declara a ocorrência do quanto previsto no mundo fenomênico e o
altera, por intermédio de sua versão em linguagem que o constitui para o direito posto como
fato jurídico. A respeito, Paulo de Barros Carvalho239
ministra a seguinte lição:
A passagem da norma geral e abstrata para a norma individual e concreta consiste,
exatamente, nessa redução à unidade: de classe com notas que se aplicariam a
infinitos indivíduos, nos critérios da hipótese (e também da conseqüência),
chegamos a classes com notas que correspondem a um, e somente um, elemento de
237
Destaques nossos. 238
Paulo de Barros Carvalho afirma que "Falar em incidência normativa, ou subsunção do fato à norma,
portanto, é descrever o processo comunicativo do direito, indicando os elementos participantes da mensagem
legislada." (2008, p. 170). 239
CARVALHO (2010, p. 148).
90
cada vez. Eis o fato concreto, relatando em linguagem um determinado
acontecimento do mundo.
De tal entendimento deriva a conclusão de que inexiste fato jurídico
sem linguagem. Dito de outra forma: não possuímos acesso direto aos eventos. Para que
conheçamos algo, sempre precisaremos de sua versão em linguagem considerada competente
pelas regras do jogo específico no qual participamos. Assim se dá também no direito. Para
que ele incida, os eventos previstos nas normas gerais e abstratas, ao sucederem enquanto
fatos sociais, recebem tratamento jurídico, isto é, adentram ao sistema por intermédio da
linguagem das provas.
Para fins de aplicação da legislação, outros conceitos do
construtivismo lógico-semântico necessitam ser introduzidos. Trata-se do "tempo do fato" e
"tempo no fato". O primeiro, "tempo do fato", refere-se ao momento no qual é enunciada,
pelo sujeito competente e de acordo com regras procedimentais, norma individual e concreta
que relata a ocorrência do quanto previsto no comando abstrato, constituindo, dessa maneira,
os elementos necessários para sua concreção. É a data, por exemplo, do auto de infração e
imposição de multa lavrado por autoridade administrativa competente, ou ainda, das
informações prestadas pelo contribuinte para fins de recolhimento dos tributos sujeitos ao
lançamento por homologação. Por outro lado, o "tempo no fato", também encontra-se no
enunciado protocolar e seu intuito é declarar quando ocorreu o evento. Trata-se da data em
que auferiu-se a renda, ou ainda, noutro exemplo, o momento em que houve a circulação da
mercadoria.
Portanto, o fato jurídico tributário declara a ocorrência de um evento
(tempo no fato) e constitui situação nova, perfeitamente individualizada, a ser regulada pelo
direito (tempo do fato), do que decorre sua natureza declaratória e constitutiva.
A partir da diferença que se faz entre "tempo do fato" e "tempo no
fato", podemos inferir quais regras devem ser aplicadas para a constituição do fato jurídico
tributário. Sob o ponto de vista do direito material, o exegeta deve tomar as disposições
vigentes por ocasião do sucesso do "tempo no fato". Para as disposições de natureza
instrumental, aplicamos as regras vigentes no "tempo do fato", conforme leitura que fazemos
dos artigos 1º e 6º da Lei de Introdução ao Código Civil e artigo 116 do Código Tributário
91
Nacional.240
Oportuna a constatação de que eventual norma já revogada no momento da
enunciação do "tempo do fato" poderá ser aplicada aos eventos ocorridos no instante temporal
que denominamos "tempo no fato", na medida em que se trata de norma válida e vigente para
o passado241
.
Essas palavras introdutórias servem de esteio para justificar nossa
interpretação do artigo 105 do Código Tributário Nacional. Segundo o dispositivo: "A
legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes,
assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos
termos do artigo 116."
Em nosso modo de compreender o fenômeno da interpretação e
aplicação do direito, somente haverá fato jurídico no momento em que o evento adentra ao
sistema com roupagem linguística apropriada, de acordo com as regras nele previstas,
procedendo a afirmação de que todo fato jurídico é instantâneo. Enquanto isso não ocorrer,
existirá um fato social ainda não alcançado pelo direito, na medida em que sua linguagem não
tem função prescritiva, isto é, as palavras que o relatam pertencem a outra forma de vida.
O intérprete do direito posto, ao se deparar com o fato social, o valora,
subsumindo-o à norma geral e abstrata. E, para que essa atividade seja conhecida pelo
destinatário que terá sua conduta regulada por aquele juízo, não pode cingir-se a uma
atividade mental. É imperioso que se produza um ato comunicativo segundo as regras do
direito, sendo esse o exato momento da constituição do fato jurídico tributário. Antes disso,
nada existe para o jogo de linguagem do direito.
Portanto, como se percebe, os conceitos de "fato gerador"242
pendente,
tido como aquele que, muito embora tenha sido iniciado, ainda não se completou e "fato
240
Observamos que para o construtivismo lógico-semântico a incidência e a aplicação do direito ocorrem no
mesmo momento, isto é, na formulação em linguagem competente para o direito de norma individual e
concreta. Essa é a razão de se trabalhar com os conceitos de "tempo no fato" e "tempo do fato" para fins de
eleger-se a lei que irá regular a conduta. 241
Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho: "Tenho para mim que a regra ab-rogada permanece válida no
sistema até que se cumpra o tempo de sua possível aplicação. [...] Com a regra ab-rogatória, corta-se a
vigência da norma por ela alcançada, de tal arte que não terá mais força para juridicizar os fatos que vierem a
ocorrer depois da ab-rogação. Continua, porém, vigente para casos anteriores, sendo-lhes perfeitamente
aplicável. (2007, p. 61). 242
A expressão "fato gerador" é vaga e ambígua, possuindo vários sentidos. Ora pode ser compreendida como
norma geral e abstrata, ora como norma individual e concreta, além de traduzir uma impropriedade, na
medida em que não é o fato que gera, ele sempre é gerado. Por essas razões, adotamos a expressão fato
jurídico tributário para nos referirmos ao antecedente da norma individual e concreta que resultará no
nascimento da obrigação tributária.
92
gerador futuro", ou não ocorrido, se tornam um contrassenso, constituindo-se em inescusável
mistura do plano jurídico com o plano social.
O conceito legal de "fato gerador" pendente e futuro, conforme
exposto no art. 105 do Código Tributário Nacional, tem como fundamento tese doutrinária
que considera a existência de fatos instantâneos e complexos ou "complexivos". Segundo
Fábio Fanucchi243
, para as exações com "fato gerador" instantâneo, a exemplo do IPI, que
incidiria na saída do bem tributável do estabelecimento industrializador, "A tributação se
verifica concomitantemente com o acontecimento econômico que torna manifesta a
capacidade contributiva do sujeito passivo".
Por outro lado, prossegue o renomado jurista244
: "Para os tributos de
fato gerador complexo, ainda existe a necessidade de fixação de um instante como de
consolidação dos elementos integrantes do fato gerador para que se marque, por esse instante,
a legislação em vigor, aplicável à obrigação tributária então completada."
O jurista toma como exemplo o imposto sobre a renda e proventos de
qualquer natureza e afirma que seu "fato gerador" seria complexo, por ser formado durante
todo o ano-base, não havendo expressa determinação do exato momento de sua ocorrência.
Todavia, preferimos a lição de Paulo de Barros Carvalho245
. Por
discriminar fato e evento, distingue o jurídico do social, permitindo ao exegeta aferir o exato
momento em que nasce o fato jurídico, conferindo maior segurança à aplicação do direito
tributário. Para o doutrinador246
:
Todos os acontecimentos que o sistema jurídico prevê, para a eles ligar certas e
determinadas conseqüências, têm importância apenas e tão somente quando se
realizam. Antes disso, e por mais próximos que estejam de sua concretização,
representam sucessos aos quais o direito se mostra indiferente, por não contemplá-
los em sua ordenação. [...] Os 'fatos geradores pendentes' são eventos jurídicos
tributários que não ocorreram no universo da conduta humana regrada pelo direito.
Poderão realizar-se ou não, ninguém o sabe. Acontecendo, efetivamente, terão
adquirido significação jurídica. Antes, porém, nenhuma importância podem espertar,
assemelhando-se, em tudo e por tudo, com os 'fatos geradores futuros'
Analisemos o imposto sobre a renda. Parte da doutrina e da
jurisprudência considera que o fato jurídico tributário da exação é continuado, ou seja, "a
243
FANUCCHI, Fábio. Curso de direito tributário brasileiro. 4 ed. São Paulo: Editora Resenha Tributária e
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, 1976, p. 150. 244
Ibid., p. 150. 245
CARVALHO, 2010, p. 125. 246
CARVALHO, 2007, p. 125.
93
partir do dia 1º de janeiro e até 31 de dezembro, ele poderia ser considerado um fato gerador
pendente"247
, o que o tornaria complexo. Todavia, há de se considerar que o direito elege um
exato momento para a apuração da existência de riqueza nova, isto é, o dia 31 de dezembro,
conforme consenso hoje existente em nossos Tribunais248
. Todos os outros fatos ocorridos
não importam para fins de tributação do imposto sobre a renda, exceto a situação desta data,
que se constituirá como o "tempo no fato" para fins de composição de fato jurídico tributário
que figure no antecedente de norma individual e concreta.
Em suma, no tocante à aplicação do direito tributário, entendemos que
o art. 105, do CTN, somente poderia referir-se a fatos jurídicos, estes sempre instantâneos. A
norma geral e abstrata em que o intérprete subsume os fatos com o intuito de alcançar a renda
nova, sob a óptica do direito material, será a vigente na ocasião da ocorrência do evento
(tempo no fato). Pelo prisma do direito instrumental, a norma geral e abstrata aplicada será a
que estiver em vigor no instante que o enunciado protocolar for introduzido no sistema
(tempo do fato).
4.4 Interpretação e integração do direito tributário
Compreende parte da doutrina, que a integração consiste no
preenchimento das lacunas ou incompletudes do ordenamento jurídico, entendidas estas como
a ausência de disposições expressas para regular determinado caso. Nessa visão, o intérprete,
ao se deparar com o vazio legislativo, cria o direito na atividade integrativa, ao invés de
meramente declará-lo ao extrair de um texto a vontade da lei ou do legislador, como se daria
no exercício interpretativo249
. Leciona Hugo de Brito Machado250
que,
Segundo a doutrina tradicional, a interpretação é atividade lógica pela qual se
determina o significado de uma norma jurídica. O intérprete não cria, não inova,
limitando-se a considerar o mandamento legal em toda sua plenitude, declarando-lhe
247
MACHADO, 2004, p. 158-159. 248
Conforme art. 83 do RIR (Decreto 300/99). A título de exemplo transcrevemos a seguinte Ementa:
"TRIBUTÁRIO. IRPF. RESTITUIÇÃO. CÁLCULO. Sendo o Imposto de Renda tributo com fato gerador
complexivo, apurado sempre no último dia de cada exercício, a maneira adequada de ser restituído o
indébito é tomando o montante retido no ano, corrigido monetariamente, e confrontando-o com o resultado
apurado na declaração de ajuste relativa ao período em comento. Realizada a compensação devida, eventual
saldo deve ser atualizado pela SELIC até o momento da execução. (TRF 4ª Região, AC 2006.71.00.027395-
3, Segunda Turma, Relator Eloy Bernst Justo. D.E 30/01/2008). (destaque nosso). 249
Nesse sentido, afirma Carlos Maximiliano: "Com prescrever ao juiz, ora implícita, ora explicitamente
(Código Civil, antiga Introdução, arts. 5º e 7º, hoje 3º e 4º), que, em determinados casos, recorra à equidade,
ou aos princípios gerais do Direito, de certo modo o elevam às funções de legislador […]". (2008, p. 51). 250
Op. cit., p. 213-214.
94
o significado e o alcance. Pode acontecer, porém, que o intérprete entenda não
existir uma regra jurídica para regular certa situação, e que, neste caso, é necessário
o recurso a um meio de integração do sistema jurídico que se mostra lacunoso.
Integração, portanto, é o meio de que se vale o aplicador da lei para tornar o sistema
jurídico inteiro, sem lacuna. Não é atividade de simples declaração do sentido da
norma, como a interpretação, mas atividade criadora, embora esse processo criativo
esteja diretamente vinculado a normas preexistentes.
Não nos parece, contudo, que o construtivismo lógico-semântico
compartilhe do critério da doutrina tradicional para distinguir interpretação de integração, isto
é, a ideia de atividade declarativa ou criadora. Relembramos existir discrímen crucial entre a
doutrina clássica e o método adotado para nossa pesquisa: a consciência de que a norma
jurídica apta a regular conduta não é extraída de um único enunciado prescritivo revelador da
vontade da lei ou do legislador; mas, sim, construída a partir de sua leitura, envolvendo outros
dispositivos no transcorrer do percurso gerador de sentido, não sendo provável, inclusive, a
identidade entre o texto que marcou o início da construção e a norma na sua integralidade. A
atividade do intérprete é realizada em contexto histórico-cultural no qual está imerso, não
configurando-se como o simples produto de mera subsunção lógica.
A diferença apontada nos permite vislumbrar a inexistência de uma
singela declaração da vontade da lei ou do legislador na atividade interpretativa ou, tampouco,
a ocorrência de atividade legislativa reservada à integração. Em ambas as situações o
intérprete trilha um processo que permite atribuir sentido a textos presentes no ordenamento.
Vistas a partir da necessidade de construção de sentido dos enunciados
de direito positivo, as atividades, em certa medida se confundem, conforme reconhece
Luciano Amaro251
, ao considerar que "o uso de instrumentos de integração pressupõe a
interpretação, para que se possa firmar a premissa (condicionante da integração) de que a lei é
lacunosa".
Além disso, os meios de integração que constam do direito posto
também são utilizados pelo exegeta, mesmo quando não se verifica a ausência de preceito que
se refira especificamente a determinada conduta. O sujeito/intérprete, para realizar sua
construção normativa, se fundará em raciocínios analógicos, buscando a semelhança entre
fatos e normas; também se pautará nos princípios que informam todo o ordenamento, por
constituírem valores que o direito pretende realizar.
251
Op. cit., p. 206.
95
Dessa maneira, em sentido amplo, podemos afirmar que a atividade
integrativa é expediente utilizado pelo exegeta para compreender o direito posto, tratando-se,
pois, de interpretação. Porém, apesar das coincidências entre ambas as atividades, num
esforço analítico, é possível vislumbrar diferença específica que justifique a existência dos
dois conceitos.
Para melhor explicar nosso raciocínio, tomamos como objeto de
análise a lista anexa à Lei Complementar 116/03. Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça
por sua taxatividade252
, ressalvando a hipótese de interpretações extensivas253
relacionadas à
vaguidade e ambiguidade de seus termos, mas que preservam uma relação de sinonímia entre
os vocábulos a serem interpretados.
Concluir-se pela impossibilidade de distinção entre a atividade
interpretativa, estabelecida como atribuição de sentido, e a integração analógica permitiria que
qualquer atividade semelhante e não sinônima às que constam da lista sofresse o impacto do
ISS. Bastaria justificar a interpretação feita em um dos itens da lista e argumentar pela
ambiguidade e vaguidade da linguagem que estaria, supostamente, preenchido o requisito da
legalidade. Não acreditamos ser admissível esse entendimento, afinal há sentidos possíveis e
não possíveis de um texto, conforme consenso advindo do uso da linguagem jurídica pela
comunidade de participantes.
Dito de outra maneira, se dentro das possibilidades de sentido de um
determinado texto que veicula o tributo não houver uma que contemple determinado evento
que se quer regular, necessitando o intérprete construir norma individual e concreta
fundamentado na semelhança com outros fatos regulados, ou ainda, exclusivamente em
princípios, estaremos diante de uma atividade integrativa.
Portanto, na integração o preceito específico está ausente. O exegeta,
para produzir a norma jurídica individual e concreta, de início não se depara com uma norma
252
Como exemplo, citamos julgamento do Resp 586739/MG, Segunda Turma, DJ 19/09/2005, p. 262, Rel. Min.
Castro Meira, cuja Ementa encontra-se assim enunciada: "TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS.
LISTA DE SERVIÇOS. TAXATIVIDADE. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. POSSIBILIDADE. 1.
Embora taxativa, em sua enumeração, a lista de serviços admite interpretação extensiva, dentro de cada item,
para permitir a incidência de ISS sobre serviços correlatos àqueles previstos expressamente. Precedentes do
STF e dessa Corte [...]". 253
Não concordamos com o conceito de "interpretação extensiva", que veicula ideia de extensão feita pelo
sujeito/intérprete de um sentido fixado no texto. Compreendemos que seu emprego deve ser utilizado apenas
para ressaltar a vaguidade e ambiguidade da linguagem jurídica, conforme vislumbramos no julgado citado.
96
geral e abstrata para subsumir o evento, estando obrigado a executar um esforço hermenêutico
ainda maior de análise e associação com outras normas do sistema.
Com efeito, vários enunciados prescritivos são necessários para a
construção da norma jurídica. Ainda que nos planos de significação dos enunciados (S2) e da
articulação do juízo hipotético-normativo (S3), o sujeito/intérprete permaneça unicamente no
texto do qual partiu para a construção de sentido (S1), precisará relacionar a norma obtida
com o sistema (S4). Nesse estádio, necessariamente, outros textos estarão atuando, ainda que
para confirmar a procedência da norma jurídica e o caminho trilhado pelo exegeta nos planos
anteriores. Na integração, contudo, esse percurso se torna mais árido justamente porque, numa
primeira análise, o plano da literalidade do direito, quando comparado ao fato, não permitiria
a subsunção. Será necessário ao exegeta maior esforço, que terá como único arrimo a
utilização de expedientes como a analogia, a equidade e os princípios, para justificar a
construção normativa em textos mais vagos e ambíguos, quando comparado com o evento.
Ricardo Lobo Torres, ao discorrer sobre o discrímen feito pelo
legislador do Código Tributário Nacional entre interpretação e integração, aponta o critério
distintivo entre esses dois institutos. Em suas palavras254
:
A grande diferença entre interpretação e integração, portanto, está em que, na
primeira, o intérprete visa estabelecer as premissas para o processo de aplicação
através do recurso à argumentação retórica, aos dados históricos e às valorizações
éticas e políticas, tudo dentro do sentido possível do texto; já na integração, o
aplicador se vale dos argumentos de ordem lógica, como a analogia e o argumento 'a
contrario', operando fora da possibilidade expressiva do texto da norma.
Apesar de considerarmos que, tanto na atividade integrativa como na
interpretação, o sujeito se vale de argumentos lógicos, retóricos e valorativos, concordamos
com o doutrinador, ao adotar como critério distintivo a possibilidade expressiva do texto da
norma. No ato de integrar ou no de interpretar o direito posto, o exegeta parte de textos,
contendo eles disposições expressas que permitem a subsunção do fato à norma, de forma
mais direta, como ocorre na interpretação, ou ainda, toma como ponto de partida outros
enunciados, mais vagos e ambíguos, com o intuito de integrar o sistema e regular o caso que
se apresenta. Nas duas circunstâncias necessitará construir a norma de forma sistemática,
tratando-se de uma única atividade, qual seja, atribuir sentido aos dispositivos de lei. O que
varia entre as atividades em análise é o grau de consenso sobre a possibilidade de sentido
atribuível ao texto. Na interpretação, a norma é construída mais facilmente, o exegeta se
254
Op. cit., p. 32. (destaques nossos).
97
depara já num primeiro momento com enunciados que lhe possibilitam a subsunção do fato,
muito embora se lhe possam atribuir diversos sentidos. Na integração, isso não ocorre de
início. A norma, produto da atividade integrativa, é justificada em textos ainda mais vagos e
ambíguos, que não podem ser associados especificamente ao fato que se apresenta.
Pois bem, vejamos trecho do seguinte acórdão que tomamos como
exemplo a ser analisado, a fim de melhor explicar nosso ponto de vista255
: "A taxa dos juros
de mora na repetição do indébito deve, por analogia e isonomia, ser igual à que incide sobre
os correspondentes débitos tributários estaduais ou municipais; e a taxa incidente sobre esses
débitos deve ser de 1% ao mês".
No plano da literalidade (S1), o intérprete do exemplo adotado,
detectou a falta de disposição expressa específica que indicasse qual a taxa de juros a ser
aplicada na repetição de indébito. Em momento seguinte, socorreu-se de outro texto (S1)
pertencente ao sistema, que regula a incidência de juros, porém, para os tributos devidos e a
partir desse segundo enunciado, percorrendo os demais planos do percurso gerador de sentido,
justificou sua construção em princípios do direito, mais especificamente a isonomia (art. 5º, II
e 150, I, da Constituição Federal), cumprindo a autoridade competente com sua obrigação de
regular a conduta.
Tomando-se o raciocínio interpretativo enquanto processo,
verificamos a prática de analogia, porquanto o sujeito se deparou com a ausência, em primeiro
momento, de preceito autorizador de incidência de juros que pudesse ser associada à conduta
imposta ao Fisco, consistente em devolver quantia paga indevidamente a título de tributo.
Porém, somente num primeiro instante, pois no próprio ordenamento havia disposições
aplicáveis a casos semelhantes, bem como princípios capazes de fundamentar a norma
jurídica. Assim, a norma foi construída a partir de um dispositivo literal que somente pôde ser
associado ao fato (juros de mora aplicados ao valor indevidamente pago pelo contribuinte) por
um esforço interpretativo maior, justificando-se a decisão em outros enunciados, inclusive os
que veiculam princípios jurídicos, como a isonomia.
255
STJ, 2ª Turma, Recurso Especial nº 895180/PR, Relator Ministro Humberto Martins. Data de publicação:
30/09/2010. Nos autos, discute-se qual o termo inicial e a taxa de juros a ser aplicada na ação de repetição de
indébito de contribuições previdenciárias.
98
Os doutrinadores comumente justificam a necessidade de integração
pautados na ideia de lacuna do ordenamento jurídico256
. Contudo, de acordo com nosso
pensamento, toda a construção normativa deve ser amparada em um enunciado prescritivo
pertencente ao sistema, devido ao princípio da legalidade (art. 5º, II e 150, I, da Constituição
Federal). Por esse prisma, a ideia de lacuna fica desde o início enfraquecida, na medida em
que o intérprete não está cingido a um único texto cuja expressão esteja especificamente
relacionada ao caso que se pretende regular, podendo fundamentar a norma em várias
disposições do ordenamento. Isto é, sua construção normativa sempre estará pautada em um
enunciado prescritivo com menor ou maior grau de vaguidade a depender da atividade
interpretativa ou integrativa.
Essas digressões justificam o entendimento que, sob o ponto de vista
exclusivamente lógico inexistiria lacuna a ser preenchida. O sujeito/intérprete, tanto na
interpretação como na atividade integrativa, precisará fundamentar a norma jurídica em
enunciados que compõem a estrutura do sistema. Estas, por sua vez, são movimentadas no
sentido de atribuir à conduta uma permissão P(p), obrigação O(p) ou vedação V(p). A
completude lógica do ordenamento é explicada por Lourival Vilanova257
:
Essa pretensão de exaustividade com que o sistema abrangeria qualquer conduta
possível, sendo completo, porque nenhuma conduta restaria deonticamente neutra,
decorreria do ser mesmo do deôntico, da estrutura lógica e ontológica do Direito. O
universo-da-conduta, que é ocorrência tempo-espacial, está, face a um sistema de
normas, com seu âmbito-de-validade temporal e espacial, suficientemente repartido
em conduta obrigatória, em conduta proibida ou vedada e em conduta permitida [...].
Empiricamente, confirmamos a tese do construtivismo lógico-
semântico consistente na completude sintática do ordenamento jurídico, pelo princípio da
vedação ao "non liquet", estabelecido no artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil, que
obriga a autoridade competente decidir o caso, mesmo quando a lei for omissa, utilizando-se
da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito. O comando é reiterado no artigo
108 do Código Tributário Nacional. Compreendemos, assim, que, caso a jurisdição258
seja
256
Unicamente a título de exemplo, citamos Ives Gandra da Silva Martins, que, ao comentar o artigo 108 do
Código Tributário Nacional, afirma que, "Em verdade, no decorrer do estudo, ligamos a 'ausência de
disposição expressa' ao problema da lacuna, aliás dos mais tormentosos, inclusive no direito comparado".
(MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários ao Código Tributário Nacional. Vol. 2. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 111). 257
Op. cit., 2005, p. 204. (destaques do autor). 258
Por "jurisdição", entendemos o dever do Estado de dizer o direito, não se tratando somente de atribuição
conferida ao Poder Judiciário, mas a toda autoridade competente, como é o caso no direito tributário, dos
tribunais administrativos. Nesse sentido, CONRADO, Paulo César. Processo Tributário. São Paulo: Quartier
99
provocada, a autoridade competente terá que movimentar o direito posto para emitir comando
proibindo, permitindo ou obrigando determinada conduta debatida no processo. Portanto, a
inexistência de lacunas, sob o ponto de vista exclusivamente sintático, nos parece uma
exigência do próprio sistema. Trata-se de uma regra que rege o jogo de linguagem do direito,
ao modo de dizer de Wittgenstein.
Todavia, semanticamente o ordenamento é aberto e, portanto,
completível. Primeiramente, porque a aplicação do direito não se dá de forma automática. As
hipóteses previstas pelo legislador necessitam ser interpretadas e individualizadas e, nesse
sentido, são preenchidas pelo sujeito/aplicador do direito, que se depara com a vaguidade e a
ambiguidade dos preceitos normativos. Dessa forma, os intérpretes introduzem novos
significados que serão aceitos ou rechaçados pela comunidade dos utentes da linguagem
jurídica. Em segundo lugar, não estamos diante de um sistema que a priori tudo previu nas
hipóteses normativas. O aspecto social é sempre muito dinâmico, encontrando-se em
constante estado de mutação, o que desafia com frequência os aplicadores do direito a
apresentar soluções jurídicas antes não necessárias. Nas lições de Vilanova259
:
Se o órgão julgador inova algo, mesmo quando aplica norma geral preexistente, se
cria, habilitado pelo próprio ordenamento, norma individual para o caso, sem arrimo
em norma substantiva geral prévia (nunca sem norma geral adjetiva e sem norma-
de-competência: é juiz em virtude de norma-de-competência e atua com normas
processuais), então, o Direito, como todo, como totalidade, por assim dizer, em
movimento, em rigor é incompleto, mas potencialmente integrável, tem
completabilidade.
A assertiva da completabilidade do ordenamento pode ser comprovada
no direito posto. A Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 4º e o artigo 108 do Código
Tributário Nacional, ao mesmo tempo em que não admite a negativa de prestação
jurisdicional, determina à autoridade competente ao aplicar a lei, em caso de ausência de
disposição expressa, a utilização da analogia, dos princípios e da equidade, que configuram-se
como instrumentos de integração, isto é, de completabilidade do sistema.
De acordo com nossa perspectiva, somente dessa forma poderíamos
explicar a ideia de lacuna. Vale dizer, não se trata de simples ausência de preceito específico
apto a regular dada conduta. É necessário ir além e unir o denominado "vazio legislativo" à
ideia da imprecisão característica da linguagem que gera incertezas na aplicação do direito.
Latin, 2004, p. 35. O autor fala de dever estatal predominantemente cometido ao Poder judiciário,
amenizando a ideia de exclusividade. 259
Op. cit., 2005, p. 219.
100
Isto é, sempre deverão existir enunciados prescritivos que suportam a norma jurídica,
evidenciando a inexistência de vazio legislativo, do ponto de vista exclusivamente sintático.
Porém, a vaguidade e a ambiguidade que se encontram potencialmente presentes em todas as
palavras tornam o sistema completível e, portanto, lacunoso. Podemos notar a assertiva na
maior facilidade, ou ainda, na impossibilidade de associação entre o enunciado e dado
comportamento260
, que sucede em algumas circunstâncias. Por outro lado, se o intérprete não
conseguir justificar sua decisão num enunciado presente no ordenamento jurídico não há que
se falar em lacuna, mas de decisão arbitrária que tende a ser invalidada pelos mecanismos
presentes no ordenamento jurídico em virtude da inobservância do princípio da legalidade.
4.5 A inexistência de hierarquia e taxatividade na aplicação do artigo 108 do Código
Tributário Nacional
O legislador, no artigo 108 e incisos do Código Tributário Nacional,
pretendeu veicular de forma hierárquica e taxativa os meios de preenchimento das lacunas261
.
Rubens Gomes de Sousa262
, ao comentar o dispositivo citado, leciona que, diferentemente do
artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil, o dispositivo em tela fixa uma ordem a ser
observada: "Este é o ponto importante: 'na ordem indicada'. [...] Se ele fixa uma ordem de
prioridades, deve-se inferir que a sua enumeração é taxativa. Do contrário, não haveria razão
para fixar precedências."
Tomando-se como correto tal raciocínio, o intérprete, ao lidar com as
lacunas da legislação, teria que, primeiramente, servir-se da analogia e, somente após, dos
princípios tributários e demais expedientes. Porém, não vislumbramos como hierarquizar, de
forma taxativa, a atividade integrativa. Para construir a norma apta a regular a conduta, o
intérprete se utilizará de todos os expedientes que se fizerem possíveis e necessários, de modo
sistemático. No exemplo acima citado, o Ministro não poderia solucionar o caso aplicando a
mesma taxa de juros de mora para o indébito tributário que incide sobre o inadimplemento do
contribuinte, utilizando-se somente de analogia, sem observar os princípios, pois justamente a
isonomia é que fundamenta e permite sua decisão. Por outro lado, em situação hipotética que
260
A associação direta da qual falamos se dá entre linguagens. De um lado, a linguagem da norma; de outro, a
dos fatos. 261
"Art. 108. Na ausência de disposição expressa a autoridade competente para aplicar a legislação tributária
utilizará, sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais do direito tributário;
III – os princípios gerais do direito público; IV – a eqüidade." (destaque nosso). 262
Op. cit., p. 376.
101
foge ao exemplo dado, o julgador, não poderia deixar de observar um princípio, privilegiando
a analogia, mesmo que essa tenha preeminência no enunciado do artigo 108 do Código
Tributário Nacional.
Paulo de Barros Carvalho263
, ao tratar da interpretação no direito
tributário positivo, assim leciona:
O art. 108 arrola quatro itens que serão sucessivamente aplicados pela
autoridade competente, na ausência de disposição expressa da lei interpretada. O
preceito tem endereço certo: a autoridade competente para aplicar a legislação
tributária, seja ele o funcionário da Fazenda, seja o órgão judicial que preside o
feito. Na verdade, qualquer deles sentir-se-á embaraçado ao ter de empregar a
analogia sem levar em consideração os princípios gerais de direito tributário, os
princípios gerais de direito público e a equidade. E, da mesma forma, ficarão
perplexos ao lançar mão dos outros sem ligá-los aos demais itens. Tudo porque
se esqueceu o legislador do Código que essa atividade é complexa, alimentando-
se de todos os recursos disponíveis no sistema, que agem simultaneamente sobre
o espírito do exegeta.
No mesmo sentido, as palavras de Luciano Amaro264
:
A hierarquização, à qual o Código Tributário Nacional quer subordinar os
instrumentos de integração, é inaceitável, porquanto pode ensejar equívocos de
quem, desatentamente, se ponha a aplicar de modo mecânico o preceito codificado.
Parece indiscutível que, se o emprego da analogia não se adequar à inteligência que
resulta da aplicação de um princípio, a prevalência há de ser deste, e não da analogia
(embora esta encabece o rol do art. 108).
Portanto, concluímos pela impossibilidade de interpretar-se
literalmente o artigo 108 e incisos do Código Tributário Nacional, refutando a ideia de
taxatividade e hierarquização dos instrumentos integrativos que nele constam. O exegeta parte
dos textos de direito e constrói seu sentido numa visão sistemática, de acordo com os usos em
determinado contexto jurídico, o que se coaduna com os pressupostos para a interpretação do
direito tributário que apontamos.
4.6 A vedação ao uso da analogia para criação de tributo
A analogia é conceito jurídico utilizado pelo artigo 108 do Código
Tributário Nacional com a finalidade de suprir as denominadas lacunas, entendidas estas
como a ausência de texto que se refira especificamente à regulação de determinada conduta, o
que em nossa óptica mantém estreita relação com a potencial vaguidade e ambiguidade das
263
Op. cit., 2010, p. 135. 264
Op. cit., p. 210.
102
palavras. O intérprete, nessas situações, terá que acentuar seu esforço, procurando sustentar
uma possível construção normativa a partir de outros textos do ordenamento, que não
permitem fazer alusão ao evento específico, mas que com ele guardam pertinência.
Para melhor compreendermos a analogia no direito tributário,
servimo-nos, primeiramente, de uma explicação lógica feita por Irving M. Copi, que parece
esclarecer a estrutura desse raciocínio. Para o autor265
, "Traçar uma analogia entre duas ou
mais entidades é indicar um ou mais aspectos em que elas são semelhantes".
Prossegue em suas lições266
discorrendo sobre argumentação
analógica:
Esquematicamente, se 'a', 'b', 'c', e 'd' forem quaisquer entidades, e 'P', 'Q' e 'R' forem
quaisquer propriedades ou 'aspectos', um argumento analógico poderá ser
representado da seguinte forma:
'a', 'b', 'c', 'd' têm todos as propriedades P e Q.
'a', 'b', 'c' têm todos a propriedade R.
Portanto, 'd' tem a propriedade R.
Na utilização da analogia para regular os juros na repetição de
indébito, por exemplo, pudemos inferir que a semelhança de que fala Copi encontrava-se nas
partes (Fisco e contribuinte) e na situação de ambas possuírem uma dívida de natureza
tributária. Se ao crédito tributário, por disposição legal, se aplica juros de mora de 1% ao mês,
e se com relação ao débito do Fisco para o contribuinte não há dispositivo específico, tendo
em vista as semelhanças apontadas, o mesmo índice deve ser eleito, em virtude do princípio
da igualdade.
Portanto, ao decidir utilizando-se da analogia, o sujeito/intérprete
aplica a um fato (F1) não regulado por um preceito específico, uma norma geral e abstrata
(N2) que, em tese, disciplinaria somente outro fato (F2), que guarda semelhança relevante
com o primeiro. Por relevante, consideramos a semelhança entre os fatos que tenha sido a
razão de decidir pela aplicação da norma (N2) ao fato (F2).
Sydnei Sanches267
, ao lecionar sobre o tema, bem esclarece a analogia.
Para o jurista,
265
COPI, Irving M. Introdução à lógica. Tradução de Álvaro Cabral. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 315. 266
Op. cit., p. 315.
103
Analogia consiste em aplicar a uma hipótese, não prevista especialmente em lei,
disposição relativa a caso semelhante. Pressupõe semelhança de relações. Mas o
recurso à analogia exige a concordância dos seguintes requisitos:
a) é indispensável que o fato considerado [...] tenha sido tratado [...] especificamente
pelo legislador;
b) este, todavia, regulou a situação que apresenta certo ponto comum de contato,
certa coincidência ou semelhança com a não regulada;
c) a regra adotada pelo legislador para a situação regulada, levou em conta,
sobretudo, aquele mesmo ponto comum, de coincidência ou semelhança, com a
situação não regulada (em suma, a 'ratio iuris' deve ser a mesma para ambas as
situações).
Lourival Vilanova268
, nesse sentido, afirma que "A semelhança que
funda o recurso à analogia não é algo meramente factual: é o dado-de-fato juridicamente
qualificado como semelhante."
Das lições dos juristas, destacamos a necessidade de que o perfil de
semelhança, que autoriza a integração analógica, seja correspondente à razão de decidir
ensejou a aplicação da norma ao fato regulado. Isto é, não se trata de qualquer ponto em
comum. Segundo Oswaldo de Moraes269
, com base em François Gény, "Constitui decorrência
da necessidade de igualdade jurídica em virtude da qual as mesmas situações de fato
acarretam as mesmas conseqüências jurídicas".
No exemplo que utilizamos, corresponderia à existência de uma
dívida tributária por parte do contribuinte (situação regulada) e um débito do fisco de natureza
tributária, cuja regulação específica inexistia no ordenamento. Como se percebe, o que motiva
a aplicação da norma a ambos os fatos é a mesma situação (existência de débito), que levaria
à mesma consequência, qual seja, a aplicação de juros de mora em ambos os casos, e não
somente a favor do fisco.
O tema da analogia no direito tributário traz controvérsias, tendo em
vista a vedação contida no § 1º, do artigo 108, do Código Tributário Nacional, consistente na
impossibilidade de seu uso para criar tributo não previsto em lei, que está em consonância
com o princípio da legalidade insculpido nos artigos 5º, II e 150, I, da Constituição da
República.
267
SANCHES, Sydney. Os contratos atípicos no campo do direito privado. Diário do Comércio & Indústria.
coluna Legislação e Tribunais, 06 e 07 abr. 1988, apud CASSONE, Vittorio. Interpretação no direito
tributário. Teoria e Prática. São Paulo: Atlas, 2004, p. 390. 268
Op. cit., 2005, p. 218. 269
MORAES, Oswaldo de. A analogia no direito tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965, p. 58.
104
Porém, antes de abordarmos a vedação ao uso da analogia para
introduzir-se novo tributo no sistema, necessário se faz estabelecer as diferenças entre esse
conceito e o da interpretação extensiva, que são muito próximos e podem acarretar certa
confusão ao exegeta. Tomando como critério dispositivo que se refira especificamente à
conduta, verificamos sua inexistência na analogia. O intérprete, nessas situações, terá que
justificar sua construção normativa a partir de textos mais vagos e ambíguos, presentes no
ordenamento. Por outro lado, na interpretação extensiva, o significado da norma jurídica pode
ser construído a partir de um texto que se refira especificamente ao comportamento, nos
lindes de sua vagueza e ambiguidade.
Oswaldo Moraes270
distingue duas espécies de analogia: por extensão
e por compreensão. Leciona que
A primeira [analogia por extensão], partindo de um texto de lei, cria uma norma
jurídica nova e a aplica a uma situação diferente da prevista na lei; a segunda é a
que, partindo de um texto de lei, faz incluir nêle as situações análogas, embora não
expressamente referidas no texto.
Portanto, a denominada analogia por extensão, ou simplesmente
analogia, como hodiernamente denominada, enquanto método integrativo, não é apta, em
virtude do princípio da legalidade, a criar tributo novo, sem dispositivo legal específico para a
hipótese. É vedado seu uso em nosso ordenamento para essa finalidade, conforme disposição
expressa do artigo 108, § 1º, do Código Tributário Nacional. Por sua vez, a analogia por
compreensão, também denominada interpretação extensiva, permaneceria nos limites de
significação do texto, nada criando de novo.
No mesmo sentido são os comentários de Leandro Paulsen271
:
Não se pode confundir a analogia com a chamada interpretação extensiva. Na
analogia, há integração da legislação tributária mediante a aplicação da lei a situação
de fato nela não prevista, embora semelhante àquela à qual a lei expressamente se
refere; na interpretação extensiva, não há integração da legislação tributária, pois se
trabalha dentro dos lindes da sua incidência.
Para fins de análise e melhor compreensão do tema, partimos da regra-
matriz de incidência tributária do ISS. Teremos em sua hipótese ou antecedente evento
caracterizador de prestação de serviço consubstanciado numa obrigação de fazer, que, em
regra, vem previsto na lista anexa à Lei Complementar 116/03. O legislador, ao enunciar os
270
Op. cit., p. 63. 271
Op. cit., p. 868.
105
tópicos que compõem a lista, recorrentemente se refere à incidência da exação aos congêneres
de determinada atividade.
O vocábulo "congênere" possui nos léxicos272
o seguinte significado
como mais usual: "que é do mesmo gênero, espécie, tipo, classe, modelo, função etc. (que
outro); similar, congenérico [...]".
Ao distribuirmos os conceitos em gêneros e espécies, estamos
classificando-os de acordo com critérios eleitos que conotam determinadas características. A
regra-matriz do ISS adota como critério material da hipótese de incidência comportamento
consistente em "prestar serviços". Podemos entender que tal atividade conota, isto é, traz as
características de um gênero. Por sua vez, a Lista de Serviços aponta, denota, quais seriam
esses serviços para fins de evitar conflitos de competência e limitar o poder de tributar. Ao
denotar tais serviços utiliza-se da expressão "congênere". Isto é, novamente cria um gênero,
um conjunto com elementos que possuam características fundamentais semelhantes.
Contudo, não estamos a tratar daquela semelhança justificadora da
analogia, pois, se assim o fosse, estaríamos a criar tributo novo, sem fundamento em regra-
matriz de incidência, desrespeitando, assim, o princípio da legalidade e a própria Constituição
Federal, que minuciosamente repartiu a competência para criar tributos entre os entes da
Federação. Acreditamos que a semelhança presente no conceito de "congênere" para fins de
incidência do tributo é mais restritiva, tratando-se da mesma atividade. O intérprete ainda
opera dentro das possibilidades de significação do texto que regula mais de perto a conduta.
Portanto, o conceito de congênere utilizado pelo legislador somente abrangerá aquelas
atividades que encontram-se no âmbito do texto da Lista anexa à Lei Complementar 116/03,
sendo, portanto, fruto de interpretação extensiva e não de analogia.
Na doutrina de Luciano Amaro273
, a diferença entre analogia e
interpretação extensiva somente pode ser estabelecida no estudo da vontade do legislador. Nas
palavras do autor:
Num caso, a lei se omitiu porque foi mal escrita; no outro, ela também se omitiu,
muito embora por motivo diverso, qual seja, o de não se ter pensado na hipótese; a
omissão (que, afinal, é o que resta verificável, objetivamente, no exame da lei)
iguala as duas situações. Como se vê, a distinção depende de uma incursão na mente
do legislador, pois se baseia, em última análise, em perquirir se o legislador 'pensou'
272
Op. cit., s.v. congênere. 273
Op. cit., p. 212.
106
ou não na hipótese, para, no primeiro caso, aplicar-se a interpretação extensiva e, no
segundo, a integração analógica.
Com todo o respeito devido à obra do autor citado, sentimo-nos na
obrigação de discordar do critério de distinção que utiliza para apontar a diferença entre
interpretação extensiva e analogia. De acordo com nossas premissas, para sabermos se uma
atividade se encontra nos limites possíveis de sentido do texto e, portanto, se houve
interpretação extensiva, ao invés da analogia, vedada em nosso ordenamento para criar
tributo, teremos que observar o que os utentes de uma comunidade compreendem como
similar a uma determinada atividade, já que é impossível incursionar pela mente do legislador.
Se a similitude for tamanha a ponto de ser considerada a mesma atividade com pequenas
variações que não alteram o gênero, estaremos diante da interpretação extensiva. Caso não
seja possível atribuir-se tal grau de semelhança, o intérprete, no caso da lista do ISS, não
poderá subsumir o suposto congênere à hipótese de incidência.
Assim, podemos compreender a posição do Superior Tribunal de
Justiça, segundo a qual a interpretação extensiva equivaleria admitir a incidência do tributo
sobre a mesma hipótese, alterando-se tão-somente a nomenclatura, conforme trecho de
julgado274
:
A jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que é taxativa a Lista de
Serviços anexa do Decreto-lei 406/68, para efeito de incidência do ISS, admitindo-
se, aos já existentes apresentados com outra nomenclatura, o emprego da
interpretação extensiva para serviços congêneres.
Portanto, para que se identifique integração analógica que cria tributo
novo, deve ocorrer a ausência de texto que especificamente se refira à hipótese analisada.
Convém lembrar que para cada tributo há uma regra-matriz de incidência que em seu
antecedente conota ou identifica os critérios que um evento deve possuir, para, após
certificado por linguagem competente, constituir fato jurídico tributário. O intérprete, ao
preencher os critérios conotados, devido ao princípio da legalidade, deve ater-se a esses
traços, no limite possível de sua vaguidade e ambiguidade.
Nesse sentido, ressalta recente julgado do Superior Tribunal de
Justiça275
:
274
STJ, 1ª Seção, Recurso Especial nº 1.111.234, Relatora Min. Eliana Calmon, DJe de 24/02/2010. (destaques
nossos). 275
STJ, 1ª Seção, REsp 1111234/PR, Rel. Min. Eliana Calmon, julg. 23/09/2009, DJ 08/10/2009.
107
A lógica é evidente porque, se assim não fosse, teríamos, pela simples mudança de
nomenclatura um serviço, a incidência ou não-incidência do ISS. Entretanto, é
preciso fazer a distinção dos serviços que estão na lista, independentemente do
'nomen juris', dos serviços que não se enquadram em nenhum dos itens da lista.
Com efeito, as normas obtidas por intermédio da interpretação
analógica vedada pelo artigo 108, § 1º, do CTN, não guardam relação com a regra-matriz de
incidência tributária que institui determinado tributo, não se configuram como um sentido
possível do texto. Por outro lado, tratar-se de norma jurídica possível de ser fundamentada no
enunciado que institui o tributo, tratando-se da mesma hipótese de incidência, estamos diante
de uma interpretação extensiva.
4.7 Equidade
A equidade, vista como critério de integração do direito posto, é
entendida por nossa doutrina, de maneira geral, como uma forma de abrandamento da lei em
virtude de características que se apresentam no caso concreto. O intérprete, ao aplicá-la,
afastaria sua rigidez para privilegiar a justiça, conforme compreendida pela coletividade.
Carlos Maximiliano276
, assim conceitua o tema:
É, segundo Aristóteles, 'a mitigação da lei escrita por circunstâncias que ocorreram
em relação às pessoas, às coisas, ao lugar ou aos tempos' [...]. A equidade judiciária
compele os juízes, no silêncio, dúvida ou obscuridades das leis escritas, a
submeterem-se por um modo esclarecido à vontade suprema da lei, para não
cometerem em nome dela injustiças que não desonram senão os seus executores..
Doutrinadores que se dedicam mais precisamente ao direito tributário
comungam da mesma opinião, a exemplo de Ruy Barbosa Nogueira277
, que conceitua
equidade como "a mitigação do rigor da lei", ou ainda, Aliomar Baleeiro278
, para quem o
instituto em análise "dará uma solução de justiça". Bernardo Ribeiro de Moraes279
, ao
abordar o tema, ressalta caracterizar-se a equidade
Como um modo particular de atenuação ou amenização da rigidez das normas
jurídicas, exigindo igualdade de tratamento nas relações jurídicas concretas. [...] Pela
eqüidade nos aproximamos do conceito de justiça ideal. Enquanto que os preceitos
276
Op. cit., p.141. 277
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 103. 278
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. rev. e comentada por Misabel Abreu Machado
Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 683. 279
MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Vol. 2., 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1995, p. 226.
108
de justiça são de natureza geral, constituindo os 'commune praeceptum', as regras da
eqüidade são particulares, atendendo a singulares características de cada caso
particular.
De nossa perspectiva, que compreende o direito como objeto cultural,
vislumbramos na equidade um valor a ser realizado pelo aplicador da norma, seja em franca
atividade interpretativa, ou ainda, cumprindo a integração do ordenamento. Trata-se de um
sobreprincípio, a justiça, que norteia a linguagem jurídica em todos os seus níveis. O valor do
justo a que nos referimos é aquele presente no jogo de linguagem do direito em determinado
contexto e não necessariamente coincide com o que se encontra em outras formas de vida.
Seu conteúdo é preenchido pelo sentimento de justiça compartilhado pelos utentes da
linguagem jurídica e não deve ser buscado, como afirma Maximiliano no excerto acima
citado, numa suposta vontade suprema da lei.
Contudo, na atividade integrativa efetuada por intermédio da
equidade, podemos compreender a lacuna a ser preenchida não como a inexistência de um
preceito que se refira especificamente a um comportamento, impedindo, num primeiro
momento, a subsunção do fato à norma, mas como a não realização da justiça no caso
concreto. Um exemplo simples, utilizado por Cristiano Carvalho280
, nos serve de instrumento
para melhor explicar nosso ponto de vista. O autor parte de uma norma hipotética que
preveria prisão para todo aquele que fira outrem com instrumentos cortantes e assim
conjectura:
Se um artesão ao forjar uma espada, fere sem querer o seu ajudante, não poderia
simplesmente ser preso. Tal subsunção simples iria de encontro às noções mais
básicas de justiça, que alicerçam o ordenamento [...]. Trata-se de equilibrar a lei ao
caso concreto, através do apelo ao valor justiça.
Portanto, devido à vaguidade e ambiguidade do preceito legal, várias
interpretações são possíveis e, utilizando-se da equidade, o aplicador do direito afasta aquelas
inadmissíveis, que se chocam com o conceito de justiça, conforme entendido pela
comunidade de utentes da linguagem jurídica.
Utilizemo-nos de outro exemplo, agora mais próximo de nossa área de
pesquisa. O artigo 136 do CTN determina a responsabilidade objetiva do agente por infrações
280
Conforme estudo relacionado ao Artigo 108 (4. A Eqüidade). In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães;
LACOMBE, Rodrigo Santos Masset (Coords.). Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: MP
Editora, 2005, p. 913.
109
à legislação tributária281
. Porém, em caso concreto, pela via da equidade, houve o afastamento
da multa por ilícito fiscal com os seguintes argumentos:
I - Apesar da norma tributária expressamente revelar ser objetiva a responsabilidade
do contribuinte ao cometer um ilícito fiscal (art. 136 do CTN), sua hermenêutica
admite temperamentos, tendo em vista que os arts. 108, IV e 112 do CTN permitem
a aplicação da eqüidade e a interpretação da lei tributária segundo o princípio do 'in
dubio' pro contribuinte [...]. II – 'In casu', o Colegiado 'a quo', além de
expressamente haver reconhecido a boa-fé do contribuinte, sinalizou a inexistência
de qualquer dano ao Erário ou mesmo de intenção de o provocar, perfazendo-se,
assim, suporte fáctico-jurídico suficiente a se fazerem aplicar os temperamentos de
interpretação da norma tributária antes referidos.282
Portanto, não vislumbraram os julgadores que seria justo, no caso
concreto citado, a aplicação do rigor do art. 136 do CTN. Devido às particularidades trazidas
aos autos pelas provas, calibraram a decisão, preferindo o valor justiça, fundamentados no
artigo 108, IV, do CTN que veicula a equidade como critério de interpretação. O preceito
afastado não conotou abrandamentos para situações em que comprovadamente não houvesse
qualquer prejuízo ao Erário e nas quais inexistiria má-fé por parte do contribuinte, pelo
contrário, veiculava a responsabilidade objetiva. Contudo, se comparado a outros preceitos do
ordenamento, como o art. 112 do CTN283
, tal dispositivo se torna de aplicação ambígua.
Fazendo incidir o disposto no art. 136 no caso concreto, estaria ausente a justiça e, dessa
forma, considerou por bem o julgador, numa interpretação sistemática, deixar de aplicar a
penalidade, com base na equidade.
Luciano Amaro284
afirma que "A eqüidade atua como instrumento de
realização concreta da justiça, preenchendo 'vácuos axiológicos', onde a aplicação rígida e
inflexível da regra legal escrita repugnaria ao sentimento de justiça da coletividade, que cabe
ao aplicador da lei implementar."
Não nos parece que a equidade, quando utilizada na integração, vise
preencher 'vácuos axiológicos', já que o direito, visto como objeto cultural285
, vem sempre
carregado de valores. No exemplo dado, se o julgador houvesse aplicado o preceito do artigo
281
"Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária
independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato." 282
STJ, Primeira Turma, Recurso Especial 2004/0154557-1, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 03/10/2005, p. 140. 283
"Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se de maneira mais
favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: I – à capitulação legal do fato; II – à natureza ou às
circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; III – à autoria, imputabilidade ou
punibilidade e IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação." 284
Op. cit., p. 215. 285
Ibid., loc. cit.
110
136 do CTN, de forma literal, utilizando-se da responsabilidade objetiva para punir o
contribuinte, sem considerar as provas produzidas nos autos e o disposto no art. 112 do CTN,
certamente um valor estaria sendo privilegiado, contudo não o sobreprincípio da justiça.
Dessa maneira, o vazio a ser preenchido pela equidade é o da justiça e não de todo e qualquer
valor.
De acordo com o disposto no artigo 108, § 2º, do CTN, não é possível
dispensar a exigência de tributo com base na equidade, o que nos parece reforçar o princípio
da legalidade, na medida em que confirma a tese o argumento em contrário, isto é, também é
vedado ao intérprete criar tributo sem previsão legal, por intermédio da equidade. Utilizemo-
nos do imposto sobre as grandes fortunas, de competência da União Federal, previsto no
artigo 153, VII, da Constituição Federal. Dificilmente poderíamos dizer tratar-se de imposto
injusto, ainda mais levando-se em consideração o princípio da capacidade contributiva.
Contudo, até o presente momento se trata de preceito tecnicamente ineficaz286
, pois não houve
a edição da lei que possibilite a cobrança da exação. Pois bem, o intérprete, ainda que num
esforço de realizar a justiça, não poderá, pela via da equidade, fazer incidir a tributação sobre
grandes fortunas.
Por fim, enfatizamos que, para integrar o sistema com fundamento na
equidade prevista no art. 108, IV, do CTN, o intérprete está adstrito aos textos prescritivos
formadores do ordenamento jurídico e a compreensão que deles possui a comunidade de
utentes da linguagem jurídica, não sendo possível decisão inovadora sem suporte em
dispositivos do sistema. Portanto, não compreendemos a equidade como uma maneira de
aplicação do método da livre formação do direito, preconizado por François Gény287
, segundo
o qual o juiz, ao se deparar com o vácuo legislativo, ou ainda, com a ausência de uma solução
justa, aplique regras que ele próprio criaria se fosse legislador. Conforme doutrina, Miceli:288
"Decidir como o legislador teria decidido significa emprestar ao legislador uma vontade, que
ele não teve, atribuir-lhe idéias, que só por hipótese, teria podido ter e, no fundo, projetar as
suas próprias idéias e os seus sentimentos próprios numa suposta vontade de outrem."
Como já dissemos em vários momentos, ao intérprete não é possível
alcançar a vontade do legislador. O mesmo raciocínio aplica-se a emprestar-lhe ideias, 286
Uma norma tecnicamente ineficaz é válida e vigente, porém há duas espécies de obstáculos que a impedem
de jurisdicizar os fatos: (i) ausência de regras regulamentadoras de igual ou inferior hierarquia; e (ii)
impossibilidade de ordem material de ocorrência dos eventos que prevê. 287
Méthode de la libre recherche scientifique. 288
VINCENZO, Miceli. Le Fonti del Diritto. In: RIBEIRO (op. cit., p. 200).
111
atribuindo-lhe um sentir. Na atividade interpretativa e integrativa do direito, há construção de
sentido a partir de textos que formam o ordenamento, e a vontade a imperar é a do aplicador,
que se encontra inserido em um contexto histórico e cultural, que fornece os elementos para
condicionar o seu querer. Não se trata, dessa forma, de uma atividade totalmente livre. Além
dos elementos que condicionam o intérprete a optar por determinada solução, há os preceitos
jurídicos que não podem ser desprezados, sob pena de a interpretação ser tida por arbitrária,
pertencente a distinto jogo de linguagem e sofrer a sanção da invalidade.
A outra forma de integração do direito, presente no Código Tributário
Nacional, art. 108, II e III é, respectivamente, a aplicação dos princípios gerais do direito
tributário e dos princípios gerais do direito público. Ao tratarmos do entendimento sobre
interpretação como um sistema de linguagem, adiantamo-nos a tratar do tema com detalhes,
razão pela qual decidimos seguir adiante em nossa análise. Observamos também que os arts.
109, 110 e 111 do CTN serão objeto de estudo, ao tratarmos do que a doutrina convencionou
denominar "métodos de interpretação", pois servem de base para as técnicas econômica,
sistemática e literal de exegese do direito tributário.
112
CAPÍTULO V – MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO
5.1 Considerações iniciais
Interpretar o direito como um jogo ou sistema de linguagem implica
na ideia de que o sujeito, imbuído dos valores presentes em determinado contexto histórico-
cultural, percorre os níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica, para
construir o sentido dos enunciados prescritivos, de forma adequada, conforme expectativas de
compreensão partilhadas pela comunidade de intérpretes.
Portanto, o uso de raciocínios apriorísticos, como as teses do in dubio
pro fiscum ou in dubio contra fiscum289
, ou ainda, privilegiar-se técnicas de interpretação do
direito tributário que somente consideram parcialmente os níveis de linguagem, a exemplo do
método gramatical, não é compatível com as premissas adotadas nessa pesquisa. Em termos
filosóficos, não se fundamentam no giro linguístico-hermenêutico. Contudo, tais argumentos
são rotineiramente utilizados como justificativa de decisões tomadas por nossos Tribunais, o
que nos motiva a considerar oportuna a análise dos métodos de interpretação do direito
tributário à luz dos pressupostos condicionantes já apontados. As teses do in dubio pro fiscum,
in dubio contra fiscum e o termo médio entre as duas, a corrente da interpretação estrita da lei
tributária, são bastante antigas290
e encontram-se diluídas nos métodos tradicionais da
doutrina, razão pela qual optamos por não estudá-las em capítulo próprio.291
O termo "métodos de interpretação", usado no contexto da doutrina
tradicional, quer significar técnicas ou meios para apreender o alcance e sentido dos textos
jurídicos, conforme a intenção do legislador ou a vontade da lei. Comumente, os juristas
estudam e propagam as seguintes técnicas de interpretação do direito, consideradas de maior
relevo dentre as demais: (i) literal ou gramatical; (ii) histórico-evolutiva; (iii) lógica; (iv)
289
As teorias citadas negavam a possibilidade da aplicação das regras de hermenêutica ao direito tributário, em
virtude de suas características particulares. Assim, se a lei não fosse suficientemente clara, uma corrente
propunha a sua aplicação sempre a favor do fisco e outra a favor do contribuinte, surgindo, ainda, um terceiro
viés, que propugnava a aplicação estrita da lei. Conforme VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis
tributárias. Tradução de Rubens Gomes de Sousa. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1973, p. 11-13. 290
Afirma Vanoni que o brocardo teria origem em Roma e haveria sido enunciado por Modestino (ibid., p. 14). 291
Heleno Torres afirma que, "Quando se discute as diferenças entre 'primado do direito civil' e 'autonomia
qualificadora do direito tributário', em certo modo, o que se vê em oposição não é mais do que uma versão
moderna das teses que se podem resumir como os brocardos in dubio contra fiscum e in dubio pro fiscum."
TÔRRES, Heleno Taveiro. Direito tributário e direito privado: simulação: elusão tributária. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 200.
113
teleológica; e (v) sistemática. Alguns doutrinadores aconselham tais expedientes de exegese
sejam utilizados de forma sucessiva, por não ser possível fragmentá-los292
.
Muito embora sob fundamentos teóricos distintos, que propugnam
pela impossibilidade de alcançar-se a vontade do legislador ou da lei, espécie de verdade
absoluta a ser perseguida pelo intérprete, o construtivismo lógico-semântico concorda com a
incindibilidade das técnicas de exegese. A técnica lógica ou literal se atém especificamente ao
plano sintático da linguagem jurídica. A histórico-evolutiva e teleológica se preocupam mais
com os aspectos semânticos e pragmáticos, enquanto que a sistemática engloba os três planos,
na medida em que compatibiliza a norma com a estrutura global a qual pertence, sob os
pontos de vista lógico e também dos usos da linguagem efetuados pela comunidade
jurídica.293
Antes de analisarmos cada uma das posturas interpretativas
comumente estudadas e propagadas, ressalvamos a discussão presente na doutrina sobre qual
técnica hermenêutica haveria adotado o legislador do Código Tributário Nacional.
Na opinião de Ricardo Lobo Torres294
, pretendeu-se estabelecer
hierarquia entre os métodos teleológico ou econômico, supostamente contemplado no seu
artigo 109295
, e sistemático, estabelecido no art. 110296
do CTN.
Sem embargo de anteciparmos a exposição, destacamos que, pela
literalidade do art. 109 do CTN, os efeitos tributários poderiam dissociar-se dos conceitos de
direito privado utilizados pelas regras-matrizes de incidência. Nessa perspectiva de análise,
parcela da doutrina, como veremos em momento oportuno, atribui ao preceito as seguintes
decorrências:
292
Conforme Carlos Maximiliano: "A interpretação é uma só; não se fraciona: exercita-se por vários processos,
no parecer de uns; aproveita-se de elementos diversos, na opinião de outros...". Hermenêutica e aplicação do
direito, p. 87. Esta também é a opinião de Ruy Barbosa Nogueira292
, proferida ao analisar a interpretação literal,
enquanto técnica isolada, justificando suas ideias nas palavras de Betti: "A interpretação é sempre um processo e
não é possível desintegrá-lo para efeito de só admitir-se uma interpretação literal ou gramatical estanque ou
mecânica. Basta ter presente a incindibilidade entre a palavra e o pensamento que ela representa e refletir que a
lei não é letra morta, mas a forma representativa do conteúdo espiritual, que é um conteúdo normativo para fins
de convivência social...". (op. cit., p. 89). 293
Conforme Paulo de Barros Carvalho (2010, p. 134). 294
Op. cit., p. 136. 295
"Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do
alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários". 296
"Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e
formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas
Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou
limitar competências tributárias."
114
(i) A autonomia do direito tributário com relação aos demais ramos;
(ii) Supremacia da substância das normas jurídicas tributárias com relação à sua forma. Isto é,
o seu conteúdo ou substância seria supostamente de ordem econômica. A afirmação
poderia ser justificada em virtude da finalidade do direito tributário que é identificada por
esses juristas com o abastecimento dos cofres públicos.
(iii)Corolário dessas premissas teóricas é a conclusão de que o objetivo do enunciado residiria
no combate a eventuais simulações, cujo intuito seria a evasão fiscal, utilizando-se, como
critério de identificação desse desvio, a interpretação econômica, que revelaria o
verdadeiro conteúdo a ser considerado pelo exegeta.
De início, sem maiores pretensões, já que iremos nos aprofundar no
tema em tópico específico, ressaltamos que o direito é um sistema de linguagem prescritiva,
autônomo com relação aos demais. Os fatos que nele adentram são processados de acordo
com seus ditames, o que implica observar normas de competência e procedimento, assim
como compreendidas por sua comunidade de intérpretes e, por conseguinte, em função dessas
regras, se tornam jurídicos. Lembrando Investigações Filosóficas, trata-se de um jogo de
linguagem específico, que opera segundo suas regras próprias. O que já demonstra a
impropriedade da assim denominada "interpretação econômica".
Portanto, os "efeitos tributários" determinados pelo art. 109 do CTN
são de ordem jurídica e não econômica. Compreendendo a questão dessa maneira, estaríamos
em plena harmonia com o art. 110 do CTN, pois os efeitos tributários, isto é, a obrigação
tributária, seriam fixados pela legislação específica, que, no entanto, se utilizaria de conceitos
de direito privado para estabelecer os comportamentos conformadores dos fatos jurídicos, na
medida em que a Constituição Federal, ao distribuir as competências, não houvesse estipulado
de forma própria.
Em suma, não vislumbramos dicotomia entre o art. 109 e 110 do
CTN, a ponto de verificar no primeiro a adoção de técnica teleológica justificadora da
interpretação econômica do direito e da sistemática pelo art. 110. O entendimento em
contrário, exposto por parte da doutrina, nos parece fruto de interpretação literal, que não
premia uma visão sistemática da linguagem jurídica. Pareceu-nos, ainda, que há uma
desautorizada mescla entre a linguagem jurídica e a econômica, como se fosse possível ao
direito ter fins econômicos e não jurídicos. Passamos, assim, a analisar as técnicas de
interpretação anteriormente apontadas.
115
5.2 A interpretação literal ou gramatical
A interpretação literal297
ou gramatical resume-se a uma primeira
leitura do texto, sem maiores preocupações com sua compatibilidade em relação ao sistema.
Comparando-se com o percurso gerador de sentido utilizado pelo construtivismo lógico-
semântico, tal técnica estaria situada no plano S1, no qual o sujeito depara-se com os
enunciados prescritivos e inicia sua leitura. Portanto, se admitida essa técnica isoladamente,
como forma de interpretar, haveria uma brusca interrupção no percurso a ser trilhado pelo
exegeta, que estaria impossibilitado de cotejar os preceitos lidos com outros relacionados, a
ponto de construir norma jurídica e cotejá-la como o sistema em que se opera.
Doutrinadores dos mais variados matizes apontam a fragilidade da
técnica, tomando-a apenas como o primeiro estádio da interpretação do direito positivo.
Na lição de Paulo de Barros Carvalho298
, "O texto escrito, na singela
conjugação de seus símbolos, não pode ser mais que a porta de entrada para o processo de
apreensão da vontade da lei; jamais confundida com a intenção do legislador."
Bernardo Ribeiro de Moraes299
afirma ser este processo "O primeiro
estádio que se apresenta ao intérprete [...], não constitui um método de interpretação
propriamente dito, mas simples modo de ver a norma jurídica, com o apego ao texto legal
(fetichismo da lei)."
Ricardo Lobo Torres300
é taxativo ao doutrinar que "O método literal,
gramatical ou lógico gramatical é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir
do texto."
Não obstante o acentuado desprestígio da técnica literal, o legislador a
inseriu no Código Tributário Nacional, prescrevendo sua aplicação à suspensão ou exclusão
297
Em rigor, a interpretação literal sequer seria possível porque o significado de um termo depende,
necessariamente, do contexto em que ocorre a exegese e está atrelado ao sistema de referência do intérprete.
Ainda numa primeira leitura, a pré-compreensão do sujeito o auxilia na formação de um sentido preliminar. 298
Op. cit., 2010, p. 140. 299
Op. cit., p. 188. 300
Op. cit., p. 197.
116
do crédito tributário, à outorga de isenção e à dispensa do cumprimento de obrigações
tributárias tidas como acessórias301
, o que vem sendo observado por nossos Tribunais.
A título de exemplo, analisamos acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça de Santa Catarina302
. Na decisão de primeira instância, houve reconhecido o direito de
isenção de ICMS e IPVA para aquisição de veículo capaz de ser adaptado para transportar
deficiente físico e mental. Contudo, entendeu o Tribunal, em julgamento de recurso interposto
pela Fazenda Pública, ser necessária a reforma da sentença, sob a alegação de que o
automóvel seria guiado pelos familiares do deficiente e não por ele próprio, o que implicaria
interpretação extensiva da lei, vedada pelo artigo 111 do Código Tributário Nacional.
Segundo entendimento do julgado:
Se a legislação estadual não prevê a isenção do ICMS e do IPVA para veículo
adquirido por deficiente físico para que outrem o dirija, ainda que para transportá-lo,
não há como conceder liminar em mandado de segurança por ausência de um dos
pressupostos do art. 7º, inciso II, da Lei 1.533/51, que é a fumaça do bom direito.
Em matéria de isenção tributária não cabe interpretação extensiva da lei nem a
adoção analógica de lei federal para isentar o contribuinte do pagamento do imposto
estadual.
A interpretação dada ao caso pelo Tribunal desconsiderou a finalidade
de normas isentivas de IPVA e ICMS consistente em atender as necessidades especiais de
deficientes físicos, inclusive protegidas constitucionalmente303
, para privilegiar a literalidade
de preceito legal que previa o benefício para os motoristas portadores de deficiência. Além de
desprezar visão finalística e sistemática, que premiaria a proteção ao deficiente concedida
constitucionalmente, em nome da literalidade preconizada pelo artigo 111 do CTN, provocou
o Tribunal desrespeito ao princípio da isonomia, estabelecendo duas classes de deficientes: os
que podem guiar um veículo e que cumpririam os requisitos das leis isentivas e os demais,
cujo grau de enfermidade os privasse de autonomia suficiente para guiar seu próprio
automóvel, penalizando-os com a incidência de ICMS e IPVA.
Concordamos com Hugo de Brito Machado304
, para quem
É inadequado o entendimento segundo o qual a interpretação das normas
reguladoras das matérias previstas no art. 111 do Código Tributário Nacional não
admite outros métodos, ou elementos de interpretação, além do literal. O elemento
literal é de pobreza franciscana, e utilizado isoladamente pode levar a verdadeiros
301
Conforme art. 111 do CTN. 302
Decisão em agravo de instrumento nº 2005.012351-6. Relator Desembargador Jaime Ramos. Julgado em
30/08/2005. 303
Citamos como exemplos os artigos 203, IV e 37, VIII da Constituição Federal. 304
Op. cit., p. 105.
117
absurdos, de sorte que o hermeneuta pode e deve utilizar todos os elementos da
interpretação, especialmente o elemento sistemático, absolutamente indispensável
em qualquer trabalho sério de interpretação, e ainda, o elemento teleológico, de
notável valia na determinação do significado das normas jurídicas.
O intérprete, ao atribuir sentido aos textos jurídicos, não pode ignorar
a estrutura sintática da linguagem jurídica, sua hierarquia e regras de formação e de
transformação, nem tampouco deixar de observar o aspecto semântico-pragmático do
ordenamento, permanecendo atento para o uso e as expectativas compartilhadas pela
comunidade jurídica. Parece-nos, dessa maneira, desaconselhável proceder-se a construção
normativa meramente literal. Seguir o comando do artigo 111 do CTN pode redundar,
inclusive, em desrespeito à própria Constituição Federal, como entendemos ter ocorrido no
exemplo anteriormente analisado.
Nesse sentido, destacamos trecho de acórdão diverso, cuja
fundamentação procura fornecer outra exegese ao art. 111 do CTN:
A regra insculpida no art. 111 do CTN, na medida em que a interpretação literal se
mostra insuficiente para revelar o verdadeiro significado das normas tributárias, não
pode levar o aplicador do direito à absurda conclusão de que esteja ele impedido, no
seu mister de interpretar e aplicar as normas de direito, de se valer de uma
equilibrada ponderação dos elementos lógico-sistemático, histórico e finalístico ou
teleológico que integram a moderna metodologia de interpretação das normas
jurídicas.305
Há ainda, outros doutrinadores que compreendem a interpretação
literal determinada no artigo 111 do CTN como aquela que se dá de forma não extensiva, a
exemplo de Regina Helena Costa306
:
Ao determinar, nesse dispositivo, que a interpretação de normas relativas à
suspensão ou exclusão do crédito tributário, à outorga de isenção e à dispensa do
cumprimento das obrigações acessórias seja 'literal', o legislador provavelmente quis
significar 'não extensiva', vale dizer, sem alargamento de seus comandos, uma vez
que o padrão em nosso sistema é a generalidade da tributação e, também das
obrigações acessórias, sendo taxativas as hipóteses de suspensão da exigibilidade do
crédito tributário e da anistia. Em outras palavras, quis prestigiar os princípios da
isonomia e da legalidade tributárias.
Segundo nossas premissas, inexistiria um sentido único do texto
prescritivo, correspondente à vontade do legislador ou da lei. O que denominamos de
305
STJ, 2ª Turma, Recurso Especial nº 411.704 – SC, Relator Ministro João Otávio de Noronha, D.J. de
07/04/2003. O objetivo do recurso apresentado pela Fazenda Nacional era afastar interpretação que
reconheceu a isenção de aposentadoria em virtude de cardiopatia grave desenvolvida após a concessão de
aposentadoria. 306
COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 164.
118
interpretação extensiva, como pudemos observar ao tratarmos da analogia, corresponde à
própria vaguidade e ambiguidade da linguagem. Dessa maneira, o intérprete labora dentro dos
limites possíveis de significação de um texto, não servindo o critério de vedação à
interpretação extensiva para compreender e justificar o disposto no artigo 111 do CTN e o
método literal.
A melhor exegese do art. 111 do CTN é a que afasta a literalidade
pura e simples como critério de interpretação e admite que as situações nele previstas devam
ser tratadas de forma sistemática, reconhecendo não ser possível fracionar a linguagem
jurídica e construir seu sentido de forma parcial, sem levar em conta os aspectos semântico e
pragmático. A literalidade seria apenas o início de um percurso a ser trilhado pelo sujeito, que
nos limites da cultura jurídica, constrói norma compatibilizada com todo o ordenamento.
5.3 A interpretação histórico-evolutiva
O objetivo da técnica de interpretação histórico-evolutiva, no
entendimento da doutrina tradicional, seria transpor a vontade do legislador, ao tempo da
edição da norma, para a atualidade. Nesses termos, o intérprete deveria decidir nos dias de
hoje, imbuído do espírito do legislador, o que permitiria que sua interpretação fosse a mesma
daquele, se a questão lhe houvesse sido apresentada no momento da edição da lei. Segundo
Cogliogo307
,
O intérprete deve dar um espírito novo à lei velha e, quando as palavras do código
não sejam abertamente contrárias, é lícito entendê-las até alcançar os fenômenos
novos; e é lícito substituir ao que o legislador quis, quando fez a lei, o que deveria
querer agora, se legiferasse no presente.
Para a doutrina tradicional, a interpretação histórico-evolutiva seria
útil para a exegese do direito pelos seguintes motivos: (i) as disposições primitivas
aproveitadas no novo texto conservariam, quando possível, a exegese do anterior, ainda que o
legislador se utilizasse de outros nomes, o que denotaria a ideia de existir uma essência nos
conceitos que poderiam ser transpostos para o tempo atual; (ii) pelas transformações
históricas sofridas por um preceito que chega ao conhecimento de seu papel na atualidade.308
307
L´Interpretazione Sociale de Codice Civile, apud MORAIS (op. cit., p. 197). 308
Conforme MAXIMILIANO (op. cit., p. 114).
119
Ao compreender a interpretação histórico-evolutiva como atualização
do pensamento do legislador, juristas aconselham o estudo dos materiais legislativos, a
exemplo dos projetos de lei, dos debates parlamentares e outros documentos que possam
revelar a verdadeira mens legislatoris. É o conhecimento do que a doutrina denomina occasio
legis, mais precisamente, as circunstâncias contextuais reinantes no momento da edição da
norma.
Acreditamos, todavia, ser incompatível com as premissas adotadas o
vínculo do intérprete com as exegeses feitas a partir de disposições dos textos antigos,
conforme imposto pela técnica histórico-evolutiva. Não há um sentido absoluto, que
corresponda a uma verdade a ser alcançada (a vontade do legislador), capaz de impedir
modificações na construção normativa. O entendimento tende a variar de acordo com o
contexto histórico-cultural no qual ocorre a atividade interpretativa. Claro que não estamos
defendo arbitrariedades e abuso de poder e tampouco o rompimento do intérprete com a
história. O sujeito, ao construir a norma jurídica, participa de um jogo de linguagem
específico, o do direito, que é orientado por regras e expectativas compartilhadas pelos demais
participantes.
A técnica histórico-evolutiva pode ser utilizada pelo intérprete não
com o intuito de atualizar a vontade do legislador, mas como forma de dar significação aos
conceitos utilizados pela linguagem jurídica por intermédio de um estudo histórico, apto a
demonstrar as alterações provenientes do uso dos termos pela comunidade. Nesse aspecto,
teria as características de uma pesquisa semântica. Comparando-se preceitos anteriores com
os atuais, é possível decidir-se pela mudança ou inalterabilidade de sentido de um termo. Isso
não significa, necessariamente, que sentidos atribuídos em período anterior devam ser
aplicados a disposições em vigência, conforme já expomos. Estes inclinam-se a variar de
acordo com as transformações contextuais ocorridas no ordenamento jurídico. Por outro lado,
a pesquisa histórica das alterações legislativas também atua como auxiliar do intérprete na
verificação da própria vigência da norma, mediante as constantes alterações efetuadas no
ordenamento.
Exemplo de utilização por nossos Tribunais da técnica histórico-
evolutiva encontra-se em acórdão que analisou as inúmeras alterações legislativas no tocante
120
ao crédito prêmio do IPI309
. A dificuldade residia justamente em apurar-se a data da extinção
do direito ao crédito, em virtude de uma miscelânea de dispositivos legais que regularam sua
aplicação. Utilizando-se, também, da técnica histórico-evolutiva, o intérprete analisou a
evolução do crédito prêmio do IPI em nossa legislação, estudando as exposições de motivos
dos vários preceitos legais e as efetivas alterações; com base nesse procedimento, decidiu o
caso que lhe foi apresentado. Destacamos trecho do acórdão, no qual o próprio Tribunal
reconhece a importância da pesquisa histórico-evolutiva:
A interpretação histórica é de extrema valia nos conflitos aparentes de normas,
porque: 'o direito não se inventa; é produto lento da evolução [...]'.
Conseqüentemente sobressai o prestígio do elemento histórico decorrente da
investigação da causa geradora e da causa final da lei que conduz à descoberta do
verdadeiro sentido e alcance da norma definitiva […]310
Em suma, a técnica de interpretação histórico-evolutiva nos parece útil
não para atingir-se a mens legislatoris, mas para apurar-se a diversidade semântica de um
preceito normativo, evidenciada pelas alterações contextuais de seu uso. Diante da extensa
produção legislativa, também atua como expediente auxiliar na organização dos textos legais
para fins de análise da vigência e aplicação de determinada norma.
5.4 Interpretação lógica
Por intermédio dessa técnica interpretativa, segundo compreende a
doutrina tradicional, seria possível extrair a vontade do legislador ou da lei estabelecendo o
sentido e alcance da norma, aplicando-se exclusivamente raciocínios lógicos na compreensão
da literalidade do preceito, sem auxílio de qualquer elemento externo ao texto em sentido
estrito.
Interpretar uma lei, dizem os adeptos deste processo, é explicitar a vontade do
legislador, manifestada inteiramente no texto de lei, observando as palavras e os
elementos lógicos dos preceitos normativos. O intérprete da norma jurídica deve
perquirir a vontade do legislador, servindo-se, para tal, da literalidade da norma
309
Imposto sobre produtos industrializados. 310
STJ, Primeira Seção, Relator Ministro Luiz Fux, Embargos de Declaração no Recurso Especial
2003/0062403-4, publicado no DJe de 31/03/2008. A Ementa encontra-se assim redigida: "TRIBUTÁRIO.
IPI. CRÉDITO PRÊMIO. DECRETOS-LEIS 491/69, 1. 724/79, 1.722/79, 1.658/79 E 1.894/81.
PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. EXTINÇÃO DO BENEFÍCIO. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA
PELA PRIMEIRA SEÇÃO. VIGÊNCIA DO ESTÍMULO FISCAL ATÉ 04 DE OUTUBRO DE 1990.
RESSALVA DO ENTENDIMENTO DO RELATOR. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SÚMULA
07/STJ."
121
jurídica e de todos os recursos da lógica formal (dedução, indução, argumento,
contrario sensu etc.).311
Portanto, qualquer outro pressuposto para a construção de sentido, a
exemplo dos juízos valorativos e das alterações histórico-culturais refletidas no uso dos
termos por determinada comunidade, estaria excluído da apreciação desta técnica
interpretativa. Trata-se de uma visão logicista do direito, objeto de críticas de Lourival
Vilanova, como as que constam do seguinte excerto: "A experiência lógica é parcial. Isola
(abstrai) o formal ou estrutural que ostenta o Direito Positivo. Exceder essa investigação para
além dos limites importa em logicismo, que é uma extrapolação da Lógica (logicismo, p. e.,
na interpretação e na aplicação do Direito)."312
A pesquisa lógica limita-se ao aspecto sintático da linguagem jurídica.
Na interpretação do direito posto, seu objetivo é estudar as conexões existentes entre os
elementos internos que compõem uma norma jurídica, ou ainda, suas relações com outros
enunciados do sistema. E, para tanto, utiliza-se de raciocínios dedutivos, indutivos, analógicos
e de outros expedientes da lógica. Por outro lado, também auxilia o intérprete a organizar o
emaranhado de textos que veiculam o direito, a exemplo da redução efetuada pela regra-
matriz de incidência tributária, conforme já abordado em capítulo próprio. Contudo, não é
bastante em si para a interpretação do direito como um sistema de linguagem, ao modo do
construtivismo lógico-semântico, em virtude de não adentrar nos seus aspectos semântico e
pragmático.
A impropriedade na escolha exclusiva do processo lógico para a
interpretação do direito já havia sido detectada por Carlos Maximiliano313
ao enunciar que
O mal está no abuso, que leva a desprezar o coeficiente pessoal e os valores jurídico-
sociológicos; e não em simples uso, consistente em aplicar os processos da Lógica,
sem deixar de contar com outros elementos, inclusive a cultura, o critério
profissional, a isenção de ânimo, o tato e outros predicados individuais do
verdadeiro exegeta e aplicador do Direito.
Para facilitar a exposição, utilizaremos um caso concreto e tentaremos
evidenciar o uso da exegese lógica, mencionada pelo julgador como técnica que justificaria
sua decisão. O aresto que examinamos314
modificou entendimento anterior, baseado
311
MORAES, op. cit., p. 192. 312
Op. cit., 2003, p. 23. 313
Op. cit., p. 103. 314
STJ, 1ª Seção, Relator Ministro Milton Luiz Pereira, Embargos de Divergência em Recurso Especial nº
89.472 – SP, DJ: 05/08/2002.
122
exclusivamente na interpretação literal da Súmula nº 20 do Superior Tribunal de Justiça, que
assim estabelece: "A mercadoria importada de país signatário do GATT é isenta de ICM,
quando contemplado com esse favor o similar nacional".
Como se percebe, o texto da Súmula utiliza-se da palavra
"mercadoria", que implica na ideia de um bem móvel destinado à comercialização315
, e, com
fundamento no art. 111 do CTN, a decisão reformada denegava isenção à matéria-prima
importada por não se caracterizar como mercadoria, na medida em que utilizada pelo
contribuinte como insumo do produto final isento. Dito de outra forma, se o contribuinte
importasse a mercadoria, compreendida como o produto acabado semelhante ao nacional
isento, usufruiria do benefício. Por outro lado, se importasse somente os insumos para
fabricação no Brasil do produto final isento, teria que arcar com o ICMS incidente sobre os
componentes importados.
A ementa do julgado responsável pela mudança do entendimento
anterior, fruto de interpretação literal da Súmula nº 20 do STJ, está assim disposta: "Quando
se trata de matéria-prima, interpretação lógica conduz à isenção de ICMS à mercadoria
importada de país signatário do GATT, concedida a similar nacional."316
Pois bem. O critério material da regra-matriz do ICMS importação
consiste em "importar mercadorias". A norma isentiva que decorre das disposições do GATT
mutila a hipótese de incidência quando se trata de produtos importados que possuam similar
produzido no país. Contudo, por intermédio de raciocínio analógico, os Ministros do STJ
estenderam a regra isentiva à atividade de importação de insumos utilizados exclusivamente
para a produção de tais produtos. Muito embora, consoante literalidade da Súmula nº 20 não
ser possível aplicar o benefício fiscal à importação de insumos, tendo em vista a finalidade da
norma, autorizou-se, por analogia, sua extensão também aos insumos.
No caso concreto, a finalidade da norma isentiva está consignada em
trecho do voto do Ministro Franciulli Netto: "Ora, se o custo do produto nacional elaborado
com componentes importados for maior que o custo do similar importado, ainda que, a final,
315
Leciona Paulo de Barros Carvalho que: "A natureza mercantil do produto não está, absolutamente, entre os
requisitos que lhe são intrínsecos, mas na destinação que se lhe dê. É mercadoria a caneta exposta à venda
entre outras adquiridas para esse fim. Não se enquadra nesse conceito, porém, aquela mantida em meu bolso
e destinada a meu uso pessoal." (2008, p. 648). 316
Destaque nosso.
123
sejam ambos isentos, haverá indisfarçável dano à indústria nacional e violação às disposições
do GATT".
Portanto, apesar de o julgador afirmar que seu entendimento foi obtido
por uma interpretação lógica e de, efetivamente, por intermédio do expediente lógico da
analogia, haver estendido o benefício à importação de insumos, é inegável que a decisão
serviu-se também de outras técnicas, como a teleológica e a sistemática, o que corrobora
nossa assertiva inicial de incindibilidade da atividade interpretativa.
5.5 Interpretação teleológica
A técnica teleológica toma a finalidade prática da norma como
principal critério a ser utilizado pelo intérprete do direito e está consagrada na Lei de
Introdução ao Código Civil, que, em seu art. 5º, determina a aplicação da lei conforme fins
sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
Leciona Ruy Barbosa Nogueira317
:
Como ressalta Jhering, o fim é criador de todo o Direito. Por isso mesmo o sentido
das leis é essencialmente determinado pelo fim (telos). A apuração da finalidade da
lei ou da proposição jurídica se faz por meio do método teleológico de interpretação
das leis. A finalidade objetivada no texto e no contexto se revela nas peculiaridades
das intenções contidas nos preceitos e conceitos jurídicos.
Na opinião de Bernardo Ribeiro de Moraes318
, "Não há regra jurídica
que não tenha sua origem ligada a um fim prático. A norma jurídica existe para atingir uma
finalidade (télesis), para atingir fins sociais. O fim desejado pela norma jurídica é o elemento
mais hábil para a descoberta do seu sentido e alcance."
Ressalvada a discordância quanto à possibilidade dos enunciados
prescritivos conterem a intenção da lei e do legislador, as falas dos eminentes doutrinadores
podem ser corroboradas pelo construtivismo lógico-semântico. O direito como objeto cultural
tem por finalidade motivar comportamentos na tentativa de implantar e conservar valores que
são partilhados pelos utentes da linguagem jurídica em determinado contexto histórico-
cultural. Portanto, o intérprete, ao atribuir sentido aos signos do direito posto, também deve
nortear seu agir com a finalidade prática de implantá-los.
317
Op. cit., p. 93. 318
Op. cit., p. 198.
124
Vejamos, por exemplo, julgado319
que alterou posição anteriormente
consolidada no STJ e concedeu redução do critério quantitativo do Imposto de Renda,
previsto na lei nº 9.249/95320
para prestação de serviços hospitalares não necessariamente
realizados no interior de estabelecimento tido como hospitalar. A interpretação dada
anteriormente pelo próprio Tribunal encontrava-se baseada somente na literalidade do texto
normativo e tinha como critério de discernimento que a pessoa jurídica pudesse proporcionar
a internação do paciente para enquadrar-se no benefício da lei, como verificamos em trecho
de julgado321
que reflete a posição que foi modificada: "Por entidade hospitalar deve se
entender o complexo de atividades exercidas pela pessoa jurídica que proporcione
internamento do paciente para tratamento de saúde, com a oferta de todos os processos
exigidos para prestação de tais serviços ou do especializado."
Porém, fundamentado em interpretação teleológica que visou
contemplar a saúde como direito fundamental previsto na Carta Magna322
, a Corte afastou a
exegese anterior. Em trecho do voto do Min. Relator Castro Meira323
, encontram-se bem
explicadas as razões que levaram à mudança de entendimento:
Repensando o tema, verifico que a interpretação dada pela Primeira Seção restou
atrelada à aplicação prévia e exclusiva do art. 111, II, do CTN, deixando em plano
secundário o real propósito da lei [...]. Não se atentou para o escopo extrafiscal da
norma [...]. A verdadeira função extrafiscal dos tributos é aquela que visa estimular
ou reprimir comportamentos que estejam relacionados a valores eleitos pelo
legislador como fundamentais à sociedade.
Dessa forma, o conceito de "serviços hospitalares" para fins de
diminuição do critério quantitativo do Imposto de Renda, sob a égide da Lei 9.249/95, ficou
assim estabelecido pela Corte Especial, após revisão efetuada, levando-se em conta a
finalidade do direito da seguinte forma:
Deve-se entender como 'serviços hospitalares' aqueles que se vinculam às atividades
desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde. Em
regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento
319
STJ, 1ª Seção, Relator Ministro Castro Meira, REsp. nº 951.251/PR, DJe 03/06/2009. 320
Aduz o art. 15, § 1º, III, "a" da Lei 9.249/95: "Art. 15 – A base de cálculo do imposto, em cada mês, será
determinada mediante a aplicação do percentual de oito por cento sobre a receita bruta auferida mensalmente,
observado o disposto nos arts. 30 a 35 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995.
§ 1º Nas seguintes atividades, o percentual de que trata este artigo será de:
III – trinta e dois por cento para as atividades de:
a) prestação de serviços em geral, exceto a de serviços hospitalares." 321
STJ, 1ª Seção, Rel. Min. José Delgado, REsp. 832.906/SC, DJ 27/11/2006. 322
Vide arts. 6º, 196 e 197 da Constituição Federal de 1.988. 323
STJ, 1ª Seção, Relator Ministro Castro Meira, REsp. nº 951.251/PR, DJe 03/06/2009, p. 11-12.
125
hospitalar, excluindo-se as simples consultas médicas, atividade que não se
identifica com as prestadas no âmbito hospitalar, mas nos consultórios médicos.324
Frisamos não se tratar a interpretação teleológica de técnica que tenha
supremacia sobre as demais e que, isoladamente, possa ser reconhecida como apta a construir
corretamente as normas jurídicas. Assim sendo, não somente o fim prático, que premia o
aspecto semântico e pragmático da norma deve ser levado em consideração pelo exegeta, mas
todos os demais, em esforço sistemático, para fim de atribuir-se sentido ao direito posto. De
fato, foi o que ocorreu no julgado citado, na medida em que foi necessário incursionar pelo
sistema, a ponto de justificar a interpretação teleológica em normas constitucionais. Portanto,
ainda que a argumentação do Ministro Relator tenha sido justificada pela interpretação
teleológica, notamos que não foi essa a única técnica empregada para a tomada de decisão.
Esclarecemos, por fim, que a exegese econômica do direito tributário,
cujos defensores afirmam denotar técnica teleológica será analisada em tópico separado, dada
a força com que vem sendo retomada, principalmente pelas autoridades fiscais.
5.6 Interpretação sistemática
A técnica sistemática de exegese consiste em compreender o preceito
normativo por intermédio de seu elo com outros textos do ordenamento jurídico, de maneira a
compatibilizá-lo com o todo unitário. Não se trata de uma conexão tão-somente estrutural que
lança luzes aos vínculos lógicos intraproposicionais e interproposicionais, mas de um
procedimento que premia a interpretação da norma pela análise de todos os aspectos da
linguagem jurídica, levando-se em consideração o contexto histórico e jurídico-cultural no
qual a exegese é realizada.
A interpretação sistemática pressupõe as demais técnicas de exegese
anteriormente estudadas. Isto significa sustentar que a linguagem jurídica em sua
integralidade foi percorrida pelo sujeito, o que confirma a ideia de se tratar do expediente
324
Conforme item 5 da Ementa, cujo "caput" tem a seguinte redação: "PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO.
IMPOSTO DE RENDA. LUCRO PRESUMIDO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO. BASE
DE CÁLCULO. ARTS. 15, § 1º, III, "A", E 20 DA LEI 9.249/95. SERVIÇO HOSPITALAR.
INTERNAÇÃO. NÃO OBRIGATORIEDADE. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA NORMA.
FINALIDADE EXTRAFISCAL DA TRIBUTAÇÃO. POSICIONAMENTO JUDICIAL E
ADMINISTRATIVO DA UNIÃO. CONTRADIÇÃO. NÃO PROVIMENTO."
126
mais completo para a construção normativa. Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho325
tece
os seguintes comentários:
Não é difícil distribuir os citados 'métodos de interpretação' pelas três plataformas de
investigação lingüística. Os métodos literal e lógico estão no plano sintático,
enquanto o histórico e o teleológico influem tanto no plano semântico quanto no
pragmático. O critério sistemático da interpretação envolve os três planos e é, por
isso mesmo, exaustivo da linguagem do direito. Isoladamente, só o último
(sistemático) tem condições de prevalecer exatamente porque pressupõe os
anteriores. É assim considerado o método por excelência.
Parece-nos que, durante todo o percurso gerador de sentido, o
intérprete já se encontra operando no sistema jurídico, afinal os enunciados prescritivos que se
dispõem a compreender conformam essa estrutura. Porém, na medida em que avança por esse
caminho, há um aprofundamento sistemático cada vez maior, até chegar ao ponto de
investigar a pertinência que a norma criada guarda com os demais elementos do conjunto.
Trata-se de uma visão orgânica do dado jurídico, no qual o intérprete procura coerência na
compreensão do direito.
Para facilitar a exposição, utilizamos de caso concreto326
. No aresto
que analisamos, os julgadores entenderam que, apesar do disposto no item 1.05 da lista anexa
à Lei Complementar 116/03, que determina a incidência do ISS, de competência municipal,
na cessão de licença de uso de programas de computador, não haveria a possibilidade do
sucesso, mediante análise sistemática. A partir da leitura de definição estipulativa presente no
art. 1º, da Lei 9.609/98, que considera o programa de computador como um trabalho
intelectual amparado pelo regime jurídico conferido aos direitos autorais, o Tribunal concluiu
pela inexistência de efetiva prestação de serviço, consubstanciada em uma obrigação de fazer,
segundo entendimento que remanesce na doutrina327
, mas de uma obrigação de dar, tratando-
325
Op. cit., 2010, p. 134. 326
TJSP, 15ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Silva Russo, apelação nº 994.06.175439-3,
julgada em 27/05/2010. A ementa encontra-se assim disposta: "MANDADO DE SEGURANÇA – ISS –
Exercício de 2004 – Município de Santana do Parnaíba – Ação de caráter preventivo – Adequação da via
eleita – Decadência não operada – Licenciamento e cessão de direito de uso de softwares – Tributação com
base no item 1.05 da lista trazida pela LC nº 116/03 – Descabimento – Atividade que não envolve efetiva
prestação de serviços – Afronta ao artigo 156, inciso III, da CF – Inconstitucionalidade vislumbrada –
Aplicação da Súmula Vinculante nº 10 do STF e do artigo 190 do Regimento Interno desta E. Corte –
Julgamento suspenso, com remessa dos autos ao C. Órgão Especial para análise da matéria." 327
No acórdão citado é lembrada a lição do Professor Aires F. Barreto, que, em sua obra Curso de Direito
Tributário Municipal. (São Paulo: Saraiva, 2009, p. 394), afirma que: "Dentre as cessões de direito, incluem-
se a licença de uso de 'software'. Na relação jurídica de uso de 'software' o licenciador ou sublicenciador cede
ao licenciado o direito de que é titular de usar a referida propriedade intelectual, mediante remuneração ou
não. Há rigorosamente a cessão de direito de uso de um bem que, em virtude de sua natureza incorpórea, é
um bem imaterial. Nesta operação, o titular dos direitos autorais do 'software' (licenciador) entrega o bem ao
interessado, para que possa usá-lo exclusivamente ou não, a título oneroso ou gratuito. Não há, pois, na
127
se o item 1.05 da lista anexa à Lei Complementar 116/03, de exigência inconstitucional por
ampliar a competência concedida ao ente tributante. Conforme disposto no acórdão328
:
O licenciamento e a cessão de direito de uso de 'softwares' não se caracterizam
exatamente como efetiva prestação de serviços, descabendo alterar a definição e o
alcance de seus conceitos329
, à luz do artigo 110 do Código Tributário Nacional [...]
Com efeito, nas mencionadas atividades da apelante não pode incidir o ISS, na
espécie, onde vislumbro a inconstitucionalidade do item 1.05 da lista federal,
reproduzido no item 05 da lista municipal, por afronta ao artigo 156, inciso III, da
Carta da República, de modo que a concessão da segurança é medida imperiosa, a
meu ver, para obstar tal exação.
Portanto, no julgado analisado, o intérprete superou a mera subsunção
lógica que poderia ocorrer a partir da leitura do item 1.05 da lista anexa à Lei Complementar
116/03, concluindo pela inconstitucionalidade da exigência do tributo sobre a atividade de
cessão de direito de uso de software. Para que isso fosse possível, estabeleceu as
características da atividade a fim de compará-la com o conceito de serviço utilizado pelo
legislador constituinte. A partir da lei 9.609/98, que estipula a definição e o regime jurídico
dos programas de computador, dialogou com a Ciência do Direito para fixar o que
efetivamente seria "prestar serviço", utilizando como critério a natureza da obrigação.
Pontuou suas ponderações pelo disposto no art. 110 do CTN, para ao final decidir pela
incompatibilidade do preceito com a Constituição Federal. O item 1.05, dessa maneira, foi
visto com relação ao todo, sendo esse um excelente exemplo de aplicação da exegese
sistemática, de acordo com as premissas que adotamos, pois o exegeta não se fixou apenas no
campo sintático. Partiu também, para análise semântico-pragmática, aprofundando-se no uso
dos conceitos de software e serviços pela comunidade jurídica, até o ponto de verificar a
inconsistência com norma de hierarquia superior (Carta Magna), em relação de subordinação
e com leis que regulam a matéria (Lei 9.609/98) em juízo de coordenação.
Portanto, a exegese sistemática de que falamos é aquela que não
interpreta o texto de forma isolada e parcial. O esforço necessário para a compreensão do
preceito é maior. Depende de uma análise mais ampla, consubstanciada no entendimento do
espécie esforço físico ou intelectual do cedente que possa caracterizar uma prestação de serviço, mas
verdadeira cessão de direito, da espécie licença de uso, cuja natureza é típica de uma obrigação de dar. Sendo
a cessão de uso de 'software' (cessão de direitos) negócio jurídico que, diante da nossa ordem jurídica,
configura obrigação de dar, segue-se, necessariamente, que jamais poderia refletir 'prestação de serviços' (que
só pode alcançar obrigações de fazer). Não há, pois, como subsumir a cessão de direito de uso de 'software'
no conceito de serviço tributável, por via do ISS". 328
Acórdão citado, fls. 2 e 4. 329
O magistrado refere-se obviamente à Constituição Federal.
128
direito como um conjunto de normas que se relacionam entre si também sob o ponto de vista
semântico e pragmático.
Confere robustez a esse entendimento Eros Roberto Grau330
, ao
afirmar que: "A interpretação do direito é interpretação do direito, e não de textos isolados,
desprendidos do direito."
E mais adiante, em outro trecho de sua obra, cita lição de Geraldo
Ataliba331
com propriedade: "Nenhuma norma jurídica paira avulsa, como que no ar. Nenhum
mandamento jurídico existe em si, como que vagando no espaço, sem escoro ou apoio. Não
há comando isolado ou ordem avulsa […]".
Contudo, o modo de compreender a técnica sistemática de exegese do
direito não é unânime na doutrina, sendo oportuno citar autores de relevo no cenário nacional
que a entendem de forma diversa, por vezes, aproximando-a da lógica, o que retiraria, em
nosso modo de ver, as qualidades que apontamos ao descrever esse modo de atribuir sentido
aos textos do direito posto.
Bernardo Ribeiro de Moraes332
, apesar de abrir suas explanações sobre
o assunto, afirmando cabalmente que "o sistemático não é apenas lógico", conclui seu
raciocínio compreendendo-o como um procedimento no qual os aspectos semânticos e
pragmáticos estariam além de seus limites. Encerra o doutrinador sua exposição sobre o tema
da seguinte maneira: "Em que pese o valor do método sistemático é de se ver que na
interpretação da norma jurídica não podemos ficar fixados apenas na norma jurídica. A
realidade social é essencial ao direito. O processo sistemático, portanto, não satisfaz
plenamente."
Porém, semântica e pragmática e, em certa medida, a própria lógica,
que varia de acordo com a finalidade de cada sistema, refletem o uso da linguagem e,
portanto, a denominada "realidade social" é contemplada, pois não existe sociedade apartada
da linguagem. Os próprios membros da comunidade de utentes da linguagem são discernidos
com a finalidade de iluminar a autonomia do direito e não seu isolamento social.
330
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo:
Malheiros Editores, 2006, p. 131. (destaques do autor). 331
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 132. 332
Op. cit., p. 197 e 198.
129
Hugo de Brito Machado333
, em seus ensinamentos, equipara a técnica
sistemática ao processo lógico de atribuição de sentido, conforme compreende-se na seguinte
passagem:
O método sistemático, também conhecido como lógico, é de fundamental
importância para revelar o significado adequado das normas, porque existem muitos
conceitos de Lógica Jurídica que podem ser simplesmente decisivos para a
compreensão de certas normas.
Porém, de forma diversa dos autores citados, o construtivismo lógico-
semântico compreende o método sistemático como o mais completo, por permitir ao
intérprete incursionar pela linguagem jurídica em todos os seus patamares, não se
confundindo com o chamando método lógico, anteriormente explicado. O aspecto pragmático
consistente no uso que a comunidade jurídica faz dos textos que compõem o ordenamento
implica atenção ao aspecto social, aos valores a serem observados pelo exegeta, o que se
reflete tanto no campo sintático, na medida em que a norma irá permitir (P), proibir (V) ou
obrigar (O) determinada conduta, como no semântico, mediante a atribuição de sentido aos
termos que compõem a linguagem na qual encontra-se vazado o preceito jurídico. Vimos em
exemplo anterior que, muito embora a Corte Especial tenha fundamentado sua decisão no
processo teleológico, ocorreu também análise sistêmica por parte do exegeta, que pautou-se
no valor da proteção à saúde, conferido pela Constituição Federal, para ampliar o conceito de
"estabelecimento hospitalar", apesar do disposto no artigo 111, II, do CTN. A análise
sistemática é, portanto, mais ampla que a análise lógica e por contemplar o aspecto
pragmático da linguagem jurídica considera o contexto sócio-cultural em que a interpretação é
realizada.
A exegese sistemática afigura-se como absolutamente necessária em
qualquer ramo do direito porque imprime maior segurança e consistência à atribuição de
sentido, em virtude de o preceito não ser interpretado isoladamente, mas como uma
proposição pertencente a um conjunto. Contudo, a assertiva parece-nos muito evidente no
campo do direito tributário, conclusão a que se chega ao considerarmos dado incontroverso
presente em nosso ordenamento: o constituinte repartiu rigorosamente a competência para
instituir tributos aos entes políticos no corpo da Constituição Federal e, ao fazê-lo, utilizou-se
de conceitos presentes em vários ramos do direito, como "serviço", "mercadoria",
"propriedade urbana" etc., não estipulando definição própria no texto constitucional. Portanto,
333
Op. cit., p. 97.
130
parece-nos compatível com as premissas adotadas nesse trabalho, que a atribuição de sentido
que permita delimitar a competência dos entes tributantes dependerá, necessariamente, de
uma incursão ao sistema.
Reforça a tese, regra do ordenamento que determina a maneira de
interpretar os conceitos de direito privado utilizados na Constituição Federal, consistente no
disposto no art. 110 do Código Tributário Nacional, que passamos a analisar.
5.7 O artigo 110 do Código Tributário Nacional e a interpretação sistemática
O dispositivo que passamos a investigar é uma regra do ordenamento
para a exegese do direito tributário, encontrando-se inserida em capítulo próprio do CTN
reservado ao assunto. Contudo, optamos por analisá-lo nesse ponto da dissertação, que trata
sobre as técnicas que a Hermenêutica tradicionalmente debate e, mais especificamente, sobre
a exegese sistemática do direito, ao invés de abordá-lo em tópico anterior voltado à descrição
crítica de regras dessa natureza. O motivo do recorte analítico efetuado é a compreensão,
vigente em parcela da doutrina334
, de que o dispositivo em estudo denotaria superioridade
entre os métodos adotados pelo legislador do Código, que teria premiado técnica sistemática
de interpretação, para uns, ou teleológica, para outros, de acordo com a leitura feita dos
artigos 109335
e 110336
do CTN.
Ricardo Lobo Torres337
coloca o problema da seguinte forma:
334
No sentido de defender interpretação sistemática do direito tributário, com a leitura conjunta dos artigos 109
e 110 do CTN, lembramos Rubens Gomes de Sousa (op. cit., p. 378-379). Para ilustrar posição contrária, que
defende a supremacia da interpretação teleológica, lembramos Amílcar de Araújo Falcão, em Fato gerador
da obrigação tributária (3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1974, p. 45-44), da qual convém
ressaltarmos o seguinte trecho: "A caracterização do fato gerador nem sempre, entretanto, se faz
extensivamente na lei. Muitas vêzes limita-se o legislador a mencionar um simples 'nomen juris', ou a fazer
uma enumeração meramente exemplificativa, deixando ao intérprete a tarefa de, com base na norma,
conceituar concretamente o fato gerador em cada caso. A primeira hipótese ocorre quando o fato gerador
coincide com um conceito já consagrado em outro ramo do direito, em alguma ciência ou mesmo na
linguagem comum. Em tal caso, ao intérprete e ao aplicador cumprirá colhêr as características do fato
gerador na disciplina jurídica ou científica na qual a sua definição foi tomada, com a advertência, porém, de
que para tanto serão levados em consideração princípios fundamentais do Direito Tributário e, entre êles, o
da chamada interpretação econômica da lei tributária." 335
"Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do
alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários." 336
"Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e
formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas
Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou
limitar competências tributárias." 337
Op. cit., p. 137.
131
Com efeito, o CTN pretende estabelecer uma hierarquia entre os métodos de
interpretação, especialmente entre o sistemático e o teleológico ou econômico. Em
razão de sua ambigüidade, entretanto, abre-se para duas leituras distintas e
contrastantes: a) pode ser interpretado, se lidos conjuntamente os arts. 109 e 110, no
sentido de que privilegia o método sistemático, quando estiverem em jogo institutos
e conceitos utilizados pela Constituição; b) admite a interpretação, se visualizado
separadamente o art. 109, de que há prioridade ao método teleológico ou à
consideração econômica do fato gerador, pelo menos quando não haja a
constitucionalização dos conceitos.
O problema da escolha pela prevalência entre uma das duas técnicas
apontadas, segundo observa o autor338
, relacionar-se-ia com: (i) as fontes do direito; (ii) com o
equilíbrio entre direito tributário e direito privado; e (iii) com a licitude da escolha das formas
jurídicas. Dessa maneira, se adotada a exclusividade da legislação como fonte do direito, em
virtude do disposto no art. 110 do CTN, haveria subordinação do direito tributário ao direito
privado e a licitude da escolha das formas dos negócios jurídicos, premiando-se visão
sistemática. Se, porém, houver a inclusão da jurisprudência entre as fontes do direito, tem-se a
autonomia do direito tributário e a ilicitude da elisão, revelando-se, assim, a supremacia do
método teleológico.
Apesar da importância que assumiu o debate em nossa doutrina, com
evidentes reflexos na jurisprudência339
, entendemos tratar-se de falso problema se submetido
à luz das premissas encampadas nessa pesquisa e a uma análise mais detida da posição do
direito tributário em nosso ordenamento jurídico.
De início, constatamos que a legislação e a jurisprudência não são
fontes do direito340
, mas o próprio direito já constituído. Por outro lado, em respeito ao debate
travado na doutrina que se utiliza desses dois conceitos como critérios para apuração de
eventual supremacia entre as posturas interpretativas perfilhadas pelo CTN, analisamos a
possibilidade de seu emprego como forma de elucidar a questão. Concluímos, porém, que
338
Op. cit., loc. cit. 339
A título de exemplo, STF, RE nº 100.779, Relator Ministro Oscar Corrêa. Publicado no D.J. de 04.05.84. Em
trecho do voto do Min. Relator ficou consignado às fls. 09 que: "O conceito de serviço que impera no direito
tributário não é mais o mesmo do Direito Civil, mas o que se ampliou na interpretação econômica dos
serviços, postos como meio de satisfação das necessidades imateriais, como os bens o são para as
necessidades materiais." Em julgado mais recente, STJ, Recurso Especial nº 610.693 – CE, Relator Min. Luiz
Fux: "Tributário. Abono substitutivo de reajuste salarial. Incidência do imposto de renda. [...] 3. O abono
pecuniário concedido aos empregados em substituição ao reajuste dos salários inadimplidos no tempo devido,
não obstante fruto de reconhecimento via transação, é correção salarial e, como tal, incide o imposto devido,
tal como incidiria a exação, se realmente paga a correção no tempo devido. Abono salarial com esse teor, é,
em essência, salário corrigido, sendo indiferente que a atualização se opere por força de decisão judicial ou
de transação. 4. Interpretação econômica que se impõe, uma vez que a realidade econômica deve
prevalecer sobre a simples forma jurídica." (destaques nossos). 340
Entendemos como "fonte do direito" a atividade de enunciação de normas desenvolvidas pelos órgãos
habilitados pelo sistema, segundo as regras nele previstas.
132
tanto os textos de lei, como a jurisprudência não constituem índice seguro para respondê-la.
Por terem característica de linguagem que configura o direito posto, são atingidas pela
vaguidade e ambiguidade, como, aliás, comprova o próprio debate que ora reportamos. Dito
de outra maneira, a legislação em si, enquanto ente físico, necessita ser interpretada e o
exegeta, ao analisar os preceitos do artigo 109 e 110 do CTN, poderá negar a existência da
suposta hierarquia entre as técnicas, ou ainda, concluir pela supremacia de qualquer uma
delas. A jurisprudência, por outro lado, entendida como o produto de interpretações efetuadas
pelos membros do Poder Judiciário que apontam sentidos recorrentes, poderá concluir pela
preponderância da interpretação sistemática, como no exemplo acima, que afastou a
incidência do ISS sobre licença de uso dos programas de computador. Em suma, não guarda a
legislação a exclusividade da interpretação sistemática, nem tampouco a doutrina porta a
bandeira da exegese teleológica como se fossem essências caracterizadoras da natureza dos
dois institutos341
.
A segunda controvérsia sucede da suposta preferência do legislador
pela exegese sistemática. Trata-se da subordinação do direto tributário ao direito privado, tese
da qual discordamos342
. O direito é um sistema de linguagem, feixe de proposições voltadas
para a realização de um fim, mais precisamente a regulação da conduta humana, sendo
admissível sua divisão em ramos somente para atender necessidades didáticas. Sobre o
assunto, lembramos a doutrina de Alfredo Augusto Becker343
, ao defender a unicidade do
direito:
Não existe um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil ou
comercial. Os vários ramos do Direito não constituem compartimentos estanques,
mas são partes de um único sistema jurídico, de modo que qualquer regra jurídica
exprimirá sempre uma única regra (conceito ou categoria ou instituto jurídico)
válida para a totalidade daquele único sistema jurídico [...] uma definição, qualquer
que seja a lei que a tenha enunciado, deve valer para todo o Direito; salvo se o
legislador expressamente limitou, estendeu ou alterou aquela definição ou excluiu
sua aplicação num determinado setor do Direito […]
Do ponto de vista formal, a unicidade do direito defendida por Becker
fica evidente ao pensarmos no aspecto dinâmico de sua linguagem, isto é, na maneira como
são realizados os comandos do direito posto. A concretização das normas jurídicas se dá de
341
Relembramos a premissa adotada nesse trabalho que refuta a ideia de uma essência imutável na linguagem
que possa ser atribuída aos conceitos de direito. As significações variam de acordo com o contexto em que a
língua é utilizada. 342
Como exemplo desse pensamento, citamos Aliomar Baleeiro: "Combinado com o art. 109, o art. 110 faz
prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial – quanto à definição, ao conteúdo e ao alcance
dos institutos, conceitos e formas daquele direito […]". (op. cit., p. 687). 343
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p. 129-130.
133
forma escalonada, devendo ser produzidas com respeito à competência distribuída na
Constituição Federal – seu fundamento último de validade – e de acordo com o procedimento
nela delineado. Isto implica a tese de que, seja no chamado direito privado, seja no público, os
sujeitos somente poderão agir dentro do que o direito entende como permitido (P), proibido
(V) ou obrigatório (O)344
. Portanto, sintaticamente, a linguagem jurídica não apresenta a
possibilidade da formação e existência de dois direitos distintos, de acordo com os sujeitos
que se vinculam na relação jurídica.
Os aspectos semânticos e pragmáticos da linguagem jurídica nos
permitem também reafirmar a unicidade do direito. Os conceitos de direito privado utilizados
na Constituição Federal e que delimitam as competências tributárias foram vazados em
linguagem técnica345
, característica do direito positivo, sem que qualquer ressalva ou
definição estipulativa fosse tecida pelo constituinte. Ao utilizar-se do conceito de "serviço",
"renda", "faturamento", dentre outros, o fez com observância aos sentidos possíveis admitidos
pela comunidade jurídica e que são associados ao denominado direito privado. Portanto, na
interpretação sistemática, conforme disposta pelo art. 110 do CTN, não ocorreria a
subordinação do direito tributário ao direito privado, mas a simples constatação de que os
conceitos de direito privado foram incorporados na Constituição Federal, ao delimitar-se a
competência dos entes tributantes.
Sobre o assunto, lembramos os ensinamentos de Tathiane dos Santos
Piscitelli346
:
O artigo 110 do CTN, ao estabelecer a prevalência de conceitos, formas e definições
de direito privado, não pressupõe qualquer submissão da Constituição a esses
institutos. Ao contrário, apenas denota a incorporação deles mesmos no texto
constitucional. Ou seja, somente faz sentido falar em respeito aos institutos de
direito privado porque a Constituição os incorporou por ocasião da delimitação
da competência tributária.
344
Nesse sentido, Hans Kelsen adverte-nos dos problemas ocasionados pela divisão radical do direito em
público e privado. Para o jusfilósofo, o critério eleito para a classificação proposta seria a repartição das
relações jurídicas. No direito privado os sujeitos estariam em posição de igualdade, possuindo juridicamente
o mesmo valor. Porém, no direito público, o Estado ocuparia posição de superioridade e, no outro extremo, o
súdito estaria subordinado às considerações advindas do poder. Dessa maneira, teríamos o direito em sentido
próprio somente nas relações jurídicas privadas. O direito público, por sua vez, revelaria relações de poder ou
domínio, na medida em que haveria um sujeito supraordenado em oposição a outro, subordinado. Isso
significaria admitir que no direito público o princípio da legalidade não teria a mesma força que no direito
privado. Conforme Teoria Pura do Direito (op. cit., p. 310-315). 345
Por linguagem técnica, entendemos aquela que se constitui em linguagem ordinária, mas que se utiliza de
alguns conceitos científico, conforme expusemos em capítulo próprio. 346
Op. cit., p. 1228. (destaques da autora).
134
Observamos que a interpretação sistemática, ainda que possa ser
associada ao artigo 110 do CTN, é a melhor técnica de exegese, independentemente da
existência do dispositivo legal, porque nela o direito é visto como um todo unitário, isto é, os
aspectos da linguagem jurídica são integralmente analisados, inclusive o pragmático, no qual
o uso dos termos está firmemente conectado à finalidade da norma, aos valores presentes no
contexto histórico-cultural que orienta o intérprete, conforme já exposto. Tratando-se de nosso
ordenamento ela se impõe como decorrência da opção feita pelo constituinte, que repartiu as
competências tributárias e os limites de sua utilização no corpo da Constituição Federal,
incorporando conceitos de direito privado. Portanto, uma correta exegese da norma tributária
– que não implica em atribuir-se sentido único – somente poderá ser feita se o sujeito assumir
postura sistemática. Todavia, a existência do art. 110 do CTN é bastante útil, porque serve
para reafirmar a interpretação sistemática como regra a ser observada tanto pelo legislador,
como pelo aplicador do direito.
Vejamos mais um caso concreto347
, que bem exemplifica a imposição
da exegese sistemática em nosso ordenamento e a utilidade do art. 110 do CTN. A
controvérsia no aresto analisado residia na licitude de incidência de ISS sobre locação de
veículo automotor. O exame do conceito de "locação", conforme utilizado no direito privado,
que caracteriza-se por uma obrigação de dar, serviu como parâmetro para que o Tribunal
concluísse pela impossibilidade da cobrança do imposto, cuja competência constitucional
exige uma prestação de serviço caracterizada por obrigação de fazer. Portanto, para que o
julgador pudesse solucionar adequadamente a lide, adentrou no direito privado e,
compreendendo o significado do termo "serviço", incorporado pela Carta Magna, pôde decidir
pela inconstitucionalidade da lei municipal, dissonante em relação de coordenação e
subordinação com demais normas do sistema.
Pelo exposto, discordamos da opinião de Ricardo Lobo Torres348
, para
quem:
347
STF, Recurso Extraordinário nº446.003-3 – PR, 2ª Turma, Relator Min. Celso de Mello, julgado em
30/05/2006, cuja Ementa encontra-se assim redigida: "Imposto sobre serviços (ISS). – Locação de veículo
automotor – Inadmissibilidade, em tal hipótese da incidência desse tributo municipal – Distinção necessária
entre locação de bens móveis (obrigação de dar ou de entregar) e prestação de serviços (obrigação de fazer) –
Impossibilidade de a legislação tributária municipal alterar a definição e o alcance de conceitos de direito
privado (CTN, art. 110) – inconstitucionalidade do item 79 da antiga lista de serviços anexa ao Decreto-Lei
nº 406/68 – Precedentes do Supremo Tribunal Federal – Recurso Improvido." 348
Op. cit., p. 142.
135
A interpretação lógico-sistemática do Direito Tributário, além da incongruência de
se aplicar apenas aos conceitos tributários constitucionalizados, está em franco
declínio na consideração da doutrina jurídica, por excluir a apreciação teleológica.
E, juntamente com ela, os seus corolários inevitáveis: o primado do Direito Privado,
a separação entre o sistema do Direito e da Economia, a licitude da elisão e a
exclusão da legislação como fonte do Direito Tributário.
De maneira contrária, entendemos que a interpretação sistemática é
uma exigência de nosso ordenamento jurídico. No que tange ao direito tributário não há como
posicionar-se pela constitucionalidade de uma norma sem que o intérprete promova a
significação dos conceitos que delimitam as competências dos entes tributantes no direito
privado. Além disso, todo e qualquer ato jurídico praticado pelo ente tributante ou pelo
particular no exercício da respectiva competência está adstrito aos princípios que delimitam o
poder de tributar e que estão estampados na Constituição Federal. Por essas razões,
discordamos da posição do autor ao afirmar o desprestígio da interpretação sistemática e
concluímos pela improcedência da discussão sobre a eleição de métodos pelo legislador do
Código Tributário Nacional. Primeiro, porque, como asseverado, a interpretação sistemática
pressupõe todos os demais métodos, inclusive o teleológico. Segundo, porque a Constituição
Federal, ao tratar com minúcias o direito tributário, exige do intérprete uma visão orgânica
somente acessível pelo método sistemático de interpretação.
No que concerne à suposta falta de apreciação teleológica pela via da
interpretação sistemática, ressalvamos que ela não se limita ao plano lógico. A apreciação
teleológica da norma é contemplada por esse método na medida em que o direito implica a
realização de valores. Dessa forma, a atribuição de sentido aos termos que compõem a
linguagem jurídica será feita na instância pragmática e depende das escolhas efetuadas pelo
intérprete que está inserido e limitado pelo contexto histórico, social e jurídico no qual
encontra-se imerso.
Por outro lado, a conclusão automática e infalível da licitude da
escolha das formas nos negócios jurídicos, independentemente de seu conteúdo, conforme
afirma o autor, na medida em que se opte pelo método sistemático não se sustenta.
Primeiramente, lembramos da impossibilidade lógica da existência de forma sem conteúdo. A
linguagem jurídica, como outra qualquer, depende de suportes físicos, a exemplo da escrita,
que lhe emprestam a forma. Seu conteúdo será ditado pelo intérprete, visto como sujeito
limitado por um contexto ao qual pertence, conforme premissas utilizadas nessa pesquisa.
Portanto, qualquer formato de negócio jurídico não se realiza independentemente de um
136
conteúdo. O juízo consistente em saber se sua utilização encontra-se dentro das balizas do
direito ou se é caso de simulação349
dependerá das provas constituídas e não guarda vínculo
automático com a utilização de técnica sistemática ou teleológica de interpretação do direito.
Pelo contrário, entendemos que a interpretação sistemática somente pode auxiliar o intérprete
na compreensão do fenômeno, justamente por pressupor todas as demais técnicas, inclusive a
teleológica.
No tocante à separação do sistema do direito da economia, outro fato
apontado acima por Ricardo Lobo Torres, como decorrência infalível da interpretação
sistemática, salientamos, trata-se de ponto fulcral para a preservação da autonomia do direito
com relação aos demais sistemas, o que pode evitar que decisões sejam tomadas com
fundamentos não jurídicos, prejudicando a expectativa compartilhada pelos utentes da
linguagem do direito posto, isto é, um mínimo de segurança jurídica. O assunto será revisto
no tópico relativo à interpretação econômica do direito tributário.
5.8 A interpretação sistemática e os Tribunais Administrativos
A partir das considerações elementares efetuadas no tópico anterior,
dispomo-nos a responder uma questão bastante recorrente e de fundamental importância, que
é levantada no cenário atual: podem os Tribunais administrativos, a exemplo do CARF350
,
deixar de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional? Dito de outra maneira, julgamento
que admita a impossibilidade dos Tribunais administrativos afastarem a incidência de uma
dada norma jurídica por sua inconstitucionalidade implica em vedação ao intérprete de
realizar exegese sistemática?
O entendimento dominante na esfera administrativa de julgamento de
questões advindas da exegese e aplicação das leis tributárias federais considera que a
competência para declarar norma inconstitucional seria exclusiva do Poder Judiciário. Além
349
Luciano Amaro conceitua a simulação como: "Falta de correspondência entre o negócio que as partes
realmente estão praticando e aquele que elas formalizam. As partes querem, por exemplo, realizar uma
compra e venda, mas formalizam (simulam) uma doação, ocultando o pagamento do preço […]."(op. cit., p.
231). 350
A sigla utilizada refere-se ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão integrante da estrutura do
Ministério da Fazenda que tem por função julgar recursos de ofício e voluntário de decisões de primeira
instância administrativa, bem como recursos de natureza especial que versem sobre a aplicação de legislação
referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, conforme disposto no Anexo
I, da Portaria nº 256 do Ministério da Fazenda, que aprovou o regimento interno do CARF.
137
disso, as leis teriam presunção de legalidade, razões pelas quais não poderia o agente
administrativo deixar de aplicá-las.
A posição dos Tribunais administrativos sobre o assunto encontra-se
muito bem explicada na doutrina de Marcos Vinícius Neder e Maria Teresa Martínez
López351
, a seguir transcrita:
É importante lembrar que as decisões administrativas são espécie de ato
administrativo e, como tal, sujeitam-se ao controle do Judiciário. Se, por acaso, a
fundamentação do ato administrativo baseou-se em norma inconstitucional, o Poder
que tem atribuição para examinar a existência de tal vício é o Poder Judiciário.
Afinal presumem-se constitucionais os atos emanados do Legislativo e, portanto, a
eles vinculam-se as autoridades administrativas. [...] Com efeito, se o Presidente da
República, que é responsável pela direção superior da Administração Federal, como
prescreve o artigo 84, II, da CF/88, e tem o dever de zelar pelo cumprimento de
nossa Carta Política, inclusive vetando leis que entenda inconstitucionais, decide não
o fazer, há presunção absoluta de constitucionalidade da lei que este ou seu
antecessor sancionou ou promulgou.
Como se verifica, os argumentos da presunção de constitucionalidade
da lei e a competência exclusiva do Poder Judiciário para afastar normas inconstitucionais
encontram-se defendidos na teoria dos autores, o que também se repete nos julgamentos do
CARF. Observemos um caso concreto, cujo objeto central do debate consistiu na aplicação do
art. 3º, § 2º, inciso III, da Lei 9.718/98352
, para fins de exclusão da base de cálculo do PIS e da
COFINS de receitas transferidas para outras pessoas jurídicas353
. Segundo consta do voto do
Relator, compete aos órgãos judicantes do Poder Executivo
Tão-somente o controle de legalidade dos atos administrativos, consistente em
examinar a adequação dos procedimentos fiscais com as normas legais vigentes,
zelando, assim, pelo seu fiel cumprimento. […] Os mecanismos de controle da
constitucionalidade, regulados pela própria Constituição Federal, passam,
necessariamente, pelo Poder Judiciário que detém, com exclusividade, essa
prerrogativa.
351
NEDER, Marcos Vinícius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal
comentado. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 50-51. 352
O dispositivo legal encontrava-se, à época dos fatos, assim redigido: "Art.3º. O faturamento a que se refere o
artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica. [...] § 2º. Para fins de determinação da base de
cálculo das contribuições a que se refere o art. 2º, excluem-se da receita bruta: [...]. III – Os valores que,
computados como receita, tenham sido transferidos para outra pessoa jurídica, observadas normas
regulamentadoras pelo Poder Executivo." Com a edição da Medida Provisória nº 2.158 de 2001, o dispositivo
em questão foi considerado revogado. Contudo, sua incidência foi objeto de apreciação no acórdão proferido
em 2008, utilizado como exemplo de decisão na qual deixou-se de efetuar interpretação sistemática. 353
Acórdão nº 203-13.659, fls. 353. Sessão de 03/12/2008. Segundo Conselho de Contribuintes. Terceira
Câmara. Relator Gilson Macedo Rosenburg Filho.
138
Tal entendimento reflete o disposto na Súmula nº 02, aprovada pela
Portaria nº 106, de 21/12/09, que assim determina: "O CARF não é competente para se
pronunciar sobre a inconstitucionalidade da lei tributária."
Observe-se, ainda, a redação dada pela Lei nº 11.941/2009 ao art. 26-
A do Decreto nº 70.235/1972, responsável por reger o processo administrativo que verse
sobre créditos tributários da União: "No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado
aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo
internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade."
Contudo, de nosso ponto de vista, não parece correto proibir juízo
sobre a inconstitucionalidade das leis por parte dos Tribunais administrativos. Primeiramente,
reiteramos a observação já feita sobre o tratamento constitucional que a matéria tributária
recebeu no Brasil. No caso concreto citado, a Receita recusou-se a aplicar o art. 3º, § 2º,
inciso III, da Lei 9.718/98, que permitia a exclusão da base de cálculo do PIS e da COFINS de
receitas transferidas a outras pessoas jurídicas, sob o argumento de que o dispositivo exigia a
regulamentação pelo Poder Executivo. Todavia, pelo princípio da estrita legalidade disposto
no art. 150, I, da Carta Magna, a definição da base de cálculo de qualquer tributo somente
pode ser feito por lei354
, o que implica no reconhecimento da licitude de não inclusão dos
valores transferidos a terceiros, apesar do disposto no art. 3º, § 2º, inciso III, da Lei 9.718/98,
que nesse tópico ofendia a Carta Magna. Portanto, a solução para a controvérsia,
necessariamente, exigia o juízo sistemático que considerasse a constitucionalidade do
supracitado artigo. Como não foi feito, o aplicador ficou cingido à subsunção lógica do fato
ao preceito normativo, possível de se realizar pela simples leitura do direito, que, frise-se, não
é o mesmo que interpretar uma lei, constituindo-se apenas a etapa inicial dessa atividade
complexa.
Parece-nos, inclusive, que, ao contrário do disposto no trecho do voto
do ilustre Conselheiro, os juízos constitucionais também são necessários à analise de
procedimentos fiscalizatórios. Deixar de intimar o contribuinte de ato administrativo de seu
interesse, por exemplo, pode gerar nulidade por ofensa, em último juízo, às garantias
constitucionais do devido processo legal e do direito a ampla defesa. Nesse sentido,
354
Neste sentido, Roque Antonio Carrazza leciona que "O tributo, pois, deve nascer da lei [...] Tal lei deve
conter todos os elementos e supostos da norma jurídica tributária (hipótese de incidência do tributo, seus
sujeitos ativo e passivo e suas base de cálculo e alíquotas), não se discutindo, de forma alguma, a delegação,
ao Poder Executivo, da faculdade de defini-los, ainda que em parte.". (op. cit., p. 248).
139
exemplifica ementa de acórdão proferido pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos
Fiscais:
Nulidade – Cerceamento de defesa. A intimação feita para endereço diverso do
advogado da parte, quando essa pretensão é requerida expressamente na
impugnação, caracteriza preterição do direito de defesa da parte. (Processo nº
10880.07697/92-88, Acórdão CSRF/01-02.288).
Não obstante inexistir menção no julgado em exame à eventual
inconstitucionalidade do ato praticado, o direito de defesa infringido pela notificação em
endereço diverso do requerido pelo patrono do contribuinte encontra-se na Carta Magna, art.
5º, LV, cuja redação é a seguinte: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e
aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes." Portanto, devido à unicidade do direito e ao escalonamento
hierárquico das normas que o caracterizam, não há como o intérprete deixar de proceder a
juízos sistemáticos, mesmo quando o assunto seja o procedimento da fiscalização.
Outro argumento que nos faz discordar da Súmula nº 02 do CARF é
que o fundamento último de validade de uma norma encontra-se no Texto Maior que, repita-
se, estabeleceu competências em matéria tributária, cabendo por força do disposto no seu art.
23, I, à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios a guarda da Constituição Federal.
Com efeito, ainda que exista o monopólio do Poder Judiciário para declarar a
inconstitucionalidade da lei, a norma do referido artigo fundamenta a não aplicação de
dispositivo que se vislumbre em desalinho com a Carta Magna355
.
Em nossa opinião, impedir que os órgãos judicantes do Poder
Executivo afastem leis inconstitucionais significa impedi-los de efetuar interpretação
sistemática, que configura-se como regra de exegese do direito tributário brasileiro. Segundo
as premissas adotadas nesse trabalho a vedação imposta pode levar a arbitrariedades, isto é, a
enunciação de normas que não atendem a expectativa jurídica dos utentes da linguagem,
como a aplicação de lei inconstitucional.
355
Dessa forma, parece-nos pouco convincente o posicionamento de parte da doutrina consistente em admitir a
incidência restrita da Súmula nº 02 do CARF aos casos em que houver a inconstitucionalidade da lei por
ofensa direta à Constituição, permitindo, por parte da Administração Tributária, juízo de constitucionalidade
nas ocasiões em que, diversamente, a afronta for apenas indireta. Tal posição é defendida, por exemplo, por
Marcos Vinícius Neder, em artigo denominado Alcance e efeitos da súmula vinculante administrativa. In:
BARRETO, Aires Fernandino et al. Interpretação e Estado de Direito. São Paulo: Editora Noeses, 2006, p.
583.
140
O mesmo entendimento se aplica à súmula vinculante, ao proibir os
membros do Poder Judiciário e dos Tribunais administrativos de se manifestarem
contrariamente a entendimento já consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Referimo-nos
ao enunciado que reflete entendimento dominante na jurisprudência, mas que, ao contrário
das súmulas persuasivas356
, tem efeito vinculante no que concerne aos membros do Poder
Judiciário e da Administração Tributária Federal357
. Tal medida pode limitar a atividade
interpretativa do sujeito, que fica impedido, nos casos onde houver as mesmas razões fáticas
e jurídicas, de decidir litígio de forma diferente do sumulado. O julgador poderá ter seu livre
convencimento tolhido pelo enunciado a que deve se submeter, estando proibido de proferir
norma que entenda compatível com uma visão sistemática do direito358
.
Concluímos, portanto, que a técnica sistemática de interpretação do
direito tributário é a única capaz de percorrer a linguagem jurídica em todos os seus aspectos.
Em nosso ordenamento jurídico, ela deve imperar como decorrência de o constituinte ter
prestado tratamento constitucional ao sistema de direito tributário, repartindo competências e
356
Para evitar contradição com premissa da pesquisa que considera o direito um sistema de linguagem
prescritiva, esclarecemos que as súmulas persuasivas são direito posto que vinculam o Poder Judiciário no
modal deôntico P(p). Isto significa que é permitido aos julgadores acatar ou não o entendimento sumulado.
De forma diversa, as súmulas denominadas "vinculantes" trazem comando no modal deôntico O(p), segundo
o qual, as autoridades referidas no art. 103-A da Constituição Federal estão obrigadas a aplicar o
entendimento do STF quanto à matéria sumulada. 357
Conforme Emenda Constitucional nº 45, de 2004, houve a introdução do artigo 103-A na Constituição
Federal: "Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de
dois terços de seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a
partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário e à
administração pública direita e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua
revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei." (Grifo nosso). A Lei 11.196 de 2005 acrescentou o
art. 26-A ao Decreto nº 70.235, assim redigido: "A Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da
Fazenda – CSRF poderá, por iniciativa de seus membros, dos Presidentes dos Conselhos de Contribuintes, do
Secretário da Receita federal ou do Procurador Geral da Fazenda Nacional, aprovar proposta de súmula de
suas decisões reiteradas e uniformes. [...] § 3º Após a aprovação do Ministro do Estado da Fazenda e
publicação no Diário Oficial da união, a súmula terá efeito vinculante em relação à Administração Tributária
Federal e, no âmbito do processo administrativo, aos contribuintes." Com a edição da Lei nº 11.941 de 2009,
o referido artigo foi novamente alterado, sendo revogado o § 3º e a previsão de edição de súmula que vincule
a administração e os contribuintes. Todavia, a previsão para a vinculação da administração pública às
Súmulas vinculantes do STF remanesce em virtude do disposto no art. 103-A da CF, que foi regulado pela
Lei 11.417/2006. 358
Nesse sentido são as lições de Eduardo Domingos Bottallo: "[...] em sistemas como o nosso, as súmulas não
deveriam ir além da missão de 'mostrar' o direito posto pelo órgão jurisdicional que as elabora, sem que isto
signifique dotá-las de obrigatoriedade ou de poder vinculante [...]. Claro está que há de ser levada em conta a
fortíssima influência que as súmulas podem exercer em julgamento de casos similares àqueles que
constituem seu objeto. Entretanto, melhor seria que tal influência se limitasse a ser persuasiva porque,
ultrapassando este limite, a função do julgador perde o significado; passa a ser meramente decorativa."
(Súmulas obrigatórias do Primeiro Conselho de Contribuintes e direito dos administrados. In: ROCHA,
Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. Vol. 10. São Paulo: Dialética,
2006, p. 64.
141
incorporando conceitos de direito privado para estipular materialidades possíveis, bem como
por estabelecer limites à tributação.
5.9 A interpretação econômica do direito tributário
Apesar das razões que justificam a interpretação sistemática como
regra imposta pelo ordenamento jurídico, parte da doutrina considera que, em virtude de
peculiaridades do direito tributário, mais precisamente, a relação econômica supostamente
presente no fato imponível, a exegese econômica seria o método específico para compreendê-
lo. No magistério de Amílcar de Araújo Falcão359
:
O que interessa ao direito tributário é a relação econômica. Um mesmo fenômeno da
vida pode apresentar aspectos diversos, conforme o modo de encará-lo e a finalidade
que, ao considerá-lo, se tem em vista. Assim, em direito civil, interessam os efeitos
dos atos e as condições de validade exigidas para a sua constituição e formação. [...].
Ao direito tributário só diz respeito a relação econômica a que êsse ato deu lugar,
exprimindo, assim, a condição necessária para que um indivíduo possa contribuir, de
modo que, já agora, o que sobreleva é o movimento de riqueza, a substância ou
essência do ato, seja qual fôr a sua forma externa
Outros autores a contestam como método específico do direito
tributário, porém a reconhecem como uma espécie de interpretação teleológica que deve ser
utilizada para descortinar tentativas do contribuinte de evadir-se à tributação. Como exemplo,
citamos o magistério de Ruy Barbosa Nogueira360
:
Um aspecto importante dentro da interpretação teleológica é o da chamada
consideração econômica. Especialmente no campo dos impostos, tendo-se em vista
que estes são instrumentos de captação de riquezas, que incidem quase sempre sobre
fatos econômicos por meio de categorias jurídicas que podem estar sendo distorcidas
ou mal utilizadas com pretensões de deduzir ou elidir tributações legítimas. A
consideração econômica poderá, em certos casos, demonstrar a finalidade autêntica
de dispositivos e impedir abusos.
Com efeito, o conceito de interpretação econômica tem inúmeros
sentidos em nossa doutrina361
, a ponto de Johnson Barbosa Nogueira catalogar oito espécies
de exegese econômica362
. Contudo, podemos afirmar que o denominador comum entre elas é
359
Op. cit., p. 99. 360
Op. cit., p. 93. 361
A variação a que nos referimos não é característica do conceito de interpretação econômica, podendo atingir
todo e qualquer conceito, na medida em que são constituídos pela linguagem, sempre vaga e ambígua. 362
NOGUEIRA, Johnson Barbosa. A interpretação econômica no Direito Tributário. São Paulo: Resenha
Tributária, 1982, p. 18-24. Segundo o autor, seriam as variações conceituais de interpretação econômica as
seguintes: (i) Busca da substância econômica, desprezando-se a forma jurídica; (ii) utilização de conceitos
próprios de direito tributário, em decorrência de sua autonomia; (iii) busca de identidade de efeitos
142
a suposta presença de relação econômica no fato imponível que serviria como guia para a
atividade do exegeta. Amílcar de Araújo Falcão363
defende, inclusive, a forma elíptica364
do
critério material de um tributo, tratando-se de referência meramente léxica a uma relação
econômica. Para fins desse trabalho, analisaremos, sob a óptica dos pressupostos adotados,
apenas uma variante conceitual sobre interpretação econômica muito recorrente no cenário
atual: trata-se da que visa combater a simulação, também compreendida como abuso de
formas. Antes, porém, teceremos alguns comentários gerais sobre a exegese econômica.
De acordo com as premissas que regem nossa pesquisa, o direito é um
objeto cultural cuja finalidade seria a realização de valores. No direito tributário, vertente
isolada para fins exclusivamente didáticos, o mesmo ocorre. Os valores "igualdade" e
"justiça" são exemplos de estimativas que devem ser concretizadas na esfera tributária. A
forma utilizada pelo legislador para alcançar esse fim é a introdução no ordenamento jurídico
de normas que visam instituir, arrecadar e fiscalizar tributos365
. O legislador escolhe dentre os
eventos que sucedem no plano social aqueles que revelam sinais de riqueza, ou melhor, que
constituem certa capacidade do sujeito em contribuir com parcela de seus bens para custear as
atividades do Estado. Tais acontecimentos passam a ocupar o lugar de antecedente das
normas gerais e abstratas, na condição de hipótese que realizada de acordo com os ditames do
direito, isto é, desde que certificada em linguagem própria, implica relação de cunho
estritamente jurídico prevista no consequente normativo.
A exigência de capacidade contributiva dos sujeitos que figuram na
relação jurídica de índole tributária, como forma de viabilizar as finalidades desse ramo de
regulação de condutas, não permite concluir que o direito tributário tem por característica
relações de índole econômica. A posição assumida neste trabalho, inspirada pela postura do
construtivismo lógico-semântico, compreende o direito como um sistema de linguagem que
atua de forma autônoma e não isolada. Nele se percebe a abertura semântica de sua linguagem
que permite o diálogo com os demais sistemas, como o político e o econômico. Porém, todas
econômicos; (iv) combate ao abuso de formas de direito privado; (v) introdução da teoria do abuso de direito
no direito tributário; (vi) mera interpretação teleológica; (vii) valoração dos fatos e (viii) interpretação do
fato. 363
Op. cit., p. 107. 364
A figura da elipse, segundo Houaiss, quando utilizada num enunciado linguístico, denota a supressão de um
termo que pode ser facilmente subentendido pelo contexto lingüístico ou pela situação. 365
Paulo de Barros Carvalho propõe a seguinte definição de direito tributário, exclusivamente para fins didáticos
já que adota premissa de unicidade do direito, com a qual concordamos: "Estamos em que o direito tributário
positivo é ramo didaticamente autônomo do direito, integrado pelo conjunto das proposições jurídico-
normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação, e fiscalização de tributos."
(op. cit., 2010, p. 47).
143
as relações nele presentes são jurídicas e devem ser constituídas e regidas de acordo suas
próprias regras.
Dessa maneira, a relação econômica referida por parcela da doutrina
como o diferencial do direito tributário, interesse último a ser realizado pelo intérprete, deve
ser vista como relação jurídica, parte integrante da norma, que por sua vez, é formada
levando-se em conta os critérios sintáticos, semânticos e pragmáticos presentes na linguagem
do direito e não na Economia. Nesse sentido, ao criticar a exegese econômica, Alfredo
Augusto Becker366
tece severas considerações:
A doutrina da interpretação do Direito Tributário, segundo a realidade econômica, é
filha do maior equívoco que tem impedido o Direito Tributário de evoluir como
Ciência Jurídica. Esta doutrina, inconscientemente, nega a utilidade do Direito,
porquanto destrói precisamente o que há de jurídico dentro do Direito Tributário.
Portanto, o perigo no método em análise é partir da premissa que
economia e direito se misturam sem restrições de nenhuma ordem, não existindo critérios
independentes de formação das respectivas linguagens. Transitar-se-ia livremente entre o
direito e a economia, como se ambas as linguagens tivessem o mesmo uso e funções idênticas.
Os defensores da prevalência da interpretação econômica do direito
tributário, sem atentarem para sua autonomia com relação a outros sistemas de linguagem,
entendem que o método em questão recomenda ao sujeito/intérprete que leve em conta, ao
realizar sua atividade, a consistência econômica do fato gerador e a forma jurídica utilizada.
Dessa maneira, se houver descolamento entre a forma jurídica adotada e o conteúdo
econômico, deve prevalecer o segundo, capaz de revelar a verdadeira intenção da lei. Tal
maneira de compreender o direito tributário se confirmaria como a mais apropriada, ao se
encarar o problema da evasão. Amílcar de Araújo Falcão367
cita exemplo utilizado por Merk,
que haveria ocorrido na Alemanha, como forma de ressaltar a importância de se buscar o
conteúdo econômico nas relações tributárias. Em síntese, tratava-se de indivíduo que, para
reduzir o montante cobrado a título de imposto de vendas, alugava o bem por valor altíssimo,
com a opção de o locador adquiri-lo após determinado período, efetuando pagamento de
pequeno valor. Dessa forma, o intérprete, ao observar a relação de cunho econômico, poderia
concluir o comportamento como um ardil, cujo objetivo seria a indevida economia fiscal.
366
Op. cit., p. 137. 367
Op. cit., 1959, p. 103.
144
Para o autor, no exemplo dado, haveria a prática de uma simulação,
vale dizer em nossos termos, teria ocorrido a veiculação de linguagem jurídica que não seria a
apropriada para certificar um dado negócio jurídico. Em nosso entendimento, para que se
confirmasse a simulação, seriam necessárias provas, além da vedação de tal prática no
ordenamento jurídico, conforme adiante exposto.
Uma das modalidades mais citadas de simulação é o chamado "abuso
de formas". Por seu intermédio, o contribuinte alcançaria economia fiscal ao adotar forma
atípica, não usual, para realização de negócio jurídico, ao passo que a forma comumente
utilizada, se eleita, causaria maior onerosidade.
O denominado "abuso de formas", muito embora seja tido como uma
espécie de simulação, sequer nos parece ilícito, na medida em que o contribuinte utiliza-se de
possibilidade que o sistema lhe oferece para a constituição de um negócio jurídico. Contudo,
não é através de exegese econômica que se conclui pela ilicitude da prática, mas, sim, por
meio de provas constituídas de acordo com as regras do direito. A ilicitude da conduta é uma
decisão do direito tomada a partir de seus próprios critérios, independentemente da relação de
cunho econômico. Empiricamente, comprova-se o raciocínio ao examinarmos decisão
proferida pelo então Primeiro Conselho de Contribuintes, atualmente CARF, no processo
administrativo nº 11516.002462/2004-18 (Acórdão nº 103-23.357)368
.
No caso tratado, houve a desconstituição de lançamento de IRPJ, PIS,
COFINS E CSLL369
efetuada pelos agentes do fisco, com base em suposta simulação, mais
precisamente, com fundamento em abuso de forma, tendo em vista que haveria ocorrido a
constituição de uma segunda empresa, para que a primeira (autuada) pudesse usufruir dos
benefícios do SIMPLES370
. As receitas da segunda empresa foram consideradas como
pertencentes à primeira e passaram a compor a base de cálculo dos créditos constituídos de
ofício, aplicando-se, ainda, multa agravada na ordem de 150% (cento e cinquenta por cento).
Mantida a decisão pela Delegacia de julgamento, houve recurso
voluntário, e o Primeiro Conselho de Contribuintes afastou o lançamento por considerar legal
368
O julgamento é citado e analisado por Samuel Carvalho Gaudêncio em artigo intitulado: O planejamento
tributário e a prova na requalificação dos fatos ilegais (In: A prova no processo tributário. São Paulo:
Dialética, 2010, p. 207-210). 369
IRPJ – Imposto sobre a renda da pessoa jurídica; CSLL – Contribuição social sobre o lucro líquido. As demais siglas já foram decifradas em momentos anteriores. 370
SIMPLES – Sistema integrado de imposto e contribuições das microempresas e empresas de pequeno porte.
145
a conduta da sociedade ao escolher caminho fiscal menos oneroso e por não haver prova da
simulação. Segundo excerto do acórdão proferido:
A falta de aprofundamento da ação fiscal faz com que os fatos apontados como
indícios de simulação, quais sejam, a instalação das duas empresas na mesma área
geográfica e as alterações de seus objetos sociais, reservando-se a uma a fabricação
do casco e à outra os serviços de montagem da embarcação, possam ser tidos como
desdobramento da atividade antes exercida por uma delas, objetivando racionalizar
as operações e minorar a carga tributária. A conclusão diversa chegaria se a
fiscalização comprovasse que a empresa desqualificada não mantinha registros e
inscrições fiscais próprias, que não possuía quadro próprio de empregados, que não
celebrava negócios, que não emitia documentação, que não mantinha escrituração
fiscal relativa a seus negócios. O argumento de que o desdobramento das atividades
operacionais teve por único escopo obter economia tributária não é suficiente, por si
só, para a desconsideração dos atos e negócios jurídicos realizados com amparo
legal.
Portanto, a exegese dada pelo então denominado "Primeiro Conselho
de Contribuintes" afastou o lançamento de ofício por inexistir a produção de linguagem
jurídica apta a constituir os fatos alegados. Dito de outro modo, a autoridade competente para
efetuar o lançamento não provou os fatos que o ensejariam. É de se observar que não
bastaram observações de cunho extrajurídico, como a economia de tributos. O cerne do
problema foi resolvido com critérios pertencentes ao direito, a saber: (i) a licitude das
estruturas jurídicas utilizadas pelo contribuinte e (ii) a ausência de prova da existência da
simulação.
146
VI – SÍNTESE CONCLUSIVA
O estudo efetuado ao longo da pesquisa e as ideias a partir deles
desenvolvidas fundamentam as seguintes conclusões sobre os pressupostos condicionantes da
interpretação do direito tributário:
Do capítulo I
1 – A transformação da perspectiva filosófica conhecida como "giro linguístico" é
caracterizada por atribuir à linguagem o papel de fundamento do saber humano. Contudo, o
termo é genérico, englobando correntes que podem ser consideradas inconciliáveis a partir da
função que atribuem à linguagem.
2 – Num primeiro momento, o giro linguístico está à procura de uma linguagem ideal. Sua
função seria representar o mundo de forma logicamente precisa e, nesse aspecto, não
apresenta diferença significativa da concepção filosófica tradicional, a ponto de compreender
a verdade de uma proposição, como a correspondência entre linguagem e realidade. Esse
modo de compreender a linguagem é fundamento filosófico de teorias que consideram a
interpretação do direito como atividade que visa extrair um significado previamente presente
na vontade da lei ou do legislador. Reflexo desse paradigma de interpretação encontra-se, por
exemplo, no art. 111 do CTN que determina a exegese literal da legislação que verse sobre
suspensão ou exclusão do crédito, outorga de isenção e dispensa do cumprimento de
obrigações acessórias.
3 – Posteriormente, com o desenvolvimento de teses, como a do segundo Wittgenstein,
consubstanciadas em Investigações Filosóficas, a função da linguagem altera-se radicalmente.
Seu papel é constituir a própria realidade com suas inúmeras formas de vida ou jogos de
linguagem, dentre elas o direito, que pode ser compreendido como uma forma particular de
interação entre os seres humanos, cuja finalidade é prescrever condutas. Portanto, inexistiria
um sentido único previamente contido no texto jurídico, e sua interpretação deixa de ser vista
como uma atividade declarativa da vontade da lei ou do legislador. O intérprete seria o
responsável pela construção de sentido, o que explicaria a variedade de significações que se
atribui ao mesmo dispositivo legal.
147
4 – A possibilidade de variação de sentido não implica a ideia de que a interpretação do
direito seja uma atividade efetuada por um sujeito dissociado do contexto no qual estaria
inserido e que todo e qualquer sentido seria admitido como possível.
5 – A partir de Investigações Filosóficas, concluímos que a linguagem forma inúmeras formas
de vida ou jogos e entre elas não existiria uma característica comum, apenas semelhanças. O
significado das palavras depende de seu uso no interior desses jogos de linguagem, mediante
regras determinadas pela comunidade de participantes. Não se trata de sentidos imutáveis já
que o contexto no qual a forma de vida é desenvolvida sofre as variações histórico-culturais.
6 – Há na ideia de jogo de linguagem a existência de expectativas de comportamentos
intersubjetivamente válidos. Dessa forma, pensar que se segue uma regra não é o mesmo que
segui-la. Há a necessidade de observar-se o consenso da comunidade jurídica em torno do que
se constitui seguir uma regra em determinado contexto.
7 – O critério intersubjetivamente válido que confirma ou infirma a ideia de seguir uma regra
está consubstanciado na compreensão da comunidade jurídica, formada por sujeitos que
participam do processo de positivação do direito e que possuem treinamento nessa linguagem
específica.
8 – No direito posto, haveria uma aparente contradição com a ideia de "consenso" como fator
determinante para o reconhecimento de uma regra, pois o que prepondera é o dissenso.
Porém, no litígio podemos verificar a existência de dois blocos de consenso que representam
interesses distintos. Caberá ao Poder Judiciário decidir qual interpretação irá regular a conduta
e definir qual a tese preponderante.
9 – A intenção do intérprete, consoante pensamento do segundo Wittgenstein, não é critério
para a significação de um termo, pois trata-se de algo privado, inatingível. No direito
tributário e nas ciências jurídicas que o analisam, ainda é muito comum a visão de que
interpretar é extrair a vontade da lei (mens legis) ou do legislador (mens legislatoris), o que
sob a óptica do giro linguístico-hermenêutico seria algo impossível de ocorrer, cabendo ao
sujeito construir o sentido dos textos de acordo com as regras presentes em dado contexto
histórico-cultural.
10 – A atividade interpretativa sempre será necessária à construção de sentido, na medida em
que o uso de uma palavra em determinado contexto é que constitui seu significado. Portanto, a
148
ideia de que a exegese somente ocorreria nos casos de dúvida (in claris cessat interpretatio)
não é admitida no giro linguístico-hermenêutico. A própria consciência da dúvida depende de
uma interpretação.
Do capítulo II
11 – A perspectiva filosófica aberta pelo giro linguístico-hermenêutico repercutiu nas ciências
jurídicas. A interpretação deixa de ser vista como uma forma de representar a vontade da lei
ou do legislador presente nos enunciados de direito, sendo concebida como uma atividade
construtiva, na medida em que o sujeito valora os textos prescritivos e os fatos, atribuindo-
lhes sentido, vale dizer, formulando normas jurídicas.
12 – A construção de sentido dos enunciados prescritivos, com o auxílio da Semiótica, pode
ser decomposta em quatro planos possíveis de se percorrer – (i) literalidade ou S1; (ii)
conteúdo de significações dos enunciados prescritivos; (iii) articulação da norma jurídica; e
(iv) organização sistemática – e que justificam a ideia de equiparar o ato de interpretar a
atribuir valores aos símbolos jurídicos e, portanto, atribuir significações às condutas
determinadas pelo direito posto. O percurso gerador de sentido não pode ser compreendido
somente do ponto de vista lógico; para que o intérprete construa a norma, deve observar o uso
da linguagem pela comunidade jurídica, que aponta para a existência de significados
possíveis, isto é, aceitos como corretos.
13 – O uso da linguagem não abstrai o tempo e o espaço, tanto que os sentidos tendem a se
modificar. Os sentidos são corretos ou incorretos sempre em relação a um determinado
contexto histórico-cultural. Por cultura, compreendemos toda a transformação realizada pelo
ser humano em seu entorno, com o objetivo de implantar valores. Essa transformação se dá
num processo histórico.
14 – O direito é um bem cultural. Sua finalidade é influir no meio social ao prescrever
condutas que retratam valores variáveis de acordo com o contexto histórico-cultural.
Associada à ideia de que o direito é um jogo de linguagem, uma forma de vida, parece-nos
lícito concluir pela existência de uma cultura jurídica produzida pelo uso de sua linguagem.
15 – Há valores que se mostram muito especiais para o legislador, denotando forte carga
axiológica, e devem ser observados com total atenção pelo intérprete/aplicador do direito.
149
Trata-se dos princípios vistos como normas jurídicas, que podem ser classificados como
norma-valor ou norma-limite-objetivo, de acordo com o grau de objetividade utilizado pelo
legislador para veiculá-los no ordenamento jurídico.
16 – Apesar da relatividade que decorre da compreensão da atividade interpretativa como
atribuição de sentido, é possível concluirmos pela existência dos seguintes pressupostos que a
condicionam: (i) o uso da linguagem pela comunidade jurídica, formada pelos sujeitos que
participam de sua positivação e que possuem treinamento técnico com base na Ciência do
Direito; e (ii) o contexto histórico-cultural vigente no jogo de linguagem do direito, no
momento da enunciação normativa.
Do capítulo III
17 – É possível identificar dois sistemas distintos de linguagem jurídica: (i) do da Ciência do
Direito; e (ii) do direito positivo. A finalidade do direito posto é prescrever condutas
intersubjetivas e estimular a realização de valores e suas proposições ou normas jurídicas são
válidas ou inválidas. A validade é uma relação de pertinencialidade que se estabelece entre
norma e sistema. Uma vez introduzida no sistema por autoridade competente e conforme
procedimento previsto em lei, a norma é presumivelmente válida e deve ser obedecida por
seus destinatários até que outra norma jurídica emitida pelo Poder Judiciário lhe retire a
validade. O sistema crítico-descritivo da Ciência do Direito tem por objeto de análise o direito
posto. A lógica que rege suas proposições é denominada alética ou apofântica e serão
apreciadas de acordo com sua "verdade" ou "falsidade".
18 – O sistema do direito positivo e da Ciência do Direito não se encontram isolados,
incomunicáveis. Ambos encontram-se em permanente diálogo, em relação de
intertextualidade. A Ciência do Direito faz parte da pré-compreensão ou sistema de referência
que permite a construção normativa no interior do direito posto.
19 – Afirmar que uma norma jurídica foi construída sem a observância dos pressupostos
condicionantes da interpretação a torna falsa ou incorreta, porém, não inválida. Os juízos de
correção da norma efetuados pelas ciências jurídicas são importantes argumentos utilizados
pelos participantes do sistema do direito posto, pois o auxiliam na compreensão da linguagem
jurídica.
150
Do capítulo IV
20 – Os dispositivos inseridos no Código Tributário Nacional sobre a interpretação, enquanto
texto, devem ter seus sentidos construídos pelo exegeta, assim como as demais normas
jurídicas. Somente após cumprir-se o trajeto gerador de sentido é que poderão vincular a
atividade do intérprete.
21 – O art. 106, I, do CTN traz a figura da lei interpretativa e permite sua aplicação a fato
pretérito, sem que seja atribuída penalidade às normas jurídicas construídas em desalinho com
o sentido que pretende fixar aos dispositivos interpretados. Contudo, a lei interpretativa em
nada difere da lei interpretada; ambas são textos que carecem de construção de sentido.
Constitui a lei interpretativa suporte físico ou enunciado de norma que inova o sistema ao
tentar resolver incertezas advindas de posicionamentos díspares adotados pelos aplicadores do
direito, retirando sentidos possíveis eventualmente dados às leis interpretadas. Portanto, a lei
interpretativa é lei nova e não deve retroagir, salvo para beneficiar o contribuinte quando
dispuser sobre sanções.
22 – O art. 105 do CTN veicula o conceito de "fato gerador" pendente e futuro. O primeiro
teria sido iniciado, porém estaria incompleto, e o segundo ainda não teria ocorrido. De acordo
com nossas premissas, os fatos jurídicos são sempre instantâneos e se constituem no momento
exato em que o intérprete os enuncia em linguagem considerada apta pelo direito posto. O
fato jurídico, ao lidar com o tempo, a vigência e aplicação das normas, utiliza-se do "tempo
do fato", momento no qual se enuncia o fato jurídico em linguagem competente e "tempo no
fato", referente ao momento de ocorrência do evento. A norma de direito material a ser
aplicada é a que vigia por ocasião do "tempo no fato". Sob a óptica processual, a norma a ser
aplicada é a do "tempo do fato".
23 – A doutrina tradicional compreende que a integração do direito consiste no preenchimento
das lacunas ou incompletudes do ordenamento jurídico, entendidas essas como ausência de
disposições expressas para regular determinado caso. O intérprete criaria o direito na
atividade integrativa e o declararia, ao extrair a vontade da lei ou do legislador na atividade
interpretativa. Contudo, em ambas as atividades o intérprete trilha um processo que permite
atribuir sentido a textos presentes no ordenamento. Além disso, os meios de integração que
constam no direito posto também são utilizados pelo exegeta, mesmo quando não se verifica a
presença das denominadas lacunas. A diferença entre integração e interpretação pode ser
151
apontada pela inexistência de preceito que se refira especificamente a um dado
comportamento, o que inviabilizaria, num primeiro momento de análise, a subsunção do fato,
exigindo do intérprete esforço maior para a construção de sentido. A norma jurídica, fruto de
integração, será justificada em textos, mais vagos e ambíguos, que não permitem associação
específica com o comportamento a ser regulado.
24 – Do ponto de vista sintático, o ordenamento jurídico não apresenta lacunas, vale dizer,
toda a construção normativa apoiar-se-á num texto. Do ponto de vista semântico, o sistema é
aberto e, portanto, completível. Os intérpretes introduzem novos significados que serão
aceitos ou rechaçados pela comunidade jurídica.
25 – O art. 108 do CTN veicula a taxatividade e hierarquia na aplicação dos meios de
integração do direito posto, do que discordamos. O intérprete se utilizará de todos os
expedientes possíveis e necessários de forma sistemática, para integrar o sistema.
26 – Ao decidir-se utilizando da analogia, o intérprete aplica a um fato (F1) não regulado por
um preceito jurídico específico uma norma geral e abstrata (N2), que, em tese, disciplinaria
somente outro fato (F2), que guarda semelhança jurídica relevante com o fato F1. Analogia é
conceito distinto de interpretação extensiva. Tomando-se como critério dispositivo que se
refira especificamente à conduta, verificamos sua inexistência na analogia. Na interpretação
extensiva, o sentido é reconhecido como possível de se atribuir ao texto que se refere
especificamente à conduta, atuando o sujeito nos limites da vagueza e ambiguidade do texto
específico.
27 – A equidade não corresponde ao vácuo axiológico na aplicação da lei. O direito como
objeto cultural é sempre carregado de valores. Trata-se de expediente que visa realizar o
sobreprincípio da justiça na construção da norma individual e concreta.
Do capítulo V
28 – O uso de raciocínios apriorísticos, a exemplo das teses do in dubio pro fiscum ou do in
dubio contra fiscum e a utilização das técnicas de interpretação comumente apontadas pela
doutrina tradicional, que consideram parcialmente os níveis da linguagem jurídica, não são
compatíveis com as premissas da pesquisa. Contudo, são argumentos comumente utilizados
pelas decisões proferidas por nossos Tribunais, além de amplamente propagada pela doutrina.
152
29 – Por "métodos de interpretação", a doutrina tradicional compreende as técnicas ou meios
para apreender-se o alcance e o sentido dos textos jurídicos, conforme a intenção do legislador
ou a vontade da lei. As seguintes técnicas são comumente propagadas: (i) literal ou
gramatical; (ii) histórico-evolutiva; (iii) lógica; (iv) teleológica; e (v) sistemática. A técnica
literal se atém especificamente ao plano sintático da linguagem jurídica. As técnicas
teleológica e histórico-evolutiva se preocupam mais com os aspectos semânticos e
pragmáticos, e somente a sistemática engloba os três planos de linguagem, sendo, portanto, a
única que se compatibiliza com as premissas do giro linguístico-hermenêutico.
30 – Muito embora, para doutrinadores do porte de Carlos Maximiliano, o uso das técnicas de
interpretação seja feita de forma sucessiva e não fracionada, é notório que na análise dos
métodos específicos não observamos essa preocupação por parte da doutrina tradicional, que
defende, por exemplo, a possibilidade de interpretação literal, ou da histórico-evolutiva, sem a
devida compatibilização com o sistema. Na aplicação do direito posto, a justificativa das
decisões pareceu-nos reproduzir essa possibilidade de fracionamento.
31 – Parcela da doutrina compreende que os arts. 109 e 110 do CTN pretenderam estabelecer
hierarquia entre as técnicas teleológica e sistemática. Contudo, os "efeitos tributários"
determinados pelo art. 109 do CTN são de ordem jurídica e não econômica. Compreendendo
a questão dessa maneira, estaríamos em plena harmonia com o art. 110 do CTN, pois os
efeitos tributários, isto é, a obrigação tributária, seriam fixados pela legislação específica, que,
no entanto, se utilizaria de conceitos de direito privado para estabelecer os comportamentos
conformadores dos fatos jurídicos, na medida em que a Constituição Federal, ao distribuir as
competências, não houvesse estipulado de forma específica.
32 – A melhor exegese do art. 111 do CTN é a que afasta a literalidade pura e simples como
critério de interpretação e admite que as situações nele previstas devam ser tratadas de forma
sistemática, reconhecendo não ser possível fracionar a linguagem jurídica e construir seu
sentido de forma parcial, sem levar em conta os aspectos semântico e pragmático. A
literalidade seria apenas o início do percurso a ser trilhado pelo sujeito, que, nos limites da
cultura jurídica, constrói norma compatibilizada como o fenômeno jurídico.
33 – A técnica histórico-evolutiva nos pareceu útil, não para se atingir a mens legislatoris,
como compreende a doutrina tradicional, mas apurar-se a diversidade semântica de um
preceito normativo, evidenciado pelas alterações contextuais de seu uso. Diante da extensa
153
produção legislativa, também atua como expediente auxiliar na organização dos textos legais,
para fins de análise da vigência e da aplicação de determinada norma.
34 – A interpretação lógica, sob a óptica da doutrina tradicional, seria método, segundo qual
extrai-se a vontade da lei ou do legislador, estabelecendo-se o sentido e alcance da norma.
Aplicar-se-iam, exclusivamente, raciocínios lógicos na compreensão da literalidade do
preceito, sem auxílio de qualquer elemento externo ao texto em sentido estrito. Contudo,
apesar de auxiliar na organização dos textos de direito posto e na compreensão do
relacionamento dos enunciados normativos que compõem o sistema, não nos parece suficiente
como técnica interpretativa, por desconsiderar o contexto em que a exegese é realizada,
conforme verifica-se nos aspectos semântico e pragmático da linguagem jurídica.
35 – A técnica teleológica toma a finalidade prática da norma como principal critério a ser
utilizado pelo exegeta. Não nos parece ser um método que isoladamente seja suficiente para
interpretar o direito, pois esquece-se da importância do aspecto sintático da linguagem
jurídica.
36 – A interpretação sistemática consiste em compreender o preceito normativo por
intermédio de seu elo com outros textos do ordenamento jurídico, de maneira a compatibilizá-
lo com o todo unitário. Não se trata de conexão somente estrutural, mas de exegese que
premia a análise de todos os aspectos da linguagem jurídica.
37 – A interpretação sistemática pressupõe as demais técnicas de exegese anteriormente
estudadas. Não se trata de ponto de vista generalizado na doutrina, que muitas vezes o
identifica como um processo lógico.
38 – O direito tributário está organizado hierarquicamente de forma a premiar a interpretação
sistemática. O constituinte repartiu no Texto Maior as competências dos entes tributantes,
utilizando-se de conceitos de direito privado, o que remete o intérprete a incursionar pelo
sistema para construção das normas jurídicas que denotam o seu exercício. Reforça a tese, o
artigo 110 do CTN.
39 – A interpretação econômica do direito tributário é conceito vago que ampara diversas
correntes de pensamento. Contudo um fato comum pode ser atribuível a todas elas: a presença
de uma suposta relação econômica no fato imponível. Assim sendo, apesar das razões que
justificam a interpretação sistemática como regra imposta pelo ordenamento jurídico, parte da
154
doutrina considera que, em virtude da presença de uma suposta relação econômica no fato
imponível, a interpretação econômica seria um método específico a ser utilizado nessa área de
regulação. Outros ainda consideram ser o método apropriado para descortinar tentativas de
evasão dos tributos.
40 – A relação presente no fato imponível é de natureza jurídica e não econômica. Nesse
método de análise, há uma mistura entre economia e direito, sem restrição de qualquer ordem.
Parecem inexistir critérios de formação das respectivas linguagens. Transitar-se-ia livremente
do direito para a economia, como se ambas as linguagens tivessem uso e função idênticas.
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