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REPRESENTAÇÕES E IDENTIDADES DOCENTES NOS CADERNOS DE
FORMAÇÃO DO PROGRAMA PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAÇÃO NA
IDADE CERTA (PNAIC)
Juliana Mottini Klein – ULBRA
Introdução
O presente trabalho constitui-se a partir de um recorte de uma pesquisa de mestrado
que vem sendo desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGEDU) da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). O objetivo central desse trabalho
especificamente é problematizar representações docentes presentes em três cadernos de
formação do Programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).
O Programa federal de formação de professores PNAIC1 foi organizado e
desenvolvido através de encontros presenciais com duração de dois anos e carga horária anual
de 120 horas. Destinou-se obrigatoriamente aos professores alfabetizadores que atendiam
turmas do bloco pedagógico, ou seja, do primeiro ao terceiro ano do Ensino Fundamental. Em
2013, a formação centrou-se na área de linguagem; em 2014 na área da matemática. Essa
formação buscou capacitar professores com o objetivo melhor “instrui-los” para atingir a
alfabetização dos seus alunos até, no máximo, 8 anos de idade ou ao final do ciclo de
alfabetização.
A partir de tal contextualização e por estar inserida em uma escola de ensino
fundamental como professora atuante no bloco pedagógico, venho pensando mais diretamente
na constituição e na representação dos sujeitos docentes através de formações específicas para
os mesmos. Em razão disso, optei por desenvolver uma pesquisa que estivesse articulada a
isso, pois como frequentadora da formação pude conhecer um pouco mais o material
elaborado para o referido Programa, percebendo a sua potencialidade para estudo e análise.
Cabe aqui mencionar que todo o material do Ano 1 destinado à linguagem é composto
de dez cadernos, porém, neste trabalho, são analisados apenas três, ou seja, o Caderno de
Apresentação, o Caderno de Formação da Unidade 1 intitulado “Currículo na Alfabetização:
Concepções e o da Unidade 2 cujo título é “Planejamento Escolar: Alfabetização e Ensino da
Língua Portuguesa”.
1 O PNAIC foi instituído pelo Ministério da Educação (MEC) juntamente com a Secretaria de Educação Básica
(SEB) por meio da Portaria nº 867, de 4 de julho de 2012 e configurou-se como um acordo formal assumido pelo
Governo Federal, estados, municípios e entidades.
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Partindo do referencial teórico dos Estudos Culturais e tendo como principais
interlocutores Stuart Hall e Tomaz Tadeu da Silva abordando os conceitos de representação e
identidade, este trabalho tem como objetivo verificar que representações de docentes estariam
sendo produzidas nos Cadernos de Formação do Programa e problematizar como tais
representações puderam contribuir para a constituição das identidades de professores/as
alfabetizadores.
Os Estudos Culturais caracterizam-se pela sua versatilidade teórica através do seu
espírito reflexivo e, especialmente, pela importância que dá às críticas. Nesse sentido, este
campo de estudo “[...] constitui uma ressignificação e/ou uma forma de abordagem do campo
pedagógico em que questões como cultura, identidade, discurso e representação passam a
ocupar, de forma articulada, o primeiro plano da cena pedagógica. (COSTA; SILVEIRA;
SOMMER, 2003, p.54)”.
Para desenvolver tal análise a metodologia da pesquisa organizou-se de forma onde
foram destacados excertos que compõem o corpus de análise e que de alguma forma
direcionam o trabalho pedagógico docente. Não se tratará de me posicionar a favor ou contra
ao Programa ou aos discursos apresentados nos cadernos de formação de professores, mas sim
de problematizar a questão, mostrando como eles, ao serem considerados artefatos da cultura,
exercem uma pedagogia, nos ensinando coisas e contribuindo para a constituição de
identidades docentes. Será central nessa análise a compreensão de como a cultura nos
constitui, como ela nos interpela, nos produz e nos ensina a viver e a ser de uma determinada
forma.
A importância das discussões sobre alfabetização e letramento na contemporaneidade
Historicamente vemos por parte dos governos investimentos na área da educação,
visando melhorias na qualidade da alfabetização e tendo como objetivo principal diminuir os
índices de analfabetismos e evasão escolar. Certamente comparando dados obtidos entre os
anos de 2001 a 2011 puderam-se verificar avanços nos índices de alfabetismo, porém o que
ainda é questionado por especialistas da área relaciona-se principalmente à qualidade dessa
alfabetização e à funcionalidade da leitura e da escrita socialmente.
Devido a esta preocupação com a alfabetização e com as melhoras na qualidade da
educação, ocorridas especialmente no final do século XX, é que foi implementado pelo
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governo federal o PNAIC, buscando a formação dos professores e sua aplicabilidade aos
alunos dos três primeiros anos do ensino fundamental.
Com a implementação do ensino fundamental de nove anos no ano de 2006 e o
ingresso de alunos de seis anos nessa etapa foi oportunizado aos professores um manual
produzido pelo MEC titulado: Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações para a inclusão
da criança com seis anos de idade (EFNA) buscando orientar o processo de ensino e
direcionando o trabalho em sala de aula de forma que fossem contemplados tanto a
alfabetização, como o letramento.
Sobre esse enfoque, atualmente o que percebemos é que não há mais uma separação
de alfabetização e letramento e sim uma união desses dois aspectos. Tanto os cursos de
graduação, quanto as formações de professores, como a que estou analisando, têm orientado e
instrumentalizado os professores através de textos teóricos, materiais pedagógicos e sugestões
de atividades para que ocorra uma proposta de trabalho onde há uma aproximação desses dois
conceitos presentes no processo de alfabetização.
Leal, Moraes e Albuquerque (2006), muito utilizados nas discussões sobre o tema e
apresentados nos materiais produzidos pelo MEC, utilizam-se das contribuições de Magda
Soares para definir alfabetização e letramento. Alfabetização refere-se ao processo pelo qual
se adquire a escrita alfabética, enquanto que o letramento seria o uso da leitura e escrita em
situações sociais. Mesmo definidos separadamente é defendida a união destes conceitos e
Magda Soares define alfabetizar letrando da seguinte forma: “alfabetizar e letrar são duas
ações distintas, mas não inseparáveis, ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja:
ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais de leitura e da escrita”. (SOARES,
1998, apud LEAL; ALBUQUERQUE, MORAES, 2006, P.72-73)2
O MEC, ao propor cursos de formação destinados aos professores, tem como objetivo
instrumentalizar os docentes de como é possível alfabetizar letrando, pois a sociedade
neoliberal busca além de um sujeito alfabetizado, um sujeito letrado, que além de dominar a
leitura e a escrita saiba usá-la, conseguindo interagir de forma social e economicamente de
forma mais eficaz. Dessa maneira, cada vez mais cedo e eficientemente a escola almeja
produzir sujeitos alfabetizados e letrados.
2 Ensino Fundamental de Nove Anos: orientações pra a inclusão da criança de seis anos de idade: + 1 ano é
fundamental, 2006.
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Alfabetizar letrando é um desafio permanente. Implica refletir sobre as práticas e as
concepções por nós adotadas aos iniciarmos nossas crianças e nossos adolescentes
no mundo da escrita, analisarmos e recriarmos nossas metodologias de ensino, a fim
de garantir, o mais cedo e de forma mais eficaz e possível, esse duplo direito: de não
apenas ler e registrar autonomamente palavras numa escrita alfabética, mas de poder
ler-compreender e produzir os textos que compartilhamos socialmente como
cidadãos. (LEAL; ALBUQUERQUE; MORAES, 2006, p.83)3
Esse método de ensino proposto pelo MEC, de certa forma, juntamente com
orientações propostas nos cadernos de formação analisados, acabam norteando a ação docente
e constituindo uma representação do professor alfabetizador que deve modificar e enriquecer
sua prática pedagógica pra assim atingir a alfabetização dos seus alunos na sua totalidade.
Apresentação do material empírico
Os cadernos que constituem o material empírico deste trabalho também estão
disponíveis no site do MEC no link Pacto nacional pela Alfabetização na Idade Certa4. A
utilização desses cadernos teve como propósito orientar os professores a organizarem seu
trabalho em sala de aula, utilizando para tal, textos de autores do campo da educação e de
relatos de professores que exemplificam e demonstram de forma “concreta” os conceitos e
métodos abordados.
Iniciando uma descrição mais detalhada dos cadernos analisados posso destacar que o
Caderno de Apresentação difere-se na sua estrutura dos demais, pois não apresenta seções
específicas como os outros, mas sim busca um detalhamento do Programa e de seus objetivos
gerais e específicos. Apoiado em diversos teóricos e autores do campo da educação,
relacionados a aspectos da alfabetização e letramento como Eliana Borges Correia de
Albuquerque, Telma Ferraz Leal, Artur Gomes de Moraes, entre outros, aborda textos onde há
orientações destinadas aos docentes de como proceder no ciclo de alfabetização, quais
estratégias e recursos utilizar e de como devem ser organizados e realizados os encontros
presenciais do PNAIC de uma forma geral.
Os cadernos “Currículo na alfabetização: concepções e princípios” e
“Planejamento Escolar: Alfabetização e Ensino da Língua Portuguesa” seguem seções
específicas na sua organização. São elas: “Iniciando a conversa”; “Aprofundando o tema” e
“Compartilhando e aprendendo mais”. Através dessas divisões fixas são apresentados textos
3 Idem, ibidem. 4 Cadernos de formação disponíveis pelo site: pacto.mec.gov.br/
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teóricos sobre o assunto abordado que introduzem e exploram concepções de ensino
específicas. Através de compartilhamento de ideias com relatos de experiências essas
constatações são firmadas assumindo uma maior veracidade pela união da prática com a
teoria. Nessa seção há uma abertura destinada às professoras para que falem de si mesmas,
utilizando suas próprias experiências como discursos que reforçam suas ações de sucesso.
Para finalizar apresentam sugestões de novas leituras com o intuito de oferecer novos
aprendizados aos professores, confirmando que como docentes devem sempre estar em busca
de novos conhecimentos.
Figura 1, 2 e 3 – Cadernos de apresentação, unidade 1 e 2.
A representação dos docentes e a constituição de suas identidades como professor
alfabetizador
Buscando aproximar o conceito de representação com a docência é possível destacar
diversos lugares onde há produção e circulação de práticas de significação sobre o papel do
professor. Os cursos destinados a docentes, por sua vez, constroem representações dos
professores como agentes essenciais para formação de novos cidadãos, atribuindo aos
mesmos, cada vez mais, um alto índice de responsabilidade perante o aprendizado e formação
dos seus alunos. Com isso, evidencia-se que existe um sobrecarga ao trabalho do professor,
atribuindo ao seu papel o sentido salvacionista da educação. De acordo com Sommer:
Nesses espaços de formação inicial, pode não aprender o suficiente para exercer o
ofício de professor, mas há uma identidade cristalina associada à representação de
professor por eles engendrada, repetida, estabelecida. (...) há, sim um modelo
hegemônico de docência (uma representação de professor) que os estudantes de
licenciatura “devem” aspirar a se tornar. (2010, p.165)
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Cada vez mais os sistemas de educação e a sociedade delegam tarefas às escolas e aos
seus professores cujo intuito é atribuir certo controle sobre os sujeitos. Busca-se discutir nesse
trabalho, como a política em questão representa o professor e opera para compor a identidade
e governar o campo de ação da docência. Para isso, procuro observar nos cadernos de
formação do PNAIC o quanto os textos lá escritos são campos de prática de uma política de
representação, onde as palavras impressas constituem um conjunto de “verdades”, moldando e
fixando práticas.
Os artefatos analisados pelo campo dos Estudos Culturais são utilizados, na sua
maioria, como recursos estratégicos, nos representando na politica cultural ao fabricar a nossa
identidade, regular nossa forma de ser e agir, determinando o que é certo e errado e definindo
quem somos. Os materiais aos professores destinados apresentam esse poder de narrar, de
fabricar as pessoas direcionando sua forma de ser e de certa forma governando seu modo de
agir. Conforme Hall a cultura nos governa, ou seja, “regula nossas condutas, ações sociais e
práticas e, assim, a maneira como agimos no âmbito das instituições e na sociedade mais
ampla”. (1997, p.39)
Pensando na constituição da identidade docente relacionada ao professor alfabetizador
posso afirmar que dentro desse campo teórico dos Estudos Culturais, um dos conceitos
centrais é o da identidade. Este conceito, é produzido e é resultado de atos de criação
linguística. Ao dizer que a identidade é criada por meio de atos de linguagem, significa dizer
que está ligada a estruturas discursivas e narrativas e que não pode ser compreendida fora de
um contexto, ou seja, fora de sistemas de significação no qual adquire sentido. Assim, nessa
perspectiva, podemos sintetizar o que é a identidade dizendo que é uma construção social,
cultural e histórica.
Por expressar significados sociais e culturalmente construídos os textos, excertos e
discursos impressos nos cadernos de formação conforme “buscam influenciar e modificar as
pessoas e estão ambos envolvidos em complexas relações de poder” (SILVA, 2002, p. 136),
ou seja, buscam produzir certo tipo de identidade. Pode-se pensar que a politica cultural que
incide sobre identidade tem maior influência sobre o trabalho docente do que sobre o
currículo, estrutura da escola ou organização das turmas.
Conhecendo e explorando os cadernos e suas seções específicas, destacarei e
problematizarei a seguir excertos operando com os conceitos de identidade e de
representação. Certamente essa análise, como as demais análises culturais, não serão neutras
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ou imparciais, tendo um envolvimento político e com isso diferenciando-se das demais
disciplinas acadêmicas tradicionais.
Em decorrência das lentes teóricas que utilizo, saliento que não pretendo julgar o que é
correto, verdadeiro e melhor quando falamos no processo de alfabetização e quando nos
dirigimos aos métodos, às estratégias e aos recursos mais indicados para tal, mas busco
discutir como as representações que se encontram nos cadernos de formação dos professores
alfabetizadores colaboram para a construção de maneiras específicas de ser e de atuar como
docente, constituindo – assim – suas identidades.
Para dar início à análise, destaco que tal como já discutido em outras produções cujos
materiais empíricos assemelham-se ao meu, algumas representações foram recorrentes nos
cadernos do PNAIC. Essas representações atrelam-se à ideia de professores “inovadores”,
“reflexivos”, “incompletos”, “responsáveis”, “salvadores”, entre outros. A seguir trago alguns
exemplos que se vinculam a isso:
Além dos materiais didáticos a serem utilizados pelas crianças, é preciso também
garantir material de apoio pedagógico ao professor, em decorrência da importância da
atualização dos professores, além dos momentos de formação continuada, para melhoria
da prática. (Caderno de Apresentação, p.18)
Garantir que todas as crianças que frequentam a escola se alfabetizem nos três
primeiros anos do Ensino Fundamental precisa ser, no contexto atual, uma prioridade da
escola brasileira. (Caderno de Apresentação, p. 25)
Trouxe tais exemplos com o intuito de evidenciar inúmeras possibilidades de análise
que poderei realizar tendo em vista que alguns artefatos escritos destinados aos docentes têm
se mostrado intensamente produtivos na constituição de padrões e referências sociais.
Conforme Costa (2000, p. 78):
Essa politica de representação, ou seja, essa disputa por narrar o outro, tomando a si
próprio como referência, como padrão de correção e normalidade é a forma ou
regime de verdade em que são constituídos os saberes que fomos ensinados a
acolher como “verdadeiros”, como “universais”. Estes saberes são práticas,
reguladoras e reguladas ao mesmo tempo produzidas e produtivas. São discursos que
constituem os sujeitos ao mesmo tempo em que fabricam sua identidade social,
controlam e regulam sua subjetividade.
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Esse estudo destacando o poder da linguagem exercido sobre os sujeitos reforça a
chamada “virada linguística” inspirada no pensamento pós-estruturalista e tão destacada no
campo dos Estudos Culturais. Compreendida como uma reorientação do que se entende por
linguagem e por conhecimento, essa mudança epistemológica abandona a concepção da
linguagem como essência, onde a mesma é vista mais do que um simples ato de fala,
deslocando-se para a noção de linguagem constituidora, produzida nos textos e que
constituem as identidades sociais.
Alguns excertos como os objetivos da formação presentes no Caderno de
Apresentação, evidenciam as ações que os professores devem ser habilitados a desenvolver.
Com isso, é possível analisar o quanto tais narrativas atribuem ao professor a responsabilidade
perante a organização e aplicação de sua prática de ensino. Dessa forma, é possível inferir que
os textos constituem práticas sociais emaranhadas em relações de poder e imposição, ou seja,
“verdades” que constituem a identidade do professor e que sem ingenuidade moldam suas
condutas e ações.
Buscando exemplificar tais considerações acima, apresento algumas representações
constatadas que se constituem a partir de enunciados publicados nos cadernos de formações
analisados. Ao serem representados como “salvadores” fica em evidência o compromisso pelo
qual lhe és atribuído à formação dos alunos, buscando os constituir como cidadãos críticos e
participativos.
O direito à Educação Básica é garantido a todos os brasileiros e, segundo prevê a Lei
9394, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, “tem por finalidade
desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da
cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Art. 22).
Desse modo, a escola é obrigatória para as crianças e tem papel relevante em sua formação
para agir na sociedade e para participar ativamente das diferentes esferas sociais. (Ano 1,
unidade 1, p.30)
Ao serem representados como professores “reflexivos” e “responsáveis” é reforçada a
concepção de educação muito presente na sociedade atual, onde discursos apresentam que
entre os pré-requisitos para ser um bom professor está a tarefa de buscar métodos e estratégias
de ensino novas e mais eficientes, tal como pode ser observado no trecho abaixo:
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Albuquerque, Morais e Ferreira (2008) relatam a tomada de consciência de uma
professora alfabetizadora que, ao olhar para a frequência dos tipos de atividades realizadas em
sua sala de aula, durante um espaço de tempo, chega à conclusão de que seus alunos não se
alfabetizaram, até aquele momento, porque ela trabalhava muito a leitura e a produção de
textos, mas não realizava atividades de reflexão linguística: “Agora eu sei porque meus alunos
não estão alfabetizados. Eu trabalho muito com leitura e produção de textos, mando desenhar,
mas não realizo essas atividades de reflexão com as palavras. Agora vou fazer diferente.”
(Ano 1, unidade 2, p. 13)
Outra representação presente nos Cadernos é a de um/a professor/a que se
“autorresponsabliza”, como fica claro no trecho “Agora eu sei porque meus alunos não estão
alfabetizados. Eu trabalho muito com leitura e produção de textos [...]”, já exposto acima.
Afirmações desse tipo são constantes nos materiais publicados para formação de professores,
pois atualmente mudou-se o foco do aluno responsável pelo seu próprio aprendizado, através
da memorização das unidades sonoras (sílaba, fonema) para o professor responsável pelo
ensino. A mudança de “responsabilidades” e o “protagonismo” do processo ensino-
aprendizagem também são apresentadas e destacadas:
A partir da década de 1980, o fracasso escolar que até então era visto como um
problema de deficiência ou carência cognitiva e cultural dos alunos do meio popular, passou a
ser relacionado, à luz das teorias construtivistas e sociointeracionistas de ensino (em geral) e
da língua (em particular), às praticas tradicionais de ensino da leitura e da escrita. (Ano 1,
unidade 1, p.25)
Os “erros” ou as “escritas não convencionais” dos alunos durante seu processo de
alfabetização também receberam um novo sentido a partir dos estudos de Emília Ferreiro e
Ana Teberosky. Seguindo o caminho da memorização os alunos deveriam evitar o erro, pois
esse fato era indicativo de que o estudante não havia aprendido/memorizado o que fora
ensinado, enquanto que, seguindo as teorias construtivistas e sociointeracionistas, os erros
passaram a ser vistos como hipóteses de escrita.
A avaliação também se modificou ao longo dos anos e estudos na área. Anteriormente
relacionava-se diretamente ao aluno, medindo seus conhecimentos para verificar se os
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mesmos estavam aptos a progredir nos estudos, enquanto que seguindo a responsabilidade da
ação diretamente relacionada ao professor passou-se a avaliar com o objetivo de analisar se as
estratégias de ensino adotadas foram eficientes para o aprendizado dos alunos.
(...) “é papel da escola ensinar, favorecendo, por meio de diferentes estratégias,
oportunidades de aprendizagem, e avaliar se tais estratégias estão sendo de fato adequadas”.
(Ano 1, unidade 1, p.26)
Outra representação docente posta em circulação pelo material em análise é a da
professora como “potencializadora” do desempenho dos seus alunos diante de avaliações
propostas tanto no âmbito da escola, como no âmbito mais geral da educação brasileira. O
relato de uma professora a seguir exemplifica essa questão, demonstrando a conscientização
que a mesma tem sobre a importância da organização do seu planejamento para atingir o
aprendizado dos seus alunos.
“Assim como planejamos as ações que realizamos em nosso dia a dia, o professor
também precisa planejar suas atividades (...) Através do planejamento o professor organiza o
seu trabalho e o tempo didático de forma a proporcionar e criar oportunidades diferentes parra
cada estudante (...). Todas as atividades são realizadas a partir da avaliação diagnóstica dos
alunos no início do ano letivo, destacando as competências a serem desenvolvidas e
consolidadas. (Ano 1, unidade 2, p.14)
É importante destacar que a atuação e a formação docente são consideradas pelo
governo federal estratégias pra alcançar a qualidade de ensino, o que tem contribuído
diretamente para responsabilização do professor frente aos resultados nas avaliações
nacionais. Essa busca por melhores resultados não considera as condições sociais e
econômicas em que estão inseridos professores e alunos, mas responsabiliza os docentes pelos
resultados dos alunos exercendo um controle sobre o que se ensina e como se ensina.
Como as demais formações oferecidas pelo governo federal e relacionadas ao trabalho
docente, o PNAIC busca melhorar os resultados educacionais nas avaliações. Desse modo, a
avaliação, considerando o contexto mais amplo das políticas educacionais, não tem
desempenhado somente um papel pedagógico, mas também, tem funcionado como uma forma
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de controle sobre o trabalho docente. Daí, a tensão entre a avaliação como instrumento de
controle e como ferramenta para aumentar o profissionalismo e o desenvolvimento escolar
(AFONSO, 2009).
Considerações Finais
A partir das problematizações aqui empreendidas, é possível perceber a
responsabilização ao professor frente aos resultados e aprendizagens de seus alunos, buscando
através de um direcionamento das práticas uma forma de homogeneização das mesmas. É
possível dizer que os discursos e as representações presentes no material acabam colocando
em xeque a atuação do professor, depositando diretamente ao mesmo e às suas práticas a
responsabilidade pelo sucesso ou fracasso no aprendizado dos seus alunos. Arrisco-me a
afirmar que o material empírico eleito produz representações que contribuem na formação e
na constituição dos sujeitos docentes, bem como de suas subjetividades e identidades.
Como muitos manuais e livros, os materiais destinados à formação de professores
analisados não possuem neutralidade nos seus textos e palavras, pois destacam certos modos
de ser professores, prescrevendo fórmulas de trabalho e definindo o que é “certo” ou “errado”
quando se trata de conteúdos, condutas em sala de aula e métodos de trabalho. Os textos
teóricos e relatos de práticas presentes no material são enunciados que produzem um padrão
de referência a ser seguido e desejado. Confirmando o descrito acima, Costa (2006, p.26)
destaca que “apesar de parcial, arbitrário e politicamente comprometido, tal padrão tende a ser
exposto como universal e verdadeiro, produzindo todos os efeitos possíveis em uma tradição
cultural edificada sobre o desejo utópico da perfeição e do ideal.”
Os discursos apresentados nesses materiais não descrevem de forma direta o que se
deve ou não fazer, o que está permitido ou proibido em uma sala de alfabetização, mas de
certa forma direcionam o trabalho docente indicando inúmeras práticas pedagógicas. Estas,
por sua vez, são diretamente identificadas por meio de ações e palavras dentro das salas de
aula e esses elementos convergem para que possa dizer que existe um prática sobre regras,
tanto orais quanto escritas, que norteiam a prática pedagógica do professor alfabetizador. Na
sua prática, buscando a efetivação desse processo de alfabetização, o professor alfabetizador
baseado em prescrições propostas pelos cadernos, é sugestivamente incentivado e utilizar
inovações que permitam alfabetizar ensinando a notação alfabética (alfabetização) e ao
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mesmo tempo garantir a iniciação das crianças no mundo da cultura escrita, reconhecendo sua
função social (letramento).
Os excertos destacados, entre outros presentes nos cadernos de formação analisados,
demonstram uma tentativa do Estado de articular saberes, atribuindo responsabilidade aos
professores envolvidos no processo de alfabetização. Nada que lá se encontra escrito é neutro,
ingênuo, mas sim está inserido nas relações de poder.
É evidente a busca das politicas públicas em educação pelo aprendizado dos alunos e
consequentemente pelo aumento dos índices de alfabetização mensurados através de inúmeros
testes padronizados como a Provinha Brasil e a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA),
destinados a alunos envolvidos no processo de alfabetização de todo o país. Diante disso
finalizo esse trabalho destacando a importância dessa temática que problematizei, pois vejo de
extrema necessidade discutir a forma que se tem tentado educar/formar professores para
atingir o aprendizado dos seus alunos na sua totalidade.
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