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LAJONQUIÈRE, LEANDRO DE

Estranhas crianças estranhas

Sobre o livro: Figuras do infantil: a psicanálise na vida cotidianacom as crianças.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, 272 p.

Márcio Boaventura JuniorGustavo Alexandre Martins

Marcelo Ricardo Pereira

o momento em que as pesquisas empenham-se em produzirdiversos pensamentos sobre os fatores constituintes e paradoxais do“sentimento de infância”, o livro Figuras do infantil, de Leandro de La-jonquière, Professor Titular da Faculdade de Educação da Universida-de de São Paulo, destila cuidadosamente letras, traços, reflexões e no-vas possibilidades de enfoque sobre o tema. Quem o apresenta é aprofessora Maria Cristina Kupfer, que não só nos adianta as ideias cen-trais da obra, como também de saída a enriquece ao recuperar a ideiaatualíssima do romancista Victor Hugo sobre a infância; especial-mente frente à tese desenvolvida por Lajonquière, que estranha oque tendemos a naturalizar: “as crianças de hoje não são as mesmasde ontem?”

Mestrando da Faculdade de Educação da Universidade Federal

de Minas Gerais (FaE/UFMG).

Mestrando da Faculdade de Educação da Universidade Federal

de Minas Gerais (FaE/UFMG).

Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federalde Minas Gerais (FaE/UFMG).

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Já nas primeiras páginas, o autor chama nossa atenção para ofato de que as crianças de hoje são tão diferentes quanto nós o fo-mos para nossos pais e estes, por sua vez, o foram para nossos avós...Toda forma histórica é um precipitado de como lidamos com o real:sempre um momento de passagem, nem melhor, nem pior, apenassingular.

Lajonquière também recoloca o debate acerca do sentimentoda infância chegando ao seu fim. Tal sensação pode ser justificadapela numerosa produção de diversos teóricos contemporâneos. Háanos atrás, fomos bombardeados com a descoberta da infância comoinvenção da vida social moderna, uma fase produzida culturalmentee tomada como natural e inerente ao ser humano. Porém, em nossacontemporaneidade, Leandro sinaliza de modo perspicaz que a in-fância que soubemos inventar, agora bem poderia desaparecer. Essesentimento, ora festejado ora rechaçado, alimentou uma nova formade proteção à criança: um paradoxo ao se tratar da infância que develibertar a criança dos “atavismos” desta condição, e, ao mesmo tem-po, tratar de renovar a ideia de que a criança sofre quando a infâncialhe é roubada.

Nas últimas décadas, a naturalização violenta da infância, atra-vés do “tecnocientificismo médico-psico-pedagógico”, fez emergirno lastro cultural um fantasma singular – que Leandro denomina A-Criança. Entendida como uma entidade natural, A-Criança acaboulevando consigo a mesma figura da infância, detentora “de direitos enecessidades educativas especiais, porém sempre clamante de satis-fação”, e sagrou-se no século XX como arquétipo de conduta frentea “esses seres pequenos, que temos o hábito, até agora, de chamar-mos crianças” (p. 19).

À sombra d’A-Criança, todas as outras de “carne e osso”, passa-ram a estar em risco de serem desrespeitada, seja no interior dasfamílias, da escola ou da sociedade. Tal suspeita generalizada ampliao sentimento de mal-estar dos adultos e seus fantasmas de seremagentes de sofrimento em relação aos pequenos. Não obstante, essapreocupação com A-Criança também nos reconforta, pois construí-mos a ilusão de que esse posicionamento frente ao infantil é signode um traço evolutivo. Na busca por saídas para esse dilema, oracaímos na inibição de nada falarmos à criança no intuito de nãoincorrermos em riscos, ora chegamos “no limite mesmo do real, atélhe dar a morte, como noticiam diariamente os jornais”. Mas o autorvai ainda mais longe: talvez não seja facilmente perceptível o fato de

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Aque “criança alguma possui uma infância, a ser ultrapassada ou a serprotegida”. Estaria ai o ponto no qual a psicanálise introduz o debate:“a ideia de que só um ‘adulto’ pode ter uma infância, porém uma infân-cia perdida”. Os adultos querem encontrar n’A-Criança “ou aquela quenão fomos, mas que supomos ter sido a esperada por nossos pais, ou acriança maltratada, rechaçada por eles por não termos saído à altura,sempre incomensurável para um ser baixinho que sempre olha o mun-do de baixo” (p. 21). A infância falada: eis a herança freudiana que dálugar à invenção da psicanálise.

Em A psicanálise na educação, que intitula a primeira parte de seulivro, Lajonquière nos lembra que Freud sempre defendeu interessesmúltiplos da psicanálise para além daqueles estritamente psicológicosou terapêuticos. Mesmo assim, muitos interrogaram as possibilidadesde sua utilização em relação à educação. Mas talvez seja mais simplesanalisar essa questão se se observa “o sintagma ‘psicanálise aplicada’no mesmo sentido que se predica a ‘aplicação’ de uma pessoa, isto é, asua ‘dedicação meticulosa’ na realização de uma tarefa determinada ....dessa forma, a psicanálise ‘dedicada à educação’ seria a mesma e únicapsicanálise de sempre”, polemiza o autor. Por estar viva, buscando per-manentemente ultrapassar seus limites, percebe-se inclinada a abordarobjetos que hegemonia paradigmática insiste em esquecer.

Não obstante, uma educação atravessada pela psicanálise não é omesmo que uma “educação adequada”. Lajonquière demonstra noscapítulos 3 e 4 que a tentativa frustrada e bastante difundida de sepretender prevenir neuroses e perversões graças a uma suposta “edu-cação adequada” está embasada numa compreensão um tanto limitadados textos freudianos – mesmo aos que se referem ao “primeiro Freud”nos quais já encontramos a noção da estrutura paradoxal do desejo.Leandro frisa que num plano mais profundo de análise da obra deFreud, é possível perceber “uma reflexão sobre a irredutibilidade es-trutural do desprazer psíquico e, portanto, da impertinência de se pre-tender encontrar uma melhor dosagem das restrições civilizadoras” (p.53). Devido a isso cumpre dizer que Freud não se ilude com uma “edu-cação adequada”, capaz de não implicar desprazer psíquico; caso con-trário, haveria de reservar à educação um papel bem mais proeminentena modificação da estruturação psíquica.

Lajonquière lê Freud com perícia; e convida-nos também a fazê-lo: não devemos supor que Freud num primeiro momento iludiu-secom uma educação menos repressiva, mas que sempre esperou poruma qualidade diferente de intervenção dos adultos junto às crianças.

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conduziram o debate dos capítulosanteriores: Como educar para a reali-dade? Para o desejo? Para o reconhe-cimento do impossível? Enfim, comose educa? A reposta: falando nãocomo especialista, mas como ummortal (lê-se: castrado)! Ora, a psica-nálise não seria a indicada a proporalguma pedagogia; sua aposta estariana educação que acontece quandoendereçamos a palavra a uma criança– a palavra que marca a sujeição doadulto à castração: a única com chan-ces de educar.

No capítulo 6, porém, Lajonquiè-re parece divisar os limites da psica-nálise (pura, diríamos) – até mesmopara que ela não se converta numa“visão de mundo”. É certo que elaaplicada à educação consistiria na ten-tativa de analisar e dissolver as ilusõespedagógicas tecnocientificistas. A issoLeandro renomea “psicanálise na edu-cação”, que pode reclamar ao analis-ta uma outra implicação que não sejaa do seu dever de estritamente psica-nalisar. Nesses casos, caberia a ele apossibilidade de reconhecer seus limi-tes e, uma vez livre de seu dever res-trito, caberia tomar partido nas dis-cussões em torno da vida junto àscrianças; esperando, à maneira deArendt, recolocar o mundo no seuponto justo para “inocular o germedo ato de se tentar o impossível” (p.72).

Lajonquière abre a segunda par-te de seu livro, A educação e a reprodu-ção d’isso que nos faz humanos, salien-tando que a educação não acontece

Longe de uma educação profilática,esperava sim que a palavra dirigida àscrianças fosse de uma outra ordemque não a da moral adulta de seu tem-po ou a do gozo pedagógico hegemô-nico. É assim que Leandro parece tra-duzir a máxima freudiana “educaçãopara a realidade”. Diferente do queprocura a pedagogia, uma educaçãopara a realidade não buscaria a pro-dução da harmonia psíquica, mas sima tentativa de uma educação sem ne-nhum fundamento transcendental,uma educação que se paute na reali-dade do desejo.

Que o futuro nos reserve umaeducação livre das doutrinas religio-sas! – parece brandir Freud. “Ele sa-bia – diz o autor – que essa sua espe-rança era quase vã, porém preferiaacreditar que valia a pena tentar” (p.61).

Entretanto, se a religião pareciaser no horizonte de Freud o empeci-lho para se educar para a realidade dodesejo, hoje tal empecilho é o “tecno-cietificismo pedagógico”, fulmina La-jonquière (cap. 5). O justificacionismopsicossociológico, as prescrições demanuais, a medicalização moderado-ra podem até consolar e anestesiar paise pedagogos, ao conter e governar ascrianças, mas a isso o desejo não sesucumbe. A tentativa de suturá-lo ésempre vã, alerta Leandro.

Em seguida, o autor lembra-nosa repisada mensagem de Freud sobrea necessidade de se reconhecer o im-possível na educação, na política e napsicanálise; e retoma as perguntas que

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Anum cenário perfeito conforme idea-lizado pelo pensamento pedagógico,mas se processa num mundo repletode diversidades, inesperados e impre-vistos. Isso por si só já torna falso odilema da suposta disjunção que dis-curso pedagógico hegemônico quertratar: ou bem ensinar à vontade o quequer que seja ou bem esperar que acriança aprenda sozinha – ambas de-correntes de uma idealização natura-lista. Pensada dentro desses parâme-tros, qualquer que seja a intervençãoadulta mostrar-se-á devedora do “efei-to verdadeiramente subjetivante, pas-sível de participar da criação de umanovidade psíquica”. Ao invés do re-posicionamento entre os extremosensinar e esperar, uma possibilidadede saída seria a tentativa de fazer umfuro, uma travessia. Em outras pala-vras, é inserir o educacional no âmbi-to da palavra e da linguagem animadapelo desejo, destacando – claro – seucaráter de laço social. Quem sabe pos-sa-se recuperar assim a ideia de ensi-nar não como uma tecnociência, mascomo o ato mesmo de colocar em sig-nos (de ensi[g]nar); isso que não é maisdo que lançar a palavra “ao rodeio”,diz Lajonquière parecendo aludir à no-ção de furo, da roda do furo que o issoproduz.

Nos capítulos 2 e 3, o autor re-cupera o embate acerca do desenvol-vimento versus constituição, para de-monstrar que a subjetividade não podeser entendida como “uma substânciaem desenvolvimento”. Ela é efeito donó vazio estabelecido pelos registros

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real, simbólico e imaginário – em menção aos nós borromeanos, deLacan. O próprio nó vazio é o sujeito do desejo, acredita Leandro.Mas alerta e reafirma: “não há sujeito sem Édipo e sem castração”(p. 89). Talvez tal assertiva venha se opor a uma tendência hipercon-temporânea da psicanálise de interrogar o complexo teorizado porFreud e as interpretações que nele se assentam. É uma polêmica.Leandro a aborda lançando mão de sólidos argumentos teóricos etradicionalmente conhecidos, como a identificação simbólica, a fan-tasia originária e a filogenia contida no mito da horda primitiva deFreud, para reforçar sua proposição acerca da “ideia inconsciente depai”. E esclarece: o pai é uma ideia que carrega tanto familiaridadequanto estranheza.

Sobre isso, vale reproduzir a frase de Noé Jitrik que abre o livrode Leandro, tão genial quanto poética: “O pai é o que não está, oque não pode responder ao grito elementar, o que não pode serencontrado pelas palavras que o evocam”.

Erfindug (invenção) é o termo que Lajonquière faz uso para ci-mentar sua proposição – termo extraído do debate que Foucaultpromove acerca de A gaia ciência, de Nietzsche. O pai, em Freud, dizLeandro de Lajonquière, é Erfindung – e não Ursprung (origem). Demesmo modo, a linguagem também o é, “a partir de uma realidadeliteralmente muda”. A linguagem como invenção permite-nos pen-sar o binômio lei-desejo como constituído no interior de uma hordade sapiens, condenada ao silêncio por um tirano gozador. É nessaalegoria da horda que se tem lugar a invenção tanto da linguagemquanto da proibição do incesto, e que marca a passagem da hordaprimitiva à aliança fraterna. Por ser a estrutura da linguagem da mes-ma ordem que a precipitação do suposto assassinato coletivo do tira-no da horda, a cada nascimento de uma criança, ela deve se sujeitar àlinguagem, rememorando a lei, reguladora da ordem do discurso.

Em seguida, magistralmente, Lajonquière aborda o processoconstitutivo de “fazer-se menino(a)” – título do cap. 3 – com baseno que chama educação primordial. Trata-se aqui, de sobremaneira,do “desejo de uma mãe, produzido pela operação de metáfora doNome-do-Pai” (p. 115). Além de demonstrar a transformação do“organismo-bebê” em um ser da linguagem, portanto, em um sujei-to de desejo, o autor parece substanciar e conduzir-nos – a nosso ver– para o que ele mesmo antes denominara “educação para a realida-de do desejo”. É o seu norte. Para tanto, apoia-se em autores comoWallon, Lacan e o próprio Freud para relembrar a importância do

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Adesejo materno, sem o qual nenhuma educação seria possível. Mas tam-bém relembra: o “eu” nunca é um “si-mesmo” total, justamente porser em parte um “ser-outro”, mais precisamente, um ser para a mãe.Eis uma primeira tensão desejante e discursiva, diz o autor, que instalaum “sujeito cindido” – cindido pela linguagem, como anteviu Freudcontra todo propósito iluminista. O capítulo é então finalizado comuma ideia genial, justamente por ser simples: entendemos que é neces-sário que o outro compareça com seu desejo e sua palavra para quehaja uma educação para a realidade do desejo. E o próprio autor adver-te-nos: “tem que ter gente comum disposta a enunciar, em algum mo-mento e com certa tranquilidade espiritual, a frase: ‘faz o que estoumandando, pois eu sou tua mãe... pois eu sou teu pai’”; puro artifício,moteja Leandro (p. 117).

Na terceira parte do livro, Do que não deve ser feito ao que pode acontecernuma educação, Lajonquière rememora um estudo de sua autoria sobre olegado de Jean Itard na educação, exclamando a necessidade de reali-zarmos “um exorcismo” para minar a força repetitiva desse lastro his-tórico atrelado ao Iluminismo tardio francês. Para o autor, a conse-quência desse trabalho poderia ser “uma aproximação da pedagogia àsartes, ao invés de pretender vir a ser reconhecida do lado das ciências”.Mal sabia, diz ele mesmo, que a produção daquele estudo já iniciava oque hoje propõe em seu Figuras do infantil com o registro “psicanálisena educação”. E o que quer dizer? Que se faz necessário a implicaçãode algo por parte dos educadores que deveriam posicionar-se como“pedagogos não pedagógicos”: gente comum, grifa o autor, disposta afalar com as crianças em vez de falar sobre elas de forma pedagógica.

Após um detour pelo iluminismo setecentista do médico Itard, in-cluindo seu caso Victor, o pequeno selvagem de Aveyron, contrapostoà virtuosidade rousseauniana de Emílio, Lajonquière disseca a argu-mentação naturalista do período; e antevê em Rousseau o embrião doque mais tarde a psicanálise irá defender: “reconheçamos à criança odesejo de aprender e qualquer método lhe será bom” (citado por Leandro,2010, p. 134). Leandro não é o primeiro a fazer uma aproximação entreRousseau e Freud, e sabe bem que a noção de desejo para cada um é olimite disso. Ainda assim, a suspeita do iluminista de um desejo quedesnaturaliza o sujeito merece realce.

E qual é a mensagem de Lajonquière? Os adultos não devem ten-tar personificar a essência do pensamento de teóricos como Itard, tam-pouco lança mão do desejo metafísico de integrar um princípio inuma-no, transcendente à ordem do simbólico. Para o autor, talvez seja possível

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fora pretendido. Para Lajonquière,“quando uma palavra revela-se outra,entre a primeira e a segunda abre-seuma fenda que possibilita precisamen-te a realização do desejo sempre insa-tisfeito” (p. 158). Entretanto, era dis-so que Itard não queria saber, poisestava disposto a ouvir apenas aquiloque estava previsto em seu programa.E sobre isso, Leandro vai mais além:ao contrário do que acreditava Itard,“a linguagem não se ensina”, em vezdisso, é condição para que algo sejatransmitido. “O interessante é que,mais do que as teorias expressamenteprofessadas, aquilo que conta é a po-sição enunciativa do adulto – ou seja,como ele se endereça à criança” (p.162, 163). Nesse ponto, o autor com-para os métodos de Itard ao de Sicard.Enquanto o primeiro nada queria ou-vir de diferente – ou da diferença –, osegundo se dispôs a falar com seu alu-no surdo e ouvir o que ele tinha paradizer.

Outra comparação é estabeleci-da no capítulo 4, tendo como refe-rência a história de Helen Keller eAnne Sullivan, respectivamente, umacriança cega e surda e uma jovem pro-fessora quase cega. De uma descriçãoque para a psicopedagogia poderiaindicar a impossibilidade de qualquereducação de uma pela outra, Lajon-quière mostra-nos uma diferença deendereçamento da palavra de Annepara Hellen em relação àquela queItard dirigia ao “seu selvagem”. E édesta diferença fundamental que algopode operar. “Para além das peculia-

resgatar algo da ordem de uma “es-trangeiridade espontânea da interven-ção educativa que, ao contrário, pe-dagogicamente, costuma-se creditarna conta da virgindade de uma natu-reza qualquer” (p. 144).

No capítulo seguinte, o autorretorna à educação terapêutica impos-ta ao “selvagem do Aveyron”, comoo chama o médico francês, para pre-cisamente dizer o que não se deve fa-zer ao educar uma criança. Se paraItard a educação parte de algo inter-no que se encontra adormecido e pre-cisa ser estimulado, desenvolvido,aperfeiçoado, para Leandro isso tra-duz justamente o discurso hegemô-nico da psicopedagogia moderna: osonho de transformar o infantil emum modelo ideal para a vida adulta. Éo sonho que “entranha a renúncia aoato educativo e, portanto, torna a prioria educação num fato de difícil acon-tecimento”. Por outro lado, o autoraposta que “é necessário que um adul-to em posição de mestre ensine, mos-tre os signos, ao tempo que deneguea própria demanda educativa” (p. 149).Esta diferença introduz o que será tra-tado em seguida.

“Por que os selvagens não fa-lam?”, título do terceiro capítulo, re-convoca o leitor à discussão acerca dafunção da palavra. Seu uso comportaum paradoxo na medida em que hásempre um desencontro entre aqueleque fala e aquele que escuta. O pri-meiro diz de um lugar inesperado pelooutro que, por sua vez, atribui à pala-vra dita outro signo diferente do que

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Aridades dos destinatários fáticos, o que prima é a forma do endereça-mento inconsciente. Itard, diferente de Anne, nada queria saber detatear nas trevas, de cutucar fantasmas e nem de perder/encontrar nossonhos” (p. 172). Ora, mais uma vez, o aparato científico da jovemprofessora não se coloca como o determinante da educação. Em vezdisso, temos a posição inconsciente do adulto em relação à criança.Semelhante ao ato de Sicard, “Anne desejava falar com Helen. Tinhaalgo a dizer, assim como havia alguma coisa que queria escutar dela” (p.171).

No capítulo 5, Lajonquière se dedica ao tema das “necessidadeseducativas especiais”. A série de mudanças na nomenclatura vem aten-der aos ideais da modernidade, mas não deixa de marcar o aspectofundamental, a segregação. A obsoleta ideia de déficit cede lugar a nãomenos questionável noção de necessidade. “O déficit é uma falta a serapagada por reeducação ou reabilitação, enquanto a necessidade é umafalta a ser satisfeita com educação” (p. 181, 182). Tanto numa lógica quantonoutra, o sujeito está preso. O modelo hegemônico, que supõe ter osaber que falta ao outro, nada mais faz do que repetir a experiência deter a criança como um selvagem à mercê dos experimentos científicossem oportunidade para se inscrever como diferente. Apesar disso, olugar da selvageria não é aceito por aquele que deseja desejar. Não semdificuldades, “as crianças aguentam o tranco na medida em que invertema demanda educativa, mesmo pedagogizada, cavoucando para si umlugar nos sonhos dos outros” (p. 188).

Em Sobre uma degradação geral da vida com crianças, quarta e últimaparte do livro, os seis capítulos organizam os argumentos para susten-tar a ideia de que a infância não está acabada e desenvolver a tese deque ela só existe enquanto perdida no adulto. A discussão contemporâ-nea sobre um suposto final da infância, que fora anunciada na introdu-ção, é retomada no primeiro capítulo. A infância está em extinção ouseu período é atualmente menor? A perda da infância seria efeito danão garantia dos direitos constitucionalmente estabelecidos? O debatecomporta ainda a diferença das crianças de outros tempos para as dehoje. Ainda que não discorde de que os tempos mudaram, Lajonquièrenão demora a desconstruir o aparato imaginário moderno sobre a in-fância. Assim, fecha o capítulo com sua ideia: o “infanticídio simbóli-co”. “A insistência atual na bondade democrática e no amor dos adultos,propulsora de um sem número de direitos d’A-Criança (...) indica nossarecusa em manter aberto o interrogante que ela sempre instala: comochegar a estar seguros de algo e falar disso a uma criança?” (p. 199).

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O segundo capítulo começa coma palavra de crianças que conduzemo autor a algumas demarcações. Ascrianças negam possuir aquilo que osadultos supõem que elas detenham: o“saber sobre a infância”; e continua:“as crianças assinalam, ao contrário doque se imagina, serem os adultos osdetentores desse saber” (p. 201). Re-tomando o debate acerca do fim dainfância, Lajonquière considera que“ele mascara o fato que criança algu-ma possui uma infância. Pois, para-doxalmente, só um adulto pode ‘ter’uma infância enquanto perdida”(idem). A chegada de uma nova crian-ça provoca no adulto uma inquieta-ção em torno de algo de seu saber.Neste que aparece como um estranhoé que o adulto supõe ter alguma res-posta sobre si mesmo, sobre o que fi-cou perdido no passado, sobre suaprópria castração. Ora, ao mesmotempo em que a criança apresenta oestranho, carrega consigo também ofamiliar. Ademais, o que o autor nosmostra é precisamente aquilo que odiscurso psicopedagógico, na ilusão detudo saber, não quer colocar em ques-tão: “uma infância só existe como per-dida, desconhecida, recalcada, moti-vo pelo qual não cessa de não seescrever, de não se inscrever, de in-sistir, pulsar em ‘nós’. Ela insiste comodiferença temporal fazendo-nos estra-nhos ao presente, estrangeiros comrelação a ‘nós mesmos’”, conclui àmaneira de Kristeva (p. 211). Isso queé enigma para o adulto também fazquestão para a criança. É daí, por-

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Atanto, que ela tem o ponto de partida para desejar este outro mundoadulto.

Os impasses que fazem da educação algo de difícil acontecimentosão debatidos no cap. 3, “Estranhas crianças estranhas” – que dá títuloa este texto. Na medida em que os mais velhos não se colocam frente afrente com o enigma, mas supõe um saber sobre a criança, tampoucopermitem que esta se apresente como diferente do que o outro delimi-tou. O discurso científico hegemônico tem o caráter de “falar para” ou“falar sobre” o outro. Este outro está aí numa posição de receber algoque está pronto e distante. Eis o que Leandro de Lajonquière de modoperspicaz vai denominar “selvagem” ou “extraterrestre”: aquele que sedeve estudar, admirar ou até repudiar, mas sempre com certa distância.O que propõe a psicanálise é “falar com”. Ora, nessa medida, a palavrado outro se insere na cadeia de significantes na qual se pode deslizar ese restabelecer, desde que, na inevitável fenda, se coloque a questão:“que quer de mim esse que assim me fala? Essa pergunta sem respostaconclusiva indica o desejo em causa no ato educativo, um ato de fala nointerior do campo da palavra e da linguagem capaz de enlaçar um deviradulto sem fim” (p. 216, 217).

Sobre a diferença das crianças em outros tempos e nos temposatuais, como indicado na introdução, Lajonquière concebe que as crian-ças de hoje são tão diferentes das de um passado recente quanto estastambém o foram em relação às anteriores. Mas a insistência em enfati-zar tal diferença não deixa de chamar a atenção do autor. Nesse senti-do, ressalta que “A ‘grande... mas tão grande diferença de hoje’ não fazda criança um estrangeiro em vias de familiarização, faz dela um selvagemou um extraterrestre” (p. 217). Assim, completa: “não há educação pos-sível se o pequeno-ser está marcado a fogo pela selvageria ou aextraterritorialidade” (p. 219). Enquanto selvagens ou extraterrestres, acriança não tem educação a ser operada, nem sequer infância a serperdida. Nessa condição, a criança é efeito da renúncia do adulto. Istoé precisamente o que o autor nomeia “infanticídio simbólico”.

A modernidade e a escola inventada por ela são novamente colo-cadas em xeque no cap. 4. A infância para o homem moderno estáimersa em um corpo de ilusões que contornam a esperança de ummundo melhor o qual a criança desfrutará no futuro. A escola, quechama à ordem as crianças, estabelecendo a divisão entre a escola e acasa, entre o mundo público e privado, entre o adulto e a criança, intro-duz a própria denegação da demanda adulta. Ela, na verdade, não pedeàs crianças para serem adultas, mas tão somente “parecer ser”. Essas

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diferenciações, na perícia de Lajon-quière, parecem ter-se dissolvido nostempos atuais e isso “implica umademanda que não se denega a si mes-ma e, portanto, condena as crianças aresponder no real do ato” (p. 226).Nessa demanda, que pretende condu-zir a criança a desfrutar um feliz mun-do de direitos adquiridos, algo esca-pa. A representação inconsciente desua infância agora perdida, e tambémdessa nova criança, fogem àquilo quequalquer discurso político ou científi-co queira enquadrar.

“Antes, os livros e a escrita guar-davam para si os segredos do mundoadulto. A obtenção da chave para abriro segredo entranhava o seu aprendi-zado por parte das crianças” (p. 230).Esta frase indica o que, no cap. 5, La-jonquière discute acerca do lugar daescrita nas diferentes gerações. Hoje,com o amplo e fácil acesso à televi-são, não é mais necessário “bisbilho-tarmos a biblioteca de nossos pais eavós para encontrarmos aquilo quesupúnhamos conter o segredo dosavoir-vivre adulto” (p. 230). Lajonquiè-re adverte que a escrita está ligada tan-to à “falta de proporção entre gera-ções” quanto às origens da escola queconhecemos. Além disso, salienta que“ela é uma dobra discursiva no inte-rior do campo da palavra e da lingua-gem e, portanto, releva a implicaçãodo sujeito no desejo” (p. 234). Poroutro lado, a partir de uma remonta-gem histórica da universalização doensino no Brasil, o autor percebe quehá hoje um entendimento das crian-

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Aças acerca de uma desvalorização do que é oferecido pela escola, secomparado às ofertas do mercado. Mas contemporiza: esse cenárionão pode se configurar como uma condenação e, para tanto, há que seforjar uma outra escrita.

No capítulo final, Lajonquière retoma textos importantes em queFreud inventa a antropologia psicanalítica localizando pontos em queo ser humano precisou renunciar a determinadas satisfações para er-guer a civilização. Do parricídio do chefe da horda à criação do totem;bem como à união dos demais em fraternidade e à assunção de umnovo pai personificado, Leandro ressalta que “só resta aos homenscomuns lembrar que a orfandade de origem os condena a inventar,uma e outra vez, uma aliança igualitária de direitos” (p. 251). A respeitodessa união, o autor volta à Revolução Francesa e relê os nomes quelhe marcaram: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Todos eles reme-tem à renúncia de um lugar em contrapartida à possibilidade de inscri-ção em outro. Mas ressalta que na empreitada da democracia moderna“foi o reconhecimento da fragilidade do laço social que colocou emcena a aliança fraterna”, grifa o autor (p. 260). E acrescenta: nos diasatuais, é fato que se prefere não querer saber nada a respeito disso.

Em referência ao seu livro anterior, Infância e ilusão (psico)pedagógica(Vozes, 1999), a ideia de “dívida simbólica” é tomada como ponto fun-damental no endereçamento do “velho” para a criança. “A educação –diz o autor – visa a articular simbolicamente um mandato restituitóriode uma ordem – de uma exigência – sempre perdida, uma vez que só seeduca a partir do lugar da dívida contraída de seu próprio pai” (p. 262).Sobre isso, também nada se quer saber.

Quanto ao estatuto do desaparecimento da infância, e a posiçãodo adulto frente ao projeto da modernidade, Lajonquière esclarece: “aimpossibilidade de metaforizar o resto produzido no endereçamentoàs crianças exprimiria a recusa dos adultos para a dívida simbólica comos pais da democratização da vida societária” (p. 263). Ora, não é pelafalta de readaptação ou educação científica para os novos e diferentesseres que a infância poderia não existir, mas sim pela impossibilidadeda criança receber a dívida simbólica que o adulto, na impossibilidadede se deparar com sua infância perdida, recusa-se a passar adiante. Umavez que a contemporaneidade, no rastro do que se pode chamar mo-dernidade e tecnocientificismo, insiste em construir saberes que ten-tam educar, medicar, psicologizar o real dentro de um imaginário tota-lizante, Lajonquière mostra fôlego e propõe outro caminho, por meioda psicanálise aplicada: interrogar as supostas verdades e descortinar o

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resto que não cessa de se inscrever. Econcluímos com o autor: que a infân-cia, esta que tenta a duras penas recu-perar-se na criança, seja de fato e parasempre perdida no adulto.

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Recebido em outubro/2010Aceito em novembro/2010


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