Download - retrovisor chiquinha gonzaga
RETROVISOR S02 E01
APRESENTADOR
01:04 - Boa tarde! O teatro Eva Herz apresenta Retrovisor. Hoje, o jornalista Paulo Marcun entrevista Chiquinha Gonzaga, interpretada pela atriz Clarice Abujamra. Informamos que esta entrevista será gravada para exibição posterior na televisão. A sua presença na plateia implica na autorização para captação e uso de sua imagem e voz.
01:26 – o Programa Retrovisor é oferecido pelo Ministério da Cultura, Bradesco, Tractebel Energia e BNDES. É uma realização Revanche Produções e Media Arts. Ao final da entrevista, o público presente será convidado a fazer perguntas para a personagem.
01:43 – Agradecemos a presença de todos e um bom espetáculo!
NARRADOR
01:55 – Francisca Edwiges Neves Gonzaga – ou Chiquinha Gonzaga, como ficou conhecida – carioca, pianista, compositora, autora da primeira marchinha carnavalesca com letra, Ô Abre Alas, de 1899.
02:08 – Foi também a primeira maestrina, ou seja, a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil.
02:14 – Neta de escrava, era filha de um tenente do exército imperial. Cresceu em uma família que se pretendia aristocrática e teve como padrinho o Duque de Caxias.
02:24 – Aos 11 anos, depois de estudar piano, começou a compor. Aos 16, casou-se com um empresário escolhido pelo pai. O marido não aceitou sua dedicação à música, o que fez com que eles se separassem para escândalo da sociedade.
02:39 – Apaixonou-se por um rapaz muito mais jovem e passou a ganhar a vida dando aulas particulares de piano. Também tocava profissionalmente, chocando mais uma vez as senhoras bem educadas.
02:50 – Logo começou a conquistar o público nos saraus e em apresentações em teatros. Em 1912, estreia Forrobodó, seu maior sucesso teatral. É quando fala ao Retrovisor.
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PAULO
04:19 – Boa tarde a todos! Boa tarde, Chiquinha!
CHIQUINHA
04:22 – Boa tarde!
PAULO
04:24 – Então, ontem à noite, foi apresentado mais uma vez no teatro São José, no Rio de Janeiro a sua peça Forrobodó, enorme sucesso. Tem ladrão de galinha; tem guarda
noturno, que de dia dá aula de clarineta; tem mulata, que só gosta de dançar; tem contínuo de jornal que vira redator... Enfim, uma porção de tipos populares.
04:47 – E mais do que isso: esses tipos estão numa gafieira. Eu tenho a impressão de que é a primeira vez que um teatro da capital abre espaço pra algo tão popular. E um sucesso enorme!
CHIQUINHA
04:55 – E quem não viu não faz ideia do que perdeu! A beleza daquele teatro, né, o envolvimento dos músicos, dos atores, a felicidade deles em cena.
05:07 – E aquela plateia maravilhosa, torcendo, vaiando os vilões. Era o teatro popular. Dentro de um teatro... engomadinho da época, não é.
PAULO
05:19 – E você, com toda experiência que tem, ainda se emociona? Você estava falando ali atrás pra mim que entrar no palco, pra você, continua sendo algo que mexe com você.
CHIQUINHA
05:29 – Ah, com toda a certeza! Eu acho que qualquer profissional, né.
PAULO
05:32 – Entendi. Agora, um detalhe curioso: embora a maior parte dos personagens de Forrobodó sejam mulatos ou negros, a maioria dos atores são brancos. Por que isso?
CHIQUINHA
05:43 – Esse é o país que nós vivemos. Alforria já há vinte e quatro anos e o negro continua pagando um preço muito caro pra viver na sociedade em que vive.
PAULO
05:55 – E como é que essa história foi parar na sua mão?
CHIQUINHA
05:58 – Do musical?
PAULO
05:59 – Do Forrobodó.
CHIQUINHA
06:00 – Do Forrobodó. Pois bem, eu estava em casa e... lá na Praça Tiradentes, chegaram dois rapazes – que moravam no Catete – o Peixoto e o Carlos Bittencourt. Chegaram atarefados, enlouquecidos porque tinham varado a noite trabalhando... das oito da noite às seis da manhã e escreveram uma peça.
06:22 – Não tinham a música. Então, me pediram pra compor a música. Eu fui ao piano, levei a letra, o roteiro da peça, compus a música.
06:34 – Não contente, procurei Pascoal Segretto e o convenci a produzir o espetáculo. E ele o fez.
06:43 – Ele... se eu não me engano, foi oitenta mil réis que ele empregou nessa produção. E foi o sucesso que foi.
PAULO
06:49 – Sucesso! Tenho impressão que esse dinheiro ele já recuperou.
CHIQUINHA
06:52 – Ah, com certeza!
PAULO
06:53 – Agora, por que apoiar jovens artistas, jovens criadores como o caso do Luiz Peixoto e do carlos Bittencourt?
CHIQUINHA
07:01 – Porque eu sei o que é isso, eu levei muito tempo pra ser reconhecida.
PAULO
07:07 – Entendi. E como é que você aprendeu música?... Posso chamar você de você?
CHIQUINHA
07:09 – Por favor, por favor. Bem, eu... da maneira mais tradicional possível. Quando era menina, na família, com o maestro Elias Lobo. Foi assim que eu comecei. Mas depois... eu fui autodidata.
07:25 – Esse meu balanço, essa minha maneira de escrever eu consegui sozinha.
PAULO
07:31 – E o teatro? Como é que entrou na sua vida?
CHIQUINHA
07:34 – Como é que o teatro entrou na minha vida? Olha, compor e compor para o teatro foi uma coisa que eu sempre quis e que fiz sozinha.
07:42 – Aliás, eu cheguei a procurar o Arthur Azevedo. E levei pra ele uma partitura que eu fiz de um libreto, que ele não aceitou por eu ser mulher.
PAULO
07:52 – Esse, aliás, é um problema... um problema frequente na sua vida. O fato de ser mulher, ser artista, não é uma coisa que combina direito nesses tempos, né.
CHIQUINHA
08:00 – Com certeza não, são dias dificílimos pra mulher.
PAULO
08:03 – Nesse... a sua primeira composição, Atraente, parece, pra quem vê de fora, uma espécie de resumo do que viria a ser a sua arte, a sua obra: uma música pra reunir as pessoas, pra alegrar as pessoas. Era esse o seu projeto?
CHIQUINHA
08:17 – O meu projeto sempre foi fazer uma música popular alegre, sabe, que fizesse parte das reuniões do povo, das festas carnavalescas, que alegrasse e que fosse, mais do que tudo, brasileira.
PAULO
08:33 – Entendi. Agora, você buscou reconhecimento profissional. Quer dizer, você não ficou só fazendo a sua composição, né.
08:39 – Eu diria até que a batalha que você fez pra ser uma maestrina...
CHIQUINHA
08:41 – Com certeza.
PAULO
08:43 – Tem... tem a ver com isso?
CHIQUINHA
08:44 – Com certeza. Eu lutei muito. O que eu queria na minha vida era ser conhecida... Aliás, reconhecida como maestrina e respeitada.
PAULO
08:54 – E tem a história de um broche, que, aliás, você podia ter trazido hoje, Chiquinha,
CHIQUINHA
08:57 – Pois é, uma falha, me perdoe, me perdoe. Mas é.... pois é, você sabe que a sociedade carioca não me aceitava. E assim também, dentre os músicos muitos não me aceitavam.
09:10 – Tinha uns jornalistas que eu já não... digamos, eu não me dava... Com o perdão do momento, eu não me dava muito bem com eles.
PAULO
09:18 – Por favor...
CHIQUINHA
09:19 – Apesar de alguns deles serem autores teatrais, o que tornou essa relação mais... o lado mais utilitário dela, digamos assim.
09:28 – E eles me deram de presente – alguns deles – me deram de presente um broche com as três notas, as primeiras notas musicais de uma peça minha chamada Valquíria.
09:40 – Eu guardo esse broche com... é como se fosse um reconhecimento do meu trabalho.
PAULO
09:46 – Uma espécie de medalha, digamos assim.
CHIQUINHA
09:48 – Exato.
PAULO
09:49 – E o que é que a força de vontade teve a ver com a sua trajetória?
CHIQUINHA
09:55 – Tudo. Tudo. Viver na época que eu vivi e ainda viver, né, e autodidata, eu nunca tive auxílio de governo nenhum, nunca fui pra Europa pra aprender nada.
10:07 – O que eu aprendi, aprendi sozinha. Por exemplo, eu tinha que compor músicas pra outros instrumentos. Eu não tinha aprendido isso.
10:16 – Aprendi sozinha no piano. Eu gosto de aprender.
PAULO
10:20 – Em 1895, você compôs Gaúcho, que depois foi renomeada pra Corta Jaca. Essa composição estreou numa peça fraca, que ficou pouco tempo em cartaz, mas, quatro anos depois, passou a fazer parte do repertório do Grupo Euterpe, né, ex-Estudantina. 10:36 - E acabou sendo um grande sucesso da sua carreira. Foi tocada na Europa... Em todos os cantos, o Corta Jaca é uma marca registrada da sua carreira.
10:46 – Você tinha ideia de que ela se tornaria tudo isso quando você compôs essa música?
CHIQUINHA
10:49 – Não, não tinha ideia. Como eu te disse, eu nunca compus pra ser... Vou compor uma música de sucesso. Não, compunha pelo prazer, uma música que todo mundo pudesse cantar e dançar.
11:00 – E essa peça, essa partitura começou realmente devagarinho, mas ela foi conquistando seu espaço nos cafés cantantes, nos chopps berrantes e acabou sendo o que é hoje em dia, não é.
PAULO
11:13 – Aliás, nesses cafés cantantes e chopps berrantes, eu confesso que quando ouvi essa expressão achei muito... muito oportuna, né, porque é uma balbúrdia nesses locais.
11:24 – É preciso pagar pra ouvir a sua música.
CHIQUINHA
11:27 – O que eu acho corretíssimo. O artista vive da sua obra. Ele tem... o seu ganha-pão, a sua arte é o seu ganha-pão.
11:26 – E depois, nos cafés-concertos tocava-se muito a música francesa, a música europeia, que já estava... um pouquinho gasta.
11:43 – E conosco não. Eles sabiam que iam ouvir a melhor música brasileira.
PAULO
11:48 – Foi num café cantante, aliás, que o cantor e ator Machado Careca deu forma final à letra do Corta Jaca, né. Que foi parar na Europa e foi apresentado como “tango brasileiro”.
12:01 – E em algumas dessas apresentações... na Europa ele ganhou peso, ganhou importância, né.
12:10 – Os direitos autorais dessa obra lá na Europa estão sendo pagos pra você?
CHIQUINHA
12:15 – Olha, de início, eu recebi exatamente “zero patacas”. Mas eu fui à Europa e, passando por Berlin, eu encontrei um disco meu, muito bem editado. Editado pelo Figner, da Casas Edson do Rio de Janeiro.
12:32 – Mas ele não era meu editor. Meu editor estava no Brasil: Gusmão, da Buschmann & Gusmão; ele era o meu editor.
12:42 – O Figner pediu uma reunião, um almoço, tentando me acalmar, porque... eu percebi que agora tinha alguma coisa estranha com a música brasileira porque...
PAULO
12:49 – Estavam fazendo...
CHIQUINHA
12:49 – estava fazendo sucesso na Europa. Mas o Joãozinho, que estava ao meu lado, nervoso como é, exigiu e eu acabei... e o editor acabou recebendo quinze mil réis de direitos autorais.
PAULO
13:00 – Joãozinho que você menciona é seu atual marido, né? Como é que vocês se conheceram?
CHIQUINHA
13:07 – Olha, eu frequentava a Euterpe... a ex-Estudantina. Era um lugar onde jovens, inteligentes e educados frequentavam.
13:15 – Tinha os famosos saraus, de poesia, de música. O Joãozinho era o diretor musical da época. Ele se apaixonou pela minha música e...
PAULO
13:24 – Acho que mais do que pela sua música, né... E um detalhe curioso, né: ele tinha dezesseis anos e você... cinquenta e dois?
CHIQUINHA
13:35 – Cinquenta e dois. Você pode imaginar o que isso aconteceu na época? Imagina, nos dias de hoje já seria um escândalo, imagina na época.
13:43 – Mas eu soube contornar isso muito bem.
PAULO
13:45 – De que maneira?
CHIQUINHA
13:47 – Eu fui pra Lisboa com ele. E levei o Joãozinho como meu filho adotivo.
PAULO
13:58 – Simples assim.
CHIQUINHA
13:59 – Simples assim, eu podia passear com ele na rua de mão dada sem as maledicências, sem as piadas jocosas que eu sempre ouvi aqui nesse país. Foi um momento muito especial.
PAULO
14:08 – E você...
CHIQUINHA
14:08 – E quando eu voltei, vou te dizer uma coisa: pra evitar que isso acontecesse... porque meus próprios filhos... causaram um certo problema com isso, não é...
14:19 – Eu não... eu tentei preservar a nossa intimidade o máximo possível.
14:25 – Eu acho que a maior parte do povo não faz ideia desse nosso...
PAULO
14:29 – Quer dizer, pra muita gente ele é seu filho adotivo até mesmo no Brasil?
CHIQUINHA
14:30 – Ele é meu filho adotivo e... por mim, será assim até que eu morra. Eu quero viver com ele até que a morte nos separe.
PAULO
14:36 – Ah, é! Mas eu acho que quando você conheceu o Joãozinho não foi só ele que se interessou por você. Porque você deu de presente pra ele um fado intitulado Desejos, né, e também deu uma fotografia pra ele.
CHIQUINHA
14:52 – Bom, fora a insinuação da música, eu fui discreta. Na medida do possível.
PAULO
14:58 – Ah, entendi. Isso foi em 1899, né. E o Joãozinho chama pra registro “João Batista Fernandes Lage”. E é um jovem muito talentoso, era um jovem talentoso, aprendiz de musicista, né, e com essa grande diferença de idade.
15:14 – Agora, esse não é o único João da sua história, da sua vida.
CHIQUINHA
15:18 – Não.
PAULO
15:19 – Antes do Joãozinho, você viveu com outro João: João Batista de Carvalho.
CHIQUINHA
15:21 – Carvalhinho.
PAULO
15:22 – O Carvalhinho.
CHIQUINHA
15:23 – Um homem fascinante! Charmoso, contagiante... Ele me tirou por muito tempo, ele me tirou de dentro da sociedade, do ambiente que eu vivia, ele era engenheiro, me levou praqueles terrenos de lama até os joelhos, quando estavam construindo a ferrovia, né, da Serra da Mantiqueira.
15:44 – Depois me arrastou pra fazendas no interior de Minas Gerais. Ele foi uma pessoa de uma alegria, de um charme inesquecível.
PAULO
15:53 – O que que deu errado?
CHIQUINHA
15:54 – Mas tem um problema seríssimo: ele era absurdamente infiel e isso eu não posso tolerar.
PAULO
16:06 – Era o seu segundo marido.
CHIQUINHA
16:07 – Era o segundo.
PAULO
16:08 – O primeiro... como é que... você tinha dezesseis anos? Foi seu pai, aliás, que, digamos...
CHIQUINHA
16:14 – Foi.
PAULO
16:15 - ...encaminhou você pro primeiro casamento.
CHIQUINHA
16:15 – Meu primeiro marido. Ele era... o Jacinto. O Jacinto era... o Jacinto era filho de militar. Um militar monarquista, né, fez parte do gabinete de duque de Caxias, acabou sendo exonerado.
16:34 – E ele era um homem rico. Tinha navios, né, alugava, vendia. Nós fizemos uma viagem num desses navios na época da guerra da...
PAULO
16:43 - Do Paraguai.
CHIQUINHA
16:46 - ...do Paraguai. É um assunto que até hoje mexe comigo. Da guerra do Paraguai e eu quis tocar a bordo e ele me proibiu. Aliás, ele me proibiu a música sob qualquer aspecto.
16:57 – Eu não aguentei mais. Eu disse a ele: Senhor meu marido, eu não concebo a vida sem harmonia. E me separei dele. Foi uma... a minha primeira grande ruptura com a sociedade, a minha vida pessoal, né.
PAULO
17:16 – E você já tinha três filhos!
CHIQUINHA
17:18 – Tínhamos três filhos: Maria do Patrocínio, Hilário e o Joãozinho. Mas ele proibiu que eu ficasse com os meus filhos.
17:28 – Eu só consegui mesmo a guarda do mais velho, de João.
PAULO
17:34 – E você, em nenhum momento pensou em abandonar a música em troca... pelo casamento?
CHIQUINHA
17:39 – Nunca. A música é a minha vida. Nada me fazia crer que pra ter alguma coisa você tinha que abrir mão de outra, muito menos da música.
PAULO
17:49 – Como é que você definiria o Jacinto?
CHIQUINHA
17:52 – Um homem típico do seu tempo. Não tolerava um gesto que fosse de uma mulher que ele não achasse condizente com uma dama da sociedade.
18:02 – E a mulher sofria. Nem votar a mulher podia, não é.
PAULO
18:06 – E a sua família, que atitude teve diante da separação?
CHIQUINHA
18:10 – Foi um... eu fui banida da família. Meu pai, quando eu me separei, me negou o que eu mais precisava na época, que era um teto, eu precisava de abrigo e isso me foi negado.
18:25 – Fora a ausência dos filhos, né.
PAULO
18:28 – Aliás, tem uma história pouco conhecida na sua trajetória que aconteceu dentro de um bonde, envolvendo a sua filha. Qual foi essa história?
CHIQUINHA
18:35 – Não, não é uma história das mais alegres. Eu estava no mesmo bonde que a minha filha, Maria Alice, com a Maria... do primeiro casamento.
PAULO
18:43 – Maria do Patrocínio.
CHIQUINHA
18:44 – Isso. Ela estava com o noivo e meus pais. Ela olhava pra mim... eu não aguentei.... Ela não sabia quem eu era.
18:57 – Eu cheguei a ela e a maneira que eu achei de me apresentar foi dizendo....: Não vai pedir a bênção pra sua mãe? Foi o suficiente pra que o noivo rompesse com ela.
19:11 – Mas ela acabou se casando com outro homem que não dava muita importância a isso. Acho que nisso ela... puxou um pouquinho da mãe.
PAULO
19:19 – Bom, mas a sociedade não é muito, digamos, flexível com o papel que a mulher deve desempenhar. Por exemplo, nas Artes Plásticas, uma pintora só tem certos temas que ela pode abordar.
19:34 – Falar em mulher compositora, pianista, tocando na noite, se apresentando em cabarés ou em teatros então... é pior ainda.
19:44 – Quanto lhe custou a atitude de enfrentar tudo isso?
CHIQUINHA
19:49 – A minha ousadia me custou tudo isso que eu acabei de lhe narrar, né, uma... uma vida... bastante difícil, mas nunca, nunca...
19:59 – A sociedade quis me colocar como vítima, sabe. Mas isso não comporta, não cabe em mim essa posição de vítima. Eu sempre fiz o que quis.
PAULO
20:11 – E você pretende continuar produzindo músicas pro teatro?
CHIQUINHA
20:15 – Ah, com certeza! Compor pro teatro ou compor qualquer tipo de música. Isso eu não vou parar nunca.
20:21 – Assim como defender as minhas causas, não é. Principalmente a minha luta pelos direitos autorais.
PAULO
20:27 – Por que essa insistência?
CHIQUINHA
20:29 – Meu Deus, nós precisamos disso. Nós precisamos dessa retaguarda, desse quinhão, fruto do nosso trabalho.
20:38 – Eu tento encontrar ainda hoje músicos, sabe... Vamos nos agrupar, quem sabe montar uma sociedade de autores teatrais. Acho necessário.
PAULO
20:50 – Vocês ganham menos do que quem faz a peça, do que quem produz, do empresário?
CHIQUINHA
20:55 – Quando ganhamos.
PAULO
20:58 – Então não é fácil a vida? Uma resenha de uma peça sua que está em cartaz, uma outra peça: Colégio de Senhoritas diz o seguinte: “A peça é fraca, mas espirituosa. A música é toda ela no estilo Chiquinha Gonzaga”.
21:12 – Você acha que está construindo uma escola, que está fazendo um caminho aí?
CHIQUINHA
21:15 – Não. Eu nunca compus, como eu te disse, pra fazer sucesso ou pra seguir um caminho. Eu sempre quis uma música, uma música de acesso ao povo.
21:25 – Sabe, eu nunca gostei da música contemplativa, reflexiva. Eu prefiro estar na boca do povo. A minha música, claro!
PAULO
21:37 – Mas eu diria que você conseguiu as duas coisas, certo. Tanto a tua música quanto você volta e meia aparecem na boca do povo. Pode ser que agora mais experiente...
CHIQUINHA
21:51 – Não, não. Aqui nos meus sessenta e cinco anos de idade, quando tudo deveria acalmar... Tudo bem, a minha vida ao lado de Joãozinho é um pouco mais calma. Mas eu sinto tudo muito intensamente.
22:03 – Eu continuo compondo, eu continuo indo às rodas de choro, continuo defendendo os meus ideias....
22:10 – A minha vida dentro da música é que me dá essa alegria. As dores estão lá, são inesquecíveis, inevitáveis.
22:21 – Uma mulher sem filhos, sem família.
PAULO
22:25 – Ou pior, com filhos que não pode ver.
CHIQUINHA
22:28 – Alguns nunca me conheceram.
PAULO
22:31 – As letras das canções, com uma linguagem mais popular que as suas músicas do teatro de revista ajudam a difundir, também parecem ser uma tendência e algo que tem a ver com a sua trajetória.
22:44 – Mas tem gente que diz que esse tipo de música é uma coisa chula.
CHIQUINHA
22:49 – Isso me irrita profundamente, porque entre o chulo e o popular há uma diferença substancial. Não são sinônimos, não tem nada a ver uma coisa com outra.
PAULO
23:00 – O que você faz é popular, você reconhece?
CHIQUINHA
23:03 – Com o maior orgulho. A música popular brasileira, música dançante.
PAULO
23:09 – Qual a importância do músico Joaquim Calado na sua trajetória teatral e musical?
CHIQUINHA
23:13 – Ah... Calado foi o meu protetor, meu amigo. A primeira polca que ele escreveu chamava-se... foi dedicada a mim: Querida por Todos.
PAULO
23:26 – Pois é.
CHIQUINHA
23:26 – Calado foi o meu grande companheiro. Um mestiço... tocava flauta em coretos, acabou professor do conservatório musical.
23:37 – Ele tinha... sabe, pela cor, pela, pela influência africana, ele tinha uma maneira sincopada de tocar, um balanço e, claro, eu aprendi com ele na boemia, junto a outros músicos.
23:51 – Foi ele que me levou pela mão, pro mundo real, sabe, da vida, da música. Me ajudou nos momentos mais difíceis, mais difíceis.
24:02 – Ele conseguia alunos pra eu dar aula de piano.
PAULO
24:05 – E levava você pros tais cafés cantantes ou chopps berrantes.
CHIQUINHA
24:09 – Que mulher não entrava. Mas com ele eu entrava. Quando eu estava com o Joãozinho, ele me tirou um pouco da sociedade por conta daquelas viagens que eu contei pra você, mas quando eu...
PAULO
24:19 – Com o João, seu segundo marido?
CHIQUINHA
24:20 – Ô, perdão, com o João. É muito João, não é. Ele me... quando eu voltava, era sempre o calado que me levava pra esses lugares maravilhosos, onde se fazia uma música...
PAULO
24:35 – Aliás, ele fundou também um grupo, o chamado Choro Carioca, o Choro do Calado, que, aliás, foi um precursor desse estilo musical do choro, né.
24:44 – E se eu não me engano, você foi ali a primeira mulher a fazer parte desse grupo.
CHIQUINHA
24:48 – A primeira “chorona”, a primeira pioneira. Esse... a palavra choro estava mais ligada ao nosso grupo do que a um estilo musical.
24:58 – Na verdade, nós tocávamos as mesmas coisas: a abandeira, as polcas, os xotes, enfim. Mas a gente tinha um balanço diferente, umas descaídas, sabe, uma coisa sincopada, que nós usávamos de propósito pra derrubar o que improvisava.
PAULO
25:15 – Entendi. E acabou, né, virando um enorme sucesso.
CHIQUINHA
25:20 – Exatamente. O choro, hoje, é um gênero musical.
PAULO
25:24 – Dizem que você e o Calado foram mais do que amigos.
CHIQUINHA
25:29 – Ah... maledicência! Nós sempre fomos amigos de verdade. A Feliciana, mulher dele, morria de ciúmes, mas não havia nada não.
PAULO
25:37 – E como é que pesou em você a morte precoce dele aos trinta e dois anos em 1880?
CHIQUINHA
25:44 – Pesou e pesa até hoje. É uma saudade imensa do Calado, sabe, por tudo isso que eu te disse: pelo irmão, pelo amigo, pelo suporte que me deu na vida, né.
25:58 – Mas, depois que ele partiu, eu acabei tendo um outro amigo.
PAULO
26:02 – Quem foi?
CHIQUINHA
26:03 - ... que foi maravilhoso: Carlos Gomes.
PAULO
26:07 – O maestro Carlos Gomes?
CHIQUINHA
26:08 – O maestro Carlos Gomes.
PAULO
26:11 – Agora, nesse caso, você não ficou só na idolatria, digamos assim, ou no respeito, né. Você chegou a organizar concertos...
CHIQUINHA
26:17 – Organizei...
PAULO
26:19 - ... pra arrecadar fundos.
CHIQUINHA
26:20 - ...onde nós apresentamos o Caramuru. Nossa, cem violões no palco, violas, tamborins, foi...era uma coisa maravilhosa.
26:28 – Eu não sei se o senhor sabe, mas eu acredito...
PAULO
26:31 – Me chame de você.
CHIQUINHA
26:33 – Por favor.
PAULO
26:33 – Temos a mesma idade.
CHIQUINHA
26:33 – Eu não sei se você sabe, mas foi uma das primeiras vezes, se não a primeira vez que os violões entraram nos palcos.
26:43 – Quem tocava violão na época podia ser preso. Como não honrar aquele homem, né. Aquele filho de alfaiate que fez sucesso – o maior maestro brasileiro da época- que fez sucesso internacional na Itália, comparado a Verdi...
PAULO
26:56 – E que acabou aceitando você como maestrina, né.
CHIQUINHA
27:01 – Essa... eu tenho uma foto que ele me deu; ela fica sobre o meu piano. Eu tenho muito ciúme e muito orgulho porque é o reconhecimento desse grande maestro ao meu trabalho como maestrina.
PAULO
27:14 – E você teve um romance com Carlos Gomes?
CHIQUINHA
27:17 – É o que dizem.
PAULO
27:20 – Mas hoje você se diz casada com o filho adotivo, é isso?
27:28 – Aliás, você concorda com o que dizem sobre você?
CHIQUINHA
27:34 – Olha, as maledicências, eu as tenho como injustiça e me dá revolta. O que dizem... as críticas negativas à minha música nunca me impediu que eu fizesse nada.
27:44 – Agora, quando falam que a minha música é envolvente, é maravilhosa, [e contagiante, eu concordo plenamente.
PAULO
27:56 – Bom, vamos passar pra algumas perguntas aqui, quase que um “bate-bola” rápido se a gente pode usar a expressão.
28:02 – Qual partido que você apoia?
CHIQUINHA
28:04 – Não, eu não apoio partido nenhum, eu apoio causas. Lutei pela causa abolicionista, republicana... quanto a essa eu tenho algumas restrições.
PAULO
28:15 – E você tem religião?
CHIQUINHA
28:16 – Sou católica. Com o passar dos anos parece que a religião se tornou uma coisa mais profunda na minha vida.
PAULO
28:24 – Você compôs um hino em homenagem à assinatura da Lei Áurea, não foi.
CHIQUINHA
28:30 – Foi sim.
PAULO
28:31 – Quer dizer, você teve, então, um engajamento efetivo. É mais do que simplesmente concordar com a abolição ou com a República?
CHIQUINHA
28:37 – Com toda certeza! Eu apoiei várias causas com o meu trabalho como maestrina, como compositora. Eu cansei de vender partitura pra auxiliar todas as causas.
28:49 – A causa republicana, então, por exemplo, eu participei da Revolução do Vintém, porque eles aumentaram vinte réis na conta do bonde, no preço, né, no valor da passagem do bonde.
29:03 – O povo foi às ruas; eles arrancavam trilhos dos bondes, machucaram os animais, o condutor... Foram três dias de loucura na cidade.
PAULO
29:12 – Parece um negócio que eu já ouvi falar talvez, mas eu acho que não, eu estou confundindo as datas.
CHIQUINHA
29:17 – Mas tudo por causa de vinte réis.
PAULO
29:19 – Vinte réis.
CHIQUINHA
29:20 – E a corte se deu conta disso, porque acabaram retirando o valor do preço da passagem.
PAULO
29:25 – Então, e nessa Revolta do Vintém, o jornalista Lopes Trovão, que foi um dos batalhadores pela causa e acabou se transformando numa espécie de líder do movimento, chegou a dizer o seguinte:
29:35 – “Essa Chiquinha é o diabo! Foi nossa companheira de propaganda na praça pública, nos cafés, nunca nos abandonou”.
29:43 – Você se arrepende de ter feito alguma coisa na vida?
CHIQUINHA
29:45 – Imagina, de nada! Eu lembro da minha luta, sabe, pra conseguir evitar aqueles negros que, contra a vontade, eram colocados na guerra, entendeu.
29:57 – A causa deles era uma causa enorme. Também... eu não me arrependo de nada!
PAULO
30:02 – E certezas, você tem?
CHIQUINHA
30:06 – Certezas?... Eu tenho certeza de... ter feito o que eu queria fazer, a presença da música na minha vida.
PAULO
30:15 – Dúvida.
CHIQUINHA
30:17 – Ah, dúvidas em tenho muitas, mais que certezas. Me preocupa o futuro.
30:24 – O futuro do teatro de revista hoje está aí, um sucesso, mas sabe-se lá até quando, né.
30:29 – O meu futuro financeiro.
PAULO
30:30 – Eu achei que você fosse rica.
CHIQUINHA
30:32 – Não, não sou. As pessoas normalmente ligam a fama com a fortuna, mas não...
PAULO
30:37 – Qual é o seu patrimônio?
CHIQUINHA
30:38 - ... não é bem, bem assim. O meu patrimônio é uma casa na Praça Tiradentes, meu piano, não muito mais do que isso.
PAULO
30:44 – E como é que você – você já falou um pouco isso, mas eu queria insistir nisso – como é que você recebe as críticas.
CHIQUINHA
30:52 – Eu recebo as críticas de uma maneira... com uma certa perplexidade, entendeu. Porque até hoje existe esse preconceito enorme contra o trabalho da mulher.
31:05 – Então, as críticas sempre têm mais do que um lado só, né, sempre é comprometida.
PAULO
31:12 – Como é que você define o que você faz?
CHIQUINHA
31:16 – Eu defino como música dançante e teatro popular.
PAULO
31:22 – E qual é seu grande sonho?
CHIQUINHA
31:25 – Eu já realizei: ser reconhecida como maestrina e respeitada como tal.
PAULO
31:31 – Qual é a sua grande obra, digamos assim, aquela que você acha que vai ficar pra... pra sempre? Eu sei que você não compõe pra isso, mas sempre...
CHIQUINHA
31:41 – Não, eu nem ia falar de novo... Tem uma que eu gosto muito que é Ô Abre Alas, que foi composta, o que, em 99, não foi? Me refresca...
PAULO
31:54 – Isso, isso.
CHIQUINHA
31:54 - ... pelo Jorge Faraz e o Peixoto?
PAULO
31:58 – Isso, isso.
CHIQUINHA
31:58 – Ela diz assim: “Ô, abre alas, que eu quero passar; ô abre alas, que eu quero passar; eu sou da Lira, não posso negar; Rosa de Ouro é quem vai ganhar... Ô abre alas, que eu quero passar...”
32:16 – É isso, é isso: Ô Abre Alas. Depois... depois teve o Corta Jaca e o Forrobodó, que você mesmo viu no teatro, que se tornaram um sucesso.
PAULO
32:26 – Sim, e você tem um método de trabalho?
CHIQUINHA
32:29 – Eu preciso de sossego pra compor, só isso. Inspiração não me falta.
PAULO
32:34 – E a rotina de vida, qual é?
CHIQUINHA
32:36 – Hoje em dia é tranquila, em casa, ao lado do Joãozinho, sempre compondo, sempre compondo.
32:44 – Eu gosto de costurar também.
PAULO
32:46 – Ah, é? Você é vaidosa?
CHIQUINHA
32:48 – Não, nunca fui vaidosa, não. Você sabe que... quando eu era jovem, tinha um cabelo enorme, negro, negro, né. Como sair às ruas, né, com um cabelo assim?
32:59 – Então, eu inventei um lenço que eu enrolava no cabelo, que acabou virando minha marca registrada, né. E assim eu ia; não tinha dinheiro pra comprar chapéu.
PAULO
33:09 – Fora o trabalho, o que é que você faz além de costurar?
CHIQUINHA
33:13 – Posso lhe contar um caso sobre a história do chapéu?
PAULO
33:15 – Por favor! Claro!
CHIQUINHA
33:16 – Certa vez, eu estava na rua e passou uma mulher e ficou indignada de me ver simplesmente com um laço na cabeça, ela pegou, arrancou o laço e jogou no chão.
33:28 – Eu olhei pra ela, olhei bem primeiro pra ela, abaixei, peguei o laço, depois eu disse a pior coisa que se pode dizer pra uma mulher: “Como você é feia!”
PAULO
33:40 – Está certo!... Você teve uma vida amorosa bastante movimentada, quer dizer, três marido, fora as...
CHIQUINHA
33:49 - ...as paqueras, o flerte...
PAULO
33:51 – O flerte...
CHIQUINHA
33:52 – Eu adorava flertar. Flertava com seminarista, com padre... Fosse um tempo atrás essa entrevista, estaria flertando com o senhor. Mas isso traz muita dor de cabeça.
PAULO
34:03 – Não, não, por favor, fiquemos por aqui. Vai se saber o que vai acontecer, né. Ainda mais que a minha mulher é ciumenta e... não, melhor não.
34:11 – Mas hoje você está sossegada?
CHIQUINHA
34:17 – Se é possível se dizer isso de Chiquinha Gonzaga, estou.
PAULO
34:20 – Mas o Joãozinho é ciumento. Ele, num certo sentido, controla a sua vida financeira, às vezes até dificulta o acesso dos seus filhos...
CHIQUINHA
34:28 - ... dos meus filhos.
PAULO
34:29 – Não é uma contradição?
CHIQUINHA
34:32 – Quem não tem contradições?
PAULO
34:35 – E você já teve algum apelido?
CHIQUINHA
34:38 – Chiquinha Polca.
PAULO
34:41 – Bom,. Bom apelido. Sedutora, formosa, insinuante, sensual, faceira, cabocla, estonteante, são adjetivos que eu encontrei em vários textos de jornal sobre você.
34:52 – Você concorda com eles? Eles correspondem à realidade?
CHIQUINHA
34:55 – Plenamente. Porque eles estão falando da minha música.
PAULO
34:59 – Ah, entendi.
CHIQUINHA
35:00 – Mas a minha música sou eu.
PAULO
35:02 – Ah, entendi mais ainda, está certo.
35:05 – Qual foi a maior mudança na sua vida?
CHIQUINHA
35:08 – Foi a mais drástica de todas: o rompimento do meu primeiro casamento. Eu rompi com a sociedade. Tive que me colocar dentro dessa sociedade.
PAULO
35:20 – Como é que você encara a morte?
CHIQUINHA
35:22 – Eu goto da vida, gosto muito da vida. Mas conforme os anos vão passando, os sofrimentos, enfim, “vai” ocupando um peso maior dentro de você.
35:35 – Mas eu pretendo viver muito tempo ainda.
PAULO
35:38 – Com o Joãozinho?
CHIQUINHA
35:40 – Com ele até que a morte nos separe.
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PAULO
35:43 – Muito bem. Então, nós vamos agora pras perguntas da plateia e voltamos daqui a pouco.
35:49 – Foram distribuídos aí uns questionários; basta acenar pra produção, por favor e podemos... Ó, a Teresa está ali... podemos fazer as perguntas. Tem um microfone volante...
36:20 – É só levantar a mão. Temos aí perguntas?
CHIQUINHA
36:29 – Acho que não.
PAULO
36:31 – Certamente terá, só precisa dar um tempinho pras pessoas formularem, porque como estava a luz apagada... Se tivesse um piano agora, a Chiquinha ia tocar pra gente.
CHIQUINHA
36:45 – E dançar, eu gosto muito de dançar também.
PAULO
37:05 – Pergunta ali, olha... pode conseguir um microfone para a Márcia ali.
CHIQUINHA
37:16 – Você conhece todos da plateia pelo nome?
PAULO
37:18 – A Márcia eu conheço. Isso, traz um... tem um microfone aqui, ó... já tem uma pergunta aqui na frente, à esquerda aqui, a Márcia Camargo.
37:35 – Eu peço só que as pessoas se identifiquem: o nome e a profissão se possível... Ali... Só um segundinho, Márcia. Está ok, podemos?
MÁRCIA – escritora e jornalista
37:47 - Bom, foi um prazer ouvi-la e conhecer tudo isso sobre a sua vida e eu queria saber... Bom, meu nome é Márcia Camargo, eu sou escritora e jornalista, eu queria saber qual legado que a senhora acha que vai deixar pras futuras gerações? A senhora pensa nisso, assim, agora...
38:04 - ... não no fim da vida, mas, enfim, depois dessa vida tão rica, o que que a senhora acha que vai ficar como legado pro futuro?
CHIQUINHA
38:11 – Olha, eu espero que o meu legado seja a música genuína brasileira, isso é que eu espero.
38:19 – E um detalhe: quando o Calado fez uma música chamada Querida por Todos, é assim que eu gostaria de ser lembrada, que a minha música fosse lembrada: uma música “querida por todos”.
ISABELA - psicóloga
38:38 – Chiquinha, foi um prazer ouvi-la. Nas futuras gerações, qual você acha que vai ser a importância da sua atuação e da sua vida como mulher em tudo o que fez?
CHIQUINHA
38:52 – Da minha vida como mulher eu espero que a mulher, futuramente, se não... sofra todo tipo de preconceito, toda dificuldade de receber pelo seu trabalho de uma maneira correta.
39:06 – Que ela possa exercer a sua vida com dignidade. Quanto à música, é mais ou menos o que eu acabei de dizer: eu espero que ela seja difundida. Muito, em todos os lugares.
39:18 – Que a música brasileira não fique restrita a um gueto qualquer, mas que ela assuma a sua força.
GUSTAVO – estudante de música e professor de piano
39:38 – Eu pergunto pra Chiquinha referente às composições pra criança que você teve, que você fez e como você se enxerga enquanto Chiquinha criança dentro das suas, do seu universo composicional mesmo.
CHIQUINHA
40:01 – Olha, eu... não foram, não foram tantas as composições, né. Como criança, eu me enxergo dentro de uma família que me proporcionou o estudo da música, né, com o maestro Elias Lobo, que me deu aulas.
40:17 – Então, a minha formação quando criança, quando... já, digamos assim, meus oito, nove anos, já... sempre com a música junto, né, aprendendo. Sempre. Junto com o maestro Elias Lobo.
VALDEMAR - produtor
40:37 – Gostei muito tua vida e eu... muita coisa eu não conhecia, eu só conhecia o seu lado de compositora. O que eu queria saber é se você, nessa tua vida, você conheceu outras mulheres como você?
40:51 - Não com músicas, mas mulheres que também desafiaram a sociedade da época e tiveram essa coragem de enfrentar o...
CHIQUINHA
40:59 – Olha, isso foi mil oitocentos e... E eu confessou a você, pelo menos agora, não consigo me lembrar de mais mulheres que tenham... Fatalmente deve haver, mas eu não se te dizer.
PEDRO - hacker
41:29 – Eu queria continuar um pouco nesse tema da mulher. O que que você acha que foi, na verdade, o diferencial... Por que que você conseguiu isso, que muitas mulheres não conseguiram, mas eu imagino que muitas tinham vontade? O que você acha que foi o grande diferencial?
CHIQUINHA
41:44 – A teimosia. A teimosia, a perspicácia. Eu sabia o que eu queria da minha vida. A música era um fator marcante do meu caráter. Não havia como abrir mão dela.
41:56 – Quando você tem uma meta, com aquela firmeza, com aquela paixão que eu tinha, nada te derruba.
GORETE - secretária
42:15 – Você rompeu um casamento logo no início, deixando a sociedade “ababascada”... Por que... por que ficar com o Joãozinho então e aceitando a interferência dele na visita dos filhos e na vida financeira?
CHIQUINHA
42:30 – Já ouviu falar em amor?
GORETE
42:44 – Já. E o amor dos filhos?
CHIQUINHA
42:38 – Eles voltaram. O que sobrou... o que sobrou de todo esse relacionamento, de toda essa distância causada por tudo isso, na medida do possível foi retomado.
ENÉAS - roteirista
43:13 – Chiquinha, se viesse alguém do futuro e te dissesse que o teatro de revista tal qual você conheceu não chegaria a sobreviver, mas daria muitos filhos em outros meios de comunicação que talvez a gente... você talvez nem imagine ainda... Que sentimento você teria em relação a isso?
CHIQUINHA
43:33 – Uma profunda alegria, de imaginar que outras pessoas poderão ver um teatro de revista, aquela beleza, aquela agilidade, a crítica que ele tinha embutida nos seus textos...
43:49 - ... aquele trabalho de livre... simples.... simples comunicação, não tinha nada de rebuscada, mas era perspicaz, era inteligente. Eu acho que seria uma maravilha!
SAMUEL - advogado
44:08 – Chiquinha, se você pudesse estar vendo hoje pelo “Retrovisor”, o que você diria que aconteceu depois com a sua música, com a sua obra e com a música brasileira em geral?
CHIQUINHA
44:21 – Digamos lá por dois mil e não sei quanto?
SAMUEL
44:25 – É, lá na frente, é.
CHIQUINHA
44:26 – Eu diria que – com raras e honrosas exceções – essa frase é batida mas é verdadeira, a música brasileira... está em pleno declínio. Não há qualidade, não há... Não há acesso à boa música brasileira também, que ainda é composta.
44:45 - Ela não tem livre acesso nas rádios... Eu acho que a música brasileira deveria retomar um pouco do seu passado, do seu... da sua força.
44:57 – Tudo bem, os tempos mudam, mudarão. Os meios de comunicação... A música segue, seguiu um novo rumo, né, que não deixa de ter uma certa qualidade, mas a alma verdadeira de uma harmonia, de uma melodia, de uma poesia... é raro.
45:15 – Alguns... alguns rapers têm letras que são maravilhosas, mas são uma exceção. Eu acho que está em franca decadência a letra e a harmonia das músicas brasileiras.
???
45:43 – Como é que você imagina que ela será vista no futuro?
CHIQUINHA
45:46 – Por estudiosos, talvez?
CLÁUDIA – artista plástica
45:56 – A sua história é encantadora e a sua obra é encantadora. O Jorge Braque dizia que “a ciência tranquiliza e a arte perturba”. E o verdadeiro artista carrega dentro de si essa inquietude criativa e acaba perturbando mesmo sem ter noção disso, com as suas atitudes.
46:17 - Pela sua arte, você tinha noção do que você causava ao redor ou era uma coisa tão natural pra você que não havia outra forma...
CHIQUINHA
46:25 – Não, eu tinha noção, eu tinha noção sim, porque eu pagava um preço caro por ela. Eu sabia exatamente o quanto a minha ousadia perturbava. E não era só nas mulheres, na sociedade não; nós próprios meios musicais. Eu sabia, sim.
RONALDO MENDONÇA - jornalista
46:50 – Antes de tudo, parabéns pela coragem. Como você sabe, a gente lê muita coisa e ouve muita coisa e hoje você tem oportunidade de nos mostrar a fundo quem és.
47:01 – Falamos do futuro, mas, hoje, você consegue enxergar pra quem você vai passar essa, esse legado? Imediatamente, nesses próximos anos? Quem pode te – entre aspas – substituir, apesar de já ser insubstituível pra nós?
CHIQUINHA
47:17 – Muito obrigada! Eu não penso em quem irá me substituir. Eu acredito, sim, na força dessa música, do teatro que nós estamos fazendo, né, da música composta, o acesso que ela tem.
47:32 – Então, eu acredito num efeito dominó nesses dias, né, que vai contagiando os músicos, vai encantando os músicos, vai levando a plateia pros teatros e fazendo-os conhecer, não é, um outro tipo.
47:46 – Como nós já falamos aqui, o teatro era fechado, a música europeia... então, eu acho que essa, essa contaminação, né, eu gostaria que se tornasse uma epidemia.
JOÃOZINHO - publicitário
48:16 – Se você não optasse por música, qual outra arte que você gostaria de fazer?
CHIQUINHA
48:24 – Nunca me passou pela cabeça qualquer outra manifestação senão a música. Nunca. Eu gostaria, sim, de sempre defender as causas. Eu acho que os infortúnios existem, sempre existirão numa sociedade, mas que há que se lutar contra o que se acredita injustiça com... cada um com as armas que tem, com o que pode.
48:52 – Mas jamais a passividade; isso eu não posso enxergar. Dentro da música... é isso que eu te disse, eu não consigo imaginar outra coisa. A música é parte do meu caráter, da minha alma.
PAULO
49:09 - Chiquinha... a pergunta é óbvia, mas eu acho que vale ser feita: você faria tudo de novo?
CHIQUINHA
49:18 – Com certeza. Tudo. Apesar de todos os pesares, de todas as dores. Uma mulher sem família, longe dos filhos e...
49:30 – São dores que vão ficar pro resto da sua vida. Mas eu não abriria mão de nada do que fiz.
PAULO
49:38 – E agora, pra finalizar realmente: Clarice Abujamra, pra você... pra você...
Clarice relaxa, sai do personagem e é aplaudida.
CLARICE
50:08 – Olha, essa história de abrir a conversa pra plateia... nunca mais vai me pegar.
PAULO
50:15 – Mas não é você, é a Chiquinha.
CLARICE
50:19 – É, pois é, depois eu converso com você lá atrás.
PAULO
50:24 – Clarice Abujamra, pra você quem foi Chiquinha Gonzaga?
CLARICE
50:28 – Chiquinha Gonzaga é uma mulher que eu aprendi mais ainda hoje e que eu gostaria imenso que ela fizesse parte da minha vida, que... a força dessa mulher, né.
50:42 – Se colocar no meio... enfim, tudo isso que nós falamos. Eu gostaria que ela me inspirasse de verdade.
PAULO
50>:51 – Clarice, muito obrigado! Chiquinha, obrigado! Obrigado, pessoal! Valeu!