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NNão foi preciso esperar cem anos para

que A ilustre casa de Ramires passasse afigurar como uma das mais lidas e impor-tantes obras de Eça de Queirós. Na ver-dade, desde a sua publicação em revista elogo em seguida em livro, precisamenteem 1900, se transformou em um dos textosmais lidos do escritor português. E, semdúvida, uma das razões para isso foi o fatode parecer (e não sem razão), sobretudopara aqueles leitores desgostosos da críticaferoz a que o romancista submetera a socie-dade portuguesa em obras anteriores, umtexto de abrandamento.

Para aqueles mesmos leitores, umaespécie de reencontro de Eça de Queiróscom os verdadeiros fundamentos da nacio-nalidade portuguesa e que se traduzia pelaretomada do chamado romance históricobem ao gosto daquilo que havia sido rea-lizado, dentro do Romantismo, por umAlexandre Herculano, por exemplo.

Leitores que, por outro lado, encon-travam justificativas para os louvores (etambém não sem razão) na enorme mestriado escritor em fixar paisagens provincianasque, de certa forma, pareciam correspondera uma interpretação mais compreensiva dasociedade que, em Portugal do século XIXe desde sempre, parecia dilacerada entre os

encantos trepidantes das modernas capitaiseuropéias, em que avultavam Paris eLondres, e aqueles mais amenos e, porassim dizer, ainda para aqueles leitores,mais verdadeiros, das Leirias e Oliveirasque, desde O crime do padre Amaro e Acapital!, faziam o contraponto dramáticodas pequenas existências de personagenscriados pelo romancista.

Na verdade, juntamente com duasoutras obras � A correspondência de FradiqueMendes e A cidade e as serras �, escritas pelamesma época e as três editadas postuma-mente, embora a primeira já tivesse sidopublicada na Revista de Portugal, a partir de1889, A ilustre casa de Ramires é peça fun-damental num conjunto que, precisamentecomo obra final do romancista, acentuaaspectos daquilo que fora tensão narrativanas outras três obras essenciais da bi-bliografia de Eça de Queirós, O crime dopadre Amaro, O primo Basílio e Os Maias, e,ao acentuar, buscando a compreensão e nãoo impacto, reduz o grau de problematici-dade narrativa que conferira àquelas trêsobras dos anos 70 e 80 uma importânciadecisiva na formação de uma imagem deescritor para Eça de Queirós.

E essa imagem, como se sabe, estevesempre colada à do crítico mordaz que,

por detrás de um monóculo ao mesmotempo atrevido e de pose, sabia ler e cari-caturar os ridículos de uma sociedade ine-vitavelmente presa a valores rurais queansiava por aqueles outros, urbanos, cria-dos pela revolução industrial, da qual seachava marginalizada.

Era uma espécie de resolução das ten-sões e que, por isso mesmo, substituindo omonóculo agressivo pelo roupão de sedade mandarim das últimas fotografias do es-critor, dava aos escritos derradeiros de Eçade Queirós um tempero palatável paraaqueles leitores que, digamos, até Os Maias,ali não viam senão revolta e perigoso apeloà subversão dos valores.

Por outro lado, é preciso dizer que ooutro grupo de leitores, aqueles que aderiamou aderem à imagem satírica como outrapele do romancista, refugavam, e aindarefugam, este último Eça de Queirós, sejao do �histórico� Gonçalo Mendes Ramires,seja o do �bucólico� convertido Jacinto, sejao do �fradiquismo� da correspondência.

Desse modo, e como é natural em setratando de um escritor com as dimensõesde Eça de Queirós, há de tudo para todosos gostos: há, por um lado, o herdeiro diretodas posições assumidas pelos participantes,como ele, da chamada geração de 1865 que,

xandre barbosa joão alexandre barbosa joão alexandre barbosa joão alexandre barbosa joão alexandre

a torre literáriade eça de queirós

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O escritor português, quemorreu há cem anos, encenou

no romance A ilustre casa deRamires as tensões entre osvalores urbanos e rurais que

perpassam sua obra,sintetizando as oscilações entre

modernidade e tradição quedefinem a cultura lusitana

capitaneados pelo radicalismo social, e mes-mo socialista, de Antero de Quental, busca-vam uma análise impiedosa da sociedadeportuguesa, e que ele tratou de realizaratravés do projeto das Cenas da vida portu-guesa, que estaria representada pelas obraspensadas e escritas até, mais ou menos, osfins dos anos 80, e há, por outro lado, oescritor compreensivo, crítico antes de umacerta sociedade que social, aquela que erapercebida a partir dos que, como ele, partici-pavam do seleto grupo dos Vencidos da Vida(de que faziam parte Ramalho Ortigão,Oliveira Martins, Guerra Junqueiro,Antonio Candido Ribeiro da Costa, LuísSoveral, depois Marquês de Soveral,Carlos Meyer d'Avila e o Conde deFicalho), e que, de certa forma, coincidiacom os traços mais marcantes de suabiografia � o casamento com uma des-cendente da nobreza territorial, os ar-ranjos adequados da carreira diplo-mática, as relações mais estreitas com osmembros da monarquia no poder.

Seria este último Eça de Queirós quepensa e escreve as obras, sobretudo duasdaquelas três obras já mencionadas, A ilustrecasa de Ramires e A cidade e as serras, queforam publicadas postumamente nos iní-cios do século XX.

Se essa divisão em dois Eças, no en-tanto, parece ser natural tendo-se comofundo precisamente a sua biografia, ela émenos convincente como modelo de com-preensão crítica, desde que não seja respal-dada por uma leitura abrangente daquiloque foi propriamente realização literáriae através da qual seja possível auscultar astensões criadas pela simultaneidade dosdois movimentos biográficos unificadospela existência única do escritor.

Leitura abrangente capaz de instauraruma verdadeira compreensão crítica comoestá, por exemplo, no ensaio preciso, com-plexo e enriquecedor de Antonio Candidocom que, lendo toda a obra do romancista,conseguiu marcar diferenças ideológicasque auxiliam na avaliação de distintos em-preendimentos literários.

Na verdade, utilizando-se de um viésinterpretativo, isto é, o das tensões resul-tantes da simultaneidade, na obra de Eçade Queirós, de duas direções conflitantes, ado que chama de urbanista, mais forte nosromances iniciais do escritor, e a do homemdo campo, nas últimas obras, Antonio Can-dido, entretanto, sabe ver aqueles momentosem que, como n'Os Maias, a passagem entreuma e outra direção importa na reavaliaçãoda própria estrutura da narrativa, aí incluídas

a criação de personagens e suas perspectivasem relação às paisagens descritas.

Por saber ver assim aquilo que será ca-racterística da obra futura na obra anterior,por assumir uma perspectiva abrangente naleitura da obra do romancista, é que o críticopoderá situar plena e eficazmente A ilustrecasa de Ramires no conjunto da obra de Eçade Queirós, afirmando:

�A ilustre casa de Ramires é o anti-Basílio.Embora os Ramires andem decadentes (poisacompanham a curva das vicissitudes doReino), é na tradição por eles formada que oseu último rebento vai encontrar energiapara obstar à decomposição do próprio ca-ráter e afirmar uma superioridade cheia deorgulho de estirpe. Verifica-se, então, umfato da maior importância para interpretaro nosso romancista: parece que ao encon-trar-se plenamente com a tradição do seupaís, ao realizar um romance plenamenteintegrado no ambiente básico da civiliza-ção portuguesa (a quinta, o campo, a fre-guesia, a aldeia, a pequena cidade: SantaIreneia, Bravais, Vila Clara, Oliveira), pa-rece que só então Eça de Queirós con-seguiu produzir um personagem dramáticoe realmente complexo: Gonçalo MendesRamires. Parece que só então pôde libertar-seda tendência caricatural e da simplificação

Eça de Queirós no jardimde sua casa em Neuilly

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excessiva dos traços psicológicos.�(�Entre campo e cidade�, em Tese e antítese.Ensaios, Companhia Editora Nacional).

Não obstante em outros pontos de suaobra ter semeado alusões numerosas à his-tória de Portugal, mas sempre expedidas,por assim dizer, sob um ângulo mais socio-lógico do que propriamente histórico, é, defato, n'A ilustre casa de Ramires que oromancista empreende o seu mais largo eambicioso projeto de reconstrução histó-rica. E, por isso mesmo, de forma maisafoita, enfrentando os desafios das possí-veis engrenagens que movimentam asarticulações entre o discurso ficcional e ohistórico.

No entanto, é preciso enfatizar desdelogo que, antes de ser histórico, o roman-ce revela um ponto de vista, uma espéciede crença para o caso português, firme-mente estabelecido pelo autor e que de-termina toda a sua construção: o históricoé igual ao rural (o que vem confirmar asúltimas observações de Antonio Candidono texto transcrito) e, portanto, se de his-tória se trata, é antes a de uma históriaparcialmente utilizada pelo romancistacomo modo de defender uma certa inter-pretação da história mais ampla que éconservada ecoando durante toda anarrativa.

E esta identificação básica entre o his-tórico e o rural, insinuada e usada comocontrapeso, como já se viu, em obras an-teriores de Eça de Queirós, é agora ex-plicitada pelo modo mesmo de construiro romance.

A começar pelo fato de que é o pro-tagonista, Gonçalo Mendes Ramires, quem

se encarrega de acrescentar à criação ficcio-nal, que ele é, uma outra ficção, esta tomadade empréstimo, sobretudo, a pseudodocu-mentos históricos.

Certamente, sem ser um escritor, e bastaver o modo de composição de que se servepara a elaboração d'A torre de D.Ramires, arazão mais forte para que ele se compro-meta com o amigo José Lúcio Castanheiropara a efetivação da novela histórica, a serpublicada na revista Anais de Literatura e deHistória, é expressa pelo próprio Casta-nheiro ao ouvir do amigo Gonçalo a decisãotomada em ter a novela pronta para o pri-meiro número dos Anais e a escolha dotítulo:

Deslumbrado, José Castanheiro atirou osmagríssimos braços, resguardados pelas mangasde alpaca, até a abóbada do esguio corredor emque o recebera:

� Sublime!� �A Torre de D. Ramires��O grande feito de Tructesindo Mendes Ramirescontado por Gonçalo Mendes Ramires!� Etudo na mesma Torre! Na Torre o velho Truc-tesindo pratica o feito; e setecentos anos depois,na mesma Torre, o nosso Gonçalo conta o feito!Caramba, menino, carambíssima!, isso é que éreatar a tradição!

Sendo assim, logo fica claro para oleitor que o móvel principal da escritada novela histórica por Gonçalo, alémdaqueles menos nobres que, aos poucos,vão sendo revelados pelo próprio per-sonagem, como fazer da realização lite-rária um auxiliar para a possível e dese-jada carreira política, está na tarefa de,pela genealogia real ou imaginária, recu-perar o prestígio senhorial de uma fidalguiaultrapassada pelos novos tempos.

É, em grande parte, esse sentido envie-sado de motivação para a realização danovela histórica que empresta coerênciae, por assim dizer, verossimilhança à téc-nica de trabalho adotada por Gonçalo.

Desde que o propósito da novela é �no-bre�, por ser patriótico do ângulo do amigoCastanheiro, e �interesseiro�, por ser car-reirista, do ângulo do autor, nada obsta queele se utilize de um texto preexistente (opoemeto do tio Duarte, �Castelo de SantaIreneia�, escrito nos seus anos de ociosidade eimaginação, de 1845 a 1850 e que publicara noBardo, semanário de Guimarães): o que há defalso na motivação para a criação da noveladesculpa, desse modo, a própria falsidadeadotada em sua execução.

Cria-se, para dizer de outro modo, umambiente quer textual, quer psicológico,onde tudo é permitido, a começar peloplágio do poema do tio Duarte. Mas é umapermissividade vincada pela condição so-cial do protagonista.

Gonçalo Mendes Ramires, embora se-nhor de uma casa fidalga agora reduzida aosdois contos e trezentos mil réis que rendiam osforos de Craquede, a herdade de Praga, e as duasquintas históricas, Treixedo e Santa Ireneia,tudo podia a partir de sua caduca, inútil Torre,como ele a caracteriza num momento demelancolia, desde que conseguisse conser-var, �reatando-a�, como várias vezes enfatizao amigo Castanheiro, a tradição de seunobre nome.

E um dos traços mais notáveis do livroestá exatamente na assimetria, de enormesconseqüências na elaboração psicológicado personagem, acentuando-lhe mesmoaqueles aspectos complexos e dramáticos

O grupo dosVencidos da Vida

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sugeridos por Antonio Candido, entre ofidalgo aburguesado pela decadência e opseudo-escritor da novela histórica. Écomo se o possível reatamento da tradiçãopretendido já surgisse marcado pelo que háde assimétrico entre o herdeiro da tradição,que agora busca heroicamente fazê-la res-surgir, e o bacharel de Coimbra transfor-mado em senhor de uma remota proprie-dade provinciana.

Este sentido para o desajuste, às vezeschegando aos extremos de uma quase de-sintegração da própria personalidade doFidalgo da Torre, atravessa o romance deponta a ponta, criando os mais bem rea-lizados intervalos de invenção literária.

É o caso, por exemplo, daquilo que sepassa no capítulo III do romance, quando,depois de ter trabalhado em algumaspáginas da novela histórica, chega ao pontoda narrativa em que é capaz de expressar,com o que lhe parece de grande acerto etalento, uma afirmação de fidelidade deTructesindo Mendes Ramires às suas juraspassadas em resposta aos receios de MendoPais, seu genro. Leia-se a cena e o diálogo:

E, enquanto o monge enrolava o seupergaminho, se acercava da mesa � MendoPais ajuntou com tristeza, desafivelandovagarosamente o cinturão da espada:

� Só um cuidado me pesa. E é que, nestajornada, senhor meu sogro, ides ficar de malcom o Reino e com o rei.

� Filho e amigo! De mal ficarei com oReino e com o rei, mas de bem com a honra ecomigo!

Este grito de fidelidade, tão altivo, nãoressoava no poemeto do tio Duarte. E quandoo achou, com inesperada inspiração, o Fidalgo

da Torre, atirando a pena, esfregou as mãos,exclamou, enlevado:

� Caramba! Aqui há talento!A partir deste ponto, entretanto, há

uma interrupção, uma espécie de volta àrealidade, em que o Bento, serviçal e aiodo Fidalgo, anuncia a presença do Pereira,o Manuel Pereira, da Riosa, o PereiraBrasileiro que vinha à Torre com o pro-pósito de fazer uma proposta de arren-damento sobre o qual o Fidalgo já haviaantes tratado, de palavra empenhada, como José Casco dos Bravais. Vale a pena lerao menos parte do diálogo:

� Você queria arrendar a Torre, Pereira?� Queria conversar com Vossa Exce-

lência. Como o Relho está despedido�� Mas eu já tratei com o Casco, o José

Casco dos Bravais! Ficamos meio apala-vrados, há dias� Há mais de uma semana.

O Pereira coçou arrastadamente a barbarala. Pois era pena, grande pena� Ele só nosábado se inteirara da desavença com o Relho.E, se o Fidalgo não ressalvava o segredo, porquanto ficara o arrendamento?

� Não ressalvo, não, homem! Novecentose cinqüenta mil réis.

O Pereira tirou da algibeira do colete acaixa de tartaruga e sorveu detidamente umapitada, com o carão pendido para a esteira.Pois maior pena, mesmo para o Fidalgo.Enfim! depois de palavra trocada� Mas erapena, porque ele gostava da propriedade; jápelo S. João pensara em abeirar o Fidalgo; eapesar de os tempos correrem escassos, nãoandaria longe de oferecer um conto e cin-qüenta, mesmo um conto cento e cinqüenta!

Gonçalo esqueceu a sopa, numa emoçãoque lhe afogueou a face fina, ante um tal

acréscimo de renda � e a excelência de talrendeiro, homem abastado, com metal nobanco, e o mais fino amanhador de terras detodas as cercanias!

Não é preciso dizer que, na seqüência,o Fidalgo termina por romper o compro-misso anteriormente assumido com oJosé Casco, faltando-lhe com a palavradada, e depois, voltando à livraria, en-cerradas as suas negociações com o Pe-reira, torna a pensar no trecho com queconcluíra o primeiro capítulo da novelahistórica:

� Ah! Como ali gritava a alma inteira dovelho português, no seu amor religioso dapalavra e da honra!

Vê-se, desse modo, como entre asduas ficções narrativas � a da história e ado senhor rural decadente � é construídauma continuidade em que se a primeirafornece os paradigmas de ordem moral,pelos quais anseia se perfilar o próprionarrador, a segunda força um desvio de-gradado que arrasta o Fidalgo da Torrepara a condição miserável de fraco de-pendente das parcas rendas territoriais.A palavra e a honra, a honra da palavra,exacerbadas na caracterização heróica deTructesindo Ramires, acentuam a peque-nez da existência experimentada porGonçalo no buraco rural.

Mas, deve-se assinalar, todas estasanotações de comicidade só ganham sen-tido se referidas à simultaneidade dodiscurso heróico que imediatamente asprecede. Ou, dizendo de modo diferente,é somente na passagem entre um e outrodiscurso, no rápido intervalo que a es-crita propicia entre os dois, que o leitor

As homenagens ao centenário de morte de Eça de Queirós incluem lançamentos de livros, um colóquio em Belo Horizonte e uma exposição em São Paulo. A editoraNova Aguilar (tel. 21/537-7189) acaba de publicar os dois últimos volumes da Obra completa do escritor português, organizados pela professora Beatriz Berrini,da PUC-SP. O volume 3 (2.110 págs., R$ 190,00) contém os textos jornalísticos que Eça escreveu para periódicos como A Actualidade, Gazeta de Portugal, Revistade Portugal e Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. O volume inclui também perfis, prefácios, colaborações avulsas e textos publicados postumamente, como notasde viagem, artigos e relatórios consulares. O volume 4 (980 págs., R$ 110,00) contém a correspondência de Eça – parte dela inédita. Os volumes 1 e 2, que reúnema ficção completa do autor, foram lançados em 1997 e são vendidos juntos por R$ 244,00.A editora Hedra (tel. 11/3097-8304) lançou um estojo (que custa R$ 38,00) contendo duas das obras póstumas de Eça: A cidade e as serras e A ilustre casa deRamires. Esse último livro, aliás, é tema de uma coletânea de ensaios críticos recém-editada pela Educ (veja quadro na pág. 47). Outros destaques do centenário sãoo livro Quando tínhamos verbos – Frases e citações de Eça de Queiroz, organizado por Marcello Rollemberg para a editora Record (tel. 21/585-2000) e o volumePáginas flutuantes, da professora Elza Miné (veja matéria nas páginas 54 a 57).O livro de Elza Miné será lançado em Belo Horizonte no dia 25 de outubro, às 17h30, durante o colóquio “Os Centenários: Eça de Queirós, António Nobre eGilberto Freyre”, promovido pelo Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da UFMG (Av. Antonio Carlos, 6.627, Pampulha, Belo Horizonte). Ocolóquio – que homenageia os centenários de morte dos dois escritores portugueses e os cem anos de nascimento de Gilberto Freyre – acontece entre 23 e 27 deoutubro (informações pelo tel. 31/499-5134 ou pelo fax 499-5120). O lançamento de Páginas flutuantes será realizado no auditório da faculdade.Outro importante evento comemorativo é a exposição “Eça de Queirós: A Escrita do Mundo”, que terá lugar a partir de 6 de novembro na Galeria Marta Traba,do Memorial da América Latina (Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664, São Paulo, tel. 11/3823-9843 ou 3823-9866). A exposição é organizada pela BibliotecaNacional de Lisboa e traz retratos, fotografias, manuscritos e primeiras edições de Eça de Queirós.

Lançamentos e eventos do centenárioLançamentos e eventos do centenário

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Vista deSintra

tem acrescentados planos de significadoimportantes para a compreensão da nar-rativa, quer a heróica da novela histórica,quer a realista da existência rural e deca-dente de Gonçalo Mendes Ramires.

Esse traço, por assim dizer, estilísticoou, se se quiser, retórico, é, como tal, a meuver, a marca maior da elaboração deste ro-mance de Eça de Queirós, capaz de rea-lizar a admirável articulação entre aquelesdois Eças de uma certa leitura de extraçãobiográfica, como já se viu.

Nesse sentido, embora seja possível aleitura d'A Torre de D. Ramires como textoautônomo (leia-se o pequeno e curiosovolume A Torre de D. Ramires, desen-tranhado d'A ilustre casa de Ramires pelaLacerda Editores), testemunho da ha-bilidade do escritor na imitação da novelahistórica de substrato romântico, poronde, por meio da paródia, lê-se tambéma crítica daquela linguagem (traço, aliás,recorrente em toda a ficção de Eça deQueirós), a existência da própria novelasó ganha sentido e a sua maior justificativanas articulações discursivas com oromance rural que a ela dá continuidadee dela extrai os elementos essenciais paraaquela crítica.

Isso porque, se é, sobretudo, nas des-crições que o escritor dá vazão ao apren-dizado que representara a leitura ad hocde toda uma bibliografia de ordemfilológica e histórica (a editora HelenaCidade Moura chega a referir uma cartaao conde de Arnoso em que pede o envio, paraParis, do Portugaliae MonumentaHistorica para fundamentar as suasantiqualhas ramíricas), é na elaboração de

personagens e tramas, isto é, na própriaestrutura narrativa, que ele vai instau-rando, para o leitor atento, aquelas ar-ticulações.

Assim, por exemplo, em quase todas asanotações acerca do protagonista as razõesde ordem psicológica que sustentariam asmotivações pessoais são sempre acompa-nhadas, antecipadas ou sucedidas, por al-gum elemento extraído da faina a que, du-rante quatro meses, de junho a setembro, seentregara na reconstrução de um episódiocolhido dentre as nobres aventuras de seusantepassados.

É o caso, de repercussões simbólicasfundamentais na construção do livro, dapresença da África. Embora a primeirareferência ao continente africano surja jáno segundo capítulo, quando o Fidalgo eos amigos conversaram sobre essa venda deLourenço Marques aos Ingleses, preparadasorrateiramente (�) pelo Governo do S.Fulgêncio, onde há uma evidente alusãoao famoso �Ultimatum�, de que o pró-prio Eça de Queirós faz a crítica em textoda Revista de Portugal, ou quando Gonçaloadormece, no mesmo capítulo, sob o levesonho de estar dormindo sobre as relvasprofundas de um prado de África, debaixo decoqueiros sussurrantes, entre o apimentadoaroma de radiosas flores, que brotavamatravés de pedregulhos de ouro, ou mesmono capítulo IV, quando, em resposta àirmã, o Fidalgo se declara com idéias de irpara a África, influenciado, como elemesmo declara, pela leitura do romanceKing Salomon's Mines, de Rider Haggard,que o próprio Eça de Queirós traduzirae publicara na Revista de Portugal, o

momento mais decisivo de antecipaçãoocorre no capítulo X, exatamente em se-guida ao pesadelo com os antepassadosde que padece o Fidalgo da Torre, depoisde uma noite de excessivas doses deconhaque.

Ali, mesmo em sonho, ressalta o sentidopara a desigualdade que sente entre a suaprópria imagem e aquela de seus antepas-sados. É o que se pode ler no seguinte trechodo capítulo X:

Como sombras levadas num vento trans-cendente, todos os avós formidáveisperpassavam � e arrebatadamente lhe esten-diam as suas armas, rijas e provadas armas,todas, através de toda a história, enobrecidasnas arrancadas contra a moirama, nostrabalhados cercos de castelos e vilas, nasbatalhas formosas com o castelhano soberbo...Era, em torno do leito, um heróico reluzir eretinir de ferros. E todos soberbamentegritavam: �Oh neto, toma as nossas armas evence a sorte inimiga!��. Mas Gonçalo,espalhando os olhos tristes pelas sombrasondeantes, volveu: �Oh Avós, de que meservem as vossas armas � se me falta a vossaalma?��

Não é senão depois de ter passado poresta experiência onírica de insatisfaçãoconsigo mesmo, cuja conseqüência é tam-bém a mais completa e melancólica insa-tisfação com a sua imagem cotidiana, queGonçalo revela, em conversa com o Bento,o seu desejo de aventuras e fuga da rotina,por onde, de fato, antecipa a sua reso-lução, que vai ocorrer ao final do capítuloseguinte, de ir para a África. Não sem, nofim do diálogo, retomar as imagens guer-reiras dos antepassados, impressas no

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sonho, ao pedir a Bento um certo chicoteque pertencera a seu pai e com o qual, emseguida, há de enfrentar com ferocidadevitoriosa o façanhudo Ernesto de Na-cejas, o que também é antecipado.

Desse modo, para o leitor, o encontrocom Ernesto Nacejas e a violência de queGonçalo se revela capaz, assim como a suafinal escapada para a África, tudo estáencapsulado nas imagens de insatisfaçãopessoal que o pesadelo com os antepassadosacentuara na personalidade do Fidalgo.

E esta articulação entre os elementos datrama do romance e a imaginação sobrecar-regada pelo trabalho com a novela histórica,que o leitor percebe pela releitura da passa-gem entre uma e outra, ainda melhor seconfigura por aquela espécie de euforia deque é tomado o Fidalgo quando se sentetrilhando os mesmos caminhos heróicos dosantepassados.

Na verdade, ao voltar para a quinta,depois de ter derrotado os malfeitores deestrada, prenunciados no diálogo com oBento, o seu galopar parece assumir asdimensões de uma conquista cavalheiresca,retomando, agora não como pesadelo, mascomo sonho benfazejo, os termos dassombras de seus antepassados que tanto oestremunharam. É como se se resolvesse, afavor do Fidalgo, a assimetria entre os doisdiscursos narrativos que já se acentuoucomo básica na obra. Está no texto:

E ia levado, galopando numa alegria tãofumegante, que o lançava em sonho e devaneio.Era como a sensação sublime de galopar pelasalturas, num corcel de lenda, crescido magnifi-camente, roçando as nuvens lustrosas� E porbaixo, nas cidades, os homens reconheciam

nele um verdadeiro Ramires, dos antigos naHistória, dos que derrubavam torres, dos quemudavam a configuração dos reinos � eerguiam esse maravilhado murmúrio que é osulco dos fortes passando! (�) E galopava,galopava apertando furiosamente o cabo dochicote, como para investidas mais belas.Para além dos Bravais, mais galopou, aoavistar a Torre. E singularmente lhe pareceu,de repente, que a sua Torre era agora mais suae que uma afinidade nova, fundada em glóriae força, o tornava mais senhor da sua Torre!

Aquela caduca, inútil Torre, de trechojá citado anteriormente, é transformadaem mais sua e a afirmação de poder, que avitória sobre os malfeitores confirmara,explicita um movimento fundamental napsicologia do personagem e na trama doromance.

Entre o ilustre do título da obra de Eçade Queirós e a torre do título da novela deGonçalo Mendes Ramires estabelece-sea grande reciprocidade que é procuradapor entre as assimetrias: a casa só é ilustreuma vez possuída a torre, mas esta possesó é possível se houver um instante (daí aexpressão de repente, de que faz uso oFidalgo, para caracterizar a singularidadedo sentimento) em que as desigualdadesentre o senhor rural decadente e os ante-passados gloriosos forem rasuradas peloimaginário heróico.

Nesse caso, possuir a Torre, sentir aTorre como mais sua indicaria a capacidadefinal do escritor de erguer e perpetuar a suaobra, isto é, não apenas aquela através daqual o Fidalgo busca inscrever a sua estirpe,mas a da ilustre casa dela dependente, obrapossível de Eça de Queirós.

obra discute a ilustre casa de ramiresO texto de João Alexandre Barbosa que publicamos neste dossiê é uma versão resumida doensaio “Variações sobre A ilustre casa de Ramires”, publicado no volume A ilustre casa deRamires – Cem anos, que acaba de ser lançado pela Educ. O livro é organizado por BeatrizBerrini e traz ainda ensaios de Alberto da Costa e Silva, Antonio Candido, Cecília AlmeidaSalles, Dino Preti, João Roberto Maia da Cruz, Jorge Fernandes da Silveira, Laura CavalcantePadilha, Paulo Franchetti e Vilma Arêas. Informações na Educ (r. Ministro Godói, 1.213,São Paulo, Cep 05015-001, tel. 11/3873-3359, 3672-6003, e-mail: [email protected]).

obra discute a ilustre casa de ramires

Um dos traços mais cativantes da obraé precisamente o modo pelo qual oromancista vai semeando elementos que,entre o seu romance e a novela históricade seu personagem, criam momentos depercepção de decadência da velha Torre,no espaço ficcional do romance rural, quese contrapõem, sobretudo pela retóricade abundância filológica e histórica, àinteireza sobranceira, guerreira e míticados espaços ocupados por TructesindoRamires e seus fidalgos na novela deGonçalo Mendes Ramires.

E uma vez completa e publicada aobra pela qual Gonçalo erguera a Torrepor entre os destroços de suas variadas econtraditórias fontes bibliográficas, des-de o plágio do poemeto do tio Duarte edas líricas do Videirinha em seu famosoFado dos Ramires até Alexandre Herculano,Rebelo, Walter Scott, volumes genealó-gicos e revistas históricas, o protagonistasome do romance de Eça de Queirós e,num lance de evidente alusão sebastia-nista, passa a existir na memória míticados amigos e nas citações de João Gou-veia, de Videirinha e do padre Soeiro.

Na verdade, entre a obra de GonçaloMendes Ramires e a de Eça de Queirós,a articulação é operada por aquele ele-mento mais ou menos indefinível e quenão é outra coisa senão a própria hu-manidade do personagem em sua tradu-ção portuguesa e contemporânea.

Uma espécie singular e rara de auto-biografia ficcional na qual a profusão depequenos detalhes descritivos e narrativosconvergem para uma espantosa e quaseimpossível unidade de conjunto.

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eça emachado:críticas deultramar

O primo Basílio foi talvez o maiorsucesso de público de Eça de Queirós.Quando foi lançado, em 1878, três milexemplares se esgotaram rapidamente, oque levou os editores a procederem auma segunda edição ainda no mesmo ano.Foi o êxito de O primo Basílio que gerouinteresse pelo outro romance de Eça, Ocrime do padre Amaro, que tinha sido pu-blicado pela primeira vez em livro em 1876,com uma tiragem de apenas 800 exem-plares. Na esteira de O primo, O crime foirelançado em 1880, com várias alterações,e só então encontrou maior receptividade.

A crítica, entretanto, não compartilhou,de modo geral, o entusiasmo do público,sendo a tônica das acolhidas negativas aimoralidade da trama e do texto. Tanto emPortugal quanto no Brasil, a nova lingua-gem romanesca era qualificada indistin-tamente com um dos dois adjetivos que,por algum tempo, foram equivalentes:realista e imoral. E de tal forma Eça deQueirós ficou identificado como repre-sentante do �realismo�, que HenriqueCorreia Moreira, diretor do periódicocatólico O Cruzeiro, escrevia, para desa-conselhar um poema que julgava marcadopelo estilo da escola, que era �sórdido comouma página de Eça de Queirós�.

Entre todas as reações críticas nega-tivas, há uma que merece especial atenção.Trata-se de um texto publicado em duas

partes em O Cruzeiro, em abril de 1878, eassinado por um certo �Eleazar�. Sob essesugestivo pseudônimo bíblico (Eleazar foio mártir judeu que preferiu a morte àingestão de alimentos impuros) estava umescritor que em alguns anos seria o maiorromancista da literatura brasileira, mas quena época era apenas o autor de uns tantoscontos notáveis e o escritor que publicavaem folhetins, no mesmo jornal, um romanceromântico intitulado Iaiá Garcia: Macha-do de Assis.

Esse texto de Machado até hojeorienta a apreciação crítica de O primoBasílio no Brasil, sendo citado pratica-mente toda vez que se analisa o romancede Eça. Vale a pena, portanto, descreveras linhas gerais de sua articulação, paratentar entender por que essas formu-lações de 1878 foram, na historiografiabrasileira, tomadas como verdades evi-dentes, definitivas e de ordem exclusiva-mente estética.

O artigo de Machado se organiza demodo a apontar os defeitos de O primo Basílioa partir de dois ângulos principais. Por umlado, vê nessa obra a realização de umatendência literária que não merece a suaaprovação: o �realismo� de Zola. Ou, comodiríamos hoje, o Naturalismo. Por outrolado, considera que o livro tem defeitos deconcepção e de realização, seja no modo deconstruir as personagens, seja na forma de

compor a trama, seja ainda na maneira deconduzir a narração.

Vejamos a progressão dos argumentos.Machado começa por atribuir o grande

sucesso do livro a dois fatores. Por um lado,afirma que é uma questão de moda: O primoBasílio era a tradução, para o português, doreceituário naturalista, que já fazia sucessona França. Por outro lado, postula o rebai-xamento do gosto contemporâneo, que seriaatendido pela literatura grosseira doNaturalismo.

Em seguida, passa à análise da formageral de organização do romance, e seuobjetivo é claro: pretende reforçar a ex-plicação inicial pela demonstração de quenão há razões internas que justifiquem osucesso incontornável do romance.

Neste momento, seu raciocínio se apli-ca primeiramente à forma de constituiçãodo enredo e das personagens:

�Vejamos o que é o Primo Basílio ecomecemos por uma palavra que há nele.Um dos personagens, Sebastião, conta aoutro o caso de Basílio, que, tendo namo-rado Luísa em solteira, estivera para casarcom ela; mas falindo o pai, veio para oBrasil, donde escreveu desfazendo o casa-mento. � Mas é a Eugênia Grandet! ex-clama o outro. O Sr. Eça de Queirós incum-biu-se de nos dar o fio da sua concepção.Disse talvez consigo: � Balzac separa osdois primos, depois de um beijo (aliás, o

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mais casto dos beijos). Carlos vai para aAmérica; a outra fica, e fica solteira. Se acasássemos com outro, qual seria o resultadodo encontro dos dois na Europa? � Se talfoi a reflexão do autor, devo dizer, desde já,que de nenhum modo plagiou as perso-nagens de Balzac. A Eugênia deste, a pro-vinciana singela e boa, cujo corpo, aliásrobusto, encerra uma alma apaixonada esublime, nada tem com a Luísa do Sr. Eçade Queirós. Na Eugênia, há uma personali-dade acentuada, uma figura moral, que porisso mesmo nos interessa e prende; a Luísa� força é dizê-lo � a Luísa é um caráternegativo, e no meio da ação ideada peloautor, é antes um títere do que uma pessoamoral. Repito, é um títere; não quero dizerque não tenha nervos e músculos; não temmesmo outra coisa; não lhe peçam paixõesnem remorsos; menos ainda consciência.�

Em outro momento, a insinuação deplágio, de falta de originalidade, repetidaao longo do ensaio e dirigida também aO crime do padre Amaro, teve maior im-portância e parece ter calado fundo em Eça,que, quando revisou O crime, alterou jus-tamente algumas passagens apontadas porMachado. A leitura brasileira moderna doensaio de Machado se tem centrado nestapassagem, que já foi reproduzida vezes semconta, por outra razão: porque a entendecomo exemplo de crítica realista a umaperspectiva naturalista.

Esse é de fato o ponto central dafortuna crítica do texto e o que maisinteressa discutir. Mas não há como fazê-lo sem identificar o lugar de onde falaMachado e o desenho geral da sua crítica.Vai quase sem dizer que esse lugar é o deum escritor empenhado na criação de umatradição cultural no Brasil e que, por issomesmo, lia o texto de Eça de uma perspec-tiva muito interessada. Ou que Machadocombate, em O primo Basílio, não apenasuma específica realização literária, mastambém, tendo em mente o sucesso depúblico do livro de Eça, a possível in-fluência do estilo naturalista sobre a jo-vem literatura brasileira. Mais impor-tante é notar que quem escreve esse ensaionão é ainda o autor de Dom Casmurro ouQuincas Borba, e que a crítica se processaa partir de uma concepção de romanceque o próprio Machado, na época, ten-tava pôr em prática no seu Iaiá Garcia eque é, de fato, oposta à que ele identificano texto de Eça.

É o autor de Iaiá Garcia, empenhadona consolidação do romance no Brasil,quem vai expressar o desejo de que embreve se elimine o hiato causado pela modanaturalista, que ele mesmo, com esse texto,se esforça por combater: �A arte pura,apropriando-se do que ele contiver apro-veitável (porque o há, quando se não des-penha no excessivo, no tedioso, no obsceno,

e até no ridículo), a arte pura (...) voltará abeber aquelas águas sadias d'O Monge deCister, d'O Arco de Sant'Ana e d'O Guarani.�Nessa frase, revela-se uma conjunção desentidos que percorre todo esse texto deMachado e procede dos pressupostos queainda eram os seus: há uma arte pura euma arte impura; deve-se recusar a águapoluída do romance naturalista e buscaras águas sadias de Garrett, Herculano eAlencar; substituir a sensualidade de Luísapelo beijo castíssimo de Eugênia Grandet;abandonar �a obscenidade sistemática doRealismo� em favor da �herança deGarrett�.

Nessas considerações, há uma formamuito específica de conceber o decoro lite-rário. Uma forma censória e � por quenão dizê-lo? � moralista. De fato, Macha-do condena explicitamente no romancenaturalista �essa pintura, esse aroma dealcova, essa descrição minuciosa, quasetécnica, das relações adúlteras�. E quandopassa ao que julga �o mais grave�, �ogravíssimo� defeito do livro, localiza-o emgrande parte no que denomina erotismo�onissexual e onímodo�. Disso decorre seualerta contra o perigo da leitura do textode Eça, ao qual atribui grande capacidadesedutora e corruptora: �A castidade inad-vertida que ler o livro chegará à últimapágina, sem fechá-lo, e tornará atrás parareler outras�.

A leitura moralista que Machado de Assisfez de O primo Basílio revela o empenho

do escritor na criação de uma tradiçãocultural que, para se inscrever na

linhagem de Garrett, Herculano eAlencar, deveria repudiar a influência do

estilo naturalista de Eça de Queirós sobrea jovem literatura brasileira

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A condenação do erotismo, aliás, vempara primeiro plano em vários momentosnesse texto de 1878. Para ficar com umsó exemplo, eis o que Eleazar responde,no segundo artigo que escreveu, àquelesque defendem o erotismo lembrando oexemplo do Cântico dos cânticos: �Ourecebeis o livro, como deve fazer umcatólico, isto é, em seu sentido místico esuperior, e em tal caso não podeis chamar-lhe erótico; ou só o recebeis no sentidoliterário, e então nem é poesia, nem é deSalomão; é drama e de autor anônimo.�

Por tudo isso, é preciso praticar umaviolência contra o texto ou fazer umagrande pirueta argumentativa se se quiseresconder ou minimizar o que é óbvio: queMachado demonstra grande preocupaçãocom o que julga uma excessiva erotizaçãodo enredo e da linguagem no livro de Eça,e com o conseqüente poder de corrupçãodo romance naturalista, contra o qualadverte as suas leitoras de O Cruzeiro.

É certo, porém, que Machado não serestringe apenas ao julgamento explicita-mente moral. Seu objetivo maior é questio-nar o resultado estético da concepção na-turalista do romance e demonstrar a suaimperfeição artística. O caminho que es-colhe é o de fazer uma síntese do enredo deO primo Basílio, para, a partir dela, apontaros defeitos narrativos decorrentes dos pres-supostos da escola. Eis o seu resumo daprimeira parte do livro:

�Casada com Jorge, faz este uma viagemao Alentejo, ficando ela [Luísa] sozinhaem Lisboa; apareceu-lhe o primo Basílio,que a amou em solteira. Ela já não o ama;quando leu a notícia da chegada dele, dozedias antes, ficou muito �admirada�; depoisfoi cuidar dos coletes do marido. Agora,

que o vê, começa por ficar nervosa; ele lhefala das viagens, do patriarca de Jerusalém,do papa, das luvas de oito botões, de umrosário e dos namoros de outro tempo; diz-lhe que estimara ter vindo justamente naocasião de o marido estar ausente. Era umainjúria: Luísa fez-se escarlate; mas à des-pedida dá-lhe a mão a beijar, dá-lhe até aentender que o espera no dia seguinte. Elesai; Luísa sente-se �afogueada, cansada�, vaidespir-se diante de um espelho, �olhando-se muito, gostando de se ver branca�. A tardee a noite gasta-as a pensar ora no primo, orano marido. Tal é o intróito de uma queda,que nenhuma razão moral explica, nenhu-ma paixão, sublime ou subalterna, nenhumamor, nenhum despeito, nenhuma perver-são sequer. Luísa resvala no lodo, sem vonta-de, sem repulsa, sem consciência; Basílionão faz mais do que empuxá-la, como ma-téria inerte, que é. Uma vez rolada ao erro,como nenhuma flama espiritual a alenta,não acha ali a saciedade das grandes paixõescriminosas: rebolca-se simplesmente. As-sim, essa ligação de algumas semanas, queé o fato inicial e essencial da ação, não passade um incidente erótico, sem relevo, repug-nante, vulgar. Que tem o leitor do livro comessas duas criaturas sem ocupação nemsentimento? Positivamente nada.�

Como se pode perceber, o que in-comoda Machado é, principalmente, afalta de motivação psicológica para aaventura adulterina da protagonista. Ofoco do seu olhar não está agora centradona tal �descrição minuciosa, quase técnica,das relações adúlteras�, mas na ausência demotivos para o adultério, na sua gratuidadesensual. Não encontrando no nível danarrativa nada que justifique a transgressãodos limites morais, identifica aí uma falha

estética, pois a personagem lhe parece umaconstrução abstrata da vontade do autor,empenhado em demonstrar uma tese ou,pior, já que não reconhece uma tese no livrode Eça, em fazer literatura de sensação. Éjá uma acusação dura, mas, do ponto de vistade Machado, ainda não aponta para o queseria a falha maior do texto de Eça. Para oescritor brasileiro, o problema estrutural,correlato deste, mas ainda mais grave, residena própria construção e no desenvolvimentoda trama romanesca:

�E aqui chegamos ao defeito capital daconcepção do Sr. Eça de Queirós. A situa-ção tende a acabar, porque o marido estáprestes a voltar do Alentejo, e Basílio já co-meça a enfastiar-se, e, já por isso, já porqueo instiga um companheiro seu, não tardaráa trasladar-se a Paris. Interveio, neste ponto,uma criada. Juliana, o caráter mais com-pleto e verdadeiro do livro; Juliana está en-fadada de servir; espreita um meio de enri-quecer depressa; logra apoderar-se de qua-tro cartas; é o triunfo, é a opulência. Umdia em que a ama lhe ralha com aspereza,Juliana denuncia as armas que possui. Luísaresolve fugir com o primo; prepara um sacode viagem, mete dentro alguns objetos, entreeles um retrato do marido. Ignoro intei-ramente a razão fisiológica ou psicológicadesta precaução de ternura conjugal: devehaver alguma; em todo o caso, não éaparente. Não se efetua a fuga, porque oprimo rejeita essa complicação; limita-se aoferecer o dinheiro para reaver as cartas �dinheiro que a prima recusa �, despede-see retira-se de Lisboa. Daí em diante o cordelque move a alma inerte de Luísa passa dasmãos de Basílio para as da criada. Juliana,com a ameaça nas mãos, obtém de Luísatudo, que lhe dê roupa, que lhe troque a

Caricatura de Eça por FranciscoValença e charge do escritor moendoo idealismo a golpes de realismo,tendo no bolso uma edição deAs Farpas

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alcova, que lha forre de palhinha, que adispense de trabalhar. Faz mais: obriga-a avarrer, a engomar, a desempenhar outrosmisteres imundos. Um dia Luísa não secontém; confia tudo a um amigo de casa,que ameaça a criada com a polícia e a prisão,e obtém assim as fatais letras. Julianasucumbe a um aneurisma; Luísa, que jápadecia com a longa ameaça e perpétuahumilhação, expira alguns dias depois.�

Exceto por um pormenor no desenlace� Machado omite a carta de Basílio querevela o adultério ao marido de Luísa �, oresumo é muito fiel ao enredo.

O que aí parece mais aberrante ao ro-mancista brasileiro é a substituição dasdeterminações morais ou psicológicas pordeterminações externas à personagem, comomaneira de dar continuidade à narrativa.Segundo Machado, da mesma forma queLuísa é arrastada para o adultério semqualquer empenho efetivo ou envolvimentoamoroso, assim também ela poderia depoisvoltar à vida normal com o marido, semquaisquer conflitos de consciência; o que aimpede é apenas a intervenção da empre-gada, e o seu sofrimento nada tem de interes-sante, pois não decorre intimamente nemdo adultério, em si mesmo considerado,nem da paixão amorosa, inexistente no caso.

Acreditando que o interesse de umaobra ficcional resida principalmente naanálise das personagens e na consideraçãodos motivos de suas ações (�para queLuísa me atraia e me prenda, é precisoque as tribulações que a afligem venhamdela mesma�), Machado vai considerarque esse romance de Eça apresenta, no quediz respeito à estruturação da narrativa,uma incongruência de concepção, umdefeito de ordem estética, que busca iden-

tificar com esta formulação curiosa: �Su-ponhamos que tais cartas não eram desco-bertas, ou que Juliana não tinha a malíciade as procurar, ou enfim que não havia se-melhante fâmula em casa, nem outra damesma índole. Estava acabado o romance,porque o primo enfastiado seguiria paraa França, e Jorge regressaria do Alentejo;os dois esposos voltavam à vida anterior.�

A especulação sobre desenvolvimentosalternativos da narrativa traz para primeiroplano da discussão uma questão de�princípios�. Com ela, não se busca discu-tir a coerência interna da ação na situaçãoapresentada no romance, mas sim a suaconcepção geral, a propriedade das esco-lhas do autor e a conveniência do conjunto.Suponhamos que Luciano não encontrasseVautrin, suponhamos que Quincas Borbaentre um romance e outro não recebessesubitamente uma herança, ou que Rubiãonão endoidecesse, ou que Escobar não ti-vesse morrido afogado etc. Não haveriaromances, tampouco. Foi o que, na época,lhe objetaram, e Machado, na seqüência,tratou de esclarecer o seu ponto, afirmandoque não negava a possibilidade de o rumoda ação dramática ser determinado poracidentes, mas apenas a propriedade de eladepender exclusivamente de um acidente, enão da conformação do caráter das per-sonagens envolvidas. Nesse caso, a questãode Machado é mais exatamente esta: se nãohouvesse as cartas, a caracterização daspersonagens permite imaginar que Luísa eJorge poderiam retomar a vida normal. Oque é o mesmo que dizer que o romance éapenas a narração de uma aventura sensuale inconseqüente, sem qualquer outro mo-tivo ou objetivo que não o comprazimentona própria sensualidade.

A crítica de Machado, portanto, não sedirige, em última instância, à implau-sibilidade da situação. Não é um reparo àfalta de verossimilhança do romance. É,sim, uma reiteração da crítica ao seu imo-ralismo, agora identificado na falta de mo-tivação interna da personagem principal ena falta de ligação ou determinação psico-lógica ou social entre os dois momentos, odo delito e o da punição. Não havendo, econsistindo toda a primeira parte do ro-mance na descrição do processo de sedu-ção e do conseqüente adultério de Luísa,Machado vai concluir pela ausência, notexto de Eça, de um real propósito deedificação moral, bem como de ensina-mento de qualquer espécie. O que esse ro-mance nos ensina, diz ironicamente Ma-chado, é que se queremos ser adúlterostemos de escolher bem os criados.

Esses são os reparos maiores que Ma-chado faz à estrutura e ao desenho geral daintriga e das personagens. Mas há outros,que interpelam a própria forma de apresen-tação da matéria narrada. Trata-se do que oromancista brasileiro identifica como umolhar descritivo, exterior, que apenas repete,no nível da construção e sucessão das cenas,o defeito central do livro, que é a falta dedistinção entre o que seria acessório e o queseria essencial. Eis a passagem:

�Quanto à preocupação constante doacessório, bastará citar as confidências deSebastião a Julião, feitas casualmente àporta e dentro de uma confeitaria, paratermos ocasião de ver reproduzidos omostrador e as suas pirâmides de doces, osbancos, as mesas, um sujeito que lê um jornale cospe a miúdo, o choque das bolas debilhar, uma rixa interior, e outro sujeito quesai a vociferar contra o parceiro; bastará

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Eça e sua mulherEmília em Neully

citar o longo jantar do conselheiro Acácio(transcrição do personagem de HenriMonier); finalmente, o capítulo do teatrode S. Carlos, quase no fim do livro. Quandotodo o interesse se concentra em casa deLuísa, onde Sebastião trata de reaver ascartas subtraídas pela criada, descreve-noso autor uma noite inteira de espetáculos, aplatéia, os camarotes, a cena, uma altercaçãode espectadores.�

A crítica se dirige essencialmente aomesmo ponto: trata-se ainda da condenaçãoda sensualidade queirosiana. O que esta pas-sagem acentua especificamente é agora aidentificação entre a sensualidade e a super-ficialidade, aquilo que Machado vai iden-tificar, como �preocupação constante doacessório� e atitude de �inventário�. Para oMachado de 1878, o que conta para a quali-dade de uma narrativa parece ser o seu as-pecto dramático, a tensão criada entre perso-nagens, a relação íntima entre os gestos nar-rados e o quadro psicológico que eles com-põem e que os explica. A descrição e a apre-sentação sensual só podem ter aí pertinênciaà medida que estejam diretamente subor-dinadas ao núcleo dramático, a serviço dele.Ora, no texto de Eça predomina um outrotipo de linguagem, de orientação mais épica(no sentido de mais descritiva), em que omundo narrado é iluminado sob váriosângulos e apresentado ao leitor como sendocomposto de objetos interessantes em simesmos.

As três cenas condenadas por Machado(o jantar de Acácio, a conversa na confeitariae o Fausto no Teatro S. Carlos) são, na ver-dade, primorosas. A da confeitaria, que seencontra no final do capítulo IV, precisa sermelhor descrita: Sebastião e Julião conver-sam sobre as murmurações da vizinhança

sobre as visitas de Basílio, e no meio de seudiálogo vai-se intercalando uma cena vul-gar passada entre os fregueses da loja. Mas,diferentemente da cena da feira agrícola deMadame Bovary, em que também há inter-calação de dois níveis discursivos, aqui nãohá grande oposição ou contraste entre o tomda conversa dos dois homens e o que sucededentro da confeitaria. Não se trata de doisplanos distintos de realidade emocional quese vêem confundidos momentaneamente,mas de um só plano, de modo que a confu-são das falas e a extensão da cena não só acen-tuam os aspectos mesquinhos tanto do am-biente quanto da aventura de Luísa, masainda produzem um retardamento na ação,diminuindo a tensão dramática.

Na verdade, esse é um procedimentoconstante nesse livro, em que tudo, desde otropeção de Basílio, ao atirar-se sobre Luísano clímax da sedução, até o contraste entrea pobreza reles do �Paraíso� com asfantasias ingênuas de Luísa, tudo contribuipara retirar qualquer aura romântica daaventura adúltera que é o centro da história.E é tão forte esse procedimento, ao longodo livro, que podemos mesmo dizer queem O primo Basílio o adultério é alvo deuma estratégia de neutralização passio-nal, que se realiza por meio de um esforçogeneralizado de rebaixamento e diminui-ção. Nesse sentido, essa cena tem umaclara função significativa e se insere numaestratégia textual; apenas não tem umaforte função dramática, do ponto de vistada construção ou da apresentação da tra-ma romanesca.

A descrição da cena da ópera, no finaldo livro, é também um procedimento deretardamento da ação, como bem viu Ma-chado, mas seu sentido e função diferem

sensivelmente da cena da confeitaria. Amúsica do Fausto de Gounod é uma dasreferências mais recorrentes ao longo danarrativa e Basílio é um sedutor, como oFausto da ópera, sendo uma das suas armasa bela voz com que canta para Luísa. Ora,uma das árias que ele canta no dia em queLuísa se entrega a ele pela primeira vez éjustamente a que precede a sedução deMargarida por Fausto. De modo que, aodescrever a cena do teatro, Eça faz comque Luísa repasse, tomada pela ansiedade,a memória da cena da própria sedução. Sóque, em vez de Basílio, ao seu lado estáJorge, seu marido (que também costumavacantar a mesma ária), e toda a sua preo-cupação está concentrada no lado mais mi-serável da sua própria história: a chanta-gem de Juliana e a missão que confiara aSebastião, que era a de recuperar as cartasde Basílio. A cena, portanto, tampouco éinfuncional, nem se deve ao puro gostopelo detalhe e pelo pitoresco. Sua função éconjugar, numa recollectio irônica, os moti-vos fáusticos espalhados ao longo da narra-tiva e a decepcionante história pessoal eamorosa de Luísa.

Assim, o que faz a especificidade de Oprimo Basílio é justamente a estruturação dotexto de modo a privilegiar a descrição e asucessão de cenas e episódios em detrimentoda tensão e do choque de caracteres, demodo a iluminar todas as personagens eobjetos com uma luz igual e bem distri-buída. Machado leu como defeito esse olharque recorta, sem destacá-las do fundo geral,algumas figuras medíocres. Não descobriuou pelo menos não valorizou aquilo queconstitui o princípio de coesão dessa edas subseqüentes narrativas queirosianas:a construção arquitetônica da obra como

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sucessão e modalização de alguns poucosmotivos sistematicamente explorados, sol-dados pelo ritmo de uma frase ágil e porum ponto de vista narrativo que ao mesmotempo marca seu distanciamento afetivoou ideológico em relação ao ambiente e àspersonagens e se compraz no tratamentosensual desses ambientes, objetos e perso-nagens, nivelando-os como focos inde-pendentes e dignos do mesmo tipo deatenção.

Escrito para defender uma dada concep-ção do romance e para atacar uma outra,que não partilha dos mesmos pressupostose objetivos, o ensaio de Machado não é exa-tamente um texto de avaliação crítica ani-mado pelo desejo de conhecer uma formaespecífica de funcionamento textual, masum texto de caráter combativo. No seu gêne-ro, que é a polêmica, é um texto realmenteprimoroso. O que é notável é que a sua lei-tura tenha sido feita como se fosse outracoisa, e não um julgamento crítico datado eadequado ao público e ao lugar onde foipublicado.

Em todas as narrativas concorrentessobre a evolução da literatura brasileira,Machado tem um lugar central: é o pontoda história no qual a literatura brasileiraatinge a maturidade. Nesse quadro, o en-saio de 1878 usualmente é visto como ummomento de grande importância, seja nadefinição do rumo da própria obra macha-diana, seja na definição de uma nova rela-ção da literatura brasileira com a da antigametrópole. Por tudo isso, do ponto de vistada história da cultura brasileira, esse textode Machado e a forma como ele tem sidolido originam (e depois, a cada repetição,atualiza ritualmente) toda uma tradiçãohistoriográfica e crítica importante que

cristalizou aqui a oposição entre �realis-mo� e �naturalismo� e ainda a idéia de queo modo �realista� de construção de enredose de personagens é mais verossímil (e porisso melhor) do que o modo �naturalista�.

Essa leitura talvez deva parte do seupoder de convencimento, da sua eficáciapersuasiva, ao fato de que o escopo norma-tivo do texto de Machado (especialmente asua condenação da descrição e conseqüenteafirmação de que a causalidade é o princípiocorreto de ordenação da narrativa) serárelido a partir de outro texto, escrito meioséculo depois, que teve larga fortuna nacrítica e na historiografia brasileira: Narrarou descrever (1936), de Georg Lukács.

Nesse ensaio, Lukács critica a descri-tividade e a �casualidade� da cena do co-mício em Madame Bovary em termos queé fácil aproximar dos que Machado utilizapara criticar a cena da confeitaria. As dife-renças de perspectiva são enormes: Macha-do, em 1878, faz os seus julgamentos a partirde um ponto de vista fundado na coerênciapsicológica, na adequação moral e na con-veniência social; Lukács, em 1936, a partirde pressupostos marxistas. Ou seja, o quenum caso tem um registro moralista e ro-mântico, no outro recebe uma valoraçãobasicamente política. Mas não é impossível,com algum esforço, ler uma coisa pela outra.

�A narração distingue e ordena. A des-crição nivela todas as coisas.� Essa é aconclusão de Lukács quanto ao efeito desentido das duas formas de estruturar anarrativa, e a base da sua célebre acusaçãoao romance de Flaubert e ao de Zola. OMachado de 1878 poderia subscrevê-la?Parece que sim, na medida em que con-dena várias cenas de O primo Basílio combase na necessidade de distinguir entre o

que é principal e o que é acessório. Subs-crita por Machado, porém, o sentido dafrase seria outro, porque para ele a questãoessencial não era a metáfora política doescritor �participante� ou �observador�, massim a natureza moral da matéria descrita e asua necessidade no desenrolar da narrativa.

Mas é verdade que, na recusa ao Natu-ralismo, Machado e Lukács estão de acor-do. E estão de acordo também no padrãode gosto: o último contrapõe a Flaubert,como modelo de excelência da capacidadede revelar �a vida profunda das coisas�,Daniel Defoe e Walter Scott; o primeiroprefere a Eça, como vimos, Herculano eAlencar. Uma vantagem adicional da sobre-posição desses dois textos tão diferentes édeixar em segundo plano, contingenciada,essa opção de gosto.

Essas considerações só vieram aqui àbaila porque parece que o paralelismo Lu-kács/Machado não terá tido pequeno papelna forma como foi lida e valorizada, nasúltimas três décadas no Brasil, a crítica deMachado a O primo Basílio. Isto é, vierampara configurar uma hipótese explicativapara o fato de esse ensaio tão marcado pelosconceitos de época ter sido lido e propostocomo julgamento de validade universal eatemporal. Essa hipótese é que a projeçãode um desses textos sobre o outro produzuma espécie de mínimo múltiplo comum,no qual as coincidências do prescritivismomoral com o prescritivismo político são li-das como concordância de juízos essencial-mente estéticos.

Paulo FranchettiPaulo FranchettiPaulo FranchettiPaulo FranchettiPaulo Franchettiprofessor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de

Estudos da Linguagem da Unicamp, autor de Nostalgia, exílioe melancolia – Leituras de Camilo Pessanha (Edusp, no prelo)

e da edição comentada de O Primo Basílio, de Eça deQueirós, publicada pela Ateliê Editorial

Os escritores realistasconhecidos como o Grupodos Cinco. A partir daesquerda, Eça de Queirós,Oliveira Martins, Antero deQuental, Ramalho Ortigãoe Guerra Junqueiro.

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marcello rollemberg marcello rollemberg marcello rollemberg marcello rollemberg marcello rollemberg

EEm 1867, um jovem português comnão mais do que 22 anos, recém-formadona afamada Universidade de Coimbra,resolveu arregaçar as mangas e tocar,praticamente sozinho, um jornal deprovíncia. Precisava de dinheiro e a vidada redação � que ele conhecia de umarápida passagem pela Gazeta de Lisboa �lhe pareceu a mais favorável naquelemomento, tanto pelo que poderia lhe darde sustento quanto pelos caminhosliterários que poderia abrir. Afinal, oadvogado José Maria d'Eça de Queirósnão via seu futuro nas barras de umtribunal, e sim escrito em letra de fôrma.A união de Eça com o Distrito de Évora,o pequeno e oposicionista periódico doAlentejo que acabara de assumir, foi, porassim dizer, o ponta-pé inicial de umaparceria que o romancista cultivaria com

o jornalismo praticamente por toda suavida. Até pouco antes de sua morte, emagosto de 1900, Eça enviava regularmenteartigos para jornais em Portugal e noBrasil. Essa �face jornalística� do autor deOs Maias, se ficou eclipsada pela fama desua obra ficcional, no entanto, não podenem deve ser descartada quando se jogauma lente de aumento sobre sua produçãoliterária. De várias maneiras o jornalismofoi essencial no trabalho de Eça e elemesmo se dizia, com mais modéstia do quedeveria, �a seu modo, e dum modo bemimperfeito, uma espécie de jornalista�.

Quase da mesma forma que CharlesDickens, com seus Sketches by Boz, foibuscar nas ruas londrinas a matéria-primapara seus textos jornalísticos e depois atransformou na pedra de toque de seusromances; Eça foi buscar nas reportagens

e nas crônicas o fundamento de seu estiloliterário. Um estilo que, baseado na ob-servação arguta da sociedade que ocercava e em boas doses de ironia, era decerta forma anunciado no já citadoDistrito de Évora, quando o jovem redatorfala da função dos jornais, de uma formageral, e da crônica, em particular. �Acrônica é para o jornalismo o que a cari-catura é a para a pintura: fere, rindo;despedaça, dando cambalhotas; nãorespeita nada daquilo que mais se respeita.(...) Depois, a crônica tem essa vantagemsobre o artigo de fundo: é mais lida; oartigo de fundo é apenas lido por trêssectários, por cinco caturras, por dois con-selheiros velhos. A crônica faz rir; o ar-tigo de fundo não tem essa qualidade: fazquando muito sorrir por ver bradar umhomem no deserto.�

a face real do

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g marcello

Usar da ironia ao falar de coisas sériasacabou sendo uma das principais tônicasde seus artigos, utilizando de um humorque a sociedade portuguesa não conheciamuito bem, mas que, graças ao próprioEça e seu grupo de amigos escritores,passou a apreciar. Esse grupo se autode-nominava �Os Vencidos da Vida� e nelese destacavam ainda Ramalho Ortigão eOliveira Martins. Ao expor o ridículo dedeterminadas situações tanto em Portugalquanto no exterior, o cronista Eça deQueirós estava, de fato, sutilmenteobrigando seus leitores a pensar, entre umriso e outro. É como escreveu o críticoAndré Brun em um ensaio para o Inmemoriam, a homenagem póstuma a Eçaem forma de livro editada em 1922:�Humorista não é quem faz rir: é quemfaz pensar. Note-se que digo pensar e não

sonhar. O humorismo chama os espíritosà realidade da vida sem, todavia, tertambém o amargo dos pessimistas�, disseele. �Por que o humorismo é a verdadedentro da arte da escrita, a sua forma deexpressão tem de ser clara, límpida, exata,despida dos artifícios da literatice e dospré-históricos clichês que vêm de mãoem mão há séculos e que são sempre osmesmos por mais que os disfarcem.�

Ao falar de humorismo, Brun estavafalando, também, de Eça de Queirós.Afinal, �expressão clara, límpida, exata,despida de clichês� pode ser consideradaa melhor tradução para a obra queiro-siana, seja ela ficcional ou jornalística.Nada menos clichê e mais exato do queum artigo ou uma crônica de Eça. E nadamenos chato. Eça tinha verdadeira ojeri-za às chateações literárias e estilísticas e

fugia delas com a mesma disposição coma qual analisava, por exemplo, a queda deDom Pedro II, no Brasil. �A revoluçãodo Brasil é menos uma revolução do queuma transformação � como nas mágicas.O marechal Deodoro da Fonseca dá umsinal com a espada: imediatamente, semchoque, sem ruído, como cenas pintadasque deslizam, a monarquia, o monarca, opessoal monárquico, as instituiçõesmonárquicas desaparecem � e, ante avista assombrada, surge uma república,toda completa, apetrechada, já provida debandeira, de hino, de selos de correio eda bênção do arcebispo Lacerda. Sematritos, sem confusão, essa repúblicacomeça logo a funcionar�, escreveu Eçana pele de Fradique Mendes, a personaque criou para assinar algumas de suasmais brilhantes e cáusticas crônicas.

imaginadoA obra ficcional de Eça de Queirós bebeu na fonte de reportagens e crônicas queo escritor enviava para publicações como A Actualidade e O Diário de Notícias,de Portugal, e para o jornal carioca Gazeta de Notícias

O grupo dos Vencidos daVida (Eça é o segundo a

partir da direita)

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Esse binômio brilhantismo-ironia,por sinal, foi também o que deu o tom aum de seus trabalhos jornalísticos maisconhecidos, As Farpas, que escreveu emparceria com Ramalho Ortigão. �Crô-nica mensal de política, das letras e doscostumes�, como seus autores caracte-rizavam a publicação, a revista revo-lucionou o jornalismo português doséculo XIX, inoculando em suas páginasnão mais conceitos canhestros de par-tidarismo político ou imediatismo in-formativo, mas sim uma saudável e inéditadiscussão de idéias. E, mais uma vez, seconvocava o leitor a rir: �Vamos rir, pois.O riso é um castigo, o riso é uma filo-sofia�, dizia o editorial de estréia doperiódico. E tome-se ironias e pequenassátiras ao longo dos dois anos nos quaisas farpas certeiras de Eça e Ortigão es-petaram todo mundo, de 1871 a 1872. Éimportante se notar, contudo, que Eça nãose limitava a gracejar. Em seus textos, elefaz praticamente um estudo sociológicode Portugal e sua gente, sem perder aatenção a nada que cruzasse seu caminho:políticos e pedintes, pescadores e padres,vendedores e prisioneiros, nada escapava

de seu olhar. É exatamente esse olharatento que, mais tarde, acabará servindode munição para seus trabalhos roma-nescos, tanto na fase naturalista quantona realista. Obras como O crime do padreAmaro, O primo Basílio, A relíquia, O condede Abranhos ou Os Maias beberam na fontejornalística de Eça e devem muito a ela.Apesar de a amizade entre RamalhoOrtigão e o criador do ConselheiroAcácio e de Carlos de Maia ter duradotoda uma vida, a parceria em As Farpas foicurta. Em determinado momento, aideologia de ambos começou a divergir.Enquanto Ortigão queria dar à pu-blicação uma �feição mais larga�, ten-cionando trocar o riso inicial por umcunho mais educativo, Eça pretendiamanter suas idéias intocadas. �Fiqueiaterrado: ensinar! Eu era, sou ainda, emfilosofia, um touriste facilmente cansado,em ciência um diletante de coxia... Fuiprudentemente para Havana�, relembrouele em uma carta de 1878. A �prudente�viagem para a capital de Cuba, não comojornalista, mas como diplomata decarreira, teve uma outra função à parteaquela de fugir do novo conceito didático

de As Farpas: fez de Eça de Queirós nãomais um cronista doméstico, mas umcorrespondente estrangeiro.

A partir do momento em que seupaquete sai do porto de Lisboa para levá-lo a Havana, Eça de Queirós começa aviver uma espécie de auto-exílio que vaise manter até sua morte. Com raras ex-ceções, Eça passou a viver no exterior enão voltou mais a fincar bases em Por-tugal. Se isso teve uma importante in-fluência em sua obra de ficção, não deixoutambém de colaborar para seu trabalhocomo jornalista. Primeiro, porque apátria agora era algo distante, que podiaser vista em sua totalidade e com aindamais isenção. Segundo, porque o diálogoque ele empreendeu com a imprensaestrangeira aumentou ainda mais seupoder de fogo e de argumentação. Quan-do saiu de Cuba, em 1874, Eça iniciouuma longa estada de 14 anos na Ingla-terra, a começar por Newcastle, para,posteriormente, se instalar como cônsulem Paris. Nesse período de quase trêsdécadas, o romancista e o jornalista ama-dureceram. Este último, então, tendoàs mãos seus inseparáveis The Times e

Acima, a professora Elza Miné, que lançará o livro Páginas flutuantes, sobre a obra jornalística de Eça de Queirós. À direita, Ramalho Ortigão e fac-símile de As Farpas.

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Le Figaro, passou não só a relatar compropriedade os acontecimentos europeus� principalmente da Inglaterra e daFrança � mas também enveredou por umaanálise que torna seus textos desseperíodo extremamente atuais.

Atemporais, poder-se-ia dizer. Ascrônicas e reportagens que ele enviou parapublicações como as portuguesas AActualidade e O Diário de Notícias e o jornalbrasileiro Gazeta de Notícias, com o qualcolaborou, quase ininterruptamente, de1880 a 1897, são hoje o melhor exemplodo que um correspondente estrangeirodeve fazer. Esses textos estão reunidos nosvolumes Crônicas de Londres, Cartas daInglaterra e Ecos de Paris e, de uma certaforma, podem ser vistos como uma ex-celente introdução à estilística queiro-siana � afinal, ali estão todos os in-gredientes que tornaram Eça de Queiróso maior prosador português do séculopassado e um dos maiores de todos ostempos. Seja falando da questão daIrlanda, da Guerra da Criméia ou dacanonização de Joana D'Arc, por exem-plo, ele não perde a verve nem a obje-tividade. Pode parecer óbvia a constatação

por se tratar de um texto jornalístico, masessa é uma das lições mais facilmenteesquecida por gente da imprensa pelosquatro cantos do mundo. E Eça ia além.

�Observamos ainda nesses trabalhosproduzidos como correspondente noestrangeiro que Eça de Queirós focalizao momento presente vinculando-o, in-variavelmente, ao passado e projetando-o para o futuro�, escreve a professora deLiteratura da USP Elza Miné, autora dedois importantes estudos sobre o ofíciojornalístico do autor de A tragédia da ruadas Flores. Nos anos 80, a professorapublicou em Portugal Eça de Queirósjornalista, originalmente sua tese de dou-torado, na qual analisa o período inglêsqueirosiano, mostrando como as crônicaslondrinas de Eça tiveram uma forteinfluência do jornalismo inglês da época.Agora, Elza Miné se prepara para lançarem outubro, pela Ateliê Editorial,Páginas flutuantes, um trabalho compostopor uma série de textos que esmiúçam aimportância dos artigos que Eça envioupara a Gazeta de Notícias. O volume serálançado em outubro pela Ateliê Editorial(veja quadro na pág. 45). Quando Elza

Miné fala dos vínculos com o passado e aprojeção para o futuro, deve-se entenderduas coisas: uma, que Eça seguia, de certamaneira, a idéia de que é necessário ter-seuma visão histórica dos fatos, para não seter uma visão histérica deles. Ou seja, acontextualização, em qualquer situaçãojornalística (ou mesmo literária, de for-ma mais ampla), é imprescindível. Ooutro ponto, talvez mais importante ainda,é quanto à projeção aos tempos que aindairiam vir. É justamente graças a essa,digamos, �antevisão do lance� que Eçapode ser lido hoje como se seus artigostivessem sido publicados no jornal destamanhã. Por um lado, trata-se de umgrande mérito de seu autor. Por outro, étriste ver que o mundo, passado mais deum século, não mudou tão signifi-cativamente assim em muitos aspectos.Mas isso nem importa tanto. O que valeé saber que, no centenário de sua morte,Eça de Queirós ainda tem muito, masmuito, a dizer.

Marcello RollembergMarcello RollembergMarcello RollembergMarcello RollembergMarcello Rollembergjornalista e escritor, autor de Encontros necessários (Ateliê

Editorial) e organizador de Quando tínhamos verbos – Frasese citações de Eça de Queiroz (Record)

Em homenagem ao centenário de morte de Eça de Queirós, a editoraRecord vai lançar o livro Quando tínhamos verbos, organizado por MarcelloRollemberg, que contém frases, citações e pensamentos retirados daobra do escritor português. Leia abaixo algumas passagens do livro:

“O brasileiro é o português dilatado pelo calor.”

“A Bélgica é uma edição barata da França.”

“O riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessívelà multidão. O riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo,mas à massa, ao imenso público anônimo.”

“Baudelaire é o viajante terrível que vai através do mal dacarne como, guardadas as proporções, Dante foi através domal da alma.”

“Na arte só tem importância os que criam almas, e não osque reproduzem costumes.”

“Por que era então que quase bocejavam? É que o amor éessencialmente perecível, e na hora em que nasce começa amorrer. Só os começos são bons. Há então um delírio, umentusiasmo, um bocadinho de céu. ...Seria necessário estarsempre a começar, para poder sempre sentir?”

“As relações de Portugal com suas colônias são originais. Elasnão nos dão rendimento algum, nós não lhes damos umúnico melhoramento. É a sublime luta – de abstenção.”

“Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito, Parisinventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa,que criou?– O Fado.”

“O melhor meio de dirigir os homens será talvez gritar-lhescom entusiasmo: ‘Vós sois livres!’, e depois, com um tremendoazorrague, à maneira de Xerxes, obrigá-los a marchar.”

pílulas ecianaspílulas ecianas

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NNenhum romancista estrangeiroexerceu até hoje maior influência noBrasil do que Eça de Queirós. Durantesua vida, no fastígio da carreira literária,a consagração de seu nome, como escri-tor, atingiu proporções invulgares. Nãoforam poucos os intelectuais que corre-ram a imitar-lhe o estilo, adotando seuspadrões de linguagem, o barbarismo de suaprosa, os matizes de uma arte que, tor-nando mais vivo e mais dúctil o idioma,imprimiram à literatura luso-brasileira, naépoca de superação do romantismo, umsentido de verdadeiro remoçamento.

As descobertas científicas, o progres-so da técnica, as transformações nossistemas econômicos e sociais, tudo aquiloque o século XIX desacorrentou do pas-sado, abrindo ao mundo as extensas pers-pectivas que a revolução industrial esti-mulara, na reavaliação da vida e dos con-ceitos estéticos, encontrou em Eça de Quei-rós o instrumento que iria moldar a arte àimagem das agitações do tempo.

Insurgindo-se contra o liberalismo bur-guês, não tratou de receitar panacéias, nemse aferrou à impertinência de dogmas.Como romancista social, fez o que lhe pa-recia mais lícito: denunciou a verdade, fus-tigando o arcabouço de um mundo que seretesara pelo acúmulo de erros e de vícios;inquietou-se diante das injustiças, disfar-çando suas armas de inconformado nocolorido da verve.

Artista para quem a arte devia ser ahistória do homem, não do homem subju-gado pelos preconceitos, entorpecidopelos costumes, deformado pelas institui-ções, mas � como ele próprio dizia, insub-misso � do �homem livre, colocado na

livre natureza, entre as livres paixões�,soube perceber seu papel de escritor,carreando para os romances um vastodocumentário de realidade e ironia, em facede cujas evidências se poderão recompor,no futuro, os elos mais sensíveis de umafase da história humana, sem o esque-matismo das concepções dos fatos e dosfenômenos da vida, mas como expressão doque existiu de mais essencial e típico numasociedade em desenvolvimento.

�O que queremos nós com o Rea-lismo?� � perguntou-se, já cônsul, emNewcastle. �Fazer o quadro do mundomoderno, nas feições em que ele é mau,por persistir em se educar segundo o pas-sado; queremos fazer a fotografia, ia qua-se dizer a caricatura, do velho mundo bur-guês, sentimental, devoto, católico, ex-plorador, aristocrático etc.; e apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezodo mundo moderno e democrático � pre-parar a sua ruína. Uma arte que tem essefim � ajuntou � não é uma arte à Feuilletou à Sandeau. É um auxiliar poderoso daciência, revolucionando.�

Dentro desse plano de visão, que ul-trapassava os clássicos limites do realismocrítico, a obra de Eça de Queirós representauma das melhores tradições progressistasdo século XIX, na veemência de suasdenúncias, na profunda individualização desuas personagens, através das quais revelouo artista as próprias idéias e sentimentos.

Desenvolvendo-se sob a influência davida social, sua arte não hesitou, um instante,em perseguir os desígnios a que se propusera,de soerguer, pelo contraste das reações, osvelhos hábitos da terra lusitana, fazendoressurgir dos escombros da �piolheira�

eça de queiróse o brasil

Quando jovens, Ramalho Ortigão e Eça deQueirós editavam em Lisboa a revista mensalAs Farpas. Foi lá que escreveram, com humor

e a troça peculiares à publicação, sobre aprimeira visita à Europa, em 1871, de D.

Pedro II, imperador do Brasil. Um jornal, orepublicano recifense O Seis de Março, achoupor bem reproduzir aquelas glosas para irritaros monarquistas. A polêmica se acentuaria com

a resposta indignada de Eça aos pernambucanosque �haviam roubado� seus textos. Não

bastasse isso, a pequena cidade de Goiana,reduto português, foi cenário de revoltas de rua,

em que portugueses eram espancados eameaçados e suas casas comerciais, depredadas.

Os textos de Eça não foram incluídos na suaobra completa, embora a polêmica, de

repercussão internacional, tenha durado algunsanos. Em seu livro Eça de Queiroz �

Agitador no Brasil, editado em 1959 eganhador do Prêmio Jabuti de ensaio do ano

seguinte, Paulo Cavalcanti esmiúça oacontecimento até então desconhecido

tanto no Brasil quanto em Portugal.Em 1988, em comemoração aos cem anos

de publicação de Os Maias, Paulo Cavalcantiabriu o 1º Encontro Internacional dos

Queirosianos, organizado pela Universidade doPorto, com o texto transcrito na íntegra pela

CULT e francamente baseado nas suaspesquisas para o livro mencionado.

Cavalcanti morreu aos oitenta anos, em1995, quando era presidente-fundador da

Sociedade Eça de Queirós, com sede em Recife� uma prova de que as �farpas� entre o

romancista português e os pernambucanos, maisdo que superadas, se transformaram em um

motivo de pesquisa e reverência de uma obraímpar da literatura mundial.

Claudia Cavalcanti

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o merecido renome, por que a Nação e opovo ansiavam.

Da Comédia humana, de Balzac,sempre foi costume dizer-se que valera maiscomo subsídio da vida francesa dos anos de1816 a 1848 do que todos os compêndiosdos historiadores, economistas e estatísticosprofissionais da época.

Os romances de Eça têm o mesmocunho de repositório da vida portuguesados fins do século. E o senso de realismo,com que soube forjar sua obra, pressu-punha no homem um sério conhecimentodos valores sociais.

Tomando da arte os objetivos maisrestauradores, fez de seus livros �um ins-trumento de experimentação social con-tra os produtos transitórios que se perpe-tuam além do momento que os justificou,e que � na sua opinião �, de forças sociais,passaram a ser empecilhos públicos�.

As letras portuguesas, antes de Eça,não se haviam ajustado às mudanças dotempo, contrafazendo-se, diante dos ho-mens e das coisas, na adoção de rígidosprincípios de uma falsa legalidade, quasesubserviente a tudo quanto se relacio-nasse à chamada ordem estabelecida. �Émuito bonito � proclamava Eça, comsarcasmo � falar na ordem, no respeito àpropriedade, no sentimento de obediên-cia à lei etc., mas quando milhares dehomens vêem as suas famílias sem lumena lareira, sem um pedaço de pão, os fi-lhos a morrer de miséria, e ao mesmo tem-po os patrões prósperos e fartos, com-prando propriedades, quadros, apostandonas corridas e dando bailes que custamcentos de libras, bom Deus, é difícil ir falaraos desgraçados de regras de economia

política e convencê-los de que, em virtudedos melhores autores da ciência econô-mica, eles devem continuar por algunsmeses a comer vento e aquecer-se à caldas paredes�.

Como intérprete dessa realidade, distan-ciando de sua arte os métodos anacrônicosde expressão, Eça de Queirós influiupoderosamente na literatura brasileira, nosdias em que o romantismo começava aassumir as feições de �empecilho público�.

As palavras de Alberto de Oliveira, oescritor português, traduziram muito bemo impacto dos romances de Eça sobre acultura luso-brasileira, naquela fase debuscas e esforços em favor de uma litera-tura autônoma e característica: �As nossasLetras moravam e mofavam num velhocasarão mal arejado; e, apesar de já ilu-minadas pelo gênio rebelde de Camilo,estavam sem direção. Eça de Queirósabriu-lhes janelas para o sol e o ar livre,varrendo delas, como bolor, todo o con-tato ou vestígio de Antigüidade. Esta foi asua obra demolidora e de reação, filha dascircunstâncias, filha também da moda.�1

Antes de Eça, o domínio do libera-lismo na arte, como definiu Victor Hugoo Romantismo, condicionara as letras bra-sileiras à repetição de chavões artísticosimportados, de escolas, de tendências, emque, muitas vezes, o escritor se excedia naafetação das idéias, tentando superar a faltade sentimentos pela presença de uma lin-guagem empolada. Verdade é que, a parde valiosas manifestações de autonomiacultural, em obras de conteúdo e formanacionais, o Romantismo no Brasil pos-suíra quase exclusivamente os �chorõesreais�, a que se referira Sílvio Romero.

No período de sua decadência, porém,o transbordamento, sem rumos, da criaçãoartística dera lugar a absurdas conceituaçõesde valores. Era a época dos exibicionistasda genialidade, dos demolidores, dos que,preocupados com a avalancha do novo, sedistanciavam, extravagantes e arbitrários,das bases sociais do pensamento.

O maior argumento desses �maganos�,para Sílvio Romero, era a mocidade: �Emvez de idéias, de doutrinas, de sistemas, deteorias... enrolavam-se na certidão de idadee investiam contra a gente descuidada.�2

Nesse momento, surpreendeu-nos Eçade Queirós, �o escritor de seu tempo, des-prendido de todas as superstições técnicas,exercendo livremente sobre a palpitanterealidade do mundo vivo as suas pessoaisfaculdades de analisar e de sentir�3.

Para abrir-lhe caminho às expansõese influência, encontraria ele, de pouco,uma geração enfronhada nos debatescientíficos, na crítica social, nas discus-sões de ordem filosófica � com TobiasBarreto, José Veríssimo, Sílvio, Aluízio eArtur Azevedo, Paula Ney, Celso de Ma-galhães, Araripe Júnior, Olavo Bilac,Raimundo Correia, Emílio de Menezes,Raul Pompéia, Capistrano de Abreu, Ma-chado de Assis, Eduardo Prado, JoaquimNabuco, Lafaiete Rodrigues Pereira, Gas-par Silveira Martins, Domício da Gama,Oliveira Lima, João Ribeiro, Ferreira Via-na, José de Alencar, Goulart de Andrade �polemistas, historiadores, poetas, roman-cistas, teatrólogos, parlamentares, comalguns dos quais travaria Eça, depois, ami-zade pessoal.

Sobre muitos deles sua obra se feznotada, como elemento de renovação da

Leia a seguir um ensaio do críticoliterário e historiador Paulo Cavalcantiescrito por ocasião do centenário de

publicação de Os Maias

À direita, Eça em Newcastle(1875). Na página oposta,

Paulo Cavalcanti.

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linguagem e do estilo, abrandando as as-perezas do idioma, dando plasticidade aoraciocínio, amaneirando os sentimentos,para extrair novos efeitos de expressão. Senão é fácil apontar um livro brasileiro ondeessas influências estivessem presentes, nacontextura do enredo ou nos ademanes daforma � aí estão, evidentes e contínuas,desde aquela época, as marcas de Eça deQueirós na literatura brasileira, a sua forçaextraordinária de arrancar da língua, pom-posa e enrijecida, os artifícios mais enge-nhosos; aí estão os segredos iniludíveis deseu modo peculiar de escrever, nos me-lhores romancistas brasileiros de hoje, nojornalismo de crítica, no teatro, na con-ferência, no discurso parlamentar, napoesia, nos arrazoados forenses, na sutilezado humor, no traço da anedota, no compor-tamento diante do ridículo, em toda essamúltipla e variada gama de �ecianismo�,que o tempo só faz aprimorar.

Ninguém demarcou, ainda, no estudode suas influências, a que exerceu sobre agrande massa de leitores, nas camadasintermediárias da sociedade brasileira dosfins do século, que o tomava como modelode renovação estética, seguindo-lhe os gos-tos e as preferências, retendo de memóriaas situações dos romances, o nome daspersonagens, adaptando aos tipos humanosdo momento � o político, a figura doMinistro de Estado, o sacerdote, o co-mendador, a dama dos salões de concerto� as características que Eça de Queirósanimou no povoamento de sua obra. �Ha-via quem recitasse de cor páginas inteirasdesses livros. As passagens d' Os Maias,as suas graças mais fulgurantes, as suasfiguras mais típicas, eram repetidas,

comentadas, glosadas tão excitadamentepela mocidade do Rio de Janeiro, de S.Paulo ou do Recife como pela de Lisboa,do Porto ou de Coimbra.�4

A �bomba literária e moral� que ex-plodiu na terra lusa à aparição do PrimoBasílio, ou o �escândalo branco� que en-volveu o surgimento de O crime do padreAmaro, anunciaram, de igual modo, noBrasil, os livros de Eça. É de imaginar-sea reação contrastante do leitor, afeito àssuaves narrações do romantismo � as per-sonagens, como as emoções, colocadas emseus devidos lugares, o romance a deslizar,comprimido, entre a pureza da forma e osindulgentes conflitos d' alma � e o agu-çamento instantâneo da vida, em Eça, asuscetibilidade encrespada, o ridículo es-tuante das situações, a gargalhada, oescárnio, as paixões incontidas, o tumulto,numa arte �capaz de traduzir em todos osmatizes as novas realidades que ele intima-mente se sentia chamado a exprimir�5.

Com o seu estilo, na alegre irreverênciade sua crítica, Eça de Queirós conquistouo Brasil. O riso, a princípio; depois, a gravecompreensão dos objetivos de sua arte,acutilando os homens na pieguice e noconvencionalismo.

Nas rodas boêmias dos fins do século,no Rio de janeiro, em São Paulo, noRecife, os intelectuais adotavam-no comopadrão literário. O ecianismo era moda, aembriaguez dos espíritos sequiosos dosúltimos modelos da Europa.

No Maranhão � relembra Clóvis Ra-malhete6 � um grupo de escritores deu-seao luxo de fundar a �Padaria EspiritualEça de Queirós�, à leitura de seus pri-meiros romances. E da longínqua e mo-

desta Cuiabá daqueles tempos, �na brutezada mata, entre índios e padres catequistas�7,um leitor brasileiro � �fanático admiradorvosso� � escrevia-lhe, em 1898, para ad-verti-lo de que incorrera em erro quando,n� A relíquia, à página 339, da 2ª edição,colocara sobre os montes negros de Gilead,por onde andava Teodorico, uma �lua cheia�,depois de ter dito, páginas atrás, que �a luaaparecia fina e recurvada�, numa alusão àsua fase minguante...

Não foram somente Eduardo e PauloPrado, Domício da Gama, Olavo Bilac, oBarão do Rio Branco e mais uns tantosbrasileiros, os que se ligaram ao roman-cista português pelo pensamento e pelainteligência. Martins Fontes, que jamaiso conheceu, disse de seu afeto, numa horade reminiscência: �Durante a vida toda,Eça de Queirós andou conosco, iluminan-do a nossa roda literária.�8

Alberto de Oliveira, ainda jovem, aovê-lo, certa vez, em plena cidade do Porto,na Rua das Carmelitas, teve a impressãode estar contemplando um pequeno deus.�Era ele! Alto, esguio, vestido de lutopesado, com um chapéu alto de grandecopa que ainda lhe prolongava a estatura,umas lunetas fumadas (em vez do espe-rado monóculo) velando-lhe os olhos, norosto uma palidez de marfim velho, umaharmonia acabada no seu vestuário comonas linhas e movimentos do seu corpo, eum porte ao mesmo tempo olímpico evencido, desdenhoso e resignado, irônico emelancólico, que na ocasião me fez pensarna frieza e altiva tristeza dos ciprestes.�9

O interesse pelo escritor ultrapassavaos limites da mera curiosidade artística.Aos que visitavam Portugal, indagava-se,

Carolina, mãe do escritor

C R O N O L O G I A

18451845184518451845 José Maria d’Eça de Queirós nasce em Póvoa deVarzim, Portugal, no dia 25 de novembro, filho deJosé Maria Teixeira de Queirós e de Carolina Pereirad’Eça, mas é batizado em Vila do Conde e registradocomo filho de mãe incógnita, vivendo sob cuidadosda ama brasileira Ana Leal de Barros.Vive com osavós paternos em Verdemilho.

18551855185518551855 Com a morte dos avós, vai para o Porto, ondeestuda no Colégio da Lapa.

18661866186618661866 Forma-se em direito pela Universidade de Coimbra,

onde participa do movimento realista ao lado deAntero de Quental e Teófilo Braga.

18701870187018701870 Ingressa na carreira diplomática.18711871187118711871 Publica, em parceria com Ramalho Ortigão, um

periódico de crítica social intitulado As Farpas.18721872187218721872 É nomeado cônsul em Havana, Cuba.18741874187418741874 É nomeado cônsul em Newcastle, Inglaterra.1 8 7 51 8 7 51 8 7 51 8 7 51 8 7 5 Lança O crime do Padre Amaro na Revista

Ocidental.18781878187818781878 É transferido para o consulado de Bristol. Lança o

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de pronto, ao regresso, se vira Eça, empessoa, ou a Casa Havanesa, ou o CaféMartinho...

Depois de sua morte, os lugares deLisboa referidos nos seus livros associa-vam-se-lhe ao nome e à própria memória,recordando cenas de romance, vivificandodiálogos e personagens, nas cores novasque ele emprestava ao lusitanismo.

José Veríssimo, duas décadas após tê-lovisto num sarau do Teatro Trindade, ao ladode Ramalho, não podia esquecer o seu tipo� �alto, esguio, menos magro do que ficariadepois, apuradamente vestido à inglesa, oseu monóculo fixo entre o nariz de águia eo olho bem aberto, penetrante, impondo-seà minha juvenil admiração matuta, deprovinciano brasileiro recém-chegado�10.

Durante anos a fio, o culto a Eça deQueirós far-se-ia sentir, no alento dasreedições de sua obra. O pernambucanoJosé Maria Belo, em 1945, confessava,enternecido: �Lembro-me com saudade,a saudade com que um dia repeti em Roueno itinerário de Ema Bovary, das vezes queperambulei, há vinte anos, pelo Chiado,por Belém, pelas Janelas Verdes, e refiz ocaminho de Sintra, a reviver para mim asimagens com que Eça enchera minhaadolescência...�11.

Agora mesmo, a cento e quatorze anosde seu nascimento, fundam-se no Rio, emSão Paulo, em Porto Alegre e no Recifecírculos de admiradores, com o objetivode estudar-lhe a vida e a obra, como ten-táramos fazer, juntamente com Silvino Lo-pes, em 1948, com o �Clube dos Amigosde Eça de Queirós�, que assustadiços�ecianos�, por falsos temores políticos,deixaram malograr.

De todas as cidades do Brasil, noentanto, aquela em que mais se afiguraenraizado e permanente o culto a Eça deQueirós é o Recife. Muito cedo, decoraramos pernambucanos o seu nome; como elemesmo, desde criança, aprendera o nomede Pernambuco, de mistura com asprimeiras expressões que balbuciou na vida.Nascido a 25 de Novembro de 1845, emPóvoa de Varzim, filho de pais solteiros �José Maria de Almeida Teixeira de Queirós,brasileiro de naturalidade, e Carolina Au-gusta Pereira de Eça �, foi entregue, paracriar, à costureira Ana Joaquina Leal deBarros, pernambucana de nascimento, ami-ga dos avós paternos da criança e residenteem Vila do Conde12.

É possível que a amizade entre a pobrecostureira de Vila do Conde e a famíliaTeixeira de Queirós venha a datar da épocaem que o avô de Eça, Joaquim José deQueirós e Almeida, esteve exilado noBrasil.

Ana Joaquina Leal de Barros, filha deAna Maria da Conceição e de �pai in-cógnito�13, deve ter tido relações de pa-rentesco com a família Leal de Barros, dePernambuco, cujo varão foi o comercianteportuguês Joaquim Leal de Barros,chegado ao Recife nos primeiros anos doséculo XIX. Desse Leal de Barros, queenriqueceu vendendo carne de porco aosvapores que atracavam no porto da capitalde Pernambuco, nasceu Antônio Lealde Barros, pai de Joaquim Cavalcanti Lealde Barros, professor do velho GinásioPernambucano, no Recife, de cujo con-sórcio com Maria Carmelita Lins veio àluz o Ministro João Alberto Lins deBarros.

Não se pode excluir a hipótese de AnaJoaquina ter sido filha de escrava, AnaMaria da Conceição, com o portuguêsJoaquim Leal de Barros, adotando deambos os respectivos prenomes.

Na primeira fase de sua vida no Brasil,muitos portugueses se juntavam marital-mente a negras ou mulatas que os ajuda-vam a enriquecer, desempenhando os maisduros labores do dia. Depois, endinhei-rados, contraíam casamento com mulheresbrancas, a quem lhes transmitiam o nomede família. Joaquim Leal de Barros po-deria ter mandado para Portugal o produtoespúrio de seus amores no Recife � AnaJoaquina Leal de Barros �, a que seria, nofuturo, madrinha e mãe de criação de Eçade Queirós.

Quaisquer que sejam, porém, as espe-culações a respeito das origens familiaresda costureira de Vila do Conde, o certo éque Eça aprendeu a falar português emsotaque brasileiro, ouvindo, nos quatroanos de sua convivência com Ana Joa-quina, as canções de ninar e as históriasinfantis do Nordeste brasileiro. Ninguémpode subestimar a influência exercida pelapernambucana Leal de Barros na for-mação da linguagem e do estilo de Eçade Queirós, cujos processos de expressãoliterária representaram para Portugaluma verdadeira revolução nos cânones doidioma. Algumas das características daprosa �eciana� � o apego à sonoridadedas palavras, a colocação antilusitana dospronomes, a tendência à espontaneidadedas expressões, indo até a mudançasna estrutura da língua � podem ter decor-rido dessas influências, na meninice doescritor.

Eça e o filho José Maria

romance O primo Basílio.18801880188018801880 Publica a novela O mandarim.18861886188618861886 Casa-se com Emília de Castro Pamplona.18871887188718871887 Nasce Maria, sua filha.18881888188818881888 Publica Os Maias. É nomeado cônsul em Paris.

Nasce seu filho, José Maria.19001900190019001900 Morre em Paris no dia 16 de agosto. Após sua

morte, são publicados A ilustre casa de Ramires ea Correspondência de Fradique Mendes.

19011901190119011901 Publicação póstuma de A cidade e as serras.

notasnotas1 Eça de Queirós, Páginas de memórias, p.72.2 História da literatura brasileira, 5º vol., p. 248.3 Ramalho Ortigão, in Eça de Queirós visto pelo

seus contemporâneos, p.338.4 Alberto de Oliveira, ob.cit., p 166.5 Aurélio Buarque de Holanda, “Linguagem e

estilo de Eça de Queirós” in Livro de centenáriode Eça de Queirós, p.61.

6 Eça de Queirós, p.18.7 Idem, idem.8 Dom Casmurro, jornal l iterário do Rio de

Janeiro, maio de 1945.9 Ob.cit., p.28.10 Homens e coisas estrangeiras, 1º vol., p. 347.11 Retrato de Eça de Queirós, p. 287.12 Conf. João Gaspar Simões, Eça de Queirós, o

homem e o artista.13 Idem.

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Nalêncio xavier valêncio xavier valêncio xavier valêncio xavier valêncio xavier valêncio xavier valêncio xavie

Nas remembranças dos cem anos damorte de Eça de Queirós, ninguémpensou em um fator muito importante desua literatura. É o seu lado, digamos,multimídia, em falta de um termo melhor.A narração e a dramatização dos roman-ces e contos de Eça de Queirós asse-melham-se a argumentos ou roteiros paracinema, televisão, outras formas de audio-visuais e histórias em quadrinhos. Vivessehoje, ele seria o que chamamos um es-critor multimídia e teria muito mais obrasdo que teve adaptadas para outros meiosde divulgação.

Digamos que as características de umbom argumento ou roteiro de cinema etelevisão sejam iniciar a história comimpacto e dar-lhe um fecho em quepercebamos que a história acabou, mas quecontinuemos com ela na cabeça, e que notexto se visualizem os locais onde a açãoacontece: é pegar o capítulo (cena) iniciale o final de O primo Basílio, por exemplo, ever como seguem esses dois esquemas.

Por essas características, as obras deEça de Queirós sempre foram procu-radas pelo cinema e pela televisão. Em1923, O primo Basílio foi um dos filmes

inaugurais da produtora Invicta. Mas amordacidade de Eça em relação à so-ciedade portuguesa não poderia agradara ditadura Salazar e somente em 1956volta às telas portuguesas uma obra deEça, O Cerro dos Enforcados, baseado noconto �O defunto�, com direção deFernando Garcia.

Em 1934, no México, Carlos de Ne-jera adapta e dirige O primo Basílio,estrelado pelo galã Ramón Petreda.Nejera se aproveitara do sucesso tido pelosfilmes argentinos baseados em obras deEça de Queirós.

No Brasil, em 1998, Helvécio Rattondirige Amor e Companhia, filme baseadoem Alves & Cia., com Patrícia Pillar eMarco Nanini. A Rede Globo fez aminissérie O primo Brasílio, com GiuliaGam, Marília Pêra e Tony Ramos, e agoraprepara Os Maias, minissérie escrita pelaportuguesa Maria Adelaide Amaral.

Mas é nas histórias em quadrinhosque as obras de Eça de Queirós são maisdivulgadas, entre elas a de J. Taggino, Ailustre casa de Ramires, quadrinização dofilme argentino do mesmo nome. Quemmais adaptou seu desenho às obras de Eça

foi o genial português Ernesto TeixeiraCoelho, que se assinava E.T. Coelho. Elequadrinizou O defunto, Suave milagre, Otesouro, A aia e A ilustre casa de Ramires (como nome de A torre dos Ramires). E.T. Coelhoseguia o esquema do desenhista americanoAlex Raymond em Flash Gordon: o textoia abaixo dos desenhos. Assim, Coelhomantinha os textos de Eça, sem mudar umavírgula.

Ao morrer, Eça deixou vários textosinéditos. Seu filho, José Maria, esperta-mente os publicava, mexidos por ele, umde cada vez para assim valorizá-los. Fe-lizmente, o professor Carlos Reis, da Uni-versidade de Coimbra, onde os manus-critos estão guardados, vêm lançandoesses livros, corrigidos das imperfeições eadulterações feitas pelo filho de Eça. Assimos roteiristas de cinema, TV e quadrinhospoderão melhor adaptar as obras desseescritor que deixou, segundo WilsonMartins, �uma verdadeira história social davida portuguesa de seu tempo.�

Valêncio XavierValêncio XavierValêncio XavierValêncio XavierValêncio Xavierescritor, jornalista, diretor de curtas-metragens e vídeos, é autorde O mez da grippe e Outros livros (Companhia das Letras) e

Meu 7º dia – Uma novella-rébus (Ciências do Acidente)

eça nas telase nos

quadrinhos

setembro/2000 - Cult 63

Acima, O primo Basílio, de 1923, primeira obra de Eça a ser filmada. À direita, no alto, a versão mexicana deO primo Basílio (1937); embaixo, O Cerro dos Enforcados, versão portuguesa de O defunto.

er

Acima, quadrinhos de E.T. Coelho feitos a partir de obras de Eça de Queirós

Imagens do Acervo RS-Raridades – Curitiba


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