Transcript
Page 1: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS 1

PERCURSOS URBANOSREVISTAUniversidade Federal do Cariri - Curso de Jornalismo - 1ª Edição - setembro de 2014

UM PERCURSO PELACHAPADA DO ARARIPE

PECORRENDO OS PASSOS DA EXPEDIÇÃO CIENTÍFICA

Page 2: Revista Percursos Urbanos Cariri

O projeto Percursos Urbanos surgiu em Fortale-za, em 2002, pela ONG Mediação de Saberes (ou Coletivo MESA), integrando a programação do Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), em 2004, para a realização de trajetos culturais den-tro de um ônibus urbano comum. As conversas se dão dentro de um coletivo, com uma caixa de som e microfone aberto a todos. Em 2011 expan-de suas parcerias e chega ao Cariri, como projeto de extensão do curso de Jornalismo da então Uni-versidade Federal do Ceará (UFC), hoje do Cariri (UFCA), em parceria com o CCBNB de Juazeiro do Norte.

A cada dois sábados ao mês, um ônibus sai conduzindo um grupo de pessoas, de diversas faixas etárias, para um passeio até então desco-nhecido. O roteiro segue uma temática e a partir dela, com debates entre mediação e o público participante, construímos uma nova visão da ci-dade, discutindo questões latentes na concepção do tecido social e urbano. Cada edição traz um recorte cultural da cidade sob os pilares da me-mória social, do patrimônio material e imaterial, da política e da transformação das tradições. De 2011 a setembro de 2014 foram realizadas mais de 60 edições, em todas, discutimos assuntos re-ferentes à região do Cariri.

PERCURSOS URBANOS

CAPA: CHAPADA DO ARARIPEFOTO: ÉRICA BANDEIRA

EXPEDIENTE

REPORTAGEMCÍCERO DANTAS

PROFESSOR COLABORADOR TIAGO COUTINHO

DESIGN GRÁFICOCÍCERO DANTAS

Com um tema definido, mediador e o público, visitamos dois a três locais da região que tenha alguma referência com o tema em questão. O mediador funciona como um facilitador para con-dução, ao longo do trajeto, sendo responsável por repassar um pouco da sua experiência no as-sunto discutido. O projeto segue a perspectiva da educação popular e informal, assim, o interces-sor não necessariamente será um professor ou pesquisador. É necessário apenas ter um amplo conhecimento no assunto para que possa com-partilhar com os participantes.

Atualmente, o projeto está sob a coordenação do professor de jornalismo da UFCA Tiago Cou-tinho, auxiliado pelos estudantes de jornalismo Alana Maria, Antonio Rodrigues, Cícero Dantas, Érica Bandeira, Felipe Vieira, Rodolfo Santana, Sauanny Lima e Uíni Barros.

UNIVERSIDADEFEDERAL DO CARIRI

2

O Projeto Percursos Urbanos ocorre dois sábado por mês, com saída às 15 horas do Centro Cultural Banco do Nordeste. Nossa Missão, além do passeio de sába-do à tarde, é conhecer a diversidade cul-tural urbana existente na região do Cari-ri. O projeto pretende contemplar temas e públicos heterogêneos, com níveis de renda muito diversificados, de diferentes segmentos sócio-culturais. Assim, a cida-de “cresce”, tem sua percepção favoreci-

Inscrições no:

Participe!

da, tornando-se mais cosmopolita, ciosa de sua pluralidade e diversidade. O Per-cursos funciona como um fórum de dis-cussões sobre os desafios e as potências da região. Para participar, você deve ape-nas, realizar sua inscrição na recepção do Centro Cultural Banco do Nordeste.

Page 3: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS4 PERCURSOS URBANOS 5

CAROS LEITORES,

Nesta edição da revista Percursos Urbanos, ire-mos percorrer e conhecer a Chapada do Araripe, localizada ao sul do estado do Ceará, que serviu de cenário para algumas das edições do projeto Per-cursos Urbanos. Suas belezas naturais, sua rica vegetação e as centenas de fontes de água mine-ral serviram de inspiração para compor os rotei-ros culturais nesses três anos de projeto no Cariri.

Das mais de 60 edições, em nove oportunida-des tivemos a chapada como um dos trajetos pro-postos pelos mediadores. A primeira delas, foi em 2012 com o tema “O Crato do João”, conhecemos a Chapada do Araripe sob a perspectiva, vivência e memória de João do Crato, educador popular local.

“As Lendas e Os Mitos do Cariri” foi o tema da oitava edição. Com a mediação do médico e es-

critor José Flávio Vieira, visitamos o rio Batateira, no Crato, famoso pela lenda da “Pedra da Bata-teira”. Na mesma edição, conhecemos a comu-nidade barbalhense Cabeceiras, localizada aos pés da chapada do Araripe. Lá contamos a vida de Vicente Finim, um “lobisomem” da região, que assombrava os populares locais.

Um ano depois, voltávamos a visitar a imensa floresta, agora, na 30ª edição com o tema “Oasis Urbano”, título conquistado pela região, graças às fontes de água que brotam dos pés da Chapada do Araripe. Novamente visitamos o rio Batateira, dessa vez, fomos à sua nascente, onde fora im-plantada a primeira hidroelétrica do interior do Nordeste. Nessa edição, discutimos sobre o pro-jeto de transposição do rio São Francisco, que

ameaça desapropriar a comunidade Baixio das Palmeiras.

Com o tema “No Gingado da Liberdade”, nosso roteiro cultural foi na busca de conhecer o Cariri pelo gingado da capoeira. E um dos locais visitados foi o sítio Santo Antônio, em Barbalha, na Chapa-da do Araripe. Em um novo percursos, agora, em comemoração a dois anos de projeto na região, visitamos a Trilha do Belmonte, no Crato, como ponto inicial para o “Histórias extraordinárias”.

Para “Amenizar os Bros”, a Chapada do Arari-pe foi o cenário durante todo o percurso. Procura-mos descobrir o porquê dos meses de setembro a dezembro ser tão quente na região. Floresta Na-cional, chapada e políticas públicas sobre o uso da água, foram discutidas no trajeto. Em mais

um percursos totalmente na chapada, desenvol-vemos o tema “Agroecologia e a experiência do semiárido”, visitamos a comunidade do Catolé, ao sopé do Araripe, e conhecemos um pouco do sistema agroflorestal desenvolvido pelos agricul-tores da comunidade.

Em homenagem ao artista Orlando Pereira, fizemos um piquenique no Riacho do Meio, em Barbalha, na edição “Um sorriso para um bando de vândalos...” que homenageou a vida e obra do artista. Por fim, já em 2014, refizemos alguns dos passos da Comissão Cientifica do Império que veio à região no século XIX, conhecer e desvendar as riquezas do imenso Araripe.

Cícero Dantas

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS - Percursos urbanos/ agosto- 2013

UM SORRISO PARA UM BANDO DE VÂNDALOS... - Percursos urbanos/novembro - 2013AGROECOLOGIA E A EXPERIÊNCIA DO SEMIÁRIDO - Percursos urbanos/outubro - 2013 UMA EXPEDIÇÃO CIENTÍFICA - Percursos urbanos/ abril - 2014PARA AMENIZAR OS BROS - Percursos urbanos/ setembro - 2013

O CRATO DO JOÃO - Percursos urbanos/ abril - 2012 AS LENDAS E OS MITOS DO CARIRI - Percursos urbanos/ abril - 2012 NO GINGADO DA LIBERDADE - Percursos urbanos/ abril - 2013

Page 4: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS6 PERCURSOS URBANOS 7

CHAPADA DO ARARIPE: UM TESOURO GEOLÓGICO ENCRAVADO NO CARIRI

Lendas, riquezas naturais, turismo e história!

A chapada do Araripe em 4 atos

A brir a janela do meu quarto pela ma-nhã, receber aquela brisa e olhar para a Chapada do Araripe, não tem coisa melhor! É a certeza que estou no meu

Cariri”, é o que afirma Viviane Vieira, estudante de história que retorna ao Cariri para visitar sua família.

Vista praticamente em toda região, a Chapada do Araripe - localizada ao sul do estado do Ceará, a 500 km da capital Fortaleza - além do seu as-pecto geográfico, também é palco de forte misti-cismo regional.

Lendas, mitos, histórias e estórias, a Chapada do Araripe é cheia de mistérios! Josenir Lacerda, cordelista natural do Crato, aponta os índios Ka-riris (os primeiros habitantes da região), como os responsáveis por criar esse forte misticismo em torno da chapada. “A lenda da pedra da Batateira é praticamente um marco. Conta a lenda, se um dia a pedra chegar a cair, todo o vale do Cariri será inundado e voltará a ficar debaixo d’água, como um dia já foi. E quando esse dia chegar, os índios Kariris retornaram às suas terras que um

“dia o homem branco destruiu”, conta a cordelista.

Além da vingança dos índios Kariris, há lendas de sereias vistas lá nas cachoeiras de Missão Velha; de lobisomens nas serras barbalhenses; e de pedras misteriosas que fazem as pessoas desaparecerem, lá no alto da serra do Araripe, em Porteiras. Todas essas lendas, fruto da tradição narrativa caririense, têm como plano de fundo a imensa Chapada do Araripe.

A chapada caririense serve, também, de inspi-ração para os diversos grupos culturais da região. Está presente em canções de cantores regionais, nas literaturas de cordel e nos espetáculos de grupos teatrais. Além de seu caráter ambiental, a Chapada do Araripe contribui e participa efetiva-mente da cultura local.

Page 5: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS8 PERCURSOS URBANOS 9

FORMAÇÃO GEOLÓGICA E LEGADO

A Chapada do Araripe localiza-se na divisa dos estados do Ceará, Pernambuco e Piauí, compre-ende uma área de aproximadamente 7,6 milhões de hectares e abrange 25 municípios cearenses, 18 pernambucanos e 60 piauienses. Segundo estudos geológicos e arqueológicos, foi constituí-da a 150 milhões de anos, no desmembramento do supercontinente Gondwana, formado, em sua maior parte, pelos continentes que atualmente in-tegram o hemisfério sul.

A separação entre o que é hoje a América do Sul e África, gerou uma instabilidade na região onde localiza-se o Cariri, provocando um rebaixa-mento em suas terras, motivo este, permitiu a re-gião receber correntes marítimas, estabelecendo uma nova biodiversidade. “Há milhões de anos, tudo isto era nivelado e ao longo do tempo os agentes erosivos e corrosivos, como o sol, a água dos rios e da chuva, foram formando depressões, resultando no que é hoje o vale do Cariri. Tudo isso possibilitou termos um livro aberto, para fa-zermos a reconstituição da evolução desse terre-no (chapada do Araripe) e da origem da vida das espécies que aqui viveram”, explicou Anderson Camargo, professor e membro do Grupo de Es-tudo e Pesquisa em Geografia Agrária (GEA) da Universidade Regional do Cariri – Urca.

A principal característica de uma chapada é a sua formação geológica elevada que possui uma porção plana na parte superior. A chapada cari-riense possui em sua feição mais elevada 920 metros de altitude. Seu bioma predominante é a caatinga, com áreas de cerradão e mata atlântica, possui uma enorme importância climática para o Cariri, responsável pela manutenção do equilíbrio hidrológico, climático, ecológico e edáfico (aquilo que pertence ao solo) da região.

Privilegiada por mais de 300 fontes de água natural, o verde é predominante na chapada mesmo em tempos de forte seca, considerado um verdadeiro oásis encravado no sertão nordes-tino. Para Anderson, este é o maior patrimônio, na questão ambiental do Cariri. “É a Chapada do Araripe que provoca o equilíbrio térmico na re-gião, propiciando um clima mais ameno, chuvas em maior quantidade e uma floresta mais úmida e verde”, comenta.

E é por causa dessa riqueza geológica e hídrica que em 1946 a Chapada do Araripe se torna a primeira Floresta Nacional (Flona) do Brasil, a Flo-resta Nacional do Araripe-Apodi, ou simplesmente Flona Araripe, uma das unidades de conservação mais ricas em diversidade ambiental no país, se-gundo o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Em 1997, parte de seu território passa a ser reconhecido como área de proteção ambiental (APA). Em 2006, passa a integrar a Rede Mundial de Geoparques, reco-nhecido pela UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – como um relevante patrimônio geológico e pa-leontológico mundial. O Geoparque Araripe foi o primeiro Geoparque das Américas, que atualmen-te conta com mais dois: O Geoparque uruguaio Grutas Del Palacio e o canadense Stonehammer Geopark.

“A Chapada do Araripe é o maior patrimônio do Cariri”

Pangeia, único continente no planeta até então, deu origem a dois megacontinentes chamados de Laurásia e Gondwana.

1

O Gondwana desmembra-se, for-mando o que atualmente é a América do Sul e África.

2

A separação entre os continentes abriu enormes crateras, permitindo que a água dos oceanos escorresse até Vale do Cariri.

3

Vista Global da terra atualmente.4

A Teoria da Deriva Continental afirma que os continentes se movimentam por meio das placas tectônicas. Fenômeno que modificou a estrutura da terra, e contribuiu para formação da Chapada do Araripe.

Milhões de anos atrás

200 120 40 Hoje

1

2

3

4

OS FÓSSEIS ENCONTRADOS NA CHAPADA DO ARARIPE AJUDAM A RECRIAR SUA HISTÓRIA. NAS ROCHAS, É POSSÍVEL IDENTIFICAR QUAIS RIOS E CORRENTES MARÍTIMAS PERCORRERAM O CARIRI. Foto: Divulgação/ Geossítio Pedra Cariri

Por que a Chapada do Araripe possui essa riqueza geologica?

O rompimento das terras proporcionou a formação de um grande lago no Vale do Cariri, com águas provindas do Mar Sul e Caribe.

O lago se instabiliza com faunas distintas. Nas rochas da Chapada do Araripe é possivel indentificar os rios e as correntes maritimas que percorreram a região na época.

Atualmente o museu de paleontologia de Santana do Cariri possui um acervo de mais de 3 mil fósseis. Em destaque, fóssil de peixe de aproximadamente 150 milhões de anos encontrado na região.

Anderson Camargo

Page 6: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS10 PERCURSOS URBANOS 11

FLONA E APA

A Floresta Nacional (Flona) do Araripe abrange cinco cidades caririenses: Crato, Barbalha, Jar-dim, Missão Velha e Santana do Cariri. Com apro-ximadamente 39,3 mil hectares de vasta vegeta-ção, possui pouco mais de duzentas espécies de pássaros e mais de 300 fontes de água mineral, que servem de sustento para os pouco mais de 254 mil habitantes que, segundo o censo 2010 do IBGE, vivem no seu entorno. Atualmente, toda essa área é administrada pelo Instituto Chico Men-des de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Criada em 1946, a Flona Araripe tem como ob-jetivo proteger os recursos hídricos da biorregião do Araripe, no semiárido brasileiro, além de pre-servar um dos últimos redutos da Mata Atlântica. A Lei Federal nº 9.985 do ano 2000, caracteriza a região como “uma área com cobertura florestal de espécies predominantemente nativas e que tem como objetivo básico o uso múltiplo susten-

tável dos recursos florestais e a pesquisa cien-tífica”. Atualmente, possui um valor incalculável para a região, não só no que diz respeito ao meio ambiente, mas também em termos econômicos, sociais, políticos e culturais.

De acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBA-MA), as Florestas Nacionais podem ser utilizadas para estudos científicos, manejo florestal, turismo e lazer. Na Flona Araripe não poderia ser diferen-te, além de proteger os recursos hídricos e as ma-tas da região, desempenha também importante papel socioeconômico, com o fornecimento de alimentos, energia e plantas medicinais, além, é claro, do geoturismo.

Hilda Daniel, estudante e também membro do GEA, alerta para necessidade de formular políti-cas públicas que assegurem a retirada de recur-sos naturais, da floresta, de maneira sustentável. “Uma vez explorados de maneira não adequada, ou renovável, poderá acarretar em perdas em

A CHAPADA DO ARARIPE ABRANGE 3 ESTADOS BRASIEIROS: CEARÁ , PERNAMBUCO E PIAUÍ. Foto: Divulgação

um futuro próximo”, explica. A estudante destaca também a importância de trabalhar a educação ambiental nas comunidades. “Há muitas famílias que vivem no entorno da chapada, que precisam e sobrevivem dela, então, não se pode negar a elas de usufruírem dessas áreas. No entanto, é necessário demonstrar o que é uma Floresta Nacional, o que é APA. Qual área é destinada a exploração e onde não é. Portanto, é necessário reeducar essas comunidades, para que elas se tornem defensores da floresta”, ressaltou.

Área de Proteção Ambiental (APA) citada pela estudante é considerada espaço de planejamen-to e gestão ambiental de extensas áreas que pos-suem ecossistemas de importância regional. A APA Araripe possui uma enorme riqueza hídrica no semiárido e um dos mais importantes patri-mônios arqueológico e paleontológico brasileiro. Abrange uma área de pouco mais de 970 mil hec-tares, que compreendem 33 municípios nos esta-dos do Ceará, Piauí e Pernambuco.

Criada em 1997, a principal meta da APA é criar um Plano de Conservação, que permita o ordena-mento e o uso territorial, já que a área é destinada ao domínio privado. Todas as atividades são acompa-nhadas pela Secretaria Estadual do Meio Ambien-te – Ceará (Semace), pelo IBAMA e pelo ICMBio.

Para Anderson, o tamanho - quase um milhão de hectares - da área destinada a APA acaba sen-do uma das problemáticas para a fiscalização e sua gestão ambiental. “Muitos projetos, para uti-lização de recursos da chapada, são aprovados. Mas, nem todos são fiscalizados. Muitos deles acabam retirando e explorando tais recursos de maneira não sustentável”, relata. Anderson afir-ma que só um planejamento adequado poderá conservar os recursos da floresta. “É necessário um projeto mais apropriado para manutenção da cobertura vegetal da floresta. É ela que manterá o solo e os recursos hídricos conservados, cabe a nós, humanos, e às grandes empresas, usá-los de maneira sustentável”, finaliza.

Page 7: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS12 PERCURSOS URBANOS 13

FONTES E O SOLDADINHO-DO-ARARIPE

O Cariri é privilegiado por água, apesar de se localizar na região mais seca do Brasil, isso graças à Chapada do Araripe que funciona como um reservatório d’água proveniente das chuvas irregularmente distribuídas ao longo do ano. Esse “reservatório natural” contribui para a formação de fontes de água, em especial, na formação Arajara, no Cariri. “Primeiramente, por causa do período de chuvas mais abun-dantes no estado do Ceará e também porque a formação Arajara possui um inclinamento que contribui para a formação dessas fontes”, expli-ca Anderson.

A formação Arajara tem funcionado por mi-lhares de anos como um gigantesco funil, cap-tando águas das chuvas, concentrando-as em um vale profícuo. “A água proveniente destas fontes possui uma vazão de quase 4 metros cú-bicos por hora, principalmente as localizadas em Barbalha e parte do Crato e de Missão Ve-lha, o que é suficiente para abastecer essas ci-dades”, explica o professor. A água acumulada na encosta da chapada deixa o solo mais fértil e contribuiu para a formação de mais de 300 fontes d’água no seu entorno.

Hilda Daniel alerta sobre os recursos mate-riais que estão sendo retirados da chapada de maneira não sustentável, o que poderá afetar, futuramente, na formação das fontes. “Estima--se que pouco mais de 70% da cobertura vege-tal da chapada será destruída, e o que abas-tece essas fontes são as chuvas que caem no topo da chapada. Retirando essa cobertura ve-getal, essa água ficará concentrada ou descerá até as cidades provocando alagamentos nos centros urbanos”, explica a estudante. Ander-son complementa afirmando que a destruição da vegetação nativa poderá provocar a redução na quantidade de água das fontes, “gerando problemas de distribuição de água na região, nos próximos 30 anos”, finaliza.

Hilda comenta também a falta de fiscali-zação dos órgãos públicos na distribuição da

“Se o soldadinho-do-Araripe desaparecer, o próximo poderá ser nós, seres humanos”

pássaro endêmico da região, ameaçado de extinção. E que é necessário proteger as matas e as nascentes para que o soldadinho-do-araripe possa sobreviver”, conclui. Já para Fabiano de Cristo, também integrante do pro-jeto, o risco de desapareci-mento do soldadinho serve como um alerta para os seres humanos, “o soldadinho se re-produz e vive nas encostas das nascentes, se retiramos isso deles, estaremos colocando não só em ris-co a vida do soldadinho, mas, também a nossa própria existência, já que a água é o elemento vital da nossa vida”, justifica.

O Instituto Chico Mendes, em parceria com o governo e sociedade local, lançou em 2010 um Plano de Ação Nacional (PAN), com a finalidade de evitar a extinção da ave. Flaviana comenta que o objetivo principal do plano, com vigência até agosto de 2015, é garantir o hábitat para o aumento populacional da espécie. “O Plano visa conservar e recuperar a qualidade ambiental do hábitat natural do soldadinho-do-Araripe (matas úmidas de encosta da Chapada do Araripe de Bar-balha ao Crato), com a finalidade de ampliar sua distribuição e aumento populacional”, conclui.

água proveniente dessas fontes. “Muitos balneá-rios se apropriam dessas fontes, sem ao menos pedir autorização”, relata. A estudante alega que as águas acabam sendo desviadas de seu leito para o abastecimento de canais de irrigação ou de balneários, alterando a dinâmica hídrica das fontes, que passam a pertencer a lotes de man-sões, sítios e condomínios construídos na cha-pada. “A fonte pertence à união, no entanto, não percebemos isso aqui”, finaliza. De acordo com a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Estado do Ceará (Cogerh), na região do Cariri são explorados três mil litros de água por segundo. Entretanto, no mesmo período de tempo, a natu-reza só repõe dois mil.

Além da questão social, as fontes da Chapa-da do Araripe são essenciais para a manutenção da vida do soldadinho-do-araripe - tangara mais ameaçado de extinção do planeta, de acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Bio-diversidade (ICMBio) - devido aos hábitos repro-dutivos da espécie serem restritos às nascentes. Atualmente estima-se que existam 800 espécies aos arredores das encostas da chapada, sendo essa espécie exclusiva da região do Cariri.

Flaviana Santos, integrante do Projeto solda-dinho-do-Araripe, afirma que além de proteger o pássaro, exclusivo da região, um dos objetivos do projeto é conscientizar a população da região. “Fazer a população reconhecer que temos um

Fot

o: C

iro

Alb

ano

Fabiano de Cristo

Page 8: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS14 PERCURSOS URBANOS 15

GEOPARQUE

O Geoparque Araripe, criado em 2006, abrange os municípios de Crato, Juazeiro do Norte, Bar-balha, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri, todos na região do Cariri, apresentando uma área aproximada de 3.796 Km². “É um ter-ritório que possui um notável patrimônio geológi-co aliado a uma estratégia de desenvolvimento sustentável regional, baseado em atividades de geoconservação e geoturismo”, aponta Francisco Idalécio, coordenador do Geoparque Araripe.

A região é caracterizada pelo importante regis-tro geológico do período Cretáceo. Destacando seu conteúdo paleontológico, com registros de 150 e 90 milhões de anos, apresentando um es-tado de conservação impar, revelando uma diver-sidade paleobiológica invejável.

Dessa forma, com o intuito de preservar este patrimônio geológico e de importância científica, educativa e turística, foi encaminhada em 2005, sob a iniciativa da Universidade Regional do Cari-ri (URCA), através da Secretaria da Ciência, Tec-nologia e Educação Superior (SECITECE), com o

apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadê-mico (DAAD) e o Governo do Estado do Ceará, a proposta de candidatura do Geoparque Araripe à UNESCO, visando a sua integração a Rede Global de Geoparques (GNN).

Em setembro de 2006, o Geoparque Araripe passa a ser reconhecido pela Rede Global de Ge-oparques como o primeiro das Américas. O que significou uma área de proteção a riquezas geo-lógicas e paleontológicas, com reconhecimento internacional.

O Geoparque Araripe foi dividido em nove uni-dades de conservação, os chamados geossítios. “A escolha e demarcação de um geossítio é feita através de levantamento de seus potenciais geo-lógicos e científicos, levando em conta outros po-tenciais, seja natural, social ou turístico”, afirma Idalécio. Estes parques estão localizados em seis municípios do Cariri, já citados acima. Em todas essas cidades possuem representações de estra-tos geológicos e em quatro deles existem forma-ções fossilíferas. Segundo Idalécio, o Geoparque

SEDE DO GEOPARK ARARIPE, LOCALIZADO NA CIDADE DO CRATO. Foto: Cariri Notícias

Araripe possui 26 geossítios, no entanto, apenas nove estão aptos a receber visitação. “futuramen-te pretendemos trabalhar nessas unidades, para que possamos aumentar o número de geossítios do Geoparque Araripe”. Idalécio comenta também o trabalho que está sendo realizado com as co-munidades que vivem nos entorno desses geossí-tios. “Estamos trabalho com essas comunidades para que elas conheçam o que é um geossítio, para que elas conservem-nos. Porque futuramen-te queremos que cada uma dessas comunidades sejam responsáveis pelo seu geossítio”, finaliza.

Hilda Daniel conta que o Geoparque foi criado para preservar áreas naturais com três caracte-rísticas. “A fauna, a flora, além da riqueza pale-ontológica, arqueológica e a geológica”, comple-ta. Acrescenta ainda que é dever do Geoparque conservar os Geossítios de maior relevância geo-lógica e paleontológica; proporcionar à população local e aos visitantes oportunidades de conhecer a região através do turismo, além, é claro, de di-vulgar a cultura regional e suas manifestações e as formas de utilização sustentável dos recursos naturais na região, ou seja, “desenvolver a região de maneira sustentável, através do geoturismo, desenvolvendo assim a região econômica e so-cialmente”, finaliza a estudante.

O Geoparque Araripe é um dos mais completos do mundo. Segundo Idalécio, o Geoparque preser-va áreas que vão do estudo geológico: com rochas de mais de 600 milhões de anos; paleontológico: com seus fósseis de dinossauros e pterossauros; histórico: por a região contar a ocupação do inte-rior do país; ambiental: protege um dos últimos redutos de Mata Atlântica, que mesclado com a caatinga, bioma exclusivamente brasileiro, dá ori-gem às espécies únicas; religiosa: pelas romarias que giram em torno do Padre Cícero em Juazeiro do Norte; e, por fim, o cultural: pelas inúmeras manifestações de cultura popular que a região possui. Ou seja, “O Geoparque Araripe é a região do Araripe, tem que ter a cara do Cariri, a nossa cultura, a nossa religião e as nossas riquezas na-turais”, complementa o coordenador. GEOSSÍTIO MISSÃO VELHA, UM DOS NOVE GEOSSÍTIOS,

ADMINISTRADOS PELO GEOPARK ARARIPE. Foto: Márcio Feitosa

Page 9: Revista Percursos Urbanos Cariri

Geoparque AraripeGeossítios

Situado no Sítio Olho D’água, também em Missão Velha,caracteriza-se pela existência de uma Floresta Petrificada, com fragmentos de trocos petrificados com aproximadamente 145 milhões de anos.Um importante tesouro paleontológico de valor incalculável.

Geossítio Floresta Petrificada do Cariri2

Localiza-se no Parque Ecológico Riacho do Meio, em Barbalha, contempla uma área de vegetação densa, onde estão preservadas a fauna e flora nati-vas da serra do Araripe. O local oferece também espaço para realização de trilhas ecológicas.

Geossítio Riacho do Meio 3

Localizado em Juazeiro do Norte, a colina do Horto, compreende um dos lo-cais de maior devoção popular do Nordeste. Lá está localizada a estátua do Padre Cícero, importante figura mística da região, que move milhões de fiéis todos os anos à cidade.

Geossítio Granito 5

Geossítio Ponte de Pedra 4Localizado no sítio Olho D’água de Santa Bárbara, que liga Crato a Nova Olin-da. Na região há vestígios arqueológicos das populações pré-históricas. São gravuras e pinturas rupestres e achados ocasionais de restos de cerâmica e de material lítico usado pelos antigos habitantes Kariri.

Situado no Parque Estadual Sítio Fundão, no Crato, é caracterizado pela presença de fontes naturais de água. Muitas dessas fontes tornaram-se

balneários e áreas de lazer para a comunidade local.

Geossítio Batateiras 6

Localizado entre as cidades de Santana do Cariri e Nova Olinda, compreen-de uma antiga área de mineração de calcário, conhecida por Mina Triunfo.

Apresenta um elevado valor científico, devido à presença de diversos fósseis como de insetos, pterossauros, peixes e vegetais.

Geossítio Pedra Cariri 7

Situado no Sítio Canabrava, em Santana do Cariri, a região é considerada uma as áreas mais antigas de achados de fósseis do planeta.

Já encontraram por lá restos de pterossauros, tartarugas e vegetais

Geossítio Parque dos Pterossauros 8

Localizado no topo da chapada do Araripe, numa altitude de aproximadamen-te 750m, dá uma vista panorâmica da cidade de Santana do Cariri. É considerada a rocha mais jovem da Bacia Sedimentar do Araripe,

com 90 milhões de anos.

Geossítio O Pontal da Santa Cruz 9

PIAUÍ

JUAZEIRO DO NORTE

MISSÃO VELHABARBALHA

CRATOSANTANA DO CARIRI

NOVA OLINDA

CEARÁ

PERNAMBUCO

9

874 5

6

3

1

2

Localizado no Sítio Cachoeira no Município de Missão Velha, caracteriza-se por suas quedas d’aguas, de aproximadamente 12 metros de altura. Aqui estão preservados icnofósseis, estruturas que segundo os paleontólogos são vestí-gios da atividade viral de antigos organismo invertebrados aquáticos.

Geossítio Missão Velha1

Page 10: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS18 PERCURSOS URBANOS 19

A COMISSÃO CIENTÍFICA DO IMPÉRIO:A REDESCOBERTA DO CEARÁ

Há mais de 150 anos, cientistas brasileiros do governo Imperial

viajaram ao Ceará com o objetivo de conhecer os sertões do Brasil

Page 11: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS20 PERCURSOS URBANOS 21

P ercorrer, descrever, inventariar e ilustrar, são algumas das ações realizadas por comissões científicas nos diversos lugares por onde passam. Relatos estes

que se transformam em documentos do conhe-cimento e em produções do redescobrimento da história.

“Revisitar o passado e conhecer a história. Imaginar um Cariri que é pouco conhecido por seus habitantes, a partir de um olhar vindo de fora”, é o que a assessora técnica e estudante de administração pública Luciana de Medeiros afirma ao comentar da importância dos relatos da Comissão Científica de Exploração na história cearense e caririense.

A Comissão Científica de Exploração, designa-da oficialmente de Comissão Exploradora das Pro-víncias do Norte, foi desenvolvida em 1856 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), principal instituição científica do Brasil no perío-do. Para o historiador Paulo Santos, o objetivo da Expedição era enviar para províncias do Norte, até então desconhecidas, pesquisadores para catalogarem recursos naturais de um Império re-cém-constituído, além do “desejo de dar sentido à natureza brasileira no projeto de integração da nação e de suas riquezas naturais”, acrescentou.

Patrocinada pelo Imperador do Brasil, Dom Pedro II, a expedição foi comandada por alguns dos principais cientistas brasileiros da época, e tornou-se a primeira Expedição Científica forma-da, exclusivamente, por pesquisadores nacio-nais. Para Luciana, essa era a chance do Brasil, recém-independente de Portugal, estabelecer uma ciência autônoma e uma nova identidade nacional. “O principal objetivo ali era dar ao Brasil uma nova identidade, e de uma vez por todas se desvincular de Portugal. A expedição surge para mostrar essa independência, ao passo que se de-senvolve um projeto científico 100% brasileiro”, justifica.

Outro objetivo do governo imperial era conhe-cer as regiões brasileiras de pouco interesse dos naturalistas estrangeiros e descobrir os recursos naturais e minerais existentes nas províncias do Nordeste brasileiro. A Comissão tinha uma meta audaciosa colher informações sobre fauna, flora, minerais, geografia, além do comportamento e costumes da população. O governo queria pro-mover a integração regional do país e ao mesmo tempo buscar potenciais recursos naturais, como metais preciosos.

Constituída a princípio para desvendar as pro-víncias do norte brasileiro, a Comissão Científica limitou-se apenas a província cearense após a fal-ta de verbas e os questionamentos em relação à validade do projeto. Para Ana Cristina, secretária escolar e estudante de história, outra possibilida-de da Expedição se reter apenas ao Ceará foi o boato da existência de ouro na província. “Fala-va-se da existência de minas de ouro em monta-nhas no estado, já que acreditava-se que o solo cearense era rico em minérios”, comentou.

Foram três anos de preparação para a expe-dição. Alguns dos equipamentos utilizados pela comissão, câmeras fotográficas, microscópios, medicamentos, foram adquiridos na Europa. A Comissão Científica de Exploração foi a primeira no Brasil a fazer registros fotográficos, no entanto, esse material se perdeu no naufrágio do Iate Pal-pite. A chegada da Comissão Científica em terras cearenses decretou a integração da província ao projeto de constituição brasileira. A ideia de Expe-dição também estava atrelada a ideia de unifica-ção, de desvendar terras jamais exploradas, por isso as terras do Norte e Nordestes ficaram apon-tadas como as primeiras a serem exploradas.

Nos passos da Comissão Cientifica no Ceará

1

3

1

2

3

4

O pintor da Comissão, José dos Reis Carvalho, retratou os edifícios das povoações visitadas, como a igreja matriz de Aracati, antiga capital do Ceará (reprodução / Comissão Científica do Império: 1859-1861).

O martim-pescador-pequeno, comum à beira de rios, e lagos, em ilustração feita a partir da coleção de zoologia reunida pelo ornitólogo Manuel Ferreira Lagos (reprodução / Comis-são Científica do Império: 1859-1861).

José dos Reis, também fazia pinturas botânicas, provavel-mente a pedido de Freire Alemão. Nesta imagem, está um exemplo de ‘Rubiaceae’, planta que produz o café (reprodu-ção / ‘Comissão Científica do Império: 1859-1861’).

Pescas das piranhas em Russas Quixó, retratada por José dos Reis Carvalho em 18 de setembro de 1859 (reprodução / Co-missão Científica do Império: 1859-1861).

FORTALEZA

ARACATI

RUSSAS

CRATOMISSÃO VELHA

BARBALHA

JARDIM

2

4

VIÇOSASOBRAL

UBAJARA

JAGUARIBE

Trajeto descrito no pri-meiro Diário de Freire Alemão.

Trajeto descrito no se-gundo Diário de Freire Alemão.

LEGENDA

ACARAÚ

ICÓ

Page 12: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS22 PERCURSOS URBANOS 23

A EXPEDIÇÃO CHEGA AO CEARÁ

Após três anos de preparação, finalmente em fe-vereiro de 1859 os principais representantes da elite intelectual brasileira desembarcaram em Fortaleza para uma viagem de dois anos e cinco meses à província cearense. Iniciava-se a Comis-são Científica de Exploração, formada por botâni-cos, zoólogos, geólogos, etnógrafos e artistas que objetivavam estimular a criação de uma ciência exclusivamente brasileira.

A Comissão foi dividida em cinco seções, cada uma chefiada por um associado do IHGB. Perso-nalidades ilustres e os principais cientistas brasi-leiros do período, hoje imortalizados em diversas áreas do conhecimento e da produção literária integraram a comitiva, entre eles, destacam-se: O presidente da Comissão, Francisco Freire Ale-mão, botânico e chefe da seção Botânica; o físico Guilherme Capanema, responsável pela seção Geológica e Mineralógica; Manuel Ferreira Lagos, encarregado da seção de Zoologia; a seção Etno-gráfica ficou sob o comando do poeta Gonçalves Dias e, por fim, a seção Astronômica e Geográfica, chefiada pelo matemático Giacomo Raja Gaba-glia. A comitiva contou também com a participa-ção do tenente da Marinha, José dos Reis Car-valho, discípulo do pintor francês Jean Baptiste Debret. Reis foi o desenhista oficial da expedição, e produziu desenhos e aquarelas da natureza e da arquitetura da província.

Uma das principais fontes da passagem da Comissão Científica nas terras cearenses foi re-gistrada pelo presidente e chefe da seção de bo-tânica, Freire Alemão. Apesar do nome estrangei-ro, Freire Alemão era brasileiro, natural do Rio de Janeiro. Com seu olhar investigativo, o botânico registrou passo a passo da Expedição, tornando seu diário de campo a principal fonte histórica da-quela comissão.

Segundo o diário de Freire Alemão a Expedição iniciou-se em 30 de março de 1859 e teve seu fim em 24 de julho de 1861. Para Luciana, esse diário “representa um valioso documento para que se possa conhecer nossa história, bem como a representação que os de fora faziam de nossa gente”, comenta.

Luciana relata também a importância do diário do botânico nas narrativas da comissão. “Freire Alemão retrata de maneira clara e minuciosa o modo de vida da província [do Ceará] no perío-do. Há relatos ou simplesmente documentação acerca das singularidades do clima, do relevo, da culinária, dos elementos naturais, do comporta-mento das pessoas”, conclui.

A Expedição tornou pública um dos grandes desafios da província cearense, e, que ainda per-siste atualmente, a seca. O principal propagador da problemática foi Guilherme Capanema, res-ponsável pela seção de Geologia e Mineralogia. O físico chegou a apresentar relatórios sobre o tema ao IHGB. “A partir da expedição, o Ceará passa a ser entendido como um problema a ser resolvido tanto pela comitiva quanto pelo governo imperial”, comentou Cristina.

Alguns membros da Comissão Científica logo relacionaram o tal ouro prometido no Ceará com a água. “Os açudes, poços, reservatórios eram os verdadeiros tesouros daquele povo e a coisa mais cara por estas bandas”, aponta Cristina, len-do os relatos de Capanema. E conclui: “falta-lhes somente a água, que, quando chega, constitui a felicidade da Província”.

Em contraponto com a temática de Capanema, Freire Alemão apresentou, em seus relatos, um Ceará rico em belezas naturais, cheio de terras férteis e bela vegetação. No seu diário, o botâni-co relata o inferno de viajar pelo sertão durante o inverno, “São lamas, atoleiros, riachos e rios

cheios. Chuvas, trovoadas, moscas, mariposas”, descreveu Freire Alemão.

Cristina conta que a comissão presenciou o reverso da estação climática, da seca extrema à água abundante. Encontraram no Ceará abun-dância de uma terra fértil e mal administrada. “Eles puderam observar um surto de lamento e desolação com a seca e logo depois com a chega-da da chuva a transformação dos campos secos e rachados por uma vegetação verde e irradiante”, comenta com os relatos de 1862.

Foi uma expedição árdua, os cientistas tiveram grandes dificuldades de deslocamento por conta da falta de estradas. Muitas vezes, tiveram que atravessar rios e abrir caminho em regiões de mata com o auxílio de facões. Ao final da viagem, o grupo trouxe uma extensa coleção de botânica, geológica e zoológica, além de exemplares do ar-tesanato cearense, desenhos e aquarelas. Todo esse legado resultou em um aumento significati-vo das coleções do Museu Nacional e do Museu Imperial. O primeiro, por exemplo, conta até hoje com materiais disponibilizados pela Expedição.

ARTE DE JOSÉ DOS REIS CARVALHO, REPRESENTA UM RIO COM ÁGUA, NA ÉPOCA DAS CHUVAS, E A VEGETAÇÃO ENCOBRINDO O ENTORNO. Foto: Reprodução / Comissão Científica do Império: 1859-1861.

Page 13: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS24 PERCURSOS URBANOS 25

A EXPEDIÇÃO NO CARIRI

Como as seções tinham finalidades diferentes, elas não seguiram o mesmo rumo. As seções de botânica e zoológica, por exemplo, saíram de Aracati com destino à região do Cariri, sul da pro-víncia cearense. Seguindo pelas margens do rio Jaguaribe, chegaram à região caririense em de-zembro de 1859 e se fixaram na cidade do Crato. Cristina relata, de acordo com relatos do Freire, que a comitiva foi bem recepcionada na cidade e em outras cidades da região. “Eles permane-ceram na região até abril de 1860. Alguns dos cientistas chegaram a cogitar a possibilidade de residir na região, como o Gonçalves Dias, que, acabou se apaixonando pelas belezas do Cariri”, finaliza.

Por meio do diário de Freire Alemão, Luciana descreve as impressões do botânico sobre a re-gião. As belezas naturais da chapada que com-punha a paisagem da região foram descrita como “um bonito panorama que revestia a região com uma vigorosa vegetação, contrastando com o as-pecto do sertão”. Outro aspecto destacado pela assessora técnica está nos espetáculos apresen-

tados no teatro local. “Nos relatos do Freire ele afirma que o teatro do Crato era mais bem equi-pado e tinham espetáculos teatrais de melhor qualidade do que os de Fortaleza”, acrescentou.

Diferente da capital, a chegada da Comissão causou um misto de reações no Cariri. “As pes-soas ficavam surpresas, havia um sentimento de referência pelos cientistas; alguns viraram motivo de chacota; outros por estarem, bem paramenta-dos e cheios de equipamentos, foram considera-dos ricos. Então, a população pedia dinheiro, ou outro tipo de esmola”, finaliza Luciana. No diário do Freire Alemão era descrito a miséria na região. A quantidade de pobres, órfãs, de presos de ca-deia que pediam esmolas à comissão. Para o bo-tânico, tal miséria era fruto apenas da preguiça daqueles miseráveis, já que o ambiente em que viviam era bastante produtivo. “A pobreza, por indolência vive miseravelmente, porque e terra é muito produtiva”, relatou Freire Alemão.

REAÇÃO POPULAR

Ao desembarcarem na província cearense, os membros da comissão científica logo causaram estranhamento entre os nativos. “Acreditava-se que aqueles senhores vieram em busca de uma riqueza potencial para entregarem aos estrangei-ros e posteriormente escravizarem o povo do cea-rá”, relatou Paulo.

Outros consideravam os próprios membros da comissão científica estrangeiros. “Por seu portu-guês formal, técnico e científico, modo de se ves-tir e também pela parafernália científica e outros objetos muitos populares apontavam como es-trangeiros”, finaliza o historiador.

Em suas anotações, Ana Cristina comenta o porquê do estranhamento dos nativos em relação aos cientistas. A estudante analisa que os cea-renses entendiam a sua nacionalidade como Bra-sil, ou seja, o Ceará para eles era o Brasil. Nesse caso, “quem não fosse cearense, era considera-dos estrangeiros, para os nativos”, ressaltou.

Apesar do estranhamento dos nativos, a comi-tiva contou com o saber popular durante a expedi-ção. Um dos episódios é relatado pelos cientistas da comissão durante sua passagem pelo municí-pio de Ubajara. Eles decidem dormir em redes do lado de fora da casa rejeitando o aviso do dono que logo iria chover. “Analisando o céu com seus aparelhos sofisticados, a comitiva constatou não haver a possibilidade de chuva. Armaram as redes na varanda da casa, horas depois, são pegos por uma tempestade que os fossam a entrar na casa. Ao amanhecer, o dono da casa conta como previu aquela chuva, e explicou, que o burro que man-tém amarrado na cerca do sítio relincha de deter-minada maneira, avisando que virá água do céu”, descreve Cristina com seu caderno de anotações.

VISTA DA CIDADE DO CRATO. 14 DE MARÇO DE 1860. AQUARELA DE JOSÉ DOS REIS DE CARVALHO. Acervo do Museu de Arte Vicente Leite, Crato-CE.

REPRESENTAÇÃO DE CENA COTIDIANA CEARENSE, SEM INDICAÇÃO DE LUGAR. Foto: Acervo Comissão Científica do Império: 1859-1861.

Page 14: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS26 PERCURSOS URBANOS 27

FRACASSO E POLÊMICA

A memória da expedição cientifica não ficou ape-nas marcada pelas suas descobertas científicas. Muito pelo contrário, ficou marcada por aconte-cimentos pitorescos. Uma das mais comentadas é da tentativa de aclimação de 14 dromedários provenientes da Argélia. Sem sucesso! Logo no primeiro teste um dos camelos caiu e quebrou a pata ao realizar o trajeto entre Fortaleza e Batu-rité. Episódio que levou o presidente da província do Ceará acusar ironicamente Gonçalves Dias, que estava utilizando o camelo como meio de lo-comoção no momento, de camelicídio.

Outra polêmica ficou com a fama dos doutores serem namoradores, o que conferiu um apelido para o comitê de “Comissão Defloradora”, segun-do Luciana, havia relatos nos diários do Freire Alemão de noites festivas com a companhia de jovens mulheres e bebidas. Comissão das Bor-boletas foi outro nome dado à expedição, que, sofreu críticas de populares que “consideravam um gasto inútil do dinheiro público para pesqui-sar plantas. E para ironizar eles comentavam, vão pesquisar borboletas”, relata Luciana.

LEGADO

A viagem, de dois anos e cinco meses, gerou uma vasta documentação: relatórios, diário de viagem, apontamentos sobre a seca, estudos botânicos, além de objetos coletados na província cearense. Atualmente, alguns destes materiais, encontra-se nas instituições do Rio de Janeiro, como o Museu Histórico Nacional (MHN) e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). No Ceará, algumas pinturas de Reis de Carvalho encontra-se no Mu-seu do Crato.

A comissão foi pioneira no Brasil ao fazer regis-tros fotográficos, no entanto, o material se perdeu no naufrágio do Iate Palpite. Bem-sucedida ou não, a Comissão Científica de Exploração contribuiu para a ideia de que o Brasil podia sim fazer ciên-cia. Foi a partir da Comissão Cientifica que o gru-po nacional de cientistas brasileiros se expandiu.

Em 1995 a Escola de Samba Imperatriz Leopol-dinense levou para a Marques de Sapucaí o en-redo Mais vale um jegue que me carregue, que um camelo que me derrube... Lá no Ceará. A escola contou em seu desfile a história da Comissão Científica de Exploração a partir da ideia de Dom Pedro II desenvolver uma expedição científica 100% brasileira. Em seu desfile, a escola demonstra a escolha do Ceará, para expedição, pela suspeita de que lá havia inúmeras riquezas. No entanto, foi a substituição dos jegues pelos camelos provenientes da Argélia que chamou a atenção da carnavalesca Rosa Magalhães. A partir do fracasso da tentativa da aclimação dos camelos e a escolha do jegue como melhor animal para transportar os membros da comissão, a escola proclamava “Abaixo o camelo, Viva o Jegue!”. Embalada por um grande samba, a escola realizou um belo desfile e conquistou o bicampeonato do Carnaval Carioca.

“Balançou, não deu certo nãoPois não passou de ilusãoEles trouxeram o balanço do desertoMas não é o gingado certoPra cruzar o nosso chão”

Comissão Científica no Carnaval Carioca

Gravuras que mostram parte do espaço re-servado para o Brasil na Exposição Interna-cional de Londres, de 1862. Em razão da Comissão Científica, o Ceará foi a província mais bem representada. Londres foi invadi-da por produtos da carnaúba e diferentes es-pécies de abelhas do Ceará, sem falar das redes, tecidos de algodão, lenços bordados e rédeas de couro. Dezenas de redes pendu-radas fizeram um belo efeito de conjunto.

Ceará na Exposição Internacional de Londres

CURIOSIDADESSERVIÇO

OS ZIGUEZAGUES DO DR. CAPANEMA: CIÊN-CIA, CULTURA E POLÍTI-CA NO SÉCULO XIX

Manoel Francisco de Carvalho , Maria Sylvia Porto Alegre.

Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. 372 páginas.

DIÁRIO DE VIAGEM DE FRANCISCO FREIRE ALEMÃO: FORTALEZA-CRATO. 1859

Francisco Freire Alemão

Museu do Ceará, 2006. 235 páginas.

COMISSÃO CIENTÍFICA DO IMPÉRIO: 1859-1861

Magali Romero Sa, Lorelai Kury, Maria Margaret Lopes, Kaori Kodama, Silvia Figuei-roa

Andrea Jakobson. 272 páginas.

Samba Enredo da Imperatriz em 1995

Page 15: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS28 PERCURSOS URBANOS 29

José dos Reis Carvalho retratou o costu-me dos sertanejos, tanto em festas quan-to em situações menos alegres.

A Comissão Científica trouxe da África 14 dromedários e tentou aclimatá-los no

Ceará, sem sucesso. O episódio é uma das histórias mais contadas sobre a expedição.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição em Jaguaripe. Desenho de

José Reis de Carvalho.

Vista da cidade de Icó, onde a Comissão Científica acampou

por 40 dias.

Pintura de José Reis de Carvalho repre-sentando o universo feminino cratense.

A maioria das mulheres, segundo relatos dos viajantes, andava sempre coberta

com mantas.

Pássaro não identificado. As ilustrações de aves fazem parte do acervo feito a

partir da coleção de zoologia reunida pelo ornitólogo Manuel Ferreira Lagos

Expedição em

A R T E

Page 16: Revista Percursos Urbanos Cariri

PERCURSOS URBANOS30 PERCURSOS URBANOS 31

Quem foi?

Participar de um Percursos foi um excelente aprendizado, e ter a oportunidade de mediar um, foi mais gratificante ainda. O per-cursos é um projeto que está em prol da cultura, é lindo isso. Esse projeto não deve parar nunca, ele não é um projeto nota 10, não! É nota 1000!

O Percursos Urbanos é muito mais que um passeio no sába-do à tarde. É um compartilha-mento de conhecimentos de temas diversos. O contato hu-mano, através do bate-papo no ônibus, nos locais que visi-tamos, faz surgir uma energia na qual não encontramos nas salas de aula. A alegria e a in-teração das tardes no percur-so nos fazem pensar o quanto o conhecimento é válido.

Mediar um Percursos foi uma ex-periência bastante interessante. O projeto em si é fantástico! É um tipo de ação educativa profunda, que encanta, passando pelo afe-to, pelo sentido das pessoas. Essa aproximação com o público e com o ambiente que será estudado, característico do projeto, tornar o aprendizado mais eficaz.

O Percursos Urbanos é um proje-to que vem contribuindo e mui-to com as minhas produções na universidade, desde artigos à minha monografia. Ir aos sá-bados à tarde, conhecer novas pessoas e lugares, poder deba-ter sem medo de ser criticada, proporciona momentos riquíssi-mos de aprendizado, não só pra mim, mas, para os demais parti-cipantes também. O projeto abre portas para aquelas pessoas não visibilizadas, que possuem o saber popular como formado-res de vida, e isso, é muito lindo! Porque demonstra que não há uma segregação de conhecido, estamos todos ali para aprender e trocar ideias.

Mestre Gilberto Diretor da Associação Cultural Capoeira Arte e Tradição

Elizabete Santos Estudante de Ciências Sociais

Áurea BarbosaEstudante de Ciências Sociais

Luciana de MedeirosEstudante de Administração Pública

É um dos projetos mais interes-santes que eu já participei. O Percursos Urbanos possibilita compreendemos e entendemos sobre determinados temas da nossa região que estão tão per-to e nós não conhecemos. Poder sair no sábado, conhecer esses temas, vivenciar e conversa com pessoas que vivem ou partici-pam daquilo, é um dos pontos mais instigantes do projeto.

Morgana SiqueiraEstudante de design

Ter mediado um Percurso Ura-bnos foi uma das atividades mais envolventes e dinâmicas em que participei e acredito que ele contribue para a elu-cidação dos temas discutidos durante o projeto.

Jucieldo FerreiraProfessor de história da UFCA

Page 17: Revista Percursos Urbanos Cariri

NARRATIVAS EM VOLTA DO FOGO

Conheça mais um projeto da Universidade Federal do Cariri. O Narrativas em Volta do Fogo, ocorre nos últimos sábados de

cada mês às 18 horas, no Largo da RFFSA, cidade do Crato.


Top Related