PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Adriano de Assis Ferreira
Questões Políticas na Comédia Declamada
Brasileira: 1837-1938
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Ciências Sociais, sob a orientação
do Prof. Dr. Miguel Wady Chaia.
São Paulo 2012
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Banca Examinadora
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Para Amaury, Argymiro e Sérgio,
Meus exemplos.
Para Cíntia,
Minha plenitude.
3
Agradecimentos
Querida Lea, esposa carinhosa, companheira e compreensiva,
agradeço pelos passos tão agradáveis de nossa caminhada.
Agradeço à minha tia Maria Helena Acayaba de Toledo pelo
auxílio material, espiritual e intelectual, indispensáveis para o bom andamento
deste trabalho.
Expresso minha gratidão ao meu orientador, professor Miguel
Chaia, sempre paciente e certeiro em suas observações, indicando caminhos
seguros que ampliaram os horizontes culturais da pesquisa.
Agradeço aos professores Eduardo Luiz Viveiros de Freitas e
Rafael Araújo pelas ótimas considerações na banca de qualificação que só não
mais enriqueceram esta tese em virtude das limitações temporais do autor, e ao
professor Fernando Aguillar, pelas indicações que me permitiram vislumbrar
algumas peculiaridades de nosso país.
Destaco meus orientadores da área de Letras, professores Iná
Camargo Costa e João Roberto Faria, fundamentais para minha formação e
desenvolvimento de meu gosto pela pesquisa.
4
Resumo: FERREIRA, A. A. Questões Políticas na Comédia Declamada Brasileira: 1837-1938. 2012. 148 f. Tese (Doutorado) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, 2012. O objetivo é a análise de questões políticas presentes em sete comédias declamadas brasileiras, representadas entre 1837 e 1938: O Juiz de Paz da Roça, Torre em Concurso, Como se Fazia um Deputado, Caiu o Ministério!, Ministro do Supremo, O Secretário de Sua Excelência, Fora da Vida. Justificativa: tais questões repercutem no presente, explicitando peculiaridades da vida política brasileira. Hipótese: a presença de funcionários públicos de moralidade duvidosa nas seis primeiras peças retrata um ambiente de apadrinhamento e clientelismo que prejudica o exercício das funções estatais; na última peça apresenta-se um funcionário moralmente idôneo, porém os problemas decorrem de uma legalidade injusta. Metodologia: leitura crítica das peças teatrais, observando-se a confluência entre a Arte e a Política. Resultado: confirmação da hipótese. Palavras-chave: Teatro brasileiro. Clientelismo. Comédia. Segundo Império. República Velha. Abstract: The objective is the analysis of political issues present in seven Brazilian comedies declaimed, represented between 1837 and 1938: O Juiz de Paz da Roça, Torre em Concurso, Como se Fazia um Depuado, Caiu o Ministério!, Ministro do Supremo, O Secretário de Sua Excelência, Fora da Vida. Rationale: such issues resonate in the present, explaining the peculiarities of Brazilian political life. Hypothesis: the presence of officials of dubious morality in the first six pieces depicts an environment of patronage and clientelism that affect the exercise of state functions, the last part presents an official morally suitable, but the problems stem from an unjust legality. Methodology: critical reading of the plays, noting the confluence between art and politics. Result: confirmation of the hypothesis.. Key-words: Brazilian theater. Comedy. Brazilian politics.
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Sumário:
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 6
Tema ........................................................................................................... 6
Arte, Sociedade e Política: objetivo e pressupostos teóricos ........................ 7
Comédia .................................................................................................... 14
Metodologia: Categorias de Análise e Roteiro ........................................... 24
CAPÍTULO I - CRÍTICAS À MORALIDADE PÚBLICA ......................................... 31
O JUIZ DE PAZ DA ROÇA – TENSÕES, DESLEIXO E RESISTÊNCIA........................................ 31
TORRE EM CONCURSO – OBRA PÚBLICA E MORALIDADE ............................................... 46
COMO SE FAZIA UM DEPUTADO - O “NEGÓCIO” POLÍTICO ............................................. 60
CAPÍTULO II - CARGO PÚBLICO E POSIÇÃO SOCIAL ....................................... 76
CAIU O MINISTÉRIO! - CARGO PÚBLICO E CONDIÇÃO SOCIAL ......................................... 76
MINISTRO DO SUPREMO - CARGO PÚBLICO E ASCENSÃO SOCIAL .................................... 89
O SECRETÁRIO DE SUA EXCELÊNCIA - ASSESSOR ....................................................... 106
CAPÍTULO III - UMA CRÍTICA À LEGALIDADE .............................................. 118
A QUESTÃO SOCIAL E FORA DA VIDA ..................................................................... 118
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 135
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 139
6
Introdução
Tema
O tema deste estudo é, em linhas as mais amplas, as relações entre a
sociedade brasileira e a esfera artística, focadas de uma perspectiva interna a esta. Em outras
palavras, desejamos encontrar elementos sociais na estrutura e no enredo de determinadas
obras de arte.
Especificando um pouco mais tais elementos sociais, voltamos nossos
olhos para aspectos da dimensão política nacional, sobretudo à interpenetração das esferas
pública e privada e às críticas ao Estado brasileiro (e seus agentes) decorrentes das relações de
patronagem e clientelismo. Quanto à esfera artística, delimitamos nossa escolha restringindo-a
a peças de teatro catalogadas como comédias declamadas. Portanto, estudamos a presença do
público/privado e de críticas ao Estado brasileiro em comédias declamadas brasileiras.
Cronologicamente, partimos da primeira comédia escrita por autor
brasileiro e representada em palco local, Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena, encenada em
1837 no Rio de Janeiro, nos momentos inaugurais da nacionalidade independente de nosso
país. Finalizamos o percurso passando por outras seis peças, sendo a última Fora da Vida
(depois denominada Juízo Final), escrita por Joracy Camargo e encenada também nos palcos
cariocas em 1938.
Nossa hipótese principal consiste na ocorrência de uma virada nos pontos
de vista críticos das peças, havendo três momentos distintos1: primeiramente, critica-se a
imoralidade dos ocupantes dos cargos públicos e das autoridades políticas, responsabilizando-
a por deficiências em nossa esfera pública; num segundo momento, a crítica foca a
distribuição de cargos públicos como forma de ascensão social e a troca de favores políticos
em busca de benefícios pessoais; por fim, a última peça deixa de responsabilizar a moralidade
dos ocupantes dos cargos e tenta criticar a legalidade e a verdade jurídica. Convém destacar
que esta última peça está situada no início da ditadura de Vargas, ambientada em um contexto
de construção de um “novo” Estado.
1 Enumeremos preliminarmente as peças estudadas: primeiro momento - 1. Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena (1837); 2. Torre em Concurso, de Joaquim Manuel de Macedo (1863); 3. Como se fazia um deputado, de França Júnior (1882); segundo momento - 1. Caiu o ministério, de França Júnior (1882); 2. Ministro do Supremo, de Armando Gonzaga (1921); 3. O Secretário de Sua Excelência, de Armando Gonzaga (1921); terceiro momento - 1. Fora da Vida ou Juízo Final, de Joracy Camargo (1938).
7
Como hipótese secundária, os três momentos marcam um movimento no
sentido de uma privatização dos temas problematizados pelas peças, que penetram
gradativamente no ambiente doméstico até terminarem em um campo interno à consciência
do protagonista da última comédia. O próprio ambiente cenográfico retrata esse processo,
partindo de espaços tipicamente públicos ou, ao menos, intermediários (praças e salas de
visitas) para um espaço interno (o gabinete de trabalho de uma residência).
Arte, Sociedade e Política: objetivo e pressupostos teóricos
Nosso estudo segue uma ampla tradição de análises que buscam as
confluências entre Arte, Sociedade e Política. Nas palavras de Miguel Chaia, pressupomos
que: ...sob diferentes condições, o artista alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade, de maneira que a obra passa a conter - de forma mais ou menos explícita - o conjunto de fatores sociais circundantes a ela. 2
O objetivo, pois, será desvendar os fatores sociais que foram englobados
pelas peças teatrais a serem analisadas, sobretudo aqueles relacionados a nossas hipóteses.
Faremos a leitura integral das comédias declamadas selecionadas, analisando-as cena a cena,
procurando entendê-las em seu espaço de autonomia artística e não apenas como fonte de
informações de elementos externos. Em outras palavras, a presença do social e do político na
obra de arte é nosso objeto de estudo.
Pressupomos que a obra de arte deriva de uma ação individual consciente
de um produtor artístico. Convém, assim, resgatar a conceituação feita por Miguel Chaia
relativamente às “quatro situações da Arte-Política”3, a partir da análise das ações e produções
dos artistas, do desenrolar dos movimentos artísticos e das estratégias adotadas pelas
instituições políticas:
1. Situação da “arte crítica”: nesta situação, predomina a consciência crítica individual do
artista que, por meio de sua obra, busca compreender o mundo e sintetizar a realidade,
colocando-se na sociedade como um cidadão ativo;
2. Situação da “politização da arte”: nesta situação, a consciência crítica individual do
artista é permeada por componentes ideológicos, partidários ou vanguardistas,
considerando-se a obra um mecanismo prático de transformação social;
2 CHAIA, Miguel. Arte e política: situações. In: CHAIA, Miguel (org.). Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007, p.13. 3 Idem, ibidem, pp. 22-29.
8
3. Situação da “estetização da política”: nesta situação, a produção artística transforma-se
em um projeto político estatal ou partidário, submetendo-se à ingerência desses
agentes e limitando-se a liberdade criativa em nome de ideais oficiais;
4. Situação da “presença política da arte”: nesta situação, uma obra de arte torna-se um
símbolo político que evoca um conjunto de ideias e condições sociais.
Dessas situações, notamos que as obras estudadas revelam o predomínio
da primeira possibilidade (“arte crítica”) nos dois primeiros momentos de nossa análise,
havendo um artista que recorre à forma cômica teatral para criticar costumes sociais
brasileiros. O resultado dessa manifestação é uma peça que traz consigo aspectos da realidade
brasileira e um direcionamento crítico materializado no riso que atinge alguns desses
aspectos, buscando o aperfeiçoamento moral da sociedade e de sua política.
A última peça analisada, por seu lado, reflete a segunda situação, sendo o
resultado da ação individual de um autor (Joracy Camargo) permeada pela ideologia
comunista aclimatada entre nós na década de 1930. Deixa explícita a constatação de que a
realidade brasileira e seu Estado estão viciados, criando situações injustas independentemente
do caráter moral de seus agentes.
Consumada a ação do artista, a obra de arte torna-se autônoma em
relação a ele, adquirindo uma forma própria que a delimita. Essa forma... ... não é social apenas por realizar a mediação entre escritor e leitor, mas por fornecer o próprio material com o qual o autor e o público lidam. Sua existência vai, portanto, além da consciência, sendo possível até se falar em algo como uma forma objetiva, expressão de certas condições históricas e sociais.4
O estudo da dialética entre a forma artística e o processo social, conforme
Roberto Schwarz, inaugurar-se-ia em nosso país com a análise de Antonio Candido às
Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida5. Schwarz destaca a
força dessa análise: No estudo de Antonio Candido o ato crítico (a justificativa racional de um juízo literário) reúne: uma análise de composição, que renova a leitura do romance e o valoriza extraordinariamente; uma síntese original de conhecimentos dispersos a respeito do Brasil, obtida à luz heurística da unidade do livro; a descoberta, isto é, a identificação de uma grande linha que não figurava na historiografia literária do país, cujo mapa este ensaio modifica; e a sondagem da cena contemporânea, a partir do modo de ser social delineado nas Memórias.6
4 RICUPERO, Bernardo. Da formação à forma. Ainda “as ideias fora do lugar”. In: Lua Nova, São Paulo, 73: 59-69, 2008. 5 SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de “Dialética da Malandragem”. In: SCHWARZ, Roberto. Que Horas São?. 2ª reimpressão. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1997, p.129. 6 Idem, ibidem, p. 130.
9
Tal leitura revelaria que o romance se constroi sobre uma estrutura
formal que reproduz, em sua essência, uma dualidade fundamental da sociedade brasileira
novecentista: a dialética entre a ordem e a desordem.
Conforme a perspectiva de Antonio Candido7, a forma artística se
consolidaria socialmente e essa constituição é uma abertura para o crítico identificar aspectos
sociais na obra autonomizada. No caso do livro de Almeida, o autor encontrou uma forma
para contar sua história, e essa forma carregava consigo a dualidade acima referida.
O resultado é um romance que oscila, constantemente, entre os dois
polos, reproduzindo o movimento concreto da vida de uma categoria específica de pessoas em
nosso país, os homens livres, que não eram escravos nem grandes proprietários, mas
precisavam sobreviver entre as normas impostas pelo Estado, que beneficiavam a elite
proprietária, e a onipresença da escravidão, que não deixava postos de trabalho dignos,
restando tão somente o recurso à infração normativa e a existência em um espaço amoral.
Roberto Schwarz aponta, a partir das constatações acima, que a forma
promoveria a junção entre o romance e a sociedade: Esta é entendida como um princípio mediador que organiza em profundidade os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos. Sem descartar o aspecto inventivo, que existe, há aqui uma presença da realidade em sentido forte, muito mais estrita do que as teorias literárias costumam sugerir. Noutras palavras, antes de intuída e objetivada pelo romancista, a forma que o crítico estuda foi produzida pelo processo social, mesmo que ninguém saiba dela. Trata-se de uma teoria enfática do realismo literário e da realidade social enquanto formada. Nesta concepção, a forma dominante do romance comporta, entre outros elementos, a incorporação de uma forma da vida real, que será acionada no campo da imaginação.8
Essa tradição de leituras críticas avança com o próprio Schwarz e suas
análises dos romances machadianos. As análises do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas e Dom Casmurro revelam aspectos fundamentais de nossa sociedade, também
convertidos em estruturas formais que norteiam a progressão das narrativas9.
O crítico constata, por exemplo, que uma das marcas desses romances
são as constantes veleidades narrativas dos personagens que contam as histórias. Talvez a
primeira genialidade de Machado consista no ato de dar a palavra, como narrador, a pretensas
7 SOUZA, Antonio Candido de Mello e. Dialética da malandragem. In: SOUZA, Antonio Candido de Mello e. O Discurso e a Cidade. 3ª edição. São Paulo / Rio de Janeiro: Duas Cidades / Ouro Sobre Azul, 2004, pp. 17-46. 8 SCHWARZ, Roberto. Ob. cit., p. 141. 9 SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas. 5ª edição. São Paulo: Ed. Duas Cidades / Ed. 34, 2000; Um Mestre na Periferia do Capitalismo – Machado de Assis. 4ª edição. São Paulo: Ed. Duas Cidades / Ed. 34, 2000; Duas Meninas. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1997.
10
figuras de nossa elite do século XIX. Quando esses personagens convertem-se em narradores,
reproduzem em suas falas uma dualidade fundamental de nossa sociedade: oscilam, conforme
as conveniências próprias, entre as instâncias do respeito às regras da narrativa e do
afastamento das mesmas. Tal e qual recorrem, em suas existências senhoriais, conforme as
conveniências, ao argumento esclarecido e legalista ou simplesmente ao argumento
personalista e patriarcal para justificar seus atos.
Convém ressaltar uma diferença: enquanto os senhores oscilam entre os
polos do respeito à norma e de seu afastamento por questões e veleidades pessoais, os homens
livres oscilam entre a norma e a infração, no mais das vezes, como único recurso para a
sobrevivência.
Roberto Schwarz, contudo, dá ainda outro passo ao constatar que as
relações descritas em Dom Casmurro entre Bentinho e Capitu correspondem a relações entre
um senhor e uma filha de um homem livre, agregado à família de Bentinho10. Capitu é a
mulher que ascendeu socialmente pelo casamento, passando a fazer parte da família de
Bentinho. Este, por seu turno, narra suas suspeitas de adultério, como forma de justificar a
violenta expulsão de Capitu perante seus iguais.
Por detrás dessa postura de Bentinho revela-se sua concepção senhorial:
ainda que permitindo o casamento a Capitu, esta nunca saíra de sua condição de dependente,
ficando sujeita às mudanças de humor do personagem e à abrupta interrupção do favor que
fizera a ela.
Todos esses elementos foram identificados pelo crítico no romance
machadiano (em sua estruturação formal) e correspondem, conforme afirmado, a aspectos da
sociedade brasileira. Revelam uma sociedade marcada por uma dualidade fundamental, entre
aspectos “arcaicos” e “modernos”, contraditórios, mas que se unificam na figura senhorial,
permitindo a integração de nosso país ao capitalismo mundial e nos fazendo parte
indispensável desse todo.
Tais análises críticas podem justificar nosso intuito de abordar obras de
arte em busca de aspectos da sociedade brasileira. Contribuíram, inclusive, para o
aprofundamento e o alargamento de perspectivas críticas das ciências sociais e da
historiografia nacionais.
10 Especificamente no estudo dedicado a Capitu em Duas Meninas (SCHWARZ, Roberto. Duas Meninas. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1997).
11
Tratemos, agora, de outros pressupostos que fundamentam nosso estudo.
Primeiro, devemos apresentar a possibilidade de leitura autônoma de textos teatrais, como
obras de arte, independentes de sua encenação. A seguir, devemos destacar alguns estudos
que focam as relações específicas entre a forma dramática e a sociedade.
O teatro é um modo de produção específico que congrega três
elementos: espetáculo, espaço e público11. O ponto final desse processo produtivo, assim, é a
apresentação de um espetáculo, em um espaço, para um público, normalmente mediante o
pagamento de uma quantia em dinheiro.
Enquanto produção capitalista, o teatro agrega valor de troca a um
produto que possui valor de uso. Seu valor de uso corresponde ao valor artístico atribuído,
pelo público e pela crítica, ao espetáculo. A concretização do valor de troca depende do
sucesso obtido na produção do público (salvo em casos de patrocínio estatal ou privado, em
que se prescinde do público para tanto).
O espetáculo pode ser de diversos gêneros: uma “peça”, um desfile
carnavalesco, um “musical” ou um show de um cantor, por exemplo. A partir da
modernidade, todavia, a palavra teatro sofre, da perspectiva dos críticos, uma redução
semântica, passando a designar apenas uma modalidade específica de espetáculo: a encenação
dramática, ou seja, espetáculos cujas cenas possuem um grau de articulação entre si,
normalmente de tal sorte que uma engendra a outra12.
O Teatro de Revista, no Brasil, ilustra esse processo. Inicialmente
surgido em nosso teatro como Revista de Ano, no final do século XIX, quando apresentava
necessariamente um fio de enredo ligando suas cenas, como a história de personagens que
passeavam pelos acontecimentos do ano anterior enquanto buscavam a resolução de seus
conflitos, transformou-se em um conjunto de quadros independentes, comandados por um
apresentador, perdendo a qualidade de “teatro” para ser designado como “programa de
auditório”.
Para que um espetáculo seja reconhecido como teatral, sobretudo na
perspectiva da crítica nacional do início do século XX, deve “encenar” um texto. Esse texto
torna-se, portanto, matéria-prima da produção teatral. A ideia de encenação consiste na
11 Esta perspectiva está mais bem delineada em nosso estudo Pressupostos para a análise do teatro brasileiro no início do século XX. In: FERREIRA, Adriano de Assis. Teatro ligeiro cômico no Rio de Janeiro: a década de 1930. São Paulo: tese de doutorado, FFLCH-USP, 2010, pp. 16-30. 12 O epíteto “verdadeiro” teatro, na perspectiva dos críticos, é reservado para alguns espetáculos, como a encenação de Tragédias, Dramas e Altas Comédias. Outros tipos de espetáculos, como as Variedades e as Baixas Comédias, são consideradas inferiores e indesejadas.
12
transformação desse texto em cenas que se somam, compondo o espetáculo. Tais cenas
apresentam, por meio dos diálogos, os personagens e seus conflitos (nós dramáticos); levam
tais conflitos a um ponto máximo; resolvem os conflitos (desatam os nós).
Como matéria-prima, o texto deve adequar-se aos parâmetros da
produção que irá encená-lo, sob pena de não ser considerado teatral, mas apenas literário.
Enquanto produto existente por si, o texto pode ser considerado fruto de uma produção
própria, realizada por um artista individual ou coletivo, que possui valor de uso, ou artístico-
literário. Podemos simplesmente ler um texto teatral, tal e qual lemos um texto épico ou
lírico.
Nosso estudo focará, portanto, textos teatrais sob a perspectiva artístico-
literária, como obras de arte. Destacamos as palavras de João Roberto Faria: Sei muito bem que o espaço da realização teatral é o palco, não a estante. No entanto, ainda que o dramaturgo escreva para ser representado e que o teatro seja mais atraente e verdadeiro enquanto espetáculo, nada impede que busquemos o “prazer do texto” - para lembrar a feliz expressão de Roland Barthes - na leitura das peças teatrais ou que as estudemos criticamente. (...) Isso só pode significar uma coisa: a literatura dramática possui uma vitalidade própria, que no palco pode ser realçada ou não, dependendo da competência do encenador, do cenógrafo, dos artistas etc. (...) Quer dizer, se o espetáculo é autônomo em relação à dramaturgia, a recíproca também é verdadeira. Uma peça pode ser lida, apreciada, estudada em sua forma original.13
Mostramos, anteriormente, que existe uma tradição brasileira de análise
crítica de narrativas, que correspondem ao gênero épico, revelando relações entre a estrutura
formal das mesmas e a estrutura social de onde brotam. Todavia, estudamos peças teatrais
buscando tais relações e não obras narrativas. Precisamos, pois, fundamentar essa pretensão.
Nosso ponto de partida é Peter Szondi, crítico literário de origem húngara
e docente da Universidade Livre de Berlim, e seus estudos sobre a forma dramática. Em
linhas gerais, o autor analisa, em Teoria do Drama Moderno (1880-1950)14, escrito no início
da década de 1950, aspectos da chamada “crise do drama”, que se verifica em autores como
Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck e Hauptmann, apresenta, ainda, autores que
tentariam “salvar” tal forma e autores mais recentes que buscariam solucionar a crise.
Um dos aspectos mais interessantes desse seu trabalho consiste em,
partindo de uma fundamentação hegeliana, deixar implícita a íntima conexão entre a forma
dramática e a sociedade capitalista concorrencial (depois explicitada noutro livro, Teoria do
13 FARIA, João Roberto. O Teatro na Estante. Cotia: Ateliê Editorial, 1998, pp. 9-10. 14 SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno [1880-1950]. São Paulo: Ed. Cosac & Naify, 2001.
13
Drama Burguês15). Entre os pressupostos para a existência e o pleno desenvolvimento do
drama estariam as condições sociais que permitem a subjetivação individual e a crença de que
tais indivíduos são seres racionais, capazes de se comunicar e de agir por meio de contratos.
Em outras palavras, uma sociedade que acredita na livre-iniciativa e na liberdade contratual,
na análise de Iná Camargo Costa: O drama é a forma teatral que tem por objeto a configuração de relações intersubjetivas através do diálogo. O produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática e esta pressupõe a liberdade individual (o nome filosófico da livre-iniciativa), os vínculos que os indivíduos têm ou estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade de decisão de cada um. Através do diálogo, as relações vão se criando e entrelaçando de modo a produzir uma espécie de tecido, por isso mesmo chamado enredo ou entrecho, devendo ter claramente começo, meio e fim, com direito a nó dramático, nó cego, desenlace, etc.16
O drama torna-se, assim, a forma artística mais plena e adequada para o
capitalismo concorrencial. Consiste na apresentação, por meio dos diálogos, de personagens
que são indivíduos, dos problemas que enfrentam, e dos meios que utilizam, sempre
reduzíveis à forma verbal, para resolver esses problemas. O drama, para se formar, portanto,
depende de uma sociedade na qual os indivíduos acreditam que podem resolver, sozinhos,
recorrendo apenas à palavra, seus problemas.
No final do século XIX o capitalismo concorrencial entra em crise,
transformando-se em um capitalismo de grandes concentrações econômicas, impedindo a
livre iniciativa e trazendo dúvidas quanto à liberdade contratual. Pois a análise de Peter
Szondi permite constatar como essa crise se materializa em transformações na forma
dramática que, em última instância, levam-na a um colapso. Os autores do capítulo dedicado à
crise do drama são autores que apresentam personagens paralisados, incapazes de se
comunicar ou de resolver seus problemas, pois tais problemas começam a extrapolar os
limites do controle individual.
Essa constatação, que deriva da obra do crítico europeu, somente é
possível em virtude de sua delimitação formal do drama, de inspiração hegeliana, explicitando
suas relações com o social. Segundo Szondi, O drama da época moderna surgiu no Renascimento. Ele representou a audácia espiritual do homem que voltava a si depois da ruína da visão de mundo medieval, a audácia de construir, partindo unicamente da reprodução das relações intersubjetivas, a realidade da obra na qual quis se determinar e espelhar. O homem entrava no drama, por assim dizer, apenas como membro de uma comunidade. A esfera do “inter” lhe parecia o essencial de sua existência; liberdade e formação, vontade e decisão, o mais importante de suas determinações. O “lugar” onde ele alcançava sua
15 SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês [século XVIII]. São Paulo: Cosac Naify, 2004. 16 COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama. In: COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama. Petrópolis: Ed. Vozes, 1998, p. 56.
14
realização dramática era o ato de decisão.17
O diálogo torna-se essencial no drama, permitindo a comunicação
intersubjetiva e dando contorno a suas características peculiares. Conforme Szondi, o drama
tornar-se-ia “uma dialética fechada em si mesma, mas livre e redefinida a todo momento”18,
não conhecendo nada externo a ele, nada que não seja atualizado pelo diálogo. É a “forma
poética do fato (1) presente (2) e intersubjetivo (3)”19. Ele entraria em “crise” a partir do final
do século XIX, sendo invadido por elementos épicos e negando a atualidade intersubjetiva20.
Destaquemos a constatação de Sérgio de Carvalho: A descoberta genial de Peter Szondi no seu primeiro livro foi que uma forma dramatúrgica tão hegemônica como o drama - fundada no intercâmbio dialogado das subjetividades, na superação de crises íntimas pela atividade, no elogio da vontade livre e autoconsciente do indivíduo - deixa de fazer sentido quando os dramaturgos se defrontam com uma “vida que não vive”, com sujeitos coisificados, homens tornados estranhos a si mesmos pela exploração mercantil de sua substância vital.21
Aqui no Brasil, destacamos as análises de Iná Camargo Costa, que
mostra em seus estudos a impossibilidade de um drama brasileiro e, depois, de um teatro
épico, por faltarem a nosso país seus pressupostos sociais22. Também cabe destacar os estudos
de João Roberto Faria sobre o realismo teatral, mostrando a vinculação das peças encenadas
no Ginásio Dramático e o momento de prosperidade econômica do país, criando um ambiente
propício ao florescimento de dramas realistas23.
Nosso estudo ancora-se, portanto, em uma tradição crítica específica. Em
concreto, filia-se aos estudos realizados e orientados por Miguel Chaia na PUC-SP, focando
justamente as relações entre o teatro e a política. Como o objetivo é analisar peças teatrais
catalogadas como comédias, precisamos discorrer um pouco sobre o gênero.
Comédia
Há sérias controvérsias quanto à origem da palavra comédia e do gênero
por ela designado. Sua terminação deriva de oide, que significa canto festivo, conforme a
totalidade dos estudiosos. Não se precisa, porém, a efetiva origem do termo inicial. 17 SZONDI, Peter. Ob. Cit., p. 29. 18 SZONDI, Peter. Ob. Cit., p. 30. 19 SZONDI, Peter. Ob. Cit., p. 91. 20 SZONDI, Peter. Ob. Cit., p. 92. 21 CARVALHO, Sérgio de. Apresentação. In: SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês [século XVIII]. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 10. 22 COSTA, Iná Camargo. A Hora do Teatro Épico no Brasil. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1996. 23 FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais – o século XIX no Brasil. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001; e O Teatro Realista no Brasil: 1855-1865. São Paulo: Ed. Perspectiva / EDUSP, 1993.
15
Três hipóteses buscam essa explicação24:
1. Kómos - Bastante aceita é a versão de que a comédia teria surgido do momento final
do culto a Dionisos, quando seus participantes, que não usavam as máscaras que
teriam dado origem à tragédia, pintando os rostos com vinho e bastante inebriados,
rompiam as convenções e cantavam de modo turbulento e desenfreado. Tal momento
ficaria conhecido pelo kómos;
2. Kómes - Também é forte a versão que encontra a origem da comédia nas cidades
gregas da Sicília, cujas aldeias reunidas chamavam-se kómes. Seus habitantes
realizavam festas nas quais entoavam as “canções das vilas”, que, rapidamente, em
virtude do consumo alcoólico, transformavam-se em acusações recíprocas entre os
habitantes, denunciando abusos e criticando aspectos da vida política;
3. Koma - pouco difundida é a hipótese, não mencionada por Aristóteles na Poética, de
que a comédia seria um sonho, uma canção noturna, na qual as inibições do consciente
encontrar-se-iam suspensas e formas fantasiosas e oníricas, ligadas ao princípio de
prazer e ao inconsciente, brotariam sem repressões (koma significa dormir).
É interessante notar que todas as hipóteses trazem um teor
originariamente crítico e até subversivo para a comédia, seja ao extrapolar os limites do culto
religioso, ao acusar diretamente cidadãos ou ao extrapolar os limites do princípio de realidade.
Tal teor foi aproveitado por Epicarmo, considerado por alguns o fundador do gênero cômico,
ao trazer uma fábula, com começo, meio e fim, para a comédia: Suas cenas bonachonas e de comicidade grosseira e as caricaturas dos mitos foram a fonte da comédia dórica e siciliana. Epicarmo estabeleceu uma variada escala de personagens - os fanfarrões e aduladores, parasitas e alcoviteiras, bêbados e maridos enganados - que sobreviveram até a época da Commedia dell´arte e mesmo até Mollière. Epicarmo gostava particularmente de ridicularizar os deuses e herois...25
Em Atenas, o gênero criado por Epicarmo transforma-se na Comédia
Antiga, cujos expoentes máximos foram Magnes, Cratino e Aristófanes (deste último
restaram vários textos completos e parciais)26. A estrutura das peças caracteriza-se pela
presença de elementos constantes27:
1. Prólogo: momento inicial no qual o autor apresenta a peça, falando à plateia sobre seus
propósitos e sobre as ideias ou situações que pretende demonstrar;
24 Essas três hipóteses são bem apresentadas por Erich Segal. SEGAL, Erich. The death of comedy. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2001, pp. 1-9. 25 BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004, p.120. 26 DUARTE, Bandeira. História Geral do Teatro. Vol. 3. Rio de Janeiro: Minerva, s.d., p.25. 27 Idem, ibidem, pp. 30 e seguintes.
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2. Párodos: entrada do coro, com discussões entre os coristas e desses com personagens,
marcado por cantos e, por vezes, entrecortado por episódios;
3. Episódio: qualquer parte entre dois cantos do coro, normalmente com diálogos entre
os personagens, mesclando momentos sérios/elevados/refinados com momentos
jocosos/levianos/grosseiros;
4. Parabase: marcha do coro, durante a peça, com cantos, discurso do corifeu, invocações
religiosas e zombarias a homens púbicos;
5. Êxodo: saída do coro.
O fim da peça é satirizar, levando o espectador ao riso que permite a
crítica a costumes públicos, à política e à sociedade, normalmente posicionando-se de modo
contrário às inovações e às reformas nas tradições. Cidadãos eram apresentados pelos nomes
reais e vítimas de ofensas e ataques pessoais. A linguagem era grosseira, obscena, espontânea
e bem humorada. ...se a comédia nasce e vive no reino da ironia, as mais das vezes, vai desaguar na sátira, isto é, nas coisas imaginadas piores do que realmente o são, Aristófanes soube genialmente exagerá-las e atingir, com isso, o fim colimado. Com esse tipo de sátira exagerada, ponde em foco os defeitos dos mais importantes de seus contemporâneos, abriu os olhos dos atenienses para os homens que os governavam e para as inovações perigosas que, a seu ver, poderiam conduzir Atenas para uma catástrofe inevitável.28
Tais características permitem associar, de modo já realizado pelos
próprios gregos, a Comédia Antiga à democracia. Somente cidades com ampla liberdade para
manifestação de opiniões e para o uso da palavra permitiriam o surgimento e a consolidação
de tal gênero. Seu período áureo coincide com o período máximo da democracia. O aparecimento da comédia surge tardiamente por motivos de ordem política interna de Atenas. É que sendo a Comédia Antiga uma sátira pessoal violenta, pois, como já se falou, houve uma verdadeira fusão do kómos, ritual com o popular, uma representação cômica, onde a política ocupava sempre um lugar de honra, só era possível num clima de liberdade absoluta.29
Com a perda da liberdade ateniense, começa uma transição no gênero,
entre os anos 400 e 340 a.C., chamado de Comédia Intermediária. Tal período é marcado pela
“Lei dos Trinta”, que proíbe os autores cômicos de designarem pessoas vivas pelos nomes,
tratarem de temas políticos e usarem a parabase30.
28 BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego - tragédia e comédia. 6ª edição. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 78. 29 Idem, ibidem, p. 75. 30 DUARTE, Bandeira. História Geral do Teatro. Vol. 3. Rio de Janeiro: Minerva, s.d., p.36.
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A rigor, a comédia passa por um período em que gradativamente o coro
vai sendo abolido e alguns temas vão-se tornando repetidos: o soldado fanfarrão e covarde, a
vida das cortesãs, os infortúnios do casamento etc31. Tais mudanças levam à Comédia Nova,
consolidada no século IV a.C., tendo como grandes representantes Menandro e Filemon.
Com o desaparecimento, no horizonte político de Atenas, das
perspectivas de liberdade e o surgimento das filosofias helênicas, valorizando a harmonia do
indivíduo com a natureza, sem passar pelo viés político, as comédias centram-se em temas
que perduram até o presente: a crítica aos costumes privados e a apresentação de, ao menos,
um par romântico que enfrenta percalços para consumar seu amor ou seu casamento32.
A Comédia Nova, ao contrário da Antiga, valoriza os jovens em
detrimento dos velhos, projeta o futuro na constituição de novas famílias de atenienses, e
apresenta a felicidade de uma vida reduzida à esfera familiar. Os temas públicos são afastados
das tramas ou transformados em aspectos laterais, muitas vezes assimilados a personagens ou
situações privadas33. Não foi apenas na temática e no conteúdo que a NÉA tanto se afastou de Aristófanes, foi também na forma. Se a Comédia Antiga é preponderantemente política, a Comédia Nova volta-se para a vida privada, buscando a intimidade dos cidadãos: o amor, os prazeres, as intrigas sentimentais. À linguagem desabrida, violenta e pornográfica do poeta da Lisístrata, a Comédia Nova com Menandro (eis o nome de seu grande astro) respondeu com uma linguagem comedida, bem comportada, simples e quotidiana.34
Conforme Sábato Magaldi, a comédia nova seria marcada por um par
romântico que, após peripécias e a superação de obstáculos, se uniria em definitivo, por meio
do casamento: O amor, união feliz de dois seres, esteve ausente da tragédia e da Comédia Antiga da Grécia. Apenas a Comédia Nova, com Menandro, Dífilo e Filêmon, e seus sucessores romanos Plauto e Terêncio, transferindo sua temática para os problemas ligados à constituição do núcleo familiar, veio surpreender a procura da mulher pelo homem, ainda em plena fase de arroubo adolescente.35
As peças de Menandro, seus tipos e suas situações, inspirarão os grandes
comediantes romanos, Plauto e Terêncio, e depois as diversas comédias sucessivas, até
chegarmos à contemporaneidade. A história oficial da comédia transforma-se na história das
31 BRANDÃO, Junito de Souza. Ob. cit., p.92. 32 “o tema fundamental da NÉA é o amor contrariado por um conflito de gerações, pela diferença de caracteres ou por certos obstáculos, sobretudo desigualdade social e oposição paterna, com uma reconciliação final e um ou mais casamentos” (BRANDÃO, Junito de Souza. Ob. Cit., p.93). 33 SEGAL, Erich. Ob. cit., p. 154. 34 BRANDÃO, Junito de Souza. Ob. Cit., p.93. 35 MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: ED. DIFEL, 1962, p.47.
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sucessivas retomadas da Comédia Nova, com seu estilo simples, seu “bom senso”, seu
equilíbrio, sua linguagem mais contida.
Plauto consolidaria alguns procedimentos formais em sua peças, como,
por exemplo: apresentação do caráter do personagem sem interrupção do diálogo, adaptação
dos enredos gregos para o contexto romano (facilitando a identificação do público), recurso
ao “à parte” para revelar o pensamento de um personagem. As comédias plautinas tornam-se
histórias em que um jovem filho de família rica apaixona-se por donzela de classe mais baixa
e recorre à habilidade de um escravo ou servo para tentar conquistá-la, precisando superar os
impedimentos que surgem à união desejada36.
Terêncio, por seu lado, afasta-se do popularesco consagrado por Plauto,
priorizando a apresentação de caracteres ao desenvolvimento de enredos baseados na ação e
no movimento. Muitas vezes, no desfecho, recorre a fatos ou personagens que não remetiam à
ação dramática, como personagens escondidos que ouvem conversas e depois auxiliam na
resolução do conflito, ou à providência37.
Esse apanhado histórico é fundamental para estabelecer as características
formais da comédia e entender suas transformações quando ressurge em nosso país, no início
do século XIX. Notar as diferenças formais entre a Comédia Nova reaproveitada na Europa e
as comédias brasileiras significa destacar as peculiaridades de nossa estrutura social que
deformam o modelo original. E cumprir as finalidades deste trabalho.
A comédia, como mostrado, é um gênero que se destina a criticar,
primeiro de um modo explicitamente político, depois apenas de modo implícito, a sociedade e
seus costumes. Sua evolução clássica coincide com as alterações do status político das
cidades gregas. Há, assim, uma relação intrínseca entre a liberdade do comediante e o grau de
liberdade da sociedade em que vive.
Devemos destacar ainda que, na modernidade, o drama burguês torna-se
hegemônico e determina a estruturação formal da comédia: Nem sequer o gênero da comédia apresenta um limite, além do qual o historiador do drama burguês não teria nada a procurar. Não é só O Preceptor de Lenz que é designado comédia no subtítulo. Na poética dos gêneros, a teoria define o drama burguês sempre como um gênero intermediário que, junto com a comédia comovente e lacrimosa [comédie larmoyante], ocupa o terreno entre a tragédia e a comédia tradicionais - entre Corneille e Molière. No entanto, traçar o limite entre os dois gêneros intermediários, separando estritamente o drama burguês da comédia comovente, só será possível - e se for o caso - no quadro de uma discussão das obras e de suas teorias,
36 SILVA, Frederico José Machado da. Martins Pena e a crítica à sociedade brasileira de meados do século XIX. Recife: dissertação de mestrado, UFPE, 2009, pp. 22-25. 37 Idem, ibidem, p. 26.
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mas não segundo uma predefinição abstrata.38
Podemos afirmar que o drama burguês e a comédia nova somam-se para
caracterizar o gênero cômico na contemporaneidade, convergindo para o estudo privado dos
costumes, apresentando o conflito sentimental que se resolve pelo casamento e adotando uma
progressão dialogada das cenas39.
No Brasil independente, a história da comédia deve ser dividida em duas
vertentes: a comédia musicada e a comédia declamada. Apresentaremos breve panorama de
cada uma delas, salientando que nosso estudo focará apenas peças pertencentes à segunda
categoria40.
A história da comédia musicada liga-se aos espetáculos teatrais surgidos
a partir de 1850, no Rio de Janeiro, cujo objetivo primordial não é encenar um texto, mas
apresentar uma espécie de show: mesclando artistas de diversas espécies, desenvolvem-se os
espetáculos de variedades, com números musicais, apresentações de mágicos, malabaristas e
equilibristas, além da exibição de curiosidades e animais domesticados.
Também se consolidam espetáculos de um novo gênero, recém-surgido
em Paris, chamado opereta. No teatro Alcazar, no Rio, tais peças são encenadas, trazendo uma
versão popularesca e com fortes apelos eróticos para as óperas. A peça Orfeu no Inferno, de
Offenbach, foi encenada em 1865 e trouxe ao Brasil o número que consagrou a opereta,
conhecido por “can-can”. Em 1868, o ator Vasques inaugura uma prática de paródias em
nosso teatro, transformando a peça original no Orfeu na Roça, atingindo sucesso
extraordinário.
Causando fúria a nossa crítica, incapaz de vislumbrar as peculiaridades
do teatro41, tais modalidades de espetáculos abandonam o texto e suas qualidades literárias
como ponto de partida para a produção teatral. Valorizam, sobretudo, a diversão do
espectador, transformando-o em um consumidor que precisa ser “fidelizado”. Como
consequência dessa postura, surge um novo modo de produção teatral, chamado de gênero
38 SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês. Ob. Cit., p.30. 39 Sérgio de Carvalho afirma que Szondi apresenta dois elementos como constitutivos do drama burguês: “a privatização da vida dos personagens, e a busca de uma sentimentalidade como meio de aproximação entre plateia e palco” (CARVALHO, Sérgio. Apresentação. In: SZONDI, Peter. Teoria do drama burguês [século XVIII]. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 12). 40 Tal panorama resume reconstrução empreendida em nossa tese, no capítulo 2.1: FERREIRA, Adriano de Assis. Teatro ligeiro cômico no Rio de Janeiro: a década de 1930. São Paulo: FFLCH-USP, tese de doutorado, 2010. Destacamos que os críticos teatrais até meados do século XX empreendiam essa diferenciação com naturalidade. 41 João Roberto Faria ilustra essa incompreensão em sua tese de livre-docência: FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais – o século XIX no Brasil. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.
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alegre, que se torna bem mais lucrativo do que o teatro até então produzido, eliminando-o do
ambiente cultural carioca.
Em 1884 o gênero alegre evolui para o Teatro de Revista, graças ao
sucesso de O Mandarim, de Artur Azevedo. Adotando o modelo francês da revista de ano,
Artur cria três quadros, unidos por um tênue enredo dramático, nos quais faz desfilarem os
acontecimentos mais importantes do ano anterior, analisando-os de modo crítico. Persistindo
na tradição do gênero alegre, todos os quadros são recheados de muita música, que se tornam
célebres após as representações.
Na década seguinte, importamos novo gênero, a revista carnavalesca, que
surge em Portugal após o governo proibir a encenação de temas políticos. Nessa revista
desaparece o fio de enredo que ligava os quadros, que se tornam autônomos e independentes,
aumentando a importância dos números musicais e trazendo conteúdos considerados, na
época, imorais.
A virada do século traz uma modificação fundamental no modo de
produção teatral: ainda capitaneada pela revista, a indústria passa a produzir peças mais
curtas, desenvolvendo o mecanismo das sessões. A mesma peça é repetida três vezes por
noite, durante os sete dias da semana, muitas vezes com um bom público na plateia. A esse
modo de produção podemos denominar teatro ligeiro. Como as peças encenadas nas sessões
são, sobretudo, marcadas pela música, devemos acrescentar o adjetivo musicado.
Não obstante a miopia da crítica, há grande valor teatral, histórico e
mesmo literário nessas peças, desde que se compreenda as peculiaridades do gênero. As
Revistas adotam diversos procedimentos da Comédia Antiga, sobretudo por promover a
crítica política e por ridicularizar personalidades públicas. Por outro lado, dado o imediatismo
das referências, torna-se quase impossível reencená-las sem uma atualização.
A eficácia empresarial do gênero alegre e do teatro ligeiro é devastadora
para outras formas de produção teatral. Quase desaparecem, por exemplo, as peças não
musicadas, como os dramas, as tragédias e as comédias (declamadas).
Durante a década de 1910 a revista torna-se o canal de divulgação da
música popular brasileira, cumprindo o papel que depois caberia ao rádio. Na década
seguinte, há um aumento no caráter “imoral” das revistas, recorrendo-se, inclusive, ao “nu
artístico”. Dos anos 1930 em diante, surge a figura do apresentador, que anuncia os quadros e
se torna, com Jardel Jércolis, uma estrela tão grande quanto os demais artistas. Daí
caminhamos para a revista ainda mais pornográfica, por um lado, e para os programas de
21
auditório, incorporados pelo rádio e pela televisão. Também podemos filiar a essa tradição
programas de humor como as “praças”, ainda hoje existentes.
Tal tradição é das mais interessantes e já inspirou diversos estudos. Há
conteúdos políticos explícitos mesmo quando as revistas são caracterizadas como
pornográficas e as críticas sociais são constantes. Talvez seu resultado contemporâneo seja o
programa Pânico, que renovou e revigorou o gênero.
As comédias que estudaremos, conforme dito, podem ser catalogadas
como declamadas42. Sua história oficial43 inicia-se justamente com a encenação da primeira
peça que analisamos, Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena, em 1838. Os historiadores
consideram que o teatro brasileiro inaugurou-se nesse ano em sua vertente trágica, com
Antonio José, de Gonçalves de Magalhães, e em sua vertente cômica com a citada peça,
ambas encenadas pela companhia de João Caetano.
Inicialmente, a comédia ocupava uma posição lateral no espetáculo
apresentado. Era encenada entre um ato e outro da peça principal, uma tragédia ou um
melodrama. Convém destacar que citada companhia necessitava de subvenções estatais para
poder montar suas peças, não havendo um público numeroso que permitisse sua
sustentabilidade mercantil.
Percorrendo o século XIX, além da peça de Martins Pena, encontramos a
comédia Torre em Concurso, de Joaquim Manuel de Macedo, escrita em 1863, e duas peças
de França Júnior, Como se fazia um deputado e Caiu o Ministério, ambas de 1882. Os pontos
comuns a todas elas são a existência simultânea de um par romântico cuja união depende da
resolução de um problema público, que se torna mais importante do que o conflito privado e a
responsabilização moral dos ocupantes dos espaços públicos por algumas mazelas sociais e
políticas. Em virtude da presença desses traços característicos, são analisadas
posteriormente44.
Destacamos que entre 1855 e 1865 floresceu o teatro realista. Suas peças
intitulavam-se, no mais das vezes, comédias. Algumas delas, como as escritas por José de
Alencar, tratam de questões sociais e políticas como a escravidão, embora suas estruturas
42 As comédias declamadas são aquelas cujo enredo é desenvolvido, predominantemente, por meio dos diálogos. Embora possam possuir canções em algumas cenas, elas estão incorporadas ao enredo e não adquirem autonomia. 43 Novamente resume-se reconstrução empreendida em nossa tese, nos capítulo 2.2 e 2.3: FERREIRA, Adriano de Assis. Ob. Cit.. 44 Apresentamos nosso roteiro adiante.
22
formais não possuam a dicotomia detectada nas peças acima mencionadas. Foram estudadas
por João Roberto Faria em sua tese de doutorado45.
No início do século XX, a hegemonia do teatro ligeiro musicado era tal
que iniciativas de teatro buscando encenar os chamados “espetáculos inteiros”, ou seja, peças
longas, com intervalos entre os atos e números recreativos nesses intervalos, malogravam
economicamente. As companhias teatrais que buscavam apresentar peças fora do padrão das
sessões faliam, uma após a outra. As comédias declamadas praticamente desaparecem.
Em 1915 inaugura-se o Teatro Trianon, no Rio de Janeiro46. Por ser um
palco pequeno, não servia para as revistas, que exigiam uma orquestra e cenários grandiosos,
Cristiano de Souza organiza uma companhia para ocupá-lo e resolve adotar uma pequena
inovação: usar o método das sessões para encenar comédias declamadas. Desde o final do
citado ciclo realista (1855-1865) tais comédias deixaram de ser representadas rotineiramente,
sendo encenadas apenas esporadicamente.
Sua iniciativa é um sucesso e permite, ainda que dentro da estrutura
produtiva do teatro ligeiro, o renascimento da comédia declamada. Na década de 1920 essa
comédia, conhecida como gênero Trianon, torna-se tão lucrativa quanto o teatro musicado, em
geral ocupando os palcos do teatro fundador.
Durante a década de 1920 consolida-se, assim, o chamado “Gênero
Trianon”, tipo de comédia derivada das peças encenadas no teatro Trianon. Tais peças
diferem daquelas anteriores, entre outros aspectos, pelo fato de privilegiarem o conflito
romântico em detrimento das questões públicas, que se tornam acessórias ao desenrolar das
cenas.
Peças como Flores de Sombra, de Cláudio de Souza (1915), Terra Natal,
de Oduvaldo Viana (1920), Onde canta o sabiá, de Gastão Tojeiro (1921) e Ministro do
Supremo e O Secretário de Sua Excelência, de Armando Gonzaga (1921) representam a
tipologia. Todas desenvolvem-se em um de dois cenários: a sala de estar de uma residência
(urbana ou rural) ou uma sala de uma pensão. Todas privilegiam o universo privado em
detrimento do público ou do social e preveem casamentos em seu enredo.
Enquanto as primeiras tratam sobretudo de conflitos entre valores
modernos/urbanos e tradicionais/rurais, retratando personagens que em essência desejam 45 FARIA, João Roberto. O Teatro Realista no Brasil: 1855-1865. São Paulo: Ed. Perspectiva / EDUSP, 1993. 46 Além de nossa citada tese de doutorado, destacamos nossa dissertação de mestrado que foca o Teatro Trianon: FERREIRA, Adriano de Assis. Teatro Trianon: forças da ordem x forças da desordem. São Paulo: FFLCH-USP, dissertação de mestrado, 2004.
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implementar mudanças nos locais onde passaram a infância, após ausência decorrente de
estudos, mas descobrem-se mais presos às tradições do que supõem inicialmente, as duas
últimas retratam personagens que se iludem em virtude de perspectivas de ascensão social
causadas pela possibilidade de recebimento de um cargo público, gerando uma instabilidade
passageira em seus ambientes. Dada a ligação temática dessas comédias com a citada peça
Caiu o Ministério, agrupamos ambas em um capítulo próprio.
Nos primeiros anos da década de 1930, os abalos econômicos em nosso
país e a concorrência do cinema causam uma crise produtiva no teatro brasileiro. Como
resposta, as comédias sofrem duas grandes transformações: primeiro, por influência do
cinema, tornam-se mais dinâmicas, estruturando-se em quadros e adotando recursos como
palcos simultâneos, narradores e enredos mais contemporâneos; segundo, surgem dois
gêneros novos de comédias, as “comédias de tese”, no início da década, e as “comédias
históricas”, no final47.
As “comédias de tese” caracterizam-se, como o nome indica, pela defesa
ou apresentação de teses do autor por meio dos personagens e dos conflitos. Joracy Camargo,
normalmente encenado por Procópio Ferreira, torna-se um dos mais célebres autores do
momento, recorrendo a comédias para apresentar questões sociais. Sua peça mais famosa é
Deus lhe Pague (que estreia em 1933), talvez aquela mais vezes encenada na história do
teatro nacional. Renato Vianna, outro autor que escreve comédias de tese, apresenta questões
diversas, como a defesa do aborto, na peça Sexo (1934).
A importância dessas comédias (históricas e de tese) está em sua
bifurcação na década de 1940: por um lado, está na raiz do teatro moderno, juntamente com
os movimentos amadores, patrocinados pelo Estado; por outro, está na raiz da radionovela e
da telenovela, ícones, até o presente, de nossa indústria cultural.
A peça Fora da Vida (ou Juízo Final, em seu título posterior), escrita por
Joracy Camargo e estreada em 1938, pode ser filiada às “comédias de tese”. Destaca a crise
de consciência de um Ministro do Supremo recém aposentado que se depara com a angústia
de descobrir que, mesmo tendo atuado de modo ético em toda a sua vida, perpetrou ao menos
uma grande injustiça ao condenar um inocente. A crítica deixa de ser dirigida à moralidade
47 Apresentamos essa tipologia nos capítulos 3.2 e 3.7 de nossa tese (FERREIRA, Adriano. Teatro ligeiro...Ob. Cit.). No caso das “comédias históricas”, trata-se de peças que focam temas históricos da sociedade brasileira, encenadas muitas vezes por companhias sob amparo do Serviço Nacional de Teatro, tornando-se grandes sucessos de bilheteria, como: Marquesa de Santos, de Viriato Corrêa (1938); Carlota Joaquina, de R. Magalhães Júnior (1939); Tiradentes, de Viriato Corrêa (1939).
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dos ocupantes dos cargos públicos e foca a estrutura legal do Estado brasileiro. Será a última
peça analisada.
Metodologia: Categorias de Análise e Roteiro
Conforme já afirmado, desejamos realizar uma análise interna às obras
teatrais selecionadas. Seguiremos um modelo de análise que se repetirá nos capítulos
subsequentes, marcado pela leitura crítica da(s) peça(s), buscando identificar aspectos
temáticos e possíveis defeitos formais que derivem de nossa sociedade, além de eventuais
críticas realizadas aos personagens e seus atos.
Pressupomos as teorias anteriormente esboçadas e a evolução histórica da
comédia. Além disso, recorreremos a duas categorias analíticas essenciais para a realização de
nossos julgamentos, presentes na dicotomia público x privado.
A esfera pública moderna surgiu na Europa a partir do mercantilismo: A redução da representatividade pública que ocorre com a mediatização das autoridades estamentais através dos senhores feudais cede espaço a uma outra esfera, que é ligada à expressão esfera pública no sentido moderno: a esfera do poder público. Esta se objetiva numa administração permanente e no exercício permanente; à permanência dos contatos no intercâmbio de mercadorias e de notícias (bolsa, imprensa) corresponde agora uma atividade estatal continuada. O poder público se consolida em algo antitético e que apenas é tangenciável por aqueles que lhe são meros subordinados e que, de início, só encontram nele sua própria definição negativa. Por eles são as pessoas privadas que, por não terem qualquer cargo burocrático no Estado, estão excluídas da participação do poder público.48
Em oposição ao espaço público delimitado pelo poder estatal surgiu a
esfera privada da sociedade civil burguesa, constituída a partir do momento em que as
relações econômicas, antes confinadas ao espaço doméstico, tornam-se mais amplas e
extrapolam seus limites, pautadas pela troca de mercadorias regional ou nacional49. Esse
espaço, ao mesmo tempo em que se opõe ao poder público, é limitado por ele, exigindo seu
controle constante.
Esquematicamente, Habermas afirma que, no século XVIII, a esfera
pública burguesa se divide no Estado (e sua “polícia”) e na esfera literária (composta por
clubes e pela imprensa), além de ainda restar a sociedade aristocrática da Corte; já a esfera
48 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 31. 49 Idem, ibidem, p. 33.
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privada se divide em sociedade civil (onde ocorre a troca de mercadorias e o trabalho social) e
no espaço íntimo da família50.
Norberto Bobbio51, ao apresentar a grande dicotomia público x privado,
apresenta três outras dicotomias que se distribuem entre os elementos acima:
1. Sociedade de iguais (esfera privada) e sociedade de desiguais (esfera pública):
pensando no privado enquanto sociedade civil, o estudioso caracteriza suas relações
enquanto relações entre iguais ou relações de coordenação; já o público, concebido
como espaço governamental do Estado, é caracterizado como possuindo relações entre
governantes e governados, portanto, entre desiguais, marcadas pela subordinação52;
2. Contrato (esfera privada) e lei (esfera pública): na esfera privada predominam os
contratos, criados pelas pessoas para regular suas relações igualitárias; na esfera
pública, a lei é utilizada pelo Estado para impor suas normas aos cidadãos;
3. Justiça comutativa (esfera privada) e distributiva (esfera pública): a primeira preside as
relações contratuais, sobretudo as trocas, estabelecendo o critério da proporcionalidade
direta entre os valores trocados; a segunda preside a distribuição de honras ou de
obrigações pela autoridade pública aos cidadãos, tratando igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais.
Capella considera as noções “esfera pública” e “esfera privada”
essenciais para o vocabulário político moderno53, referindo-se ou aos indivíduos que entram
em relações isoladamente (relações privadas) ou a relações que envolvem o conjunto da
coletividade (relações políticas ou públicas). Ambas estariam absolutamente separadas: O poder político, ou a “esfera pública”, não deve interferir em nenhum espaço concreto ou particular definido como privado; unicamente pode determinar os marcos gerais das relações privadas, ou sua “ordem pública”, por assim dizer. E, analogamente, o privado ou particular surge como extrapolítico, como irrelevante para o espaço do público54.
Além disso, haveria relações próprias dos indivíduos enquanto pessoas,
que transcorrem na esfera privada: familiares, de amizade, econômicas, religiosas etc. Ela
seria marcada por desigualdades de fato entre as pessoas, derivadas da riqueza ou das opções
50 Idem, ibidem, pp.45-46. 51 BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade - para uma teoria geral da política. 11ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2004, pp. 15-20. 52 O autor apresenta duas ressalvas: a família pertence à esfera privada, mas é uma sociedade de desiguais; as relações internacionais pertencem à esfera pública, mas são relações entre iguais. 53 CAPELLA, Juan Ramón. Fruta prohibida - una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del estado. 3ª edição. Madri: Trotta, 2001, pp. 110-111. 54 Idem, ibidem, pp. 110-111 (tradução livre).
26
religiosas, mas que somente seriam relevantes para os indivíduos que entram em relações
particulares.
A esfera pública é composta por indivíduos que se tornam cidadãos. Seus
assuntos são de interesse coletivo, podendo estabelecer as fronteiras gerais para a esfera
privada, organizando as relações de parentesco ou determinando os limites da ação
econômica. Nela reinaria a igualdade entre os indivíduos (cidadãos), embora sujeitos à
autoridade estatal.
Em síntese, quando utilizamos a categoria público, pensamos, sobretudo,
no Estado, na lei e na atuação em busca do bem comum. O Estado deve defender os interesses
sociais, com funcionários atuando nos limites de sua competência e realizando obras ou
prestando serviços coletivamente importantes. Os cargos estatais devem ser preenchidos
conforme os ditames da justiça distributiva, recompensando-se o mérito. As eleições devem
consagrar a vontade popular e os partidos devem debater ideologicamente em nome do
aperfeiçoamento social.
Já a categoria privado leva a noções como propriedade/contrato,
casamento/família, sustento/trabalho/renda. A atuação nessa esfera é presidida pelos
interesses particulares, buscando-se o bem individual (ou familiar). As pessoas obtêm riqueza,
compram mercadorias, relacionam-se sentimentalmente, sempre em busca da melhoria
própria.
Outra noção importante para nossa análise das comédias é a política.
Seguimos, aqui, as sugestões de Miguel Chaia: A política explícita - demarcada por um núcleo duro definido pelo poder de Estado e do partido, pela montagem e funcionamento das instituições e mecanismos de representação -, deve compartilhar espaço com a política implícita que emerge em diferentes momentos e circunstâncias da vida55.
Acrescenta o autor que a política pode ser conceituada numa larga faixa
que parte da identificação com o social, o coletivo e o público e termina nas práticas dos
sujeitos, na micropolítica56. Assim, a política pode ser encarada como participação no espaço
público, focando as ações dos indivíduos, por um lado, e como gerada num círculo de poder,
centrando-se no funcionamento das instituições, por outro57.
Recorremos, assim, à política no sentido explícito, para demonstrar, a
partir de elementos presentes nas peças estudadas, o problemático funcionamento de órgãos
55 CHAIA, Miguel. Ob. Cit., pp.14-15. 56 Idem, ibidem, p. 19. 57 Idem, ibidem, p.21.
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do Estado brasileiro e as deficiências do sistema representativo e partidário. Tentaremos
demonstrar, então, como a política implícita que emerge das relações privadas decorrentes da
estrutura produtiva e do clientelismo dela derivadas deformam a esfera pública, promovendo
uma síntese própria entre ambas, tal qual aparece nas comédias.
Nosso estudo segue um itinerário que se iniciou com a criteriosa escolha
das peças a serem analisadas. Entre as comédias do século XIX, escolhemos somente peças
declamadas que trazem aspectos ligados à política explícita, como personagens que são
ocupantes de cargos e o retrato de práticas relativas ao processo eleitoral, por meio da
construção cenográfica de um espaço público no palco. Com isso, deixamos de lado a
esmagadora maioria das comédias escritas e encenadas no período, nas quais não há esse
espaço público, como as realistas.
Entre as comédias declamadas do início do século XX conhecidas, até
1930, não há o desenho de cenários públicos. Optamos, assim, por duas obras que retratam
personagens que pretendem ocupar um cargo no Estado, discutindo questões ligadas ao
apadrinhamento. Por fim, na década de 1930, escolhemos uma peça que retrata, novamente,
um personagem ocupante de cargo público.
A primeira peça selecionada foi, coincidentemente, aquela que inaugura a
história das comédias no Brasil: Juiz de Paz da Roça, de Martins Pena, encenada em 1837.
No vasto e interessante universo das peças de Pena, optamos por aquela em que a crítica à
política explícita é mais flagrante, focando-se a conduta do Juiz que lhe dá título e exibindo
sua sala de audiências. Entre outros aspectos, demonstramos que a obra apresenta um espaço
público que se molda conforme os interesses subjetivos do Juiz, estando sua moralidade (ou
imoralidade) pessoal a condicionar o respeito à lei ou sua violação, conforme a satisfação
desses seus intuitos pessoais.
Como o Juiz é retratado com um caráter, sobretudo, desleixado,
preocupado com o cumprimento meramente formal de suas obrigações públicas, e é uma
autoridade superior aos circunstantes, seus julgamentos tornam-se pouco cuidadosos e
suscetíveis ao cometimento das mais diversas arbitrariedades, para se livrar do “fardo” de seu
trabalho. Assim, a peça contém sérias críticas ao Poder Judiciário brasileiro, muitas
extensíveis até o presente.
A segunda peça selecionada foi Torre em Concurso, de Joaquim Manuel
de Macedo, escrita em 1863. Aqui, chama-nos a atenção o fato de o espaço público retratado
refletir os interesses pessoais de grupos antagônicos que se travestem de partidos políticos.
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Em concreto, mostram-se as arbitrariedades dos editais de licitação em nosso país, criando-se
um concurso para a escolha de um construtor para a torre da igreja com a absurda exigência
de que seja inglês. O foco dessa crítica é o Poder Executivo (enquanto administração pública)
e o vazio ideológico que permeia nossas eleições.
Tais arbitrariedades e o predomínio dos interesses privados somente
podem se concretizar porque o responsável pela ordem do concurso, novamente um Juiz de
Paz, é retratado como um homem de caráter fraco, incapaz de impor as diretrizes corretas aos
eventos, com autoridade agora inferior à dos demais. Além disso, a satisfatória resolução dos
conflitos e a vitória do engenheiro brasileiro, de caráter legalista, somente ocorre após uma
suspeita intervenção de forças externas, sob condições escusas, insinuando-se que houve a
prática de um favor decorrente do governo central.
A terceira peça selecionada foi Como se fazia um deputado, de França
Júnior, escrita em 1882. Nesta comédia, o espaço público é apropriado por famílias poderosas
que negociam a colocação de um jovem em um cargo eletivo. Os atos mostram as etapas
dessa negociação, resultando num processo eleitoral viciado e na intervenção, uma vez mais,
de forças externas oriundas do governo central para resolver os conflitos que ocorrem.
Há críticas ao Poder Judiciário, apresentando-se novamente um Juiz com
caráter fraco, incapaz de manter o respeito à ordem durante as eleições, sem poder de fato.
Mostra-se o vazio ideológico dos partidos e também da juventude, caracterizando-se o jovem
candidato como incapaz de ter ou manter ideias próprias.
Essas três primeiras peças são agrupadas no primeiro capítulo, pois
dirigem suas críticas, principalmente, à fraqueza moral ou à falta de respeito à coisa pública
por parte dos personagens que ocupam cargos políticos ou que controlam as eleições. A
impressão é a de que, se fossem pessoas firmes e honestas, delimitariam com precisão a esfera
pública, havendo o respeito à legalidade. Ao mesmo tempo, revela-se a incerteza dessa esfera
na sociedade brasileira Imperial do século XIX.
As três peças seguintes, agrupadas no segundo capítulo, mantêm a
premissa básica das anteriores, mas trazem um foco novo: a busca subjetiva pelo cargo
público enquanto meio de satisfação pessoal ou de ascensão social. Numa sociedade em que
as ocupações profissionais seguras são raras e o contato com o poder político transforma o
indivíduo, no espaço público, de um anônimo em uma autoridade, a posse de um cargo estatal
é cobiçada por todos, pobres ou ricos, e sua distribuição permite consolidar alianças que
asseguram a manutenção do poder.
29
Outra peça de França Júnior, também de 1882, permite constatar essa
nova perspectiva que se cria: Caiu o Ministério!. O cargo de ministro de estado é cobiçado
como um meio de satisfação pessoal e obtenção de prestígio por personagens que, se não são
ricos, ao menos possuem boa condição financeira. São dirigidas críticas à formação de
ministérios por meio dessa distribuição comprometida de cargos e também, seguindo a linha
anterior, à fraqueza de caráter do Presidente do Conselho de Ministros, responsável por sua
ruína. Mostra-se a inadequação de sua condição social e do cargo a que foi alçado.
Convém notar que a comédia transforma-se, a partir dessa peça, numa
comédia de posição social, considerando-se fundamental que cada um saiba qual seu papel na
sociedade, não ambicionando ir aonde não deve. Isso se torna flagrante na formação do par
romântico que, ao contrário do que costumava ocorrer na Comédia Nova, apenas une pessoas
de classes similares.
A quinta peça selecionada foi Ministro do Supremo, de Armando
Gonzaga, encenada em 1921. Nesta comédia, de modo claro, um pai de família ambiciona um
cargo público (o Ministro do Supremo do título) na expectativa de ascender socialmente e
obter uma estabilidade monetária. Como não aparenta possuir a menor condição profissional
para o cargo pretendido, sequer sendo graduado em Direito (é apenas um rábula), busca, a
todo custo, tornar-se amigo de um Senador, na expectativa de obter a nomeação.
Destaque-se novamente a intervenção externa, agora por meio de uma
inesperada herança recebida pelo empregado da casa (neste caso, bem ao estilo das comédias),
jovem até então órfão de pai e criado pela família, como mecanismo para a conclusão da peça,
e o aparecimento potencial, embora não desenvolvido, de um conflito social entre esse
empregado e os patrões.
A última peça do segundo capítulo é O Secretário de Sua Excelência,
também de Armando Gonzaga, encenada no mesmo ano de 1921. Trata-se de um malandro
que consegue ser “nomeado” secretário de um candidato à presidência de um Estado
brasileiro. Tal nomeação modifica sua situação na pensão em que reside, onde se encontrava
em vias de ser despejado, e passa a ser tratado pelo dono de “doutor”.
Além disso, a peça traz uma cena bastante interessante, na qual o
candidato é entrevistado por um repórter, evidenciando-se sua incapacidade política e de
separar seus interesses privados dos interesses públicos. Outra vez os momentos fundamentais
ocorrem fora de cena, não se mostrando as decisões que mudam os rumos da comédia.
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Para o terceiro capítulo reservamos a análise da peça Fora da Vida
(depois denominada Juízo Final), escrita por Joracy Camargo e encenada em 1938. Após
trazer para os palcos sua versão para os problemas sociais brasileiros com peças como Deus
lhe pague (1933), o autor foca a crise de consciência de um Ministro do Supremo que se
aposenta no início da peça. Desejando saber se fora justo em todos os casos que julgara,
começa a investigar o paradeiro dos réus que condenara e descobre que, independentemente
da culpa ou não dos mesmos, arruinara com suas vidas.
Para piorar, descobre um réu a quem condenara injustamente. Sua índole,
diferentemente dos outros personagens retratados, parece irrepreensível. Seus julgamentos
buscaram seguir todos os parâmetros estabelecidos pela legalidade. Mas a busca da verdade
formal pelo Direito impediria a descoberta das reais condições dos acusados. Os problemas da
política brasileira, agora, não se limitam à conduta moral dos ocupantes de cargos públicos,
nem à falta de capacidade de seus pleiteantes, mas derivam da própria estrutura do Estado,
pois suas leis e sua justiça não são capazes de evitar ou corrigir as injustiças.
Há, assim, uma passagem de um ponto de vista do comediógrafo preso
ao indivíduo, sua moralidade e suas ações, para um ponto de vista que começa a buscar a
objetividade de análise, destacando as limitações da verdade jurídica e falhas na legalidade.
Ainda que seja só o início dessa passagem, com resquícios da visão anterior, descortinam-se
possibilidades que, no futuro, extrapolarão os limites do teatro da década de 1930 e chegarão
ao teatro político da década de 1960.
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Capítulo I - Críticas à moralidade pública
O Juiz de Paz da Roça – tensões, desleixo e resistência
Conforme a historiografia do teatro brasileiro, este se inicia em sua
vertente cômica com a encenação da peça O Juiz de Paz da Roça, escrita por Martins Pena em
1837. Curiosamente, cabe afirmar que o ponto de partida também tenha sido seu apogeu.
A comédia não pode ser catalogada em qualquer dos gêneros cômicos
sem revelar, sob as regras desse gênero, defeitos gravíssimos58. Justamente por isso, talvez
seja uma obra artística profundamente enraizada em nosso solo, cuja realidade no século XIX,
mescla de escravidão e liberalismo, não é catalogável na lista de modelos ocidentais.
Uma leitura atenta explicita que há uma fratura entre dois universos que
se tocam de modo tenso, materializada formalmente na mescla das cenas familiares com as
cenas que envolvem o Juiz, que dá título à comédia. Podemos, em outras palavras, dizer que
cada um dos universos corresponda a um dos polos da dicotomia público e privado, em uma
reconstrução periférica de seus termos. O grande mérito da peça está em revelar, a partir desse
defeito estrutural59, uma marca de nossa sociedade fraturada em polos que, embora
antagônicos, interpenetram-se para atingir um equilíbrio que permite sua coexistência e que
beneficia, sobretudo, um deles (o público) em detrimento do outro (o privado).
Ao retratar em cena ambos os universos, a peça é, simultaneamente,
comédia antiga e comédia nova.
O universo que chamamos aqui de privado surge logo de início, com as
cenas que retratam o cotidiano de uma família da roça. Pelos diálogos trazidos na primeira
cena, somos sumariamente apresentados aos personagens familiares. Maria Rosa (a mãe) e
Aninha (a filha) dialogam, revelando a classe social a que pertencem: Manuel João (o pai) é
lavrador, trabalha duro (“Mata-se com tanto trabalho!”60), pois só possui um escravo. Trata-se
58 A estrutura dramática “emperra” na cena épica das audiências, como descrevemos adiante. 59 Sábado Magaldi nota esse “defeito” como uma característica do próprio autor: “esse lugar-comum da crítica literária nos levaria, assim, à vontade de chamar Martins Pena não o Molière mas o Aristófanes brasileiro, não tivesse ele conscientemente querido observar a lição do francês, ou melhor, conciliar as tendências que, por motivos didáticos, se exprime de forma autônoma nos dois”. Afirma que Pena recorre à sátira mordaz de Aristófanes e à caracterização de tipos de Molière, embora sua inclinação natural o levasse ao primeiro. In: MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: ED. DIFEL, 1962, p.44. 60 PENA, Martins. “O Juiz de Paz na Roça”. In: Pena, Martins. Comédias. Rio de Janeiro: Ediouro,
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daquela fatia da população chamada por Caio Prado Júnior de homens livres, fatia
intermediária entre os senhores e os escravos61.
Ocupando o vácuo deixado pela grande propriedade e pelo grande
comércio exportador em nosso território, essa fatia consiste de indivíduos de ocupações mais
ou menos incertas, ou sem ocupação alguma, distantes de encontrar uma base segura de vida,
que não existia, para eles, em nossa sociedade da época. Justamente se trata de uma família
que, nas palavras do historiador, vegeta miseravelmente nalgum canto remoto, mantida ao
deus-dará.
O único escravo que possuem é incapaz de libertar o pai de família do
trabalho pesado, pois, como fica claro na rubrica da cena IV, ambos, senhor e escravo,
trabalham juntos e, ainda, transforma-se numa boca a mais para consumir a pouca comida que
há: Manuel João – (...) Não há carne seca para o negro? Aninha – Não senhor. Manuel João – Pois coma laranjas com farinha, que não é melhor do que eu. Esta carne está dura como um couro...62
Voltando à conversa entre mãe e filha da primeira cena, justamente
ambas relatam que o pai já prometera mais um escravo a cada, mas como andavam caros...63
Ora, a conversa, assim, revela que o universo privado a ser retratado na peça não é qualquer
universo privado, mas um em específico: aquele próprio dos homens livres da sociedade
brasileira do século XIX. Não se trata, portanto, de uma peça que retratará a privacidade da
classe senhorial, cujos personagens podem dar vazão a seu arbítrio e a suas paixões sem os
obstáculos de uma vida social e economicamente incerta.
Por se tratar de uma comédia, a ser exibida em um teatro frequentado
pelos senhores, nada a surpreender: a comédia deveria retratar a ação de homens inferiores.
Todavia, o autor constroi cenas em que não rimos, efetivamente, de uma possível condição
social inferior dos personagens desse universo. No geral, as cenas cômicas, mesmo
s.d., p.23. 61 PRADO JÚNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. 5ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1957, pp. 277-284. 62 PENA, Martins. Ob. cit., p. 25. 63 Cumpre destacar que era relativamente fácil, no período retratado, mesmo para uma família de homens livres, obter-se um escravo. Graham afirma que a maioria dos donos possuía apenas um escravo, como retratado pela peça. Além disso, os brasileiros teriam desenvolvido o hábito de medir a riqueza de uma pessoa pelo número de escravos que ela possuía. GRAHAM, Richard. Clientelismo e política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.33.
33
decorrendo de situações de ignorância, como se verá na cena II, derivam antes da inicial
ingenuidade da personagem Aninha que de uma possível condição intelectual inferior.
Apresentada a condição social dos personagens na primeira cena, é
momento, na segunda, de trazer ao palco o tradicional conflito que permeia o universo
privado nas peças teatrais (da comédia nova): o conflito amoroso. No caso, o conflito não
envolve um triângulo, com dois pretendentes que disputam o coração de uma mesma pessoa,
mas o conflito de gerações: os jovens, que desejam casar-se, não esperam contar com a
aprovação de Manoel João, pai da noiva.
Como José, o pretendente, não possui dinheiro, não pode pedir a mão de
Aninha. Esta, por sua vez, sem casamento, não permite a ele que a “abrace”, buscando
preservar sua integridade. José, então, tenta seduzir a namorada revelando seu projeto de
casarem-se escondidos e fugirem para a Corte, local de teatros, circos e outros divertimentos.
Aninha fica deslumbrada e aceita casar-se escondida no dia seguinte. Delineia-se, assim, o
conflito: os pretendentes conseguirão casar-se escondidos e fugir para o Rio de Janeiro?
Na cena IV, mencionada brevemente, surge o pai, que tem trabalhado
“como um burro”64. Durante a cena seguinte, Manoel João, conversando com a esposa, revela
mais uma face do conflito delineado acima: acha que é necessário casar a filha. Maria Rosa
mostra-se cética: MARIA ROSA – Eu já tenho pensado nisto; mas nós somos pobres, e quem é pobre não casa. MANUEL JOÃO – Sim senhora, mas uma pessoa já me deu a entender que logo que puder abocar três ou quatro meias-caras destes que se dão, me havia de falar nisso... Com mais vagar trataremos deste negócio.65
Duas coisas precisam ser destacadas. Primeiro, a fala da mãe revela que a
vida familiar da classe social retratada não se ordena do mesmo modo que a vida familiar
senhorial, sendo o casamento, para aquela, uma condição excepcional. Segundo, quanto ao
conflito da esfera privada, o pai já possui um pretendente para a filha e este, ao que tudo
indica, não é José.
Ainda na cena V, ocorre a abrupta invasão da esfera privada pela esfera
pública: enquanto a família come, surge o escrivão, intimando Manuel João, em nome do Juiz
de Paz, a levar um recruta da casa do Juiz para a cidade. O cotidiano da família é perturbado
pela intimação, que somente é aceita após ameaça de prisão: MANUEL JOÃO, gritando – E que me importa eu com isso?... E o senhor a dar-lhe... ESCRIVÃO, zangado – O senhor juiz manda dizer-lhe que se não for, irá preso.
64 Podemos ressaltar que o trabalho surge no universo privado, ocorrendo na propriedade da família. 65 PENA, Martins. Ob. cit., p. 25.
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MANUEL JOÃO – Pois diga com todos os diabos ao senhor juiz que lá irei.66
Novamente mãe e filha conversam, na cena VI, para esclarecer a plateia a
respeito da situação social da família. Especificamente, Maria Rosa demonstra pesar pelo fato
de o marido precisar ir à cidade levar um recruta e, com isso, perder um dia de trabalho.
Reclama pelo fato de o marido ser convocado periodicamente para prestar serviços à Guarda
Nacional, tendo de levar presos e ir aos quilombos. Se não fosse pela ameaça de prisão...
Aninha indaga sobre o outro lado da história, esclarecida pela mãe: os
recrutas eram pegos à força e mandados à guerra (Guerra dos Farrapos, RS). A menina fica
penalizada com a situação dessas pessoas e ainda sugere, de modo aparentemente ingênuo,
que resistam ao juiz de paz: ANINHA - Mas meu pai pra que vai? MARIA ROSA - Porque o juiz de paz o obriga. ANINHA - Ora, ele podia ficar em casa; e se o juiz de paz cá viesse buscá-lo, não tinha mais que riscar a Jiboia e a Boca-Negra. MARIA ROSA - És uma tolinha! E a cadeia ao depois? ANINHA - Ah, eu não sabia.67
Notamos que ambos os fatos revelam intromissões da esfera pública na
vida privada dos homens livres. Tais intromissões, todavia, ao invés de lhes assegurarem
condições materiais dignas, tão somente atrapalham suas existências ou modificam seus
cursos para um rumo cruel ou indesejado. Ganham sentido se postas em uma sociedade
marcada pela hierarquização, ou seja, na qual os homens são desiguais e o superior
constantemente recorre à ameaça de violência para manter o inferior em seu lugar68.
Se pensarmos no contexto em que a comédia foi escrita, a maioridade de
D. Pedro II se aproxima (1840) e o Estado Imperial termina seu processo centralizador pós-
independência, impondo a autoridade do Poder Moderador em toda a extensão territorial do
país69. Até a Guerra do Paraguai (1864), haverá estabilidade política e a consolidação de
práticas clientelísticas entrelaçando diversas classes sociais70, cujos resultados são percebidos
pela família de Manuel João e analisados nas cenas seguintes.
Na cena IX, o foco da peça se modifica: entra em cena a esfera pública, o
Juiz de Paz e sua sala de audiências. Se a comédia, ao enfocar a vida privada, portara-se como
66 Idem, p. 26. 67 Idem, p.26. 68 Há uma constante ameaça de punição dirigida aos homens livres, sendo a obediência a única conduta esperada pelas classes superiores. GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 46. 69 SKIDMORE, Thomas E.. Uma história do Brasil. 4ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p.72. 70 Graham define o clientelismo como uma trama de ligação política que preenche cargos governamentais e permite a proteção de pessoas humildes por poderosos. In: GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 17.
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comédia nova, retratando um par amoroso que não se poderia casar em virtude de possível
objeção do pai, que possuía eventual pretendente para a noiva, após a intromissão do escrivão,
representando a esfera pública, a peça, por algumas cenas, portar-se-á como comédia antiga,
ridicularizando o caráter do Juiz de Paz.
Até a cena XI, o objetivo da peça, assim, em seu momento central, é o
retrato do juiz e do modo como julga os conflitos a ele submetidos. Logo de início chama-nos,
contemporaneamente, a atenção o fato de a sala de audiência ser na própria casa do Juiz de
Paz. Além disso, ele entra na sala vestido de modo bastante informal, sem gravatas e de
chinelas verdes. Fisicamente notamos, assim, que a esfera pública a ser retratada na peça
corresponde à esfera privada da pessoa do Juiz. Uma confusão tipicamente brasileira.
O caráter do Juiz passa a ser delineado, revelando suas incoerências:
relata que o escrivão deve estar na venda do Manuel Coqueiro (supomos, pelas reticências
desaprovadoras de sua fala, que esteja bebendo); reclama que não gosta de ter recrutas presos
em sua casa (que, como vimos, é também o Juizado), porque, caso fujam, “dizem que o juiz
recebeu algum presente”71; logo em seguida, todavia, aceita bananas de presente de Manuel
André, o qual as oferece alegando que a Constituição autorizaria a qualquer um fazer o que
quiser, sobretudo dar presentes, e ainda comenta: JUIZ – (...) O certo é que é bem bom ser juiz de paz cá pela roça. De vez em quando temos nossos presentes de galinhas, bananas, ovos etc. etc.72
Com a chegada do escrivão, o Juiz dá início às audiências. O primeiro
caso é trazido por Inácio José: reclama que Gregório deu uma umbigada em sua mulher,
Josefa Joaquina, pedindo a aplicação de pena de degredo para Angola ao agressor. Da fala de
Josefa, descobrimos que já não era a primeira umbigada dada pelo demandado73. Eis o
desfecho do caso: JUIZ – (...) Sr. Inácio José, deixe-se destas asneiras, dar umbigadas não é crime classificado no Código. Sr. Gregório, faça o favor de não dar mais umbigadas na senhora; quando não, arrumo-lhe com as leis às costas e meto-o na cadeia. Queiram-se retirar. INÁCIO JOSÉ, para Gregório – Lá fora me pagarás. JUIZ – Estão conciliados.74
71 Idem, p. 27. 72 Idem, p. 27. 73 Iná Camargo Costa esclarece que a umbigada, movimento tradicional da cultura negra, pode ter conotação sexual, revelando um outro teor para o conflito. COSTA, Iná Camargo. “A comédia desclassificada de Martins Pena”. In: COSTA, Iná Camargo. Sinta o drama. Petrópolis: Editora Vozes, 1998, pp. 140-141. 74 PENA, Martins. Ob. Cit., p. 28.
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O Juiz tomou duas atitudes: descaracterizou a conduta como criminosa
mas, ainda assim, ameaçou prender Gregório caso, independentemente de tipos penais,
voltasse a perturbar Josefa; além disso, sumariamente encerrou o caso declarando as partes,
em termos formais, conciliadas, ainda que, de fato, persistisse o conflito (“Lá fora me
pagarás”).
Sua atitude revela um profundo desinteresse pela demanda e pela efetiva
satisfação das partes. O ato de declarar conciliadas partes que efetivamente não estão
demonstra que a verdadeira preocupação do magistrado era dar por encerrado o caso, sob seu
ponto de vista, insignificante. A ameaça de Inácio José, que projeta a peça para a sociedade,
saindo dos limites do palco, em nada muda a opinião do Juiz, afinal, dois membros dos
escalões inferiores da sociedade resolvendo na esfera privada um conflito jamais perturbará a
ordem social ou manchará sua reputação75.
Aliás, precisamos ressaltar que, hoje, nas inúmeras salas de audiência dos
Juizados Especiais espalhadas por nosso país, fórum de deliberação que, no geral, envolve
conflitos de pequeno valor (e demandantes de pequeno poder aquisitivo), há uma tentativa
obrigatória de conciliação. Nessa tentativa, invariavelmente, os representantes do Poder
Judiciário procuram impor o acordo entre as partes, a fim de “resolver” de modo antecipado o
conflito e poupar o juiz de trabalho. Por detrás dessa imposição de acordos, persiste a
indiferença e o desinteresse do Poder Judiciário por causas como essas que se avolumam aos
montes nas prateleiras dos cartórios judiciais.
O segundo caso apresentado é uma demanda de Manuel André, que
mandara as bananas ao Juiz. Trata-se de um pedido de demarcação de seu sítio, cujas
fronteiras estão sendo questionadas por outro sitiante. Tal pedido é abruptamente indeferido
pelo Juiz, que estaria ocupado com uma questão particular, determinando que requeira ao
suplente, seu compadre Pantaleão. Entretanto, conforme relata Manuel André, também o
suplente estaria ocupado com uma questão particular.
A passagem reforça o desinteresse do julgador pelas causas da roça,
envolvendo pessoas de baixa condição social e conflitos sem maiores repercussões. A
alegação de Manuel João de que não poderia também contar com o suplente, questionando a
decisão do Juiz, causa nele uma fúria incontrolável: 75 Eis a análise de Iná Camargo Costa: “Aqui estamos diante de uma manifestação da referida dialética da ordem e da desordem, exatamente no lugar (sala de audiências) onde mais se procura escondê-la: para os representantes da ordem basta uma declaração de que o assunto está encerrado; já para os ‘desordeiros’ o conflito ainda há de ser resolvido e, como indica Martins Pena, na base da lei do mais forte”. COSTA, Iná Camargo. Ob. Cit., p. 142.
37
JUIZ – Você replica? Olhe que o mando para a cadeia. MANUEL ANDRÉ – Vossa Senhoria não pode prender-me à toa; a Constituição não manda. JUIZ – A Constituição!... Está bem!... Eu, o Juiz de Paz, hei por bem derrogar a Constituição! Sr. Escrivão, tome termo que a Constituição está derrogada, e mande-me prender este homem! MANUEL ANDRÉ – Isto é uma injustiça! JUIZ – Ainda fala? Suspendo-lhe as garantias...76
A audiência termina com Manuel André fugindo. A reação excessiva do
magistrado ocorre após ser flagrado, por um mero sitiante, em situação de desinteresse por
sua causa. A “derrogação” da legalidade mostra que esta somente faz sentido se aplicada entre
iguais. Numa situação desigual envolvendo um particular (Manuel André) e um representante
da esfera pública (o Juiz), não há a possibilidade de o inferior invocar a Constituição para dela
se beneficiar em face do superior.
Conforme Iná Camargo Costa, o Juiz de Paz inverteria a situação,
transformando-se de funcionário público relapso em vítima de um pretenso desacato à
autoridade. Novamente o conflito trazido ao Juiz deixa de ser efetivamente resolvido na
instância judicial, apontando a peça para uma possível resolução direta pelas partes, além de,
com a fuga do demandante após a ordem de prisão, explicitar-se a ineficácia jurídica77.
O terceiro caso envolve a disputa pela propriedade de um leitão que,
pertencendo a Sampaio, invadira as terras de Tomás e comera os vegetais de sua horta. Este,
por sua vez, passara a considerar o animal como sendo seu, estando ambos a reivindicá-lo em
audiência. O Juiz “sugere” uma conciliação: doarem o leitão a uma pessoa, esclarecendo:
“não digo com isso que mo dêem.”78. Como é de costume, a conciliação imposta é aceita
prontamente pelas partes e o Juiz se beneficia duplamente com ela: menos serviço a fazer e
mais um “presente” ganho.
Tomás, antes de sair, ainda formula mais um requerimento: solicita a
citação da Assembleia Provincial para que esta cerque as propriedades rurais. Eis o final do
diálogo: JUIZ – Isto é impossível! A Assembleia Provincial não pode ocupar-se com tais insignificâncias.
76 PENA, Martins. Ob. Cit., p. 28. 77 COSTA, Iná Camargo. Ob. Cit., pp. 143-144. Convém reproduzir um trecho da análise da autora, que inspira nossa leitura da peça: “...temos pelo menos a formalização de um traço fundamental da experiência brasileira: o encerramento formal das questões pelo juiz em nenhum dos casos significou a solução do problema, pois os nós permaneceram. Apontando para um depois, para fora da peça, para a ‘vida real’, como se costuma dizer, nosso autor ao mesmo tempo permanece no interior de uma antiga tradição e configura um traço da vida brasileira – o formalismo das instituições, que não interfere na vida dos desfavorecidos, a não ser para piorá-la, desmentindo suas expectativas”. 78 Idem, p. 29.
38
TOMÁS – Insignificância, bem! Mas os votos que Vossa Senhoria pediu-me para aqueles sujeitos não era insignificância. Então me prometeu mundos e fundos. JUIZ – Está bem, veremos o que poderei fazer. Queiram-se retirar. Estão conciliados; tenho mais o que fazer. (...)79
Embora Iná Camargo Costa destaque que a reação do juiz a um pedido de
um proprietário que possui direito a voto e um curral eleitoral (uma pessoa, portanto,
economica e socialmente mais importante no Império) revele vários pesos e várias medidas,
precisamos atestar que houve a mesma manifestação de desinteresse pelo caso. Durante o
diálogo com Tomás, o Juiz deixa claro que seu pedido é uma “insignificância” e que tem
“mais o que fazer”. A questão é o modo cauteloso por que esse desinteresse se manifesta:
“veremos o que poderei fazer”. Por se tratar de um proprietário com direito a voto, o Juiz não
reagiu com a mesma veemência com que reagiu, por exemplo, a Manuel André. Sua
demonstração de desinteresse pelo caso deixa a vaga promessa no ar de que tratará dele
futuramente.
Um último caso ainda é submetido a julgamento: com um jogo de
palavras que dá ao conflito um duplo sentido, Francisco Antônio informa que a égua de sua
mulher teve um pequira que nasceu malhado como o cavalo do seu vizinho, José da Silva.
Este, em virtude disso, tomou o pequira para si, alegando que deveria pertencer ao dono do
cavalo. O argumento curioso de Francisco Antônio é que sua escrava tem um filho que é dele,
dono da escrava, devendo, assim, os filhos pertencer às mães.
A decisão do juiz é imediata e determina a José da Silva a devolução do
pequira. Este tenta argumentar: JOSÉ DA SILVA – Mas, Sr. Juiz... JUIZ – Nem mais nem meios mais; entregue o filho, senão, cadeia. JOSÉ DA SILVA – Eu vou queixar-me ao Presidente. JUIZ – Pois vá, que eu tomarei a apelação. JOSÉ DA SILVA – E eu embargo. JUIZ – Embargue ou não embargue, embargue com trezentos mil diabos, que eu não concederei revista no auto do processo! JOSÉ DA SILVA – Eu lhe mostrarei, deixe estar. JUIZ – Sr. Escrivão, não dê anistia a este rebelde, e mande-o agarrar para soldado. JOSÉ DA SILVA, com humildade – Vossa Senhoria não se arrenegue! Eu entregarei o pequira. JUIZ – Pois bem, retirem-se; estão conciliados. (...)80
Destacamos, além de novamente a conciliação ser imposta pelo Juiz de
Paz, que transparece nele a sensação de propriedade sobre o processo judicial. Tal qual já
ocorrera no caso de Manuel André, quando “derrogara” a Constituição, comporta-se como se
79 Idem, p. 29. 80 Idem, p. 29.
39
pudesse, a qualquer momento, afastar as regras que deveriam nortear o processo e fazer
qualquer coisa, inclusive não conceder revista nos autos e mandar prender os demandantes81.
Se já notáramos que havia uma confusão física entre a esfera pública do
Poder Judiciário e a esfera privada da própria casa do Juiz, com o desenrolar das audiências
fica claro que a confusão se dá também quanto a seu comportamento. Temos a impressão de
que, em última instância, a esfera pública retratada submete-se ao arbítrio do Juiz, que pode
moldá-la e remoldá-la conforme seus interesses pessoais de se ver livre dos casos, declarando
as partes conciliadas o quanto antes.
Podemos, inclusive, resgatar uma palavra apresentada por Sérgio
Buarque de Hollanda, em seu clássico Raízes do Brasil, como tipicamente portuguesa, capaz
de retratar a conduta do magistrado: desleixo82. O Juiz comporta-se com desleixo perante os
casos, não os levando a sério e não se interessando por sua efetiva resolução. Como se, para
ele, bastasse a declaração formal de que as partes estão conciliadas, sabendo que, para isso,
muito pouco, juridicamente, precisaria fazer, podendo recorrer, às vezes, à violência explícita.
Assim, sua conduta durante o processo é uma conduta desleixada, pois nenhum ato mais
complexo se mostra necessário, sob o ponto de vista pragmático, para chegar ao seu objetivo
de encerrar o caso cansando-se o mínimo possível.
O único objetivo do Juiz, ao que parece, é receber seus vencimentos e,
invariavelmente, os complementos em espécie (“presentes”) trazidos pelos roceiros. Sua
atividade profissional cotidiana é um contratempo que deve incomodá-lo o menos possível.
Infelizmente, sob seu ponto de vista, há a necessidade de desenvolver atividades típicas de um
Juiz de Paz, e essas atividades o aborrecem. Para sua sorte, todavia, essas atividades podem
ser feitas com desleixo, sem a devida atenção, simplesmente declarando “conciliadas” as
partes e encerrando formalmente o caso. Ainda que não resolvendo os conflitos, seu simulacro
de atuação profissional basta para, na maioria da vezes, assegurar-lhe seus vencimentos e
complementos.
As cenas XIII, XIV e XV reforçam o caráter do juiz, demonstrando sua
atuação desleixada. Josefa Joaquina, que, de certa forma, se beneficiara com os termos da
conciliação imposta no caso das umbigadas, traz três galinhas e ovos, de presente. Enquanto
batia à porta, a reflexão do Juiz é reveladora: “Mais um! Estas gentes pensam que um juiz é
81 Realmente tinha-se a ideia, durante o século XIX, que o cargo público “pertencia” a alguém, que se tornaria seu “proprietário”, dele tomando “posse”. GRAHAM, Richard. Ob. Cit, p.273. 82 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 7ª edição. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, p.76.
40
de ferro!”83. O uso do termo “estas gentes” revela a distância com que se coloca daqueles que
habitam na roça e um certo desprezo que sente por eles. Sua reflexão posterior referenda
nossa análise: “Ao menos com esta visita lucrei!”.
Uma vez apresentado o caráter desleixado do Juiz de Paz, resta retomar o
conflito da esfera privada retratada, ainda pendente. A peça deixara aberta a relação entre
Aninha e José, que se pretendem casar mas não esperam contar com a aprovação paterna. E
migrara para a esfera pública do Juiz de Paz deixando pendente, também, sua intersecção com
a esfera privada: Manuel João fora convocado para levar um recruta à cidade. Resta a ele,
resignadamente, cumprir tal ordem que perturba sua vida cotidiana.
Após a apresentação das audiências, a comédia retoma tal pendência, na
cena XII, quando Manuel João procura o Juiz. Este lhe entrega o recruta que, para surpresa da
plateia, é José. Tendo-se em vista que o dia já terminava, Manuel João pede para adiar sua
missão até a manhã seguinte, pois a noite e a escuridão chegariam ainda no caminho, dando
ao recruta a possibilidade de fuga. O Juiz aceita seu pedido, com uma condição: deve Manuel
João levar o recruta até sua casa e prendê-lo. Há uma transferência de responsabilidades por
parte do Juiz, pois, em sua lógica desleixada, há menos trabalho e preocupação para si
procedendo dessa forma.
Com a volta de Manuel João a sua casa, as duas situações irresolutas da
peça tornam-se interdependentes: o casamento de Aninha e José está ameaçado não apenas
pela possível oposição paterna, mas também pelo recrutamento forçado de José, cuja
consumação foi confiada ao pai. Assim, na cena XVII, José é preso num dos quartos da casa,
sob o olhar espantado de Aninha. Esta, num repente, de moça ingênua cujos diálogos com a
mãe esclarecem o espectador da condição social da família, converte-se, relativamente à
esfera privada da peça, em verdadeira protagonista, praticando na cena XVIII as duas ações
essenciais que desencadearão o desenlace dos nós: sem titubear, abre a porta do quarto,
soltando José, e, em seguida, propõe fugir com ele para se casarem: ANINHA – Se nós fugíssemos agora para nos casarmos? JOSÉ – Lembras muito bem. O vigário a estas horas está na igreja, e pode fazer-se tudo com brevidade. ANINHA – Pois vamos, antes que meu pai venha. JOSÉ – Vamos. (Saem correndo.)84
De um modo bastante rápido, como convém às comédias, nas duas cenas
seguintes, Manuel João e Maria Rosa percebem que o recruta fugira e que Aninha fora com
83 PENA, Martins. Ob. cit., p. 30. 84 Idem, p. 31.
41
ele. Subitamente, sem tempo de reagirem, são surpreendidos pela volta de ambos, já
casados85. A reação do pai é de imediata resignação (“...já agora não há remédio”)86, enquanto
a mãe, também sem delongas, perdoa a filha87. Se o conflito amoroso foi resolvido, resta
ainda a questão do recrutamento. Mas, neste caso, a solução do problema, criado pela
intervenção da esfera pública nas vidas privadas de José e de Manuel João, requer uma outra
intervenção do Juiz de Paz.
A possível solução do problema já é manifesta por Manuel João ainda na
última das duas cenas retratadas anteriormente: como José casara-se, não mais poderia ser
soldado. Mas havia a necessidade de obter o aval do Juiz e todos vão a sua casa (que,
lembramos, também é sala de audiências).
Lembramos que tudo indica tratar-se José de um malandro. A ameaça
mais comum dirigida aos malandros era o recrutamento forçado, que os obrigava a um regime
de trabalho e de vida intoleráveis, dadas as péssimas condições do Exército88. Por outro lado,
o recurso ao casamento era aceito e utilizado pelas elites para “dar juízo” aos desajustados,
sendo utilizado inclusive com escravos89. Portanto, uma vez que o malandro estava casado, o
aval do Juiz de Paz era quase certo.
Convém observarmos que, não obstante a intervenção da esfera pública
na esfera privada da família de Manuel João (ou talvez graças a ela...), o conflito amoroso
pôde ser solucionado. Aliás, devemos interpretar o gesto de Aninha como uma resistência
possível, ainda que de alcance bastante limitado. Sem romper com os determinismos que
rodeiam sua esfera de homem livre, ela tomou uma decisão que afrontava, ao mesmo tempo,
seu pai e o Juiz de Paz, fazendo apenas o que poderia fazer para ter um casamento e viver sua
vida simples, sem recorrer ao usual favor, que dependeria da boa-vontade do Juiz e
aumentaria sua autoridade sobre a família.
Seu marido, por seu turno, também se acertou com o sogro quanto ao
futuro trabalho: irá ajudá-lo na roça, provavelmente somando seus braços aos do escravo. Se
85 Convém destacar que, conforme PRIORE, os noivados eram curtos mesmo entre membros da elite e raramente decorrem do amor. PRIORE, Mary Del. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, pp. 159-160. 86 PENA, Martins. Ob. cit., p. 32. 87 De certa forma, uma reação compreensível: ambos já desejavam casar a filha e temiam não encontrar pretendentes, conforme descrevemos anteriormente. 88 GRAHAM, Richard. Ob. cit., pp. 46-48. 89 “É preciso casar esse negro e dar-lhe um pedaço de terra para assentar a vida e tomar juízo” (frase de senhor da região de Campinas, citada por Robert W. Slenei, Senhores e Subalternos no Oeste Paulista, História da Vida Privada no Brasil, vol. 2, Companhia das Letras, 1998).
42
haverá uma nova boca na mesa, serão mais dois braços no trabalho e mais um votante nas
urnas... Enfim, um acerto bom para todos, pois José livrar-se-ia do recrutamento e Manuel
João se transformaria em seu protetor, instaurando sobre ele um laço de dependência e
criando uma minúscula rede de clientela.
Nas últimas cenas o foco volta-se novamente para a casa do Juiz. Mais
uma vez seu caráter desleixado é retratado: JUIZ – Agora que estamos com a pança cheia, vamos trabalhar um pouco. (Assentam-se à mesa) ESCRIVÃO – Vossa senhoria vai amanhã à cidade? JUIZ – Vou, sim. Quero-me aconselhar com um letrado para saber como hei de despachar alguns requerimentos que cá tenho. ESCRIVÃO – Pois Vossa Senhoria não sabe despachar? JUIZ – Eu? Ora essa é boa! Eu entendo cá disso? Ainda quando é algum caso de umbigada, passe; mas casos sérios, é outra coisa. (...)90
O Juiz relata, então, que um amigo aconselhara-o a despachar “não tem
lugar” sempre que não soubesse como proceder. Uma vez, deparando-se com um caso
“sério”, assim fizera. A repercussão, todavia, foi tamanha que a parte prejudicada queixara-se
ao Presidente da Província e ele quase terminara suspenso. Dentro de sua lógica, conforme a
autoridade das partes envolvidas, há casos menos sérios, aos quais pode impor a conciliação
formal e livrar-se de maiores trabalho. Noutros casos, todavia, é preciso trabalhar mais para
emitir o despacho correto e evitar um contratempo maior que possa prejudicar sua carreira
(pois lida com pessoas importantes). Como esses casos não compõem a regra na roça,
supomos que lhe seja menos trabalhoso aconselhar-se com alguém que tenha estudado quando
eles surgem, do que efetivamente interessar-se pelo seu serviço e aprender a despachar.
O final da conversa parece revelar que a postura do juiz é comum a
outros funcionários públicos: ESCRIVÃO – Vossa Senhoria não se envergonha, sendo um juiz de paz? JUIZ – Envergonhar-me de quê? O senhor ainda está muito de cor. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, quantos juízes de direito há por estas comarcas que não sabem onde têm sua mão direita, quanto mais juízes de paz... E além disso, cada um faz o que sabe.91
Não podemos deixar de pensar no livro Um funcionário da Monarquia –
Ensaio sobre o Segundo Escalão92, de Antonio Candido, que retrata o caso do Conselheiro
Tolentino, funcionário público exemplar que ascendeu na carreira graças a sua competência.
Ao longo do ensaio, fica evidente que o funcionário Tolentino sempre lutou para impor a sua
90 PENA, Martins. Ob. cit., p. 32. 91 Idem, p. 32. 92 SOUZA, Antonio Candido de Mello e. Um funcionário da Monarquia – Ensaio sobre o segundo escalão. 2ª edição revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007.
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visão de gestão pública em todos os escalões pelos quais passou, buscando fazer das
repartições sob sua responsabilidade órgãos eficientes.
Parece-nos, assim, que efetivamente os contornos dos espaços públicos
de nosso país, durante o século XIX, mas com repercussões até os dias de hoje, não eram
delimitados por normas objetivas que criassem cargos e competências, mas pelas
características pessoais dos funcionários estatais, que se comportavam como sendo
proprietários desses espaços. Assim, quando o funcionário era um Tolentino, haveria alguma
probabilidade de sua função ser exercida de modo objetivo e eficiente, dando estas
características ao espaço ocupado por ele93. Por outro lado, se o funcionário fosse um juiz
como o da peça, que tudo leva a crer era também uma influência no local, o espaço público se
confundiria com seu subjetivismo e seu desleixo, para azar daqueles cujas vidas pudessem
sofrer interferências em virtude de sua atuação.
Na penúltima cena, a família de Manuel João apresenta seus argumentos
ao Juiz, solicitando que José não seja recrutado por estar casado: JUIZ – A menina não perde ocasião! Agora, o que está feito está feito. O senhor não irá mais para a cidade, pois está casado. Assim, não falemos mais nisso.94
Conforme sua lógica de resolver as demandas com o menor trabalho, o
Juiz de Paz libera José do recrutamento e encerra o assunto (“não falemos mais nisso”). Para
terminar, determina ainda uma apoteose: “manda chamar” convidados e abole as diferenças
para realizar uma festa em homenagem aos noivos recém-casados. Neste momento, o Juiz
permite aos convivas que se portem como se estivessem em suas casas, instaurando uma
festiva fusão de espaços. Todos dançam, todos cantam, enquanto o Juiz não resolver encerrá-
la e restabelecer as diferenças.
Mesmo na festa, a voz de comando do Juiz deixa explícita a tensão entre
os polos público e privado, sobretudo quando este último é ocupado por homens livres. A
peça como um todo retrata essa tensão, desnudando, ainda, o desleixo que marca a esfera
pública e revelando, também, a existência de eventuais manobras de resistência na esfera
privada. Inaugura-se a comédia nacional da melhor maneira possível.
93 No caso de Tolentino e de qualquer funcionário eficiente, há a necessidade de lutar contra um ambiente de descaso e contra interesses políticos patrimonialistas superiores, conforme a repartição possua muitos funcionários e seja mais importante. 94 PENA, Martins. Ob. Cit., p. 33.
44
Sílvio Romero afirma que, se todas as leis e documentos da história do
Brasil se perdessem, poderíamos reconstruí-la graças às comédias de Pena95. Acrescenta,
ainda: O nosso comediógrafo é a documentação viva dos primeiros cinquenta anos deste século no Brasil. Neste sentido, leva vantagem a todos os escritores de seu tempo, nomeadamente aos autores dramáticos.96
Nesse sentido, as comédias do autor apresentariam os “vícios” do Brasil,
entre os quais: a aversão ao estrangeiro, elogio banal dos “bons” velhos tempos, falsificações
de gêneros pelo comércio para fugir aos tributos, carestia, patronato, escravidão, falsificação
de moeda, desorganização dos serviços públicos e fingimentos de “beatices”97.
Cafezeiro e Gadelha afirmam que tais comédias fariam um “mosaico do
panorama sócio-político-amoroso do Brasil”, apresentando, ainda, o tipo do malandro fundido
com o homem semimarginalizado pela falta de emprego, precisando recorrer a expedientes,
biscates, casamentos por interesse e astúcias98. O autor possuiria a capacidade de “articular
uma trama de causar inveja à aranha mais perfeccionista”, seguindo a trilha da comédia
popular, de inspiração vicentina, ao contrário de Macedo e Alencar, que buscariam uma
comédia mais elevada99.
As demais peças de Martins Pena, assim, estariam repletas de referências
à realidade social e política do Brasil de final da Regência e início do Segundo Império. Na
peça Os dois ou o inglês maquinista, por exemplo, as conversas entre os personagens revelam
situações de condescendência das autoridades com o traficante de escravos, a prática do
suborno, o recurso às amizades para obtenção de cargos e para fugir às sanções legais; na peça
Os meirinhos, ocorrem críticas ao funcionário público de baixo escalão, suscetível ao suborno
e carente de uma moralidade mais sólida; na peça O noviço, há uma crítica ao patronato e à
família patriarcal.
Tais comédias, todavia, não incorporam a crítica às instituições políticas
brasileiras à sua estruturação formal, como ocorrido no Juiz de Paz da Roça. Todas elas
articulam-se como comédia nova, apresentando apenas o enredo privado que leva ao
95 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira - tomo quarto. 4ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949, p. 325. 96 Idem, ibidem, p. 326. 97 Idem, ibidem, pp. 328-345. 98 CAFEZEIRO, Edwaldo e GADELHA, Carmem. História do Teatro Brasileiro – De Anchieta a Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ / EDUERJ / FUNARTE, 1996, pp. 212-213. 99 Idem, ibidem, p. 212.
45
casamento, entremeado por referências laterais à realidade externa. Tal estrutura, que será
hegemônica no início do século XX, enfraquece o potencial crítico das comédias.
46
Torre em Concurso – obra pública e moralidade
Os vinte primeiros anos do Segundo Reinado caracterizam-se pela
consolidação da monarquia brasileira e a imposição da autoridade centralizadora do Poder
Moderador, por meio do qual o monarca formava ou dissolvia os governos, escolhia os
Senadores e encabeçava a rede de apadrinhamentos do Estado nacional100. Entre 1850 e 1863
ocorre a chamada “conciliação”, período marcado pelo governo do Partido Conservador, mas
no qual há um “abafamento” do conflito partidário e um acordo para se evitarem questões
controvertidas101. A política partidária transforma-se, assim, em uma rotina sem sobressaltos,
embora marcada pelas disputas locais permeadas de subornos, intimidações e fraudes102.
A peça Torre em Concurso, de Joaquim Manuel de Macedo, encenada
em 1861 e publicada em 1863, estrutura-se em três atos, compondo uma tradição de comédias
assim concebidas que permeará nossa história teatral. Normalmente, o primeiro desses atos
tem a finalidade de apresentar os conflitos (ou nós dramáticos), que atingem o grau máximo
de tensão no segundo ato e são resolvidos (ou desatados) no último ato.
Ao percorrermos a descrição inicial do cenário, notamos que todas as
cenas desenvolvem-se numa praça de acanhada povoação do interior do Brasil, com sua igreja
ao fundo e o jardim de uma residência no plano da frente. Trata-se de uma confluência de
espaços, sendo a praça central o espaço público por excelência dos pequenos povoados e o
jardim uma zona de transição entre esse espaço e o âmbito privado. Tal confluência permitirá
ao autor construir cenas que transitem entre as esferas ao longo dos atos, sem mudanças de
cenário.
Convém destacar que, em meados do século XIX, os núcleos urbanos
têm pequena importância em nossa sociedade, encravados entre os latifúndios em uma
economia de trabalho escravo e agroexportadora, num sistema político paternalista e
marginalizador103. Essa importância é ainda menor nas cidades do interior, que normalmente
apresentam um aspecto descuidado e com imprecisos limites entre a zona rural e urbana,
sendo comuns as chácaras cujas demarcações chegam à cidade. Os poucos edifícios
100 SKIDMORE, Thomas E.. Ob. cit., p.73. 101 Idem, ibidem, p. 75. 102 Idem, ibidem, p.75. 103 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República. 6ª edição. São Paulo: UNESP, 1999, p. 232.
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dignamente construídos limitar-se-iam à igreja e aos conventos, além de, algumas vezes, à
Câmara Municipal e à cadeia104.
Percebe-se, voltando ao cenário, ao lado da igreja, o sino preso a quatro
estacas de pau, por falta de uma torre. Eis o mote para se iniciar a peça: na cena 1, o juiz de
paz, João Fernandes, determina a leitura de um edital que anuncia concurso para contratação
de engenheiro que irá construir a torre, elaborado por Junta especialmente constituída para
presidir tal construção. Curiosamente, todavia, exige-se que o engenheiro seja inglês e tenha
vindo ao Brasil “já barbado”, além de, por falta de moradores locais que compreendam a
língua inglesa, fazer-se “entender ainda que seja em português estrangeirado”105.
Germano, advogado, pedindo a palavra, contesta tal exigência de o
engenheiro ser inglês, preterindo-se os engenheiros nacionais e aqueles oriundos de outras
nações. Os representantes da Junta encarregada da obra desqualificam os brasileiros (“porque
todos eles juntos não valem o dedo mindinho de um engenheiro inglês”), os franceses (“o ano
passado um ourives francês empurrou-me uma corrente de papagaio, jurando que era um
cordão de ouro da Califórnia”) e os italianos (“um mascate italiano vendeu à minha mana um
corte de alpaca avariada por seda do grande tom”)106.
A exigência atesta, de modo cômico, o ambiente ao mesmo tempo hostil
e favorável à presença inglesa em nossa economia, que era bastante significativa, sobretudo
após a abertura dos Portos, em 1812. Embora parte da opinião pública se manifeste
contrariamente a essa presença107, o fato é que nosso governo continua, durante o Segundo
Reinado, a incentivá-la. Os ingleses tornam-se, assim, ao mesmo tempo, símbolo de progresso
e/ou de uma ganância quase infinita.
O jovem Henrique, durante as discussões, manifesta-se: Henrique – Um momento: perderei palavras, mas cumprirei o meu dever. Estais fazendo loucuras! Eu já vos disse que o presidente da província vai contemplar-me no número dos engenheiros dela, e encarregar-me da direção das obras da nossa igreja, e em tal caso... Manuel Gonçalves – Homem, você é eleitor influente de alguma freguesia?... Henrique – Não; e que tem isso?... Manuel Gonçalves – Pois, se não é influência eleitoral, como diabo quer que o presidente faça caso de você?... Atanásio – Olhem quem quer fazer a torre! Está doido!... Fora!... Vozes – Fora! Fora!... ah! ah! ah!
104 Idem, ibidem, p. 240. 105 MACEDO, Joaquim Manuel de. Teatro Completo 1. Rio de Janeiro: MEC – SEAC – FUNARTE – SNT, 1979, p. 175. 106 Idem, ibidem, pp. 176-177. 107 O jornal que defendia um liberalismo radical durante a Regência, Nova Luz, por exemplo, manifesta reiteradamente sua indignação com os monopólios comerciais concedidos aos ingleses (In: COSTA, Emília Viotti. Ob. cit., p.150.
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Henrique – Quero, sim! Nasci neste lugar; deve, portanto, ser-me grato prestar-lhe os meus serviços como engenheiro que sou. Em uma palavra, senhores, a obra que com razão desejais, há de ser executada e se-lo-á por mim, a despeito da vossa anglomania.108
Durante o diálogo, Henrique tenta mostrar suas credenciais aos
debatedores: será nomeado engenheiro pelo Presidente da Província. Todavia, os demais não
acreditam em suas palavras. A lógica que norteia essa desconfiança deriva de uma sociedade
que se articula por meio de relações de troca de favores: proteção por lealdade, benefícios por
obediência, cargos por votos109. Se Henrique não dispunha de votos para oferecer ao
Presidente da Província (não é visto como uma “liderança”)110, como seria nomeado
engenheiro? Ele é ridicularizado, mas, surpreendentemente, mostra, em sua última fala,
excessiva confiança na nomeação que receberá.
Manuel Gonçalves, por sua vez, é apresentado como uma “influência do
lugar”, enquanto Atanásio é o subdelegado. Assim, a fala de Henrique revela o primeiro
conflito, ou nó, que permeará a peça: temos uma disputa que envolverá, de um lado, Henrique
e seu desejo de ser o engenheiro responsável pela construção da torre (respaldado pela
pretensa nomeação que receberá), e, de outro, o edital e a exigência de que o engenheiro seja
inglês, amparada pela vontade dos poderosos do lugar e pelo povo em geral. Ou seja, há um
conflito entre a autoridade central do governo provincial e as autoridades locais.
Enquanto os presentes retiram-se em comemoração ao edital, fica apenas
a jovem Faustina, no jardim, regando as flores, e, escondida, Felícia, sua prima, observando-a.
Faustina lamenta que, cercada pela tia, “com olhos de velha que ainda quer casar” e pela
prima, “com os olhos de moça que já foi casada”, é difícil achar-se só. E lamenta, também,
que seu pretendente Henrique pareça preferir “as suas questões de torre à minha
companhia”111, pondo-se à cantar.
Logo, na cena 3, em resposta à cantoria, surge Henrique. Faustina
mostra-se ciumenta, reclamando que Henrique permite a sua tia lançar-lhe “uns olhos de
basilisco” e dizer coisas “que me fazem frios de febre”, além de pisar os pés de sua prima por
debaixo da mesa112. Durante a conversa, Felícia revela-se aos dois, surpreendendo-os. Diz que
não precisam temê-la, pois quer ajudá-los. Confessa que, por ser viúva de um deputado, tendo
vivido na Corte, é muito sabida e já tinha percebido que os dois namoravam escondidos.
108 Idem, ibidem, p. 177. 109 GRAHAM, Richard. Ob. cit., pp.41-42. 110 Os homens eram medidos pelo tamanho de sua clientela (GRAHAM, Richard. Ob. Cit., p.40). 111 MACEDO, Joaquim Manuel de. Ob. cit., p. 178. 112 Idem, ibidem, pp. 180-181.
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Com as palavras de Felícia, revela-se outro conflito, um inesperado
triângulo amoroso: Felícia – (...) adivinhei que vocês se amavam; que minha tia antes quer o senhor Henrique para marido do que para sobrinho, e que, portanto, os atrapalha consideravelmente, visto que meu tio é escravo de sua irmã, porque espera ser seu herdeiro, e já está de posse da sua fortuna e do seu testamento.113
Felícia propõe-se passar por namorada de Henrique, para ajudá-los, mas
Faustina, que já se mostrara ciumenta, recusa prontamente tal alternativa.
Ao final das três primeiras cenas, os dois conflitos básicos da peça já
foram apresentados. Podemos dizer que o primeiro conflito apresente uma natureza pública,
envolvendo a questão da nacionalidade do engenheiro da torre da igreja, tendo Henrique, de
um lado, e o edital elaborado pelos poderosos do lugar, de outro. Já o segundo conflito
apresenta natureza privada, consistindo no típico conflito das comédias novas, envolvendo um
triângulo amoroso com Henrique e Faustina, que se gostam, e Ana, a tia de Faustina e Felícia,
que, não obstante sua idade avançada, também cobiça Henrique.
Ainda da fala de Felícia, podemos constatar que o pai de Faustina, João
Fernandes, que é também o juiz de paz, não pode apoiar a filha, pois espera ser contemplado
pelo testamento de sua irmã Ana e jamais ousaria contrapor-se a sua vontade. Essa situação é
trabalhada na cena V, mostrando João Fernandes completamente submisso a Ana: João Fernandes – (...) Ah! Meus pecados! Que eu não tenha remédio, senão aturar esta mulher visto que devo ser seu herdeiro... Oh! Que fome! Que fome de quinze dias! 114
Tal submissão inverte, de modo cômico, a estrutura patriarcal das
famílias de nossa sociedade, que costumam ser chefiadas por um homem, o qual possuía toda
a autoridade e, inclusive, o direito de punir os parentes115. Ana é a “patriarca”, gere a família e
mantém o irmão, juiz de paz, sob sua dependência, exigindo sua obediência irrestrita em troca
de uma possível herança.
O conflito privado é ainda tratado, no primeiro ato, nas cenas VII e VIII.
Felícia conversa, no jardim, com Ana e Faustina e revela que esta conversara com Henrique,
causando ciúmes em Ana. Há um momento de indefinição quanto ao papel que Felícia
ocupará no conflito, quanto a qual par romântico auxiliará, embora tenha prometido auxílio à
113 Idem, ibidem, p. 182. 114 Idem, ibidem, pp. 184-185. 115 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p.34.
50
prima. Logo chega Henrique, que precisa suportar os questionamentos de Ana e suas
declarações, por recear os “ciúmes de amor” 116.
A cena é interrompida pela súbita retomada do conflito público. Surge,
na cena IX, Germano, anunciando a Henrique que dois pretensos ingleses se apresentaram
candidatos para construir a torre e, cada um tinha, agora, um partido de adeptos, os amarelos e
os vermelhos. Tais candidatos foram apresentados nas cenas IV e VI, tratando-se, na verdade,
de Crespim e de Pascoal, malandros que, supondo encontrar uma vila na qual ninguém falasse
o inglês, resolveram-se passar por engenheiros dessa nacionalidade117.
O ato termina, na cena X, com a apresentação de debates entre os
candidatos, apoiados por seus partidários, satirizando o ambiente político brasileiro ao
explicitar o vazio ideológico de ambos, as mudanças de lado de alguns personagens, a
violência potencial e concreta que marca as situações eleitorais e a indecisão do juiz de paz e
Presidente da Junta, João Fernandes, pendendo para o lado que estiver “em cima” ou que lhe
prometer vantagens pessoais118. Nesse ínterim, os dois candidatos descobrem-se antigos
conhecidos e podem manter a farsa que os beneficia pessoalmente.
No final do ato, a comédia revela-se uma crítica política a nosso país,
sobretudo aos contextos eleitorais. Destacamos que as pequenas comunidades brasileiras
viveriam sob constante preocupação eleitoral, organizando-se votações para diversos cargos
(como no caso do engenheiro) e elaborando-se as constantes listas de votantes qualificados a
participar do processo, trabalho que se repetia anualmente119.
Temos, assim, dois conflitos de natureza diversa que requerem recursos
cênicos também diversos para serem desenvolvidos. O conflito privado pede uma estrutura
dramática, por vezes de aprofundamento psicológico ou de apresentação de caracteres; o
conflito público exige recursos épicos, como a abertura do drama para o ambiente externo,
com referências a situações contextuais fora dos palcos e a redução da importância dos
diálogos para movimentar as cenas. Ambos conflitos podem ser desenvolvidos quase
116 MACEDO, Joaquim Manuel de. Ob. cit., pp. 187-188. 117 Crespim é um ator que foge de uma companhia mambembe após algumas trapalhadas e busca um meio para que “tome um partido” a fim de se “arranjar na vida” quando descobre o edital do concurso para construção da torre, resolvendo passar-se por engenheiro inglês (MACEDO, Joaquim Manuel. Ob. Cit., p.183). Pascoal é um ex-ator que se tornou capanga de um potentado mas, no dia da eleição, durante uma briga, fugiu, até se deparar também com o edital (MACEDO, Joaquim Manuel. Ob. Cit., p.185). 118 Retomaremos a questão das eleições em nossa sociedade na análise da peça posterior, Como se fazia um deputado. Notamos que as ruidosas manifestações favoráveis aos candidatos eram bastante comuns (GRAHAM, Richard. Ob. Cit., p. 151). 119 GRAHAM, Richard. Ob. Cit., p. 141.
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simultaneamente, graças ao já destacado cenário da peça, que funde a praça e o jardim da
casa.
O segundo ato, conforme a estrutura tradicional das comédias, deve
caminhar para um agravamento dos conflitos. Num primeiro momento, o conflito privado é
trazido à baila, graças à personagem Felícia, que, como vimos, prometera ajudar a prima
Faustina. Livrando possíveis dúvidas que pudessem pairar sobre essa promessa, ela, em
monólogo, esclarece ao público quais suas reais e sinceras intenções: Felícia (só) – Estou a braços com a mais difícil empresa: vou entrar em luta com minha tia para fazer triunfar os direitos que tem a prima Faustina sobre o coração do senhor Henrique. Arrancar um noivo a uma velha é mil vezes mais dificultoso do que separar um náufrago da última tábua do navio despedaçado, a que se agarrou com esperança de salvamento; mas eu hei de mostrar que já fui parlamentar, e creio que o verdadeiro é cortar logo a discussão, decidindo de uma vez o negócio. (...)120
Porém, por mais bem intencionada que possa estar Felícia, sua iniciativa,
ao invés de resolver a questão, somente irá em mais agravá-la. Chama Ana e revela que
Henrique, na verdade, gosta de Faustina, e zomba do amor da velha. Incrédula, Ana duvida e
se esconde no jardim, a pedido de Felícia, que promete provar o que dissera.
Na cena seguinte, Faustina é chamada por Felícia e ambas conversam
sobre Henrique e o papel ridículo da tia. Recorrendo a uma repetição cômica, Faustina põe-se
a cantar no jardim, para “avisar” Henrique que está só. Este surge e, enquanto conversam,
promete à amada dizer para Ana que a despreza. Mas, nesse momento, ela aparece furiosa e
jura vingança.
Conforme antecipado, a atuação de Felícia para proteger o amor da prima
resulta desastrosa. O conflito amoroso envolvendo Henrique, a tia e a sobrinha explode. Ana
quer vingar-se e, na cena VI, procura João Fernandes. Afirma que sua filha, Faustina, tem
namorado Henrique no jardim. Ameaça partir e não fazer o irmão seu herdeiro, mas este se
humilha: João Fernandes - Sinhá Aninha, não me abandone, por quem é, num caso destes; veja antes o que devemos fazer: decida, castigue, ponha debaixo de chave, corte os cabelos daquela rapariga desmiolada; mas não me deixe, senhora! Não me deite a perder!... (à parte) Se a bruxa me arranca o dinheiro e o testamento, eu estouro!121
Conforme já destacado, Ana ocupa o papel de “patriarca” da família e
mantém sobre seus parentes próximos uma relação de autoridade familiar e de patronagem.
Enquanto protetora do irmão e das sobrinhas, exige, em troca, lealdade total e absoluta. Ao
120 MACEDO, Joaquim Manuel de. Ob. Cit., p. 195. 121 Idem, ibidem, p. 203.
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pretender Henrique, não pode tolerar uma oposição vinda de uma das sobrinhas, Faustina;
exige que o pai dela, João Fernandes, seu dependente, a coloque em seu devido lugar.
Ana, então, apresenta uma solução ardilosa: Faustina deverá ser entregue
em casamento ao engenheiro que vencer a licitação para construir a torre. João Fernandes,
pensando que o vencedor seria realmente inglês e engenheiro, gosta da ideia de possuir um
genro com tais atributos e ainda conservar a herança: João Fernandes - Com o engenheiro que fizer a torre?... Bravo! A dúvida está em que ele aceite a noiva; porque um é lord inglês e o outro é filósofo; mas veremos... veremos... Oh! Se eu fico com uma filha godemi, e com um genro que saiba consertar alambique de engenhoca, dou pulos de contente! Sinhá Aninha, você tem mil vezes mais juízo do que eu.
A vingança de Ana leva a um inesperado cruzamento entre os conflitos
da peça. Para que Faustina possa se casar com Henrique, é necessário antes que ela não se
case com o engenheiro que construir a torre. Em outros termos, o conflito privado fica na
dependência de uma solução para o conflito público122.
Convém destacar que a figura de João Fernandes constitui um eixo
pessoal de ligação entre ambos os conflitos. Na questão privada, é o pai cuja filha será
entregue em casamento mas que somente consegue pensar na herança da irmã; na questão
pública, é juiz de paz e o Presidente da Junta responsável pela execução da obra pública de
construção da torre, dependente de Ana, mas que teme agir de modo neutro e comprometer-se
politicamente, desgostando alguma das lideranças locais. Sua fraqueza impede resoluções
satisfatórias aos conflitos.
Observando o comportamento do juiz, notamos que os dependentes de
um líder local podiam, eventualmente, mudar de lado, transferindo sua lealdade. Todavia, o
preço de uma escolha errada ou de uma indefinição era alto demais: a perda da proteção, que
podia significar perda da vida ou a miséria total123. Talvez por isso ele demonstre tanta
insegurança.
Escondida, Felícia ouve a conversa entre os tios e percebe a dimensão do
problema (o edital do casamento) que, involuntariamente, causara. Sente-se na obrigação de
desatar o nó e recuperar a confiança dos pretensos noivos, mas não sabe como.
Eis, então, que surge Germano. Ele, em à parte, confessa gostar de
Felícia e começa a conversar com ela, que lhe promete um sorriso e um suspiro de seu
122 Note-se que a falta de nitidez entre as fronteiras dessas esferas era ainda maior em pequenas cidades, sendo comum o uso de dinheiro privado para construção de obras públicas e, ao contrário, o uso de verbas públicas para fins privados (COSTA, Emília Viotti da. Ob. Cit., p. 247). 123 GRAHAM, Richar. Ob. Cit., p.189.
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coração, caso chame um destacamento policial na vila ao lado, para prender os falsos
engenheiros e impedir que se casem com sua prima. Após a aceitação do pedido, ela, que,
como dito, era viúva de um político e morara na Corte, revela já ter outros três pretendentes,
mas confessa poder vir a optar pelo quarto.
As cenas XI a XIII encerram o ato voltando-se ao conflito público. Ao
retratar os partidos dos amarelos e dos vermelhos, que se formaram para apoiar cada um dos
ingleses, satiriza novamente o ambiente político nacional da “conciliação”. Revelam que os
partidários simplesmente se opõem uns aos outros, sem motivações mais profundas, sem
conhecer os planos dos engenheiros para construção das torres, movidos apenas pela figura
pessoal dos falsos ingleses124.
Num dado momento, as lideranças tentam um acordo: dividir a
construção e pintar a torre meio a meio, resolvendo a questão. Porém, surge um obstáculo:
não concordam quanto a qual seria a cor da metade superior. Nova baderna. João Fernandes
teme um “godemicídio”, havendo trocas de insultos e agressões na cena final.
Se o conflito privado atingiu seu clímax no ato e tornou-se dependente do
conflito público com a vingança de Ana, podemos constatar que nos estritos limites deste
último conflito, as cenas não trouxeram avanço significativo em relação ao ato anterior. Os
partidos continuam em uma disputa desconectada do objeto da licitação, a torre, movidos por
interesses de grupos locais e sem formular uma discussão pública que pudesse levar à solução
do caso.
Por outro lado, devemos ressaltar que Felícia, ao tentar impedir o
casamento da prima com o falso engenheiro que vencer a disputa pela torre, solicitando a
Germano que busque a força policial na vila vizinha, pode resolver também o conflito
público, caso efetivamente os malandros sejam presos.
De qualquer modo, há de se notar novamente a fraqueza do caráter de
João Fernandes. Como juiz de paz e Presidente da Junta, deveria zelar pela ordem e pelo
cumprimento do edital licitatório. Nos dias de eleições, o juiz de paz era a autoridade máxima
nas pequenas cidades, sobretudo porque, além do cargo que ocupava, costumava contar com
outras fontes de poder, por ser uma liderança local125. Mas João Fernandes só possuía a
autoridade do cargo, não conseguindo se impor e impedir os distúrbios.
124 As lutas políticas nas pequenas cidades eram lutas pessoais entre patrões e suas clientelas, sobretudo até 1870, sem motivações ideológicas ou programáticas. (COSTA, Emília Viotti da. Ob. Cit., p. 247). 125 GRAHAM, Richard. Ob. Cit., p. 150. Lembramos que o juiz de paz da peça de Martins Pena podia
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A burocracia estatal em pequenos núcleos urbanos era marcada pela
instabilidade, dada a dependência direta dos senhores locais, responsáveis pela distribuição (e
retirada) de cargos. Isso agravava sua ineficiência, pois a noção de competência para a prática
de atos se esvaziava, ficando as decisões sujeitas ao arbítrio dos poderosos126. É o caso de
João Fernandes, que, em última instância, submeterá as atribuições de seu cargo de juiz de
paz ao arbítrio de Ana.
O terceiro ato precisa, como convém a uma comédia, trazer uma
resolução satisfatória para os conflitos. Essa resolução é interdependente, pois ambos estão
misturados pela promessa de casamento, que irá se materializar em um edital.
Enquanto Felícia pede a Ana para ver uma carta que esta apanhara a
Faustina, João Fernandes entra em cena irritado: a eleição da Junta para escolher o engenheiro
vencedor terminara empatada. Ele culpa o sistema de votação: João Fernandes - Que há de ser?... Foi a heroica Junta votar por escrutínio secreto sobre a escolha de um dos dois engenheiros para fazer a torre, e por fim de contas tantos votos obteve o vermelho como o amarelo! Empatado! Saiu tudo empatado! Isto é um desaforo!127
A solução encontrada também não o agrada: sufrágio universal, algo que
ele “não entende”128. E reclama porque foi escolhido presidente da mesa eleitoral. Ana o
recrimina por preocupar-se tanto com questões públicas e se esquecer de controlar a filha: Ana - Pois, senhor Joãozinho, continue a abandonar a sua casa para ocupar-se com essas barafundas políticas que há de ganhar muito com isso: dentro em pouco a desonra e a vergonha hão de lhe subir pelas portas e janelas acima, como erva-de-passarinho pelos galhos da laranjeira velha.129
E mostra a carta que furtara de Faustina. Quando João Fernandes (juiz de
paz) tenta lê-la, percebe-se que possui dificuldades para ler, culpando a letra (mas Felícia a lê
fluentemente). É interessante destacar que a filha solicita a Henrique que a peça em
casamento e, em caso de negativa, a tire “por justiça”, pois quer se casar com ele, sendo livre
a vontade da “cidadoa”130.
“exercer” livremente seu desleixo pois aparentava possuir autoridade superior à dos conflitantes roceiros. 126 COSTA, Emília Viotti da. Ob. Cit., p. 247. 127 MACEDO, Joaquim Manuel de. Ob. Cit., p. 214. 128 Caetano Pinto de Miranda Montenegro, político brasileiro durante o Primeiro Reinado, afirmava, revelando preconceito da época, que as eleições diretas somente poderiam ocorrer em países de população homogênea e esclarecida, diferentemente da população brasileira, que estaria despreparada para ela (citado por COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p.48). 129MACEDO, Joaquim Manuel de. Ob. Cit., p. 214. 130 Idem, ibidem, p. 215.
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Para ela, a liberdade está em escolher o noivo sem obstáculos maternos
ou paternos, seguindo nisso a tradição da comédia nova. Antes, ainda no ato anterior, Felícia
considerara-se no dever de ajudar a prima porque ela tinha “direitos” sobre o coração de
Henrique131 e porque não poderia esperar uma ação intempestiva dele: Felícia (só) - (...) mas minha prima é uma tola, e o senhor Henrique um namorado legal, que não dá um passo sem consultar a constituição e as leis do império, e não suspira nem pisca um olho senão conforme as disposições do código: com eles não posso contar.132
O casal de pretendentes Henrique e Faustina é colocado dentro dos
limites da aparente legalidade. O argumento poderia fundamentar um ato de resistência ao
arbítrio estatal. No caso, dada a confusão entre as esferas pública e privada, é utilizado para
justificar sua desobediência privada à imposição de casamento paterno, mas que, ao mesmo
tempo, por se tratar de uma imposição que está prestes a se converter num edital público,
também pode ser vista como uma tentativa de resistência a ele.
A confusão entre as esferas aumenta ao ressaltarmos, outra vez, que
Manuel Fernandes, pai de Faustina, é justamente juiz de paz, um homem que deveria
conhecer a legislação e exercê-la, sobretudo no ambiente público.
Após mostrar a carta, Ana determina a João Fernandes a publicação do
edital, anunciando que dará a filha em casamento e um dote de trinta (fica por vinte, após
reclamações do impotente juiz de paz) mil cruzados ao engenheiro vencedor da disputa pela
construção da torre.
As cenas seguintes reforçam a fraqueza do caráter do juiz de paz. Após
assinar a convocação das eleições gerais para resolver a disputa entre os engenheiros, solicita
a seu assistente, Bonifácio, que elabore o edital do casamento. Ana, contudo, determina a
Bonifácio que o redija naquele instante. Como não há mesa, ela ordena ao irmão que se curve,
servindo de suporte para o escrivão, numa posição humilhante, que ele aceita pensando
apenas na herança.
Na sequência, Ana decide apoiar o mais feio dos “ingleses”. Pede a João
Fernandes sua carteira e sai de cena para comprar votos a seu candidato133. Enquanto isso,
Bonifácio lê ao povo o edital em que Faustina é oferecida em casamento, com um dote de
vinte mil cruzados, ao engenheiro que fizer a torre.
131 Idem, ibidem, p. 195. 132 Idem, ibidem, p. 205. 133 Embora as eleições fossem marcadas por inúmeras práticas fraudulentas, a compra direta de voto por dinheiro sempre foi considerado um crime mais sério, sendo repudiada (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 184).
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A próxima cena foca Henrique e Faustina, tornando cada vez mais difícil
a separação dos conflitos e das esferas. A moça, coerentemente com sua caracterização
“legalista”, pede ao rapaz que apele à “justiça dos homens”. Mas Henrique parece ter outra
solução, revelando sua descrença para com o direito: Henrique - A justiça no interior das províncias é a vontade absoluta dos potentados: ririam de ti e de mim se eu apelasse para ela; consola-te, porém, e anima-te: acabo de receber uma carta da capital que me encheu de prazer; oh, minha amada, minha bela noiva; nós vamos ser felizes!134
Ele não revela qual a solução esperava encontrar para o caso, dizendo
apenas que o edital “indigno” poderia ser a garantia da felicidade de ambos. Sua observação
atesta que o conflito privado, envolvendo o casamento, depende da resolução do público.
Destacamos que o personagem funcionou como um raisoneur, trazendo
considerações morais do próprio autor da peça para o público135. Macedo é visto justamente
como um autor moralizante, que por vezes sacrificava o caráter puramente estético de suas
peças em nome dessas considerações. Ele afirmava que os dramaturgos deveriam apontar os
males que afetam a sociedade, sendo ...pregadores de princípios são e de todas as verdades em proveito dos homens, em proveito da sociedade, em que pese aos que lucram com a mentira, com os abusos e com a ignorância e a sombra.136
A próxima cena traz os “ingleses”, Pascoal e Crespim, conversando sobre
as eleições. Confessam que não saberão como construir a torre e Crespim afirma que
resolverá a situação chamando um mestre pedreiro e um carpinteiro, sem se preocupar com
aqueles que o apoiaram: Crespim - Ora que novidade! O pobre povo anda quase sempre iludido por aqueles por quem mais trabalha e se sacrifica. É um tolo que não se corrige: quanto mais o enganam, menos ele se desengana. Zombemos, pois, do povo, na certeza de que não somos os primeiros que o fazemos.137
Na sequência, tentam entrar em acordo quanto a quem deve vencer a
disputa e a qual seria a solução para o perdedor, mas terminam discutindo e com Pascoal
prestes a partir para as vias de fato. Novamente Crespim traz a “razão” política brasileira ao
palco: Crespim - Olhem que bobo!... Pateta das luminárias, nós somos zangões de nossos partidos, e os zangões dos partidos não costumam bater-se: os pequenos sacrificam-se por eles; o povo joga o soco, suja-se na lama, e algumas vezes de sangue, e os vivatões
134 Idem, ibidem, p. 219. 135 MAGALDI, Sábato. Ob. Cit., p. 80. 136 APUD: FARIA, João Roberto. Idéias Teatrais – o século XIX no Brasil. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001, pp. 133-134. 137 MACEDO, Joaquim Manuel de. Ob. Cit., p. 221.
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no quartel da saúde esperam que a contenda se decida, e comem o prato que os outros para eles preparam: eu hei de seguir tão proveitoso exemplo: sou um chefe zangão do partido vermelho e portanto, não me exponho nem me bato.138
As próximas cenas focam os eventos questionáveis envolvendo as
eleições, como compra de votos, distribuição de “brindes”, votos sucessivos do mesmo
eleitor, votos de “defuntos”, ameaças etc. João Fernandes aparece indeciso, com “santinhos”
de ambos os partidos, afirmando que não quer “ficar mal com pessoa alguma”139. Depois de
sofrer pressões de ambos os partidos, ficando “em cima do muro”, vê-se obrigado a
acompanhar o voto de Ana, partidária dos vermelhos.
Em meio à confusão, Henrique tece considerações moralizantes sobre as
eleições, constatando que sua idoneidade depende do cumprimento da lei, sob
responsabilidade do governo: Henrique - (...) O sistema eleitoral é a bela e grandiosa consagração da soberania do povo; é o órgão pelo qual a voz da nação se faz ouvir, manifestando os seus sentimentos e a sua vontade; é o princípio sagrado da força dos governos e da nobreza e da honra dos governados; mas, para que assim seja, é indispensável que a verdade se respeite, e a lei se cumpra à risca, pronunciando-se ampla e livremente o voto do povo, e falando as urnas sem peias, nem violência, nem ilusões, nem depravação, nem torpezas.140
Essa fala atesta que sempre foi uma preocupação das elites nacionais a
organização de eleições com aparência de idoneidade, permitindo a satisfação das oposições,
mesmo que a derrota fosse inadmissível, gerando uma dialética própria dos processos
eleitorais. A crença na possibilidade de aperfeiçoamento eleitoral também foi uma constante,
não obstante todos os indícios em contrário141.
Além disso, o autor, Macedo, era adepto do partido liberal. Alguns dos
pontos de vista trazidos na comédia revelam posições daqueles que, durante a Regência,
foram chamados de “liberais radicais”: indignação com os monopólios comerciais dos
ingleses, hostilidade com tratados comerciais que favoreciam estrangeiros e atribuição dos
males do país à “gente de tom” que enganava o povo142.
Depois de muita confusão, desordem e brigas, surgem finalmente os
policiais solicitados por Felícia, pacificando a multidão e desmascarando e prendendo os dois
malandros. Nesse momento, Henrique revela a “surpresa” que guardara para o final: fora
nomeado engenheiro da província e construiria a torre. Além disso, pelos termos do edital da
138 Idem, ibidem, p. 223. 139 Idem, ibidem, p. 224. 140 Idem, ibidem, p. 230. 141 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 105. 142 COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 150.
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promessa de casamento, deveria receber a mão de Faustina. De tabela, Felícia “pede”
Germano em casamento.
Os dois conflitos, o público e o privado, são resolvidos de uma tacada só:
a nomeação de Henrique. Não obstante o “legalismo” de seu caráter, ele precisou contar com
a influência política externa, superior às autoridades locais, para conquistar o direito de
construir a torre. Também se fez necessária a presença da polícia da vila vizinha, chamada por
iniciativa de Felícia, que contribui para a resolução dos conflitos, embora de modo parcial
(pois a resolução definitiva é, conforme dito, trazida pelo edital).
De qualquer modo, é interessante destacar que a resolução dos conflitos
não vem exclusivamente da ação dos dois “protagonistas” (Henrique e Felícia), mas de
intervenções externas (policial e a nomeação). O discurso da legalidade de Henrique e
Faustina, que justifica a conduta de ambos e sua união final, somente pode prevalecer com o
recurso à força e a uma decisão política superior. Sem isso, conforme constatado pelo próprio
Henrique, a resolução da peça não teria o rumo que teve.
Indiretamente, o panorama político do momento é retratado por essa
intervenção de forças externas. Sobretudo a decisão que nomeava Henrique, é uma força que
vem do centro do país em direção à cidadezinha interiorana, impondo-se até mesmo aos
senhores locais. Durante o período da “conciliação”, a monarquia nacional finalmente
consolida sua autoridade e é reconhecida pelo país. D. Pedro II utiliza sabiamente o Poder
Moderador, controlando a rede política nacional e tornando-se patrono das lideranças
locais143.
Há na peça uma oposição de caracteres e suas moralidades. De um lado,
Henrique, com sua moralidade “correta”, preocupando-se com o respeito às leis e ao povo; do
outro, os envolvidos com a política, preocupados com disputas por cargos e nomeações,
desrespeitando às leis e ao povo, buscando satisfazer interesses pessoais.
Enquanto a prevalência da moralidade associada a Henrique depende da
ação das autoridades locais, ela não se consuma. Talvez seja sintomática a caracterização de
João Fernandes: enquanto juiz de paz, seria o responsável pelo respeito à legalidade,
independentemente dos interesses pessoais, de modo objetivo. Mas é o primeiro a render-se
aos próprios interesses subjetivos, sacrificando as funções públicas em nome deles, a começar
pelo interesse na herança da irmã, terminando no medo de desagradar às demais influências
143 SKIDMORE, Thomas E.. Ob. cit., pp. 73-75. Tal centralismo seria considerado excessivo em alguns anos, sendo mais um dos fatores desencadeantes da República.
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locais. É, assim, um homem fraco. De sua fraqueza deriva uma esfera pública desorganizada e
marcada pelo arbítrio.
A peça revela uma visão de mundo em que os problemas políticos e
sociais são atribuídos ao caráter das pessoas, não às condições sociais que moldam tais
caracteres. Nesse sentido, Henrique é um raisonneur ao defender que os problemas não estão
nas leis ou nas eleições democráticas, mas na incapacidade de o governo agir moralmente e
respeitando a legalidade e o voto livre144. Se outros fossem os homens nos cargos públicos,
tudo se resolveria...
A peça retrata de um modo interessante a confluência entre as esferas
pública e privada, adotando boas soluções formais (como a abertura da trama para retratar os
eventos eleitorais ou o cenário que funde praça e jardim residencial). Se na peça O Juiz de
Paz na Roça a volúvel delimitação das esferas dava-se em virtude do desleixo do juiz, que
podia arbitrariamente moldá-la e remoldá-la conforme seu interesse em fugir ao trabalho
sério, na presente peça a situação é agravada pelo fato de o juiz estar rodeado de autoridades
locais maiores do que ele, obrigando a levá-las em consideração no momento de redefinir as
fronteiras.
Embora haja a defesa explícita da tese de que essa postura se deva apenas
à fraqueza do seu caráter, materializada nas palavras de Henrique que representa a moralidade
do autor, a estrutura formal da comédia parece mostrar que as coisas não são bem assim,
desmentindo-a. A solução dos conflitos exigiu a intervenção do governo central, sendo fruto
de um possível favor político: a nomeação de Henrique como engenheiro da Província145.
Tudo leva a crer que ele conduzirá com moralidade a construção da torre,
respeitando os objetivos interesses públicos, pois sua autoridade derivada de um poder
superior aos senhores locais lhe permitirá agir em função de sua competência legal. Mas sua
permanência no cargo fica condicionada à duração do favor que o colocou nele. A lógica
arbitrária por detrás da esfera pública não sofrerá qualquer arranhão pela presença de um
funcionário com postura idônea.
144 MACEDO, Joaquim Manuel de. Ob. cit., p. 230. 145 Entre os críticos e historiadores teatrais, apenas Cafezeiro e Gadelha percebem que, “embora defenda tão ardorosamente as eleições e o sistema, é o próprio Henrique quem, por se achar no direito de construir a torre, vai à Corte e traz uma portaria de nomeação para o cargo” (CAFEZEIRO, Edwaldo e GADELHA, Carmem. História do Teatro Brasileiro – De Anchieta a Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ / EDUERJ / FUNARTE, 1996, p. 255) Ambos consideram a peça uma “obra-prima” (Idem, ibídem, p.248). Destacamos ainda a constatação de Emília Viotti da Costa: no Brasil, até o self mad man precisa de padrinhos (COSTA, Emília Viotti da. Ob. Cit., p. 168).
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Como se fazia um deputado - o “negócio” político
Em 1882 representou-se, pela primeira vez, a peça Como se fazia um
deputado146, de França Júnior. A comédia, cujo título original estava no presente (“faz” e não
“fazia”)147, é uma demonstração, por meio das cenas, das práticas questionáveis que
resultavam na eleição de um deputado.
O autor escreveu três tipos de comédias: 1. clássicas, com tramas e
armadilhas; 2. burletas, com cenas fantasiosas e apoteoses; 3. satíricas e políticas, com aguda
crítica aos costumes (as duas comédias analisadas filiam-se a esta categoria)148. Conforme
Freitas, no processo de criação de suas comédias: ...elabora simultaneamente a crítica dos costumes e a crítica política, mostrando-nos como o público e o privado, a intimidade e a vida pública estavam de tal maneira imbricados no tecido social e cultural brasileiro, compondo uma trama de hábitos, comportamentos, ritos e aparências criticáveis.149
Dividida em três atos, a peça passa-se, no primeiro e no último, no
terreiro da Fazenda do Major Limoeiro, e, no segundo, na praça de uma pequena cidade
interiorana. Nota-se, assim, que os atos oscilam de um ambiente que seria considerado, sob
um ponto de vista tradicional, privado, para um ambiente público, retornando-se, então, ao
primeiro.
A estrutura dos atos é voltada para a apresentação do problema (a
“feitura”, ou eleição, de um deputado) e não para o desenvolvimento de uma trama ou o atar e
desatar dos “nós” dramáticos. A eleição do deputado é apresentada como um “negócio”
ajustado entre duas lideranças locais. Primeiramente, ajusta-se o “negócio”, no ato inicial;
depois, ele se concretiza, no segundo ato; por fim, suas repercussões morais e políticas são
apresentadas.
146 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Teatro de França Júnior. Tomo II. Rio de Janeiro: SNT, 1980, p. 123. 147 Em 1881 nova lei eleitoral busca moralizar as eleições, trazendo novos requisitos para a qualificação de eleitores (que reduz o número de participantes no processo), concentrando-a nas mãos dos juízes. Graças à intensa fiscalização do governo central, ocorrem aquelas que seriam as eleições mais justas de nossa história até a República, respeitando-se rigorosamente as determinações da lei e levando vários parlamentares governistas à perda de mandato (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 261). Talvez em virtude disso (e da censura), o autor tenha concordado com a mudança do título da peça. 148 CAFEZEIRO, Edwaldo e GADELHA, Carmem. Ob. Cit., p. 275. 149 FREITAS, Eduardo Luiz Viveiros de. Folhetins e Máscaras - a obra de França Júnior. São Paulo: dissertação de mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais-PUC-SP, 2002, p.84.
61
O primeiro ato, que, conforme afirmado, passa-se no terreiro da Fazenda
do Major Limoeiro, inicia-se dentro dos padrões usuais das comédias, apresentando os
personagens, e, no caso, também o “negócio” político a ser celebrado.
Pelas informações da rubrica inicial, percebemos que se trata de uma
fazenda de café, localizada no Rio de Janeiro. A primeira cena apresenta um inesperado coro
de escravos que, em versos, informa o público sobre a chegada do sobrinho de Limoeiro e
relata que beberão satisfeitos nas senzalas, fazendo batuques durante a noite. Do coro destaca-
se Domingos, uma espécie de corifeu, que voltará à cena mais tarde como mais um
personagem, afirmando que vai dançar com os outros, mas ameaçando: Domingos - (...) Ninguém bula c’o Domingos, Que não é de brincadeira; Quando solta uma umbigada, Quando puxa uma fieira.150
Limoeiro “ordena” a todos que se divirtam e que “ataquem a foguetaria”
tão logo o sobrinho chegue. Domingos, então, descreve os embelezamentos feitos para esperá-
lo e afirma que confirmara com o tenente-coronel Chico Bento a presença dele e de sua
família na recepção. Na cena seguinte, Limoeiro, em monólogo, esclarece que Chico Bento é
uma grande influência na freguesia e afirma que seu sobrinho chegaria formado, com uma
carreira brilhante a aguardá-lo, podendo ser o melhor do local, desde que “aprenda na sua
escola”, ou seja, a escola da política. Desde logo a ética da patronagem se estabelece: o
sobrinho terá tudo, desde que obedeça ao tio.
A terceira cena introduz a família de Chico Bento. Ele é caracterizado
como uma liderança provinciana com mania de latim, normalmente sendo incompreendido,
no seu “latinório”, por Limoeiro. São apresentadas, ainda, Perpétua, sua esposa, e Rosinha,
sua filha, caracterizada como uma jovem roceira simples, ingênua e um tanto desajeitada,
sendo constantemente recriminada por isso pela mãe.
Apresentadas as lideranças locais, a cena quatro mostra uma conversa
entre ambos, sem a presença das mulheres. Chico Bento afirma que seria preciso “muito tino e
prudência nos negócios da freguesia”151 e Limoeiro diz que eles ainda não possuem um
candidato. Pelo diálogo, percebe-se que o primeiro é conservador e o segundo é liberal.
Ambos referem-se a outras lideranças, que adotaram práticas questionáveis em eleições
passadas, mandando prender adversários e mudando de partido conforme as conveniências.
150 FRANÇA JÚNIOR. Ob. cit., p. 125. 151 Idem, p. 127.
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A cena seguinte inicia-se com o estouro dos fogos de artifício, e a volta
do coro de escravos satisfeitos, anunciando a chegada de Henrique: Coro (Dentro) - Dos nossos braços valentes Unidos em doce amor, Façamos forte cadeira P´ra conduzir o doutor. (Entram Domingos e os negros, carregando Henrique) Os seus escravos, meu branco Que vos amam com ardor Aqui trazem satisfeitos Da casa o doce penhor.152
Henrique reencontra o tio, Limoeiro, a quem dedica o diploma obtido,
cumprimenta a família de Chico Bento e é celebrado novamente pelo coro de escravos.
Enquanto isso, Rosinha repara no “canudo” do diploma, querendo saber do que se tratava
aquilo e, depois, ficando espantada com o tamanho da “carta”.
Todos saem de cena, salvo Limoeiro e Chico Bento, que devem tratar de
um “negócio importante”, a ser discutido “com toda a calma”: Limoeiro - Tenente-coronel, cartas na mesa e jogo franco. É preciso arrumar o rapaz; e não há negócio, neste país, como a política. Pela política cheguei a major e comendador, e o meu amigo a tenente-coronel e a inspetor da instrução pública cá da freguesia.153
O “negócio” proposto por Limoeiro é simples: como ele tem “algumas
patacas”, sugere casar seu sobrinho com Rosinha, filha de Chico Bento. Em troca disso, este
apadrinharia Henrique. Como consequência, em sendo cada um deles de um partido diferente,
sempre estariam no poder154: Chico Bento - Já atinei! Já atinei! Quando o Partido Conservador estiver no poder... Limoeiro - Temos o governo em casa. E quando o Partido Liberal subir... Chico Bento - Não nos saiu o governo de casa.155
Caso surja um terceiro partido, a solução é óbvia: Henrique ingressa no
mesmo. O final da cena revela que tanto Limoeiro quanto Chico Bento já andaram trocando
de partido e obtendo favores de ambos os lados. A lógica deles é clara: estar sempre com o
partido do poder, obtendo o máximo de vantagens disso.
Por enquanto, a peça mostra a atuação de um líder local (Limoeiro) para
ampliar sua rede de dependentes (e eleitores), a fim de se fortalecer politicamente e estar
sempre no governo. Tal atuação revela a lógica do processo eleitoral em nosso país: o
152 Idem, p. 129. 153 Idem, p. 131. 154 Richard Graham relata ao menos um caso muito semelhante ao da peça, embora com um desfecho desfavorável para as lideranças: o casamento da filha de um chefe liberal com o filho de um chefe conservador (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 201). 155 FRANÇA JÚNIOR. Ob. cit., p. 132.
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vencedor das eleições ganha o poder de nomear pessoas para cargos e distribuir favores,
aumentando sua influência na região. Assim, o objetivo é ser governo, nunca se opor ao
governo: Um líder municipal lutava pela vitória eleitoral não para se opor ao governo, mas para ser o governo. Se conseguisse amealhar a maioria dos votos para si mesmo ou seus protegidos, isto seria uma prova de sua liderança. Poderia então contar com uma nomeação para importantes cargos locais156.
Tendo-se em vista esse objetivo final, os partidos políticos perdem sua
importância enquanto reunião de homens em torno de ideais ou de programas, transformando-
se em mera reunião momentânea de pessoas em torno de interesses particulares157. Por isso,
como a peça destacará adiante, é irrelevante o fato de cada uma das lideranças pertencer a um
partido próprio.
Ajustado o “negócio” entre os chefes locais, é momento de comunicá-lo
às partes envolvidas, pois tal acerto envolve um casamento entre os jovens. Na cena VII,
Limoeiro e Henrique conversam. Este, ingenuamente, começa a falar em linguagem poética,
destacando as cores da natureza e os sonhos de amor despertados por ela.
Impaciente, Limoeiro o interrompe, perguntando qual carreira pretende
seguir. Após rapidamente descartar a magistratura, a advocacia, a diplomacia, o jornalismo,
apresenta as vantagens da carreira política: Limoeiro - A política, rapaz, a política! Olha, para ser juiz municipal, é preciso um ano de prática; para seres juiz de direito, tens de fazer um quatriênio; andarás a correr montes e vales por todo este Brasil, sujeito aos caprichos de quanto potentado e mandão há por aí, e sempre com a sela na barriga! Quando chegares a desembargador, estarás velho, pobre e cheio de achaques, e sem esperança de subir ao Supremo Tribunal de Justiça. Considera agora a política. Para deputado não é preciso ter prática de coisa alguma. Começas logo legislando para o juiz municipal, para o juiz de direito, para o desembargador, para o ministro do Supremo Tribunal de Justiça, para mim, que sou quase teu pai, para o Brasil inteiro, em suma.158
Após o discurso, Limoeiro pergunta ao sobrinho quais suas opiniões
políticas e fica eufórico ao saber que ele não possui qualquer opinião. Graças a isso, afirma o
tio, ele poderá ser dos dois partidos ao mesmo tempo. Henrique objeta que seria uma
“indignidade”, mas Limoeiro afirma que “indignidade é ser uma coisa só”159.
De um modo muito ligeiro, de acordo com a natureza da comédia, Chico
Bento ingressa eufórico na cena seguinte, afirmando que já acertara tudo com sua filha e 156 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p.165. 157 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 231. 158 FRANÇA JÚNIOR. Ob. Cit., pp. 133-134. 159 Idem, p. 134. Cientes de que haveria troca de partido no poder, cedo ou tarde, os chefes locais nunca comprometiam-se exageradamente com qualquer facção, a fim de poderem eventualmente, mudar de sigla (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 209).
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abraçando Henrique, que nada entende. Então entram Rosinha e sua mãe, Perpétua,
conversando sobre o casamento, o qual a moça se recusa a aceitar. Diz que não conversará
com Henrique.
Na cena X, os noivos são deixados a sós. Falando em “à parte”, cada um
revela ao público seu estado de espírito com relação ao outro. De uma opinião depreciativa e
negativa passam, também rapidamente, a outra mais favorável, até que Henrique se declara: Henrique - (...) Quero dizer-lhe que a senhora é a rosa mais encantadora destes prados, e que faz morrer de inveja e de ciúmes todas as flores que a cercam.160
Rosinha lembra que eles brincavam juntos na infância e deixa
transparecer que gosta dele. Quando ambos estão de mãos dadas, os pais e o tio voltam à
cena, “flagrando-os”: Chico Bento (vendo Henrique segurando a mão de Rosinha) - Venham, venham depressa, que o negócio está concluído! Jam proximus ardet.161
Com o acerto entre os noivos, o ato termina em festa. Henrique, instruído
por Limoeiro, já começa a fazer “política”, bajulando cada uma das lideranças locais,
presentes à festa. Ele deseja fazer “amizades”, a fim de conquistar a simpatia e a lealdade de
futuros eleitores e, quem sabe, clientes162. O final do ato é marcado pela recitação de poesias
laudatórias e pela cantoria do coro de escravos, celebrando seus senhores.
Analisando-se as cenas, podemos constatar que houve a apresentação dos
personagens e a proposta do “negócio”. O “negócio” funde as esferas pública e privada,
pressupondo um casamento entre os herdeiros de duas famílias influentes com a finalidade de
marcar uma aliança política. Sob o prisma privado, ocorre o acerto entre os noivos; sob o
prisma público, Henrique termina o ato preparando terreno para sua candidatura à deputado.
Em suma, o “negócio” está “fechado” e começa a ser executado.
Durante as cenas, notamos uma perspectiva crítica por parte do autor,
embora sem recorrer ao uso de um raisonneur. O riso cômico é dirigido às práticas
questionáveis das lideranças locais e à concepção da política partidária como um meio de
obter benefícios pessoais. Historiadores do teatro têm notado que França Júnior é um crítico
ferino (“não poupa ninguém, cobrindo de ridículo até os bem intencionados”163), parodiando
160 Idem, p. 136. 161 Idem, p. 137. 162 Os favores dos políticos eram feitos, em primeiro lugar, para os parentes e, depois, para os “amigos”. A amizade é considerada uma relação entre protetor e cliente. Assim, “os líderes políticos despendiam muito esforço construindo redes de amigos” (GRAHAM, RICHARD. Ob. cit., p. 305). 163 Magaldi, Sábato. Ob. cit., p. 130.
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os coroneis e sua “mentalidade patriarcal, autoritária, prepotente e quase sempre
incoerente”164.
Também percebemos que o personagem Henrique, simbolizando os
jovens bachareis, aceita tudo de um modo muito fácil, sem resistir, não possuindo qualquer
fundo ético ou ideológico. Apenas deseja satisfazer as vontades do tio e seguir a carreira que
este lhe escolheu. Já é um deputado em potencial.
Aliás, nada a surpreender. O bacharel transforma-se no representante do
fazendeiro na cidade, sendo eleito graças à influência deste e tornando-se leal a ele165.
Normalmente liga-se ao seu protetor por laços de parentesco e torna-se um conciliador de
seus interesses com os interesses do partido166. Costuma preferir a ascensão por meio da
proteção do líder local, a uma ascensão político-partidária167.
Outro ponto a destacar é uma quase inesperada presença de um coro.
Rotineiro na Comédia Antiga, desaparece durante a Comédia Nova. Todavia, ainda que
possivelmente fruto de uma ridicularização por parte do autor, o coro cumpre uma função
diversa daquela tradicionalmente ocupada no modelo grego: Como função, o Coro assume duas atitudes que se completam: primeiro, serve ao desencadeamento dos contrastes, alimentando e provocando os desentendimentos; em seguida, aliando-se à personagem que defende as ideais do poeta, apoiam-no e ridicularizam os seus adversários.168
O coro ora apresentado revela escravos satisfeitos que se preocupam com
o festejo da chegada de Henrique. Como na peça não há qualquer personagem que expresse
diretamente o pensamento do autor, tal coro não se manifesta quanto a tais ideias.
Por fim, ainda convém reforçar que o acerto para a “feitura” do deputado
deu-se no âmbito privado, na fazenda de Limoeiro. Trata-se de um “negócio” entre duas
famílias, cuja finalidade é a conservação do poder político. Este, por seu turno, é visto como
suscetível de ser apropriado ou privatizado, trazendo benefícios pessoais àquele que o possui.
Nitidamente, com o rápido acerto entre os noivos e a ausência de conflito
que impeça o casamento, o autor da comédia optou por focar a faceta política do “negócio”
ajustado. Em sendo assim, o segundo ato migra para a esfera pública, passando-se na praça
164 CAFEZEIRO, Edwaldo e GADELHA, Carmem. Ob. Cit., p. 278. 165 COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 261. 166 Idem, p. 264. 167 “Do ponto de vista do jovem aspirante a político, a disciplina do partido naturalmente exercia poucas atrações, e a ajuda de um padrinho local parecia bastante satisfatória” (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 218). 168 DUARTE, Bandeira. História Geral do Teatro - volume III - Grécia (II). Rio de Janeiro: Minerva, 1951, p. 35.
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de uma pequena cidade, com a igreja ao fundo e rodeada por algumas casas. Seu objetivo,
pois, é apresentar o modo direto como um deputado (no caso, Henrique) era produzido.
Logo de início notamos um novo coro. No lugar dos escravos submissos,
um grupo de capangas169, também submissos, mas em troca de dinheiro. Defendendo o voto
livre, tal coro diz que vai usar o “cacete” e a “navalha” para cabalar.
Na cena II, Limoeiro afirma a Henrique que o “negócio vai correndo às
mil maravilhas” e depois determina a Domingos, seu escravo, que vote em nome de outra
pessoa170. Na sequência ocorre uma gritaria, com a acusação de que um eleitor seria “fósforo”
(usaria título falso). No meio do tumulto, Limoeiro determina a Domingos que jogue diversos
votos na urna e Henrique pede respeito às garantias constitucionais. Chico Bento manifesta
suas preocupações.
Na cena VI, um votante revela a Chico Bento ser muito pobre e, por isso,
aceitar dinheiro para votar, já estando em sua quarta votação. Limoeiro, por sua vez, afirma
ter determinado que um votante adversário fosse preso, acusando-o de vagabundagem.
Depois, promete alforriar o prestativo Domingos caso Henrique venha a ser eleito,
determinando que ele vote ainda mais uma vez.
A eleição costumava ser chamada de “farsa, teatro, comédia, baile”171.
Pois a peça escrita por França Júnior apresenta todas as principais cenas da “comédia
eleitoral” brasileira.
Na cena IX, ocorre uma algazarra: Domingos é descoberto e os populares
se revoltam. Limoeiro brada em nome da moralidade pública, solicitando que permitam o
voto do “cidadão livre”172. Custódio, juiz de paz, manifesta-se defendendo o direito de
Domingos votar, “em nome da nossa honra, em nome da tranquilidade pública”173. Mas sua
manifestação é inócua, havendo pedradas e cacetadas, até a intervenção da guarda, que
dispersa todos.
Novamente nos deparamos com um juiz de paz sem outra fonte de
autoridade que não seu cargo. Em sendo assim, torna-se fraco perante as lideranças locais e
169 “Um membro do Congresso referia-se ao ‘emprego de força (não de força pública), mas de força vinda de fora, de homens conhecidos com a denominação de capangas’. Um dicionário do século XIX define capanga como ‘um valentão que é pago para guarda-costa de alguém ou para serviços eleitorais; mas, neste caso, [ele] é mais que um galopim eleitoral, é um caceteiro, às vezes um assassino’” (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 185). 170 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de., ob. cit., p. 142. 171 COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 161. 172 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de, p. 145. 173 Idem, p. 145.
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não consegue desempenhar uma de suas principais incumbências: presidir a eleição. Ainda
tenta fazer a defesa da ordem, embora ela seja flagrantemente parcial aos interesses de
Limoeiro174.
A cena anterior revela também as forças contraditórias que norteiam as
eleições em nosso país: por um lado, devem parecer honestas e não devem disseminar a
violência, para evitarem-se as comoções sociais; por outro, o partido do governo não podia
perder (circunstância que, por vezes, levava ao uso da força)175. Dentro dessa dialética, o uso
da força pelo governo era justificado como “manutenção da ordem”176, recorrendo-se,
inclusive, à Guarda Nacional (como pode ter sido o caso).
Em meio à confusão pública, a cena X inicia-se com a entrada de
Perpétua e Rosinha, trazendo a questão do ajuste privado do casamento à praça pública.
Procuram os respectivos marido e noivo, preocupando-se com a agitação presenciada. Na
sequência, ambos surgem e recriminam as mulheres por estarem lá. Chico Bento afirma que,
em breve, tudo estaria “um dilúvio de sangue”, pedindo que elas saiam177.
Limoeiro reforça a confusão entre as esferas ao supor que as duas
estivessem também a cabalar votos. Depois, ao ver Chico Bento desanimado, o estimula a
seguir no “fogo” e condena Henrique por não estar tomando conta da urna: Henrique - Estou ao lado da urna dos meus afetos. Limoeiro - Deixa esta, que está segura, e vai tomar conta da outra, que está em perigo. (...) 178
As mulheres saem de cena. Limoeiro ordena a Domingos que vote ainda
mais uma vez, dando instruções para ir se fantasiar. Em seguida, surge um italiano, Pascoal,
vendendo bugigangas. É o pretexto para Limoeiro oferecer dinheiro para que ele se passe por
um eleitor brasileiro.
174 “Juízes de direito e juízes municipais também exerciam grande poder sobre os resultados eleitorais. Juízes de direito podiam ser colocados em jurisdições difíceis para criar um compromisso eleitoral, porém, com mais frequência, eles pareciam desavergonhadamente parciais em relação a uma ou outra facção” (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 118). Quando um juiz estava amparado por um chefe local de oposição, tinha o poder de dominar os demais líderes (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 176). Destaco, ainda, que o juiz de paz situava-se no mais baixo patamar na hierarquia do Poder Judiciário, embora tivesse, normalmente, a incumbência de presidir as eleições e redigir as atas. 175 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 105. 176 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de, p. 123. 177 Idem, p. 146. 178 Idem, p. 147. Muitas vezes as urnas eram roubadas e reapareciam com mais votos do que votantes (COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 162).
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Chico Bento, então, sugere que mantenham a “capangada” alerta, caso
algo não corra bem. Limoeiro parece tranquilo, e se lembra de episódios da eleição anterior,
quando eleitores votaram cinco ou seis vezes, sem serem descobertos179.
Mas, na cena XVI, surge Henrique, preocupado, pois descobrira uma
conspiração para roubarem a urna: Chico Bento - (...) Estamos traídos! O chefe do nosso partido está ligado com um membro do partido contrário. Às duas horas em ponto estejam todos no coro, prontos para o que der e vier. É preciso a todo o custo quebrar a urna e mandar ao diabo esta eleição. Os escravos da fazenda de Dona Miquelina estão a postos.180
Na próxima cena, grande confusão. Tal e qual na cena IX, descobrem um
impostor (agora, o italiano Pascoal); Custódio, o juiz de paz, manifesta-se de modo inócuo em
defesa de sua liberdade de voto; Limoeiro brada pela moralidade pública. Dessa vez, porém,
sem a intervenção da guarda, os populares impedem seu voto. A situação está prestes a
explodir: Domingos (Saindo da igreja apressado) - Meu sinhô? Meu sinhô? O negócio não está bom, não. Povo no coro da igreja está assim. (Batendo na mão, fechada em forma de óculo) Tudo com pedras e porrete.181
O ato termina com a confusão generalizada. Ressurgem Perpétua e
Rosinha, caindo nos braços de Chico Bento e Henrique. Muita gritaria, o povo revolta-se
contra o juiz de paz e brada que a eleição está viciada. Enquanto o Coro leva a urna para a
casa do segundo juiz de paz, Limoeiro traz a voz da razão política, afirmando que não devem
derramar sangue de irmãos e que o governo decidirá quem tem razão: Limoeiro - Ameaças não me assustam, Que eu não conto com bravatas; Façam lá o que quiserem, Que eu sou forte em duplicatas.182
Se o foco do primeiro ato fora a celebração do “negócio”, o foco do
segundo ato foi a execução de sua vertente pública, qual seja, a produção de um deputado.
Inúmeros procedimentos questionáveis são explicitados pelas cenas: falsos eleitores; votos de
defuntos; uso de escravos pelos senhores; abuso da miséria do povo para comprar votos;
roubo de urna; abuso de poder pelas lideranças locais; prisão de eleitores adversários.
Em meio a tal situação, devemos lembrar uma figura fundamental que
passa quase despercebida: Custódio, o juiz de paz. Responsável justamente por manter a
179 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 150. 180 Idem, p. 151. 181 Idem, p. 152. 182 Idem, p. 154.
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ordem e fazer respeitar a lei, manifesta-se, por duas vezes, de modo favorável a Limoeiro,
defendendo seus falsos eleitores e gerando descontentamento perante o povo.
Novamente nos deparamos com um juiz de paz incapaz de defender os
interesses objetivos da lei e de delimitar uma esfera pública insuscetível de apropriação
indevida por alguns particulares. Como não há qualquer juízo explícito do autor e como o juiz
é personagem secundário, não podemos deduzir se a culpa da situação é atribuída a sua
fraqueza moral. Em todo caso, ao descrever o ambiente de produção de um deputado, o autor
fez questão de mostrar que, nesse ambiente, há um juiz que não cuida de preservar a ordem
jurídica, mas se curva aos poderosos.
Inesperadamente o coro, até então submisso, representado por capangas e
talvez agindo em nome de interesses pessoais de outras lideranças, pratica a ação central no
ato, no sentido de desencadear um conflito na peça: rouba a urna e “destitui” o juiz de paz
inócuo. Há, agora, um sério obstáculo ao “negócio” celebrado entre Limoeiro e Chico Bento.
Houve um desafio à liderança de ambos.
Quando a oposição sentia-se forte o suficiente para pleitear uma vitória
nas eleições, podia alegar fraude eleitoral, transferindo a decisão para as instâncias superiores,
ou usar a força e sua ameaça, intimidando os eleitores da antiga liderança. Em casos
extremos, a oposição organizava sua própria eleição, elaborando sua ata e encaminhando-a
para reconhecimento183. Era frequente, também, nesses casos, a oposição recorrer ao segundo
ou até ao terceiro juiz de paz, alegando parcialidade dos demais184.
A fala de Limoeiro transcrita, por sua vez, revela que, apesar da
contestação sofrida, não sentia sua liderança abalada. Dentro da dialética das eleições acima
destacada, não vê a necessidade de recorrer à violência, que só deveria ocorrer em casos
extremos185. Ao dizer que é “forte em duplicatas”, Limoeiro parece acreditar que pode
resolver o assunto nas instâncias superiores, pois estaria inserido na rede governista.
O terceiro ato, contrariando as expectativas geradas pela cena que o
antecede, volta à esfera privada da fazenda de Limoeiro, numa prosaica discussão entre
Perpétua e Rosinha. Esta, contrariada, esbraveja porque a mãe reclama demais de sua falta de
postura e porque fala demais em Henrique, seu noivo. Perpétua, por seu lado, defende-se
183 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 183. 184 Idem, p. 192. 185 Um exemplo seria o reconhecimento pela situação de que não dominou completamente a oposição (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 188).
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alegando que quer educar a filha, mostrando que não deve aborrecer seu marido e preparando-
a para ser mulher de um doutor que acabara de ser eleito deputado provincial.
A conversa serve para antecipar ao público a informação anterior,
mostrando que, de alguma forma o conflito já fora resolvido. Entra Limoeiro, elogiando o
sobrinho, prevendo uma carreira rápida e gloriosa rumo ao posto de senador e lendo um artigo
publicado no jornal: Limoeiro (Tirando um jornal do bolso) - Vejam o que diz este jornal. (Lendo) “Parabéns aos nossos comprovincianos. Acaba de ser eleito deputado provincial pelo 3º distrito o Senhor Doutor Henrique da Costa Limoeiro, uma das mais esplêndidas esperanças da sua terra natal. A atitude nobre, sustentada por sua excelência, nas últimas eleições, defendendo o voto livre e as garantias constitucionais contra os botes da anarquia, foi felizmente recompensada pelos dignos eleitores, que souberam colocar-se na altura de tão nobre missão”. 186
Na sequência, surge Chico Bento e saem as mulheres. Ele e Limoeiro
vão, novamente, tratar de “negócios de alta monta”. Inicialmente, esclarecem que o conflito
do roubo da urna fora resolvido mediante a aprovação, “pelo poder competente”, de nova
eleição. O Domingos votou algumas vezes e o italiano, que não tentara novamente, estava na
fazenda do Limoeiro aprendendo português, para alistar-se posteriormente.
Ora, a confiança de Limoeiro justificara-se. Ao ser organizada nova
eleição, pode ter tomado algumas medidas que impediram a oposição de se manifestar. A nota
no jornal e a própria segunda eleição revelam que as aparências, não obstante a certeza da
vitória da situação, eram sempre mantidas187. Por algum motivo, precisávamos da
“parafernália do liberalismo”188, seja porque a oposição não podia ser simplesmente
eliminada, seja pela nossa necessidade de inserção no mundo ocidental.
Tendo Henrique recebido grande quantidade de votos, era o momento de
pensarem no próximo passo da carreira: a “deputação geral”. Limoeiro confessa que seus
seguidores mandaram publicar o artigo que lera; Chico Bento, por seu lado, afirma também
ter mandado publicar seu artigo, elogiando Henrique, no jornal Voz da Verdade.
Definem que o rapaz sairá candidato pelo partido que estiver no poder,
explicitando-se, mais uma vez, que o objetivo final era ser governo, participando da rede de
clientelismo. Na sequência, dialogam sobre o programa a ser apresentado pelo candidato: Limoeiro - E o que tem as ideias com o programa e o programa com as ideias? Não misture alhos com bugalhos, tenente-coronel, e parta deste princípio: o programa é um amontoado de palavras mais ou menos bem combinadas, que têm sempre por fim
186 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 157. 187 O país vangloriava-se, no século XIX, de viver um regime de democracia representativa em meio a ditaduras latinoamericanas (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 103). 188 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 176.
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ocultar aquilo que se pretende fazer.189
Ambos confessam que desconhecem os programas de seus próprios
partidos. Limoeiro apresenta nova lição de ética política: Limoeiro - (...) Meu amigo, eu não conheço dois entes que mais se assemelhem que um liberal e um conservador. São ambos filhos da mesma mãe, a Senhora Dona Conveniência, que tudo governa neste mundo. O que não pensar assim deixe a política, vá ser sapateiro.190
A conversa explicita, novamente, que os grupos políticos se formavam
não por lealdades partidárias ou ideológicas, mas por afinidades pessoais. Seriam frequentes
as posições contraditórias dos partidos sobre questões importantes e o descumprimento do
programa após as eleições. Isso porque o governo era visto como um “arranjo entre amigos” e
o dever político era a lealdade aos líderes, não às ideias ou aos programas partidários191.
Quanto às semelhanças fundamentais entre os membros de partidos
políticos, citamos discurso de Martinho de Campos, de 1882, ano de encenação da peça: ...duas coisas muito parecidas - um liberal e um conservador - e podia mesmo acrescentar-se um republicano, porque têm todos os mesmos ares de família192.
Limoeiro e Chico Bento escrevem uma carta de recomendação de
Henrique, afirmando que ele vai “mudar a face dos nossos acontecimentos políticos”,
cuidando do transporte, da economia, do ensino, buscando o progresso, a ordem e a liberdade,
sem tocar no tema da escravidão, assunto delicado para um político193. Tal carta será enviada
aos dois partidos, com o mesmo teor.
Tendo-se em vista que o fundamental não é definir um programa de
governo, mas conquistar adesões de outros líderes, o mecanismo de envio de cartas era
frequentemente utilizado, sendo fundamental destacar-se o nome da liderança que pede apoio
ao candidato, não suas ideias. Os esforços, assim, voltavam-se para convencer os chefes locais
a apoiarem um candidato determinado para o poder legislativo nacional. Conquistando-se essa
adesão pessoal, a eleição estaria garantida194.
A cena seguinte é marcada pela abrupta entrada de Henrique, zangado,
criticando o artigo publicado por Chico Bento, sem saber que este era seu autor. Parece sofrer
de um abalo de consciência: Henrique - Maldita seja a hora em que se lembraram de meter-me em semelhante
189 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 159. 190 Idem, p. 159. 191 GRAHAM, Richard. Ob. Cit., p. 220. 192 APUD. COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 160. 193 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., pp. 160-161. 194 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 205.
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comédia. Limoeiro - Ó rapaz, tu perdeste o juízo? Henrique - Acabo de sair dos bancos da academia, do meio de uma mocidade leal e generosa, cheio de crenças, sonhando a felicidade de minha pátria, e eis que de chofre matam-me as ilusões, atirando-me no seio da mais horrível das realidades deste país - uma eleição, com todo o seu cortejo de infâmias e misérias.195
Limoeiro, experiente, não se abala com o novo contratempo. Logo em
seguida conversa, em particular, com Rosinha, adotando uma estratégia maliciosa para
convencer Henrique a não desistir do cargo: Limoeiro - Henrique está com os miolos virados e quer, a todo o transe, abandonar a carreira que tão brilhantemente começa agora. Rosinha - Por quê? Limoeiro - Eu lá sei! Porque está com a cabeça cheia de poesia, e entende que este mundo deve ser governado a seu jeito. Compete agora à menina, que soube prendê-lo pelos dotes do coração, dissuadi-lo destas tolices e mostrar-lhe o bom caminho. Rosinha - Se estiver em minhas mãos... Limoeiro - Está, está. E a menina tem também o maior interesse nisto. Irá para a corte, terá ricos vestidos, bonitas joias, aparecerá nos grandes bailes, frequentará todos os teatros, divertir-se-á, enfim, como uma verdadeira princesa.196
Na sequência da cena, Limoeiro reforça todas as qualidades que a Corte
possuiria para uma jovem como Rosinha, despertando nela a ambição de lá residir como
esposa de um deputado. O veneno espalha-se rapidamente, inebriando-a.
Rosinha conversa, então, com Henrique, que confessa gostar cada vez
mais dela. Confessa que deseja ir morar no Rio de Janeiro, como esposa do deputado
Henrique197. Ele compreende a manobra do tio, mas ainda assim se deixa enredar pela noiva,
dando sua palavra de que se tornará deputado e cumprirá todos os seus deveres. Rosinha
afirma estar pronta para consolá-lo caso venha a se decepcionar.
Henrique, com a decisão, assume sua condição de deputado-bacharel na
rede política. Os deputados eram, usualmente, parentes dos chefes políticos, portadores do
diploma em direito e de uma cultura urbana que os distanciava dos líderes que os elegiam.
Frequentemente manifestavam desprezo por tais líderes, mas precisavam deles para
continuarem em seus cargos, pois não possuíam uma clientela que os elegesse. Enquanto
permaneciam nas cidades, podiam brilhar com sua inteligência e civilidade; nos momentos de
campanha, viam-se em meio às lutas eleitorais e sentiam o peso da falta de cultura de seus
protetores198.
195 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 162. 196 Idem, p. 164. 197 As mulheres muitas vezes levavam os pedidos de parentes para os maridos, sendo elo importante na ligação das teias da clientela (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 302). 198 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 207.
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Limoeiro, que esteve escondido, aparece, contente, depois seguido por
Chico Bento e Perpétua. Um grande barulho revela uma manifestação de apoio ao deputado,
que logo entra em cena. Capangas, populares, personalidades e escravos, todos comemoram a
eleição de Henrique. Custódio, o juiz de paz, faz elogios ao novo deputado.
A peça termina com a alforria de Domingos, concedida por Limoeiro,
fazendo dele um cidadão livre e lhe concedendo pão e trabalho em sua fazenda. Por fim, ele
determina o início da festa.
O terceiro ato, ao regredir ao ambiente privado, apenas relatou que o
conflito pendente do segundo ato estava resolvido. Seu foco passa a ser as repercussões do
“negócio” concretizado e a preparação de novos “negócios”.
Surge uma crítica à imprensa, reproduzindo artigos de terceiros, com
versões parciais dos fatos, sem preocupar-se com a busca da verdade. Também é apresentada
uma crítica ideológica aos partidos, mostrando o vazio de seus programas e a falta de
oposição concreta e efetiva entre eles.
O papel da mulher também é problematizado. Perpétua revela a Rosinha
uma imagem feminina de submissão e obediência ao marido. Todavia, ela torna-se
fundamental ao convencer seu futuro esposo a aceitar a deputação, deixando transparecer um
espaço para a ação feminina. Por outro lado, sua ação deriva de um plano arquitetado por
Limoeiro, que a utilizou para isso. Assim, a mulher é, ao mesmo tempo, submissa e
manipulável, mas podendo agir e conduzir, a seu modo, seu marido.
A ação de Rosinha, fundindo sua felicidade privada à escolha política de
Henrique, mostra, mais uma vez, que as esferas pública e privada estão intrincadas e
interpenetradas. Assim também sua oferta para consolá-lo em caso de decepção.
Vislumbramos críticas quanto a gestos que poderiam ser caracterizados
como de bondade, mas não o são. Pascoal, por exemplo, é convidado a ficar na fazenda de
Limoeiro apenas para ser transformado em um futuro eleitor; também Domingos é libertado
com uma mensagem clara: “serás um cidadão livre”199, ou seja, ele tornou-se,
verdadeiramente, um eleitor. Nada mais mudará: Limoeiro afirma que ele encontrará “pão e
trabalho” em sua fazenda, não fala de salário ou aposentadoria e condições dignas de vida.
Curiosamente, desaparece o coro. Nem escravos submissos, nem
capangas. O autor não encontrou qualquer espaço no terceiro ato para inseri-lo. Não há
199 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 168.
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manifestações de louvor aos senhores, ou de luta pela conquista de votos. Também não há
oposição, como a verificada no roubo da urna.
Talvez a peça devesse ter outro título: no lugar de “Como se fazia um
deputado”, deveria chamar-se “Como Limoeiro fazia um deputado”. Seu personagem é
central. Ele toma a iniciativa de propor o “negócio” a Chico Bento; ele convence Henrique a
aceitar a candidatura; ele manipula as eleições; ele faz Rosinha convencer Henrique a não
desistir. Em suma, ELE está fazendo o deputado.
Pois surge aí um ponto crucial: não houve oposição concreta a qualquer
das ações acima. Em apenas um momento, durante toda a peça, encontramos um conflito
verdadeiro: quando a urna é roubada pelo coro, contrariando as expectativas de Limoeiro.
Vimos que ele não se abalou, confiando que “o governo decidirá a questão”. E vimos também
que o autor não mostrou, durante as cenas, como se deu essa resolução, fundamental para a
produção do deputado.
Isso causa uma fratura na peça, pois oculta-se algo que não se deseja
mostrar, mas imprescindível para que o plano de Limoeiro se concretize: por detrás de toda a
comédia representada há um poder cuja lógica não coincide com a violência explícita (“não
derramemos o sangue de irmãos”), nem com a legalidade objetiva (vide a fraqueza do juiz de
paz).
Só nos resta uma suposição: tendo-se em vista que ambos os partidos
praticaram abusos, a decisão que levou a nova eleição e ratificou a vitória de Henrique só
pode ter derivado de um ato arbitrário de uma autoridade superior a todos os envolvidos na
confusão. Teria Limoeiro obtido um favor?
Nesse caso, tal favor derivaria da continuidade da rede de poderes que
leva à eleição de um deputado, sendo oriundo do governo central. As cenas mostram o poder
derivado dos líderes locais, capaz de mobilizar eleitores; mas não mostram a outra face desse
poder, que garantiria a legalidade da eleição e a própria qualificação dos votantes, oriundo,
em última instância, do Poder Moderador e dos Ministros de Estado.
O Imperador indicava um Ministério composto por um dos dois
principais partidos, que nomeava seus clientes aos cargos que permitiam o controle direto do
processo eleitoral e o exercício de influência nos votantes, além de “comprar” o apoio de
lideranças com a indicação de seus protegidos a alguns desses cargos200. Garantido o controle
do processo, o Ministério facilmente fazia a maioria parlamentar, pois os líderes locais, em
200 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 115.
75
troca de favores políticos, mobilizavam seu “curral eleitoral” conforme a diretriz do partido
governante. Ora, Limoeiro estava sempre do lado certo, ou seja, do lado do governo, que
controla as eleições.
O autor ocultou, na peça, da rede de abusos e fraudes eleitorais que leva à
produção de um deputado, o Imperador, único com poder suficiente para nomear os ministros
e alterar o equilíbrio de forças derivado do governo201, e o próprio Ministério, de onde pode
ter partido os procedimentos que confirmaram a nova eleição e a vitória de Henrique202. Mas
a estrutura formal da comédia trai esse ocultamento, revelando-o na intervenção externa que
resolve o único conflito do enredo, decorrente do roubo da urna.
201 “Como o Gabinete sempre podia conseguir os resultados eleitorais que quisesse, somente o imperador podia alterar os grupos no poder, e quando o fazia, atraía a hostilidade daqueles que haviam ficado de fora” (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 135). 202 A próxima peça do autor, analisada na sequência, foca esse outro lado da rede. Porém, deixa, então, de fazer a ligação com os elementos apresentados nesta comédia.
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Capítulo II - Cargo público e posição social
Caiu o Ministério! - Cargo público e condição social
A Guerra do Paraguai, em 1864, pode ser apontada como um marco de
transição no Segundo Império, indicando o final de cerca de vinte anos de estabilidade e
exercício quase inquestionado do Poder Moderador. A partir de então, o Imperador é acusado
de abusar desse poder, perdendo a aura de sábio, benigno e apartidário203. Desencadeiam-se
diversas crises partidárias, reivindicando os liberais maior descentralização, limitação de
mandatos no Senado, autonomia do Poder Judiciário, liberdade religiosa e a abolição gradual
do trabalho escravo204.
A partir da segunda metade do século XIX, a expansão da economia
exportadora traz algumas consequências sociais para o país, como estímulos à urbanização e
ao desenvolvimento do mercado interno, gerando cisões na elite e levando aos problemas de
mão-de-obra e da propriedade da terra. Novos investimentos permitem a expansão das
estradas de ferro, do sistema bancário, das manufaturas e a realização de melhoramentos
urbanos. Na década de 1880, algumas classes urbanas e os fazendeiros de café paulistas não
se sentiam suficientemente representados pela política, fazendo oposição ao governo205.
Em 1882, além de Como se fazia um deputado, França Júnior escreveu a
peça Caiu o Ministério!206, na qual também aborda, de modo explícito, questões políticas de
seu tempo. Novamente podemos notar a oscilação entre o espaço público e o espaço privado e
o intuito do autor de apresentar um tema relevante para a vida do país: a instabilidade
ministerial e as práticas que a cercam, focando a formação, a atuação e a queda de um
ministério.
Seu ponto de partida é o burburinho da Rua do Ouvidor, tendo ao fundo a
redação do jornal O Globo, uma confeitaria e um armarinho. Nesse espaço, quatro jornaleiros
ambulantes, na primeira cena, berram, cada qual representando seu periódico, as últimas
notícias sobre a queda do ministério e escândalos parlamentares. 203 SKIDMORE, Thomas E. Ob. cit., p. 88. 204 Idem, p. 89. 205 COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 15. 206 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Teatro de França Júnior. Tomo II. Rio de Janeiro: SNT, 1980, p. 169. Alguns teóricos apontam a peça Quase Ministro, de Machado de Assis, representada em um sarau privado no ano de 1862, como fonte de inspiração para França Júnior. A peça de Machado, transcorrida em uma sala de estar, em um ato, apresenta a bajulação em torno de um pretenso novo membro do ministério que, ao final, descobre-se não será nomeado.
77
Convém destacar o papel da Rua do Ouvidor na cidade do Rio de
Janeiro: Na Rua do Ouvidor, como veremos na comédia Caiu o Ministério! (1882), o espaço público torna-se palco da representação da expectativa de uma sociedade que quer ver seus interesses privados satisfeitos pela definição da situação política. Os boatos circulam pelas lojas, charutarias e confeitarias. A imprensa alimenta a curiosidade dos frequentadores da rua pelos acontecimentos políticos e as conversas, nas esquinas e nas mesas das sorveterias, giram em torno da sucessão de gabinetes (ministérios): a cada manchete estampada nos diversos jornais que anunciam a queda do ministério anterior e as especulações sobre a composição do novo, pretendentes a cargos e empregos públicos, privilégios para obras e casamentos de conveniência sondam possibilidades, fazem planos para o futuro. Os interesses públicos e privados, a vida pública e a vida íntima surgem imbricados, indistintos, dependendo da definição e do rumo dos acontecimentos políticos.207
Surge, então, Raul, graduado em direito e personagem em busca de uma
colocação em algum cargo público, conversando com transeuntes. Do final dessa cena até a
cena quatro, cada novo transeunte que conversa com ele traz uma informação diferente quanto
aos componentes do novo ministério. Uma publicação na porta do jornal O Globo chama a
atenção de todos, que se dirigem ao fundo da cena, dando espaço para a entrada de duas
mulheres.
Dona Bárbara e sua filha, Mariquinhas, notam que a rua está bastante
movimentada. A mãe reclama que seu marido, o desembargador Coelho, insatisfeito com a
atual condição de deputado, há três dias não sai de casa, ambicionando um cargo no novo
ministério. Dona Bárbara - E vive há três dias encerrado em casa, como verdadeiro maluco. Por mais que lhe diga - seu Chico, vá para a Câmara, contente-se em ser deputado, que não é pouco, e o homem a dar-lhe. Já quando caiu o outro ministério foi a mesma coisa. Passa o dia inteiro a passear de um lado para o outro; assim que ouve o ruído de um carro, ou o tropel de cavalos, corre para a janela, espreita pelas frestas da veneziana, e começa a dizer-me, todo trêmulo: - É agora, é agora, Barbinha, mandaram-me chamar. (...)208
Na cena seguinte, entra Felicianinha, trazendo a Dona Bárbara notícias
sociais, sobretudo falando mal de Filomena e sua filha, Beatriz, que tem mania de usar muitas
expressões estrangeiras, "para mostrar aos circunstantes que já esteve na Europa”209.
Ressaltam que a mãe, Filomena, veste-se como a filha, destoando de sua idade.
Logo em seguida, na cena VII, chegam as duas personagens mal faladas.
Agora, o autor coloca no palco a hipocrisia social. Enquanto as três primeiras conversam de
207 FREITAS, Eduardo Luiz Viveiros de. Folhetins e Máscaras - a obra de França Júnior. São Paulo: dissertação de mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais-PUC-SP, 2002, p.45. 208 Idem, ibidem, p. 177. 209 Idem, ibidem, p. 178.
78
modo educado e elogioso com as duas recém-chegadas, falam, baixo, entre si, de modo
depreciativo. Além disso, todas elas difamam outras mulheres, ridicularizando suas roupas e
seus modos.
Da mesma forma, quando, na cena VIII, saem do palco Felicianinha,
Dona Bárbara e Mariquinhas, Beatriz e Filomena criticam suas vestimentas. Filomena, então,
pergunta à filha sobre Raul e a razão de ele ter "desaparecido" de sua casa. Afirma tratar-se de
um excelente partido, ao que Beatriz suspira: "Se papai fosse chamado agora para o
Ministério..."210, dando a entender que, por interesse, ele voltaria a procurá-la. Além disso,
percebe-se que seu pai também é candidato a ministro.
O foco, então, volta a Raul, que estivera ao fundo. Ele diz a um colega
que deve ir-se, pois não quer ser descoberto por elas: Raul - ...Porque a filha namora-me, desgraçado, julga-me muito rico, e noutro dia no Cassino, caindo eu na asneira de dizer-lhe que era bela, encantadora, essas banalidades, tu sabes, que costumamos dizer às moças nos bailes, o diabinho da rapariga fez-se vermelha, abaixou os olhos, e disse-me: - Senhor Doutor Raul, por que não me pede a papai? Goularte - Pois pede-lhe. Raul - Nessa não caio eu! É pobre como Jó, e mulher sem isto (sinal de dinheiro) está se ninando. Vamos embora. (saem)211
Na cena X, Filomena pergunta a Beatriz sobre Mr. James, inglês de quem
se diz ser muito rico. Esta afirma que ele não cairia facilmente em seu laço, embora lhe
fizesse a corte. Coincidentemente, ele sai com um colega da confeitaria e, ao vê-las, tem a
mesma reação de Raul: afirma que não pode ser visto por elas, pois falara alguns galanteios à
Beatriz que reagira dizendo-lhe para pedir sua mão a seu pai212. Mr. James - Oh!, no; mim não vem a Brasil pra casa. Mim vem aqui pra faz negócia. Menina não tem dinheiro, casamento estar mal negócia. No, no, no quer. Eu vai embora.213
A cena XI traz Filipe, funcionário do armarinho, observando Beatriz que
sai de cena com a mãe. Comenta com Ernesto que está apaixonado por ela: Filipe - Ela sim! Por causa dela já não durmo, já não como, já não bebo. Vi-a pela primeira vez no Castelões. Comia uma empada! Com que graça ela segurava a apetitosa iguaria entre o fura-bolo e o mata-piolho, assim, olhe (imita). Vê-la e perder a cabeça foi obra de um momento.214
210 Idem, ibidem, p. 180. 211 Idem, ibidem, pp. 180-181. 212 Mary Del Priore afirma que os estrangeiro eram cobiçados como maridos, contando episódios em que moças praticamente se atiram sobre os forasteiros (PRIORE, Mary Del. Ob. cit., pp. 173-174.). 213FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 181. 214 Idem, ibidem, p.182.
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Diz que por causa dela está distraído no emprego, leva aos clientes os
produtos errados e tem levado broncas do patrão. Até mesmo escrevera um poema, que
misturava itens de armarinho a seu amor, mas que não fora publicado no jornal. Sempre que
ele se referir a ela, começará por descrever a cena acima de quando a viu comendo empada,
numa repetição cômica.
Neste momento, os principais conflitos da peça estão apresentados. O
principal deles consiste na sucessão ministerial. Pelo menos dois personagens aspiram a um
cargo de ministro, o conselheiro Brito e o desembargador Coelho, respectivamente maridos de
Filomena e Dona Bárbara. Notamos que essas duas não nutrem grande simpatia uma pela
outra, criando um conflito potencial entre elas.
Noutra situação, encontramos Beatriz, filha de Brito. Ela deseja obter um
bom casamento e não hesita em tentar a sorte com todos aqueles a quem reputa ricos, como é
o caso de Raul e Mr. James. Ocorre que nenhum deles se interessa pela moça sem muitos
recursos, evitando cruzar com ela nas cenas relatadas. Quem gosta de Beatriz, porém, é Filipe,
mero funcionário do armarinho, que não tem posses e não ousa declarar-se, pois sabe que será
recusado. Sua única e improvável esperança é o bilhete de loteria recém adquirido.
O final do ato reserva um diálogo entre Raul e Mr. James, que ainda não
sabem os nomes dos novos ministros. O inglês, com sua fala estrangeirada, tece algumas
sérias críticas a nosso país, a começar pelos criados e pelos ministérios. Cada novo ministro
desfaria tudo o que o anterior começara, impedindo o país de andar. Critica os republicanos,
que gritariam muito até receber um cargo público ou, no caso dos evolucionistas, esperariam
de braços cruzados a queda da monarquia. Por fim, confessa que espera obter um privilégio
do novo ministério para construir uma estrada-de-ferro para o Corcovado, movida por um
sistema inovador. Raul afirma que se contenta com um emprego público e afirma ser menos
rico do que dizem.
Podemos perceber que, mesmo em um ambiente urbano como o Rio de
Janeiro e após as transformações econômicas inicialmente relatadas, a sociedade brasileira
continua permeada por uma rede de clientelismo e patronagem215. Seja Raul, bacharel, seja
Mr. James, simbolizando os investidores ingleses, todos necessitam da obtenção de favor para
conseguir um cargo público ou para obter uma autorização para prestar um serviço público.
215 Tratar-se-ia, segundo Emília Viotti da Costa, de uma sociedade capitalista desenvolvida dentro de uma rede de patronagem (COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 168).
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Não há qualquer vestígio de uma racionalidade que leva à prática de concursos ou à adoção de
editais de licitação.
Na sequência da peça, Filipe volta à cena desolado por ter perdido
Beatriz de vista e, logo em seguida, personagens trazem aos três a notícia de que o
Conselheiro Brito, pai da moça, fora nomeado presidente do conselho do novo Ministério. Ao
mesmo tempo, em à parte, Raul e Mr. James, cada um movido por seus interesses pessoais,
dizem que se aproveitarão de Beatriz para obterem o que desejam. Filipe, por sua vez, limita-
se a dizer que a ama cada vez mais e torce por seu bilhete da loteria trazer a sorte grande.
O ato termina com Filomena e Beatriz circulando novamente pela rua do
Ouvidor. Agora, todavia, Raul e Mr. James, ao invés de fugirem, vão ao encontro delas,
oferecendo guarda-chuvas e bajulando. Filipe se oferece, sem sucesso, para carregar seus
pertences.
Com a mudança na condição de Brito, assumindo a presidência do novo
ministério, a situação de Beatriz melhora sensivelmente. De um partido pouco interessante a
Raul e Mr. James, torna-se um investimento que pode dar retorno a curto prazo. Na cadeia de
distribuição de cargos e favores, o posto mais alto era justamente o de Ministro
(excepcionando-se, é evidente, o Imperador)216.
O segundo ato se afasta do espaço eminentemente público da rua do
Ouvidor e fixa-se na sala de visitas da residência de Brito. Dado seu papel político de relevo,
tal espaço transforma-se em ponto de encontro dos interesses privados de sua família e
públicos do governo. Será o local em que, ao mesmo tempo, busca-se o acerto matrimonial de
Beatriz e o encaminhamento de questões ministeriais, muitas vezes de modo
interdependente217.
A primeira cena revela uma pequena surpresa: Filipe, ainda apaixonado,
comenta com Ernesto, rapaz que espera uma nomeação, que se tornara repórter. Ao buscar
informações jornalísticas com o presidente do conselho dos ministros, pode, simultaneamente,
ver Beatriz, ainda que sem ser notado por ela.
Brito entra na cena seguinte. Recebe o pedido de Ernesto com
desinteresse e impaciência, confessando a Filipe ter dificuldades para nomear o novo ministro
da marinha, dispensando-o. Em sendo o topo na hierarquia administrativa, o cargo ocupado
216 Graham, Richard. Ob. cit., p. 274. 217 O encaminhamento de questões públicas em salas privadas era relativamente comum no Império. Os principais políticos mantinham espaços informais nos quais se tomavam as mais importantes decisões. (Graham, Richard. Ob. cit., p. 235).
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pelo Conselheiro acarretaria constantes pedidos de favor; não ter paciência para lidar com eles
é um mau indício.
Na terceira cena, aparecem Filomena e Beatriz. Apesar de Brito não
desejar receber qualquer pessoa, elas o convencem a receber Mr. James e Raul, quando eles
chegarem. Depois, reclama dos gastos das duas para decorar a nova casa que alugaram,
obrigando-o a contrair dívidas. Mostra-se honesto e preocupado com as aparências: Brito - Mas, minhas filhas, não há ninguém por aí que não saiba que tenho poucos recursos, que vivo apenas dos meus ordenados. A vida de um homem de Estado é devassada e esmerilhada por todos, desde os mais ínfimos até os mais elevados representantes da escala social. O que dirão se me virem amanhã ostentando um luxo incompatível com os meus haveres?218
As duas argumentam que devem, dada a nova posição social do pai, ficar
à altura da sociedade carioca, não obstante suas objeções: Brito - Sim, esse high life que aqui vem dançar o cotillon, ouvir boa música, saborear-me os vinhos; e que abandonar-me-á com a mesma facilidade com que hoje me adula, no dia em que eu não puder mais dispor dos empregos públicos.219
A cena seguinte, sem o pai, traz Mr. James, com seu projeto para ser
exibido ao ministro. Afirma que os carros subiriam o Corcovado, partindo do Cosme Velho,
em vinte minutos. Depois, critica os brasileiros, que só pensariam em política, sempre
ambicionando cargos de deputado, juiz de paz e vereador. Surpreende-se ao ser informado
pelas duas que todos os ministros eram formados em direito: Mr. James - Na escola de doutor em direita estuda marinha aprende planta batatas e café, e sabe todas essas coisas de guerra? Filomena - Não, senhor. Beatriz - Estudam-se leis. Mr. James - No Brasil estar tudo doutor em direita. País no indireita assim. (...)220
A conversa chega ao casamento e o inglês garante que, tão logo consiga
o privilégio para construir a estrada, irá se casar com uma brasileira, olhando de modo
significativo para Beatriz, causando euforia em mãe e filha. O diálogo mostra que o inglês
compreendeu bem o panorama social de nosso país. Por um lado, observou a amplitude da
rede de clientelismo que se espalha pela sociedade e o papel privilegiado do bacharel; por
outro, percebeu que pode conseguir o favor que deseja por intermédio das mulheres do
ministro221.
218 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 192. 219 Idem, ibidem, p.193. 220 Idem, ibidem, p.195 221 Como já destacado na peça anterior, as mulheres cumprem papel significativo na distribuição de cargos e benefícios, sobretudo para parentes.
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Brito volta ao palco na cena seguinte e, em à parte, é avisado por
Filomena do interesse do inglês de se casar com a filha em troca do privilégio: Brito - E o que queres que eu faça? Filomena - Que lhe conceda o privilégio que ele pede. Brito - Mas, senhora, essas questões não dependem só de mim. Eu não quero comprometer-me. Filomena - Então, para que serve ser Presidente do Conselho? Brito - Mas eu não posso nem devo dispor das coisas do Estado para arranjos de família. A senhora já endividou-me e quer agora desacreditar-me.222
Na sequência, ele pede a Mr. James para voltar mais tarde.
Notamos que a conduta de Brito seria irrepreensível, não fosse sua
fraqueza ante a mulher e a filha. Ele tem consciência das distinções que separam o público e o
privado, recusando-se a usar sua posição para favorecimentos próprios ou familiares, assim
como para a realização de favores. Mas as mulheres não entendem isso e o forçam, em nome
desses interesses privados, a usar as vantagens públicas de seu cargo, misturando as esferas.
Uma resolução possível, pois, para o interesse privado de Beatriz fazer
um bom casamento seria a concessão pública do privilégio a Mr. James, mas a consciência de
Brito torna-se um obstáculo a tal resolução. Seu prognóstico não é ouvido: "A senhora ainda
há de comprometer-me"223.
Na cena VII, outros conflitos são retomados. Entram na sala do ministro
Dona Bárbara e seu marido, Coelho. Neste caso, pelo diálogo entre ambos, percebemos que
Coelho possui a ambição de ser ministro, vindo pedir um cargo a Brito, mas a esposa se opõe.
Diz que ele deveria contentar-se com a cadeira de deputado que já possui, deixando de lado a
ambição de governar.
Na sequência, entram Filomena, Beatriz e Raul, ao mesmo tempo.
Coelho sai para o gabinete de Brito. Enquanto Dona Bárbara e Filomena conversam sobre
banalidades, como mau olhado e orações, Raul corteja Beatriz, em voz mais baixa. Após dizer
que não poderia mais viver sem ela, afirma que não pode pedi-la em casamento sem uma
posição social. Ela promete que conversará com a mãe sobre isso e diz, para si, desiludida,
que o julgara um pretendente desinteressado (embora essa constatação contrarie sua
perspectiva oposta manifesta no primeiro ato).
Coelho, a seguir, sai zangado do gabinete de Brito: Dona Bárbara (baixo a Coelho) - Então, o que arranjaste? Coelho (baixo) - O que arranjei?! Nada; mas ele arranjou uma oposição de arrancar
222 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 196. 223 Idem, ibidem, p.196.
83
couro e cabelo. Hei de mostrar-lhe o que valho. Estão aqui estão na rua.224
Depois da saída de Coelho, de sua esposa e de Raul, Beatriz e Filomena
conversam. A filha conta sobre o interesse de Raul em pedir sua mão em troca de um
emprego público. Filomena afirma confiar mais em Mr. James, dizendo para aguardarem a
resolução de seu caso antes de tratarem do emprego de Raul.
Devemos destacar que Brito possui agora um inimigo, Coelho, que, como
se viu, é deputado e está infeliz por não ter sido feito ministro. O autor da peça parece querer
demonstrar o vazio ideológico das oposições e seu real interesse em obter cargos e favores
públicos. Quanto às pretensões de casamento de Beatriz, Raul consolida-se como segundo
candidato. Tal como no caso de Mr. James, o enlace matrimonial depende de um gesto
político de Brito, o qual, por motivos de consciência e moralidade, não deseja praticá-lo.
As próximas cenas trazem alguns ministros que procuram o presidente do
Conselho para tratarem de dificuldades políticas. A oposição estaria cada vez maior, contando
agora com a adesão do Coelho. Além disso, o Ministério da Marinha ainda estava vago.
Conselheiro Felizardo, caracterizado como uma grande influência política, indica seu
sobrinho, Dr. Monteirinho, recém formado e muito jovem, com 22 anos. Em troca do apoio
de Felizardo, Brito o nomeia ministro225.
Na cena seguinte surge Mr. James, apresentando finalmente aos ministros
seu projeto: deseja construir um trem para o Corcovado movido por cachorros226. Brito
argumenta que o cachorro não está classificado como motor na legislação de estradas-de-
ferro. Isso obrigaria que a questão fosse, antes, resolvida pelo legislativo, ao qual será
encaminhada. Nada resta a Mr. James senão esperar.
O ato termina com um encontro entre Beatriz e Filipe. Fingindo fazer
perguntas sobre seu pai, ele se aproxima da moça e se declara. Ela o expulsa de sua casa, mas,
constata: Beatriz - Pobre louco! Mas este ao menos não me falou em emprego nem em
224 Idem, ibidem, p.200. 225 “O filhotismo político é a tônica da cena em que Dr. Monteirinho é indicado para o Ministério” (FREITAS, Eduardo Luiz Viveiros de. Ob. cit., p. 127). 226 A sátira justifica-se: entre 1868 e 1888, os investidores ingleses aumentam sua participação no país, fundando estabelecimentos de açúcar, empresas de navegação, bancos, minas de ouro, estradas de ferro, empresas de gás, linhas de bonde e empresas de abastecimento de água, além de aumentando sua participação noutros ramos e obtendo alguns monopólios (indústria de fósforos, transporte de bondes no Rio de Janeiro. Além disso, forçariam os brasileiros ao pagamento de indenizações contratuais mesmo quando eram responsáveis pelo rompimento da relação (CARONE, Edgard. A República Velha (instituições e classe sociais). 2ª edição. São Paulo: Ed. DIFEL, 1972, pp. 138-140).
84
privilégio!227
Por insistência de Filomena, Brito ouviu Mr. James. A natureza inusitada
de seu projeto, movimentando um trem com cachorros, obriga a consulta ao legislativo.
Vimos, todavia, que a oposição entre os deputados é cada vez mais forte, contando com a
recente adesão do Coelho. Pode, conforme previsto, ser a perdição de Brito: o ministério
existe, na lógica política, para controlar o legislativo; caso não consiga fazê-lo, é destituído
pelo Imperador. Para complicar ainda mais sua situação, aceitou nomear um jovem rapaz, o
Monteirinho, como novo ministro da marinha, apenas para contar com o apoio de Felizardo.
O terceiro ato se passa na mesma sala da casa de Brito. Logo na primeira
cena, Filomena repreende seu marido por ter levado o caso do privilégio ao inglês ao
Parlamento228. As discussões teriam acirrado a oposição e formado dois partidos, o dos
cachorros e o dos contrários aos cachorros. Lamenta que não conseguirão aprovar o privilégio
e, com isso, perderão a oportunidade de casar sua filha com Mr. James, tudo por culpa dele.
Na cena II, Monteirinho vem buscar Brito para defenderem o pedido na
Câmara, garantindo que vencerão: Dr. Monteirinho - Fique descansada, minha senhora. Levo o meu discurso na ponta da língua. Hei de tratar da parte técnica, sobretudo, com o maior cuidado. Na discussão deste projeto ou conquisto foros de estadista, ou caio para nunca mais erguer a fronte.229
A situação de Brito é delicada. Beatriz, que acordara às onze horas,
conversa com sua mãe. Concluem que, caso caia o ministério, perdem as propostas de
casamento de Mr. James e de Raul. A filha ainda suspira, em à parte: "Se ao menos aquele
pobre doido que ofereceu-me o coração..."230, deixando no ar alguma perspectiva para Filipe.
Na cena V, Dona Bárbara surge, trazendo provocações à Filomena, ao
contar o que ouvira nos bondes: "arranjos de família, ministro patoteiro, casamento da filha
com o inglês..."231. A esposa do ministro responde à altura: Filomena - É verdade, minha senhora; mas o que não sabe é que por entre aqueles grupos estava a mulher despeitada de um ministro gorado e que era esta a que mais gritava.232
227 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p.207. 228 “Mais uma vez fica clara a indiferenciação entre interesses públicos e privados, entre vida íntima e vida pública, e o quanto a discussão política estava presa à satisfação de interesses particulares, familiares inclusive” (FREITAS, Eduardo Luiz Viveiros de. Ob. cit., p. 130). 229 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 211. 230 Idem, ibidem, p.211. 231 Idem, ibidem, p.213. 232 Idem, ibidem, p.213.
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Ao sair, Dona Bárbara, irritada, promete: "Hei de tomar uma desforra."233
As cenas seguintes trazem à sala do ministro alguns interessados em
obter favores e cargos, reclamando que há algum tempo desejam conversar com Brito mas
não conseguem. Entre eles surge Filipe, dizendo que o ministério está prestes a cair e que o
Monteirinho não conseguira se pronunciar, pois irrompera uma enorme vaia. Ele sai para
checar o resultado da loteria, sua única esperança de conseguir a mão de Beatriz.
Na sequência, entra Raul, pessimista, e Mr. James, comentando com os
presentes que já perdeu as esperanças no atual ministério. Sua explicação para a queda é
inusitada: não havia qualquer ministro de origem baiana234. Também critica o Monteirinho,
alegando que ele é muito novo e não poderia governar o país recém-saído dos bancos da
academia, e a mania brasileira de tratar os estadistas por apelidos.
A notícia da queda do ministério é finalmente trazida por Felizardo, que
lamenta a falta de sorte do sobrinho, seu protegido. Imediatamente Raul declara a Beatriz que
se considera desligado de seus compromissos com ela. Mr. James afirma que fará negócios
com o próximo ministério.
Na penúltima cena, Filomena recebe uma carta de Dona Bárbara
contendo um periódico com a seguinte notícia: "Caiu finalmente o ministério das patotas.
Parabéns aos nossos concidadãos, estamos livres do homem que mais tem sugado os cofres
públicos em proveito dos seus afilhados"235.
Brito, que abraçara a esposa e a filha, dizendo que, embora elas o tenham
levado à perdição, precisava do apoio das duas, confessa que saíra do ministério endividado
mas com a "pecha de ladrão"236. O conflito público apresentado pela peça, trazendo a
ascensão e queda do ministério, está encerrado.
Ao perder a condição de filha do presidente do conselho de ministros,
Beatriz deixa de ser um investimento interessante para Raul e Mr. James. Seu desejo de
arrumar um bom casamento estaria irremediavelmente prejudicado, salvo pela ofegante
entrada de Filipe que, após um breve desmaio, declara que seu bilhete da loteria fora sorteado 233 Idem, ibidem, p.214. 234 Eduardo Luiz Viveiros de Freitas apresenta duas possibilidades: referência à força do liberal baiano José Antonio Saraiva, que chefiou o gabinete em 1882, quando a peça é escrita, e voltaria a chefiá-lo em 1885; homenagem a Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São Lourenço, falecido em 1872, em cujo governo França Júnior serviu como secretário (FREITAS, Eduardo Luiz Viveiros de. Ob. cit., pp. 133-134). Acrescentamos ainda que havia uma necessidade de equilíbrio regional no ministério, a fim de permitir a distribuição de cargos pelas diversas regiões do país (Graham, Richard. Ob. cit., p. 295). 235 FRANÇA JÚNIOR, Joaquim José de. Ob. cit., p. 220. 236 Idem, ibidem, p.220.
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e pede sua mão em casamento. A peça termina com sua imediata aceitação e o comentário de
Mr. James: "Boa negócia"237.
Devemos destacar que, no balanço das cenas trazidas pelo autor, o peso
das questões privadas é maior do que o das questões estritamente públicas. Embora a comédia
não se limite a uma sucessão que leva ao casamento de Beatriz, estando, inclusive, seus
sentimentos românticos deixados de lado, o ambiente doméstico da família Brito predomina.
Após desfilar na rua do Ouvidor acontecimentos e personagens, numa
estrutura que poderia caminhar para algo semelhante às revistas de ano, durante o primeiro
ato, o autor prefere estacionar na sala de visitas de Brito, nos demais, privilegiando, a partir de
então, um olhar privado sobre os problemas políticos que causam instabilidade ao ministério e
levam a sua queda.
Brito é caracterizado como um homem honesto e moralmente louvável;
todavia, deixa-se levar pelas mulheres de sua casa, corrompendo-se e perdendo seu cargo.
Possui, portanto, um caráter fraco. Filomena e Beatriz são retratadas de modo fútil, não
manifestam ideias políticas de relevo, apenas pensam em si e pretendem obter vantagens
pessoais, ainda que às custas da carreira de Brito e do Estado brasileiro238. Não vemos a
atuação propriamente política do Presidente do Conselho, sua habilidade ou a falta dela para
lidar com as questões ministeriais e partidárias. Embora os ministros afirmem que a oposição
aumenta, nada sabemos sobre ela.
Quando ocorre a crucial discussão entre Brito e Coelho, que troca de lado
e passa a fazer, na Câmara dos Deputados, oposição ao ministério, o autor prefere focar os
diálogos entre as respectivas esposas e a conversa entre Beatriz e Raul. Quando ocorre a
derradeira discussão na Câmara dos Deputados sobre o projeto de Mr. James, a peça
permanece estacionada na sala de visitas da família Brito. Os momentos fundamentais para o
desfecho da comédia transcorrem sem que o espectador saiba exatamente o que ocorreu.
Se a proposta da peça, ao intitular-se Caiu o Ministério!, fosse
efetivamente retratar a instabilidade política brasileira e os arranjos que a permeiam, jamais
poderia silenciar sobre as circunstâncias que levaram Brito ao poder e jamais poderia ter
deixado de mostrar aquelas que o derrubaram. Como um homem de poucos recursos, honesto
e idôneo chega à condição de presidente do Gabinete de Ministros? Por que se forma uma
237 Idem, ibidem, p.221. 238 Se pensarmos no modo como o autor condena as mulheres "modernas" em As Doutoras, devemos concluir que França Júnior parece condenar qualquer participação da mulher na vida social.
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oposição tão grande a seu ministério, se o caso de Mr. James simplesmente fora encaminhado
ao Poder Legislativo?
A estrutura da comédia, todavia, parece colocar todas as cenas e mesmo a
carreira política de Brito a serviço de outra questão, que é mostrada e explicada: o casamento
de Beatriz. Sabemos que se trata de uma moça fútil, que viajou pela Europa, desvaloriza o
nacional em detrimento do europeu, fala usando estrangeirismos e tenta se casar com um bom
partido. Valoriza-se quando seu pai é nomeado ministro e desvaloriza-se quando ele perde o
posto.
Seus pretendentes, Mr. James e Raul, são apresentados e suas questões
com Brito somente interessam, de fato, na medida em que podem levar ao casamento com a
moça. Sabemos que Filipe a ama verdadeiramente, torna-se repórter não para investigar a
conduta de Brito, mas apenas para estar perto dela e termina por, após ganhar na loteria,
arrebatar sua mão.
Relativamente a Brito, apenas podemos fazer algumas suposições: trata-
se de uma pessoa honesta, que não possui muitas posses e não está preparado para ser o gestor
máximo da rede de clientela que deriva do Gabinete de Ministros. Ele lida mal com o
apadrinhamento, deixando de atender com a devida atenção àqueles que pedem favores ou
simplesmente nomeando pessoas erradas para cargos fundamentais (Monteirinho no lugar de
Coelho), além de se deixar influenciar por duas mulheres sem tino político (a esposa e a
filha).
Devemos admitir que há uma tensão entre os enredos de Brito e de
Beatriz, que é a tensão entre a peça focar as questões públicas do ministério ou suas
repercussões privadas para o casamento. Nem todas as cenas justificam-se sob uma ou outra
da perspectivas. Tendo-se em vista, porém, que as decisões fundamentais para o destino de
Beatriz, envolvendo Filipe, Mr. James e Raul, são mostradas, é mais fácil defender que a
estrutura privada do enlace matrimonial prevalece, ainda que desprovida de sentimentalismos.
Parece que a Comédia Nova começa a suplantar a Antiga em nossa história teatral declamada.
Parece, além disso, que a condição social de Brito é inadequada para o
cargo a que foi alçado. Tal como ocorreu na vida real com o Conselheiro Tolentino239 num
patamar abaixo, que assumiu a presidência da Província do Rio de Janeiro, Brito não possuiria
prestígio e apoio suficientes para estar no topo da hierarquia. Em sendo assim, a peça de
239 Candido, Antonio. Um funcionário da Monarquia - ensaio sobre o segundo escalão. 2ª edição. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007, pp. 73-74.
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França Júnior também inaugura um foco que será bastante comum nas comédias de final da
década de 1910 e início da de 1920: o desajuste social de pessoas que querem ocupar um
espaço acima do que efetivamente podem.
Por fim, é de se surpreender que o cenário, em seus dois últimos atos,
retrate aquele que seria o centro administrativo do Império, a sala do Presidente do Conselho
de Ministros, e nada vejamos das decisões fundamentais que definem os rumos do ministério
(e da política do país). Se nas duas peças anteriores, a decisão que mudou o rumo dos
conflitos veio do centro para o interior, agora parece que a força dos chefes locais
descontentes, silenciada no enredo, prepara caminho para o fim do Império, o federalismo e o
coronelismo240.
240 No final do Império, a excessiva centralização era vista como um grave problema, impedindo a solução de problemas locais urgentes e agravando as diferenças regionais. As grandes distancias dificultariam a gestão e impediria o efetivo conhecimento dos problemas. Sobretudo os paulistas, excluídos do governo, sentem-se prejudicados e lutam para entrar na rede de patronagem. (COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 467).
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Ministro do Supremo - Cargo público e ascensão social
A peça Ministro do Supremo, de Armando Gonzaga241, encenada pela
primeira vez no Teatro Trianon, Rio de Janeiro, em 1921, surge como um contraponto
interessante à peça O juiz de paz da roça, de Martins Pena, que inaugura nosso teatro cômico
e cuja análise abre este estudo.
Enquanto a peça fundante traz em primeiro plano a questão do desleixo
de um juiz de paz na roça, seu desinteresse pelas funções públicas e o abuso de autoridade
perante os cidadãos, deixando o conflito privado para um segundo plano e fazendo jus ao
título, a peça de Armando Gonzaga, não obstante elevar-se hierarquicamente no Poder
Judiciário em seu título, não aborda qualquer questão diretamente ligada à atuação dos órgãos
estatais.
Podemos considerar que a estrutura formal e temática de Ministro do
Supremo prenda-se às derivações da Comédia Nova, limitando-se à apresentação dos
costumes, num tom crítico bastante despretensioso, como verificaremos ao final da leitura.
Seu objetivo é retratar a vida de uma família de classe média cujo pai e chefe da casa,
Ananias, perde-se enquanto gestor doméstico, contraindo dívidas e levando a família à ruína,
ao pretender bajular um senador em troca de um cargo público de ministro do Supremo
Tribunal Federal, que resolveria seus problemas financeiros.
Trata-se, portanto, de um personagem que busca o apadrinhamento
político. Sob essa perspectiva, pode ser comparada com Quase Ministro, de Machado de
Assis, e Caiu o Ministério, de França Júnior (analisada anteriormente)242: a primeira conta
episódio envolvendo uma pessoa que é cotada para ser ministro, descobrindo tratar-se de falso
boato; a segunda, narra a ascensão e queda do ministro e seu ministério; a última, por seu
lado, apresenta o devaneio de um pai de família que sonha ser algo acima de suas
possibilidades sociais e econômicas. Em comum, portanto, está o fato de ambas tratarem da
questão do clientelismo, mas sob focos diversos: os personagens principais das duas primeiras
comédias são procurados como padrinhos; o personagem da terceira espera tornar-se um
cliente.
241 GONZAGA, Armando. O Theatro de Armando Gonzaga - Ministro do Supremo. São Paulo: Livraria Teixeira, s.d., pp. 1-79 (a numeração recomeça a cada peça). 242 Cafezeiro e Gadelha traçam uma linha de inspiração entre as três peças (CAFEZEIRO, Edwaldo e GADELHA, Carmem. Ob. Cit., p. 180).
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Precisamos antecipar que os três atos desenvolvem-se no mesmo
ambiente cenográfico, havendo apenas diferenças quanto ao mobiliário: a sala de visitas da
casa de Ananias. Diferentemente das demais peças estudadas, não se apresenta, no palco,
qualquer espaço público, circunstância que reforça a perspectiva privada das questões trazidas
pelo autor. A busca por um padrinho é mostrada a partir da perspectiva doméstica.
Podemos considerar que a família retratada pertença à classe média
urbana que cresce na República, quando o binômio escravo-senhor dilui-se gradativamente243.
Durante o período, sobretudo os anos da década de 1920, que se inicia no momento da
encenação da peça, haveria um processo de autonomia e afirmação das classes médias,
adquirindo consciência de sua força e necessidades244. Mas a família de Ananias surge presa a
uma sociedade cuja economia de mercado ainda se consolida, mesmo numa cidade como o
Rio de Janeiro, restando poucas oportunidades para seus membros. Nessa situação, a moradia
e o custo de vida são problemas constantes245.
A principal ocupação pretendida ainda é o cargo público, com a garantia
de relativa estabilidade e de bons vencimentos (conforme a hierarquia ocupada). Para obtê-lo,
o mecanismo retratado continua a ser o apadrinhamento, sujeitando-se ao regime de
clientela246.
O primeiro ato transcorre numa sala com paredes descascadas, móveis
envelhecidos e alguns reparos em andamento. A primeira cena mostra uma conversa entre D.
Genoveva, esposa de Ananias, sua mãe (D. Constança), sua filha (Nini) e um pintor. D.
Constança afirma preferir a sala pintada em uma cor mais escura, por ser mais econômica;
Nini também prefere a cor mais escura, porém em virtude de sua nobreza; D. Genoveva, por
seu lado, determina que seja pintada de azul, por ser cor mais alegre.
Desde logo percebemos o perfil de D. Constança, que critica o
palavreado de Nini, e recrimina o genro pelos gastos que tem feito247. Mas essa não é a
opinião de sua filha e de sua neta: Genoveva - O futuro a Deus pertence. O que não é possível é deixar de receber o Senador. Dessa nova amizade de Ananias podemos tirar as maiores vantagens. Constança - Que vantagens esperam vocês daí?
243 CARONE, Edgard. A República Velha (instituições e classe sociais). 2ª edição. São Paulo: Ed. DIFEL, 1972, p. 147. 244 Idem, p. 177. 245 Idem, p. 181. 246 COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p. 253 e 259 - a autora relata que, enquanto os estrangeiros controlam o artesanato e o comércio, os brasileiros, desde o final do Império, preferem o emprego público. 247 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 3.
91
Genoveva - Inúmeras. Mas mesmo que nada alcançássemos, bastaria a honra de manter relações com pessoa tão ilustre, para justificar quaisquer sacrifícios. Essa é que é a verdade. Nini - De certo. Já estamos cansados da sociedade bangala-fluminense que nos frequenta. Precisamos receber a elite e ser recebidos por ela. Já não é sem tempo...248
Percebemos, da conversa, que Ananias, D. Genoveva e Nini apostam
tudo na amizade do Senador ("Nini - Agora, com a amizade do Senador, vai tudo mudar de
figura"249), razão pela qual justificam a reforma da casa e os novos gastos da família, pois
receberão o Senador para jantar. Convém destacar que, desde o Império, a “amizade” é,
depois dos laços de parentesco, a melhor forma de se tornar cliente de alguém250. Por outro
lado, ainda que a mera “amizade” do Senador não rendesse uma colocação, pelo menos
poderia abrir espaço para novas relações.
Além disso, a reforma da casa justifica-se para que Ananias aparente ser
uma pessoa importante, levando o Senador a crer que, ao conseguir uma colocação para ele,
não estaria fazendo um favor unilateral, mas amparando uma pessoa que lhe poderia ser útil
posteriormente. Ter uma casa em condições de receber visitas influentes era um hábito
comum entre políticos destacados251 e Ananias busca copiá-los, não obstante as desconfianças
e críticas da sogra.
D. Constança, assim, revela que eles já possuem muitas dívidas e que
Ananias é um rábula, ou seja, profissional do direito sem formação universitária, não muito
conceituado no mercado de trabalho. Opõe-se, pois, expressamente ao oferecimento do jantar
para o Senador, pois não estariam em condições de receber qualquer pessoa. Mas D.
Genoveva mostra-se esperançosa: Genoveva - (...) Nós estamos em vésperas de vida nova. Ananias vai ser nomeado Ministro do Supremo. Para isso basta ser cidadão de notável saber... Constança - E ter quem o ampare... Genoveva - Ananias tem o Senador. São favas contadas.252
Vemos, com o término da primeira cena, delineado o conflito central da
peça: Ananias deixa a moderação e a prudência de lado, gastando mais do que pode, a fim de
investir na nova amizade que contraíra com o Senador e conquistar um padrinho para tornar-
se Ministro do Supremo. D. Constança, a sogra, opõe-se a tal mentalidade, pregando uma vida
condizente com os parcos rendimentos de Ananias. Mas sua oposição, como se consolidará
248 Idem, pp. 3-4. 249 Idem, p. 4. 250 GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 304. 251 Idem, p. 235. 252 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 5.
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adiante, limitar-se-á a uma série de considerações morais, cumprindo um papel semelhante a
um raisoneur.
Como Ananias não é bacharel em direito, mas atua como rábula, nem é
renomado em seu meio, sua pretensão ao cargo no Supremo não pode fundamentar-se em seus
méritos jurídicos, mas apenas no bom e velho apadrinhamento político. Ele espera conquistar
a confiança do Senador e, com isso, obter um favor que resulte em sua nomeação.
A cena II inicia-se com o anúncio, por Joanna, a criada, da chegada de
Álvaro, pretendente de Beatriz, a outra filha de Ananias e D. Genoveva. Constança comenta
ao visitante que a neta anda triste; Genoveva reforça a afirmativa, acrescentando que a filha
sempre fora "enjoada"; Nini, por fim, diz que a irmã tem um gênio "esquisito".
Todavia, na cena seguinte, Beatriz surge bem alegre, desmentindo a
todas. Fica no ar a impressão de que seu gênio melhorara graças à visita de Álvaro, que
andava distante. Quando o casal fica a sós, ele comenta que sua promoção está próxima e
então poderá pedir sua mão a seu pai. No exato instante em que vão trocar juras de amor,
entra Joanna, aflita, anunciando que Ananias está chegando. Os dois, então, saem de cena,
indo para junto das demais.
Na cena V, Ananias conta a D. Genoveva que conhecera o filho do
Senador, Bilú, que também jantará com eles. Do diálogo ficamos sabendo que ele comprara
cortinas novas e pretende adquirir novos móveis, a crédito. Os móveis velhos seriam
queimados. Conta que pedirá dinheiro emprestado a um novo agiota, que oferece condições
um pouco melhores do que outro, que lhe emprestara a juros de 40% ao mês.
D. Constança, que surge durante a conversa, recrimina o casal, reputando
uma loucura aumentar os credores e não se conformando com os juros leoninos dos
empréstimos. A resposta de Ananias é no mesmo tom da de D. Genoveva: Ananias - Que quer a senhora que eu faça? Afinal, há deveres de sociedade a que a gente não pode fugir. Que culpa tenho eu de que o destino me aproximasse do Senador Moura e que ele se fizesse meu amigo? Não me era lícito recusar uma amizade que não só pode nos trazer as maiores vantagens, mas, acima de tudo, é uma honra para todos nós...253
Na sequência, ambos comentam que Maneco, filho do casal, não sai do
campo de futebol. Além disso, reclamam que fizera de Vicente, o criado que fora educado
pela família, seu melhor amigo, fato que prejudicou o desempenho de suas atribuições
domésticas e o tornou insolente. Ananias promete "admoestá-los".
253 Idem, p. 12.
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Os dois rapazes, na cena VI, surgem discutindo a escalação de times de
futebol. Quando Ananias ordena a Vicente que vá varrer a escada, este responde que já
varrera. Após ser chamado de cachorro, sai resmungando que varrerá novamente. Com
relação a Maneco, o pai afirma que faz uma porção de coisas erradas. D. Genoveva acrescenta
que a principal delas é a liberdade que daria a Vicente: Maneco - Se nós nos criamos juntos... Ele foi minha ama seca... Genoveva - Isso não é motivo que justifique a camaradagem em que vocês vivem atualmente. Ananias - No mínimo, você me perde o moleque. Maneco - Até aqui, era ele quem me perdia...254
Os pais fazem um discurso quanto à posição social de Maneco, insistindo
que ele não pode se relacionar com criados e esclarecendo ao público sobre a origem de
Vicente: Genoveva - Pois não permita mais isso. Nossa vida vai transformar-se por completo e é preciso que cada qual tome a posição que lhe compete. Maneco - Qual é a minha? Genoveva - A sua é a de um filho-família que deve obediência a seus pais e respeito a si mesmo. Maneco - Muito bem. Ananias - Arranje companheiros que se possam hombrear com você. Sobretudo, não dê mais liberdade ao Vicente... Genoveva - Quem é, afinal, o Vicente? Um rapaz que criamos desde pequenino, é verdade, mas filho de uma nossa cozinheira e de um tipo qualquer que não teve pejo de seduzi-la... A posição que ele tem aqui em casa é a de um simples criado... Maneco - Sim, mas é também o meu grande companheiro de infância... Tenho por ele uma amizade de irmão. Genoveva (escandalizada) - Santo Deus! Você nem diga isso na presença de ninguém. Uma amizade de irmão! Você sente por esse moleque o mesmo que sente por suas irmãs? Vamos, responda. Maneco - A mesma coisa. Fomos criados juntos... Genoveva - Foram criados juntos, mas atualmente só o Vicente é criado... Ananias - Você é malcriado. Genoveva - O que é necessário é que você esconda a sua amizade pelo Vicente, pelo menos nos aspectos inconvenientes. Pode-se gostar de uma pessoa sem lhe dar uma confiança exagerada. Ananias - É o que você vai fazer de hoje em diante com o Vicente. Precisamos do moleque para misteres mais sérios do que andar na calaçaria com você.255
Destaquemos que o raciocínio válido para Maneco em relação a um
"inferior", Vicente, não é aplicado, pelos pais, à própria situação da família, que insiste em
não se colocar em seu lugar humilde, ambicionando estabelecer relações sociais com a elite.
Se Maneco peca, sob o ponto de vista dos pais, por não saber qual o seu lugar social, podemos
dizer o mesmo de Ananias, sob o ponto de vista de D. Constança, ao pretender ser amigo de
um Senador e tornar-se Ministro do Supremo.
254 Idem, p. 14. 255 Idem, pp. 15-16.
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Mais interessante é que os pais, para convencer Maneco, utilizam
justamente, no final da conversa, o argumento de que a vida da família vai mudar. Ao
afirmarem que, caso tudo corra bem, em breve, comprarão um automóvel, Maneco fica
eufórico, mas, novamente errando o foco de seu papel social, brada que será o motorista256.
Ananias afirma que ele deve ter hábitos compatíveis com a nova posição social e promete
encarreirá-lo na diplomacia, pois, mesmo que o filho não conheça línguas, fará carreira desde
que tenha "um bom pistolão", não precisando perder tempo com estudos257.
Talvez a questão fundamental da comédia seja a do papel social dos
personagens e da família. Ananias está descontente com sua posição social e deseja ascender.
O meio que ele escolhe não é a poupança ou o trabalho, mas a busca de um padrinho. Sua
pretensão conta com o apoio imediato da esposa e de uma das filhas, Nini. Por ora, esbarra
nas reprovações morais de D. Constança, que prefere uma vida mais comedida, e na ingênua
juventude de Maneco, que desconhece seu lugar na sociedade.
Por um lado, revela-se na conversa com o filho a crença de que o mérito
não é recompensado na sociedade, sendo uma “perda de tempo”. A estrutura social da
República Velha é uma estrutura mista. O padrão imperial de relacionamento, fundado no
favor e no clientelismo, ainda subsiste; o novo padrão, fundado na competição e no mercado,
embora já presente, não consegue se impor258.
Além disso, a visão dos pais relativamente a Maneco, questionando sua
amizade com o criado, mostra uma sociedade em que as pessoas são definidas a partir de suas
redes de relacionamentos, e não de uma individualidade universal259. Assim, quando ocorre
uma mobilidade social (ou o desejo dela), há a necessidade de a pessoa redefinir sua posição
reprogramando suas relações, adquirindo novas “amizades” e abandonando outras, que se
tornam “indignas”.
A inocência do jovem se manifesta ainda outra vez no início da cena
seguinte, quando Maneco conta a Vicente sobre a futura compra do automóvel e ambos
discutem para saber quem será o chofer. Vicente, que conhece um pouco melhor os papeis
sociais, fica indignado com o amigo/patrão: "Besta é você. Dono é dono e chofê é chofê."260.
256 Idem, p. 17. 257 Idem, p. 17. 258 CARONE, Edgard. Ob. Cit., p. 147. 259 DAMATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 46 e p. 88. 260 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 18.
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Depois que os rapazes saem, Ananias e D. Genoveva discutem outro
assunto de suma importância para a família e sua futura nova posição social: o relacionamento
de Álvaro com Beatriz. Segundo o chefe da casa, seria preciso "cortar o mal pela raiz"261. A
moça deveria casar-se com Bilú, o filho do Senador, formado em direito. Rapaz, portanto, à
altura das ambições familiares. Novamente percebemos os pais buscando reprogramar as
relações dos filhos, adequando-as à condição que pretendem assumir.
Os dois concluem que Beatriz é um problema muito mais sério do que a
outra filha, Nini. Esta sabe qual o lugar social ambicionado pela família e não aceita um
homem qualquer. Já Beatriz... Ananias - Então? Beatriz, não. Se não abrirmos os olhos, ela é capaz de se apaixonar por qualquer um. Até mesmo pelo Álvaro... Tratemos de evitar o desastre enquanto é tempo... Genoveva - É chamá-la à ordem e dizer-lhe a coisa como é... Nada de fantasias. [p.19] Logo em seguida, efetivamente, chamam-na "à ordem": Ananias - (...) Filha minha só se casará com quem tenha posição definida na sociedade... Beatriz - O Álvaro não é um desclassificado. Ananias - Não digo isso. Mas a verdade é que ele não está em condições de casar com ninguém. Um simples amanuense... (...) Genoveva - Ser um excelente rapaz não é o bastante. Por meu gosto vocês só se casariam com homens formados.262
Na sequência, comentam que Beatriz deveria se casar com o filho do
Senador, rapaz de "lindo futuro". Mas ela revela que nunca o amará, pois já ama Álvaro: Ananias (numa explosão) - Pois não ama mais! Pronto! Quem manda aqui sou eu. Prefiro vê-la morta, metida num caixão, a vê-la casada com esse troca-tintas. E para principiar, vou já sapecá-lo no olho da rua.263
D. Genoveva pede calma ao marido e diz que irá dissuadir Álvaro com
boas maneiras. Explicita-se um novo conflito, decorrente do conflito relativo à ambição de
Ananias de elevar socialmente a família, numa situação típica das comédias novas: Beatriz, a
filha, deseja casar-se com Álvaro, jovem rapaz, trabalhador, mas que não está à altura da nova
posição social a que Ananias almeja. Assim, o pai surge como obstáculo ao casamento e leva
a filha às lágrimas.
Percebemos que, na realidade, Álvaro encontra-se no real patamar da
família, mas a cega ambição dos pais de Beatriz não permite, no momento, enxergar isso. Sua
mentalidade é a do profissional que deseja ascender pelo mérito, sendo paciente e trabalhador,
261 Idem, p. 19. 262 Idem, pp. 20-21. 263 Idem, p. 22.
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embora não se esclareça como chegou ao cargo que ocupa. Essa mentalidade se opõe àquela
que ilude Ananias, que é a de receber um favor que permita sua súbita ascensão.
Voltando à oposição quanto à família adotar uma postura comedida,
aceitando sua condição social, ou investir em um incerto futuro promissor, devemos situar
Beatriz no mesmo polo de D. Constança, reputando absurdas as pretensões dos pais. A cena
IX explicita essa solidariedade entre neta e avó: Beatriz - Ah! Vovó, eu sou muito infeliz! Constança - Infeliz, por que? Beatriz - Amo Álvaro e papai quer me obrigar a casar com um filho do senador, que eu nem sei quem é... Veja que horror... Constança - O seu pai é um idiota. Depois então que conheceu esse Senador de má morte, não tem feito senão asneiras... Não lhe dê importância... Beatriz - E mamãe está de acordo com ele... Constança - Genoveva não lhe fica a dever nada em questões de idiotice. Tirando nós duas, tudo aqui anda de cabeça virada.264
As duas convencem Álvaro, com astúcia, a voltar noutro dia. A próxima
cena mostra certa insolência da criada Joanna, respondendo com pouca educação a D.
Constança. Em seguida, Joanna e Vicente, os criados, dialogam. Ela afirma que a velha não a
respeita, querendo tratá-la "de igual para igual"265. Vicente conta que Seu Joaquim, dono da
venda, está para morrer. Segundo Joanna, ele vivia a dizer-lhe gracinhas. Vicente fica bravo e,
então, confessa que gosta dela. Mas ela afirma que só se casará quando ele tiver condições
para comprar casa, mobília e estiver bem estabelecido.
A confusão social de Ananias e D. Genoveva repercute na postura dos
criados. Ambos mostram-se pouco respeitosos e até desqualificam algumas determinações dos
patrões. Em seguida, novamente Vicente e Maneco discutem para saber quem guiará o futuro
carro da família e chegam a se atracar. Com a incerteza dos papeis sociais, o criado chega às
vias de fato com o filho do patrão.
O término do ato permite identificar alguns conflitos:
1. Ananias e D. Genoveva ambicionam uma posição social mais elevada para a família,
enfrentam as dívidas e o baixo rendimento profissional e esperam obter favores do
novo amigo, Senador Moura;
2. D. Constança, mãe de D. Genoveva, surge como uma opositora "moral" aos planos do
casal, tecendo comentários realistas e classificando-os de idiotas pelas vãs ambições;
3. Beatriz coloca-se no mesmo polo de D. Genoveva, deseja casar-se com Álvaro,
funcionário público de condição inferior em vias de obter uma promoção que não o
264 Idem, p. 23. 265 Idem, p. 25.
97
elevará em muito na sociedade, mas enfrenta a oposição dos pais, que ambicionam um
casamento dela com Bilú, filho do Senador;
4. Maneco é ingênuo e não desempenha um papel social de acordo com as novas
expectativas dos pais, tratando um criado como irmão e só se preocupando com
futebol;
5. Vicente, o criado, trata Maneco de igual para igual, e deseja casar-se com a criada
Joanna, que se mostra insolente e espera que ele tenha condições para sustentar uma
casa antes de aceitá-lo;
6. Por fim, resta Nini, a outra filha, que se situa no mesmo polo dos pais, também
ambiciona um novo lugar na sociedade e aprova os "investimentos" de Ananias.
O segundo ato apresenta o mesmo cenário do primeiro, a sala da casa de
Ananias, porém com algumas melhorias: a parede pintada de azul, as janelas com as novas
cortinas e o mobiliário novo. Tudo preparado para a recepção ao Senador, cujo término
transcorre durante o ato.
Na primeira cena, D. Genoveva e Nini reclamam de Beatriz, que fora
grosseira com Bilú, filho do Senador, durante o jantar, e de D. Constança, que, por sua vez,
mostrara frieza ao responder a perguntas do Senador. Durante a conversa entre mãe e filha,
Joanna anuncia a chegada de Álvaro, para espanto das duas. D. Constança afirma que
mandara convidá-lo e o recebe de modo amável, enquanto as duas permanecem indiferentes.
Confessa ao novo visitante que se desapontara com o Senador e seu filho, num tom irônico.
Quando entram na sala os demais hóspedes e Ananias, este recebe Álvaro
com um sorriso amarelo. Durante as conversas, Maneco tenta obter de Bilú um favor, uma
habilitação para dirigir, e Ananias confesssa, contrariado, ao Senador, que a casa em que
moram é alugada, sendo Seu Joaquim, o dono da venda, seu proprietário.
A cena três explicita as tentativas de Ananias para agradar o hóspede
ilustre. Após Vicente e Maneco discutirem, novamente, sobre futebol, Ananias afirma que, se
tivesse poder, proibiria o esporte. Ao ouvir do Senador e de seu filho que apreciam-no, muda
de ideia, defendendo sua prática. A situação se repete ainda outra vez, quando discutem se as
mulheres poderiam torcer ou não. No final da cena, Ananias tenta falar sobre o cargo de
Ministro do Supremo, vago, mas a conversa não prospera.
Na cena IV, Bilú fica sozinho com Joanna e se interessa pela criada. Ela
fala sobre os planos do patrão de casá-lo com Beatriz e sobre a oposição da moça. Então o
rapaz se surpreende ao descobrir, ao contrário das aparências, que Ananias é pobre. Com isso,
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diz que só se interessa por Joanna, tentando, em vão, abraçá-la. Ela afirma não ser "trouxa" e
o deixa sozinho.
Nini e D. Genoveva entram na cena seguinte. De modo um tanto direto,
perguntam ao rapaz se ele não se pretende casar: Bilú - É o meu ideal. Mas com quem? Haverá quem se resigne, sinceramente, a me aturar pelo resto da vida? Nini - Aturar? O senhor é muito pessimista a seu respeito. Bilú - Não sou pessimista, sou sincero.266
As duas, após a saída de Bilú, constatam que estaria desiludido em
virtude do comportamento de Beatriz. Nini insinua algo: Nini - O melhor é a senhora não se meter mais nisso. Se ela quer casar com o Álvaro, que case. O Bilú, tenho certeza disso, acabaria aborrecido dela. Ele só poderia amar uma mulher que compreendesse a sua distinção e a sua inteligência... Genoveva - Para você é que ele estava bom...267
Na cena seguinte, ambas conversam com Beatriz. D. Genoveva
determina a Nini que se atire em Bilú e diz à Beatriz que ainda não aprovam seu casamento
com Álvaro. Simplesmente constata que não podem "perder o partido". Com o consentimento
da irmã, Nini diz que "dará em cima dele"268. Se Ananias busca a ascensão social por meio do
apadrinhamento, Nini espera obtê-la, com a aprovação da mãe, pelo casamento.
Então Beatriz e Álvaro, finalmente, podem conversar um pouco a sós.
Falam sobre a oposição de Ananias e D. Genoveva ao casamento, da tentativa de aproximá-la
de Bilú, de sua recusa e da insistência de rejeitarem Álvaro. Beatriz confessa que a amizade
com o Senador transtornara os pais. Ele, então, propõe: Álvaro - (...) Eu me afastarei daqui até que eles voltem à realidade. Se durante minha ausência, não te esqueceres de mim, tanto melhor.269
Após muito choro da moça, D. Constança, que entrara em cena, é firme: Constança - Ora, Álvaro, deixe-se de criançadas. "Seu" Ananias e Genoveva são dois idiotas acabados. O que eles dizem não se escreve. Continue a vir cá em casa que tudo se arranjará. Eu me encarrego de chamá-los à razão. O que não quero é ver essa menina chorar.270
A cena VIII apresenta uma conversa entre Ananias e Genoveva. Ele pede
a ela que pegue o dinheiro com que pagariam alguns meses de aluguel atrasado ao Seu
Joaquim, pois o Senador pedira uma contribuição para a feitura de uma creche. Como todos
os membros da alta sociedade estavam contribuindo, Ananias não poderia deixar de fazê-lo. 266 Idem, p. 39. 267 Idem, p. 40. 268 Idem, p. 41. 269 Idem, p. 42. 270 Idem, p. 43.
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Além disso, tentaria obter ainda naquela noite o cargo de Ministro do
Supremo. De qualquer modo, mais um "investimento" de alto risco: Ananias - É só o que nos resta? Genoveva - Apenas. Não sei como passaremos o amanhã. O padeiro não quer fiar nem mais um vintém; o açougueiro, a mesma coisa; o leiteiro idem. Só o quitandeiro se mostra um tanto cordato... Ananias - Pois adotemos o regime vegetariano.271
Em seguida, na cena IX, Nini "se atira" em Bilú, após o filho do Senador
dizer que somente acreditaria ser amado por uma mulher se esta desse uma prova insana desse
amor: um beijo. Nini aceita o "desafio", deixando-se abraçar e beijar. No mesmo instante,
Joanna entra na sala e os flagra. Após Bilú sair para a varanda, a criada dá uma lição de moral
em Nini, dizendo que não aceitou ser beijada por aquele "pirata", recusa-se a obedecer-lhe e
ameaça contar tudo não a Ananias, mas ao Senador.
Na cena seguinte, todavia, é Joanna que se deixa beijar, por Vicente, após
lágrimas e protestos do mesmo. Então, Maneco os flagra, ameaçando contar tudo ao pai. Nini,
porém, entrando em cena, coloca-se em defesa de Joanna, mandando Maneco guardar o que
vira para si. Ambas celebram um pacto: Joanna (depois que ele sai) - Obrigada, D. Nini. A senhora é um anjo. Pode ficar descansada, porque eu também não vi nada ainda agora... Amor com amor se paga...272
Com o transcurso do ato, devemos relembrar o estado dos conflitos
anteriormente delineados:
1. Os planos de Ananias de ascender socialmente por intermédio do Senador Moura, que
lhe indicaria para o cargo de Ministro do Supremo, são executados durante a recepção
na casa da família. Além dos gastos com tal recepção, Ananias se vê obrigado a fazer
uma doação para pretensa obra assistencial liderada pela esposa do Senador,
consumindo as últimas economias da família. O ato caminha para o momento crucial,
em que o assunto da nomeação será abordado;
2. D. Constança persiste em sua oposição "moral", comportando-se de modo indiferente
no jantar e apoiando a união da neta Beatriz com Álvaro, a quem trata com alegria;
3. Beatriz mostra-se "geniosa" e quase chega a ser grosseira com Bilú, o filho do
Senador. Para não "perderem o partido", sua mãe, D. Genoveva, determina à outra
filha que dê em cima de Bilú. Mas ainda se opõe à união de Beatriz com Álvaro;
271 Idem, pp. 44-45. 272 Idem, p. 51.
100
4. Maneco permanece amigo de Vicente e tenta obter do filho do Senador uma licença
para dirigir;
5. Vicente comporta-se mal após falar sobre futebol com Maneco e é advertido pelo
patrão. Consegue beijar Joanna numa das cenas, embora flagrado por Maneco;
6. Nini, que estava sem par romântico, continua apoiando a tentativa de ascensão social
dos pais e aceita atirar-se em Bilú, para tentar casar-se com ele. Deixa-se beijar e fica
aberta a hipótese de ambos não estarem apenas aproveitando-se das oportunidades,
mas sentindo algo um pelo outro.
A cena XII é crucial na peça. O Senador confessa a Ananias que está
desiludido com a política, causando sua surpresa. Afirma que todas as portas têm se fechado
para ele, pois seu mandato estaria no final e seu cargo de Senador teria sido oferecido a outra
pessoa. Não conseguiria sequer empregar o filho em alguma carreira pública. Confessa a D.
Genoveva que o filho não é formado, nunca tendo entrado em qualquer faculdade, fato que o
preocuparia. Por fim, a revelação decisiva: Moura (a Ananias) - E o senhor não sabe ainda da melhor... Ananias - Há melhor ainda? Moura - Comigo mesmo, pessoalmente, eles não têm a mínima consideração. Imagine que, com o auxílio de alguns colegas, pleiteei a vaga existente no Supremo... Ananias - O senhor também?!... Moura - Pois bem. Cortaram-me todas as vasas... Desci para uma vaga de juiz seccional, mesmo no inferno... Ananias (a Genoveva) - Até no inferno ele ia! Moura - Barraram-me. Tentei um lugar de promotor... nada... Um lugar de escrivão... nem isso... Ananias - Quem sabe se um de meirinho... Moura - Qual nada! Eu sou um homem que assiste aos seus próprios funerais... Ananias - E eu também...273
As revelações destroem todas as ilusões nas quais Ananias e D.
Genoveva embarcaram. Percebem que as apostas que fizeram na amizade do Senador foram
todas em vão. D. Constança, com certa ironia, torna-se, após todas as revelações, amável com
os hóspedes "ilustres". Já Ananias, D. Genoveva e Nini tornam-se frios e distantes. Nini chega
a pedir a Bilú para que esqueça aquela noite.
É importante ressaltar que o equívoco do chefe da casa justifica-se: desde
o Império, os membros do Legislativo (deputados e senadores) são os principais tecedores da
rede de patronagem e clientela, sendo as figuras mais procuradas para obtenção de cargos e
favores274. Ser “amigo” de um Senador, portanto, realmente pode iludir uma pessoa.
273 Idem, pp. 54-55. 274 Richard Graham, analisando a correspondência de políticos, constata que os principais solicitantes de favores políticos são os deputados e senadores, sendo os ministros os destinatários mais comuns
101
Infelizmente, Moura é quase um “ex-Senador” e está excluído da rede de influências que
poderia garantir qualquer nomeação, até mesmo para si. Sua “amizade” já não vale grande
coisa (do mesmo modo, Bilú deixou de ser um bom partido).
O ato termina com um clarão, indicando um possível início de incêndio.
Para desespero de Ananias, Vicente esclarece que simplesmente, seguindo suas ordens, estava
queimando a mobília velha, que fora trocada para a recepção ao Senador: Ananias (empurrando Vicente para fora) - Suspende, desgraçado! Suspende a execução da mobília! Vicente - Vou ver se salvo alguma coisa. (sai correndo) Ananias (atirando os braços para o ar) - Este moleque é o meu azar!275
Com a perda das ilusões quanto à possibilidade de mudança social,
Ananias deve agora, no último ato, enfrentar as consequências de seus gastos excessivos. O
cenário revela a realidade da família: a mobília, salvo uma cadeira de balanço, é composta por
caixões de batatas. Uma nova postura é inadiável: conforme Ananias, deveriam alugar uma
casa mais barata, cortar despesas com alimentação, dispensar Joanna e Vicente276.
Todavia, D. Genoveva apresenta objeções a todas essas medidas: não há
casa mais barata, a menos que se mudem para a periferia; cortar a alimentação seria
impossível, a menos que passem a uma refeição por dia; despedir a Joanna seria também
impossível, pois nenhuma das mulheres da casa iria para a cozinha. A única exceção plausível
seria dispensar o Vicente, embora tendo sido criado pela família. Ainda que D. Constança
discorde dessa medida, Ananias mostra-se decidido: Ananias (numa explosão) - Que vá para o inferno! Veja lá se eu tenho obrigação de aturá-lo o resto da vida... Se não tem para onde ir, que se enforque... Eu estou convencido de que este moleque é que me dá azar... Aproveito a oportunidade para mandá-lo a favas... E já não é sem tempo.277
No fim, nervoso, reitera que adotará todas as quatro medidas acima
descritas, "revogando as disposições em contrário"278. Estabelece uma mentalidade de gestão
doméstica baseada no cálculo e limitada pelo orçamento que efetivamente possuem, sem
buscarem “amizades” e saltos sociais.
Na cena II, D. Constança conta as novidades para as netas. Enquanto
Beatriz aceita resignada o destino, acatando a resolução de se mudarem para a periferia e
dos pedidos (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 280). 275 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 58. 276 Idem, p. 59. 277 Idem, pp. 59-60. 278 Idem, p. 60.
102
propondo-se inclusive a trabalhar no lugar de Joanna, Nini rejeita todas as medidas e diz que
prefere ir trabalhar na "Companhia Telefônica" a seguir com a família para uma nova casa.
Nas cenas seguintes, aparecem, primeiro, o padeiro e, depois, o
açougueiro, perguntando por Ananias, deixando a impressão de que estão a cobrar dívidas.
Este, numa repetição cômica, esclarece a todos que "não está em casa". Logo em seguida,
Joanna entra para contar que seu Joaquim, dono da venda, morrera. Num primeiro momento,
Ananias e Genoveva comemoram a fúnebre notícia da morte do credor; Beatriz, contudo, os
traz à realidade, afirmando que os herdeiros seriam mais exigentes do que ele e os
expulsariam daquela casa.
Na cena VI, Vicente anuncia que seu Manoel, sócio de Joaquim, estava
procurando por Ananias. Este, possesso, brada novamente que "não está em casa". Mas
Vicente afirma que não sabia disso e já dissera a Manoel que Ananias estava lá. É a gota
d´água: Ananias - Este patife hoje mesmo vai para o olho da rua! Não o quero aqui em casa nem mais um dia! (a D. Genoveva) Vá ver o que quer esse sujeito! (...)279
A esposa diz que Manoel deseja conversar com Ananias no armazém.
Após muitos protestos, o chefe da família vai ouvi-lo, saindo de cena. Vicente, aos prantos, é
consolado por Álvaro, que entra em cena. Joanna, então, conta as novidades ao rapaz: Joanna - O que há é que o patrão estava dizendo hoje de manhã à patroa que a única pessoa que tinha juízo aqui era D. Beatriz... E disse mais... Disse que, se o senhor não estivesse zangado e pedisse a mão dela, ele dava com muito prazer.280
Beatriz entra, na sequência, e é informada por Álvaro sobre sua
promoção, passando de amanuense a terceiro oficial. Conta, ainda, que o filho do Senador
tornar-se-ia amanuense em seu lugar. A moça confirma que os pais estão de acordo quanto ao
casamento deles. A oposição terminara: D. Genoveva e Nini o recebem de modo amável. A
mentalidade trabalhadora e paciente de Álvaro não se opõe às ambições da família.
É de se notar que a informação acima, quanto à provável “colocação” de
Bilú no cargo de amanuense, reforça as dúvidas quanto ao início de carreira de Álvaro. Ainda
que ele seja um profissional irrepreensível, talvez nada tivesse conseguido sem um favor
inicial que permitisse sua chegada à carreira em que ascende281.
279 Idem, p. 66. 280 Idem, p. 69. 281 Tratando do Império, Richard Graham afirma que até para posições menores havia a necessidade de apadrinhamento (GRAHAM, Richard. Ob. cit., p. 289).
103
Maneco e Beatriz pressionam a mãe para que Vicente não seja demitido.
Por precaução, sugerem ao jovem que passe a noite em qualquer lugar, voltando no dia
seguinte, quando Ananias estivesse mais calmo. Vicente está desolado: Vicente - Veja você que ingratidão, Joanna. Eu que ajudei essa gente toda a passar fome. (com uma espécie de crise nervosa) Eu não resisto a esse golpe!...282
Ao sair, contudo, esbarra em Ananias, que voltava da venda.
Curiosamente, ele está amável com Vicente e nega que o tenha mandado embora: Ananias - Se eu mandei você embora, é porque estava louco. Venha cá! (aproxima-se de Vicente) Eu não quero que você vá embora. Hom´essa! Ir embora por que? Fique onde estava. Eu sempre fui seu amigo, seu segundo pai...283
No final da cena, revela que Vicente é sua salvação, ao contrário do
afirmado anteriormente. Então, conta o segredo por detrás de seu misterioso comportamento:
Vicente era filho ilegítimo de seu Joaquim, que lhe deixara todos os bens de herança. Toda a
família, agora, precisaria tratá-lo muito bem, a começar pelo próprio Ananias, ordenando que
ele passe a dormir no quarto de Maneco.
O fim da peça mostra Ananias dando a notícia a Vicente de que seu
Joaquim era seu pai. Vicente chora pela morte do pai que não conhecera. Como ele fica
inconsolável, Ananias tem uma ideia: sugere que queime a cadeira de balanço, última peça
que restara da mobília velha. Vicente e Maneco saem alegres para consumar o ato, enquanto
Ananias explica a todos: "Não se impressionem! Amanhã virá uma mobília nova..."284.
Quando o terceiro ato parecia caminhar para um encerramento moralista,
mostrando a Ananias seu lugar na sociedade e punindo-o por seus atos impensados com uma
queda para a classe baixa, uma súbita reviravolta reconforta a família, trazendo, por meio de
Vicente, dinheiro e, até, uma mobília nova285. De modo surpreendente, todos permaneceram
no mesmo patamar do início da peça (salvo no caso do criado, que conhecerá uma pequena
ascensão).
Se pensarmos nos conflitos delineados na peça, podemos constatar o
seguinte:
282 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 73. 283 Idem, p. 74. 284 Idem, p. 79. 285 O recebimento de uma herança consiste numa intervenção do Deus ex machina comum nas comédias, a fim de possibilitar um final feliz para os personagens quando a estrutura lógica da peça não o permitiria. No caso da comédia estudada, dadas as limitações do ambiente social brasileiro, a única forma encontrada pelo autor para restabelecer o equilíbrio inicial foi a herança. Surpreende, apenas, ela ser destinada ao criado, não aos membros da família.
104
1. Quanto às ambições de Ananias que levaram a família à miséria, sofrem uma
inesperada reviravolta com a herança recebida por Vicente, que, de criado, passa a
filho oficial. No instante em que ele parecia ter se conformado com seu novo papel
social (inferior), encontra em Vicente um instrumento para consumar a permanência
na classe média, como revela a compra da nova mobília;
2. D. Constança, que deixara de se opor a Ananias em virtude de suas resoluções
econômicas, ainda tem espaço para mais uma reflexão moralista, constatando que
quem mudaria de vida é o Vicente286, insinuando que os demais continuariam na
miséria;
3. Beatriz e Álvaro podem se unir e contam com a aprovação dos pais da noiva;
4. Maneco agora pode ser amigo de Vicente;
5. Vicente, que no primeiro ato sabia exatamente qual seu lugar na sociedade e chegou a
ridicularizar Maneco por querer ser chofer ("dono é dono e chofê é chofê"),
transforma-se durante o segundo e terceiro atos em um criado inocente e sem a
mínima consciência quanto a seu papel social. Aceita passivamente a ingerência de
Ananias sobre seu novo patrimônio e comporta-se de modo submisso. Além dessa
inconsistência, a peça deixa de resolver um primeiro conflito: Vicente desejava casar-
se com Joanna, que somente o aceitaria quando estivesse em condições de sustentá-la.
O final abrupto não retoma tal questão que poderia inverter os papeis sociais dos
criados em relação aos patrões e trazer um final completamente inesperado para a
peça;
6. Nini também é esquecida. Não é comum, nas comédias nacionais, uma moça jovem
terminar solteira. Tudo estava preparado para ela apaixonar-se verdadeiramente por
Bilú e vice-versa. Inclusive Álvaro traz a notícia de que ele arrumara emprego. Mas,
novamente em virtude do abrupto desfecho que favorece Vicente sem subverter a
ordem estabelecida entre os personagens em cena, o conflito não é retomado.
Conforme antecipado, embora intitulando-se Ministro do Supremo, a
comédia não sai do ponto de vista doméstico ao apresentar suas questões públicas,
predominando os interesses de ascensão social de Ananias por meio de um pretenso padrinho.
Seja por expressa previsão no texto original, seja como resultado do desempenho de Procópio
Ferreira, que conquista a primeira e inesperada glória de sua carreira, notamos que o autor
286 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 78.
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quis privilegiar o personagem Vicente, mero criado, ao fazer dele o herdeiro da fortuna do
dono da venda.
Esse intuito, todavia, poderia realizar-se de dois modos: invertendo os
papeis sociais e criando uma subversão em cena, fazendo o criado assumir o papel dos
patrões, tornando-se o novo gestor da casa e se casando com Joanna; ou esvaziando o
personagem do criado em sua consciência social, transformando-o em uma pessoa de
capacidades intelectuais limitadas, que receberia apenas o título de herdeiro sem, todavia,
poder gerir sua fortuna e, consequentemente, permanecendo em sua condição submissa aos
patrões.
A segunda escolha materializou-se a partir do segundo ato, quando o
autor deixa de fazer qualquer referência à esperteza de Vicente e a sua consciência social. De
qualquer modo, a peça já resvala naquele que seria o tema de algumas comédias da década
seguinte: a questão social.
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O Secretário de Sua Excelência - assessor
O “negócio político” desenvolvido por França Júnior em Como se fazia
um deputado é, de certa forma, retomado na peça O Secretário de Sua Excelência, de
Armando Gonzaga, encenada em 1923 no Teatro Trianon (RJ)287. Todavia, enquanto a
primeira comédia faz do tema, inegavelmente, seu fio estruturador e ponto central, a segunda
foca, antes, a conduta do “secretário”, personagem malandro que ganha status social com a
condição que assume, do que propriamente os arranjos que levam um coronel à condição de
candidato à Presidência de seu Estado.
Tal perspectiva materializa-se no cenário quase fixo, que não se abre a
um espaço público externo, contentando-se com o desenho da terrasse, no primeiro ato, e da
sala principal, nos dois últimos, de uma pensão “balneária” carioca, a Lua Nova. Trata-se, o
espaço de um hotel ou assemelhado, de um dos dois cenários típicos das peças do gênero
Trianon, sendo o outro a sala de estar de uma residência.
O primeiro ato apresenta os personagens e os conflitos. Na cena I,
Taveira, proprietário da pensão, determina a Miguel, seu funcionário, que Felipe, hóspede em
atraso nas diárias, não receba refeições até deixar a pensão ou pagar o que deve. O diálogo
revela que Taveira é um homem rígido e Felipe, nas palavras de Miguel, “não é hóspede que
se convenha a uma pensão”, pois “não tem profissão séria”288. Taveira, após afirmar que não
montara pensão “para sustentar pançudos”, diz que Felipe é “um malandro” que precisa ser
posto no olho da rua289.
Na sequência da cena, Benvinda, filha do proprietário, e D. Adelaide, sua
tia-avó, defendem o rapaz, qualificado de “amável” e “alegre”. Reputam exagerada a postura
de Taveira: Benvinda - É uma maldade de papai botar o senhor Felipe no meio da rua, assim, de uma hora para outra. D. Adelaide - Ele bem podia dar-lhe mais algum tempo para endireitar a vida. O pobre rapaz não tem para onde ir.290
287 Conforme Daniel Rocha, a primeira versão da peça foi encenada em 1920, no teatro João Caetano. Por se tratar de um teatro dedicado às peças musicadas, a comédia foi reduzida a dois atos e ganhou números de canto (ROCHA, Daniel. In: Boletim da SBAT - n. 271). 288 GONZAGA, Armando. O Theatro de Armando Gonzaga - O Secretário de Sua Excelência. São Paulo: Livraria Teixeira, s.d., pp. 2-63 (a numeração recomeça a cada peça). 289 Idem, p.2. 290 Idem, p.3.
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Benvinda diz que conversará com o pai sobre a decisão de despejo, mas é
dissuadida por Miguel, afirmando que as ordens do patrão são “terminantes”, além do que
Felipe mereceria aquele tratamento.
A cena II traz Felipe pedindo seu almoço a Miguel, anunciando que
arrumara um emprego de servente de necrotério e confessando que há muito tempo não
trabalhava291. O personagem revela um universo no qual a lógica do trabalho assalariado não
penetrara completamente. Ter um trabalho fixo não é a primeira opção para manter sua vida.
A próxima cena, iniciada com a entrada de Taveira, mostra o conflito
instaurado entre ambos. O dono da pensão, “carrancudo”, afirma que espera há quatro meses
o pagamento da hospedagem e já considera essa dívida perdida. Determina que o hóspede
deixe o estabelecimento em vinte e quatro horas, estando as refeições desde logo suspensas.
Depois da saída do pai, Benvinda, que acompanhara a discussão à
distância, tenta consolar Felipe e promete arranjar uma moeda para o ônibus, a fim de que ele
possa ir à cidade buscar ajuda.
O coronel Praxedes é apresentado na cena IV. Conta a Felipe que ainda
não comera coisa alguma, pois seu estômago era muito frágil. Felipe faz um jogo de palavras
para dar falsamente a entender que também não comera por causa de seu estômago,
despertando a simpatia do coronel. O rapaz, de modo perspicaz, nota o poderio econômico de
Praxedes e tenta fazer “amizade” com ele. Em seguida, conversam sobre D. Leocádia e sua
filha, Margarida. Mas o coronel diz que não pretende atirar-se em aventuras com a mãe da
moça.
Benvinda entrega a Felipe a moeda que conseguira e pergunta sobre
Jorge, que saberemos depois ser seu pretendente. Ele cuidaria de uma promoção nos Correios,
onde trabalha. Novamente vemos um personagem imbuído de outra lógica, oposta à
enunciada atrás: Jorge é o trabalhador que possui um cargo e espera calmamente ir galgando
posições. Antes de sair, Benvinda afirma, de boa vontade: “O senhor não se mudará daqui.
Papai é que tem de mudar de ideia”292.
Na cena VI, Felipe conversa com Jorge. Tendo-se em vista a
determinação de Taveira, diz que não estaria em condições de começar em seu novo emprego
sem almoçar. Jorge o recrimina e diz que devem ir a pé para a cidade, pois também não teria
dinheiro. Ambos elogiam Benvinda, reforçando sua caracterização como boa moça, que nem
291 Idem, p.4. 292 Idem, p.9.
108
pareceria filha “daquele monstro”293. A tia-avó, D. Adelaide, é descrita pelos rapazes também
como boa pessoa, além de ser muito rica. D. Felicidade, a irmã de Taveira, por seu lado, seria
uma velha insuportável, parecida com o irmão, embora também rica, possuindo cerca de
quinze contos herdados do terceiro marido.
A próxima cena inicia-se com a entrada de D. Felicidade e de Margarida,
bela moça. Ambas procuram uma moeda para um funcionário, mas não encontram. Então,
Felipe dá a moeda que recebera de Benvinda, reforçando sua mentalidade pouco previdente.
Após a saída das duas, confessa que não seria decente confessar sua “prontidão” à moça294.
Jorge, com isso, tentará obter outra moeda de D. Adelaide.
A cena VIII começa com uma discussão entre Praxedes e Taveira,
estando o coronel a reclamar de Miguel, também presente, que não teria preparado seu banho.
Todavia, como o dia de banho do coronel era trinta e um e o mês anterior fora de trinta dias, o
empregado não fizera nada de errado. O coronel pede desculpas e diz que só lavará os pés.
Taveira demonstra sua rigidez novamente: “quem não anda direito vai para a rua”295,
projetando suas palavras sobre Felipe.
Contrariando o dono da pensão, Praxedes convida Felipe, a quem ainda
reputa sofrer do estômago, para um chá com torradas. Durante a conversa dos dois, o coronel
revela que somente ficará no Rio de Janeiro até receber oitenta contos do Estado, em virtude
de umas terras que vendera ao Governo, regressando, depois, a sua terra.
Para desespero de Felipe, na cena seguinte, D. Felicidade senta-se na
mesa com eles e come todas as torradas enquanto conversa com o coronel. Depois, entram em
cena D. Leocádia e sua filha, Margarida, que são apresentadas ao coronel. Durante a conversa,
a mãe recrimina a filha por travar relações com Felipe, que, pelo tipo, seria “um coisinha”296.
Quando as mulheres saem, os dois comentam: Praxedes - Continuo na minha, “seu” Felipe. Essa D. Leocádia é um pedaço. Felipe - E a filha também. Praxedes - Ah, “seu” Felipe, se eu tivesse a sua idade... Felipe - “Seu” Coronel, se eu tivesse a sua fortuna... Praxedes ´Que vale o dinheiro quando não se tem a mocidade? Felipe - Um pouco mais do que a mocidade quando não se tem dinheiro.297
A cena XI traz a notícia que abalará as estruturas do enredo: o Deputado
Placidino procura o Coronel e traz um convite, de seu partido, para que ele assuma a condição 293 Idem, p.9. 294 Idem, p. 11. 295 Idem, p. 12. 296 Idem, p. 16. 297 Idem, p. 17.
109
de candidato a Presidente de seu Estado. Seu nome surgira durante a briga entre duas
autoridades regionais pela candidatura, como uma alternativa conciliadora: Placidino - Ora, esse dissídio entre chefes de tanto prestígio chegou a tornar-se ameaçador. Era a luta, o esfacelamento, a derrocada de nosso partido... Estavam as coisas nesse pé, quando o Coronel Amphilóquio teve uma ideia luminosa: a escolha de um tertius... Só assim o partido ficaria inteiro...
Após alguma hesitação, Praxedes aceita a candidatura e nomeia Felipe
seu secretário, pois, efetivamente, simpatizara com ele. A “amizade” dera rápido resultado.
Podemos notar a presença do deputado como uma figura que articula os polos da rede
política: de um lado, a liderança nacional do partido; de outro, os coroneis. Nota-se, contudo,
que a palavra final não vem do centro do país, mas do tal Coronel Amphilóquio. Essa situação
inverte um pouco a ordem que existia em Como se fazia um deputado, quando a decisão veio
da autoridade central.
Efetivamente, com o advento da República, houve um renascimento da
descentralização administrativa que vigorara durante o período colonial, sob a forma
federalista. A partir da Constituição de 1891, os Estados adquirem maior autonomia, podendo
manter sob seu domínio a receita oriunda da exportação de suas mercadorias, escolher
livremente seus governantes e reorganizar suas forças militares298.
Tal descentralização teria dado ensejo ao surgimento do coronelismo,
caracterizado pelo aumento exacerbado do poder das lideranças locais. O nome “coronel”
deriva de antiga patente da Guarda Nacional, que era comprada por fazendeiros, comerciantes
e industriais locais. Tal liderança torna-se o chefe de um clã composto por familiares,
agregados e seus “cabras”, aos quais distribui favores em troca de lealdade, sobretudo no
momento das eleições299.
Normalmente o coronel associa-se a um bacharel. Enquanto ele controla
e exerce seu poder sobre seu clã, o doutor o representa com o prestígio de sua palavra e seus
serviços jurídicos. O coronel possui a influência pessoal e o dinheiro, enquanto o doutor faz
campanhas jornalísticas, de oratória, em solenidades, ou acompanha e organiza as eleições,
verificando o processo eleitoral sob o ponto de vista jurídico e participando de debates no
Legislativo local300.
Embora Felipe não seja bacharel, sua função de secretário será similar.
Ele fica eufórico com a nomeação e logo pede uma verba para representar o “futuro”
298 CARONE, Edgard. Ob. cit., p. 250. 299 Idem, p. 251. 300 Idem, p. 252.
110
Presidente. Como o coronel somente receberia o dinheiro do Estado no final do mês, o
secretário delibera pedir uma quantia emprestada a Taveira. Praxedes concorda: “saque o que
for preciso”301.
A nova situação traz reflexos imediatos a Felipe. Taveira é amável com
ele e aceita emprestar dinheiro ao coronel. D. Leocádia, que o qualificara de “coisinha”, agora
é também amável e manda a filha, que não lhe podia dirigir a palavra, cumprimentá-lo. Na
cena seguinte, o dono da pensão determina a Miguel: Taveira - Miguel, traga a Champagne que está no buffet e mande servir o almoço do Dr. Felipe. Miguel - Do Dr. Felipe? Taveira - Sim, idiota, do Dr. Felipe. Miguel (baixo) - O senhor Felipe não estava com ordem de mudança? Taveira (baixo) - Mas houve mudança de ordem. Faça o que eu mando e diga ao diabo o que sabe.302
O ato termina com Jorge, que ainda não sabia de coisa alguma,
comentando a Felipe que conseguira algum dinheiro emprestado de D. Adelaide, convidando-
o para irem à cidade para salvar seu emprego. Para surpresa de Jorge, o amigo recusa a oferta
e ainda recebe, com o Coronel, vivas e brindes.
Inegavelmente o personagem central do ato é Felipe, permanecendo em
cena quase todo o tempo, sempre envolvido nos diálogos. A peça mostra a mudança no seu
estado, de um malandro sem dinheiro para o secretário de um pretenso candidato à
presidência de um Estado. Essa mudança, nas palavras de Taveira, altera a ordem das coisas.
Notamos que até a forma de tratamento mudou: virou o doutor Felipe.
Com sua nova posição de secretário do futuro Presidente do Estado, ele se torna uma pessoa
que, entre outras atribuições, poderia exercer influência e até certo controle sobre a
distribuição de favores. Tal papel, em termos de importância, só não suplanta a do próprio
coronel. Por essa razão, é equiparado a um patrono, capaz de fazer favores e, por isso, sendo
bajulado e bem tratado303.
É preciso destacar que a indicação de Praxedes à candidatura deu-se por
um ato de deliberação externo à peça, mediante escolha de autoridades partidárias, apenas
relatada pelo deputado que o convidou formalmente. Embora as cenas tenham transcorrido na
capital, apresentando personagens e conflitos, não mostrou a decisão essencial que mudou o
rumo dos acontecimentos, que, como salientamos, veio do interior.
301 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 20. 302 Idem, p. 22. 303 O papel dessas figuras é descrito por Richard Graham (GRAHAM, Richard. Ob. cit., pp. 273-274).
111
O segundo ato se inicia com uma conversa entre Felipe e Miguel, pela
qual o público é informado de algumas situações. A primeira delas é que o namoro entre
Benvinda e Jorge vai adiantado, ambos se casarão e D. Adelaide dará um dote para a moça;
Felipe comenta que só seu colega poderia querer casar com a filha de um dono de pensão304.
A segunda diz respeito a D. Felicidade, que passaria as noites a suspirar por uma paixão
misteriosa, após enviuvar pela terceira vez; Felipe afirma que esse objeto de sua paixão seria
um “desgraçado”305. Por fim, Miguel comenta que Taveira contratara um cozinheiro novo e só
comprava gêneros de primeira qualidade, para agradar o “Presidente” e seu secretário.
Taveira e D. Felicidade conversam na cena II. Ele gostaria que a irmã
tentasse casar-se com o coronel, mas ela rejeita tal proposta. Afirma que nunca se casaria com
quem não fosse eleito por seu coração, ainda que viesse “coberto de ouro”306.
Na próxima cena, Benvinda e D. Adelaide entram reclamando de Felipe,
um “impostor” a quem tanto ajudaram nos tempos difíceis, mas que agora não falaria mais
com elas307. D. Felicidade, porém, critica as duas, defendendo o rapaz e levantando suspeitas
quanto ao “eleito de seu coração”. Por outro lado, D. Adelaide descreve Jorge como um
excelente rapaz, “sério, trabalhador e bem agradecido”308.
Uma rápida conversa entre Felipe e D. Felicidade, no início da cena
seguinte, parece confirmar as suspeitas de que ela gostaria do rapaz, dado seu ar amável e
suspirante. Na sequência, Felipe pede mais cinco contos a Taveira, para as despesas da
campanha, mas este afirma não possuir o dinheiro em mãos. Ele teria a receber tal quantia de
Albuquerque, mas apenas na segunda-feira: Taveira - (...) Mas não posso apelar para ele, porque está combinado que ajustaremos nossas contas segunda-feira. O Albuquerque é muito amigo, mas zanga-se por qualquer coisa. Se eu mandasse buscar o dinheiro hoje, era certo que romperia comigo. E eu não posso perder aquela amizade. É meu protetor...309
Felipe diz que buscará o dinheiro de outra pessoa e reitera que o Coronel
receberá seu dinheiro, devido pelo Governo, na sexta-feira, ocasião em que pagará os
empréstimos de Taveira.
A cena V traz um novo personagem, Malaquias, amigo de Felipe e Jorge,
que se tornara jornalista de um periódico recém criado e desejava entrevistar Praxedes, a 304 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 24. 305 Idem, p. 24. 306 Idem, p. 26. 307 Com a nova condição, Felipe começa a reconfigurar suas relações sociais, num fenômeno similar ao apontado na peça anterior. 308 GONZAGA, Armando. Ob. cit., p. 26. 309 Idem, p. 28.
112
respeito de sua candidatura. Enquanto aguardam o coronel, conversam sobre seus gastos, que
na verdade são de Felipe, com o dinheiro de Taveira, emprestado. Como a eleição seria no
domingo, decidem fazer uma manifestação de apoio ao candidato, no sábado.
Logo em seguida, com a entrada de Praxedes, ocorre a entrevista, ponto
alto da peça, repleta de tiradas cômicas e explicitando o despreparo do candidato, transcrita na
íntegra: Malaquias - É a primeira vez que Vossa Excelência vai ocupar um cargo de eleição? Praxedes - Eu já fui Presidente... Malaquias - Ah! Vossa Excelência já foi Presidente de Estado? Praxedes - De Estado, não... Malaquias - De Província? Praxedes - Qual Província nada. Eu fui Presidente do Club de dança lá de meu Município... Malaquias - Então não lhe pode faltar capacidade para dirigir um Estado. Praxedes - E não falta mesmo. Malaquias - Vossa Excelência quer dar-me a honra de expor ao “Sol” as suas ideias de Governo? Praxedes (espantado) - Expor minhas ideias ao sol?! Felipe - O Sol de que se trata é um jornal. Praxedes - Ahn! Isso é outro caso... Malaquias - Eu desejava ouvi-lo a respeito dos problemas que Vossa Excelência é chamado a resolver como Governo. A instrução pública, por exemplo? Praxedes - Essa história de instrução pública não me interessa. No meu Estado, quase ninguém sabe ler... Malaquias - E sobre Saneamento? O nosso país, segundo os competentes, é um vasto hospital. Praxedes - Já ouvi falar nessa coisa de Saneamento, mas sou contra. Malaquias - Contra o Saneamento? Praxedes - Contra. Se desaparecerem as doenças, que vai ser dos médicos? Morre tudo de fome. E morrendo os médicos todos, quem é que vai tratar da gente? É uma besteira esse negócio de Saneamento. Malaquias - Principio a interessar-me por suas opiniões. E o problema ferroviário? Vossa Excelência naturalmente vai esforçar-se para que o seu Estado seja cortado por estradas de ferro. Praxedes - Deus me livre!! Nós temos lá uma estrada de ferro que é a nossa desgraça. Quando não havia essa coisa, ia tudo muito bem. Depois que os danados dos trens principiaram a correr pelos nossos campos, foi uma miséria. Não há dia em que não fique um boi estrafegado. E quando não é boi, ainda é pior... Malaquias - É gente? Praxedes - Antes fosse. Gente não custa dinheiro. É vaca. Malaquias - O Coronel é boiadeiro? Praxedes - Tenho uma grande plantação... Malaquias - De bois?! Praxedes - Não, “seu” moço, de batata e cará. Felipe - As batatas do Coronel são notáveis. Praxedes - É isso mesmo. Em batatas e cará ninguém me passa a perna... Malaquias - O que vejo é que o Coronel vai para o governo sem um programa? Praxedes - Programa! Você pensa que aquilo lá é cinema? Felipe - Programa quer dizer a relação de coisas que interessarão ao seu governo. Praxedes - Só há uma coisa que me interessa mesmo de verdade: é a plantação de batatas. O futuro de nossa terra está nisso. Malaquias - De maneira que Vossa Excelência vai para o governo com o fim especial de mandar o povo plantar batatas... Praxedes - É isso. Felipe - È um programa.
113
Malaquias - Bem, senhor Presidente, não quero tomar-lhe mais tempo.310
Percebe-se que muitas das condições já explicitadas nas peças anteriores
persistem. O fundamental na definição de uma candidatura é a posição do candidato na rede
de lideranças locais, não suas ideias ou seu programa de governo. Mesmo que o candidato não
tenha experiência, não conheça os problemas locais e não tenha ideais, se é indicado por um
coronel com influência sobre outros, será eleito graças à movimentação da máquina eleitoral.
Após a interrupção do fluxo dramático com a entrevista, a cena VI
retoma o enredo privado, trazendo D. Leocádia e Margarida para conversarem com Praxedes
e Felipe, formando dois pares românticos. Felipe promete uma marquise à Margarida e,
depois da saída do outro par de cena, ele tenta beijá-la.
Jorge quase os surpreende, levando à fuga da moça. Pergunta se fora D.
Felicidade a sair correndo, mas Felipe nega: Felipe (ferino) - Mesmo que D. Felicidade não fosse o monstro que é, teria para mim um defeito capital: o seu parentesco com o Taveira. Eu não quero absolutamente entrar para a família do homem de pensão.311
Jorge diz que não se incomoda, desde que seja pelo braço de Benvinda.
Felipe, por seu turno, afirma que só se casará com uma mulher que seja “produto requintado
de Civilização” e faça inveja a outros homens312.
Na cena VIII, Felipe falsifica a letra de Taveira e, pensando em comprar
o presente para Margarida, escreve uma cobrança ao Albuquerque, pedindo os cinco contos de
modo antecipado. Determina a Miguel que leve a carta ao devedor e não se incomoda com a
crise que despertaria entre Taveira e Albuquerque, nem com o fato de cometer estelionato.
Independentemente do caráter do coronel e de seu despreparo, percebe-se que Felipe utiliza
sua condição de secretário em proveito próprio.
Na sequência, ele diz a Praxedes estar resolvido a se casar com
Margarida. O coronel, embora aceite apadrinhar a união, afirma ser uma tolice pensar em
casamento no seu tempo. Logo em seguida à saída do rapaz de cena, entra D. Leocádia, a
quem o coronel confessa os intuitos de Felipe; ela fica contente, dizendo ter simpatia por ele.
No transcorrer da conversa, invertendo os papeis, D. Leocádia, após
revelar as dificuldades causadas pela sua solidão, literalmente pede Praxedes em casamento.
Tal pedido, todavia, fora motivado por um mal entendido, durante um passeio pela praia e a
passagem de um caranguejo. O coronel, pensando no bicho, teria dito que é triste viver só; D. 310 Idem, pp. 31-33. 311 Idem, p. 35. 312 Idem, p. 35.
114
Leocádia entendera como uma indireta, mas se enganara. Ela cai em seus braços, chorando de
vergonha. Suas lágrimas, porém, causam aflição a Praxedes, que lhe propõe casamento313.
Felipe fica surpreso com a decisão do coronel, sobretudo após ter ouvido
sua opinião sobre o casamento. Por outro lado, ao constatar que ambos serão da mesma
família, fica tranquilo, afirmando que “já não há receio de complicações”, pensando nos
gastos que tem feito para si com o dinheiro alheio314.
O diálogo entre Felipe e Jorge, na cena XI, revela diferenças nos
caracteres de ambos, desnudando as duas lógicas que os movimentam. O primeiro quer muito
dinheiro, de modo rápido, para se casar com Margarida e dirigir seu sucesso. Dizendo viver
no século da velocidade, afirma que só não deve correr quando puder voar e constata que
“cada qual tem o destino que merece”. Jorge, porém, é calmo e vagaroso, preferindo o passo a
passo da planície e reputando voar um perigo315. D. Adelaide, que ouve a conversa com
Benvinda, dá razão a Jorge, reputa Felipe tolamente vaidoso e ingrato, afirmando que “quem
corre, cansa” e “quanto mais se sobe, maior é a queda”316.
O final do ato termina com Taveira descobrindo a falsificação de Felipe e
lamentando ter perdido o melhor amigo. O rapaz afirma que apenas houve uma troca de
amizades, sendo ele seu novo “amigo”. Taveira constata que seu futuro estaria nas mãos de
Felipe. Enquanto isso, ouvem-se gritos do coronel, que caíra na água, lamentando não ter se
machucado mas, pior, ter tomado um banho involuntário317.
Inegavelmente a entrevista de Praxedes a Malaquias é o momento mais
interessante do ato e de toda a peça. Trata-se de uma ruptura na sequência de eventos
envolvendo as armações de Felipe e o delineamento dos pares românticos. A questão política
penetra na sala da pensão por meio das ingênuas porém reveladoras respostas do coronel.
O terceiro ato mostra a mesma sala do anterior, mas com nova
decoração. Taveira faz contas para preparar iminente manifestação ao candidato, enquanto
conversam D. Adelaide e Benvinda, atualizando o público dos acontecimentos: ele teria feito
várias loucuras para agradar Felipe, considerado por elas o novo dono da pensão, “um rei
pequeno”318. Teria gasto mais de quatorze contos, que seriam pagos pelo coronel na segunda-
313 Idem, pp. 39-40. 314 Idem, p. 40. 315 Idem, p. 41. 316 Idem, pp. 41-42. 317 Idem, p. 43. 318 Idem, p. 44.
115
feira. Este recebera o dinheiro do governo, porém deixara-o depositado no banco durante o
final-de-semana. Taveira esperava, entretanto, lucrar com a situação: Taveira - Para atender às suas exigências, reformei quase toda a casa. É o meio de prendê-lo aqui. Felizmente ainda teremos o Coronel por uns três meses. Espero, durante este tempo, levantar com bom juro todo o capital que tenho empatado por sua causa.319
Nas duas próximas cenas, ocorrem alguns preparativos para a
manifestação. Miguel, vestido com roupa nova, traz os telegramas de felicitações para Felipe
ler ao coronel.
D. Felicidade, na cena IV, quase se declara a Felipe. Diz que ele “abusa
de seus encantos”, sendo considerado namorador. Depois, lamenta por amar e não ser
correspondida. Por fim, diz para si: “hei de conquistá-lo”320.
O foco volta, assim, aos pares românticos. Durante conversa entre D.
Leocádia e Margarida, na cena seguinte, a moça afirma à mãe desejar romper com Felipe, que
não lhe dera a prometida marquise e perdera três contos no jogo. D. Leocádia, prudentemente,
diz que tal rompimento poderia atrapalhar seu casamento com Praxedes. Deveriam, pois,
primeiro “anular todo o seu prestígio junto ao Coronel”321, para depois se livrarem dele.
Na cena VI, Malaquias conversa com Felipe sobre a manifestação. O
repórter afirma que o periódico ia mal e ele estaria repleto de credores, os quais levava na
lábia. Felipe conta que escrevera um discurso para o coronel e trabalharia como “ponto”,
escondido, sussurrando os termos ao candidato, que não conseguia decorá-lo322. Malaquias
deveria retirar todos da sala, levando-os para fora, a fim de ouvirem o coronel pela janela, sem
perceberem o “ponto”. Na situação relatada, Felipe efetivamente comporta-se como um
assessor, cumprindo o papel do bacharel.
Finalmente ouvem-se vivas e chega a manifestação. Praxedes é aclamado
como “a única esperança de nossa nacionalidade, o expoente da Democracia”, cuja obra
grandiosa seria de “encher o olho”323. O momento do discurso é hilário: Felipe (lendo) - Senhores, eu não tenho palavras... Praxedes (para fora) - Senhores, eu não tenho palavra... Felipe (observando) - No plural... Praxedes (para fora) - Palavra no plural... Felipe - Preste mais atenção... Praxedes (para fora) - Preste mais atenção... Felipe - Não é isso.
319 Idem, p. 46. 320 Idem, p. 50. 321 Idem, p. 51. 322 Idem, p. 53. Destacamos que há um recurso à metalinguagem: os grandes artistas da década de 1920, como Leopoldo Fróes, não conseguiam decorar seus papeis, recorrendo ao ponto. 323 Idem, p. 54.
116
Praxedes (para fora) - Não é isso... Felipe - Misericórdia! (sai correndo) Praxedes Misericórdia! A voz de Malaquias - Viva o Presidente Praxedes! Vozes - Viva! (toca a música)324
Logo em seguida entra em cena o deputado Placidino, com uma notícia
nada oportuna para Praxedes: em vista de uma reviravolta política, o partido desistira de sua
candidatura e adotara a de outra pessoa, o Senador Ambrósio. O coronel fica irado: Praxedes - Não sou mais Presidente! Vejam que maromba!... Placidino (voltando o silêncio) - Vossa Excelência quer mandar dizer alguma coisa para o nosso Estado? Praxedes - Quero. Mande dizer que tudo isso é uma bandalheira, é uma patifaria, é uma pouca vergonha!... Placidino - Perdão, Coronel! Praxedes - E que eu quero que vocês todos vão para o diabo que os carregue! Placidino - Senhor Coronel! Praxedes - Vá para o diabo, você também, já disse.325
Depois de mandar a manifestação também para o “diabo que a carregue”,
Praxedes determina a Taveira que feche sua conta, pois irá embora no dia seguinte. Quando
questionado sobre os gastos de Felipe, sua resposta é devastadora: Praxedes - (...) Não pago mais nada pra ninguém. Taveira - Perdão, senhor Coronel, as minhas transações com o Secretário de Vossa Excelência sempre foram por sua conta. Praxedes - Sua, dele. Não tenho mais Secretário, não tenho mais nada.326
Taveira ameaça processar Felipe por falsificação de sua assinatura e levá-
lo à cadeia. O coronel não se incomoda. Malaquias, que ouvira toda a conversa, corre a contar
para Felipe, mas não há tempo para sua fuga. O dono da pensão o surpreende e lhe dá até o
final do dia para receber os quatorze contos que pretensamente emprestara ao coronel.
Jorge, Malaquias e Benvinda tentam convencer Taveira a não tomar tais
providências, mas em vão. Margarida, por seu turno, determina a Felipe que nunca mais lhe
dirija a palavra. A ordem inicial da peça está restabelecida: ele é novamente apenas um
malandro perdido, perdendo a condição de assessor de um coronel (e distribuidor de cargos e
favores). Ainda há tempo, na mesma cena, para Praxedes mandar D. Leocádia para “o diabo
que a carregue”327 e, depois, sua filha.
Na próxima cena, Praxedes reafirma que não pagará qualquer transação
de Felipe. Taveira se prepara para chamar a polícia, quando D. Felicidade se declara: “eu amo
324 Idem, p. 55. 325 Idem, pp. 56-57. 326 Idem, p. 58. 327 Idem, pp. 60-61.
117
o senhor Felipe!”328. No mesmo instante, ele corre para o lado dela e também “confessa” amá-
la. Taveira nada compreende, dirigindo-se à irmã: Taveira - Que pretende você com essa declaração? Felicidade - Deixar claro que, se o Felipe concordar em casar comigo, pagarei suas dívidas. Felipe - Para um homem perdido, a sua proposta é um achado. Aqui tem a minha mão de esposo. Taveira - Mas veja, mana, que você tem de pagar quatorze contos, setecentos e quarenta mil reis. Felicidade - Não faz mal. Ainda tenho no Banco quinze contos; dá e sobra. Malaquias - Quinze contos! Haverá, portanto, um saldo de duzentos e sessenta mil reis. E dizer que é esse o único dote da noiva. Felipe (a Felicidade) - O teu amor e uma cabana.329
A peça termina com Taveira, contrariado, tendo de servir bebida à
manifestação que ainda estava em frente à pensão.
Novamente, a decisão fundamental que mudou os rumos do enredo não
foi apresentada no palco. Fora de cena, os coroneis decidiram trocar o candidato e desistiram
de Praxedes, apenas comunicando-o disso. Se em Como se fazia um deputado o “negócio
político” é apresentado na conversa entre as duas lideranças políticas, deixando-se para os
bastidores apenas seu momento fundamental, que determina os rumos das eleições por uma
decisão do governo central, agora, em sua integralidade, está afastado do palco. Fomos apenas
informado da misteriosa nomeação do candidato e da desistência da mesma, ainda que a peça
esteja ambientada na capital. Parece que o centro do poder se afastou do Gabinete de
Ministros.
O objetivo principal de O Secretário de Sua Excelência, por seu lado, é
apresentar tipos como o coronel Praxedes, ridicularizado nas cenas, sobretudo durante a
entrevista, e o malandro Felipe, que se aproveita da situação mas acaba “punido” com um
casamento nada feliz com a viúva D. Felicidade, por quem nutria profunda aversão.
Se compararmos as últimas comédias com as primeiras, a estruturação
formal materializada em cenários limitados a ambientes privados diminui significativamente a
presença de questões políticas no enredo. Há, portanto, nesse sentido, um esvaziamento.
328 Idem, p. 62. 329 Idem, p. 62.
118
Capítulo III - Uma crítica à legalidade
A questão social e Fora da Vida
Segundo Alfredo Bosi, o século XIX brasileiro teria legado três
ideologias, enraizadas na mentalidade de nossa classe política:
1. O conservadorismo das oligarquias do Segundo Império, representada pelos engenhos
do nordeste e fluminenses, além das fazendas de café do Vale do Paraíba;
2. O novo liberalismo que lutou nos anos 1860-1880 pela abolição e pela reforma
eleitoral, amparado na oligarquia rural paulista-mineira que será hegemônica durante
a República;
3. O positivismo, que se converte em duas posições: o radicalismo jacobino, que marca
os cadetes florianistas e os tenentes de 1920; o republicanismo gaúcho, que marca o
castilhismo-borgismo e ocupa o poder nacional na década de 1930330.
A República Velha, assim, seria marcada pela dialética entre os
interesses da classe dominante que manobrava o federalismo e garantia com um Estado-
padrinho a lavoura cafeeira, por um lado, e o positivismo social que funde republicanos
gaúchos e tenentistas até a ascensão de Vargas, por outro331.
No seio dessa dialética republicana torna-se cada vez mais grave a
chamada “questão social”. Conforme Thomas Skidmore, durante as lutas abolicionistas, ela
teria sido relegada a um segundo plano. A expressão seria um eufemismo usado para
descrever a política do governo em relação ao bem-estar social e ao controle das classes
inferiores332. Mas com o fim do trabalho escravo, tornar-se-ia premente.
Ainda que o país começasse a industrializar-se, ao menos no contexto
urbano, no início do século XX, há que se destacar o fato de a maioria dos trabalhadores das
cidades não estar empregada em estabelecimentos industriais, mas no setor de serviços ou na
informalidade. Muitos trabalhadores formais eram balconistas, motoristas de bonde,
domésticos, zeladores de edifícios; já os informais eram mascates, pequenos ladrões, “faz-
tudo” ambulantes, lavadeiras, meninos de recado, prostitutas. Esta última categoria era
330 BOSI, Alfredo. Dialética da colonzação. 3ª edição, 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 304. 331 Idem, pp. 380-381. 332 Idem, p. 104.
119
também chamada de “classes perigosas”, sendo alvo da repressão policial e do sistema
penal333.
Na década de 1920, ocorrem revoltas tenentistas. Suas reivindicações,
um tanto imprecisas e vagas, expressam a desilusão com a República e com os políticos
profissionais, que enriqueceriam às custas do povo, e solicitam um Estado centralizado, capaz
de implementar uma legislação trabalhista forte, garantindo o salário-mínimo e combatendo o
trabalho infantil334.
Nesse contexto de agravamento da questão social, as explicações
hegemônicas sobre os problemas nacionais, que compunham a chamada “ideologia do caráter
nacional”, na expressão de Dante Moreira Leite335, entram em crise. Tais explicações, na
visão do autor, impediriam o efetivo conhecimento da realidade brasileira. Para Marilena
Chauí: Quando se acompanha a elaboração ideológica do “caráter nacional” brasileiro, observa-se que este é sempre algo pleno e completo, seja essa plenitude positiva (como no caso de Afonso Celso, Gilberto Freyre ou Cassiano Ricardo, por exemplo) ou negativa (como no caso de Sílvio Romero, Manoel Bonfim ou Paulo Prado, por exemplo). Em outras palavras, quer para louvá-lo, quer para depreciá-lo, o “caráter nacional” é uma totalidade de traços coerente, fechada e sem lacunas porque constitui uma “natureza humana” determinada.336
No caso das comédias declamadas brasileiras, essa ideologia penetrou na
perspectiva dos comediógrafos a respeito das questões políticas retratadas. Desde a peça de
Martins Pena, mas sobretudo nos autores subsequentes, há uma tendência em se vislumbrar
uma fraqueza moral nos ocupantes de cargos públicos, nos responsáveis pela sua distribuição
e nos interessados em obtê-los, elegendo-a como fator determinante para os desvios de nosso
Estado. Essa tendência impede-os de constatar que, por detrás da moralidade individual, está
uma rede de favores que vai do mais insignificante agregado ou dependente até o mais alto
cargo do Poder Executivo e interpenetra nas entranhas das estruturas produtivas da sociedade.
Podemos citar a passagem de Sílvio Romero, justamente analisando as
peças de Martins Pena, como paradigmática: Não é a legislação que é manca; a gente é que é notavelmente viciada, de alto a baixo e, sabe Deus quanto nos custa a isto escrever, tratando o povo a que temos honra em pertencer, que amamos, que foi sempre objeto de nossos desvelos337
333 Idem, p. 121. 334 SKIDMORE, Thomas E.. Ob. cit., p. 148. 335 LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro - história de uma ideologia. 5ª edição. São Paulo: Ática, 1992. 336 CHAUÍ, Marilena. Brasil - mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000, p. 21. 337 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira - tomo quarto. 4ª edição. Rio de Janeiro: José
120
Na historiografia, a crise da “ideologia do caráter nacional” é retratada
pela transição da historiografia romântica, que coloca acontecimentos e personagens em
primeiro plano, incapaz de ultrapassar o nível da subjetividade, para a historiografia de
inspiração marxista, que buscaria a estrutura objetiva da sociedade em transformação338. Para
os adeptos da primeira perspectiva, as deficiências do Império eram atribuídas aos
políticos339.
Na década de 1930, a historiografia adquire consciência da questão
social, incorporando ideias socialistas e marxistas, surgindo as obras de Caio Prado Júnior, J.
F. Normano, Nelson Werneck Sodré e Leôncio Basbam, todos deixando de focar o indivíduo
e seus atos para explicar as transformações, mas analisando objetivamente as estruturas
sociais340.
Tal década é vista como aquela em que ocorre uma polarização
ideológica entre esquerda e direita, comunistas e integralistas. Estes, compondo a Ação
Integralista Brasileira, buscavam inspiração em ideais fascistas, embora, no geral, abdicando
de perspectivas racistas e expansionistas, e esperavam construir um país disciplinado e com
pouca tolerância com a esquerda341.
Os comunistas, por seu turno, liderados pelo Partido Comunista
Brasileiro, formado ainda na década de 1920, organizaram-se na Aliança Nacional
Libertadora e ameaçaram um golpe em 1935342. Desde 1926 o PCB delimitara as linhas gerais
de sua interpretação do país, com a publicação de artigo de Fritz Mayer, intitulado Agrarismo
e industrialismo, no qual inaugura uma leitura dual da realidade, mescla de feudalismo
agrário predominante e industrialismo capitalista que deve, num primeiro momento, ser
apoiado pelos trabalhadores: O fazendeiro de café, no Sul, como o senhor de engenho, no Norte, é o senhor feudal. O senhor feudal implica a existência do servo. O servo é o colono sulista das fazendas de café, é o trabalhador da enxada dos engenhos nortistas. A organização social proveniente daí é o feudalismo na cumeira e a servidão nos alicerces. Idade Média. A consequência religiosa é o catolicismo ... E a consequência psicológica: no alto, o orgulho, a mentalidade aristocrática, feudal; em baixo, a humildade. (...) São dois mundos que se chocam: o feudalismo e o industrialismo. O industrialismo despedaçará o feudalismo. E o comunismo despedaçará o industrialismo burguês.343
Olympio, 1949, p. 344. 338 COSTA, Emília Viotti da. Ob. cit., p.128. 339 Idem, p. 405. 340 Idem, p. 437. 341 SKIDMORE, Thomas E. Ob. cit., p. 159. 342 Idem, p. 158. 343 In: CARONE, Edgard. O PCB vol. 1 - 1922 a 1943. São Paulo: DIFEL, 1982, pp. 256-263.
121
A polarização ocorrida a partir de 1930 leva a uma surpreendente tomada
de consciência de intelectuais e artistas, “numa radicalização que antes era quase inexistente”,
nas palavras de Antonio Candido344. Conforme o crítico, até aqueles que não se definiam ou
não tinham clara consciência do processo manifestavam o ambiente político em sua obra: Mesmo quando não ocorria esta definição extrema, e mesmo quando os intelectuais não tinham consciência clara dos matizes ideológicos, houve penetração difusa das preocupações sociais e religiosas nos textos, como viria a ocorrer de novo nos nossos dias em termos diversos e de maior intensidade345.
Não é de surpreender, assim, que a questão social penetre nas comédias
encenadas comercialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, por vezes de um modo discreto
e com cores próprias. Podemos citar um primeiro exemplo na peça O Castagnaro da Festa,
de Oduvaldo Vianna346, encenada em 1928, em São Paulo. Retratando pessoas simples, sem
instrução, com um falar estrangeirado, morando em um cortiço paulistano, surge a história de
uma menina pobre que não consegue se casar com o rapaz rico, invertendo-se o tradicional
final feliz das comédias. Conforme Cafezeiro e Gadelha, O Castagnaro, sua filha e a mulher tentam sair do cortiço para satisfazer interesses da família do futuro genro, mas, desprovidos de qualquer elemento para se manterem numa situação melhor, são devolvidos ao cortiço por uma injusta e dolorosa engrenagem que eles desconhecem.347
A peça acima, todavia, passa despercebida quando se fala em teatro
social. Sábato Magaldi e Maria Thereza Vargas348 afirmam que Jayme Costa o teria lançado,
no início de 1932, “com enorme alarde”, ao encenar a peça Andaime, de Paulo Torres,
também na cidade de São Paulo. Mas Deus lhe Pague, de Joracy Camargo, encenada por
Procópio Ferreira em 1933, transformou-se no grande marco, sendo, inclusive, talvez ainda
hoje, a peça mais representada do teatro brasileiro349.
A comédia350 inicia-se com o diálogo entre dois personagens, o Mendigo
e o Outro, no qual o primeiro critica a propriedade privada, o Estado, a legislação, o trabalho
344 SOUZA, Antonio Candido de Mello e. A Revolução de 1930 e a Cultura. In: SOUZA, Antonio Candido de Mello e. A Educação pela Noite e Outros Ensaios. 3ª edição. São Paulo: Ed. Ática, 2000, p. 182. 345 Idem, ibidem, p. 188. 346 In: Revista de Teatro SBAT, n. 361, janeiro e fevereiro de 1968, p. 41. 347 CAFEZEIRO, Edwaldo e GADELHA, Carmem. Ob. Cit., p. 470. 348 MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo. 2ª edição. São Paulo: SENAC, 2001, p. 127. 349 Recontamos a história da peça social, nos palcos do Rio de Janeiro, em nossa tese: FERREIRA, Adriano de Assis. Teatro ligeiro cômico no Rio de Janeiro: a década de 1930. São Paulo: FFLCH-USP, tese de doutorado, 2010. 350 CAMARGO, Joracy. Deus lhe pague - Figueira do inferno - Um corpo de luz. Rio de Janeiro:
122
assalariado e afirma que, após desistir de mudar o mundo, resolveu pedir o que é seu. Ao
tornar-se pedinte, ele teria enriquecido, vingando-se da sociedade. Conta, então, sua história,
afirmando que fora roubado pelo antigo patrão, que lhe levara os desenhos de uma invenção, e
ainda fora preso ao tentar recuperá-los. Depois, relata os obstáculos a seu relacionamento com
uma moça, Nancy, que são vencidos no final.
Marabá, também de Joracy Camargo, é encenada por Procópio em 1934,
no Rio de Janeiro, numa montagem grandiosa. Retratando um grupo de milionários que, após
serem aprisionados por indígenas, libertam-se, escravizam-nos e passam a explorá-los, o
último quadro seria marcado por uma revolução social promovida pelos explorados. Tal teor
foi excessivo para o teatro comercial: a peça foi censurada e saiu de cartaz351.
Em 1938, passada a comoção inicial causada pela peça social, e
arrefecidos os ânimos comunistas com a ilegalidade do PCB e o Golpe de 1937, encena-se a
comédia Fora da Vida (cujo título seria alterado para Juízo Final)352, do mesmo Joracy
Camargo. Sem ser uma peça social com a contundência das outras, ela interessa-nos por
conter um pouco desse ambiente de radicalização ideológica da década e, sobretudo, dentro da
linha das demais obras analisadas, por trazer personagem que é um Ministro do Supremo,
iniciando-se no dia de sua aposentadoria.
No nosso itinerário, deparamo-nos com juízes caracterizados como
moralmente fracos, assumindo um comportamento desleixado ou comprometido em demasia
com os grupos poderosos locais. Como consequência, o desempenho das funções judiciais foi
comprometido, havendo o desrespeito à legalidade e o favorecimento pessoal. Vimos ainda a
busca pelo apadrinhamento de um Senador para obtenção de um cargo de Ministro do
Supremo promovida por um mero rábula que endividou a família por se deixar iludir ante tal
perspectiva.
A peça ora analisada deixará afastada a questão do clientelismo, sempre
presente nas demais. Não ridicularizará um personagem a partir da faceta mais visível desse
fenômeno, que é a elevação dos interesses particulares a um patamar superior aos interesses
públicos. Ao contrário: o personagem retratado, seja por que meio foi, já percorreu todas as
instâncias do Poder Judiciário, está se aposentando, não precisa de qualquer favor e é
caracterizado como alguém moralmente íntegro, dedicando a vida a seu trabalho.
Edições de Ouro, s.d.. 351 Temos conhecimento apenas das críticas à peça publicadas em jornais da época. Parece que seu texto está perdido. 352 CAMARGO, Joracy. Juízo Final. In: Revista de Teatro, n. 348. Rio de Janeiro: SBAT, 1965, p. 27.
123
Salientamos que a comédia aproxima-se das comédias realistas, ao não
fazer do riso seu elemento fundamental. Sob outro ponto de vista, também se aproxima dos
dramas psicológicos, pois seu foco principal é um dilema ético que se estabelecerá na
consciência do protagonista. Mas, acima de tudo, filia-se ao tipo de peça a que as peças
sociais já se filiavam, a peça de tese, bastante em voga no teatro comercial da década: A peça de tese ou de problema expõe, através da cena, questões morais ou políticas sentidas como atuais. A dialética das personagens e de seus pontos de vista oferece o instrumento ideal para encarnar ideias controvertidas. Nada obriga o autor a nomear um porta-voz de sua posição pessoal, nem mesmo uma personagem próxima dele. Na maior parte do tempo, a fábula e o peso relativo dos caracteres informam a respeito da possível solução do problema exposto.353
Toda a peça transcorre no mesmo cenário, um ambiente privado, o
escritório da residência do magistrado, repleto de livros de direito, autos de processos, a mesa
e uma estatueta da deusa Justiça.
O primeiro ato é dividido em dois quadros. No primeiro deles, Santinha,
esposa do Ministro, e Francisco, seu empregado, conversam no escritório. Revelam que
Luciano (o magistrado) não gosta que arrumem seus papeis, pois a aparente desordem
corresponde “a diversos casos que estão na mais perfeita ordem, na sua cabeça”, que possui
uma “memória prodigiosa”354. Trata-se de um funcionário envolvido por seu trabalho, cuja
aposentadoria desperta especulações na esposa: Santinha - Acho que ele nunca mais tratará disso. O meu pobre velho lida com processos, autos, acórdãos, há trinta e oito anos. Nesta casa nunca se tratou de outra coisa. Quando nos casamos ele já era promotor público. Francisco - Começou do princípio, e acabou Ministro do Supremo Tribunal! (...) Santinha - Hoje, terminada a festa, depois de se retirarem os seus amigos, procurarei convencê-lo de que deve esquecer todas as preocupações de juristas, para dedicar-se a uma vida de distrações, bem oposta à que ele tem vivido.355
O criado, contente, afirma que o patrão se aposentará “ganhando o
mesmo ordenado que ganhava!”, podendo ter um pouco de tranquilidade. A esposa concorda
e justifica: Santinha - Certamente. Para isso, trabalhou muito. Contribuiu bastante para que a sociedade vivesse tranquila.356
Eis o ponto de partida da peça: um Ministro do Supremo que se dedicou
durante trinta e oito anos, de corpo e alma, ao direito (ao Poder Judiciário e ao Ministério
353 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 282. 354 CAMARGO, Joracy. Ob. cit., p. 29. 355 Idem, p. 29. 356 Idem, p. 30.
124
Público), trabalhando pela tranquilidade da sociedade, agora merece ter uma aposentadoria
tranquila.
Tal pressuposto logo começa a ser desmentido. Carlinhos, filho do casal,
entra assustado afirmando que o pai estava parado há vinte minutos no jardim. Após uma
curta solenidade em que ele foi levado pelos colegas para fora do Tribunal, ficou calado no
trajeto até sua casa e, quando chegou, não a reconheceu, recusando-se a entrar357.
Santinha vai ao jardim e traz o marido: Santinha (entrando com Luciano, que é conduzido por ela como se ele fosse cego) - Ora, meu velho... Não há razão para isso... Como é que se pode estranhar uma casa onde se mora há quase vinte anos?... Luciano (sorrindo) - Eu mesmo não sei explicar. Tive a impressão de que estava entrando em casa alheia... (sentando-se) E isto é um crime que já puni, talvez, centenas de vezes.358
Luciano explica que, ao entrar sem trazer a cabeça “cheia de autos,
sentenças e textos de leis”, prestou atenção aos detalhes da casa, estranhando-a. Só não
estranhava aquele seu gabinete de trabalho. Afirma que se impusera um regime de trabalho
tão árduo, “perfeitamente integrado na vida jurídica”, que nunca pensara em outra vida359.
Compara-se, então a uma máquina programada para fazer apenas uma coisa, a justiça: Luciano - (...) Para que vocês admitam e compreendam as consequências dessa mudança brusca na minha vida, bastará que eu diga que, constando a existência humana de uma variedade enorme de assuntos, há muito que, aos meus olhos, só se apresentava o aspecto jurídico da vida. Passei anos lidando apenas com as infelicidades humanas. Longo tempo vivi tomando conhecimento dos mais variados e imprevistos conflitos sociais, provocados por todos os sentimentos humanos e todos os desequilíbrios do homem, para enquadrá-los nos textos das leis, e descobrir-lhes uma solução dentro dos princípios estabelecidos nessas mesmas leis. A preocupação constante de fazer justiça, dando razão a uns e negando-a a outros, condenando ou absolvendo em nome de uma sociedade, a mesma que gera os conflitos e nos impõe os meios de resolvê-los, é tarefa cujo desempenho honesto anula a personalidade de quem a cumpre. Tenho hoje a mesma sensação que teria um sentenciado posto em liberdade.360
A fala do recém-aposentado revela indícios de dilemas que se apoderam
de seus pensamentos:
1. Ele afirma que há muito tempo só conseguia enxergar o aspecto jurídico entre a
“variedade enorme de assuntos” que compõe a existência humana;
2. Confessa que tomou conhecimento “dos mais variados e imprevistos conflitos sociais”
“para enquadrá-los nos textos da lei” e solucioná-los conforme os princípios legais;
357 Idem, p. 30. 358 Idem, p. 30. 359 Idem, p. 31. 360 Idem, p. 31.
125
3. Por fim, ele condenaria e absolveria em nome de uma sociedade que gera os conflitos
e impõe os meios de solucioná-los, negando sua personalidade nesse processo.
Por enquanto, deixa claro que sempre agiu dentro dos estritos limites da
legalidade, conforme o raciocínio jurídico, seja para tipificar os conflitos, seja para resolvê-
los. Mas, agora que não precisa decidi-los, começa a perceber que a realidade é mais ampla e
composta de outras perspectivas. Então faz a pergunta que o atormentará: “Teria eu sido
justo?”361: Santinha - Sua consciência deve estar tranquila... Luciano - Tenho a certeza de que nunca estive fora da lei. Em tantos anos de magistratura, nunca me deixei perturbar por nenhum fator estranho aos deveres de minhas funções. Nenhum fator humano... Santinha - É o quanto basta. Luciano - E as leis, que tão rigorosamente apliquei e fiz respeitar? Seriam justas? Santinha - Não é a você que compete examinar isso. Luciano - No exercício de minhas funções, não. Mas agora que o homem se coloca acima do juiz... não sei... Santinha - As leis são sempre justas. Luciano - E os processos, os autos, as provas, seriam sempre perfeitas?... Teriam sido sempre honestos todos aqueles que prepararam as bases de minhas sentenças?362
Ele afirma que precisará se absolver de suas possíveis culpas, revendo
todos os processos em que atuou. Só então poderia descansar e entrar efetivamente na vida,
pois, fazendo uma referência a um dos títulos da peça, estaria vivendo “fora da vida” em
virtude de sua dedicação ao direito363. Termina, assim, o primeiro quadro.
Como de costume, as primeiras cenas foram utilizadas pelo comediante
para apresentar os personagens e os conflitos. No caso, o conflito dá-se pela expectativa de
Santinha e Carlinhos de que Luciano, com a aposentadoria, descanse e deixe de se preocupar
com questões jurídicas, frustrada pela crise de consciência do magistrado, que deseja saber se,
mesmo tendo sido honesto, íntegro e se mantido fiel à legalidade, não cometeu nenhuma
injustiça.
Por se tratar de uma peça de tese, podemos considerá-la apresentada: a
legalidade é justa? Destacamos que a caracterização do personagem, exageradamente
dedicado à e absorvido pela função pública, afasta qualquer possibilidade de uma abordagem
à questão que culpe o indivíduo ou seu caráter. Se ele chegou a Ministro do Supremo em
razão de apadrinhamentos e favores, ponto não tratado pela peça, sua postura foi
suficientemente idônea para justificar, por méritos próprios, a posição alcançada.
361 Idem, p. 32. 362 Idem, p. 32. 363 Idem, p. 33.
126
O segundo quadro mostra o escritório de Luciano ainda repleto de livros
em desordem e volumes de processos abertos espalhados pelo chão. Às três horas da manhã
ele está acordado, lendo os autos de um processo e tomando notas. Santinha entra em cena e
reclama que há três meses ele passaria as noites em claro364. Ele, então, diz que se arrepende
de ter sido juiz e considera-se um grande criminoso: Santinha - Mas você apenas cumpriu as leis, Luciano. Luciano - Inconscientemente. Os legisladores, no momento de legislar, consideram-se perfeitos e impecáveis. E como não podem, sequer, pensar em que um dia possam vir a ser vítimas das próprias leis, aceitam-nas como sábias e definitivas. E os juízes, que se consideram ainda mais perfeitos, aceitam também essas leis, e baseiam suas sentenças sobre afirmações alheias, sem conhecimento direto e pessoal do criminoso, do crime e das causas. Um réu, embora defendido por um advogado, é sempre um homem indefeso, cuja voz o julgador nunca pôde ouvir. A “fé pública”, conferida aos homens da Justiça, dá-lhes condições irrevogáveis de infalibilidade. Com que direito, com que razão, com que justiça, alguns homens, humanos como todos, podem julgar os seus semelhantes, se as leis não podem prever todas as hipóteses? É um crime julgar-se apenas com as regras legais de prova!365
O desenvolvimento da tese de que a legalidade é injusta ganha um
argumento fundamental: a verdade jurídica, na qual se baseiam as decisões, distancia-se de
uma verdade real. Os julgamentos seriam feitos “sem conhecimento direto e pessoal do
criminoso, do crime e das causas”, baseados apenas nas “regras legais de prova”, que
afastariam a verdade processual da verdade que deveria ser buscada pelo juiz.
Em sendo assim, ele afirma à esposa que começará uma peregrinação
pelas casas e lugares onde vivem as famílias de alguns réus dos processos que julgou e que o
impressionaram. Quer ver como estão essas pessoas “de moral abatida, sem forças para nada,
gente amordaçada pela Justiça”366. Ainda que descubra que ninguém foi condenado
inocentemente, que não há qualquer erro judicial, espera encontrar erros mais graves: Luciano - (...) Mas tenho a certeza de que em todos os processos há erros de caráter social, erros de caráter científico, erros graves de caráter econômico. Tenho a certeza de que a sociedade está privada de elementos úteis, e de que as penitenciárias estão repletas de indivíduos que deveriam estar em hospitais. A justiça precisa mais de médicos que de bachareis. A maioria dos crimes são casos clínicos. Os outros têm causas nas questões econômicas. Temos vivido a esperar que os homens cometam crimes para encarcerá-los. A cargo das instituições policiais. E já se pensa em máquinas para julgar os homens...367
A conversa é interrompida pela chegada de Carlinhos, que estava na rua,
divertindo-se, pedindo para falar apenas com a mãe. Ele conta que fora levado, sem saber,
para uma casa de jogo. Subitamente, a polícia invadiu o local e os donos da casa distribuíram
364 Idem, p. 33. 365 Idem, pp. 33-34. 366 Idem, p. 34. 367 Idem, p. 35.
127
armas para que se defendessem em meio ao tiroteio que começou. Ele confessa ter disparado
o revólver para o ar, por ter ficado alucinado de medo, e terminado preso, pois duas pessoas
morreram (um policial e uma pessoa que jogava na casa).
Graças a um favor do delegado, que era “amigo” do pai de Carlinhos, ele
pôde ir para casa contar tudo à mãe, sob a condição de voltar à delegacia para lavratura do
flagrante. Diz que não quer contar nada a Luciano e espera provar que não atirou efetivamente
em qualquer pessoa. O pai, todavia, entra logo em seguida, ficando no ar a dúvida se ouvira a
conversa, aumentada pelo quiproquó: Luciano (monologando) - Amanhã irei vê-lo na penitenciária... Santinha (assustadíssima) - Quem?! Luciano - O rapaz que cometeu um crime na casa de jogo!368
Toda a crise de consciência de Luciano materializa-se no caso
protagonizado por seu filho. A verdade jurídica é a verdade das provas judiciais: uma arma
disparada na mão de uma pessoa e a morte de um policial é evidência forte de que o portador
pode ser o assassino. A dificuldade será Carlinhos provar que sua história é verdadeira e ele
apenas atirou para o alto.
Duas observações precisam ser feitas. Primeira, a crise de Luciano é mais
profunda do que a situação criada pelo autor da peça envolvendo seu filho. Trata-se de um
caso em que o réu é pessoa bem nascida, sem sofrer qualquer distúrbio clínico, nem ter sido
vitimado por uma má distribuição de riqueza na sociedade. A verdade do seu caso, no
máximo, é que havia um rapaz, filho de Ministro do Supremo, numa casa clandestina de jogo,
assumindo os riscos do que pudesse advir disso.
Segunda observação, por mais que o autor tenha tentado registrar apenas
o funcionamento normal das instituições judiciárias, não conseguiu fugir do favor e das
relações pessoais norteando a conduta dos agentes públicos. O delegado autorizou a saída
temporária de Carlinhos da delegacia por ser “amigo” de Luciano369. A objetividade da lei foi
deixada momentaneamente de lado.
O primeiro quadro do segundo ato inicia-se com a entrada de Carmen,
noiva de Carlinhos, trazendo a notícia de que ele fora condenado a um ano de prisão. Luciano
continuaria visitando as famílias de todos os criminosos que julgara e pouco iria visitar o
filho. Santinha começa a concordar com a tese do marido: Santinha - Como Luciano tem razão!... Nós é que estamos errados!... Como são
368 Idem, p. 37. 369 Já refletimos sobre o significado da palavra “amigo” nas relações de clientela, acompanhado raciocínio de Richard Graham: indica uma ligação de troca de favores.
128
inconscientes os homens que condenam sem provas provadas!... Carmen - Li, três vezes, a sentença, d. Santinha. É longa. Parece que o Juiz, ao condenar, queria justificar-se perante o pai de Carlinhos. São tantos os argumentos que emprega, que cheguei a pensar numa condenação maior. Depois, cita uma infinidade de autores, fazendo literatura, dando demonstrações de erudição como se estivesse defendendo uma tese em concurso. Santinha - Eles conhecem mais os códigos do que os réus e os crimes. Carmen (continuando) - Por fim, não sei com que intuito, cita acórdãos assinados pelo Dr. Luciano... Santinha - Talvez para evitar que o meu pobre velho se revolte. Carmen (continuando) - Depois, formula uma defesa hipócrita de Carlinhos, para condená-lo, por desclassificações, a um ano de prisão.370
Santinha, revelando preocupações de mãe, pergunta se Carmen ainda se
casará com ele. Ela, embora dando a entender que sim, responde que só da aflição de mãe
poderia surgir uma pergunta dessas371. Em seguida, afirma que o juiz não podia absolver
Carlinhos por ter de ficar preso aos autos, mas estaria convencido de sua inocência,
encontrando uma solução comodista: um ano, com direito a sursis372. E faz reflexões que
reforçam a crítica à verdade judicial, dizendo que o processo fora preparado pelos advogados
de acusação: Carmen (exaltando) - (...) As provas dos autos são falsas, forjadas. O destino dos réus é trabalhado nos corredores, nos cartórios e nas calçadas do Tribunal. Quando o juiz vai julgar, só tem diante de si os autos, que se avolumam ao sabor de mil interesses contrários aos da verdadeira Justiça, desde a corrupção até a simples vaidade de um promotor que não quer passar pela vergonha de “perder” um processo. (noutro tom) D. Santinha vou abandonar a Faculdade de Direito. E Carlinhos, também, não se formará na ciência da mentira e da confusão.373
Sua última colocação é direta: o direito é “ciência da mentira e da
confusão”. Luciano entra em seguida, absorto por suas investigações. Relata ter encontrado
um dos réus que mais o preocupa, em um “botequim sórdido”, ébrio e miserável. Era um
jovem que completara a maioridade, de boa família, com bons antecedentes, mas que
cometera um erro e fora condenado por Luciano: Luciano - (...) O jovem que pretendi reintegrar no seio da sociedade, como elemento útil ao bem comum, vive hoje à margem da vida, colado às paredes, como um cartaz vivo de propaganda subversiva... (subitamente) Será esse o destino de Carlinhos? 374
Santinha e Carmen, então, contam que Carlinhos fora condenado, com
direito a sursis. Luciano fica indignado, pois deseja a absolvição do filho. Afirma que ele será
370 CAMARGO, Joracy. Ob. cit., p. 38. 371 Idem, p. 38. 372 Idem, p. 38. 373 Idem, p. 38. 374 Idem, p. 39.
129
marcado pela sociedade, nunca mais sendo aceito, pois o sursis seria um “instituto nefasto,
que ilude a vítima com um falso perdão, para castigá-lo mais ainda”375.
Santinha se revolta com o pessimismo do marido, determinando um fim
às “revisões de processos” e que ele redija o pedido de sursis, ao que ele obedece
mecanicamente. Quanto às “revisões”, pede para tratar de um último caso, que sintetizaria
todos os demais, relativo ao rapaz que encontrara no bar, a quem chamaria para vir a sua casa.
Termina o quadro.
Na sequência, iniciando-se o segundo quadro do ato, Santinha conta a
Luciano que o filho acabara de ser solto. Ele lamenta o destino de Carlinhos, comparando-o
ao réu que encontrara no bar e viveria em uma “pocilga”, com uma mulher lavando trapos e
filhos esquálidos e lamenta o destino do juiz, comparando-o consigo, convencido de estar
certo por agir conforme a legalidade. Também lamenta que os juízes não conheçam
pessoalmente os réus, como ele está conhecendo aquele a quem condenara outrora376.
Após o casal sair, entra Carlinhos, acompanhado de Gilberto, o réu
aparentemente injustiçado por Luciano. O primeiro afirma que seu pai trabalhava noites em
claro, debruçado sobre os autos dos processos, buscando nos textos a melhor sentença, nunca
se transformando em um juiz “de fichário”, mas estudando cada caso como se fosse único377.
Gilberto admite que aqueles condenados de modo justo não culpam seus juízes. Mas aqueles
que se sentem injustiçados, procuram a vingança e tramam o assassinato do responsável pela
injustiça378.
Então Carlinhos revela que está saindo da prisão: Gilberto (paralisado e espantado) - Não!!! Coitado de seu pai! (noutro tom) Foi absolvido? Carlos - Condenado, com sursis. Gilberto - E aceitou esse “favor” da lei? Carlos - Aceitei, para ser posto em liberdade. Gilberto - Não faça isso, rapaz! O sursis é a pior condenação que os juristas inventaram. Você foi marcado a fogo, na testa, para toda a vida. A liberdade que você conquistou é a liberdade sem honra. É a liberdade de fazer tudo o que os outros, generosamente, consentirem. (...) 379
Podemos entender a crítica ao sursis como um argumento ligado ao
argumento central, de que a verdade judicial se distancia da verdade real, propiciando
decisões injustas pelo direito. A ideia de “favor da lei” deve ser compreendida no sentido de
375 Idem, p. 39. 376 Idem, p. 41. 377 Idem, pp. 41-42. 378 Idem, p. 42. 379 Idem, p. 42.
130
que o juiz “lava suas mãos” ao condenar e libertar, considerando o assunto resolvido aos seus
olhos, mas fechando-os para as consequências sociais desse ato. Dentro do formalismo
processual, o criminoso foi devolvido para seu ambiente original, decretando-se o silêncio
quanto à condenação; mas tal silêncio não seria efetivo, tornando-se pública a condição do
condenado. Trata-se de uma libertação meramente processual, pois a sociedade mantém a
condenação e leva a um aprisionamento do criminoso em sua vida, que se torna limitada e
incompleta.
Carlinhos confessa que aceitou o sursis porque foi vencido pela cegueira
da Justiça, tendo esgotado todas suas forças. Confessa que é culpado por ter entrado em uma
casa de jogo, embora não soubesse exatamente o que fazia. Gilberto, então, diz que ele deve
suicidar-se, adivinhando que foi estuprado na cadeia. Novamente a questão da verdade é
trazida: tal estupro nunca seria confessado em público, sendo Carlinhos obrigado, por
vergonha, a dizer que foi muito bem tratado pela Justiça. Por fim, ainda o aconselha a não se
casar com Carmen, mudando o destino dela para pior380.
Luciano entra em seguida e pergunta ao filho porque demorara tanto a
sair. Carlinhos afirma que um companheiro de cela se apaixonara por ele e o ameaçara matar
se saísse antes dele. Depois, o criminoso matou outro preso, para mostrar do que era capaz
caso Carlinhos não cedesse a seus instintos. Por fim, disse que irá atrás dele e vai cumprir a
ameaça de matá-lo. O homicídio teria sido registrado como suicídio no inquérito policial381.
Logo após o filho sair, chega Carmen, anunciando a Luciano que rompia
o noivado, dizendo que não resistira à realidade insuportável382. Trata-se de mais uma
consequência da condenação mediante sursis de Carlinhos, sendo, como afirmado, solto pelo
direito, porém permanecendo aprisionado pela sociedade, que lhe aplica muitas penas.
Finalmente, então, Luciano e Gilberto podem conversar. Este conta que
houve um caso de falsificação de cheques que levantou vários suspeitos. Como ele era
jornalista, trabalhava em um jornal de oposição, e atacara em alguns momentos o delegado
que presidia o inquérito, foi acusado, por vingança. Tal delegado encomendou uma prova
pericial falsa, baseada em um exame grafológico que adotara um método questionável383.
O advogado de Gilberto, por seu lado, anexou aos autos uma outra prova
pericial grafológica, que refutou, ponto a ponto, o laudo encomendado. Porém, o Procurador
380 Idem, p. 43. 381 Idem, p. 43. 382 Idem, p. 44. 383 Idem, pp. 44-45.
131
Criminal era seu rival em um caso amoroso, e aliou-se ao delegado, retirando o laudo da
defesa dos autos. Para seu azar, um juiz substituto assumiu o processo (Luciano) e, motivado
pela melhor das intenções, aceitou fazer um “favor” ao réu, condenando-o a uma pena que
dava direito a sursis. Mas tal condenação teria matado seus pais de desgosto e o inutilizado
para a vida social384.
Exausto, Luciano, que pedia para saber se de fato errara, cai no sono e
Gilberto se vai, terminando o ato. De suas palavras, podemos perceber agora que a verdade
processual é sujeita a manipulações, podendo ser moldada conforme interesses que fogem dos
princípios internos do direito, levando então a uma manipulação da legalidade. Seu caso
revela que razões políticas (trabalhava em jornal de oposição) ou razões pessoais (o delegado
e o Procurador Criminal) podem motivar a alteração dos autos e induzir juízes preocupados
com o formalismo ao erro, ainda que julgando dentro dos limites da lei.
O terceiro ato, composto por quadro único, precisa trazer um termo para
os dois conflitos da peça, que demonstram a tese suscitada pelo autor: a crise de consciência
do magistrado e o caso de Carlinhos. Santinha desperta Luciano, que continuava dormindo.
Ele conta que Carmen desistiu do casamento e insiste na necessidade de recusar o sursis,
dizendo que ama o filho, não querendo que seja “infamado pela Justiça”: Santinha - Nesse caso, quem não o ama sou eu? Luciano - Não é isso. Há muitas formas de amar. Você ama apenas com o coração. Santinha - É com o coração que se deve amar. Luciano - Mas não é com o coração que os homens são julgados. As leis são feitas friamente, por homens que servem a uma sociedade fundada na injustiça.385
Mas Santinha insiste em não aceitar a “luta” pela absolvição do filho nem
o abandono da Carmen, saindo para telefonar a ela, inocuamente. Temos, então, uma fala
conclusiva de Luciano, segurando a estátua da deusa Justiça em suas mãos: Luciano - (...) É a ti que eu devo dizer tudo o que os outros acham ridículo... Tu é o símbolo de uma Justiça morta! Vendaram os teus olhos, para que não saibas onde estás sendo conduzida. Se tu abrisses os olhos para o mundo, ficarias horrorizada, diante das injustiças cometidas em teu nome! Se tu pudesses ver em que estado está o mundo por tua causa, se pudesses ver como sofre a humanidade, como morrer os homens, aos milhões, diante de tua inconsciente impassividade, tu sucumbirias de dor, e nos estertores da tua agonia ainda poderias ver e ouvir as gargalhadas sarcásticas dos teus próprios traidores! Entretanto, tu devias saber que os cegos só podem confiar na bondade dos homens, e que tu serias conduzida por homens que não têm o direito de ser bons, porque devem cumprir cegamente leis injustas, que são contra os fracos, por imposição dos fortes... Tua cegueira crônica permitiu que os juízes se convencessem da infalibilidade de absurdos axiomas do bolorento Direito Romano: “coisa julgada, se considera certa”. Admites maior absurdo? Não te envergonhas ao saber dos mais tenebrosos erros judiciários? Por acaso não te comoveu, na época, o terrível martírio
384 Idem, p. 45. 385 Idem, p. 46.
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daquele pobre oficial do exército francês, infamado pela Justiça, sofrendo horrores na Ilha do Diabo? Apenas para não desmoralizar-se o Exército Maior? Por acaso acreditaste ingenuamente na famosa frase de Cícero: cedant arma toga? Que as armas cedam à toga? Ainda não sabes que crimes iguais têm consequências diversas: a uns fazem reis, a outros mandam à forca? De que serviram as religiões, as forças armadas, as forcas e as cadeiras elétricas, se o mundo é hoje um campo de concentração? De que serviu o princípio da igualdade perante a lei, ou perante Deus. Se os teus servidores temem os poderosos, e se as Igrejas aderem aos poderosos, para sobreviver? De que serviu a instituição do Estado, se a sociedade está dividida em classes, e o governo é privilégio de uma só classe? Santa ingenuidade a tua! Tu, que és a virtude de dar a cada um o que lhe pertence, não sabes que tudo se nega, em teu nome, a quem apenas pleiteia o direito de viver? Vamos! Retira a venda dos olhos, e fulmina com o teu olhar os teus próprios traidores!386
A peça termina com uma última conversa entre Luciano e Gilberto. O
magistrado pede que ele lhe mostre uma carta, que comprovaria sua inocência. Mas Gilberto,
após lembrar que a única prova que o condenou era o laudo pericial forjado, retira tal carta do
bolso e, sob o olhar desesperado de Luciano, a queima, gritando “justiça!”387. Não há a
absolvição ao magistrado, que permanece com a sensação de culpa por ter confiado em uma
legalidade injusta, independentemente de seu caráter irrepreensível.
O texto que possuímos encerra-se assim. Corresponde à versão
reencenada por Procópio Ferreira, em 1948, na cidade de Campinas, promovendo-se na
sequência um debate entre magistrados da cidade. É interessante constatar que, na ocasião,
considerou-se que a tese defendida pelo autor era a de que o sursis era um instituto “cruel e
ineficiente”, questionada pelos juízes388. O ambiente ideológico da década anterior já passara
e as críticas ao funcionamento injusto do Poder Judiciário não foram notadas.
Em 1938, porém, o final parece ter sido outro, talvez por pressão do
Serviço Nacional de Teatro, que então subvencionava companhias teatrais, fiscalizando seu
repertório: (...) O magistrado estende a mão para o documento mas o outro acende rapidamente um fósforo, queima o papel revelador. E o Dr. Luciano fica mais atormentado que nunca e como nunca vocifera contra a justiça atual. O seu caso caminha para o completo irremediável desespero. Felizmente, chega o dia 10 de novembro. E entrando em casa, com os jornais que narram os acontecimentos do dia, o Dr. Luciano sente e proclama que a boa, a verdadeira justiça se vai implantar no país e com ela a perfeita felicidade.389
Este final, entusiasmado com o início do Estado Novo, não foi mantido
posteriormente pelo autor, encerrando-se a peça no ponto destacado acima. Parece, assim, ter
386 Idem, p. 47. 387 Idem, p. 48. 388 Texto de apresentação à peça. In: Revista de Teatro, n. 348. Rio de Janeiro: SBAT, 1965, p. 27. 389 Artigo publicado no Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, em 9/7/1938, no dia seguinte ao da estreia da peça.
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sido esta a última escolha do autor, acatada em 1965, quando a peça é publicada,
curiosamente no início de outra ditadura.
Devemos, ainda, tecer algumas considerações sobre a comédia.
Conforme procuramos demonstrar, o autor apresentou a citada tese de que a legalidade é
injusta. Ao buscar defendê-la, um argumento ameaçou surgir: o recorte da realidade efetuado
pelo direito não enxergaria as causas clínicas e as causas econômicas do crime, culpando o
criminoso mas não a sociedade que não trata seus doentes e não distribui a riqueza.
Todavia, o autor optou por outro argumento: a verdade judicial permite
ao juiz desenvolver uma fundamentação nos estritos limites das leis e dos princípios do
direito, mas o impede de ver a verdade real que poderia absolver os réus. Com a opção
realizada, os dois casos trazidos, recorrendo ao sursis, tornam-se plausíveis para demonstrá-
lo, embora não demonstrem o primeiro argumento.
Convém destacar, todavia, que os condenados apresentados como
exemplo são oriundos da classe média (Gilberto) e, possivelmente, da classe alta (Carlinhos).
Tal condição enfraquece a verossimilhança da peça, pois o peso de uma condenação judicial a
ambos não seria tão devastador quanto o apresentado pelo autor. Aliás, o exagero é notado
pelo cronista que acompanhou sua estreia no Rio de Janeiro, em 1938, embora ele não
perceba a condição social dos envolvidos: Vai pelos antros da miséria à procura dos indivíduos a quem condenou e por isso se tornaram banidos, repudiados, desgraçados – como se não estivéssemos vendo, por assim dizer, todos os dias os que cumpriram a sua pena voltar a trabalhar sossegadamente e a viver, tanto quanto possível, honradamente.390
A injustiça é reduzida, assim, a uma verdade presa aos limites dos autos
judiciais, que destoa de uma verdade que absolveria os acusados. O exemplo de Gilberto
mostra que essa verdade processual foi voluntariamente produzida para prejudicá-lo, em razão
de suas posições políticas ou de interesses pessoais de autoridades afetadas pelo exercício de
sua profissão jornalística, embora tais razões não tenham sido suficientemente desenvolvidas.
Nesse caso, a injustiça não decorreu do funcionamento objetivo das
estruturas jurídicas, mas da atuação subjetiva de duas autoridades, um delegado e um
procurador. Ora, tais autoridades, embora superficialmente descritas por Gilberto, aparentam
ser funcionários públicos de caráter duvidoso. Pois bem, Joracy Camargo aproxima-se da
perspectiva de todos os demais comediantes analisados, por mais que tente dela escapar.
390 Artigo publicado no Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, em 9/7/1938, no dia seguinte ao da estreia da peça.
134
O exemplo de Carlinhos, embora afete de modo pessoal o magistrado,
reforçando sua nova e crítica visão do direito, é deficiente por um outro motivo, além daquele
que decorre da inverossimilhança. A verdade produzida nos autos correspondeu aos fatos
narrados pelo jovem. Ele não foi acusado injustamente pela morte de alguém, mas foi acusado
justamente por estar em uma casa de jogo e, possivelmente, portando arma. A concessão do
sursis não foi o “favor” de um juiz que não teria investigado a fundo os contornos do fato.
Notamos, por fim, que o autor pretende demonstrar a injustiça da
legalidade sem efetivamente apresentar no palco aqueles que poderiam ser considerados os
verdadeiros injustiçados: os membros das chamadas “classes perigosas”391. A questão social
surge na peça sem seu elemento fundamental: os pobres. Francisco, criado há quase vinte
anos de Luciano, é apenas um bom servidor, sem opinião própria e confundindo-se com o
cenário.
391 Segundo Sidney Chalhoub, a expressão teria penetrado em nossa esfera pública em 1888, nos debates parlamentares ocorridos após a abolição. A fonte de nossos deputados seria o chefe de polícia francesa, M. A .Frégier, que escreveu um livro em 1840 para descrever todos os tipos de “malfeitores” parisienses. Tanto o autor francês, quanto nossos deputados, acabam descrevendo as “classes pobres” como as “classes perigosas”, disseminando a ideia de que a pobreza era condição para tornar o indivíduo um malfeitor. A partir daí, começa a “suspeição generalizada” do pobre, sobretudo negro, oriundo da escravidão, e a perspectiva de que a questão social é caso de polícia (CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril - cortiços e epidemias na Corte Imperial. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 20-25.
135
Considerações finais
As duas categorias fundamentais utilizadas na leitura das comédias,
público e privado, apresentam-se deformadas. Tais deformidades reproduzem, na esfera
artística, situações concretas da vida social e política brasileira.
As peças da primeira parte deste trabalho revelam um Estado cujos
agentes não buscam o bem comum em sua atuação. O juiz de paz da peça de Martins Pena
possui algum grau de autoridade em sua comarca, além daquela derivada do cargo ocupado,
podendo comportar-se com desleixo perante a maioria dos roceiros, sem temer qualquer
represália. O juiz de paz das duas comédias seguintes, Torre em Concurso, e Como se fazia
um deputado, é personagem fraco, sem autoridade equiparável às lideranças políticas locais,
atuando meramente na defesa dessas pessoas, muitas vezes adaptando o discurso jurídico para
satisfazê-las.
Tendo-se em vista a falta de interesse coletivo nas ações estatais, o
conceito de competência, que estruturaria os cargos na esfera pública, delimitando e
determinando os atos praticados pelos seus ocupantes, deixa de fazer sentido. Retratam-se
abusos praticados por autoridades, como a absurda ameaça de revogação da Constituição
Imperial (no caso do Juiz de Paz da Roça), ou a elaboração de um edital de licitação
completamente desprovido de racionalidade (em Torre em Concurso), ou, ainda, a validação
de atos eleitorais sem idoneidade (em Como se fazia um deputado).
As peças revelam a falta de comprometimento ideológico dos partidos
políticos e a pouca idoneidade do processo eleitoral, que deveria permitir aos representantes
da maioria da população a vitória. As eleições são vistas como um procedimento sem o menor
sentido coletivo (Torre em Concurso) ou como um ato deliberado das autoridades locais que
escolhe seus representantes e manipula os votos para elegê-los (Como se fazia um deputado).
A razão última das distorções da esfera pública aparece na temática e,
também, na estruturação formal das comédias: a rede de clientelismo que a envolve, partindo
da esfera privada. Várias passagens fazem referência à troca de favores entre personagens,
mostrando o acerto entre autoridades que interfere no funcionamento do Estado. Acima de
tudo, porém, duas peças (Torre em Concurso e Como se fazia um deputado) incorporam o
favor a sua forma, construindo um desfecho que deriva de uma intervenção externa, mal
explicada para o público, mas que indica relações de clientelismo com o centro do Império.
136
Revela-se, também, uma política implícita, que se inicia em lugares
aparentemente insuspeitos, como a família e o casamento, instâncias da esfera privada.
Percebe-se que a própria estruturação familiar, encabeçada pela autoridade paterna, agrega
dependentes para seu seio, instaurando uma primeira instância de influência, que terminará
nos mais altos cargos do governo. O casamento surge como única alternativa digna a uma
moça pobre, mas que trará um agregado novo para a humilde casa paterna (Juiz de Paz da
Roça) ou como ajuste político entre lideranças locais para perpetuação familiar no poder
(Como se fazia o deputado).
Os comediantes ridicularizam os personagens, muitas vezes explicando
os problemas nacionais a partir da falta de caráter daqueles a quem representam. Mas são
incapazes de perceber que a raiz dos problemas detectados está na própria instância privada
da produção, marcada pelo latifúndio que exclui homens livres e impõe o clientelismo como
condição de vida.
A segunda parte do trabalho marca um caminhar das comédias no sentido
da privatização das questões. Desde a segunda peça analisada de França Júnior, torna-se
central o problema da condição social dos personagens e sua busca individual pela ascensão
econômica ou política. Embora o país passe por transformações econômicas durante a
República Velha que ampliam os horizontes de oportunidades, as comédias revelam que o
cargo público ainda é o meio de vida mais seguro para as classes médias.
Sobretudo nas duas peças de Armando Gonzaga, da década de 1920, há
uma preocupação com o sustento pessoal ou familiar permeando personagens distintos. Para
fugir das dificuldades causadas pelo elevado custo de vida e pela falta de moradias dignas,
enfim, para resolução de questões privadas, personagens buscam padrinhos que os coloquem
em um cargo público. Novamente as esferas se interpenetram.
Revela-se que o cargo público é encarado como um objeto suscetível de
apropriação, capaz de render frutos a seu proprietário. Sua ocupação não respeita os critérios
da justiça distributiva, que exigiria a premiação ao mérito e à capacidade para a função a ser
exercida. Ao contrário, os cargos são distribuídos, como as comédias deixam transparecer,
ainda na década de 1920, conforme critérios subjetivos derivados das relações de
clientelismo.
Assim, para obtenção de um cargo público, o “candidato” não deve
preparar-se apenas intelectualmente, mas, sobretudo, deve buscar uma pessoa influente que o
apadrinhe, desenvolvendo laços de “amizade” e obtendo o favor da colocação profissional. O
137
fundamental torna-se a escolha do bom padrinho. O pai de família de Ministro do Supremo
fica completamente iludido quando pensa ter-se tornado “amigo” de um, quase levando sua
casa à ruína; o jovem de Secretário de Sua Excelência torna-se, para os outros, “doutor”, ao
ser apadrinhado por um coronel.
Nesses termos, como revela Caiu o Ministério, o bom político não é
aquele de moralidade idônea, ou de caráter irrepreensível, mas o “apadrinhador”, aquela
pessoa que sabe quando, como e para quem fazer um favor. As pessoas buscam o cargo
público por intermédio de favores e, quando ocupam um, devem saber retribuí-los, sob pena
de desfazimento do primeiro favor.
O grau crescente da questão social e o golpe de Vargas em 1930, levam
às peças outros temas. Penetram nas comédias questões políticas derivadas do marxismo e da
polarização ideológica da década. A miséria passa a ser vista como decorrência das
características produtivas de nosso país e a obtenção de um favor que encaminhe um
indivíduo deixa de ser uma alternativa aceitável, transformando-se em mecanismo de
perpetuação das injustiças. Buscam-se transformações estruturais; criticam-se as instituições e
os procedimentos objetivos.
Fora da Vida, de Joracy Camargo, embora sem focar diretamente os
problemas sociais, o faz por intermédio da consciência de um funcionário correto, que atingiu
o posto mais elevado do Poder Judiciário. São dirigidas, de modo limitado, críticas à
legalidade e à verdade jurídica, explicitando falhas objetivas no direito brasileiro. Mesmo um
juiz honesto, atuando conforme a lei, pode praticar injustiças.
O itinerário nos leva ao Brasil que se constroi pós Estado Novo. Um país
que incorpora novos elementos à sua estrutura social, promovendo a industrialização e,
depois, a financeirização econômica, sem deixar de ser rural e latifundiário. Um Estado que se
modifica mas permanece o mesmo em sua essência: local privilegiado de distribuição de
favores políticos e cargos de confiança. Partidos cuja razão última continua sendo ocupar o
Estado para beneficiar-se da posição mais elevada na rede de clientelismo, trocando apoio
político por cargos fundamentais nos Ministérios e demais aparatos do Poder Executivo.
Ao mesmo tempo, a constatação da mídia e de analistas ainda persiste
presa à visão individualista de nosso primeiro século de história independente. Atribui-se o
mal funcionamento dos serviços públicos, exclusivamente, a aspectos morais daqueles que os
prestam, sem se atentar para condições objetivas que poderiam alargar a perspectiva crítica e
explicitariam o caráter obsoleto da própria estrutura estatal.
138
Como exemplo final, tendo-se em vista a presença de juízes nas
comédias analisadas, ressaltamos a recente atuação da corregedora do Conselho Nacional de
Justiça, Eliana Calmon, tecendo críticas ao Poder Judiciário. Entre apurações e investigações,
ela afirmou que a magistratura estaria infiltrada por “bandidos atrás da toga” (setembro/2011)
e por “meia dúzia de vagabundos” (fevereiro/2012), os quais prejudicariam os juízes “sérios,
decentes” de nosso país392. Disse ainda: É dificílimo um tribunal julgar desembargador. Se ele tem a simpatia do colegiado, e os malandros são sempre extremamente simpáticos, o tribunal não tem poderes para julgar. Eu não tenho medo dos maus juízes, mas do silêncio dos bons juízes que se calam na hora do julgamento393.
Seu argumento revela duas facetas. Primeiro, a persistência de práticas de
favorecimento pessoal nos órgãos do Judiciário, havendo julgamentos diferenciados em razão
de relações que poderíamos denominar de “amizade” entre os magistrados. Em virtude disso,
os “bandidos” e os “malandros” poderiam sobreviver dentro desses órgãos, prejudicando-os.
Por outro lado, porém, fica no ar a impressão de que o mau
funcionamento decorre da presença dessas pessoas sem caráter e que basta eliminá-las para o
serviço judiciário tornar-se muito bom. Os problemas decorreriam da corrupção (“bandidos”)
e da lentidão (“vagabundos”), explicados em função dos indivíduos e não da própria estrutura
do Poder Judiciário, que é cara e obsoleta.
Em suma, persiste no argumento da corregedora o ponto de vista das seis
primeiras comédias estudadas, assim como persistem os problemas detectados.
392 Entre outros periódicos, o jornal Folha de S.Paulo reproduziu as declarações respectivamente nas edições de 27/09/2011 e 28/02/2012. 393 Reproduzido da edição de 28/02/2012 da Folha de S.Paulo.
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