Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Quando investigar e aprender são só duas palavras com o mesmo significado1
Rosaura Soligo
De todas as maneiras de investigar o mundo
eu prefiro todas. Raul Seixas
A pré história
Eu não pretendia fazer mestrado a essa altura da vida.
Quando de outra época essa ideia me surgiu, ouvi de minha analista uma pergunta básica: se eu
pretendia ser professora universitária ou pesquisadora, investigar algum tema que só pudesse ser
estudado na condição de aluna de um programa de pós-graduação ou obter um título para alguma
promoção na carreira.
Respondi prontamente que não – de onde ela tinha tirado essa ideia?
Antes que ela me respondesse, entendi de imediato que estava me metendo em caminhos estranhos
ao meu desejo sem sequer saber porque e desisti, aliviada.
Nunca mais pensei no assunto.
E não posso deixar de dizer que a vida foi generosa comigo no que diz respeito à profissão.
Ganhei de presente muitas oportunidades de trabalhar com autonomia, de inventar, de transformar
ideias em projetos realizados.
Essas oportunidades me fizeram crer que uma trajetória profissional bem-sucedida e gratificante
depende basicamente de três variáveis necessariamente combinadas: competência, boas indicações
e ousadia (acho que exatamente nessa ordem, se é que essa ordem é necessária).
Daí que nunca me pareceu necessário fazer um curso de pós-graduação para conquistar esses
atributos, talvez porque não tenham sido as aulas da Universidade que me ensinaram o que mais
importou para mim – e consequentemente para minha profissão.
Foi a militância, a reflexão sobre as coisas da vida, as fraternas discussões com companheiros e
amigos, os grupos de formação que correram por fora das instituições, a leitura solitária em busca
de respostas necessárias para alguma questão no curso dos projetos em andamento, a escrita que me
faz pensar e aprender sobre o que penso e sobre mim mesma. Tudo isso me explica um pouco e
acho que explica porque eu não tinha nenhum desejo de meter-me num curso de pós-graduação.
Mas daí minha irmã – uma irmã conquistada na vida, não uma circunstância de família – me
convenceu a participar de um grupo na Unicamp (o Gepec de Terça2), para onde ela vinha toda
semana de Campo Grande, totais 28 horas de viagem ida-e-volta, fazer seu doutorado.
1 Memorial de Pesquisa produzido em 2005. Mestranda na Faculdade de Educação da Unicamp e integrante da Equipe do Gepec – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
Continuada. 2 O GEPEC de Terça (ou Grupo de Terça) é um grupo aberto a participação de quaisquer educadores interessados, que discute temas
educacionais propostos por seus integrantes e significativos para todos.
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A primeira resposta minha à sua insistência foi não. Com o argumento principal de que Campinas
era muito longe de São Paulo, onde eu morava na época. Mas quando ouvi minhas próprias
palavras, especialmente a parte ‘Campinas é muito longe’, fiquei envergonhada. Eram três horas
ida-e-volta, no meu caso, contra quase trinta no caso dela.
Aceitei ir uma vez, só para ver como é que era.
Gostei e fiquei.
A esse respeito e sobre a decisão de participar do processo seletivo para o mestrado, há outras
questões que a mim parece importante compartilhar, tratadas em uma mensagem para meu
orientador3 assim que fui selecionada, transcrita parcialmente a seguir:
Veio a Greice4 com a proposta de eu frequentar o Grupo de Terça, com o argumento que tinha tudo
a ver alguém como eu, que tenho me dedicado há quase quinze anos à questão da formação de
educadores, participar de um grupo em que é esse o mote.
Fui lá ver do que se tratava e fui seduzida pelo grupo e gostei do que vi e ouvi e do seu jeito de
conduzir as discussões. O grupo era aberto, fiquei.
Me identifiquei com a proposta e achei que eu poderia ao mesmo tempo aprender e contribuir com o
grupo.
Do ponto de vista da minha aprendizagem, fora o que pode ser conquistado como fruto das
discussões, há outra razão, muito mais relevante para mim e que agora compartilho contigo: minha
trajetória profissional e, mais recentemente, a passagem pelo Ministério da Educação como
consultora de programas de formação continuada fizeram de mim uma referência para muita gente.
Principalmente nos últimos anos, passei a ter um tratamento vip nos lugares em que trabalhei:
muita gente querendo saber o que eu tenho a dizer, gravando a minha fala, anotando tudo,
fotografando e até pedindo autógrafo em alguns casos. Confesso, que apesar de vigilante em tempo
integral, fiquei com um certo medo de perder a noção da realidade – tanta gente perde, afinal – e,
sem perceber, de começar a ‘me achar’, como dizem. Assim, a participação no Grupo de Terça
oferecia a possibilidade do convívio com pares – gente sem nenhum interesse especial, a priori, em
minhas opiniões. Portanto, um aprendizado importante para a minha formação pessoal, que é o que
mais conta para mim. Não sei se você consegue imaginar o quanto esse exercício pode ter
relevância na vida de alguém que não suporta, nem para os outros nem para si, o estrelismo, a
empáfia, a falta de escuta, a arrogância intelectual. Em síntese, o Grupo de Terça tem para mim
valor em si, mesmo que nada de fundamental ali acontecesse – o que, claro, não é o caso.
Mas, enfim... depois a Greice veio com a conversa de que eu não poderia deixar de participar da
seleção de mestrado, que você abriria duas vagas para o mestrado e insistiu para que eu armasse
um projeto.
De início não me animei, pois a minha primeira hipótese é de que uma aluna como eu não
interessaria a você por várias razões. Algumas delas: eu olho para as coisas da educação de um
outro lugar e, consequentemente, faço às vezes leituras muito diferenciadas das suas; acredito em
coisas que você desconsidera; tenho algumas certezas absolutas e as assumo publicamente; não sei
muita coisa e também não tenho o menor problema em admitir essa minha ignorância. Fora que
venho de um lugar que em geral a Universidade não valoriza.
Com essas afirmações, não estou querendo dizer que acho que você não teria interesse em conviver
com alguém como eu, por ser sectário, mas que politicamente poderia ser inoportuno para você ter
3 Guilherme do Val Toledo Prado. 4 Greice, bem como Renata e Ednacelí, que são citadas mais adiante, são integrantes do GEPEC e Bete é mestre pela Faculdade de Educação
da Unicamp. Todas têm seus trabalhos citados na bibliografia e são respectivamente: Eliane Greice Davanço Nogueira, Renata Barrichelo
Cunha, Ednacelí Abreu Damasceno e Elisabete Zuza. André de Castilho Fonseca, também citado, é um amigo querido, estudioso de gestão e
políticas públicas, com quem tenho discutido os encaminhamentos de minha pesquisa.
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a mim como aluna. Sei o tanto que a afinidade conceitual é algo que conta na relação orientador-
aluno. Há momentos em que certas pessoas interessam ou não.
Se eu quisesse fazer mestrado – e na Unicamp e a qualquer preço –, o caminho mais razoável talvez
fosse bater em outras portas. Porém, eu não pretendia fazer mestrado neste momento, nem na
Unicamp, muito menos a qualquer preço.
A questão é que me interessei pela possibilidade de ser sua aluna, apenas isso.
E daí resolvi armar um projeto para a seleção, apostando que, a despeito de certas circunstâncias,
talvez você se interessasse em ser meu professor.
Para tanto eu teria de escolher um tema que não nos pusesse em desacordo de cara...
Como há três fenômenos que me instigam e me desafiam – como se dá o processo de assimilação
dos educadores quando se deparam com concepções muito diferentes das suas / por que as agências
formadoras não tomam o conhecimento didático como conteúdo privilegiado da formação dos
professores / qual o impacto da cultura institucional na formação e atuação dos educadores –
acabei escolhendo esse último, pois imagino que os dois primeiros poderiam nos fazer brigar brigas
que não valeriam a pena. E porque, em relação ao tema que escolhi, creio que teremos muitas
afinidades e eu serei uma aluna melhor, pois minhas certezas são poucas e as poucas nem um pouco
absolutas.
O fato é que encarei o desafio de ser novamente estudante, motivada pela possibilidade de
estabelecer uma relação de parceria com um orientador que se mostrou, desde a primeira vez, o
oposto do acadêmico convencional – segundo minhas representações, uma figura em geral
arrogante, cheia de certezas absolutas e preconceitos, sem capacidade de escuta e de negociação,
que paira sobre os reles mortais – alunos e colegas considerados menos sábios – e tenta submeter os
colaboradores às suas próprias necessidades acadêmicas.
Talvez minha falta de interesse em frequentar a Universidade possa soar um pouco arrogante, uma
vez que esse é o objeto de desejo de muitas pessoas. A questão, entretanto, é outra. Nossa história
pessoal e profissional forja nossas crenças, nossas expectativas, nossos valores. O breve memorial
que escrevi para o projeto de pesquisa conta uma parte da minha história e explica muitas das
escolhas que fiz:
Há 25 anos sou professora da rede pública. Porque iniciei minha trajetória profissional em 1978,
com crianças e adolescentes de 4a série, e porque me identifiquei a tal ponto com essa condição que
hoje, mesmo não estando mais vinculada diretamente a uma sala de aula, não posso deixar de dizer
que sou professora da rede pública. Minha alma profissional é de professora. Tudo o que realizei na
educação tem a ver com essa condição. Inicialmente trabalhei com crianças na periferia de São
Paulo, por mais de 10 anos, parte deles como alfabetizadora. Depois passei a trabalhar como
formadora de professores alfabetizadores na Secretaria Municipal de São Paulo, por ocasião da
bem-vinda passagem do Professor Paulo Freire pela administração municipal, depois como
coordenadora pedagógica de uma escola fundada por pais e, nos últimos anos, na assessoria a
projetos de reorientação curricular, produção de vídeos educativos e formação de educadores, no
âmbito do MEC e de várias Secretarias de Educação. Sempre professora.
Encontrei muitas dificuldades para atuar como professora, muito mais do que nas demais funções
que desempenhei. E preciso dizer isso de princípio, porque foram essas dificuldades que
impulsionaram o meu envolvimento com os projetos nos quais trabalhei posteriormente.
Nunca desejei ser professora até pisar numa sala de aula, depois de habilitada num curso de
Magistério de Ensino Médio, por insistência de minha mãe, professora da rede pública desde 1959,
quando nasci, até hoje. O convívio com o empenho cotidiano – para mim um sacrifício inexplicável!
– de minha mãe para ensinar crianças da zona rural, as infinitas horas de planejamento solitário do
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trabalho e de preparação de materiais para os seus alunos, a necessidade de separar-me dela e de
meu pai quando ingressou como professora efetiva na fronteira do estado, a necessidade de
trabalhar de dia e estudar à noite em outra cidade foram apenas algumas das circunstâncias que,
até os dezenove anos, me afastaram da opção pelo Magistério. Sempre que quis ser algo quando
crescesse, quis ser psicóloga e quanto a isso nunca tive a menor dúvida.
Mas, professora habilitada a contra-gosto, estudante de Psicologia, militante do Movimento
Estudantil na década de 70 e verdadeiramente interessada em conquistar independência financeira
para poder fazer o que bem entendesse, fui parar numa escola de Itaquaquecetuba para o primeiro
trabalho docente, como professora substituta de uma 4a série, no terceiro bimestre letivo. Impacto
logo na experiência inaugural: eu nada sabia que pudesse ajudar aqueles alunos! Nem o curso de
Magistério e nem os dois anos já estudados na faculdade de Psicologia me ofereciam subsídios para
ser uma profissional competente, segundo meus critérios. A única coisa que eu poderia oferecer
àquelas pobres crianças pobres era o que eu conseguisse aprender pelo meu próprio empenho, com
a minha garra e por coerência com o meu compromisso ideológico com os filhos da classe
trabalhadora – para utilizar uma expressão comum na época.
Talvez seja exatamente esse o momento em que escolhi a minha profissão e em que dei o primeiro
passo no meu processo de autoformação, que nunca mais deixei de cultivar.
Desde então sou professora e é disso que eu gosto. Nunca fui, nunca mais pretendi ser e creio que
jamais serei psicóloga. Fugi durante toda a adolescência da opção pelo Magistério, mas acabou que
aconteceu.
A reflexão sobre minha condição de professora em exercício e sobre a de meus colegas em igual
condição cristalizou em mim uma convicção: seria menos complexo lutar por um processo de
formação em serviço que pudesse subsidiar os professores em seu trabalho cotidiano do que por
transformações radicais nos cursos de formação inicial que, de modo geral, – conforme indicam os
dramáticos índices de fracasso escolar – não habilitam os professores para o exercício da profissão.
Assim passei a atuar em projetos que pudessem subsidiar os professores para, em serviço,
construírem os saberes necessários para ensinar mais e melhor os seus alunos, em especial aqueles
que mais recentemente tiveram garantido o direito à escolaridade – os mais pobres e desprovidos
dos saberes valorizados pela escola.
Nos últimos quinze anos, tenho me dedicado a projetos de formação em serviço não só de
professores, mas de outros profissionais da educação e o que pude constatar é que nessa área a
formação em serviço tem/precisa ainda ter – pelo menos no caso do Brasil – uma função
compensatória em relação à formação inicial, uma vez que esta não tem habilitado de fato os
profissionais para o exercício de suas funções. Essa circunstância parece conferir ainda mais
importância formativa aos dispositivos de inserção profissional e formação em serviço, bem como à
cultura institucional predominante nos locais de trabalho e nas redes de ensino.
Conforme indicam os Referenciais para a Formação de Professores (SEF/MEC: 1998), “cada
instituição constitui sua própria cultura, que é formadora de seus membros; por outro lado, a
identidade e cultura da instituição são construídas pelo coletivo de profissionais que dela fazem
parte. O coletivo tem, portanto, uma função socializadora e formadora – e os modos de organização
e funcionamento institucionais devem favorecer que essa função esteja a serviço do desenvolvimento
profissional de todos que nela atuam.
[...] Os modos de organização e funcionamento de uma instituição educativa têm um papel decisivo
na formação de seus profissionais. Podem favorecer, dificultar ou impedir, em maior ou menor
grau, formas adequadas de atuação, espaços e tempos de trabalho e estudo coletivo, discussão sobre
a prática educativa e, principalmente, relações de trabalho democráticas.”
Quando se trata de formação em serviço, a prática tem mostrado que não bastam investimentos na
capacitação pessoal do professor, por meio de cursos promovidos no âmbito das Secretarias de
Educação para profissionais de diferentes escolas. Por melhores que sejam – e já estive envolvida
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muito de perto com algumas excelentes iniciativas desse tipo – quase sempre não são suficientes
para impulsionar as transformações que se fazem necessárias na prática pedagógica das escolas.
Na maioria das vezes o professor participa desses cursos e/ou grupos de formação, encontra
caminhos para melhorar o seu trabalho com seus alunos – quando de fato há qualidade no que lhes
é oferecido –, sofre na pele as consequências provocadas pela consciência de que deve redirecionar
a sua prática e, não raro, tem que enfrentar o conservadorismo dos colegas da escola, um
coordenador pedagógico geralmente sem liderança e sem formação adequada para aproveitar as
contribuições trazidas e colocá-las a serviço dos demais professores, um diretor que questiona ou
coloca obstáculos às mudanças e mais toda a sorte de dificuldades peculiares num processo desse
tipo.
Minha experiência pessoal de transformação da prática como professora alfabetizadora foi
marcada por características como essa e o que há anos tenho ouvido de professores e outros de
profissionais da educação que tentam melhorar o seu trabalho são relatos muito semelhantes.
A pesquisa que me proponho a desenvolver tem como propósito principal compreender melhor esse
processo e as influências da cultura institucional na formação e atuação de profissionais da
educação em diferentes funções no sistema de ensino e, assim, contribuir de algum modo para a
formulação e desenvolvimento de políticas e programas educacionais mais adequados.
Penso que assim poderia somar-me aos que vêm se empenhando para a superação do lastimável
fenômeno a que Isabel Alarcão (2001) se refere, quando revela suas preocupações com a falta de
convergência entre a produção acadêmica e as reais necessidades dos profissionais da educação:
Se reconheço e aceito a complexidade da realidade e a dificuldade em dar sentido às suas
manifestações, sinto na crescente pujança da investigação educacional uma esquizofrenia múltipla e
alguma falta de coerência interna e externa.
São várias as manifestações de colisão, não sistematicamente explicada, entre estudos, fatos e
opiniões, como continua a ser evidente a colisão entre investigação em educação e prática educativa,
não obstante os grandes esforços que estão sendo feitos para ultrapassá-la.
Preocupa-me que as condições atuais da investigação em educação possam levar autores de
indiscutível responsabilidade, como David Hargreaves (referido em Tooley, 1998), a afirmar que a
investigação em educação não merece o dinheiro que consome, é de pouco valor e afastada da
prática educativa.
É evidente que afirmações dessa natureza não se aplicam a todas as investigações e cada um de nós
seria capaz de encontrar exemplos de estudos que não se enquadram no sentido dessa afirmação.
Mas serão estes a regra ou a exceção?
Creio que dessas memórias-argumentativas se pode depreender de onde vem a minha relação mal-
resolvida com Universidade. A atuação nas escolas públicas por mais de 20 anos me fez desejar um
tipo de ajuda da Academia que, segundo me parece, não tem sido oferecida às escolas e aos seus
profissionais na necessária medida.
Em outra mensagem escrita para meu orientador explicito meus sentimentos sobre esse fenômeno.
Em nenhuma profissão – de fato tratada socialmente como tal – é admissível que se defenda
procedimentos profissionais de melhor qualidade, alternativos aos usuais, sem que se preparem os
indivíduos para desenvolvê-los. O Magistério talvez seja o único caso em que esse fenômeno é
considerado natural: espera-se um tipo de atuação dos educadores, mas em geral não se oferece a
eles a formação adequada para tanto, nem nos cursos de graduação, nem nos programas de
formação em serviço. É certo que a profissionalização do Magistério depende de inúmeros fatores,
mas é certo também que não se poderá conquistá-la sem que se dê acesso ao conhecimento
necessário para o adequado exercício da profissão.
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[...] Na verdade, devo confessar que tenho uma certa mágoa institucional em relação à
Universidade. Desde 1995 tive o privilégio de conhecer professores do país inteiro e desenvolvi por
eles um sentimento de identificação-solidariedade. Fiquei achando que somos um país desgraçado,
em que a vanguarda dos educadores (entidades sindicais, associações profissionais, instituições
educacionais) defende a profissionalização do Magistério, mas não luta para que de fato o
Magistério se profissionalize. O discurso do avanço não tem o mágico poder de produzir o avanço:
só com muito trabalho é que se forjam as transformações mais radicais, e lentamente – o que é o
pior para os que têm pressa ou para os que dependem dessas mudanças. Meus anos de trabalho na
escola pública me ensinaram que não é com conversa mole ou com um discurso de esquerda, mesmo
que da melhor qualidade.
Os cursos de Magistério, de Psicologia e de Pedagogia, sem dúvida, me ensinaram muita coisa, mas
nada que me ajudasse a fazer aprender os meninos de Itaquaquecetuba, do Itaim Paulista, da Vila
Maria Baixa e da Favela da Zacki Narchi5.Infelizmente. Só eu sei o quanto penei por não poder
ensinar os pobres meninos da periferia.
Guardo no melhor canto do meu repertório os pensadores marxistas, os filósofos, os psicólogos, os
historiadores: eles me ajudaram a compreender melhor o mundo – direito de todo cidadão – mas
muito pouco em relação ao que fazer na profissão que escolhi.
Para mim, falta o principal nos cursos de formação de professores e nos grupos de discussões sobre
formação: uma abordagem consistente do conhecimento didático6. Ensina-se (ou pretende-se
ensinar) muita coisa aos professores, mas não se aborda aquilo que na realidade eles mais
precisam: conhecimento de como proceder para ensinar. São profissionais que saem dos cursos de
formação com domínio total ou parcial do discurso pedagógico, mais ou menos progressista a
depender enfoque do curso, mas despreparados para exercer de maneira adequada a profissão.
Concordo que, com a democratização do acesso à escola, os professores agora se deparam com
uma realidade com a qual não sabem lidar. Quando só a elite estava na escola, não havia muito
mistério e as contradições não se evidenciavam, pois indivíduos culturalmente alimentados quase
não dependem dos professores para aprender.
Agora, quem vai ensinar aos professores o que eles precisam saber para ensinar crianças, jovens e
adultos que não aprendem na medida e no ritmo que se espera? Num país sem nenhuma tradição de
investigação didática, quem é que saberá ensinar aos professores o que eles precisam saber?
Notas. Para não esquecer.
Bem, o fato é que, passados quatro meses do início das atividades do mestrado, resolvi reunir em
um único arquivo do computador, sob o título ‘Notas sobre a pesquisa’, o que me pareceu pertinente
para documentar o percurso da pesquisa, os instrumentos utilizados, a correspondência trocada com
meu orientador, as ideias para serem desenvolvidas posteriormente, as anotações do que me chama
a atenção nas bancas que tenho assistido e principalmente minha reflexão a respeito disso tudo e do
que estou aprendendo como aspirante de pesquisadora.
Por que essas Notas? Porque acredito que o que conta de fato numa pesquisa é o que se pode
aprender com todo o processo. Porque acredito que o que conta de fato na vida é aprender.
5 Itaquaquecetuba é um município da Grande São Paulo, Itaim Paulista e Vila Maria Baixa são respectivamente bairros da Zona Leste e Zona
Norte da cidade de São Paulo e a Favela da Zacki Narchi é próxima ao terminal Rodoviário Tietê, também na Zona Norte da cidade de São
Paulo. 6 O que chamo de ‘conhecimento didático’ é o conjunto de saberes – teóricos e práticos – construídos a partir do que se sabe sobre os
processos de aprendizagem, sobre os conteúdos do ensino e sobre metodologias adequadas para abordá-los, ou seja, saberes que permitem ao
professor planejar propostas pedagógicas adequadas às possibilidades e necessidades de aprendizagem dos alunos.
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Os títulos e subtítulos desse documento – sujeitos a todo tipo de modificação já que se trata de um
texto sempre em aberto – atualmente são os seguintes:
Notas para quê? – as razões que motivaram o documento.
Quem é o sujeito desta aprendizagem? – o memorial.
A pré história – o percurso anterior à entrada no mestrado.
A história à procura do seu caminho – as anotações das reuniões de orientação e a
correspondência trocada entre eu e meu orientador, por e-mail, nessa fase de encontrar
bons caminhos para o trabalho.
A história se pondo em marcha – os encaminhamentos junto aos sujeitos da pesquisa e os
respectivos desdobramentos.
As suposições iniciais (ou fantasias, quem sabe?) – minhas hipóteses em relação ao que
vou obter com os instrumentos de coleta de dados e com os encaminhamentos.
Mudanças no percurso a partir do caminhar – as alterações que são feitas, no decorrer da
pesquisa, em relação a encaminhamentos pensados anteriormente.
Ideias-vírus7 – as ideias ‘guardadas para o futuro’, ou seja, para serem desenvolvidas
posteriormente.
Anexos – o projeto original, todos os instrumentos utilizados, os esquemas de apresentação
do projeto em diferentes eventos.
A história à procura do seu caminho
Seguem trechos da correspondência com o meu orientador na fase de definição dos
encaminhamentos iniciais. Como é escrevendo e lendo que penso melhor, esse recurso foi e tem
sido fundamental para os avanços nessa trajetória em que pela primeira vez experimento este lugar
de quem quer fazer pesquisa.
17 de março de 2004
Caro orientador
Achei bom registrar algumas ideias, que não sei se prestarão para grande coisa, mas são as
possíveis no momento.
[...] Em primeiro lugar, quero dizer que ontem tive dois bons sinais de que o tema do meu projeto
pode mesmo ser bom, embora você não se entusiasme muito com ele, né?
Falei com a Renata e ela disse que acha que é preciso mesmo investigar esse fenômeno que é o
poder (para o bem e para o mal) que as instituições têm sobre os profissionais. No caso dela (que se
ofereceu para ser sujeito da pesquisa), a experiência é positiva – segundo o que me disse, a escola
em que ela trabalhou por vários anos formou-a e às suas colegas ‘para todo o sempre’. Ela avalia
7 Quando li a dissertação de mestrado do meu orientador muita coisa me impressionou, especialmente a solução que ele deu, na forma de um
suposto colóquio entre seus autores de referência, ancorado por suas próprias colocações. Mas havia outras miudezas muito criativas, que
também me divertiram bastante: uma delas são as expressões ‘vírus-ideia’ e ‘ideias antivírus’, que não sei exatamente de onde é que ele
tirou. Resolvi utilizar uma delas, invertida, como título das Notas: Ideias-vírus é o ‘lugar’ onde relaciono as ideias que pretendo que me
contaminem e me façam desenvolvê-las ou que se reproduzam ou se façam mutantes para que outras melhores se alojem.
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que a cultura institucional marcou definitivamente a trajetória profissional do grupo todo com que
ela trabalhou e afirma que dificilmente a formação inicial ou os programas de formação em serviço
têm o poder formativo que tem uma instituição sobre a atuação de seus membros. Disse ainda que
ela própria já pensou em investigar isso, pois tem certeza que as 15 profissionais que eram do
núcleo mais permanente da escola seguem em outras instituições implementando as ideias que
construíram juntas naquele tempo. Claro que adorei...
Depois conversei com a Bete e ela reforçou sua opinião de que o tema é muito bom mesmo.
Pois bem, então vejamos as minhas maltraçadas ideias.
Fique achando (e se não for isso, me diga) que para essa minha pesquisa servir para alguma coisa e
não ser um trabalho mediano, nem que for me consumir muito tempo e energia, valeria a pena
manter a ideia de investigar o trabalho de uma secretaria de educação, de uma instituição (uma
unidade) e de profissionais ‘avulsos’.
Do pouco que sei, me parece que o instrumento de coleta mais apropriado seria mesmo a entrevista,
embora pudéssemos lançar mão de outros adicionais.
A Renata comentou que, se eu tomasse apenas a unidade que eu pensei como uma boa possibilidade,
poderia ficar tudo muito concentrado na figura da coordenadora pedagógica, pelo fato dela ser uma
grande liderança na instituição. Achei que isso que ela colocou coincide com o que você havia
alertado anteriormente: dada a natureza do tema da pesquisa, a necessidade – e às vezes a
dificuldade – em ‘despersonalizar’ quando o enfoque é numa instituição apenas.
Quanto aos profissionais ‘avulsos’, isso não me provocaria problema algum, pois é fácil acioná-los
a qualquer hora. Minha dúvida é se é relevante selecionar gente de diferentes estados, pois nesse
caso o instrumento teria que ser um questionário que circularia pela Internet. Não sei se isso tem
validade para uma pesquisa acadêmica.
Pois bem, em sendo assim, eu poderia, na secretaria de educação, entrevistar: o Secretário, a
Subsecretária, os técnicos da Secretaria que coordenam os diferentes frentes de atuação (são sete),
três diretores e três coordenadores pedagógicos (um considerado ótimo, um com dificuldades e um
‘em processo’), alguns professores e alguns representantes da comunidade (umas mais ativas,
outras menos). Isso daria entre 20 e 25 entrevistas.
Além disso, poderíamos depois promover uma reunião para discutir o assunto com esses sujeitos (da
secretaria de educação e talvez pudesse haver uma reunião assim também com os ‘avulsos’),
quando eu explicitaria mais exatamente o que estou pesquisando e veríamos o que rende o assunto
não mais numa entrevista individual, mas numa discussão coletiva sobre o tema.
As entrevistas com os ‘avulsos’ poderiam ser umas 10 ou 15.
Se tudo isso lhe parecer muito grande, mas necessário, talvez fosse o caso então de eliminar a
unidade, não sei. Também tenho a documentação toda da escola em que trabalhei muitos anos, mas
a escola provavelmente vai fechar e só seria possível uma abordagem, por assim dizer, mais
institucional, dando um tratamento a depoimentos de várias pessoas que trabalharam lá (mais a
vasta documentação que eu tenho)...
Não me incomodo nem um pouco de ter muito trabalho: quando o assunto me seduz e a proposta é
desafiadora, eu mergulho de cabeça e o resultado geralmente é bom. É o prazer da descoberta e da
criação o que me move.
A estrutura do texto talvez pudesse ser algo mais ou menos assim (leve em conta o conteúdo, não o
formato nem a sequência, pois disso não entendo nada):
- Considerações sobre cultura institucional
- Análise dos dados sobre a secretaria de educação
- Análise dos dados sobre a unidade
- Análise dos dados trazidos pelo depoimento dos ‘profissionais avulsos’
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- O papel da cultura institucional em instituições educativas (aqui se falaria do poder da
cultura sobre os seus membros no caso de uma escola, de uma secretaria e das demais
instituições citadas pelos ‘avulsos’)
Como se realiza o poder do estabelecido sobre os membros de um grupo
O que tem poder de mudar a cultura de uma instituição
Porque algumas mudam e outras não diante de uma mesma proposta
Porque há profissionais que não se submetem
Algumas recomendações às agências formadoras
- Algumas conclusões e algumas inconclusões.
Por hoje, é isso.
Quero que saiba que sou dócil, apesar de insistente. O que quero dizer com isso? Eu discuto, fico
defendendo as minhas ideias com uma certa veemência, num tom meio passional demais, mas na
realidade quero que me convençam de outra coisa, se houver alternativas melhores. E então farei
tudo o que se combinar daí por diante, disciplinadamente.
Estou lhe dizendo isso porque sei que causo a impressão de que sou teimosa com as coisas que acho.
E sou mesmo, mas isso em absoluto significa que não mudo de ideia ou que não estou disposta a me
deixar convencer.
Rosaura
19 de março de 2004
Rosaura,
Quanto ao seu trabalho de pesquisa, os sinais podem e devem te entusiasmar. Ainda que eu não me
entusiasme muito, também compartilho da ideia da Bete e da Renata que esses assuntos – cultura
institucional/cultura escolar/processos de inovação – não foram pesquisados pelo foco por você proposto
(e faz parte da pesquisa conhecer quais abordagens sobre o assunto existem etc).
Dessa perspectiva, tendo você feito a reflexão sobre a sua capacidade de trabalho e suas considerações a
respeito da potencialidade do tema, talvez seja interessante tomar dos “dados” do trabalho com a
secretaria de educação (documentos, históricos, entrevistas) e entrevistas com os que você chama de
‘profissionais avulsos’ - os que, apesar da cultura organizacional desfavorável, têm/tiveram uma
excelente atuação.
Sendo assim, quando você estiver na secretaria de educação, inicie sua “catança” de dados mais materiais
– documentos – e depois, podermos traçar algumas diretrizes para as entrevistas. Com as diretrizes, é só
identificar as pessoas para conversar sobre o tema. O que achas?
Quanto à organização/estrutura do texto, está muito boa sua proposta, com algumas pequenas alterações:
- Considerações sobre cultura institucional
- O papel da cultura institucional em instituições educativas
- Análise dos dados sobre a secretaria de educação
- Análise dos dados trazidos pelo depoimento dos ‘profissionais avulsos’
- Algumas conclusões e algumas inconclusões
Recomendações às agências formadoras
Talvez esses pontos abaixo, pudessem figurar no interior das análises. O que achas?
Como se realiza o poder do estabelecido sobre os membros de um grupo
O que tem poder de mudar a cultura de uma instituição
Porque algumas mudam e outras não diante de uma mesma proposta
Porque há profissionais que não se submetem.
Bem, é isso! Por enquanto. Mais uma vez agradeço sua veemência, pois assim eu posso me posicionar a
respeito de suas colocações.
Guilherme
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E eis que chegou o dia 20 de abril, o dia em que meu projeto seria discutido pelo Gepec, composto
por orientandas e ex-orientadas.
Os ‘finalmentes’ dessa discussão foram surpreendentes, pois de lá saí com uma bela apreciação da
Renata, que fez a leitura crítica do meu projeto, e com muitas contribuições de vários colegas. E saí
também com uma (para mim, estranha) colocação, em tom de crítica, de que eu falo ‘do lugar da
Academia’.
Assim que tive um tempo fiz o exercício de pensar por escrito sobre tudo o que me foi possível e
esse registro segue abaixo – outra mensagem para o meu orientador.
26 de abril de 2004.
Caro orientador
A reunião de terça passada provocou em mim muitos pensamentos que talvez possam ser úteis para
o futuro de minha preciosa pesquisa...
Pois bem, o que as pessoas disseram que me alertou?
Principalmente as observações quanto à necessidade de:
definir o lugar de onde eu falo
identificar as influências que a cultura das instituições em que trabalhei exerceram sobre mim
considerar que a consequência de entrevistar profissionais que ‘funcionam bem’ a despeito da
cultura das instituições em que trabalham pode ser uma afirmação involuntária de que os
profissionais mais consequentes assim o são por conta de características muito pessoais – o que
é verdade, mas não justifica uma pesquisa, pelo menos segundo os meus ‘critérios pragmáticos’
considerar que uma secretaria de educação pode ser uma instituição complexa demais para
identificar as influências da cultura institucional sobre os profissionais, mas que a compreensão
desse fenômeno nesse âmbito talvez seja o que há de mais relevante nessa pesquisa.
Veja o que pensei a respeito:
De que lugar eu falo?
Eu falo do lugar de uma profissional que, em qualquer função que desempenhe, está identificada
com os professores. A bem da verdade, hoje, concretamente, não sou nem professora, nem
formadora – e, de certa forma sou as duas coisas. Em um dos projetos em que trabalho atualmente,
sou responsável pela assessoria à elaboração/implementação das políticas públicas da secretaria de
educação, mas no outro sou mais ou menos produtora de vídeos... O que sou, afinal?
Talvez o mais apropriado fosse dizer que sou uma profissional identificada com a questão dos
professores.
Que lugar é esse?
A mim parece que alguém que faz uma pesquisa acadêmica fala do lugar de pesquisador, não? Não
é nesse lugar que está alguém que faz pesquisa? No meu caso, não seria o de um pesquisador
identificado com os professores? Isso é esquisito?
O próprio tema do projeto de pesquisa remete a um lugar que não poderia ser o de professora.
Ao fim e ao cabo, estando eu na condição de pesquisadora, falo mesmo é do lugar da Academia,
não? Não daquele lugar assimétrico, que eu critico, mas de alguém que faz pesquisa na
Universidade. Inevitável, me parece.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Influências da cultura das instituições em que trabalhei sobre mim.
Tendo em conta o que está indicado no meu projeto:
Considero cultura como o conjunto de significados, expectativas e comportamentos
compartilhados por um determinado grupo social, o qual facilita e ordena, limita e
potencializa os intercâmbios sociais, as produções simbólicas e materiais e as realizações
individuais e coletivas dentro de um marco espacial e temporal determinado. A cultura,
portanto, é o resultado da construção social, contingente às condições materiais, sociais e
espirituais que dominam um espaço e um tempo. Expressa-se em significados, valores,
sentimentos, costumes, rituais, instituições e objetos, sentimentos (materiais e simbólicos)
que circundam a vida individual e coletiva da comunidade. Como consequência de seu
caráter contingente, parcial e provisório, ela não é um algoritmo matemático que se
cumpre indefectivelmente. Deve ser considerada sempre como um texto ambíguo, que é
necessário interpretar indefinidamente (Bruner, 1992). Por isso, viver uma cultura e dela
participar supõe reinterpretá-la, reproduzi-la, assim como transformá-la. A cultura
potencializa tanto quanto limita, abre ao mesmo tempo que restringe o horizonte da
imaginação e prática dos que a vivem. Por outro lado, a natureza de cada cultura
determina as possibilidades de criação e desenvolvimento interno, de evolução ou
estancamento, de autonomia ou dependência individual.” (Gómez, 2001).
Numa perspectiva de certa forma coincidente, Matus (1997) enfatiza o papel do homem no
processo de construção social:
Tudo o que apreciamos e de que padecemos na realidade foi criado pelo homem, exceto a
natureza intocada. Os valores, as ideologias, as instituições, as organizações, os sistemas, os
partidos políticos, o poder de uns e a fraqueza de outros, os bens e os serviços, são parcelas
resultantes de um processo de produção social muito complexo.
Nada se cria do nada: o que existe foi criado a partir dos mais variados recursos escassos – o
poder político, os conhecimentos, as capacidades organizacionais, os recursos econômicos e
o tempo, dentre outros. O ator desse processo de produção social é o homem, que se
expressa mediante organizações e indivíduos que se destacam na luta para alcançar objetivos
que são, às vezes, transitoriamente incompatíveis, às vezes, de transitória orientação
cooperativa.
Esse processo de produção social conjuga muitos atores que não obedecem a uma mesma
ordem. A estrutura social não é uma estrutura hierárquica, e não há probabilidade de que um
chefe, mediante as ordens que dê, consiga dar coerência ao processo. O processo de
produção social é um jogo competitivo entre desiguais, sujeito a regras que, por serem
historicamente cumulativas, ao mesmo tempo em que impedem o caos do processo, regulam
as vantagens adquiridas por uns em detrimento de outros.
Parece-me que são essas concepções que dão o tom geral do que devo tomar de matriz conceitual
para a relação instituição-sujeito.
Considerando que o processo é dialético, que a cultura é produto de sujeitos e ‘produz’ sujeitos –
forma-os –, em se tratando das instituições, penso que a capacidade de interferência dos sujeitos
depende dos recursos e saberes que possuem, que os habilitam a produzir modificações, ainda que
não intencionalmente.
Eu poderia dizer que, do ponto de vista pedagógico, só consegui interferir na cultura das
instituições em que trabalhei quando dispunha de um tipo de conhecimento que permitiu de fato uma
interlocução – e que não é apenas com as pessoas. Até então, eu era uma profissional que estava
muito mais á mercê do estabelecido (embora consciente disso) do que propriamente exercendo
algum tipo de influência no funcionamento institucional.
Daí, pergunto: ter consciência do processo em que se está metido muda a natureza da influência do
processo sobre a gente? Afinal, quando se fala de influência, a consciência parece ter um papel...
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Fiquei pensando que há um certo tom psicológico na escolha do tema do meu projeto.
Afinal, o que quero de fato saber?
Acho que no final das contas o que quero saber é como se dá o processo de formação profissional.
Como as concepções podem mudar, como se dá esse processo de mudança, o quanto se rompe ou
não com o estabelecido e porquê, que tipo de gente rompe mais ou menos e porquê...
Minha questão acaba sendo mesmo a aprendizagem – essa coisa e essa palavra linda, que sempre
me impressionaram.
Inicialmente, tudo o que estudei/pesquisei por minha própria conta, ou com outras pessoas, tinha a
ver com a aprendizagem das crianças – a questão era compreender como aprendem para poder
encontrar as melhores formas de ensinar. Minha preferência indisfarçável pelo conhecimento
didático – dentre todos os conhecimentos profissionais – tem a ver com a crença de que só é possível
ensinar direito quando temos conhecimento de quem é o sujeito do processo e isso significa
necessariamente (embora não apenas) conhecer como esse sujeito aprende.
Depois de algum tempo, passei a me interessar pelo processo de aprendizagem dos professores. De
certa forma, o Guia de Orientações Metodológicas do PROFA8 (o livro que organizei) é uma forma
de dizer aos formadores: formação de educadores é um processo de ensino e aprendizagem que tem
sujeito – sujeitos que precisam ser conhecidos, respeitados e considerados no momento da
organização das nossas propostas de trabalho com eles.
Também no caso da formação – tal como ocorre com as crianças – as propostas precisam responder
às necessidades e possibilidades de aprendizagem daqueles que são sujeitos, protagonistas do
processo. Não acredito em pedagogia sem sujeito, nem para crianças alunas, nem para adultos
profissionais.
Mas o fato é que há muito mais formação acontecendo além do processo de formação que a isso se
pretende.
Daí fui parar na questão da cultura institucional – ou seja, aquilo que forma, que exerce poder
sobre o sujeito, sobre sua aprendizagem, sobre sua atuação, sobre o seu desenvolvimento
profissional, mas não é intencionalmente planejado para essa finalidade.
Por isso a constatação de que há um tom psicológico no tema que escolhi. Você não acha? Embora
várias pessoas que me ouviram falar do projeto disseram que é Foucault que vai me ajudar a
entender como se dão as relações de poder implicadas nas mútuas influências instituição-sujeito...
Consequências de entrevistar profissionais ‘avulsos’.
Tive clareza que a pesquisa não poderia estar centrada apenas nesse grupo, embora ele seja
imprescindível para a compreensão do fenômeno que quero investigar. Se a pesquisa estiver
centrada apenas em profissionais que, não só não se deixam dominar pela cultura predominante
mas nela interferem, vou acabar não entendendo como se dá o processo, pois esse é um grupo muito
peculiar, que por certo terá indivíduos com características pessoais muito semelhantes
(comprometidos, resilientes, perfeccionistas e coisas do gênero). Esse grupo é fundamental para que
a análise sobre o que apresentam possa ser ‘cruzada’ com a análise dos demais dados, ou
simplesmente complementá-la.
Uma secretaria de educação pode ser uma instituição complexa demais para uma pesquisa
com o propósito desta. Mas talvez seja nesse âmbito que a compreensão do fenômeno que
pretendo estudar tenha mais relevância.
Nesse caso, não sei avaliar e comparar dimensão/complexidade do trabalho X relevância para a
pesquisa.
8 Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Secretaria de Educação Fundamental - Ministério da Educação, 2001.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Ontem à noite, conversando a respeito com André e Bete, ouvi deles algo interessante: que do ponto
de vista estratégico interessaria tomar como objeto de pesquisa a secretaria de educação em que já
desenvolvo um trabalho, por duas razões. Uma é que as mudanças estão em processo – embora
resultados mais concretos não existam muitos ainda – e outra é que, para mim, profissionalmente,
valeria mais a pena focar a pesquisa em algo que tenha a ver com o trabalho que realizo atualmente
do que numa instituição que é exterior à minha experiência. Pareceu-me relevante.
Por fim, os problemas:
A tomar pela forma como tenho vivido, não sei se dou conta de uma pesquisa muito grande em curto
espaço de tempo. Quando falei contigo a primeira vez, não pensava dessa forma – tanto que te disse
que o tamanho do trabalho não me preocupava porque tenho uma grande capacidade de trabalho.
Mas o fato é que mal tenho dado conta de tudo o que há para fazer: a meu ver, minha atuação,
simultaneamente no trabalho e no mestrado, está aquém do que deveria.
Me diga o que devo fazer, porque tudo o que eu tiver que fazer na secretaria de educação, se for o
caso, devo fazer neste ano. E imagino que elaborar os instrumentos de coleta de dados não é algo
simples... E eu vou novamente para lá na semana que vem.
Quando fui da última vez, tudo o que observei me fez crer que seria muito bacana entrevistar as
pessoas e ouvir o que ouvi lá – diretores, membros da comunidade e coordenadores pedagógicos
dizem coisas incríveis sobre o quanto tudo está mudando...
Mas é você que pode me dizer qual o melhor encaminhamento.
Gostaria que você marcasse quando podemos nos reunir, pois quando eu viajar, quero ir com as
ideias mais bem formatadas.
Até breve
Rosaura
PS. Bete me disse uma coisa óbvia, que aprendeu contigo, mas que eu não havia pensado e que me
tranquilizou: que eu posso colher muitos dados e depois usar somente o que interessar, tendo em
conta os encaminhamentos da pesquisa. Isso me permitiria gravar tudo, mas transcrever só o que
fosse mais significativo e diminuiria o trabalho absurdo com transcrição, com o qual não me
identifico nem um pouco.
PS2. Posso usar questionários com alguns sujeitos, ao invés de entrevistar a todos?
27 de abril de 2004.
Cara Neófita
Vamos à sua preciosa pesquisa, que, pelo jeito da lapidação, tornar-se-á não só uma jóia bem trabalhada,
mas também dotada de muito estilo e sofisticação.
[...] Em relação às necessidades, levantadas por você a partir da conversa no grupo, recomendo que as
abaixo sejam levadas em conta:
‘Definir o lugar de onde eu falo’ – Que tal fazer o seu memorial, a partir da seguinte provocação:
‘quais coisas posso contar para que outros saibam o quanto elas foram importantes na definição do
que proponho para pesquisar e discutir no mestrado?’
‘Identificar as influências que a cultura das instituições em que trabalhei exerceram sobre mim’ –
Creio que esse tópico, diferente do anterior, resgata sua história de sujeito partícipe em instituições
educativas e os relacionamentos com outros sujeitos, apesar da cultura institucional instituída.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
‘Considerar que uma secretaria de educação pode ser uma instituição complexa demais para
identificar as influências da cultura institucional sobre os profissionais, mas que a compreensão desse
fenômeno nesse âmbito talvez seja o que há de mais relevante nessa pesquisa’ – Esse será o desafio!
Em relação ao que você pensou dos tópicos abaixo, seguem algumas considerações:
‘De que lugar eu falo?’
Talvez o mais apropriado mesmo seja dizer ‘sou uma profissional identificada com a questão dos
professores’ – esse é um bom tópico para você escrever mais, dizer o que é ser profissional depois de ter
passado por vários trabalhos em diferentes lugares institucionais – professora, coordenadora, diretora,
assessora, consultora, produtora, escritora etc, todos lugares relativos à educação e marcados pelo seu
compromisso com a alfabetização.
Quando você diz que o próprio tema do projeto de pesquisa remete a um lugar que não poderia ser de
professor, está correto! Não é o lugar de professora que você vai assumir ao realizar a análise de uma
secretaria de educação em pleno movimento de transformação. O lugar é de uma profissional identificada
com os professores, que resolveu analisar o que as ideias de uma equipe provocam em determinada
instituição, com determinada cultura, quando a proposta é transformar essa cultura. Você pode até tomar
a ideia de sujeito implicado, que é tratada na dissertação da Bete.
Influências da cultura das instituições em que trabalhei sobre mim.
O trecho a seguir você já pode utilizar para ir estendendo as ideias, que está muito bom! – ‘Tendo em
conta que o processo é dialético, que a cultura é produto de sujeitos e ‘produz’ sujeitos – forma-os –, em
se tratando das instituições, penso que a capacidade de interferência dos sujeitos depende dos recursos e
saberes que possuem, que os habilitam a produzir modificações, ainda que não intencionalmente.’
Quanto à questão da consciência, que você coloca, o Bakhitn trata isso de um jeito muito bacana, talvez
fosse o caso de tomá-lo... O que você acha? Isso evitaria você entrar demasiado num tom psicológico, mas
que eu acho que seria interessante não perder de vista, com Vigotsky, por exemplo.
Sobre o fato de você querer mesmo é ‘saber como se dá o processo de formação profissional, como as
concepções podem mudar, como se dá esse processo de mudança, o quanto se rompe ou não com o
estabelecido e porquê, que tipo de gente rompe mais ou menos e porquê...’ – essa é uma problemática
interessante. Acho que uma pequena vasculhada na literatura a respeito de cultura
organizacional/institucional e análise institucional pode ajudar a contextualizar melhor essa temática.
Quando fala sobre ‘a crença de que só é possível ensinar direito quando temos conhecimento de quem é o
sujeito do processo e isso significa necessariamente (embora não apenas) conhecer como ele aprende’,
isso é importante de se considerar em sua trajetória de pesquisadora e de ‘analista’ de instituições
educacionais.
E quanto ‘ao que forma, que exerce poder sobre o sujeito, sobre sua aprendizagem, sobre sua atuação,
sobre o seu desenvolvimento profissional, mas não é intencionalmente planejado para isso’ esse é um bom
mote para pesquisa mesmo, não? Assim como pensar as consequências dessa análise para a formação de
professores... Ou você já acha demais?
Em relação ao que você coloca a respeito de Foucault, o fato é que ele aborda a questão do sujeito por
uma outra via, por isso Bakhtin pode ser também interessante nesse caso. Podemos tomar Foucault para
tratar da questão de poder e da produção e regulação das verdades institucionais e Bakhtin para discutir a
produção da consciência os discursos instauradores dos sujeitos nestes lugares...
Uma secretaria de educação pode ser uma instituição complexa demais para uma pesquisa com o
propósito desta. Mas talvez seja nesse âmbito que a compreensão do fenômeno que pretendo estudar
tenha mais relevância.
A dimensão e a complexidade é grande, mas a relevância é proporcional! Ao tomar uma instituição
grande e em processo de mudança, tendo em conta o argumento do André, creio que você poderá
evidenciar um conjunto de pistas em relação à dinâmica da cultura institucional instituída a as
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
turbulências produzidas por uma cultura institucional instituinte, o que poderia ajudar a compreender o
embate produzido na consciência dos sujeitos envolvidos no processo.
Quanto aos encaminhamentos, minhas sugestões são as seguintes:
Apresentar brevemente a história da proposta que você e seu grupo fizeram para a secretaria de
educação: qual foi a demanda, quem demandou, o que foi levado em conta, sujeitos envolvidos na
elaboração etc, etc.
Entrevistar diferentes sujeitos que estão circulando neste movimento: aquelas que participam em
tempo integral e aquelas que aparecem esporadicamente.
Tomar um conjunto de documentos produzidos antes da chegada de vocês e um conjunto de
documentos quando da presença de vocês na secretaria.
Quanto a colher muito material e depois usar só o que interessa, isso é verdade, mas acho que você
precisa transcrever algumas entrevistas para ter uma ideia do que tomar delas – mas aí a gente decide
junto.
E sobre utilizar questionários com alguns sujeitos, ao invés de entrevistar a todos, essa é uma
possibilidade, mas escolhemos depois, e vamos ver se será preciso desse instrumento.
Guilherme
No processo de análise dos caminhos a percorrer, do qual esses fragmentos de correspondência é
apenas um exemplo, de princípio definimos que eu teria dois grupos de sujeito: Grupo 1, dos
educadores vinculados ao trabalho da secretaria de educação selecionada (onde desenvolvo um
trabalho de assessoria há alguns anos), e Grupo 2, dos profissionais inicialmente apelidados de
‘avulsos’, por falta de um nome melhor.
No que diz respeito ao Grupo 1, decidimos que seria proposto um questionário para diretores,
diretores adjuntos, coordenadores pedagógicos e professores de 10% das escolas, selecionadas
segundo o critério da diversidade, bem como para profissionais da equipe técnica da própria
secretaria. Depois de analisados os questionários, identificaríamos, pelo que revelassem as
respostas, quais desses sujeitos seria importante entrevistar.
Elaborei a versão preliminar de uma carta (transcrita mais adiante) destinada aos educadores das
escolas a serem selecionadas e do instrumento inicial de coleta de dados – nesse caso, usando como
referência os questionários que foram utilizados por duas colegas – Greice e Ednacelí, também do
Gepec. Submeti esses dois materiais à avaliação das duas e da Renata, também colega do grupo,
além do nosso orientador. A maioria das sugestões foi incorporada na versão final dos textos.
Creio que é importante registrar que os que discutiram comigo as questões propostas no instrumento
de coleta de dados me questionaram sobre a razão de algumas delas (são 18, no total!), tendo em
conta que o tema principal da pesquisa são as influências da cultura institucional na formação e na
atuação dos educadores e alguns itens aparentemente não se relacionam com essa questão...
Argumentei que, já que não me parecia possível depreender diretamente, por certas respostas, essas
influências, talvez fosse oportuno apresentar muitas questões que suscitassem respostas e, no
conjunto, pudessem representar indicadores relevantes. O conhecimento intuitivo e as hipóteses que
eu tinha apontavam que as questões mais adequadas seriam aquelas e que me parecia oportuno ter
muitos dados, mesmo se demonstrando depois irrelevantes para o que eu pretendia identificar – isso
evitaria ter de coletar informações novamente, caso se mostrem insuficientes.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Meu orientador sugeriu então um encaminhamento que gostei bastante: tendo como referência
apenas os conhecimentos e recursos que me eram disponíveis, sem buscar uma fundamentação
teórica a priori, definir os instrumentos de coleta de dados, submetê-los à sua apreciação e de outros
interlocutores cuja opinião me interessa, depois – antes de receber os questionários preenchidos –
registrar o que suponho que as questões me trariam de informação para o que eu pretendo
investigar, comparar então minhas hipóteses com o que as respostas de fato trazem e somente por
fim buscar a fundamentação que se mostrar necessária, se for o caso.
Essa proposta – que é na verdade um procedimento metodológico de pesquisa – foi sugerida para
outras situações que não apenas a coleta de dados, de tal forma que eu tenha sempre essa atitude
investigativa de refletir a priori, por escrito, sobre o que suponho que deva acontecer no decorrer do
trabalho.
Como estava no momento sem muito tempo de ler, apesar de já ter comprado muitos livros e
reproduzido muitos textos, a proposta era, além de tudo, oportuna. Até porque, quando não tenho
muito tempo ou me sinto cansada, consigo me concentrar melhor e produzir mais escrevendo do
que lendo – pensar, tendo como apoio o recurso da escrita, é algo que me traz muito mais
gratificação do que desgaste. Minha obstinação pela aprendizagem e pela descoberta acaba por
imprimir um tom de prazer à reflexão por escrito (que em nada se opõe ao empenho e ao trabalho
árduo, sem o qual não se pode escrever), principalmente porque nesse caso significa para mim um
ato criativo.
Quando aborda a escrita de si, em ‘O que é um autor’, Michel Foucault apresenta uma explicação
interessante para esse fenômeno. Ao apresentar a argumentação de Sêneca a respeito da relação
entre leitura e escrita, diz que “Não se deve dissociar leitura e escrita; deve-se ‘recorrer
alternadamente’ a estas duas ocupações e ‘temperar uma por meio da outra’. Se escrever demais
esgota [...], o excesso de leitura dispersa: ‘Fartura de livros, barafunda do espírito’. A escrita, como
maneira de recolher a leitura feita e de nos recolhermos sobre ela, é um exercício de razão que se
opõe ao grave defeito [...] que a leitura infindável se arrisca a favorecer [...]: a agitação do espírito,
a instabilidade da atenção, a mudança das opiniões e das vontades e, consequentemente, a
fragilidade perante todos os acontecimentos que possam ter lugar, o desvio do espírito para o futuro,
o fato de o tornar desejoso de novidades e de o impedir de se dotar de um ponto fixo pela posse de
uma verdade adquirida.”9
Bem, voltando aos instrumentos... Nesse período de incorporação das sugestões propostas,
discutimos que uma das prioridades do nosso grupo de pesquisa seria a análise do papel da escrita
no processo de formação dos educadores, o que não é objeto de investigação do meu projeto.
Por essa razão e pelo fato de considerar necessário estabelecer uma relação, com as escolas e com
os educadores que compõem o universo da pesquisa, de não apenas ‘usá-los’ como sujeitos e fonte
de dados para a investigação, tomei a decisão de propor, aos que assim o desejarem, um processo de
correspondência sobre questões pedagógicas que a eles estejam colocadas, durante o período da
pesquisa.
Vale ainda ressaltar que, verificando o total de escolas (148) e educadores vinculados à secretaria de
educação que estou pesquisando (3.856 professores, 148 diretores e cerca de 330 coordenadores
pedagógicos), concluí que seria o caso de tomar como referência apenas 5% (7 escolas), porque
10% configuraria um universo amplo demais.
9 Todo o texto é uma explicação de Foucault sobre o pensamento de Sêneca, mas somente o que está destacado internamente com um sinal
apenas de aspas é citação literal.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Dessas, apenas duas são de Educação Infantil, pois não me pareceu relevante representar
igualmente o segmento de Educação Infantil e Ensino Fundamental.
A carta
Julho de 2004.
Caros educadores
Por solicitação da Secretaria Municipal de Educação, nossa equipe estabeleceu uma parceria desde outubro de 2002, que
tem como propósito principal a implementação de uma série de ações na Rede Municipal.
Essas ações compõem o programa ‘SLTQ’ e se desdobram em várias frentes de trabalho:
Formação de gestores, coordenadores pedagógicos e formadores de alfabetizadores
Elaboração do Regimento Escolar
Produção de material de subsídio para os educadores da Rede. Discussão do Plano de Cargos, Carreiras e Salários
Realização de Mesas Temáticas com entidades sindicais
Montagem da Rede Social Educativa, que visa fortalecer o relacionamento da escola com grupos, organizações e demais representantes da comunidade
Avaliação do sistema de ensino, do programa ‘SLTQ’ e das políticas que interferem na qualidade da aprendizagem dos
alunos Planejamento Estratégico Situacional – uma ação junto à equipe técnica da Secretaria, para favorecer a articulação do
trabalho.
Sendo integrante da equipe de assessoria do Programa de Pós-graduação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), achei que seria interessante tomar o programa ‘SLTQ’ como objeto de minha pesquisa, para aprofundar a
análise desse tipo de projeto e sistematizar as informações que possam contribuir para compreender o seu alcance.
A pesquisa será pautada principalmente na análise de documentos e materiais produzidos nos últimos anos e de dados obtidos por meio de questionários, entrevistas e cartas trocadas com os educadores que desejarem.
Neste momento, em anexo a esta carta, segue um questionário destinado a gestores, coordenadores pedagógicos e
professores (a quem chamarei daqui por diante de educadores) de aproximadamente 5% das escolas, selecionadas segundo um critério de heterogeneidade – rural/urbana, central/periférica, com/sem anexo, com/sem projetos que demandam
assessoria externa, com comunidade mais/menos atuante etc.
A equipe de pesquisa de que faço parte na Unicamp – o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC)
– tem se dedicado a investigar os saberes dos educadores e a escrita como recurso fundamental na sua formação. Por essa
razão – e tendo em conta a natureza dessa pesquisa – é muito importante que as respostas ao questionário sejam dadas individualmente, sem discussão prévia com os colegas, de forma franca e com um posicionamento claro sobre todos os itens.
Há uma série de questões que pedem respostas um pouco mais longas – essas são especialmente importantes porque nelas
vocês poderão escrever o que pensam, sabem, fazem e vivem na escola. Isso importa muito no meu trabalho.
Minha proposta é estabelecer uma correspondência com os educadores que tiverem interesse em me escrever sobre as
questões cotidianas que vivem, as inquietações, as reflexões, as descobertas... Por isso, os que quiserem participar também
dessa parte da pesquisa devem preencher o último item do questionário com todos os dados solicitados.
Como muitos de vocês sabem, participei da equipe de coordenação nacional do Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores (o PROFA), que expressa em seus materiais, na metodologia e no conteúdo um respeito muito grande pelos
educadores. Esse é também o princípio do Grupo de Pesquisas de que participo na Universidade. Com isso quero dizer que em momento algum minha pesquisa tomará os educadores e a escola como objeto de pesquisa no sentido mais tradicional,
quando o que interessa são apenas os dados que se coleta para serem interpretados em função dos propósitos da
investigação. Neste caso, a proposta é muito diferente: é de estabelecer um tipo de interlocução, inclusive durante a pesquisa, que possa ser de fato útil para o trabalho pedagógico.
Os questionários preenchidos devem ser enviados à Secretaria até o dia 23 de agosto, para que as respostas sejam
analisadas no próximo mês.
Desde já agradeço a colaboração de todos e me comprometo a colocar a serviço da rede pública municipal os resultados da
minha pesquisa que, espero, contribua efetivamente para a reflexão sobre o trabalho realizado não só nas escolas
pesquisadas, mas em todas as demais.
Rosaura Soligo
COORDENADORA DE PROJETOS
No que diz respeito do Grupo 2, os encaminhamentos me pareceram merecedores de um título
específico apresentado mais adiante.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
A história se pondo em marcha
Em julho de 2004, por fim, para tirar o projeto de pesquisa do ‘mundo das ideias’ e colocá-lo em
andamento, foram dados os primeiros passos em relação ao Grupo 1 (pois achei por bem não me
ocupar do outro grupo de início):
definição dos critérios de diversidade para selecionar as escolas
seleção das escolas segundo esses critérios, juntamente com profissionais da secretaria de
educação e com companheiros da minha equipe que lá trabalham
conversa com as diretoras e coordenadoras pedagógicas das escolas selecionadas com quem tive
contato direto e entrega a elas do questionário e da carta explicativa
conversa com os diretores das escolas selecionadas e entrega a eles do questionário e da carta
por uma companheira de minha equipe, uma vez que eu pessoalmente não teria contato direto
com eles
nova conversa com o secretário de educação, com a subsecretária e com a coordenadora local do
projeto que lá desenvolvo com minha equipe, para explicar mais uma vez as razões da pesquisa,
os encaminhamentos e destacar a proposta de estabelecer correspondência com os que assim o
desejarem
discussão das razões da pesquisa, dos encaminhamentos e da proposta de correspondência com
os técnicos responsáveis pelo acompanhamento das escolas, com os quais me reuni, fazendo
referência ao questionário e à carta
explicação sobre a pesquisa, os encaminhamentos e a proposta de correspondência com os
técnicos com os quais minha equipe se reuniu.
A ideia era fazer com que todos da secretaria de educação estivessem suficientemente informados e,
se possível, se sentissem parceiros numa certa medida, para evitar melindres e mal-entendidos
indesejáveis.
O secretário de educação pediu à subsecretária que solicitasse, dos técnicos diretamente envolvidos
com as escolas selecionadas, que fizessem o possível para que os questionários retornassem no
prazo combinado e se colocassem como colaboradores em todo o processo.
A coordenadora local do projeto lá realizado (a que estou chamando de ‘SLTQ’) se colocou à
disposição para toda a ajuda necessária e foi, inclusive, uma parceira importante na seleção das
escolas, cuja realidade conhece bem.
Os critérios definidos
Foram os seguintes os critérios definidos, tendo em conta a intenção de trabalhar com uma amostra
que representasse a maior diversidade possível:
1. Infra-estrutura boa 2. Infra-estrutura ruim
3. Escola/equipe antiga 4. Escola nova/equipe nova 5. Equipe flutuante 6. Diretor que é liderança e impulsiona o trabalho 7. Diretor que não exerce muita liderança junto à equipe
8. Coordenadores pedagógicos que são/estão se constituindo
como formadores dos professores na unidade
9. Coordenadores pedagógicos que ainda não conseguem
desempenhar o papel de formadores dos professores na
unidade
10. Escola com tradição no investimento em formação dos
professores
11. Escola sem tradição no investimento em formação dos
professores 12. Escola pequena 13. Escola grande
14. Escola sem unidades em prédios anexos à sede 15. Escola com unidades em prédios anexos
16. Escola rural 17. Escola urbana de periferia 18. Escola urbana central
19. Escola com boa relação com a comunidade/comunidade
atuante
20. Escola sem comunidade atuante
21. Escola participante do projeto-piloto de avaliação da aprendizagem dos alunos 22. Escola participante de cada um dos quatro projetos especiais em curso na rede (projetos que contam com assessoria diferenciada das
demais).
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
As suposições iniciais
Bem, se o tema da pesquisa são as influências da cultura institucional na formação e na atuação dos
profissionais da educação, por onde capturar o que poderia revelar, explicar, fazer compreender de
alguma forma que influências seriam essas e como de fato acontecem?
Como até então não tive oportunidade de conhecer nenhum trabalho que tenha se proposto a algo
semelhante, tomei algumas decisões que se apoiaram muito mais em observações pessoais e num
certo ‘faro’ (não gosto dessa palavra, mas ela é a mais apropriada nesse caso) do que propriamente
em conhecimento sobre o tema.
No caso do Grupo 1, me pareceu que o recurso mais importante para a compreensão desse processo
seria a combinação de dois procedimentos de análise: identificar as principais variáveis que
contribuem para a constituição/consolidação da cultura de uma escola (a instituição a ser analisada
mais amiúde nessa pesquisa) e a comparação de realidades e opiniões muito diferentes (a respeito
de assuntos relacionados direta ou indiretamente à influência dessa cultura sobre os educadores)
expressas por eles próprios.
Pois bem, a definição dos critérios de seleção das escolas e dos itens do questionário persegue essa
possibilidade.
Segue uma reflexão bastante preliminar a esse respeito, começando pelos critérios de seleção das
escolas, por ser mais simples de abordar: a esse respeito, ressaltarei apenas que os tópicos indicados
acima com destaque em negrito são os que considero mais relevantes para a
constituição/consolidação da cultura de uma escola.
Acredito que o que conta fundamentalmente – ou seja, o que é mais determinante para a
constituição/a consolidação de uma cultura escolar favorável à aprendizagem dos profissionais, dos
alunos e de toda a comunidade – é: o perfil, a formação e a atuação do diretor e dos coordenadores
pedagógicos; o fato dos profissionais se sentirem parte de um projeto coletivo; e o real investimento
na formação dos professores. De preferência, essas três características combinadas.
Daí talvez fique uma pergunta: por que então tantos itens como critérios?
Acho que por duas razões. Uma é porque é preciso identificar tudo o que pode se constituir em
variável que contribui, interfere, determina a constituição/consolidação da cultura de uma
instituição. E outra é que, se a comparação de diferenças é um procedimento que suponho útil para
a compreensão desse processo, é necessário garantir a maior diversidade possível de realidades e
opiniões.
Já em relação aos itens do questionário, não cabe aqui uma análise, porque, como são muitos, isso
tornaria este artigo por demais extenso. Creio que vale destacar apenas o texto que escrevi para os
profissionais na abertura do questionário:
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Caro colega,
Por favor, responda as questões abaixo da maneira mais franca e completa possível e, se você tiver
algo mais a dizer, pode acrescentar folhas adicionais, desde que sejam devidamente grampeadas,
para que não se percam.
Você tem até o dia 23 de agosto para preencher completamente o questionário e entregá-lo à
pessoa que ficou responsável por recebê-lo.
Considerando a natureza da pesquisa, é necessário que você se identifique, indicando o seu nome
completo, mas gostaria que entregasse este material preenchido num envelope fechado, de forma
que eu possa me considerar sua única destinatária. Faz parte da metodologia da pesquisa o sigilo
em relação às respostas, exatamente pela necessidade de identificação.
Antes de iniciar o preenchimento, leia atentamente a carta anexada. E se não quiser participar de
minha pesquisa por alguma razão, não responda a este questionário, mas, por favor, indique que
você teve acesso a ele e coloque as razões de sua impossibilidade. Isso também é muito importante
para o meu trabalho. Se for esse o caso, peço que também utilize um envelope para sua resposta.
Obrigada.
Rosaura Soligo
Abaixo, segue a reflexão que escrevi assim que terminei esse texto, atendendo a recomendação do
meu orientador para registrar minhas hipóteses quanto aos supostos efeitos de minhas escolhas
sobre os sujeitos da pesquisa – itens dos instrumentos de coleta, comunicados, encaminhamentos
etc
As informações desse texto na verdade têm como finalidade principal convencer o profissional, que
porventura não tenha lido a carta explicativa, que o faça. Pretendem ainda convencê-lo de que a
pesquisa é séria, que vale a pena participar dela e que tudo o que disser ‘não será usado contra ele
mesmo’.
Há uma observação necessária aqui: no caso das escolas de onde são as diretoras e coordenadoras
pedagógicas com as quais falei pessoalmente, a carta foi solta, desgrampeada do questionário. Nas
demais optei por grampeá-las junto, para que eventualmente não se perdessem. Em ambos os casos
foi um bilhete adicional, fixado na pasta em que os questionários estavam reunidos, com as
principais informações: número de questionários / a quem se destinam / que o preenchimento é
desejável, mas não obrigatório / prazo de devolutiva / a quem devem ser entregues na secretaria de
educação.
Mudanças no percurso a partir do caminhar
Meu orientador havia me dito – e repetido – que eu precisaria cuidar para não ser muito
‘quadradinha’ em relação ao processo de coleta de dados. Que, em pesquisa, o caminho se faz ao
caminhar. Pelo menos é bom que assim seja.
Pois bem, naquela maravilhosa conjunção ‘da fome com a vontade de comer’, tive uma ideia que,
submetida a ele, foi aprovada sem discussão: substituir as entrevistas iniciais – previstas para o
período seguinte à análise de dados dos questionários – pela escrita de um memorial pelos
profissionais.
Cada vez que eu pensava nas dezenas de entrevistas a serem gravadas, que teriam de ser transcritas
(pelo menos algumas), me dava um calafrio premonitório porque eu tinha sensação que quando
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
chegasse essa hora eu ficaria com aquela intransponível preguiça de seguir adiante e poderia perder
o entusiasmo com o trabalho.
Daí achei essa maravilhosa solução. Os diretores e coordenadores pedagógicos já estavam
orientados a escrever seus memoriais, referentes ao tempo do programa ‘PSLTQ’, por conta do
próprio programa. Agora era só estender a proposta para todos os técnicos da secretaria de educação
e para os profissionais da minha equipe de assessoria.
Essa ideia foi a primeira grande conquista da minha pesquisa – ela é a tradução, na forma de
encaminhamento prático, da máxima, que eu tanto prezo, de que ‘o que mais importa é ser feliz’.
Também a escrita das Notas (a que já me referi) é um desdobramento dessa conquista: achei que eu
devia algo em troca da dádiva dessa ideia, que por certo não vai me tirar o prazer da caminhada.
Penso que o fato de eu não precisar de fato fazer mestrado será para mim o maior aliado nessa
travessia. Porque eu na verdade só quero aprender, produzir um trabalho original e, tanto quanto
possível, me divertir com o processo. Algo me diz que vou encontrar todas as saídas para a ameaça
de tédio, desprazer e agonia...
Enfim, o Grupo 2
Pois bem, a ideia do memorial como um instrumento de coleta de dados que passou a substituir a
entrevista (reservada aos casos absolutamente necessários, se eles existirem) no caso do Grupo 1,
solucionou a questão também para o Grupo 2, até então ‘deixado para depois’.
Como a expectativa em relação aos sujeitos desses grupos é que contribuam para a compreensão de
como/porque alguns profissionais conseguem atuar de forma coerente com suas crenças e
concepções, a despeito da cultura das instituições em que trabalham – não raro interferindo
decisivamente para transformá-la – a proposta do memorial pareceu-me muito adequada.
Selecionei 30 sujeitos cuja atuação profissional conheço bem e, pelo que sei, são reconhecidos,
também no âmbito de suas instituições, como indivíduos competentes, comprometidos, atuantes,
batalhadores de suas ideias na prática.
Em novembro preparei uma carta-convite e enviei por e-mail a todos, solicitando resposta quanto à
aceitação ou não da proposta. Na carta, diferentemente do que foi feito com os diretores e
coordenadores de escolas do Grupo 1, indiquei alguns itens sobre os quais me interessava que esses
sujeitos escrevessem, caso considerassem pertinente. O mesmo foi feito para os técnicos da
secretaria de educação, responsáveis por projetos e frentes de trabalho. Em todos os casos,
entretanto, foram informadas as características básicas de um memorial, para que o insuficiente
conhecimento do gênero não representasse uma dificuldade para os que tivessem desejo de
escrever.
Segue o trecho da carta-convite em que faço referência a esses itens:
Para um trabalho destinado a compreender mais amiúde a relação que os profissionais estabelecem
com sua instituição e vice-e-versa, é importante poder analisar especialmente alguns aspectos: as
razões que levaram você a optar por sua profissão e a assumir o cargo/a função que ocupa
atualmente ou que ocupou na instituição sobre a qual prefere escrever; as eventuais mudanças que
ocorreram em sua trajetória no interior da instituição; os fatores que contribuíram positivamente
para a realização de seus projetos e/ou suas ideias; as dificuldades e impedimentos (se é que
aconteceram) à realização de seus projetos e/ou suas ideias e as razões que o impulsionaram a
enfrentar esses problemas; o que considera o melhor e o pior na instituição e a melhor e a pior
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
experiência profissional que você teve; quais questões foram mais mobilizadoras/impulsionadoras
de sua atuação; o que você sente que, em sua conduta profissional, incomoda/incomodou,
desafia/desafiou e/ou causa/causou estranheza no espaço de trabalho, tendo em conta o
funcionamento da instituição; a importância (ou não) dos pares/da equipe no desenvolvimento do
trabalho que você realiza/realizou; de todas as experiências pessoais – de vida, de formação, de
estudo, de militância e de atuação profissional – quais foram as mais formativas para você.
E, seguindo a recomendação do meu orientador, registrei minhas hipóteses sobre o que esses itens
me trariam de informação, caso fossem de fato tomados em conta:
Embora me pareça que é o conjunto das colocações o que representará uma informação de fato
relevante para o tema da pesquisa, suponho que os itens indicados como sugestões para serem
incluídos no memorial vão trazer os seguintes elementos:
A explicitação das razões da escolha da profissão e das circunstâncias que levaram a assumir o
cargo que ocupam parece ser um indicador importante em relação a identidade profissional,
compromisso com o trabalho e satisfação com a própria atuação. Penso que isso permite
compreender o tipo de relação que esses profissionais estabelecem com a instituição e o quanto
pautam ou não sua atuação pelas próprias convicções ou se deixam dominar pela cultura
institucional.
A informação sobre a trajetória profissional dentro da instituição deve se constituir num dado
útil pelas razões relacionadas acima e para conhecer que posições institucionais ocuparam
anteriormente, o que também me parece um aspecto necessário de considerar.
Os fatores apresentados como significativos para a realização de ideias e projetos devem indicar
o que esses profissionais valorizam, as circunstâncias que contribuíram/contribuem para sua
atuação e o que os impulsiona.
A explicitação de dificuldades/impedimentos à realização de seus projetos/ ideias, razões que
impulsionaram a enfrentar esses problemas, o que consideram o melhor e o pior na instituição,
a melhor e a pior experiência e questões que mobilizaram/impulsionaram a atuação profissional, segundo me parece, trazem outros dados sobre os valores desses sujeitos e as
circunstâncias institucionais que identificam como positivas e negativas na sua relação com a
instituição em que trabalham.
As impressões sobre características da conduta profissional que incomodam, desafiam e/ou
causam estranheza no espaço de trabalho permitirão conhecer o grau de consciência desses
sujeitos sobre como são vistos e sobre seu perfil profissional. Essa me parece uma informação
importante para compreender como ‘funcionam’ e como se dá a interação entre eles e os demais
membros da instituição.
O posicionamento em relação à importância (ou não) dos pares pode revelar o quanto valorizam
ou podem contar com os colegas / o coletivo no desenvolvimento do trabalho, o que, em se
tratando de cultura institucional, parece representar um dado considerável, já que as culturas
não são produzidas por indivíduos sozinhos.
A indicação de quais experiências foram mais formativas, segundo a própria opinião, deve
indicar elementos que me permitirão compreender que fatores são determinantes para o tipo de
formação que favorece uma prática de ‘autoria’ na instituição, ou seja, um tipo de participação
que contribui para romper com modelos conservadores, cristalizados, pouco eficazes ou pouco
razoáveis do ponto de vista do que acreditam esses sujeitos.
Evidentemente, nada garante que os profissionais do Grupo 2 vão tomar esses itens como indicadores
para escrever seus memoriais. Talvez a representação que possuem do que venha a ser um memorial
– de modo geral, um texto reflexivo ‘aberto’, onde se relata parte da história vivida – pode se
sobrepor à minha solicitação e, então, não necessariamente virão as informações que pretendo
colher, tampouco minhas hipóteses serão confirmadas. De qualquer forma, a opção pelo memorial
pressupõe esse risco, o que possivelmente não ocorreria numa situação de entrevista, quando se pode
lançar mão de questões mais diretivas e focadas no que se pretende conhecer.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
À essa altura
No momento da escrita deste texto, no início de 2005, os questionários distribuídos ao Grupo 1 já
me haviam sido devolvidos (20%, que comporão o universo desse grupo), mas eu ainda não os tinha
lido completamente. E os primeiros memoriais do Grupo 2 começavam a chegar.
Em relação aos memoriais, há um aspecto interessante a considerar: apenas 10% (três pessoas)
responderam que não poderiam escrever e justificaram essa impossibilidade com razões bastante
pertinentes. E os que se manifestaram a respeito da proposta se posicionaram de modo muito
favorável e demonstraram interesse em colaborar com a pesquisa. Esse tipo de resposta me deixou
muito satisfeita.
Na reunião que meu orientador fez comigo após a chegada dos questionários, definimos alguns
encaminhamentos em relação à tabulação e à análise dos dados. Tivemos a contribuição de um
professor da Unicamp, especialista em avaliação, que sugeriu alguns procedimentos a partir de sua
análise dos itens do questionário e da carta explicativa e que, inclusive, elogiou a carta pelo fato de
contextualizar a pesquisa, explicar sua natureza e explicitar alguns encaminhamentos. Essa opinião
favorável não só à carta, mas também à metodologia que estamos utilizando, nos animou bastante.
Mas é bem verdade que tenho ainda muitas questões a resolver, algumas delas verdadeiras
incógnitas, que por certo me desafiarão muito e serão ponto de pauta nas conversas que terei com os
amigos que assumiram o papel de meus interlocutores.
Destacarei duas apenas, para não me alongar muito.
Uma delas é que, mesmo tendo claro que a pesquisa é uma coisa e o texto que devo escrever para a
qualificação é outra – a talvez até por ter consciência dessa diferença –, fico sem saber o que fazer
quando. Qual a melhor sequência para organizar todas as tarefas necessárias de forma a otimizar o
tempo e não me dispersar? Afinal, há três atividades inter-relacionadas mas distintas para dar conta:
a pesquisa propriamente, a leitura de fundamentação e a escrita do texto. O que fazer antes, o que
fazer ao mesmo tempo e o que deixar para depois? Penso que solucionar essa equação contribuirá
para eu me sentir perdida pelo caminho.
Discuti essa preocupação com meu orientador e chegamos a um esquema que me pareceu bom, mas
não teve, por assim dizer, o poder de me tranquilizar. Ficou combinado que, embora seja possível
em alguma medida, proceder à tabulação e análise dos dados, estudar e ir escrevendo, no meu caso,
neste momento, o melhor procedimento seria me dedicar prioritariamente ao tratamento dos dados.
Mas há uma pilha de livros para ler e um texto inteiro para escrever, pois pronto mesmo só tenho o
sumário – tudo o mais são fragmentos escritos que podem servir ou não e, mesmo que sejam
pertinentes, terão de ser selecionados, compatibilizados, organizados.
Ou seja, ter um esquema ajuda muito a definir o nosso percurso, porque dá uma certa ordem às
demandas, mas de fato não nos alivia – as demandas, mesmo postas numa sequência de prioridades,
na realidade continuam existindo. E quando não conseguimos cumprir com o que nos propusemos,
aí então a inquietação aumenta.
Mas talvez essa seja uma circunstância inevitável...
Outra questão que tem me preocupado bastante é qual tratamento dar aos dados trazidos pelos
memoriais. Até porque esse é um instrumento pouco usual, especialmente numa pesquisa como a
minha, o que significa que não há outros trabalhos similares que eu possa tomar como referência. E,
de mais a mais, embora eu tenha apresentado alguns itens que são relevantes para o meu trabalho,
nem todos levaram em conta minha sugestão no momento de escrever o memorial. Os prazos para
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
envio dos textos precisaram ser várias vezes adiados, pois as pessoas têm sempre muitas tarefas, a
escrita de um memorial não é tão simples como pode a princípio parecer, há uma justificada
preocupação de expor certas ‘intimidades institucionais’... enfim... esse tem sido um desafio para os
autores e, por certo, também será para mim, no momento de analisar todos os textos – e
principalmente as experiências profissionais a que eles se reportam.
O que tem me ajudado muito quando as dificuldades aparecem – essas e outras tantas – é que meu
primeiro movimento tem sido sempre discuti-las com alguém: meu orientador, os colegas do grupo
de pesquisa, os amigos e familiares que têm afinidade com o assunto. E o segundo é escrever a
respeito – sobre o que eu não sei, sobre o que me preocupa, sobre as sugestões que me fizeram,
sobre o que me disseram que ‘me parece bom, mas eu ainda não alcanço completamente’. No
esforço de pôr em palavras minhas questões, no momento em que as discuto, no ato de registrar
ideias e propostas que me colocam e não entendo bem, começo a processá-las melhor, a alcançá-las,
a dominá-las...
Clarice Lispector, essa grande pesquisadora das coisas da vida, explica lindamente como é isso,
porque também com ela era assim:
Essa incapacidade de atingir, de entender, é que faz com que eu, por instinto de... de quê?...
procure um modo de falar que me leve mais depressa ao entendimento. Esse modo, esse
estilo (!), já foi chamado de várias coisas, mas não do que realmente e apenas é: uma
procura humilde. Nunca tive um só problema de expressão, meu problema é muito mais
grave: é o de concepção. Quando falo em humildade, não me refiro à humildade no sentido
cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena
consciência de ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica: [...] só se
aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente.
E Jorge Larrosa diz melhor do que eu diria sobre essa deliciosa e difícil condição de estudante:
As perguntas são o lugar do estudo, seu espaço ardente. Mas também seu não-lugar.
Mantendo-se no lugar das perguntas, o estudo não aspira ao lugar seguro e assegurado das
respostas. Situa-se fora da vontade de lugar e fora também da vontade de pertencimento.
Por isso o estudante é um estranho, um estrangeiro. Por isso não pertence aos espaços do
saber, não tem lugar neles, não busca um lugar, uma posição, um território, não quer nada
que não seja seu lugar de ler e escrever perguntando.
O fato é que se me fizessem a clássica pergunta ‘Que recomendação você faria a quem está
começando?’, seria esta a resposta: dialogar com o outro – muitos outros! – e refletir por escrito
sobre tudo o que não entende, não vai bem, é novo ou obscuro. É isso o que tem sido para mim um
andaime nessa construção nada fácil.
Rosaura Soligo https://rosaurasoligo.wordpress.com/
Para compartilhar
Com este texto, penso ter aberto uma fresta para os bastidores daquilo que hoje já me habituei a
chamar de ‘minha pesquisa’. E, dessa forma, ter contribuído em alguma medida para outros
aspirantes de pesquisadores, assim como eu.
Para quem está no meio da travessia – ou querendo iniciá-la – é o conhecimento de outras travessias
o que, muitas vezes, anima a prosseguir e traz novas possibilidades de trilhar os caminhos.
Por fim, embora desnecessário para os que colocaram a atenção na forma como pude construir este
meu percurso, quero destacar mais uma vez a importância da interlocução com o orientador e com
as companheiras do nosso grupo de pesquisa para o meu trabalho.
A solidão não me parece boa companhia para um pesquisador. Mesmo quando sós, precisamos
dialogar internamente com nossos parceiros – mais experientes ou tão inexperientes, não importa.
Para mim, a entrada no mestrado foi uma feliz possibilidade de encontros. Com pessoas, com
ideias, com opiniões diferentes, com o desconhecido. Mas não há desconhecido que assuste quando
temos a possibilidade da partilha e o desejo de aprender sempre mais.
Porque investigar e aprender são só duas palavras com o mesmo significado.
Referências
CUNHA, Renata Barrichelo. Pelas telas, pelas janelas: olhares da/sobre a
coordenação pedagógica e a formação continuada de professores. 2004. Texto
de Qualificação da Dissertação de Mestrado - Faculdade de Educação,
UNICAMP, Campinas.
DAMASCENO, Ednacelí Abreu. SABERES E CONHECIMENTOS DOCENTES: experiências da
formação e experiências da profissão. 2004. Texto de Qualificação da Dissertação de Mestrado -
Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas.
LARROSA, Jorge. Estudar. 2003. Belo Horizonte: Autêntica.
LISPECTOR, Clarice. 1984. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Editora Rocco.
PRADO, Guilherme V. T. Da busca de ser professor: encontros e desencontros. Dissertação de
Mestrado em Educação (1992). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação,
UNICAMP, Campinas.
SOLIGO, Rosaura. Saberes Necessários. Anais do 14o Congresso de Leitura do Brasil (COLE). In:
14o Congresso de Leitura do Brasil - As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Campinas: Associação de Leitura do Brasil, 2003. v.1. (cd-room).