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RONALDO GAZAL ROCHA
DINMICAS ECONMICAS E SOCIOAMBIENTAIS DA GESTO DE RESDUOS
SLIDOS EM CURITIBA: uma anlise das relaes entre educao e trabalho
no Projeto ECOCIDADO
Tese apresentada como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Educao, Curso de Ps-Graduao em Educao, Setor de Educao, Universidade Federal do Paran.
Orientadora: Prof. Dr. Accia Zeneida Kuenzer
CURITIBA
2009
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ii
DEDICATRIA
O Bicho (Manuel Bandeira)
Vi ontem um bicho
Na imundcie do ptio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
No examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho no era um co,
No era um gato,
No era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Aos catadores de material reciclvel que me
mostraram na prtica que a vida de catador
dura, que vida de co... mas que, ainda
assim, vale a pena! Que catador no lixo, que
catador no bicho, que catador, meu Deus,
tambm um homem.
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iii
AGRADECIMENTOS
Definitivamente o trmino de um trabalho acadmico um alvio, o de uma
dissertao de Mestrado, uma realizao e um sentimento de dever cumprido. Mas,
talvez, nada se compare ao trmino de uma tese de Doutorado. No por conta de
sua grandiosidade ou de sua seletividade, que autoriza somente uma minoria de
nossa populao a conseguir tal feito, mas, sobretudo, porque o trmino de um
Doutorado, em verdade, no um fim, mas um incio... talvez o incio. Quando se
inicia um estudo desse porte, no possvel imaginar como nos colocaremos diante
das dificuldades e das agruras que esto por vir e que so muitas. Quando se
efetiva um estudo dessa natureza, impossvel relacionar todos aqueles que direta
ou indiretamente interferiro na construo da obra. E, portanto, tentar relacionar
todos os que contriburam de qualquer forma que seja, para a realizao do
trabalho, certamente se transformaria numa tarefa herclea cabvel de capitulao
antes mesmo do fim da primeira pgina. Por isso, a todos que acompanharam essa
minha trajetria, como professores, como companheiros de turma, como indivduos
prximos, familiares e amigos, colegas de trabalho, chefes e tantos outros que, cada
qual ao seu modo, me sensibilizou de alguma forma, meu mais profundo respeito,
gratido e agradecimento, de corpo e de alma.
Gostaria tambm de deixar registrados minha gratido e todo meu respeito
especialmente a algumas pessoas e instituies, sem o apoio dos quais, o trabalho
no chegaria a um fim.
Primeiramente, gostaria de agradecer, de forma inequvoca e filial,
professora Dra. Accia Zeneida Kuenzer, minha orientadora, que soube me acolher e
prontamente cativar, desde o Mestrado, para o reconhecimento de categorias
centrais para a interpretao da materialidade da vida que nos persegue, como
elemento contraditrio e dialtico em busca de uma totalidade que se reconhece
muito alm da soma de cada parte, muito mais que pela oportunidade de realizao
dessa pesquisa e, ainda mais adiante, da confiana e interesse depositados ao
longo de toda a (difcil e rdua) trajetria.
A todos os membros da Banca, que se dispuseram prontamente a aceitar a
rdua tarefa de analisar as idias expressas neste documento e que to bem
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iv
souberam, cada qual em sua especialidade e a seu modo, elaborar suas crticas e,
assim, permitir um maior aprofundamento e discusso de assuntos to relevantes
relacionados ao objeto dessa pesquisa.
Ao amigo Fred professor Dr. Carlos Frederico Bernardo Loureiro,
intelectual orgnico da rea da Educao Ambiental, que sempre demonstrou
profundo conhecimento da problemtica ambiental e que, sem perder do horizonte a
vertente humana, tornou-se filsofo de referncia e mentor sem saber de minhas
inquietaes e de meus passos (ainda trmulos) no caminho do ambientalismo.
Em particular e de forma absolutamente especial a amiga e professora
Dra. Vilma Barra, muito mais que uma simples companheira, uma referncia na
construo de minha trajetria em busca da compreenso e realizao de uma
Educao Ambiental crtica, transformadora e emancipatria.
Ao professor Dr. Maurcio Serra que, desde o primeiro contato, esteve
disposto a apoiar e que, ao mesmo tempo, viabilizou as condies fundamentais
para que se abrissem as portas para um novo campo de conhecimento articulado na
rea de meio ambiente e desenvolvimento, to importante para a concretizao
dessa tese.
Aos catadores com os quais me relacionei durante a pesquisa e que so
muito mais que objeto, so sujeitos, muito mais que pesquisados, so cientistas
discriminados. A esses que so, mesmo sem saber, os detentores do maior
conhecimento e aprendizado que se poderia imaginar ter, o de ser pessoas, de ser
humano... e ainda sobreviver, meu mais sincero e profundo agradecimento.
Aos coordenadores e auxiliares dos Parques de Recepo de Reciclveis
do Projeto ECOCIDADO, Matheus, Jlio, Joo, Silvana, Milena, que souberem to
bem me receber e auxiliar em tudo o que foi pedido para se reconhecer na
intimidade a realidade da vida dos catadores no interior dos Parques.
No poderia deixar de tornar pblico meu reconhecimento pelo trabalho
desenvolvido pelos profissionais da Secretaria Municipal de Meio Ambiente,
especialmente na pessoa da Ana Flvia, responsvel pela Coordenao Executiva
do projeto ECOCIDADO, profissional acessvel e comprometida com a modificao
do modo de vida dos catadores e a Gisele Martins, Gerente de Limpeza (MALP),
pelos dados especficos fornecidos sobre a gesto de resduos slidos em nossa
cidade.
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v
Aos meus pais curitibanos, Fernando e Clia, razo e corao, amigos
verdadeiros que, com pensamentos, palavras e gestos, sempre me estimularam
atravs do exemplo e de suas vivncias e que contriburam para mais esta etapa da
construo de minha trajetria pessoal e profissional em um momento to delicado
de minha vida.
Anglica, minha companheira fiel de jornada, mais uma vez, que por mais
este longo perodo, soube conciliar os afazeres de me, mulher, trabalhadora, e
tantos outros, diante de mais esse meu desafio, colocando-se de forma equilibrada e
sensata como elemento aglutinante de nossas vidas.
Aos meus filhos, Gabriel e Bruna, que mesmo no sabendo o tamanho da
empreitada, souberam ceder, aceitar e tolerar minhas angstias e inquietaes,
minha falta de tempo e de pacincia, mas que sendo, sem sombra de dvidas, razo
de minha existncia real e concreta nesse mundo de injustias e contradies, foram
e so um mote especial para que pudesse continuar lutando por um mundo
definitivamente diferente do que temos.
Por fim, mas no menos importante, a todos os amigos ou aqueles que de
alguma forma auxiliaram e que, por ventura, tenha me esquecido de nominar, mas
sem os quais a realizao deste trabalho no se concretizaria. Afinal, como diria
Mrio Quintana: H duas espcies de chatos: os chatos propriamente ditos e... os
amigos, que so os nossos chatos prediletos.
A todos meu muito obrigado!
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vi
EPGRAFE
O objetivo central dos que lutam contra a
sociedade mercantil, a alienao e a intolerncia
a emancipao humana.
Emir Sader
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vii
SUMRIO
LISTA DE TABELAS ....................................................................................................
LISTA DE FIGURAS ....................................................................................................
LISTA DE QUADROS ..................................................................................................
LISTA DE GRFICOS ..................................................................................................
LISTA DE ABREVIATURAS E DE SIGLAS ................................................................
RESUMO ......................................................................................................................
ABSTRACT ..................................................................................................................
1 INTRODUO ....................................................................................................
2 O MUNDO DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE ..............................
2.1 GLOBALIZAO COMO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
CAPITALISTA NO MUNDO ATUAL ...................................................................
2.2 REESTRUTURAO PRODUTIVA E ORGANIZAO DO TRABALHO NA
CONTEMPORANEIDADE ...................................................................................
2.3 O TRABALHO COMO CATEGORIA CENTRAL PARA A INTEGRAO
SOCIAL ...............................................................................................................
3 OS RESDUOS SLIDOS URBANOS (RSU) ....................................................
3.1 A ORIGEM DO LIXO ..........................................................................................
3.1.1 Aspectos histrico-sociais ..................................................................................
3.1.2 Lixo e sociedade de consumo ............................................................................
3.2 A GESTO DE RESDUOS SLIDOS URBANOS (GRSU) .............................
3.2.1 GRSU no Brasil ...................................................................................................
3.2.2 GRSU em Curitiba ...............................................................................................
3.2.3 Sistemas Integrados de GRSU (SIGRSU) ..........................................................
4 ATORES E INSTITUIES DA GRSU...............................................................
4.1 OS ATORES DA GRSU .....................................................................................
4.1.1 O contexto contemporneo da limpeza pblica .................................................
4.1.2 Os catadores: excludos, parceiros ou parceiros excludos .............................
5 O PROJETO ECOCIDADO ..............................................................................
5.1 ANTECEDENTES E ORIGENS DO PROJETO .................................................
5.2 A ESTRUTURA IDEALIZADA DO PROJETO ...................................................
5.3 A IMPLANTAO DO PROJETO E SEU FUNCIONAMENTO NA PRTICA ..
6 CONCLUSES ...................................................................................................
REFERNCIAS ............................................................................................................
APNDICES .................................................................................................................
viii
viii
ix
ix
x
xii
xiii
2
15
15
25
39
48
48
48
52
60
60
72
84
90
90
90
96
107
107
118
126
148
157
163
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viii
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 QUANTIDADE DIRIA DE LIXO COLETADO, POR UNIDADE DE
DESTINO FINAL DO LIXO COLETADO, NO BRASIL E NAS GRANDES
REGIES - 2000
63
TABELA 2 DESTINO FINAL DO LIXO COLETADO NO BRASIL 64
TABELA 3 TAXA (EM %) DE LIXO COLETADO PELAS REGIES BRASILEIRAS 66
TABELA 4 DOMICLIOS PARTICULARES PERMANENTES URBANOS, TOTAL E
RESPECTIVA DISTRIBUIO PERCENTUAL, POR EXISTNCIA DE
SERVIO DE COLETA DE LIXO, SEGUNDO AS GRANDES REGIES,
UNIDADES DA FEDERAO E REGIES METROPOLITANAS 2005
66
TABELA 5 MUNICPIOS DA RMC QUE PASSARAM A USAR O ATERRO
SANITRIO DO CAXIMBA
74
TABELA 6 QUADRO DEMONSTRATIVO DA QUANTIDADE DE RESDUOS
DEPOSITADOS NO ATERRO DA CAXIMBA (ANUAL)
77
TABELA 7 DESEMPENHO DA INDSTRIA DE EMBALAGENS NO BRASIL 91
TABELA 8 EVOLUO DA SITUAO DOS CATADORES NO BRASIL 98
TABELA 9 CRESCIMENTO DA POPULAO E DOS RESDUOS SLIDOS
COLETADOS EM CURITIBA - 1990 A 2007, COM PRODUO PER
CAPITA MDIA.
112/113
TABELA 10 RELAO DO NMERO DE CATADORES E DE DEPSITOS
(QUANTITATIVO E PERCENTUAL), POR REGIONAIS
116
TABELA 11 CONHECIMENTO DOS CATADORES A RESPEITO DE SUA
ASSOCIAO/COOPERATIVA - 2008
134
TABELA 12 NVEL DE ESCOLARIZAO DOS CATADORES 138
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 MAPAS DA CIDADE DE CURITIBA COM SEUS BAIRROS E DOS
MUNICPIOS DE SUA REGIO METROPOLITANA.
73
FIGURA 2 VISTA PARCIAL DO ASC, COM A REA DE AMPLIAO DA FASE III
(PONTILHADO).
75
FIGURA 3 MAPA DOS MUNICPIOS INTEGRANTES DO CONSRCIO
INTERMUNICIPAL PARA GESTO DE RESDUOS SLIDOS
79
FIGURA 4 AGENTES QUE INTERAGEM COM OS GRUPOS DE CATADORES 102
FIGURA 5 CURITIBA E REGIO METROPOLITANA - 1973 109
FIGURA 6 LAYOUT DOS PRR 120
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ix
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 QUANTIDADE DE RESDUOS ATERRADOS DE ACORDO COM AS FASES
DE OPERAO
76
QUADRO 2 METAS PARA TRATAMENTO DOS RESDUOS NO SIPAR 81
QUADRO 3 CADEIA PRODUTIVA DE RECICLAGEM 99
QUADRO 4 TRAJETO DOS RSU COLETADOS (TON/DIA) EM CURITIBA, EM 2007 115
QUADRO 5 MODELO DA ESTRUTURA DE PARCERIAS DOS PRR 122
LISTA DE GRFICOS
GRFICO 1 EVOLUO DA POPULAO RESIDENTE NO BRASIL 62
GRFICO 2 MUNICPIOS ONDE A PREFEITURA E OUTRAS ENTIDADES SO
RESPONSVEIS PELOS SERVIOS DE LIXO, POR ESTRATOS
POPULACIONAIS DOS MUNICPIOS 2000
71
GRFICO 3 QUANTIDADE ANUAL DE RESDUOS DEPOSITADOS NO ATERRO
SANITRIO DA CAXIMBA
78
GRFICO 4 EVOLUO DAS QUANTIDADES ACUMULADA E LIMTROFE DE LIXO NO
ASC
82
GRFICO 5 QUANTIDADE DE RESDUOS DEPOSITADOS NO ASC, POR MUNICPIO,
POR ANO
83
GRFICO 6 RELAO ENTRE AS CURVAS DE SERVIO (DWS) E DE CUSTO
MARGINAL DO GERENCIAMENTO DO LIXO
87
GRFICO 7 EVOLUO DA COLETA SELETIVA NO BRASIL 94
GRFICO 8 DISTRIBUIO PERCENTUAL DOS MUNICPIOS BRASILEIROS COM
COLETA SELETIVA
94
GRFICO 9 RELAO ENTRE O CRESCIMENTO POPULACIONAL E A PRODUO DE
RESDUOS SLIDOS, EM CURITIBA, DE 1991 A 2007
113
GRFICO 10 DISTRIBUIO PERCENTUAL DAS TEMTICAS DE CAPACITAO MAIS
COMUNS NO INTERIOR DOS GALPES (%)
130
GRFICO 11 PRINCIPAIS PARCEIROS DAS ASSOCIAES E COOPERATIVAS - 2008 136
GRFICO 12 VARIAO DA IDADE DOS CATADORES DO ECOCIDADO 139
GRFICO 13 FORMA COMO OS CATADORES ACREDITAM QUE SEU TRABALHO
VISTO PELAS PESSOAS
143
GRFICO 14 RENDIMENTO MENSAL DOS CATADORES (R$) 144
GRFICO 15 TOTAL DE HORAS/DIA TRABALHADAS 145
-
x
LISTA DE ABREVIATURAS E DE SIGLAS
ABNT -
Associao Brasileira de Normas Tcnicas
ABRE -
Associao Brasileira de Embalagens
ACMR -
Associaes de Catadores de Materiais Reciclveis
ASC -
Aterro Sanitrio do Caximba
BM -
Banco Mundial
CAT@MARE
-
Cooperativa de Catadores de Materiais Reciclveis de Curitiba e Regio Metropolitana CBO -
Classificao Brasileira de Ocupaes CEFURIA -
Centro de Formao Urbano Rural Irm Arajo CEMPRE -
Compromisso Empresarial para a Reciclagem CF -
Constituio Federal CIC -
Cidade Industrial de Curitiba COMLURB -
Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro CONRESOL -
Consrcio Intermunicipal para Gesto dos Resduos Slidos Urbanos DIRETRAN -
Diretoria de Trnsito de Curitiba EPCs -
Equipamentos de Proteo Coletivos EPIs -
Equipamentos de Proteo Individuais FAS -
Fundao de Ao Social FGV/RJ -
Fundao Getlio Vargas do Rio de Janeiro FMI -
Fundo Monetrio Internacional FNLC -
Frum Nacional Lixo e Cidadania FNMA -
Fundo Nacional de Meio Ambiente GF -
Governo Federal GRSU -
Gerenciamento/Gesto de resduos slidos urbanos IBGE -
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica INLC -
Instituto Nacional Lixo e Cidadania IPPUC -
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba MNCR -
Movimento Nacional de Catadores de Materiais Reciclveis MP -
Ministrio Pblico NBR -
Norma Brasileira OCDE -
Organizao de Cooperao e Desenvolvimento Econmico OMC -
Organizao Mundial de Comrcio ONGs -
Organizaes No-Governamentais ONU -
Organizao das Naes Unidas PBR -
Programa Brasileiro de Reciclagem PETI -
Programa de Erradicao do Trabalho Infantil PEVs -
Postos de Entrega Voluntria PGRS -
Plano de Gerenciamento do Tratamento e Destinao de Resduos Slidos PIA -
Pesquisa Industrial Anual PIB -
Produto Interno Bruto PMC -
Prefeitura Municipal de Curitiba PMSS -
Programa de Modernizao do Setor Saneamento PNAD -
Pesquisa Nacional de Amostra de Domiclios PNLC -
Programa Nacional Lixo e Cidadania PNSB -
Pesquisa Nacional de Saneamento Bsico PRR -
Parques de Recepo de Reciclveis
-
xi
RMC -
Regio Metropolitana de Curitiba
RSU -
Resduos Slidos Urbanos
SENAI -
Servio Nacional de Aprendizagem Industrial
SERPRO -
Servio Federal de Processamento de Dados
SGRSU -
Sistemas de gesto de resduos slidos urbanos
SIGRSU -
Sistemas Integrados de Gerenciamento de Resduos Slidos Urbanos
SIPAR -
Sistema Integrado de Processamento e Aproveitamento de Resduos
SMCS -
Secretaria Municipal de Comunicao Social
SMMA -
Secretaria Municipal do Meio Ambiente SMS -
Secretaria Municipal de Sade SMU -
Secretaria Municipal de Urbanismo SNIS -
Sistema Nacional de Informaes sobre Saneamento TAC -
Termos de Ajuste de Conduta UGP/PMSS -
Unidade de Gerenciamento do Programa de Modernizao do Setor Saneamento UNICEF -
Fundo das Naes Unidas para a Infncia URBS -
Urbanizao de Curitiba
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xii
RESUMO
Durante esse estudo procurou-se enfatizar as dinmicas econmicas e socioambientais relativas gesto de resduos slidos em Curitiba, particularmente relacionadas ao Projeto ECOCIDADO, voltando-se a ateno aos processos educativos atravs dos quais ocorre a construo da identidade dos catadores. Considerou-se as mudanas no mundo do trabalho e as formas atuais de gesto de resduos slidos nas sociedades de consumo, em conjunto com as propostas de criao de associaes ou cooperativas de trabalho, para um nmero cada vez maior de catadores excludos do mercado formal. A inquietao primeira voltou-se para os processos formativos que submetem os catadores e ainda, de forma complementar, as formas que esses processos articulam a excluso includente desses trabalhadores precarizados no mercado da reciclagem. Buscou-se levantar e compreender tais mecanismos de subordinao/superao de sua condio de excludo e de que forma se d sua incluso social no contexto demeritrio da prtica discursiva da sustentabilidade. Partindo do referencial da teoria crtica, as opes metodolgicas usaram as categorias do materialismo histrico para estudar trs das associaes/cooperativas implementadas, considerando sua importncia poltica e/ou o tempo de existncia. Aps a aplicao de pr-teste, entrevistas semi-estruturadas foram realizadas para levantar o perfil dos trabalhadores e como forma de compreender o significado de suas prticas e seu modo de vida. Tambm foram analisados documentos com a finalidade de levantar os enfoques adotados e/ou possveis tendncias dos processos pedaggicos aos quais esto sujeitos os indivduos/instituies pesquisados. Certos fenmenos sociais foram correlacionados s questes de estudo atravs das categorias de mtodo: Totalidade, Contradio, Prxis e Hegemonia. Para o aprofundamento do estudo, delimitou-se duas linhas de investigao que permitiram evidenciar relaes, definir conceitos, explicar processos, organizar e estruturar a pesquisa em si. Ao final do trabalho, foi possvel perceber que: 1) a questo histrica do lixo revela o aumento significativo da importncia do setor de reciclagem, com participao ativa de trabalhadores que no conseguem empregabilidade; 2) o consumo exacerbado se coloca como elemento discricionrio das dinmicas social, ambiental e econmica; 3) o aumento da produo de mercadorias, o desperdcio e a obsolescncia programada dos produtos so aspectos preponderantes na gesto dos resduos slidos que esto conectados de forma indissolvel ao circuito econmico da reciclagem; 4) as solues para o aumento do nmero de catadores em Curitiba, procurou formas alternativas de uma maior participao scio-econmica daqueles que vivem do lixo; 5) o trabalho nos galpes apresenta especificidades que no permitem evidenciar o trabalho coletivo como atividade incorporada, esbarrando em questes polticas e econmicas; 6) as novas formas de disciplinamento da fora de trabalho esto de acordo com as novas exigncias impostas pelo regime de acumulao flexvel que se estendem aos processos de trabalho e aos produtos gerados, aos mercados e aos novos padres de consumo estabelecidos.De forma geral, as associaes/cooperativas podem ser uma opo para a garantia de ganhos e de valorizao do trabalhador que depende da catao para a sua sobrevivncia, mas ainda so insuficientes para garantir uma mudana estrutural nas condies a que esto submetidos os catadores de materiais reciclveis.
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xiii
ABSTRACT
During this study an emphasis was given to the economical and social-environmental dynamics related to solid waste management in Curitiba, particularly related to the project ECOCIDADO, with a special attention given to the educative processes which contribute to the construction of the waste collectors identity. One considered the changes in the labor world and the present forms of solid waste management in consumption societies, together with proposals of creation of work associations or cooperatives to a growing number of waste collectors excluded from the formal work market. The primary concern was aimed at the formative processes which subject the waste collectors and also, complementarily, the forms which these processes articulate the including exclusion of these precarious workers in the recycling market. One attempted to raise and understand such mechanisms of subordination/overcoming their condition of excluded ones, and how their social insertion takes place in the demeritorious context of the sustainability discourse practice. From the critical theory reference, the methodological options used the categories from the historical materialism to study three of the implemented associations/cooperatives considering their political importance and/or age. After pre-testing, semi-structured interviews were made in order to raise the workers profiles, and as a way of understanding the meaning of their practices and way of life. Documents were also analyzed as a means of raising the adopted focus and/or possible pedagogical process tendencies to which the researched individuals/institutions are subjected to. Certain social phenomena were related to the research questions through the method categories: Totality, Contradiction, Praxis and Hegemony. In order to go further in the study, we delimited two investigation paths which allowed us to make relations evident, as well as to define concepts, explain processes, organize and structure the research itself. At the end of the work it was possible to note that:1) the historical issue involving garbage reveals the significant growing importance of recycling with the active participation of workers who do not have a formal job; 2) the high consumption puts itself as a discretionary element of the social, environmental and economical dynamics; 3)the increase of goods production, waste and goods programmed obsolescence are main aspects in the management of waste which are definitely connected to the recycling economical circuit; 4) the solutions for the growing number of waste collectors in Curitiba searched for alternative forms of a higher socio-economical participation of those who live from garbage; 5) the work in the warehouses present specificities which do not allow us to evidence the collective work as an incorporated activity due to economical and political issues; 6) the new forms of disciplining the work force are in accordance with the new demands imposed by the flexible accumulation regime which extend to the work processes and generated goods, to the markets, and to the new established consumption patterns. In general, the associations/cooperatives may be an option to guarantee income and value the worker who depends on waste collection for surviving, but are still not enough to guarantee a structural change of the conditions to which the recycling material collectors are subjected to.
-
1
(...) Eu vivo como um bicho, ou pior que isso
Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo, um indigente, um indigesto, um vagabundo
Eu sou... Eu no sou ningum!
Eu t com fome
(...)
Eu sou sujo, eu sou feio, eu sou anti-social
Eu num posso aparecer na foto do carto postal
Porque pro rico e pro turista, eu sou poluio
Sei que sou um brasileiro
Mas eu no sou cidado (...)
(trechos da msica: O Resto do Mundo)
Gabriel O Pensador
-
2
1- INTRODUO
Atualmente, vivemos numa fase de desenvolvimento das foras produtivas
que, aparentemente, conceitos como os de globalizao e de excluso reportar-se-
iam a noes absolutamente antagnicas. Enquanto o primeiro estrutura-se ao redor
da idia de crescimento, de expanso, o segundo nos leva a imaginar um quadro de
restries, de reducionismos. Contudo, a anlise dos discursos para a explicitao
do movimento do capital revela uma realidade bastante diferente. Uma realidade que
expe globalizao e excluso como faces distintas, mas de um mesmo processo,
logo profundamente interligados. A hegemonia do capitalismo se revela nos dias de
hoje atravs da globalizao financeira que, por conseqncia, e em ltima
instncia, deixa transparecer um mundo mais dividido, mais restritivo, alm de uma
enorme massa de desamparados pelo sistema.
Em verdade, a teoria da globalizao faz muito mais sentido quando da
anlise do processo de mundializao do capital e de internacionalizao, ento
compreendida nas palavras de CHESNAIS (2005, p.18) como teoria da formao e
da expanso do grande grupo industrial transnacional1. A globalizao traz ares
de modernidade e avano para os pases perifricos, mas esconde uma viso
estreita e fisiolgica de desenvolvimento. Ao apresentar a histria da civilizao
humana como uma simples sucesso de etapas, o processo ideologizado de
globalizao viabiliza o sucesso a todos os pases (e indivduos) que adotarem as
receitas de ajuste neoliberal (ou seguirem as expresses de suas orientaes),
explicando ao mesmo tempo, mas de maneira inversa, o fracasso daqueles
excludos.
(...) os integrados no mundo globalizado so aqueles que conseguem incorporar atitudes, valores e novos padres de comportamentos mais adequados ao usufruto das oportunidades que as sociedades capitalistas oferecem a todos os seus cidados. (...) todos devem integrar-se rede mundial para participar da era global. (SANTOS, 2001, p.171)
Assim, escamoteada de fenmeno novo, a globalizao enseja uma carga
de novidade em eventos assemelhados, ou mesmo repetitivos, mas ainda do
1 CHESNAIS explica que o termo industrial s traduz a influncia inevitvel da economia industrial anglo-saxnica, mas que, na verdade, inclui tanto o setor manufatureiro quanto o conjunto das grandes atividades de servios.
-
3
mesmo modo de produo. Na nova fase do capitalismo, tais aspectos ideolgicos
do emprego dos termos globalizao e excluso so desmistificados pelas palavras
de LIMOEIRO-CARDOSO (1999, p.106):
A noo de globalidade remete a conjunto, integralidade, totalidade. A palavra global carrega consigo esse mesmo sentido de conjunto, inteiro, total. Sugere, portanto, integrao. Desse modo, ou por esse meio, o uso do termo global supe ou leva a supor que o objeto ao qual ele aplicado , ou tende a ser integral, integrado, isto , no apresenta quebras, fraturas, ou hiatos. Globalizar, portanto, sugere o oposto de dividir, marginalizar, expulsar, excluir. O simples emprego de globalizar referindo-se a uma realidade que divide, marginaliza, expulsa e exclui, no por acidente ou casualidade, mas como regularidade ou norma, passa por cima desta regularidade ou norma, dificultando a sua percepo e mesmo omitindo-a. Consciente e deliberadamente, ou no, a utilizao da palavra nestas condies tem exatamente tal eficcia.
Sendo assim, o contexto atual que estrutura a nova ordem mundial pautada
na mundializao da economia, mascara uma forma ainda mais brutal de
dominao e expropriao da fora de trabalho. Por trs do discurso afvel da
globalizao como processo de internacionalizao da produo, do trabalho e do
mercado, como novo pice civilizatrio para a espcie humana (como alguns
querem crer), esconde-se formas cada vez mais concentradas de capital industrial e,
especialmente, financeiro2.
Orientada nos moldes da produo capitalista, a economia se transfigura
de maneira consciente, ou no como elemento representativo primordial das
relaes sociais. De maneira prtica, atravs dos mercados, os espaos
contemporneos se adaptam a mxima capitalista da competitividade, do aumento
da produtividade e da busca incessante do lucro. Desta forma, naturaliza-se a
produo e a reproduo do capital como fora propulsora da sociedade
contempornea e, por conseguinte, legitima-se a dicotomia acumulao-excluso.
Dialeticamente, desenvolve-se a polarizao como dinmica natural entre pases,
regies e pessoas. Intensificam-se os contrastes sociais, concentram-se as finanas
de uma forma, at ento, nunca antes imaginada, e se reconhece o triunfo do
fetichismo da mercadoria. O desnivelamento entre os indivduos na atual fase de
2 Acerca do processo de mundializao financeira verificar CHESNAIS (1996, 2000, 2005). O autor, em seu trabalho Les Temps Modernes (2000, p.7), destaca que: Um tero do comrcio mundial resulta das exportaes e das importaes feitas pelas empresas pertencentes a grupos industriais que tm o estatuto de sociedades transnacionais, enquanto o outro tero tem a forma de trocas ditas intragrupos, entre filiais de uma mesma sociedade situadas em pases diferentes ou entre filiais e a sede principal.
-
4
desenvolvimento da sociedade capitalista organiza uma massa populacional de
excludos que agravam as crises sociais e degeneram a vida da imensa maioria.
nesse contexto que a excluso social coloca-se como categorial central para anlise,
exigindo sua incorporao como elemento estrutural do modo de produo
capitalista e no mero defeito ou inconsistncia de programas de ajuste do/ao
sistema. Ou nas palavras de OLIVEIRA (2004, p.23): (...) a excluso est includa
na lgica do capital, ou ainda, dizendo de outra maneira, que o crculo entre
excluso e incluso subordinada condio de possibilidade dos processos de
produo e reproduo do capital3.
Ao mesmo tempo, mas por outra via de anlise, possvel reconhecer que a
histria das civilizaes humanas refora a idia de que o homem sempre manteve
estreitas ligaes com a Natureza em funo da necessidade de conhecer o
ambiente e seus diversos componentes. Contudo, a anlise dos processos
transformadores das sociedades humanas revela uma contradio elementar.
medida que os modelos de produo impulsionaram os homens ao encontro da
Natureza, propiciaram, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de tecnologias que nos
afastavam progressivamente dela. Ainda que se possa dizer que dependamos
direta ou indiretamente da Natureza, o homem instintivamente adotou uma postura
dominadora, que o colocou praticamente como um elemento distinto daquela. Assim,
o processo de trabalho (desconsideradas as formas sociais e as ideologias a ele
associadas) foi encarado como elemento fundamental para alterar a Natureza e,
neste sentido, MARX (1988, p. 142) esclarece que:
O trabalho um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua prpria ao, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. (...) Ele pe em movimento as foras naturais pertencentes sua corporalidade, braos e pernas, cabea e mo, a fim de apropriar-se da matria natural numa forma til para a sua prpria vida. Ao atuar, (...) sobre a Natureza (...) e ao modific-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua prpria natureza.
Ainda a ser ressaltado, importante observar que todas as sociedades
humanas necessitam gerar suas prprias condies materiais de existncia e, nesse
sentido, a mercadoria torna-se o elemento fundamental nos sistemas de produo
organizado por meio de trocas. Evidentemente que os agentes produtores de
3 Grifos no original.
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mercadorias so diferentes e produzem produtos distintos ou, ao contrrio, no seria
concebvel o processo de troca. Portanto, pode-se considerar que a existncia de
certa tendncia para negociar e trocar uma coisa pela outra tipicamente um
aspecto peculiar natureza humana. (SMITH apud SWEEZY, 1983, p. 31)4.
Partindo desse princpio, SWEEZY (1983, p. 32) ainda nos esclarece sobre o
posicionamento de Adam Smith: A troca e a diviso do trabalho esto, dessa forma,
indissoluvelmente ligadas e constituem os pilares que sustentam a sociedade
civilizada. As conseqncias dessa posio so claras: a produo de mercadorias,
enraizada na natureza humana, a forma universal e inevitvel de vida econmica;
(...).5
Mas foi no sculo XX, com a chamada Indstria Cultural, que pudemos
compreender mais amplamente as conseqncias de um comportamento
essencialmente consumista:
(...) com a globalizao de um modelo de sociedade cada vez mais hegemnico, marcado pela economia de mercado, pela planetarizao da cultura capitalista e pelo consumo de bens e valores sob a forma de mercadorias, a relao do homem com o meio-ambiente se constitui em questo crucial para a consolidao ou crise desse processo de hegemonia do capitalismo e das formas neoliberais de gerenciamento poltico do sistema. O problema que se coloca , exatamente, o sentido e os possveis limites desse processo expansionista da economia de mercado que, necessariamente, depende de recursos naturais com a conseqente interveno no meio-ambiente. (RAMOS, 1996, p. 60-61).
Assim, depara-se com uma situao que, em determinado sentido, amplia a
capacidade de criao e uso de novas tecnologias, aumentando a produo de
alimentos e elevando os nveis de conforto e bem-estar, mas por outro, aumenta
tambm o nvel de misria, uma vez que a distribuio dos benefcios gerados no
atinge a maioria das populaes.
Desta maneira, o processo histrico que nos conduziu a moderna civilizao
humana se apresenta atualmente diante do grande conflito de suprir a necessidade
de demandas cada vez maiores determinadas por um padro de consumo
exacerbado.
Com um aumento populacional cada vez maior e com uma tendncia
crescente de produo de novas mercadorias decorre, dentre outros fatores, que a
4 SMITH, A. An inquiry into the nature and causes of the wealth os nations. 2 vols., organizados por Edwin Cannan, Londres, Methuen & Co., Ltd., 1930. v. I, p. 15.
5 Grifos nosso.
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6
produo de bens acaba por gerar uma quantidade enorme de resduos slidos.
Com uma maior concentrao nos centros urbanos, as populaes humanas se
deparam, desta forma, com a necessidade de dispor de maneira adequada o
gigantesco volume de resduos gerados por uma dinmica de consumismo. Nas
palavras de NBREGA (2003, p. 1):
O problema torna-se mais grave em cidades onde inexiste ou h pouca rea para a disposio final dos resduos, como caso da grande maioria das cidades de mdio e grande portes. A variao na composio destes resduos vem substituindo, gradativamente, a frao orgnica por outra no biodegradvel, processo que ocorre, principalmente, nas cidades dos pases desenvolvidos.
De maneira associada, os aspectos acima salientados tm impulsionado as
instituies pblicas na procura por processos mais eficazes e eficientes de
disposio final dos resduos, o que implica em estudos e anlises mais
aprofundadas dos sistemas de gesto de resduos slidos urbanos (SGRSU) no
sentido de seu aperfeioamento e melhoria. Assim, a nfase dos SGRSU, que a
poucos anos voltava-se praticamente para a coleta e a disposio final, vem se
modificando na direo do desenvolvimento de formas de tratamento menos
impactantes ao meio ambiente e que diminuam de maneira considervel a
quantidade de chegada de resduos ao seu destino final.
neste contexto que a reciclagem enquanto tcnica surge como forma
alternativa de diminuio final de lixo e, ao mesmo tempo, enquanto discurso
ideolgico, apresenta-se como atividade economicamente vivel, capaz de absorver
externalidades advindas da gesto de resduos, alm de absorver parcela
considervel de desqualificados e despossudos, contribuindo sobremaneira para
encaminhamentos mais frteis no campo da questo social.
Contudo, freqentemente os indivduos mais precarizados que buscam sua
integrao social ao espao de produo e de vida se confrontam com um
mundo que valoriza intensamente a capacidade de consumo. Mais que acolhimento,
o sistema que busca incluir (de forma subordinada) o excludo e que exclui o
aparentemente includo socialmente, refora uma sensao de estranhamento e de
desfacelamento do prprio ser. Diante da constatao inequvoca da impossibilidade
de incluso, a ideologia dominante que ampara e sustenta o modo de produo
vigente, forosamente condena a maioria aceitao de sua condio social inferior
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7
como reflexo de sua prpria realidade, que o aliena e impede de ponderar acerca
dos valores sociais vigentes. Assim, institui-se perversamente uma sociabilidade
marginal que impele um nmero cada vez maior de pessoas muitas delas que
trabalhavam no mercado formal a viverem na/da rua.
Dentre essa massa de excludos que sobrevive na rua e que dela retira suas
condies materiais de existncia, ganham destaque dirio os catadores de material
reciclvel. So novos elementos da paisagem urbana, especialmente nos grandes
centros urbanos onde, junto a mendigos, vagabundos e pedintes, compem uma
parcela considervel daqueles que no mais encontram possibilidade real e concreta
de insero social plena.
Sob os olhares acusadores da sociedade em geral, esta parcela cada vez
maior de pessoas vive sob ameaas e preconceitos, ao mesmo tempo, que de
maneira contraditria, esses precarizados e excludos so levados a imaginar sua
possibilidade de (re)integrao social atravs de programas que prometem a sua
incluso. Assim, so elaborados projetos e atividades que busquem (re)inventar
alternativas de produo e que, de forma concomitante, viabilizem a transformao
social, cultural e poltica de seus partcipes. Sendo assim, a educao como tbua
de salvao passa a ter um papel preponderante na incluso social do catador, sem
que, contudo, se tenham dados confiveis sobre essa parcela to importante e til
da sociedade. Tomando como referncia as consideraes de Gramsci (1978) sobre
o americanismo e o fordismo, KUENZER (2007, p.1155) explica que:
(...) no tocante ao processo de valorizao do capital por meio dos processos pedaggicos, medida que, a partir das relaes de produo e das novas formas de organizao do trabalho, so concebidos e veiculados novos modos de vida, comportamentos, atitudes, valores. O novo tipo de produo racionalizada demandava um novo tipo de homem, capaz de ajustar-se aos novos mtodos da produo, para cuja educao eram insuficientes os mecanismos de coero social; tratava- se de articular novas competncias a novos modos de viver, pensar e sentir, adequados aos novos mtodos de trabalho caracterizados pela automao, ou seja, pela ausncia de mobilizao de energias intelectuais e criativas no desempenho do trabalho. A cincia e o desenvolvimento social por ela gerado, pertencendo ao capital e aumentando a sua fora produtiva, ao se colocarem em oposio objetiva ao trabalhador, justificavam a distribuio desigual dos conhecimentos cientficos e prticos, contribuindo para manter a alienao, tanto da produo e do consumo, quanto da cultura e do poder.
O que se quer deixar claro, que diante da atual crise entre
desenvolvimento e meio ambiente, a procura por novos padres sustentveis de
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produo e de consumo que almejem incluir o catador, dever resgatar sua imagem
diante da sociedade e, principalmente, proporcionar a formao de sua autonomia,
aqui compreendida no s como uma idia filosfica ou epistemolgica, mas
tambm como uma idia essencialmente poltica, que tem sua origem na constante
preocupao (...) com a questo revolucionria, a autotransformao da
sociedade6. (VELLOSO, 2008, p. 50).
Sendo evidente a complexidade da anlise relacionada aos processos de
formao da subjetividade do catador, questionaram-se quais os processos
formativos a que estariam submetidos os catadores de material reciclvel que
desenvolvem suas atividades no interior dos Parques de Recepo de Reciclveis,
organizados pela Prefeitura de Curitiba? Ainda de forma complementar, questionou-
se tambm de que forma esses processos de formao articulam a excluso
includente dos trabalhadores precarizados do mercado da reciclagem e,
consequentemente, como tais processos encaminham a educao desses
profissionais?
Contudo, no sentido de levantar e compreender os mecanismos de
subordinao/superao de sua condio de excludo e de que forma se d sua
incluso social no contexto demeritrio da prtica discursiva da sustentabilidade, o
presente trabalho procurou concentrar-se nas seguintes hipteses:
1. As configuraes atuais do mundo do trabalho reforam as formas de excluso e, conseqentemente, determinam uma forte influncia burguesa aos setores informais.
2. Os modelos de gerenciamento de RSU so fortemente influenciados pela lgica de mercado, desta forma, comprometem os processos autnticos de desenvolvimento da autonomia voltada para a incluso social.
3. Os processos de formao e qualificao da mo-de-obra que trabalha nos Parques de Recepo de Reciclveis incorporam princpios tpicos de um modelo de produo fortemente direcionados ao mercado, logo o processo educativo dos catadores no passa de forma de controle e disciplinamento de trabalhadores informais desqualificados que acabam por justificar a incluso subordinada dos catadores de material reciclvel.
6 Grifos no original.
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OPO METODOLGICA
As consideraes apresentadas at aqui, bem como as questes de estudo
enumeradas, indicam que a opo metodolgica de trabalho mais adequada
relaciona a temtica abordada com os pressupostos da pesquisa qualitativa. A
dinmica social da atual fase do capitalismo contemporneo mostra-se bastante
complexa, determinando um processo de formao/organizao/educao do
catador de rua repleto de subjetividades. Sendo assim, no fcil distinguir entre
causas e motivaes exclusivas, to pouco se pode submeter o sujeito principal do
estudo a experimentos em laboratrio ou de controle rigoroso. Portanto, a
construo do objeto de pesquisa se fez de maneira parcial e, ao mesmo tempo,
tambm esteve sujeito as incompreenses e subjetividades do prprio pesquisador.
O que se procurou deixar claro a priori que no existe neutralidade na pesquisa
sociolgica e as interpretaes dos fenmenos estudados so sempre relativas.
Nesse sentido, a opo metodolgica pela pesquisa qualitativa se baseia no
reconhecimento de que sujeito e objeto estabelecem intensas relaes na pesquisa,
pois ambos os plos, que so distintos, esto em um mesmo contexto determinado,
interligados, e onde o investigador parte da prpria observao. Alm disso,
considerou-se significativo tambm incorporar duas outras consideraes j feitas
por LOUREIRO (2000, p.11) e explicitadas na introduo de sua tese:
1. Existe conscincia histrica no objeto de estudo, logo, o sentido da pesquisa no dado apenas pelo investigador, mas pelo conjunto de relaes sociais em que este est inserido, bem como pelo coletivo de atores individuais e coletivos trabalhados.
2. ideolgica, embora no se resuma a esta dimenso, pois expressa uma construo resultante de uma determinada concepo de mundo, que perpassa todo o processo, desde a definio do tema, do problema, at os resultados e concluses.
Contudo, como cientistas sociais estudando grupos sociais, foi importante
ficar atento ao alerta de MARTINS (2004, p.296) para o fato de que, por mais
aproximao poltica que se tenha ao objeto de pesquisa:
no nos transformemos em militantes de uma causa ou de um movimento, que olham e procuram entender a realidade no como ela , mas como gostaramos que ela fosse. (...) Seja como cientistas (...), a nossa relao com o outro, que tambm sujeito portador de conhecimento, no deve ser marcada pela inteno de fornecer uma direo, segundo um projeto poltico que nosso. Ou de olhar para o nosso objeto a partir de uma concepo
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poltica que, antes de permitir uma anlise objetiva, nos leve a realizar avaliaes. Temos que fornecer um conhecimento que ajude esses sujeitos a se fortalecerem enquanto sujeitos autnomos, capazes de elaborar o seu projeto de classe.
Apesar de todo o possvel significado advindo de uma pesquisa qualitativa,
importante que se ressalte alguns aspectos que, freqentemente, se configuram em
futuras crticas. Primeiramente, deve-se considerar que a proximidade entre o
observador/pesquisador e o objeto a ser pesquisado no deve ser motivo para o
envolvimento real do pesquisador na questo de estudo, sob pena do trabalho ser
taxado de especulativo e de pouco rigor cientfico. Em segundo lugar, partindo-se do
pressuposto de que os mtodos qualitativos privilegiam as anlises de
microprocessos sociais, a questo da representatividade da amostra um aspecto
que no pode ser negligenciado. De maneira inter-relacionada a todos os aspectos
aqui levantados, a questo da subjetividade um problema que permeia as
pesquisas qualitativas, dada a aproximao emprica ao objeto pesquisado.
Contudo, concorda-se com ROMAN & APPLE7 citado por ALVES-MAZZOTTI (1998,
p.140) quando esta afirma que:
(...) a subjetividade no pode ser identificada com o que ocorre na cabea das pessoas: na medida em que ela abarca a conscincia humana, h que reconhec-la como assimtrica, isto , como sendo determinada por mltiplas relaes de poder e interesses de classe, raa, gnero, idade e orientao sexual. Em conseqncia, o conceito de subjetividade tem de ser discutido em relao conscincia e s relaes de poder que envolvem tanto o pesquisador como os pesquisados.
A fim de no permitir interpretaes enviesadas pelas muitas vertentes que
se utilizam da metodologia qualitativa, tomou-se como perspectiva de anlise das
questes de estudo a teoria crtica8. Sendo assim, adotar uma postura crtica de
interpretao dos fenmenos sociais nos obriga, internamente, a uma constante
avaliao da anlise empregada como forma de compreender o uso do mtodo e
toda argumentao empregada, como construes histricas, humanas e sociais,
portanto, repletas de valor, significados e poder; do ponto de vista externo,
pesquisadores terico-crticos tendem a reconhecer aparelhos de regulao social,
7 ROMAN, L. G. & APPLE, M. W. Is naturalism a move away from positivism? Materialist and feminist approaches to subjectivity in ethnographic research. In: EISNER, E. W. & PESKIN, A. Qualitative inquiry in education. Nova York: Teachers College Press, 1990.
8 Considerou-se como referncia os pressupostos do paradigma da Teoria Crtica tal qual apresentada na classificao de ALVES-MAZZOTTI e GEWANDSZNAJDER (1998, p.139-141).
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vasculham por mecanismos que explicam/reforam a desigualdade/poder e,
principalmente, reforam o significado da cincia na transformao social.
Ainda como um ltimo aspecto a ser destacado nessas opes
metodolgicas, temos que evidenciar o uso recorrente de categorias metodolgicas
do materialismo histrico que aliceraram a pesquisa. Na tentativa de explicar
determinados fenmenos correlacionados s questes de estudo, procurou-se fazer
uso em toda pesquisa das seguintes categorias de mtodo9:
1. Totalidade.
2. Contradio.
3. Prxis.
4. Hegemonia.
No sentido de aprofundar a temtica estudada, optou-se pela delimitao de
duas linhas particulares de investigao que permitem evidenciar relaes, definir
conceitos, explicar processos, enfim, de organizar e estruturar toda a pesquisa em
si.
Para o caso do estudo em questo, as categorias (e subcategorias) de
contedo10 foram:
1. Acumulao flexvel
a) Formas de organizao e gesto do trabalho.
b) Valorao do lixo e desvalorizao do catador.
c) Excluso social e incluso subordinada.
2. Processos educativos
a) Alienao e estranhamento.
b) Associativismo/Cooperativismo e ideologia.
9 Segundo KUENZER (2002, p.63-65) so as categorias prprias do mtodo dialtico que correspondem s leis objetivas, e portanto universais, no sentido de que permitem investigar qualquer objeto, em qualquer realidade.
10 KUENZER (op.cit., p.66)
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INSTRUMENTOS DE COLETA E ANLISE DOS DADOS
Uma das marcas caractersticas das pesquisas qualitativas reside no fato da
possibilidade de emprego de mltiplas metodologias, o que implica o uso de
procedimentos e instrumentos de coleta bastante variados a fim de compreender
melhor o campo ou objeto de estudo. No caso em questo, a seleo do campo para
coleta de dados se deu em duas associaes (Natureza Viva e Sociedade Barraco)
e uma cooperativa de catadores (Catamare), tendo em vista a importncia poltica
e/ou o tempo de existncia no projeto. Os elementos partcepes da pesquisa
tambm foram selecionados dentre aqueles que se dispuseram a participar da
pesquisa, considerando-se, no mnimo, a metade dos membros ativos das
organizaes estudadas. Portanto, a seleo do campo e da amostra foi proposital,
tendo em vista o interesse do estudo e a disponibilidade dos sujeitos envolvidos.
Tendo em vista a sua natureza interativa, aps a aplicao de um pr-teste11 em
alguns dos catadores, as entrevistas semi-estruturadas foram tomadas como
instrumentos bsicos para se obter dados capazes de, nas palavras de ALVES-
MAZZOTTI & GEWANDSZNAJDER (1998, p.168) nos fazer compreender o
significado atribudo pelos sujeitos [pesquisados] a eventos, situaes, processos ou
personagens que transformam direta ou indiretamente, de forma consciente ou no,
o modo de vida e compreenso dos fenmenos a que esto submetidos os
participantes pesquisados.
Atrelado ao uso das entrevistas, uma grande quantidade de documentos
produzidos por instituies/pessoas correlacionadas ao estudo foram analisados
com a finalidade de se levantar os enfoques mais comuns adotados e/ou possveis
tendncias que estivessem associadas aos processos pedaggicos aos quais esto
sujeitos os indivduos/instituies pesquisados. Vale lembrar que a predominncia
dos documentos escritos de carter institucional e uma minoria destes tem origem
em movimentos sociais devidamente organizados. Sendo assim, reconhecendo a
importncia em pesquisas qualitativas de o pesquisador saber a origem dos
documentos, por quem foram criados, que referncias e procedimentos embasaram
sua redao e com que finalidade foram escritos, para efeito de anlise, foram
11 A realizao dessa etapa objetivou a adequao dos questionrios e, portanto, sua validao.
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consultados diversos documentos12, didaticamente divididos em dois grupos, a
seguir apresentados como:
1. Documentos Institucionais
1.1. Prefeitura Municipal de Curitiba (PMC) e suas secretarias e rgos:
a) Educao;
b) Meio Ambiente;
c) Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC);
1.2. Compromisso Empresarial para a Reciclagem (CEMPRE) entidade
mantida por empresas privadas e voltada para formadores de opinio
como prefeitos, diretores de empresas, acadmicos e organizaes
no-governamentais;
1.3. Associao Brasileira de Embalagens (ABRE) fomentadora do
Programa Brasileiro de Reciclagem (PBR);
2. Documentos de Movimentos Sociais
2.1. Instituto Nacional Lixo e Cidadania atravs de seu Programa Nacional
Lixo e Cidadania cujo objetivo maior esta relacionado erradicao do
trabalho infantil nos lixes;
2.2. Movimento Nacional de Catadores de Materiais Reciclveis;
2.3. Cooperativa de Catadores de Materiais Reciclveis de Curitiba e Regio
Metropolitana (CATAMARE);
2.4. Associaes de Catadores de Materiais Reciclveis NATUREZA VIVA
e BARRACO .
Reconhecendo a dificuldade do trabalho com todas as instituies, pessoas
e documentos relacionados pesquisa, julgou-se pertinente realizar a entrevista
com os elementos mais representativos e caractersticos das entidades
pesquisadas, bem como a anlise dos documentos de referncia julgados
primordiais para a formao dos agentes envolvidos.
12 Foram considerados documentos todo e qualquer registro escrito que pudesse ser utilizado como fonte de informao, a saber: leis, decretos, portarias, regulamentos, atas de reunio, relatrios, arquivos (fsicos e de internet), reportagens de jornal, revistas, livros, apostilas, cartilhas, programas de cursos.
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Como comeou no trabalho com o lixo?
(E 13) Eu comecei no trabalho assim, com lixo reciclvel, pela perca do meu prprio
emprego. Eu trabalhava em firmas, da eu ca no desemprego, (...) pra no poder matar,
no poder roubar, no fazer nada mais... eu passei a mo no carrinho e comecei a
coletar.
O que gostaria de fazer no futuro?
(E19) (...) acho que trabalh, n, trabalh registrada, ter assinado tudo, receber ali um
salrio mnimo, n. ... o que eu queria mesmo era um servio, um lugar decente assim
pra morar tambm, n, o que eu queria...
(...) E o melhor pros meus filhos tambm!
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2 O MUNDO DO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE
2.1 GLOBALIZAO COMO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
CAPITALISTA NO MUNDO ATUAL
Se fato que aps a Segunda Grande Guerra o mundo mergulhou em um
ambiente dicotomizado politicamente entre esquerda e direita, tambm se deve
considerar que essa linha divisria gradativamente foi se tornando menos ntida
diante de fatos cada vez mais marcantes na histria dos ltimos anos. Na transio
da dcada de 80 para de 90, a queda do muro de Berlim (1989) e o desfacelamento
da Unio Sovitica (1991) podem ser considerados marcos na histria desse
processo, considerado, por alguns, como a derrocada final do socialismo e o incio
de uma nova era identificada pela consolidao e hegemonia do capitalismo.
Do ponto de vista macroeconmico, os anos 90 tambm se caracterizaram
por aspectos bem marcantes, tais como ressalta CHESNAIS (1995, p.1):
taxas de crescimento do PIB muito baixas, inclusive em pases (como o Japo) que desempenharam tradicionalmente o papel de locomotiva junto ao resto da economia mundial; deflao rastejante; conjuntura mundial extremamente instvel, marcada por sobressaltos monetrios e financeiros cada vez mais freqentes; alto nvel de desemprego estrutural; marginalizao de regies inteiras em relao ao sistema de trocas e uma concorrncia internacional cada vez mais intensa, geradora de srios conflitos comerciais entre as grandes potncias da Trade.
Diante de traos polticos e econmicos to prprios, muitos passaram a
considerar o incio de uma nova fase do capitalismo, de um novo regime mundial de
acumulao, cuja essncia estaria pautada na concentrao excessiva do capital,
quer na forma aplicada na produo de bens e servios, quer na forma de
especulao por meio do capital financeiro.
Para muitos afoitos a crena de estarmos iniciando uma nova poca para
alm de dicotomias polticas e, ao mesmo tempo, de maiores possibilidades de
ganhos econmicos devido a globalizao dos mercados, mascara um quadro de
internacionalizao com mudanas profundas nas relaes de fora entre o Capital
e o Estado, bem como entre o Capital e o Trabalho.
Assim, se por um lado se evidencia uma multiplicidade de possibilidades
para o emprego do termo globalizao, por outro, tambm se deixa claro a
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vulgarizao em seu uso. Envolvendo aspectos dos diferentes campos da
comunicabilidade, da poltica, da economia, da ambientalizao, das relaes
sociais, da cultura, dentre muitas outras possibilidades, o uso do termo de forma
abusiva acaba por revelar uma construo conceitual nebulosa.
Desta forma, BECK (1999, p. 13) alerta que: a palavra globalizao, (...),
no aponta agora para o fim da poltica, mas sim para a excluso da poltica13 do
quadro categorial do Estado nacional, e at mesmo do papel esquemtico daquilo
que se entende por ao poltica ou no-poltica. Em seu livro A mundializao
do capital, Franois Chesnais (1996) destaca o carter ideolgico do termo
globalizao14, de origem anglo-saxnica, amplamente empregado pelos
economistas da modernidade, ao processo de internacionalizao econmica livre
entre os habitantes do planeta e que, portanto, seria melhor apropriado pelo radical
globo, de conotao geogrfica. Assim, o termo globalizao, amplamente
empregado pela mdia, passa a naturalizar-se em substituio a terminologia
francesa mundializao. Essa simples substituio de palavras (e aparente
neutralidade no uso do termo) trs consigo um significado oculto bastante
importante. A apropriao do termo moderno globalizao busca romper com as
amarras do passado, com mecanismos econmicos guiados por uma maior
influncia estatal e, desta forma, permitir a atuao mais livre dos indivduos
atravs dos mercados. Contudo, tal ideologia omite a realidade mais dura de que o
planeta formado por pases diferentes, de culturas diversificadas, de foras
desiguais, onde os mais economicamente favorecidos determinam formas sutis de
submisso cada vez mais pesadas.
13 Grifo no original. 14 Convm lembrar onde e como o termo global nasceu. Surgiu no comeo dos anos oitenta nas
grandes escolas americanas de Business management em Harvard, Columbia, Stanford etc., antes de ser popularizado atravs das obras e artigos dos mais hbeis consultores em estratgia e marketing oriundos destas escolas em particular Ohmae (1985; 1990) e Porter (1986). Numa perspectiva de administrao de empresas, o termo foi ento utilizado para mandar aos grandes grupos o seguinte recado: os obstculos ao desenvolvimento de suas atividades em qualquer lugar onde exista a possibilidade de realizar lucros esto sendo derrubados graas liberalizao e desregulamentao; a teleinformtica (ou telematics) e os satlites de comunicaes colocam a sua disposio ferramentas fantsticas de comunicao e de controle; vocs devem reorganizar-se e reformular suas estratgias conseqentemente. Essa gnese confirma a idia segundo a qual se trata, de fato, do movimento do capital, porm a tica das Business schools d uma viso mais restrita. Torna a globalizao um fenmeno apenas de tipo microeconmico, de modo que a globalizao financeira, por exemplo, surge como um fenmeno totalmente distinto dos investimentos diretos estrangeiros e das novas formas de organizao e administrao das operaes internacionais dos grupos, conquanto se trata de processos estreitamente ligados. (CHESNAIS, 1995, p. 5)
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A ideologia de um mundo s e da aldeia global considera o tempo real como um patrimnio coletivo da humanidade. Mas ainda estamos longe desse ideal, todavia alcanvel.
A histria comandada pelos grandes atores desse tempo real, que so, ao mesmo tempo, os donos da velocidade e os autores do discurso ideolgico. Os homens no so igualmente atores desse tempo real. Fisicamente, isto , potencialmente, ele existe para todos. Mas efetivamente, isto , socialmente, ele excludente e assegura exclusividades, ou, pelo menos, privilgios de uso. (SANTOS, 2007, p. 28)
Verdadeiramente, o que se ressalta que por trs de um processo/discurso
de globalizao (de mercados, de postos de trabalho, da informao, de um estilo de
vida), em qualquer caso, a retrica esbarra nas conseqncias polticas da
globalizao econmica, o que per se revela que os agentes envolvidos devem
responder por sua sujeio ou oposio, mas no mais no antigo esquema distintivo
entre a esquerda e a direita.
A globalizao viabilizou algo que talvez j fosse latente no capitalismo, mas ainda permanecia oculto no seu estgio de submisso ao Estado democrtico do bem-estar, a saber: que pertence s empresas, especialmente quelas que atuam globalmente, no apenas um papel central na configurao da economia, mas a prpria sociedade como um todo mesmo que seja apenas pelo fato de que ela pode privar a sociedade de fontes materiais (capital, impostos, trabalho). (BECK, 1999, p. 14).
Constata-se, desta forma, que o valor real intrnseco ao processo de
globalizao se forja mundialmente atravs das transaes que o capital opera,
tanto no setor industrial quanto no financeiro. Assim, faz mais sentido a referncia ao
termo mundializao do capital posto que de sua predominncia que a
globalizao se alimenta, e no pela efetiva mundializao das trocas. Visto por
este ponto, CHESNAIS (1995, p.5) esclarece que:
Em vez de usar o termo globalizao e, portanto, de fazer referncia economia de modo vago e impreciso, parece ento desde j prefervel falar em globalizao do capital, sob a forma tanto do capital produtivo aplicado na indstria e nos servios, quanto do capital concentrado que se valoriza conservando a forma dinheiro. Pode-se ento dar mais um passo, aquele que consiste em falar de mundializao em vez de globalizao.
A globalizao da economia aposenta princpios e fundamentos de
categorias centrais como o Estado e o Trabalho, determinando novas dimenses
impensveis para as formas desenvolvidas a partir do sculo XIX e XX. Por trs de
um discurso de possibilidades e opulncia, criam-se sujeitos indeterminados e
intangveis. Ao invs da culpabilizao de uma determinada empresa por diminuio
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de postos de trabalho ou cancelamento de garantias conquistadas pelos
trabalhadores, as conseqncias so suavizadas pela subjetividade de processos
irreversveis capazes de submeter a tudo e a todos. Essa a contradio viva
exposta pelas leis do mercado, onde se deve diminuir de forma drstica postos de
trabalho, para garantir postos de trabalho, pois os ganhos sobre o trabalho
assalariado devem ser permanentemente ampliados como forma de extrao de
mais-valia. Nas palavras de BECK (1999, p. 15):
Em vista disso, quem incentiva o crescimento da economia, produz15 desemprego no final. Quem reduz impostos, e com isso aumentam as possibilidades de lucro, tambm produz desemprego da mesma forma. Os paradoxos polticos e sociais de uma economia transnacional que deve ser atrada e recompensada com a queda dos obstculos ao investimento (isto , com a queda das regulamentaes ecolgicas, sindicais, assistenciais e fiscais) para que assim possam desproporcionar um nmero cada vez maior de postos de trabalho e ao mesmo tempo fazer crescer a produo e o lucro ainda precisam ser cientificamente revelados e politicamente reforados.
Com isso, a globalizao revela mais uma de suas mltiplas faces,
destacando-se como elemento perigoso do atual estgio de desenvolvimento
produtivo, que mais do que quebrar vises ideolgicas, investe contra a prpria
organizao poltica do Estado-Nao, desarticulando sua estrutura e redefinindo
seus objetivos. Assim, os mercados globais so orientados por novos princpios,
pois, primeiro, esto voltados para os locais onde os custos de produo sejam
mnimos, a mo-de-obra mais barata e com menor incidncia de impostos; em
segundo, em funo do avano cientfico-tecnolgico-informacional, as empresas
so capazes de disponibilizar seus produtos e servios em qualquer parte do
planeta; em terceiro, geram conflitos entre os Estados-Nacionais e os locais de
produo que culminam em pactos e protocolos mundiais pelas melhores
condies de infra-estrutura e investimento; em quarto e, por fim, so capazes de
operacionalizar, de maneira autnoma, as etapas de produo, bem como definir os
locais mais propcios para investimento, recolhimento de impostos ou gerenciamento
das diferentes etapas do processo produtivo.
Com o desenvolvimento intensivo e extensivo do capitalismo ao longo do
mundo tornam-se notrias suas novas manifestaes. Diante da nova diviso
internacional do trabalho e a flexibilizao dos processos produtivos so as grandes
15 Grifo no original
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empresas e corporaes que passam a adquirir relevncia no cenrio mundial,
restringindo o papel e a fora das economias nacionais, contudo sem deixar de ser,
ao mesmo tempo, um prprio produto dessa dada circunstncia. Assim, o processo
gerencial da atividade econmica atual rompe com as tradies produzidas ao longo
dos tempos, particularmente aquelas impostas pelo padro produtivo ps Revoluo
Industrial, no sculo XVIII.
Intensificou-se e generalizou-se o processo de disperso geogrfica da produo, ou das foras produtivas, compreendendo o capital, a tecnologia, a fora de trabalho, a diviso do trabalho social, o planejamento e o mercado. A nova diviso internacional do trabalho e da produo, envolvendo o fordismo, o neofordismo, o toyotismo, a flexibilizao e a terceirizao, tudo isso amplamente agilizado e generalizado com base nas tcnicas eletrnicas, essa nova diviso internacional do trabalho concretiza a globalizao do capitalismo, em termos geogrficos e histricos. (IANNI, 2006, p. 57).
Com isso, de forma subjetivada e contnua, novos acordos so
estabelecidos, tanto na esfera pblica como na privada, determinando uma nova
dimenso na/da poltica. Sem consultas prvias, sem convocaes e discusses
com os governos, sem envolvimento direto da sociedade civil nos debates e
orientaes dos processos, de forma tcita, a poltica da globalizao se impe e
naturaliza-se como padro de modernidade. As foras produtivas como o capital, a
tecnologia e a prpria fora de trabalho, dentre outras, imergem num fluxo de
atualizao que implica em (re)organizao de sua estrutura e de seu
funcionamento para responder aos anseios do mercado, agora global. A estrutura
estatal, ainda que de forma mais lenta e gradativa, tambm levada a se
reorganizar, ou melhor, modernizar-se tal qual as exigncias mundiais determinam
atravs dos pactos estratgicos das grandes corporaes. Assim, perfeitamente
possvel compreender que o processo de internacionalizao do capital tambm o
processo de naturalizao da globalizao de normas, diretrizes e orientaes dos
organismos multilaterais no sentido da desestatizao, desregulamentao,
privatizao, abertura de fronteiras, criao de zonas francas (CAMILLERI &
FALK16 e KLIKSBERG17 apud IANNI, 2006, p. 59).
16 CAMILLERI, Joseph A.; FALK, Jim. The end of sovereignty? (The politics of a shrinkink and fragmenting world). Hants/Inglaterra: Edward Elgar Publishing, 1992.
17 KLIKSBERG, Bernardo. Cmo transformar al Estado? (Ms alla de mitos y dogmas). Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1993.
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Em princpio, a internacionalizao do capital a internacionalizao do
prprio processo produtivo. Em conseqncia, implanta-se uma nova forma de
diviso de trabalho e de produo que vai para alm das linhas de montagem do
modelo fordista. Incorporam-se os princpios tayloristas da administrao cientfica,
eleva-se a produtividade por fora de vontade do operariado, tomando por base as
idias propagadas pelo stakhanovismo, implanta-se o novo mtodo de gesto da
produo baseado no modelo toyotista, tudo isso com a finalidade de reorganizao
do processo de trabalho. Com isso, a fragmentao passa a ser o elemento
fundamental do processo produtivo moderno/globalizado, que leva a precarizao da
classe trabalhadora nas formas de desproletarizao do setor fabril/industrial,
subproletarizao do trabalho sob as formas de trabalho terceirizado, parcial,
temporrio, subcontratado, vinculados economia informal e ainda na dinmica de
heterogeneizao das condies de trabalho, com uma maior participao do
trabalho feminino e excluso dos mais jovens e dos mais velhos. Desta maneira,
todas as formas contemporneas de emprego da classe trabalhadora apontam para
sua maior complexificao, exigindo um trabalhador mais gil e flexvel, contudo
sem se poder imaginar outra forma de dinmica social que no conte com a classe-
que-vive-do-trabalho.18 Assim, as novas formas de gesto das empresas e suas
prticas rotineiras de (des)qualificao da mo-de-obra criam uma orientao de
solidariedade empregado-patro que, em verdade, oculta um significado real de
dominao e expropriao do trabalhador, com o rebaixamento de sua situao
social. Isso se revela nas grandes empresas atravs de mltiplas linguagens, quer
na denominao dos empregados como colaboradores ou associados, quer na
aplicao de mecanismos sutis de valorizao do mrito com fotografias e imagens
do melhor do ms, quer na forma de programas de aperfeioamento nas/das
empresas, onde o trabalho intelectual dos trabalhadores mais qualificados
expropriado em troca de uma melhor remunerao ou convertido em benefcios para
si e para seus dependentes (auxlio-escola para os filhos, auxlio-faculdade para
aqueles que quiserem se dedicar a carreira acadmica, auxlio-academia para
todos atingirem um padro adequado de qualidade de vida e trabalharem bem). Tais
mecanismos mimetizam a condio subjugada da maioria dos trabalhadores que,
18 Para maiores detalhes e exemplos verificar a obra de Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses do mundo do trabalho. Campinas, So Paulo: Cortez, 1999.
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com a alterao da base material de produo de eletromecnica para a
microeletrnica, concretamente convivem com processos de automao e
robotizao que reduzem enormemente muitos postos de trabalho. Alm disso,
muitos exercem suas funes sobre condies de estresse constante por maior
produtividade, em meios altamente competitivos e individualizados, por vezes
insalubre, e com pouco ou nenhuma margem para erros, determinando condies
de extrema precarizao no emprego. Por fim, tomada como referencial, a
fragmentao do processo produtivo culmina na flexibilizao das condies de
trabalho, dado pela desregulamentao dos contratos de trabalho, emprego sem
carteira assinada, subcontratao, terceirizao, trabalho informal, dentre inmeras
outras formas. Assim se generaliza o modo de produo capitalista, com regras e
direitos bastante flexveis para o trabalhador e poderes intransigentes para o capital,
que acaba por transformar o mundo em uma grande fbrica.
Entretanto, ainda que tal dinmica de produo se imponha como um
modelo adequado e perfeito a todos os indivduos, de todas as sociedades, tal
como afirma PORTO-GONALVES (2004, p. 14), tal naturalizao corre o risco de
banalizao, j que:
Todos os dias recebemos, via satlite, pelos meios de comunicao, o mundo editado aos pedaos, o que contribui para construamos uma viso do mundo que nos faz sentir, cada vez mais, que nosso destino est ligado ao que acontece no mundo, no planeta. Globalizao, mundializao, planetaridade so palavras que, cada vez mais, comeam a construir uma nova comunidade de destino, em que a vida de cada um j no se acharia mais ligada ao lugar ou ao pas onde se nasce, pelo menos, no do mesmo modo que antes.
Mais do que simples vulgarizao terminolgica, o risco ainda maior o da
alienao das pessoas quanto neutralidade do processo, j que, em escala global,
so as grandes corporaes transnacionais, os organismos multilaterais como o
Banco Mundial (BM), o Fundo Monetrio Internacional (FMI) e a Organizao
Mundial de Comrcio (OMC) e poucas Organizaes No-Governamentais
(ONGs) que se colocam como instituies (sujeitos e grupos) capazes de deslocar o
papel dos Estados Nacionais. Assim, o processo de globalizao impe-se no
interior das sociedades modernas, da mesma forma, que no final do sculo XIX, a
expanso capitalista se imbuia de sua misso civilizatria para levar o progresso aos
povos atrasados e primitivos da frica, sia e da Amrica Latina.
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Com isso, a dinmica da globalizao esbarra em algumas questes
fundamentais, especialmente no que diz respeito ao aspecto da territorialidade. O
espao territorial um dos alicerces dos Estados Nacionais sobre os quais se
edificam suas sociedades. As sociedades, por sua vez, materializam-se a partir de
sua territorialidade. Contudo, confrontados diante da idia de que (con)vivemos em
uma aldeia global, desfazem-se os laos que nos conectam ao nosso espao
geogrfico natal e, verdadeiramente, aos nossos primeiros vnculos de
materialidade. Diante da idia de conectividade global, implementada e acrescida
por um mundo de modernas tecnologias, relativiza-se a participao poltica dos
diferentes agentes sociais. Desta forma, diminuem-se as possibilidades concretas de
envolvimento em debates pblicos e, conseqentemente, restringem-se a
participao social. A transposio virtual das barreiras da territorialidade cria novos
laos, novas relaes (sociais, polticas, econmicas), novas dependncias, novos
desejos e assim, esvaem-se os princpios que definem a autoridade dos Estados-
Nao. Portanto, a partir da noo de territorialidade se estabelece uma zona de
conflito para a construo de materialidades, indistintamente aos diferentes modos
de apropriao destes espaos, mas eivada pelo economicismo. Tal qual afirma
PORTO-GONALVES (2004, p. 63): A economia mercantil, pela lgica abstrata que
a comanda a do dinheiro implica uma dinmica espacial que des-envolve os
lugares, regies e seus povos e culturas e, deste modo, instaura tenses territoriais
permanentemente.
Encarados como possibilidade de superao por incorporao, os conflitos
passam a fazer sentido quando deixam evidentes os efeitos que o sistema tcnico
gera. Mas vale lembrar as palavras de Milton Santos (1996) quando nos alerta para
o fato de que no h sistema tcnico dissociado de um sistema de aes, de um
sistema de normas, de um sistema de valores, sinalizando para que no o
reifiquemos afirmando uma ao do sistema tcnico como se ele se movesse por si
mesmo, sem que ningum o impulsionasse (SANTOS19 apud PORTO-
GONALVES, 2004, p. 30).
Sob a tica da globalizao perpetua-se o modelo de ao humana que
toma por base a racionalidade instrumental, forjada no sculo XVII e XVIII, que
19 SANTOS, M. A Natureza do espao. So Paulo: Hucitec, 1996.
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procura se expandir pelo mundo a procura de novas fontes de recursos (materiais e
humanos), mas que se revela verdadeiramente como um modo de vida irracional e
incompatvel com a possibilidade de sobrevivncia dos prprios seres humanos no
planeta. Eis, pois, a contradio humana fundamental, aquela que procura modos de
perpetuar a vida nos limites restritivos de sua prpria existncia. Eis, pois, a
contradio moderna da globalizao, aquela que se constri pela quebra de
barreiras que limitam e cerceiam a ao dos Estados Nacionais.
Mas de forma inusitada, se constri essa nova poca, que enquanto frao
do tempo histrico se define como um perodo novo na histria do capitalismo, mas,
que de maneira concomitante, revela-se como momento de crise em funo dos
embates constantes das variveis sob as quais se edifica o sistema. Assim, os
conflitos que se apresentam nesta nova fase expem um capitalismo sem emprego,
de diminuio drstica de postos de trabalho, de diminuio de receitas dos Estados
e ampliao de seu endividamento, ao mesmo tempo em que se constata o aumento
astronmico nos lucros das empresas transnacionais e fortalecimento das foras
neoliberais.
Os empresrios descobriram a pedra do reino. Eis aqui a nova frmula mgica: capitalismo sem trabalho mais capitalismo sem impostos. A receita dos impostos cooperativos e dos impostos sobre o lucro das empresas caiu 18,6% entre 1989 e 1993. A parcela de contribuio na receita estatal j caiu quase pela metade. (...) Mas nesta construo e no um desmanche- preciso tambm que se pergunte por que ele se tornou aparentemente no-financivel. Os pases da Unio Europia viram suas riquezas crescerem entre cinqenta e setenta por cento nos ltimos vinte anos. A economia cresceu muito mais rapidamente do que a populao. Apesar disso, a Unio Europia conta agora com vinte milhes de desempregados, cinco milhes de pessoas vivendo na pobreza e cinco milhes de sem-teto. Para onde foi toda esta riqueza adicional? Sabemos que nos estados Unidos o crescimento da economia s gerou riqueza para os dez por cento mais abastados. Estes dez por cento receberam noventa e seis por cento da riqueza adicional. Na Europa as coisas no foram to mal assim, mas nem muito melhor.
Na Alemanha o lucro das empresas cresceu noventa por cento desde 1979, e os salrios, seis por cento. Mas a arrecadao sobre os salrios duplicou nos ltimos dez anos; a arrecadao de impostos corporativos caiu pela metade e representa apenas treze por cento do total da arrecadao. Em 1980, eles ainda representavam vinte e cinco por cento; em 1960, chegavam a trinta e cinco por cento, se permanecessem em vinte e cinco por cento o estado teria uma arrecadao adicional de oitenta e seis bilhes de marcos por ano20. (BECK, 1999, p. 20-21)
Ou, como muito bem coloca SANTOS (2007, p. 34): Por intermdio do
dinheiro, o contgio das lgicas redutoras, tpicas do processo de globalizao, leva
20 Grifos no original.
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a toda parte um nexo contbil, que avassala tudo. Os fatores de mudana (...) so,
pela mo dos atores hegemnicos, incontrolveis, cegos, egoisticamente
contraditrios. Desta forma, deparamo-nos diante de uma realidade que caracteriza
a atual etapa histrica como um perodo de crise estrutural onde a tirania do
dinheiro e a tirania da informao so os pilares da produo da histria atual do
capitalismo globalizado. (ibdem, p. 35)
Dadas essas condies histricas especficas, os Estados-Nao
mergulham numa seqncia de acontecimentos que os deixam absolutamente
dependentes das foras das empresas transnacionais. Enquanto elevam seus
gastos por diminuio contnua de suas receitas, ao mesmo tempo perdem a
capacidade de interferncia no tecido social, dada a impossibilidade contnua de
satisfao das necessidades mais elementares da populao. Assim, abrem-se
espaos para o setor privado, que avidamente se ocupa em suprir as demandas
contnuas de populaes cada vez mais carentes, especialmente nos setores que
outrora eram de responsabilidade do prprio Estado.
Diante de tudo isso, a dinmica do modelo atual do processo de
globalizao pode ser caracterizada como complexa, contraditria e claramente
questionvel. Atravessada por relaes, processos e estruturas profundamente
influenciadas pelo fator econmico, as dimenses polticas, sociais, culturais,
informacionais, ambientais, dentre inmeras outras, dialogam e se digladiam nos
espaos local, regional, nacional, internacional e global. Assim, nas palavras de
IANNI (2006, p.48-49) o emblema do Estado-nao determinado:
pela dinmica dos mercados, da desterritorializao das coisas, gentes e idias, enquanto a reproduo ampliada do capital se globaliza, devido ao desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismo, compreendendo as foras produtivas, tais como o capital, a tecnologia, a fora de trabalho e a diviso do trabalho social, sempre envolvendo as instituies, os padres scio-culturais e os ideais relativos racionalizao, produtividade, lucratividade, quantidade.
De acordo com os estudos de Wallerstein21 e Braudel22 citado por IANNI
(2006, p. 31-33) sobre sistema-mundo ou a economia-mundo, qualquer que seja o
21 Wallerstein, Immanuel. El moderno sistema mundial (La agricultura capitalista y los origenes de la economia-mundo europea en el siglo XVI). Traduo de Antonio Resines. Mxico: Siglo Veintiuno editores, 1979. p. 489-491.
22 Braudel, Fernand. A dinmica do capitalismo. Traduo de Carlos da Veiga ferreira, 2 ed. Lisboa: Editorial Teorema, 1986. p. 85-87.
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nvel em que se pense uma dada realidade, ela deve ser vislumbrada como
realidade espacial e temporal simultaneamente. Portanto, devem ser consideradas
as mltiplas relaes e processos de natureza diversa (social, poltica, econmica,
cultural, ambiental, etc.) em uma perspectiva de geo-histrica. Assim, as explicaes
para os fenmenos sociais, qual seja a sua abrangncia, contemplariam a prpria
dinmica de vida atual com sua heterogeneidade e suas desigualdades, que se
caracterizam como parte e como todo. Como dinmica em contnuo movimento
pelos espaos e ao longo da histria, essa se revelaria como um conjunto cintico
diversificado, integrado e contraditrio. Mas ao mesmo tempo em que se
estabelecem como movimento de integrao/fragmentao, tambm apresentam
novos significados s aparncias das partes estruturais do sistema. Alteram-se os
perodos histricos, complexificam os espaos geogrficos e revela-se o movimento
vivo da contradio.
2.2 REESTRUTURAO PRODUTIVA E ORGANIZAO DO TRABALHO NA
CONTEMPORANEIDADE
A partir de meados da dcada de 1970, inmeras empresas comeam a
implementar uma srie de medidas no sentido de adequarem seus quadros aos
novos arranjos poltico-econmicos que determinaro o princpio de uma era de
modernizao tecnolgica. Descarta-se o antigo modelo de importaes sob o qual
se baseava a economia at aquele momento e procura-se iniciar um novo tempo em
resposta as novas exigncias impostas pelo mercado internacional. Para alguns,
adentramos numa nova fase a da Revoluo da Tecnologia da Informao23
delineada como um importante evento histrico capaz de provocar alteraes nos
padres econmicos, polticos, sociais, ambientais e culturais de toda a sociedade
contempornea.
Essa uma nova etapa do capitalismo, caracterizada pela mundializao do
capital, cujos elementos mais significativos esto bem delimitados por CASTELLS
(1999, p. 21-22):
23 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede A era da Informao: economia, sociedade e cultura. v.1. So Paulo: Paz e Terra, 1999.
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maior flexibilidade de gerenciamento; descentralizao das empresas e sua organizao em redes tanto internamente quanto em suas relaes com outras empresas; considervel fortalecimento do papel do capital vis--vis o trabalho, com declnio concomitante da influncia dos movimentos dos trabalhadores; individualizao e diversificao cada vez maior das relaes de trabalho; incorporao macia das mulheres na fora de trabalho remunerada, geralmente em condies discriminatrias; interveno estatal para desregular os mercados de forma seletiva e desfazer o estado de bem-estar social com diferentes intensidades e orientaes, dependendo da natureza das foras e instituies polticas de cada sociedade; aumento da concorrncia econmica global em um contexto de progressiva diferenciao dos cenrios geogrficos e culturais para acumulao e gesto do capital.
Diante de um quadro to complexo, so necessrias alteraes na base de
produo, que acabam por estabelecer a reorganizao do trabalho em si, como
resposta as exigncias de um novo padro capaz de superar o esquema taylorista-
fordista. Em verdade, as estratgias que passam a vigorar como nova forma de
produo tm o propsito claro de reforar a dinmica imposta pelo modelo
capitalista, ou seja, intensificar a busca por maiores lucros, atravs do aumento da
taxa de mais-valia. Com a adoo de novas tecnologias e novos padres de gesto
e de organizao do trabalho, possvel aumentar a produtividade do trabalho e a
do prprio capital, contudo, agora pautados por uma nova tica que almeja
dinamizar o processo produtivo em termos mundiais, isto , globalizar a produo e
buscar novos mercados, preferencialmente diminuindo o poder de interferncia do
Estado, ou dele se utilizando, quando da necessidade de restringir a proteo social
ou o interesse pblico.
nesse contexto de modificaes por que passa o mundo do trabalho que o
processo produtivo taylorista/fordista se defronta com novos modelos,
particularmente o japons, que constituem alternativas quele e cuja palavra de
ordem a flexibilidade.
(...) disseminou-se a crena de que os novos modelos de produo industrial tenderiam a se alastrar para todo o sistema produtivo, apontando para um novo perfil de trabalhador, mais participativo e polivalente, mais escolarizado, com maior soberania no trabalho e cujo conhecimento tcnico (o saber operrio) seria valorizado, ensejando novas relaes sociais em um processo de humanizao do trabalho. (TONI, 2003, p. 249).
Longe de se constituir um novo padro hegemnico, a dinmica imposta
pela utilizao de novos modelos de produo acabou por provocar profundas
mutaes no mundo do trabalho, nas mais diferentes escalas global, nacional,
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local ampliando-se, com velocidade e intensidade diferentes, por diversos pases,
tanto do centro quanto da periferia capitalista. Assim, serviram muito mais para
provocar desestabilizaes no movimento de trabalhadores, ampliando a
precarizao de suas relaes de trabalho, do que para garantir um novo caminho
para sua liberdade.
(...) diversamente das economias avanadas onde ocorre uma precarizao aps protees24, persistindo ainda uma rede de proteo social, na periferia, essa proteo social tem sido historicamente insuficiente ou inexistente. Ademais, a crescente precariedade nas formas de insero no mercado de trabalho, a elevao