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Sciedde e Esd, Bsli, v. 23, n. 1, p. 51-87, jn./b. 2008
SErto E Narrao: Guimes rs,Glube rch e seus deseneds
Ped Pul Gmes Peei
Resumo: Este texto busca vericar as formas de construo danao em Grande Serto: veredas, de Guimes rs, eDeus e o
Diabo na terra do sol, de Glube rch. Uiliznd ues cm
Hmi Bhbh, Su Hll, Wle Mignl, Veen Ds, exindaga de que forma esses autores construram o serto.
Palavras-chave:espao, nao, serto, literatura, cinema.
O ttulo deste ensaio se refere diretamente a Nation andNarration, clene de igs gnizd p Hmi Bhbh,
n qul u public seu cnhecid ensi Dissemination.A referncia extrapola a similitude dos nomes e busca abarcar oprprio movimento conceitual do livro, perfazendo jogo lingsticoque pretende indicar o desejo comum de compreender conguraes
de localidade e temporalidade da nao.1
Uma dessas conguraes, no Brasil, pode ser localizada
numgeograa imaginativa que desenhou uma categoria de espao,serto, como forma principal de falar, denir e delimitar a nao.Ene s divess nivs que bdm e desenhm s inicdsrelaes entre serto e nao, Grande serto: veredas, de Guimes
rs,e Deus e o Diabo na terra do sol, de Glube rch, es
* Doutor em Antropologia pela Universidade de Braslia (UnB), ps-doutor pela Universidade
de Barcelona, Espanha, professor adjunto da Universidade Federal de So Paulo e professordo Programa de Ps-Graduao em Cincias da Sade da Unifesp. E-mail: [email protected]
aig ecebid em 4 se 2007 e pvd em 27 dez 2007.
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entre as mais importantes, destacando-se pelo grau de inuncia nops e pel singulidde de n. Ese ensi busc invesig se
e cm s bs de Guimes e de Glube se inseem n pcess
de inveno do Brasil, e a existncia de vozes que destoam da idiade uma nao homognea. Os esforos se concentraro em averiguar
se as maneiras de estruturar o romance e o lme no conduziriam nova formadenarrar o serto e, conseqentemente, de inventaranao, manifesta nos e propiciada pelos desenredos e interteixos, nemaranhado de vozes que compem essas obras.
Serto, nao, narrao
os ems nao e narrao, alocados em justaposio,
ssinlm necessidde de se cmpeende s culturas nacionaiscomo formas de construir sentidos, que inuenciam e organizamaes e concepes, constituindo-se numa das principais fontes de
identidade no mundo moderno. As narraes intentam atribuir unidades imagens da nao como estratgia de construir comunidadesimaginadas. As estratgias discursivas se compem de imagens, panoramas, cenrios, e procuram estabelecer uma experincia
compartilhada, realando a idia de origem comum, de continuidadee de tradio compartida. Apesar de ser construo extremamentesingular e recente na histria da humanidade somente no nal
de sculo 19 ocorre a autoconceitualizao do estado-nao,conforme analisa Eric Hobsbawm (1990) , as narrativas localizamorigens da nao, do povo e de seu carter num passado distante enum emp mic.Nao, pn, uma inveno, uma criao
social tecida por narrativas.2
A despeito da assuno de unidade, as culturas nacionais no
so essencialmente unicadas e homogneas, tratando-se, antes, dedispositivo discursivo que representa a diferena como unidade ouidentidade. As representaes, entretanto, no so retilneas nem
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uniformes e se expressam tanto em narrativas que primam pela preleo descritiva e prescrita da nao una, cm nquels que
assinalam a existncia da alteridade, elaborando crtica imaginao
da nao como unidade essencial.
No que se refere ao Brasil, o processo de inveno da nao
clcu impeiv de n s nsp mdels eupeus e ne-americanos, mas, na empreitada de direcionar os olhares s coreslocais, armar a autonomia nacional, dirigindo esforos contnuos
n busc de smbls cleivs que pssibilissem ce senid
de peencimen. a vid d espi n ps se desenvlveisuperando a dependncia dos moldes estrangeiros e no exercciodo mirar reexivo sobre os exemplos nacionais, surgindo da o tom
gelmene cnesd ds legis ncinis. Exise, cnud,um aspecto importante na construo e aquisio da conscincianacional: o desejo de autonomia se manifestou na conscincia de
uma elite que necessitava de um conjunto de idias que justicasse e
garantisse sua hegemonia na nao. O processo de emergncia dessaelite obliterou vozes, seja pela idealizao que imprimia distnciado outro, seja pelo silenciamento de parcelas expressivas da
populao ou, ainda, pela inteno de transformao civilizadora.Esta, devendo ser entendida como empreendimento de armaoda superioridade do Ocidente, pressupe o desenvolvimento como
devir das civilizaes primitivas, brbaras ou subdesenvolvidas
(ver Mignolo, 2003, p. 168; Dussel, 1995, p. 75). Nesse contexto, adifcil empreitada de pensar o Brasil j se iniciava na escolha de umponto privilegiado para se falar a nao.
O processo de inveno do Brasil se caracterizou pelaproeminncia das narraes que destacavam as dimenses espaciais
cm quels que evelim mis genuinmene ncinl. as
narrativas edicaram poderosas imagens de um Brasil construdopelo espao e as dimenses do espao e da territorialidade forjadaspor essas imagens se constituram num dos principais fundamentos
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do projeto da nao. Encantada com a imensido territorial do pasou atormentada pela existncia de gigantescos vazios, a imaginao
scil se vlu p serto que, cm pblem se eslvid,
cm ndice d bsilidde, e cnclmd desceve hisida nao. O serto nu-se, en, cegi cenl n pcess
de inveno do Brasil.3 As narrativas que o tomavam para falard bsilidde se muliplicm p divess meis de expess.Escritores, cineastas, engenheiros, advogados, mdicos, diplomatase, mis de, hisides, scilgs, cieniss plics, se
dedicaram a essa tarefa, formando um intricado de narrativas queintentavam formular retratos da nao.
o serto, em algumas dessas narrativas, se congurou
no signo da nao inacabada. A busca de uma homogeneizaoeiil se depu cm necessidde de peenche s vziscompreendida como condio da unidade nacional. Essa necessidade
de preenchimento ressalta o imperativo da representao horizontal
do espao que deve ser entendida como devenir na direo dahomogeneizao e unicao do territrio nacional. O serto senu, ssim, sign d cis espcil e meilizv divis d
nao; sua existncia pressupunha, portanto, um tempo disjuntivo,e justicava, na concepo desses inventores do Brasil, a prpriaempreitada pedaggica civilizatria das narraes.
Ensejnd imgens de vzi, de dese, serto se clcora como obstculo homogeneizao territorial e eliminaods empliddes disjunivs, cedi-se ele idenidde
ncinl. De qulque mnei, mesm ecnhecend n serto cene d bsilidde quil que, nesse cicni, sei mis genun, pis incd pels es eupeus u ne-
americanos, a sua permanncia se devia a uma imaginao
civilizd, pecupd cm alteridade dentro da nao. O maissignicativo repousa na utilizao de um ns, freqente nasnarrativas da nao, que assinala lingisticamente a presuno de
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um nao una. Se s ccesics indesejveis d dese-serto
devem se eliminds e se senej pecis, ind ssim, pesisi
como tipo, as narrativas se preocupam, sobretudo, com a premncia
de submet-los construo reformadora das cidades.
As narraes testicam a sua posio quando se constroem
numa calculada distncia em relao ao serto. a dmii um
espao e tempo diferenciados, se colocam como um outro do serto,
empeid que pde se pecebid n ppi desej de diimi s
diferenas, de apaziguar as insurgncias, de minimizar as distncias,
de equliz s empliddes, de insu pcedimenscivilizatrios que impliquem obedincia aos poderes centralizantes.
o serto deve persistir desde que no irrompa homogeneizao
ncinl, esulnd mbivlene e simulne pcess de
extingui-lo e de transform-lo no mito de fundao e de unidade
nacional, de traz-lo como um ns arcaico, mas esquecer sua
resistncia, a sua presena como alteridade.
Se houve uma predominncia de narraes que observavam
serto cm um outro Brasil, avesso civilizao e que deveria
ser domado, englobado pelas foras centralizadoras num tempo
pedaggico e num espao horizontal, para utilizar novamente
expresses de Bhabha , outras, porm, inseriam novas dimenses
espao-temporal.4 A narrativa da nao deve ser considerada
como discurso de autoridade que objetiva uma representao
homogeneizadora, porm, esse mesmo processo produz margens que
esisem discus unii, inseind, ineluvelmene, dimens
da diferena. desse lugar de enunciao que surge um tempo-
espao performtico, no qual as identidades se fazem e refazem,
num movimento ininterrupto de diferenciao. Essas margens se
insinuam, se contorcem, ressaltando sua presena, possibilitando,por exemplo, a insurgncia de utopias eimlgicmene, u-topos,
u lug que quesinm elidde vivid, cm em muis
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movimentos messinicos e em comunidades que desaaram ospdees cenis.5
a ambivalncia das denies e das concepes surgiriaexatamente do confronto com a alteridade, e, dessa forma, o serto criado e recriado incessantemente, ora como objeto do desejo,
fantasia de um lugar de origem, ora como stio distante, atrasado,incivilizado (ver Bhabha, 1998). Terra desolada ou paraso perdido,calcinante e insofrvel ou ferico e aprazvel, outro Brasil ou rocha
viva da nacionalidade, entre outras numerosas construes, oserto
se imps aos que pensavam a nao.
Imersos nessa intensa e ambivalente relao, a literatura
e cinem se cnsium ns pincipis meis de expessna edicao dos alicerces simblicos da formao nacional. Alieu se esbeleceu cm um ds pimeis piles, sb qul
foram criados smbolos que representavam a identidade nacional,
que se transformou em instrumento de investigao e fenmenocenl d vid inelecul d ps. assim cm lieu, cinema tambm buscou interpretar o Brasil, pesquisando sobre a
vida e sobre os problemas brasileiros. Enm, a co, de uma formageral, se preocupou em conhecer e transformar construir, edicar a nao. Por perodo considervel da histria do pas, as melhores
expresses do pensamento nacional assumiram a forma ccional. A
investigao e reexo sobre o Brasil se iniciaram com a literatura ecom o cinema, e s com a institucionalizao das cincias sociais que os papis do romancista, do cineasta e do socilogo comearam
a se diferenciar, cedendo lugar diviso de trabalho intelectual dosdis de hje. Escies e ciness cmpeendim execci de seusofcios como misso, em que e s se elizv plenmene cm
presena da cor local e com atitude posicionada diante dos dilemas
da nao. Na busca de um representante para o ideal brasileiro, alieu e cinem cinm serto p ceg sbe si smbl d idenidde ncinl.6
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Como j se disse, no universo das narrativas que de algumaforma tocaram nas relaes entre serto e narrao, Grande serto:veredas, de Guimes rs,e Deus e o Diabo na terra do sol, de
Glube rch, es ene s que mis se descm, diclizndspecs muis vezes pens ngencids p us bs.7 t-
se de formas de expresso e de conhecimento, de crtica e de projeto(Bolle, 2004),8 que formulam densas indagaes sobre as relaesentre serto e nao e, pela primeira vez nas narrativas que abordaramo tema, a construo literria e cinematogrca possibilitou que se
fale doserto sem se ece cic idelizd, e sem execcide uma imaginao civilizadora que, por meio de um apelo a umtempo passado compartilhado, edique imagens de unidade sob as
quais se construiria a identidade nacional.
Para desenvolver essas armaes devemos enfrentarindagaes como: em Grande serto eDeus e o Diabo s es
do Brasil sugeririam a disjuno tempo-espacial da nao, distante
de pp u visuliz qulque lidde hmnic? Esssobras possibilitam que personagens margem apaream no cenrionacional, impondo a sua incmoda diferena? E de que formas as
vzes pecem nesss nivs?
Desenredos: temas e tradies em Guimares e Glauber
Desenredo nome de um conto do livro Tutamia, de Guim-es rs. o de desenredarsignica contar desmanchando,desfazer tramas, perambular por enredos, apresentar o inaudito
dos contextos. O termo indica tambm a interao de temas etradies, nas quais camadas de co se mesclam e desvelam amistura, formando rede de textos culturais que dialogam entre si.9
Em Grande serto: veredas, s nmes e s vcbuls expessme constroem o campo intertextual;10 s enuncids es cheis deecos e de lembranas de outros enunciado, resultado que so de
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outros enunciados. A persistncia de metforas de tramas11 indicque a obra de Guimares se constitui num ponto de interseco de
vzes divess: ineexul se sbepuj exul.
Vis pelculs pcum dilg cm Guimes, muis
levando s telas verses lmadas de algumas de suas obras, entre
els:A hora e a vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos (1965),
Sagarana: o duelo, de Paulo Thiago (1973), Noites do serto, de
Carlos Alberto Prates Correia (1984),A terceira margem do rio, de
Nelson Pereira dos Santos (1994), Outras estrias, de Ped Bil
(1999). As diculdades de transpor a especicidade e a complexidadelingstica de Guimares para o campo imagtico so enormes, e
muis pelculs cbm p pens sugei de lnge um cnex
com a obra literria que almejavam adaptar. Dentro do ncleo de
lmes que, de uma forma ou outra, buscam estabelecer relaes com
lieu de Guimes,Deus e o Diabo o que mais radicaliza o
dilg.
A suposio deste texto a de que Deus e o Diabo sei
um reescrita cinematogrca de Grande serto.12 Glube n
busc elb um adaptao cinematogrca, ms esbelece
dilogo profundo, s vezes consciente e declaradamente manifesto,
us, clcd num exens ede que em se cm em
que perpassa dos relatos orais, gneros populares como o cordel,
literatura nacional e internacional. A relao no causal nemdeterminista, mas intertextual. O lme de Glauber incorpora as
lies e o movimento de Guimares no plano cinematogrco;
tentativa no a de adaptar para o cinema a obra de Guimares, mas
de dialogar com ela reescrev-la signica reinvent-la. Um dos
pimeis specs que ssinlm esse dilg es n mnei de
cnsui se.
Existe uma forma de narrar persistente que constri oserto
de fora: trata-se, nesse caso, de escritores de uma classe mdia
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citadina que descrevem o outro sertanejo. Guimares e Glauber,cnud, disncim-se d vis clnizd que emlduv
serto e o sertanejo de fora, tipicando-o. Nesse caso, o escritor
e um nd disncid, que cnsu disnci n ppinarrao em terceira pessoa, conferindo-se o direito de interpretar
lngnqu e s mds ds incivilizds senejs. N cinem,a linguagem flmica sugeria a distncia da cmera com o outroa que se direcionava. Com inteno de conferir alto grau deverossimilhana, no objetivo de retratar o sertanejo de verdade,
os lmes se estruturavam numa composio que se limitava aosmldes d decupgem clssic, sempe num lingugem ibuiaos moldes europeus e norte-americanos; a distncia imposta por
l lingugem sepv nd de seu bje, um nd queorganiza tudo em funo de um nico olhar, centralizador, quedispe as guras com muito cuidado no momento de faz-las posar
diante da objetiva, nos diz Ismail Xavier (1983, p. 133). A distncia
ensejd n ppi de desceve clc senej cm umou, sepnd- d Eu civilizd.
Esses pcedimens nivs, lieis u cinemg-
cos, se caracterizavam, pois, por sua dimenso monolgica.Diferentemente, o ato de desenredar o que singulariza as obras deGuimes e Glube.Deus e o Diabo e Grande serto pesenm
multiplicidade de vozes, de temas, de leituras, de tradies, que elide
a gura do narrador onipotente que ostenta seus conhecimentossobre o serto. A construo intertextual possibilita que oserto e
sertanejo no sejam objetos do quais se fala, mas a prpria matria
vertente (Rosa, 1986, p. 96), e a desconstruo da distncia entre ond e nd se pduz n ei dilgic ds discuss.
Diversos so os procedimentos narrativos que garantem s
obras de Guimares e de Glauber a possibilidade de falar o serto porden: elimin-se nd cenlizd, a utilizao de msicase da musicalidade, do cordel, de vozes populares numa polifonia que
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descentraliza a narrao, caracterizando-se pela explorao intensivad divesidde de vzes, d viedde de ips de discus.
Se toda linguagem dialgica, em Grande serto e em Deus e o Diabo a construo salienta as vozes constitutivas dodiscurso, deixando uir o seu carter dialgico, que se manifesta
na reconstruo da linguagem e nos neologismos de Guimares,ns travellings e na montagem de Glauber; no innito movimentar-se no espao e tempo de Glauber; na vinculao de memria e
pisgem de Guimes. Ns bs desses ues, s els is
so transgurados por jogos lingsticos e imagticos.
Em Grande serto, encnms:
1) arcasmos como: conspeito, aspeito, prospeito, maxim,consueto, percurar, imigo, militri;
2) infraes gramaticais: Se despedimos (p. 68) e De ou-vir ele acrescentar assim... (p. 391);
3) locues condenadas pela gramtica, mas presentes na
fala popular: quase que (p. 379) e enquanto que (p.353).
4) provrbios alocados em contextos diferenciados, e re-
elaborados, como nos seguintes exemplos: Idia novaque imaginei: que, mesmo pessoa amiga e corts, vi-
rando patro da gente, vira mais rude e reprovante (p.120); Mocidade. Mas mocidade tarefa para mais tarde
se desmentir (p. 24); Quem descona, ca sbio (p.132); Mas a gua s limpa nas cabeceiras (p. 94) sobre provrbios, ver Lima (1974).
Aparece, inclusive, aluso a Romozinho, gura do
imgini ppul, pinciplmene d ndese de Gis. ribld pesngem pincipl de Grande serto: veredas bd esi
da seguinte forma:
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E sei que em cd vid de cmp, e debix de smb de cdve, es di e nie um dib, que n d mvimen, mndconta. Um que, o Romozinho, um diabo menino, que corre
dine d gene, lumind cm lneninh, em mei ce dsono (p. 273).
Essa dimenso intertextual pode ser localizada, tambm, na
existncia de tramas de uma obra sendo desenvolvidas pela outra,de temas compartilhados, de apropriao de maneiras de narrar,mesmo que em linguagens to diferenciadas como a da literatura e a
d cinem, cm sugee exempl segui.
a pelcul de Glube pesen, ns pimeis imgens,um travelling que mostra uma terra desolada, petricada. De
repente, aparece na tela a gura de uma queixada e de um olho deboi morto j em estado de decomposio. Segundo Durval Munizde Albuquerque Jr. (2001, p. 281), o lme de Glauber vale-se deimagens-clich, como as de seca, vaqueiros, gado morto, beatos,
que proporcionam campo imagtico para a inveno do Nordeste,enendid cm pcess pel qul s discuss cnsem egitendo em comum a estratgia de estereotipizao. Dito de outra
forma, as cenas iniciais deDeus e o Diabo conformariam esse campode esteretipos que atuam como efeitos de verdade, trabalhando nainveno do Nordeste e do nordestino. Entretanto, a abordagem dealbuqueque J. sbe pelcul de Glube se esquece de bd
algumas dimenses importantes, que merecem ser ressaltadas.N inci deDeus e o Diabo, a forma como essas imagens so
trabalhadas no lme e como se relacionam em seu interior tornam-sechves p cmpeens d b, pis Glubecnsi um seque, cm em Guimes, esev disnci d emp cidin e despao fsico-concreto. , portanto, com muita ressalva que podemos
vincul diemeneserto eNordeste emDeus e o Diabo.
A comparao com Guimares que Albuquerque Jr. no citaexpressamente como um inventor do Nordeste pode esclarecer
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um puc mis ess ques, pis s pimeis imgens d pelcul
dilgm cm Grande Serto. J no primeiro pargrafo, Riobaldodiz:
Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homemno, Deus esteja. (...) Da, vieram me chamar. Causa dum bezerro:um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser se viu ; e commscara de cachorro. Me disseram; eu no quis avistar. Mesmoque, por defeito como nasceu, arrebitado de beios, esse guravarindo feito pessoa. Cara de gente, cara de co: determinaram era odemo.(...) O senhor tolere, isto o serto.
As expresses bezerro, olhos, beios, rindo feito
pessoa, assinalam bem o campo imagtico comum e a busca do
dilg explci.13 A comparao entre essas obras, na tarefa de
lh um sb luz que emn d u, cej-ls cm nivs
que inventaram a nao sob prismas especcos, leva-nos a distanciar
de concluses que consideram que romance e pelcula se edicam
sb eseeips.Em Grande serto sempre muito perigosa a tentativa de
circunscrever o serto a uma regio, a uma geograa determinada
e delimid. apes de pdems n lcis ccesics e
mapeveis, o espao se torna fugidio, assim como a temporalidade.
No que se refere temporalidade, os documentos comprobatrios
de eventos histricos precisos aparecem juntos forma coloquial
e tantos (cf. Galvo, 2000, p. 39; ver tambm 1991). Quanto aoespao, tambm temos um procedimento similar. As referncias
pnm p Gis, Bhi e, pinciplmene, Mins Geis. Em
determinado momento, por exemplo, Riobaldo fala de uma vila,
localizado-a na fronteira, entre Minas e Bahia: Aqui Minas; l j
a Bahia. Noutra ocasio: O So Francisco partiu minha vida em
duas partes. Alm disso, oLiso do Sussuaro, que Riobaldo dene
como o raso do pior havente, pode ser identicado no Raso da
Catarina, na Bahia, apresentando caractersticas de extrema agrura
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e aspereza, podendo ser comparado, como o faz Walnice Nogueira
Galvo (2000, p. 43), ao deserto onde Lampio se embrenhava
com seu bando para escapar ao assdio das foras legais. Portanto,
apesar de Galvo armar que o serto de Guimares no o do
Nordeste, as aluses apontam para a mistura de lugares geogrcos
e imaginrios que se sobrepem, nos quais o serto no pode ser
descnecd dquil que se enende hje p Ndese sem,
evidentemente, ensejar na construo textual quaisquer conotaes
de estereotipizao.
Se a meno a Antnio Conselheiro evidente na gurade Sn Sebsi em Deus e o Diabo, encontramos tambm na
b de Guimes, p cninu cind exempls d m
desconcertante de eventos, personagens e geograas, Antnio
Conselheiro, que aparece na gura do velho goiano-baiano
Teofrsio,14 muito conselhante, [h]omem no sistema de quase-
doido, que falava no tempo do Bom Imperador. Tempo e espao em
Guimares so alegricos, metforas continuadas que se deslocam
num processo de des-territorializao. seguindo esse raciocnio
que Wille Bolle (2004) arma que o serto rosiano o resgate de
Canudos coincidindo novamente com a inteno de Glauber. Essa
assertiva no signica que o procedimento narrativo de Guimares
sej de cnsui um cpi dquel cidde empic, ms de um
recriao.Cabe aqui, ainda, lembramos da cautela sugerida por Antonio
Candido (1957, p. 7) sobre os dilemas de geograa em Guimares.
Apesar de sermos capazes de identicar topnimos ao seguir o mapa
de Grande serto, que num pimei mmen pece cpz de se
apreendido pela observao direta, logo descobrimos que o mapa
se esfuma, apresentando inusitada composio de lugares, com
caminhos irreais e fantsticos. O mapa obedece, em realidade,
necessidade de composio de Guimares.
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Qual serto seria esse lugar em que o autor apresentaalegoricamente Canudos e Antnio Conselheiro, e esparge lugares
mapeveis e, simultaneamente, esfuma as referncias? assim,
como armou Ettorre Finazzi Agr (1998; ver tambm 2001) na suabdgem d b de Guimes, que se pde se pensnd
como uma dobra deslizando entre signicante e signicado.
A narrativa de Glauber tambm abstrai situaes e personagensde sua concretude imediata, eliminando a distino entre o real e o
fantstico, dramatizando as aes e retirando-lhes o carter cotidiano,
como se pode observar nos primeiros e ltimos planos de Deus eo Diabo. Travellings areos sobre o serto e mar, rearmam adistncia do tempo cotidiano e do espao fsico-concreto. Refora-
se, nesse procedimento narrativo, o carter imaginativo do espao.oserto geralmente construdo como regio separada e distantedo litoral; ao aproxim-los, Glauber salienta a ambigidade e
indeterminao espacial.
A construo textual e imagtica de Guimares e Glauber, portanto, nos leva a concluir que a noo de espao essencial
para falar sobre a nao, mas no se confunde imediatamente comqualquer regio especca. Da no se poder enquadrar direta eimedimene, cni d que ssinlm lgums cics,
esses autores no regionalismo. No que diz respeito abordagem
de Albuquerque Jr. sobre Glauber, ca fcil se constatar depoisde cmpmsDeus e o Diabo e Grande serto, peendend selemens de ineexulidde qun cines se disnci de
qulque discus eseeipd.
Interteixo: tecendo tramas
Desenredo se pxim semnicmene de u em deGuimes: interteixo, que se refere atividade de tecer e entrelaar.15
Grande serto eDeus e o Diabo abordam temas similares, falando
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do cangao, de jagunos e da religiosidade popular. Guimarescoloca musicalidade na fala sertaneja, construindo frases com
cadncia, com aliteraes que expressam rudos e movimentos de
animais, e at rimas. Glauber tambm trabalha essa musicalidade,sej uiliznd cdel p esuu niv, sej pel ppi
construo dos dilogos no lme.
Em Guimares, a sintaxe e os neologismos modulam a falasertaneja. Ele utiliza vrias formas de neologismo: superpondo e
assimilando vocbulos homfonos (como, por exemplo, vorara:
associao de devorar, de voragem, voraz; ou serepente: serque de repente se transforma em serpente); usnd subsnivscomo verbos (miasmava, asmava, erisipelava); verbos como
adjetivos (um ro de remorso); entre outros. H tambm alteraoda sintaxe, que se processa de tal forma que torna as frases comsentido equvoco: preciso de Deus existir a gente, mais; e do
diabo divertir a gente com a sua dele nenhuma existncia.
A decupagem e a encenao glauberiana, por sua vez,formam uma tessitura de vozes que se mesclam, e possibilitam que
estranhamento no se localize nalgum ponto fora da narrativa. Otexto prima pela textura descontnua, pela alterao espao-temporal,pela variao do tom, pela aproximao constante entre a narrao
e s ccesics ds pesngens. o cdel cenu ce de
oralidade do lme.A narrao se origina e se refora na palavra de um cantador
ppul, que desempenh ppel de linhv s pes pincipise conduzir o lme. A msica inicia a histria, ambientando ospesngens, enevend e dinnd s cnecimens:
Mnuel e rs vivim n se
tblhnd e cm s ppis mAt que um dia, pelo sim, pelo no,Enu n vid deles Sn Sebsi.
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tzi bndde ns lhs,Jesus Cristo no corao.16
Cego Jlio sobe a escadaria de Monte Santo e se depara comAntnio das Mortes, que lhe informa ter matado a todos e que s
deix dis p cn hisi. Mnuel e rs pecem n meida caatinga. A msica sublinha a situao.
D me de Mne Sn
Sbu Mnuel VqueiP piedde de anniMd de cngcei.
A cano anunciar o encontro de Manuel e Rosa comCorisco:
Ms esi cninu
Preste mais ateno:
andu Mnuel e rsNs veeds d se
At que um dia, pelo sim, pelo noEnu n vid delesCorisco, Diabo de Lampio.
anni ds Mes cend, mvimennd-se de um ld para outro. Corisco aparece em vrios lugares ao mesmo tempo.
Antnio das Mortes pula na frente de Corisco e grita: se entregaCorisco. O cangaceiro salta rapidamente. Antnio das Mortes se
atira. Corisco gira, e cai gritando: Mais forte so os poderes dopovo!. Corisco morto, Dad baleada. Antnio das Mortes aproxima-secom um faco nas mos. Surgem na tela Manuel e Rosa, correndo
pelo serto. A msica no fundo vai concluindo a histria:
o se vi vi m,E m vi vi se!
t cnd minh esi,
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Verdade, imaginao.Espero que o sinh tenha tirado uma lio:
Que assim mal dividido
Esse mund nd ed,Que a terra do homem,
No de Deus nem do Diabo!
Essa citao aleatria de trechos das canes populares dolme de Glauber deve-se sua importncia na composio geralda pelcula, j que sinaliza como elas estruturam a obra. Contudo,
dialogando com as canes populares, a msica de Heitor Villa-Lobos, interagindo com as imagens, acaba por conferir novasdimenses s cenas.17Deus e o Diabo se inicia com tomadas areas,tendo no fundoA cano do serto, i dsBachianas brasileirasn 2. Depois de matar o coronel Moraes, Manuel foge, a cmera cmpnh e Dana das bachianas brasileiras n 2 cenu dramaticidade da situao, atuando diretamente na composio
imagtica. Magnicat alleluia reala a voz de Sebastio. A subida deManuel ao Monte Santo avivada pela Cantiga, i dsBachianasbrasileiras n 4. tn cnves de Mnuel Sn Sebsicomo a Corisco so marcadas pela msica Canto do serto, clds Bachianas brasileiras n 4. Depis ds vilens imgens nescdi, qund anni ds Mes pece em divess luges,ind cn s bes, cm ns pesen s ms, cm Magnicat alleluia ao fundo. Outra passagem, Miudinho,danadsBachianas brasileiras n 4, ressalta a tenso da cena, conferindotom trgico a Antnio das Mortes. Na descida aos infernos, oMagnicat alleluia e Quarteto n 11 allegro non troppo compema cena. Quando cego Jlio chega ao acampamento de Corisco, paraavis-lo que Antnio das Mortes estava em seu encalo, a Canosertaneja, preldio dasBachianas brasileiras n 2, sublinha a reaodo personagem. A cena de amor entre Corisco e Rosa d-se sob o
sm d Cantilena, i dsBachianas brasileiras n 5. No nal, nacorrida desesperada de Manuel e Rosa, a cano de Srgio Ricardocede p Chorus n 10.
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as cmds ineexuis s ind mis denss. WlniceNogueira Galvo (2000), por exemplo, lembra-nos da importncia
da verso portuguesa de uma novela de cavalaria francesa:Histria
do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de Frana. Esselivro propiciou grande quantidade de cantigas, peas de cordel,
e inuenciou inclusive no processo de nominao de pessoas emdiversas regies do Brasil. Os episdios eram lidos em voz altanas casas para os familiares e prximos. Essa obra aparece emdivess mmens em Grande serto: Riobaldo se imagina Gui de
Borgonha, amado da princesa Floripes e heri da novela; Ricardo,um dos traidores na obra de Guimares, designado de AlmiranteBalo; Joca Ramiro denominado de par-de-frana (Galvo,
2000, p. 38).
a busc de cnsui um niv que n expesssseunicmene pespeciv d hmem cul d cidde sbe se
marca a literatura de Guimares e pode ser notada j no conto Minha
gente, em Sagarana. Nele, Guimes bd cnse ene ssbees d senej e d du d cidde que, pes de cnhecelgums ciss, us ele ind inh que pende. Desenhnd
um caso de amor numa fazenda do serto, Guimares concebe ohmem ubn cm quele que deve pende, deve pss p umprocesso de aprendizagem. O narrador no discorre sua sapincia
aos incautos, mas, antes de tudo, se coloca na posio daquele que
em de se insui cm se. a psu de busc de dilg, cmj se disse, se um ds piles de Grande serto.
Riobaldo, o grande Cerzidor, narra as suas histrias,fazendo-nos percorrer suas veredas, compartindo sua memria.Mas, o aparente monlogo , em realidade, dilogo com interlocutor
desconhecido; interlocutor evocado, mas a quem no se d
diretamente a palavra, somente as falas de Riobaldo aparecendo.Contudo, a aparente ausncia de enunciao do interlocutor sedesmonta quando percebemos que existe altercao de idias. O
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dilogo se constri a despeito da inexistncia de frases daquelecom quem Riobaldo conversa. Essa forma de narrar imprime
carter enigmtico narrativa. O dilogo ou quase dilogo, pois
o seu interlocutor no aparece inteiramente fora o personagema se expor, a ser enftico, a se posicionar. Esse monlogo-dilogo
proporciona relao de mtuo transformar, e indica a instabilidadeda narrao e do narrador Riobaldo.19
A introduo do cordel ou do monlogo-dilogo por si no
garante os efeitos conseguidos emDeus e o Diabo e Grande serto.
Ismail Xavier cita um exemplo signicativo no que tange ao cinema:A grande feira, lme de Roberto Pires. Esta pelcula compe suanarrativa, apresentando-nos um poeta popular que l para uma
audincia na rua a histria que o espectador acompanha na tela;todavia, constata Xavier (1983, p. 143), a relao entre a voz dopoeta e a histria no incide sobre a organizao das imagens. Em
Deus e o Diabo, cni,o cordel e a estrutura textual formam
um todo nico; e, da mesma maneira, o monlogo/dilogo da obrade Guimes esuu mnce.
Vlnd Guimes, pdems cns que h umdescenmen pduzid pel dilg de ribld cm interlocutor que nunca aparece diretamente, mas que amide
intervm, j que a narrao demonstra que existe um contraste entre
as idias do narrador e do seu interlocutor. As frases Ah, mas falofalso. O senhor sente? Desmente? (p. 175) sugerem que a histriaibldin des d pensmen cic e d lh sbi dquele
com quem dialoga. Essas vozes e o efeito de descentramentoproporcionam um dilogo e fazem com que o prprioserde ribldseja continuamente (re)construdo. Riobaldo diz: o senhor me ouve,
pensa e repensa, e rediz, ento me ajuda (p. 82); com o senhor
mesmo me escutando com devoo assim que aos poucos vouindo aprendendo a contar corrigido (p. 83); Mais hoje, maisamanh, quer ver que o senhor pe uma resposta. Assim o senhor
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j me compraz. Agora, pelo jeito de car calado alto, eu vejo que
o senhor me divulga (p. 86); O senhor me organiza (p. 277);Sua alta opinio compe minha valia (p. 11). O prprio Riobaldo
solicita a interveno de seu interlocutor Conto ao senhor oque sei e o que o senhor no sabe; mas principal quero contar que eu no sei se sei e que pode ser que o senhor saiba (p. 89) ; aintercesso produz a atualizao do contar, pois a memria nunca a repetio do acontecido.
A lembrana da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada
um cm seu sign e senimen, uns cm s us ch que nse misturam. Contar seguido alinhavado, s mesmo coisa de raraimportncia. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forteou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fossediferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim que eu conto. O senhor bondoso de me ouvir. Tem horas antigasque caram muito mais perto da gente do que outras, de recentesdatas. O senhor mesmo sabe. (p. 99).
Walter Benjamin (1980) dizia existirem duas formas dememria. Uma que se refere simplesmente s recordaes e faz do
gesto de lembrar algo mecnico e racional; a outra, se vincula aorememorar emotivo, anterior fragmentao da cultura e do sujeito,estreitamente ligada narratividade oral. Esse carter de oralidadees impess ns memis ibldins, e pssibili um emem
emotivo, fazendo com que o uxo da memria se tea na procura da
construo dum passado.
EmbDeus e o Diabo privilegie a ao os acontecimentos
surgem na tela sempre na perspectiva do futuro e so poucos osmomentos de erupo direta da lembrana, procedimento narrativoque, de certa forma, aproxim-lo-ia mais de Os sertes, indicnd
uma interlocuo tambm com Euclides da Cunha (1985) , no lme,
descentramento d discus deve-se divess pcedimensnivs: Glube dee lh d cm s pesngens,nos momentos em que narrador e personagem se identicam, ora
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utiliza ponto de vista distanciado, por exemplo, quando a narraose concentra num cantador, que usa o pretrito para se referir s
aventuras dos personagens. As narraes conguram as personagens
e expem as suas emoes e sensaes (cf. Xavier, 1983).
A linguagem cinematogrca, em Glauber, se afasta da
pura descrio. As seqncias em que Manuel, depois de matarseu Moraes, perseguido por jagunos exemplicam bem essatentativa. Ao invs de as personagens aparecerem numa seqncia
descritiva clssica como do estilo do faroeste norte-americano
elas se dispem numa seqncia emocional. A rapidez da aoexpressa na tela corresponde violncia da sensao de Manuelsendo perseguido. A movimentao da cmera, os enquadramentos
diferenciados, a montagem que, como num mosaico, trabalha cenasmuito dspares dotando-as de sentido, fazem com que linguagem epersonagem se mesclem profundamente.
As duas obras, portanto, transitam entre gneros primrios esecundrios (Bakhtin 1997), utilizando tramas em que os gnerosdiscursivos da oralidade (o cordel, a fala, a poesia e a msica
populares) so interpretados pelo gnero literrio e cinematogrco.Exise mesm um emblhmen csind pel mulipliciddede redes discursivas provenientes das relaes entre os gneros do
discus.
Uma das dimenses em que mais claramente se evidencia odilg exisene ene Grande serto eDeus e o Diabo a religiosa.
A presena de elementos religiosos como estrutura fundamentalna constituio do serto constante no cinema e na literatura doBrasil. Guimares Rosa, Euclides da Cunha, Jos Lins do Rego,na literatura; Lima Barreto, Nelson Pereira dos Santos, Anselmo
Due, n cinem. Esses escies e ciness descevem serto
piiznd cmp simblic-eligis, que de ce mnei nslev pens n nlgi ene dese eserto. o dese, cm
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smbolo puricador, sempre exerceu forte inuncia no pensamento
cristo, bastando lembrar, para exemplicar essa armao, queJesus foi para o deserto enfrentar a solido e a tentao, como forma
de se puricar. Oserto est sob o mesmo complexo simblico; seuapelo similar ao do deserto, e remete quelas reas que Arnold Van
Gennep (1978) deniu como lugar situado entre dois territrios.
Na rede intertextual edicada por essas obras, a forma comoa esfera religiosa as caracteriza talvez seja o mais expressivo ponto
de comunicao. Ao colocar no centro do lme a ambigidade, a
vessi, cn cm elemens d cmp simblic-eligis,Glube dilg diemene cm b de Guimes, que
indici que esses ues cessm um mesm cdice, que sedesmnch em edes ineexuis.20 Esss bs es, pis, emdilogo profundo entre si e entre gneros primrios e secundrios,evelnd-ns ce mnei pesisene de cnsui e de se
elcin cm sagrado, que se manifesta numasimblica do mal
no ser toa, por exemplo, que os momentos cruciais deDeus e oDiabo e Grande serto: veredas sero denominados de descida nas
inferneiras e descida ao inferno, respectivamente.
Diferido: a construo de alteridades
Por causa que o outro era diferido, composto em outra sria qualidade de preocupaes, arma a certa altura Riobaldo(p. 386). Diferir indica tanto a preocupao com a especicidadedo outro, a inquietao com a diferente, como a apreenso com o
diferimento no sentido de adiar, retardar, procrastinar. Essa dimensons cnduz expndi s quesinmens diecinnd-s,evidentemente, tambm obra de Glauber. A pelcula e o romance
evocam o serto como forma de falar o Brasil, ento, razovelindagar se as imagens e as noes utilizadas nessa rede intertextual,nesse emnh de deseneds e ineeixs, cnsuiim Bsil
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cm um sisem inegl, que bci e eduzii jusmene alteridade e o diferimento. Se isso fosse verdade, o dilogo seria
somente supercial, pois ao contrrio de sugerir o diferente,
composto de outra sria qualidade de preocupaes, terminariap menscb u.
Essa preocupao com o diferido nos conduz s perguntasformuladas no incio deste texto, que procuravam averiguar seexisii nesses ues um pel serto arcaico como forma de
evocao de um passado compartido que possibilita imagens de
identicao num passado comum compartilhado e numa origemnica , mas que deveria ser superada pelas foras modernizadoras ecivilizacionais. Enm, vale repetir, a inveno do Brasil se ancoraria
nas imagens do serto como metfora da visibilidade do devir danao una e homognea?
Rubem Fonseca (1994, p. 461 e 468), por exemplo, expressa
na fala de um personagem, emIntestino grosso, as seguintes idias:(...) os caras que editavam os livros, os suplementos literrios, os
jnis de les. Eles queim s neginhs d psei, s gunis,os sertes da vida. (...) Eu no tenho nada a ver com GuimaresRosa, estou escrevendo sobre pessoas empilhadas na cidade (...)
N d mis p Didim.
Certamente, essa armao acaba por enquadrar Guimares
num tipo de narrativa de identidade da nao, alicerada nosertocm mi d bsilidde. Esses mis, p su vez, descnecds eincompatveis com a vida urbana, tm o efeito de produzir a viso danao como entidade totalizadora, que engloba a diversidade numagrande unidade, representada na expresso que Bhabha (1998)
deniu como todos como um. Nessa concepo, no seria difcilde alocar a prosa de Guimares e sua reescrita cinematogrca em
Glube cm nivs pimdiliss que cim se cmmito de um passado compartido, estabelecendo a construo deuma identidade como forma de manter o controle, por meio do
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esquecimento, da violncia da origem da nao. Contudo, comose bsevu n dece dese ex, s deseneds e ineeixs
apontam justamente para a heretogeneidade da nao e, na medida
em que tecem e tramam uma composio de vozes, colocam emevidncia suas ssuras e disjunes, ressaltando suas diferenas o
diferido.
a nlise que venh desenvlvend pece mesm indicque ineessne ds bs de Guimes e de Glube epus
na tematizao da prpria alteridade, que a frase com a qual iniciei
este tpico exemplica bem. A importncia com o diferido se deve,na minha perspectiva, composio das vozes nessas obras, aonj ineexul d necessidde que ive de me dee ns
desenredos e interteixos, como metforas do carter eminentementeineexul de Grande serto e Deus e o Diabo. Tanto no lmecomo no romance, o dilogo entre textos e tradies permite que
personagens margem, como Manuel e Riobaldo, que comumente
se apresentavam pela benevolncia de cineastas e literatos, e sempredo prisma destes, se manifestem numa pluralidade de vozes. Osdiscursos se interpenetram, as falas partem de mltiplos registros e,
desse modo, a construo textual e imagtica faz com que interajama fala e a imaginao dos sertanejos sobre eles mesmos, a viso dosertanejo sobre as cidades e a maneira como os citadinos vem o
se.
a esuu mnce cm um cnves, Guimesdispe no centro da narrativa a questo, evitada por muitos escritores
e cientistas sociais, da heterogeneidade da nao (cf. Bolle, 2004, p.39-40). A conversa entre o sertanejo Riobaldo que foi jaguno edepois se transformou em fazendeiro e o doutor da cidade coloca
em evidncia as diferenas, os conitos como tambm sublinha
a tentativa de mediao e dilogo. J Glauber nos apresenta umacomposio imagtica que revela a heterogeneidade da nao nos pelos personagens que se situam em classes sociais especcas
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e nos conitos entre essas classes, mas por que o lme proporcionao dilogo entre as imagens, a voz de um poeta popular, a msica
erudita de Villa Lobos, a poesia, os mitos e as histrias do povo.
Contra certa perspectiva comum na literatura e nacinematograa nacional que constri o sertanejo e o serto a partir
de um disnci denuncid pel ppi discus, esss bsquiem um ede ineexul que descenliz niv. Ncs de Guimes e Glube, ineexulidde desuiz
reduo etnocntrica que localiza no serto traos arcaicos que se
deve superar e que identica o sertanejo como gura de pensamentoicinl. o se, ssim, construdo de dentro. Os temas,as canes, as poesias, as vozes perpassam essas obras, que se
comunicam entre si e com outras obras literrias e cinematogrcas,e dialogam diretamente com diversas construes e formas denarrao populares.
O serto o cangao, o messianismo, as revoltas populares,a religio do sertanejo se apresenta por meio de experincias quesurgem margem da nao; e como forma de se pensar o Brasil
justamente por reetir sobre a irrupo de outros tempos e espaos. Ns dis ues, -se de pensentre tradies, alocando sconguraes espaciais diferentes histrias.
O serto, povoado de cangaceiros, jagunos, lderes
messinicos, coronis, matadores de cangaceiros, alegoriza ascomunidades que lutaram contra os poderes centralizantes (como
Canudos); nesse contexto, as vozes se encontram e se mesclam e esta heterogeneidade que faz com que o serto surja armando adiferena s formas modulares de nao diferena que resiste eteima em no se enquadrar (ver Chatterjee, 2000, p. 229).
Disse neimene que lieu e cinem pcumencontrar smbolos da identidade nacional. Como se sabe, existeuma intrnseca associao entre lngua, literatura e cinema , cultura
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e territrio na constituio da nao como um todo homogneo,denunciando a cumplicidade existente entre co e ordem
geopoltica (ver Mignolo, 2003). A crtica tem buscado ressaltar
esses smbls de idenidde, muis vezes impund um u desej que se encn lhues. o que esu ppnd nes nlise
dos desenredos e interteixos de Guimares e de Glauber que talvezdevssemos fazer uma inverso que possibilite perceber que a foracrtica desses autores no se ancora prioritariamente na armao daidentidade nacional por meio do serto, mas na armao do serto
como diferena em relao s foras centrais ou hegemnicas danao.
o se de Guimes e de Glube, cmps desse inicd
de vzes, nesses desenredos, nesses interteixos, manifestando a preocupao com o diferido, justape, justamente por essa formade composio, diversas temporalidades, culturas e territrios, que
inegem e se einvenm.
Notas
1 Rero-me, aqui, principalmente obra de Bhabha (1990; 1998).
2 O conceito de comunidade imaginada foi elaborado por BenedictAnderson (1989). Para acompanhar a rica discusso sobre a nao, ver,
entre outros, Homi Bhabha (1990; 1998), Stuart Hall (1997), StuartHall e Paul Du Gay (1996), Partha Chatterjee (2000).
3 Diversos autores analisaram o serto, entre eles se destacam Lcia
Lippi de Oliveira (1993; 2000, especialmente o captulo III), JananaAmado (1995; 1995a), Marcos Schettino (1995), Candice Vidal (1997),
Sidney Valadares Pimentel (1997), Mireya Surez (1998), AlbertinaVincentini (1998), Gilmar Arruda (2000).
4 Sobre espao-tempo pedaggico e performtico, ver Homi Bhabha(1998).
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5 P um nlise de upis d pn de vis hisic-nplgic,
ver Alicia Barrabas (1987; 1996). Sobre Canudos e as utopias emGlauber, ver Jos Gatti (1995). Para anlise do serto em Guimares
como a-topia, ver Ettore Fizazzi-Agr (1998; 2001).
6 A importncia da literatura no contexto brasileiro foi analisada por
Antonio Candido (1976). Sobre a relao entre o cinema na descriodo Brasil, principalmente abordando a relao entre rural e a cidade,
serto e cidade, ver Jean Claude Bernadet (1980) e Clia AparecidaFerreira Tolentino (2001). Sobre misso, ver Nicolau Sevcenko
(1983).
7 Utilizarei, alternada e aleatoriamente, tanto a forma abreviada (Grandeserto, Deus e o Diabo) como a completa para identicar o romance
e o lme. Por questes de estilo e praticidade, irei me referir, daquip dine, Glube rch simplesmene p Glube, e Guimes
rs p Guimes.
8 Estou ciente das diculdades de trabalhar com linguagens diferenciadas
cm lieu e cinem. Devems es ens sbe pssgemde um modo de expresso a outro. A linguagem cinematogrca vale-
se de imagens, de enquadramentos, de planos, de cenrios; a literaturase expess cm plv quse que exclusivmene, ms s imgens
cnsuds ns nivs escis n s diemene visulizds,pois deve haver a interao entre, por exemplo, uma paisagem descrita
e interpretada por um escritor e a imaginao do leitor. Entretanto,cinema e literatura trabalham com signo, e o material especco do
cinema o objeto tico e acstico transformado em signo (Jakobson1970). Cinema e literatura so, portanto, formas narrativas. A diferena
de cd discus n pde esbelece beis que impssibiliem uminterlocuo entre cinema e literatura. Como analisar, se concluirmos
pel esbelecimen de is beis, um b cm Dirio deum padre, de rbe Bessn, que inencin segui liv que es
adaptando pgina por pgina? (Bazin 1991, p. 83). Ademais, a
interlocuo deDeus e o Diabo, Grande serto e Os sertes, de Euclidesda Cunha (1985), se constitui em procedimento habitual para muitosds que inenm cmpeende esss bs. o pximnd s dis
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primeiros, ora os dois ltimos, ou mesmo mesclando-os, as abordagens
sempre pressupem materiais para interlocuo. A comparao entreGuimares, Glauber e Euclides da Cunha pode ser encontrada em, por
exemplo, Norma Bahia Pontes (1965) e Adair de Aguiar Neitzel (s/d).
9 Cleusa Rios Passos (2000) trabalha o termo desenredo para sugerir como
a linguagem roseana faz interagir tradies e temas, buscando captarmomentos da constituio do feminino. A anlise frutfera de Rios nos
demonstra como desenredar perfaz o campo semntico intertextual dab de Guimes rs.
10 Termo formulado por Julia Kristeva (1970) para sublinhar a existnciade vzes que se em e ejeim num mesm ex. tzven tdv(1987), a partir das idias de Kristeva, utiliza o termo intertextualidade
para se referir ao dilogo entre discursos, e a expresso dialogismo para dilg ene inelcues. tn em Guimes qun em Glube,
esses tipos de dilogos se interpenetram, e ca quase impossvelesbelece divis nid. Us, pn, s ems indisinmene.
Os textos backtinianos indicam que a dialogia se refere ao princpio
constitutivo da linguagem e dos discursos, e polifonia caracteriza umip de ex que expl dilgism, deixnd s vzes cnsiuivsserem vistas e esto em oposio aos textos monolgicos que
escondem o carter dialgico de suas constituies. Sobre o assunto verAnglica Madeira e Mariza Veloso (1999).
11 Ver Nilce SantAnna Martins (2001).
12 Inspiro-me, para sustentar essa suposio, na anlise de Willi Bolle(2004) que assevera que Grande serto sei um eesci de Os
sertes, de Euclides da Cunha (1985).
13 Conforme anlise de Adair de Aguiar Neitzel, no texto encontrado no
sie hp://b.geciies.cm/cibelieu/lieu/glube.hml
14 Teogrades aquele que pronuncia palavras divinas, o que anuncia a
vontade dos deuses. Ver Bailly (1988, p. 927), citado em Luiz Roncari(2004). Os nomes na obra de Guimares so discutidos por diversos
autores. Alm de Luiz Roncari e Walnice Nogueira Galvo (que logo
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adiante ajudar a discutir este assunto), podemos citar, entre outros:
Ana Maria Machado (1976), Augusto de Campos (1991), Kathrin H.Roseneld (1993; 2006).
15 Segundo Nilce SantAnna Martins (2001, p. 276), em seu estudo sobre
o lxico de Guimares, interteixo seria o ato de entretecer, entrelaar. Oem pece n bNo Urubuquaqu, no Pinhm (1984).
16 As canes so de Srgio Ricardo e do prprio Glauber Rocha, citadasem Rocha (1965).
17 Para anlise de Villa-Lobos, ver Paulo Renato Guerios (2003).
18 Sbe Cano de Siruiz, ver tambm Willi Bolle (2004).
19 Roberto Schwarz (1965) faz uma instigante abordagem sobre o
mnlg-dilg em Guimes.
20 Utilizo de forma bastante livre o termo cdice inspirado em Rita Laura
Segato (1998). A autora entende cdice como um conjunto de motivosque se epeem, em cnsne inecmbi, lclizds em divess
formas de interao social, nas prticas rituais e na conversaoinformal. O cdice indica a repetio e consistncia de um ncleo de
mivs.
Serto (backland) and Narration: Guimares Rosa, GlauberRocha and their plots
Abstract: This text tries to verify how the nation was constructedin Grande serto: veredas [The Devil to Pay in the Backlands] byGuimes rs, ndDeus e o Diabo na terra do sol[Black God,White Devil] by Glauber Rocha. By analyzing authors as HomiBhabha, Stuart Hall and Walter Mignolo, the text inquires how theseuhs hd cnsuced heserto (backland).
Keywords: space, Nation, serto (backland), literature, cinema.
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