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Organização de ANT~NIO N ~ V O A

PROFESSOR

J. Gimer José ld

E D I

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O PASSADO E O PRESENTE DOS

PROFESSORES

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Este ensaio organiza-se em dois tempos, sugerindo que o processo histórico de profssio- nalizaçáo do professorado (passado) pode servir de base à compreensão dos problemas actuais da proflssáo docente (presente).

A primeira parte é preenchida com uma apresentação breve do modelo de análise da his- tória da profissão docente em Portugal, que desenvolvi na obra Le Temps des Professeurs (1987), em torno de: quatro etapas (ocupaçáo principal, licença do Estado, formação e asso- ciativismo), duas dimensóes (conhecimentos/técnicas e normaslvalores) e um eixo central (estatuto social e económico).

Na segunda parte adaptam-se estes critérios ao estudo actual do professorado, argumen- tando-se com a necessidade de encontrar novos valores de referência e novos modelos orga- nizativos da profissáo docente. O ciclo estatal de controlo do ensino está em vias de terminar e os professores atravessam um período de crise, isto é, de tomada de decisóes fundamentais para o seu futuro.

A ideia de projectar uma refíex60 diacrónica numa análise sincrónica levanta alguns pro- blemas metodológicos. Acredito, no entanto, que ela nos confronta com uma realidade em evoluçáo e mudança, libertando o pensamento para a imaginaçáo de diversos possíveis. Pro- curando servir de enquadrarnento ao conjunto do livro, o presente texto limita-se a aflorar uma série de problemas que afectam o professorado, procurando por os leitores perante a necessidade de tomar opçóes.

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O processo histórico de profissionalização do professorado

segunda metade do século XVIII é um período-chave na história da educação e da profissão docente. Por toda a Europa procura-se esboçar o perfil do professor ideal: Deve ser leigo ou religioso? Deve integrar-se num corpo docente ou agir a

título individual? De que modo deve ser escolhido e nomeado? Quem deve pagar o seu trabalho? Qual a autoridade de que deve depender? (Julia, 1981).

Este conjunto de interrogações inscreve-se num movimento de secularização e de esta- tização do ensino. Os novos Estados docentes instituem um controlo mais rigoroso dos processos educativos, isto é, dos processos de reprodução (e de produção) da maneira como os homens concebem o mundo. A estratégia adoptada prolongou as formas e os modelos escolares elaborados sob a tutela da Igreja, dinamizados agora por um corpo de professores recrutados pelas autoridades estatais.

O processo de estatização do ensino consiste, sobretudo, na substituição de um corpo de professores religiosos (ou sob o controlo da Igreja) por um corpo de professores laicos (ou sob o controlo do Estado), sem que, no entanto, tenha havido mudanças significativas nas motivações, nas normas e nos valores originais da profissão docente: o modelo do professor continua muito próximo do modelo do padre (Julia, 1981a).

Inicialmente, a função docente desenvolveu-se de forma subsidiária e não especiali- zada, constituindo uma ocupação secundária de religiosos ou leigos das mais diversas ori- gens. A génese da profissão de professor tem lugar no seio de algumas congregações reli- giosas, que se transformaram em verdadeiras congregações docentes. Ao longo dos sécu- los XVII e XVIII, os jesuítas e os oratorianos, por exemplo, foram progressivamente con-

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figurando um corpo de saberes e de técnicas e um conjunto de normas e de valores espe- cíficos da profissão docente:

- A elaboração de um corpo de saberes e de técnicas é a consequência lógica do inte- resse renovado que a Era Moderna consagra ao porvir da infância e à intencionali- dade educativa. Trata-se mais de um saber técnico do que de um conhecimento fun- damental, na medida em que se organiza preferencialmente em tomo dos princípios e das estratégias de ensino. A pedagogia introduz uma relação ambígua entre os pro- fessores e o saber, o qual atravessa toda a sua história profissional: assinale-se, a título de exemplo, que a hierarquia interna à profissão docente tem como critério um saber geral, e não um saber especljcico, isto é, um saber pedagógico (Chapoulié, 1974). Por outro lado, é importante sublinhar que este corpo de saberes e de técnicas foi quase sempre produzido no exterior do "mundo dos professores", por teóricos e especialistas vários. A natureza do saber pedagógico e a relação dos professores ao saber constituem um capítulo central da história da profissão docente.

- A elaboração de um conjunto de normas e de valores é largamente influenciada por crenças e atitudes morais e religiosas. A princípio, os professores aderem a uma ética e a um sistema normativo essencialmente religiosos; mas, mesmo quando a missão de educar é substituída pela prática de um ofício e a vocação cede o lugar à profissão, as motivações originais não desaparecem. Os professores nunca procede- ram à codificação formal das regras deontológicas, o que se explica pelo facto de lhes terem sido impostas do exterior, primeiro pela Igreja e depois pelo Estado, ins- tituições mediadoras das relações internas e externas da profissão docente. E, no entanto, é incontestável que os professores integraram este discurso, transfor- mando-o num objecto próprio: nas décadas de viragem do século XIX para o século XX, a época gloriosa dos Congressos de Professores que constituíram verdadeiros "laboratórios de valores comuns", sente-se a perpetuação de um ideário colectivo onde continuam presentes as origens religiosas da profissão docente.

Simultaneamente com este duplo trabalho de produção de um corpo de saberes e de um sistema normativo, os professores têm uma preseqa cada vez mais activa (e intensa) no terreno educacional: o aperfeiçoamento dos instrumentos e das técnicas pedagógicas, a introdução de novos métodos de ensino e o alargamento dos currículos escolares dificul- tam o exercicio do ensino como actividade secundária ou acessória. O trabalho docente diferencia-se como "conjunto de práticas", tomando-se assunto de especialistas, que são chamados a consagrar-lhe mais tempo e energia.

Apesar de se terem desencadeado no seio das congregações docentes, estas transfor- mações extravasam o campo religioso, abrangendo o conjunto dos indíviduos que se dedi- cam ao ensino. Durante longos anos imputou-se a génese da profissão docente à acção dos sistemas estatais de ensino; hoje em dia, sabemos que no início do século XVIII havia já uma diversidade de grupos que encaravam o ensino como ocupaçáo principal,

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exercendo-a por vezes a tempo inteiro. A intervenção do Estado vai provocar uma homo- geneização, bem como uma unificação e uma hierarquização à escala nacional, de todos estes grupos: é o enquadramento estatal que institui os professores como corpo profissio- nal, e não uma concepção corporativa do ofício.

Uma das primeiras preocupações dos reformadores do século XVIII consiste na definição de regras uniformes de selecção e de nomeação dos professores. A diversi- dade de situações educativas do Antigo Regime não serve os novos desígnios sociais e políticos: é necessário retirar os professores da alçada das comunidades locais, organi- zando-os como um corpo do Estado. Neste sentido, a estratégia de recrutamento não privilegiará os candidatos que tencionam fixar-se nas suas terras de origem, visando, pelo contrário, a constituição de um corpo de profissionais isolados, submetidos à disci- plina do Estado.

Os professores aderem a este projecto, que lhes assegura um estatuto de autonomia e de independência em relação aos párocos, aos notáveis locais e às populações: a funciona- rizaçáo deve ser encarada como uma vontade partilhada do Estado e do corpo docente. E, no entanto, o modelo ideal dos professores situa-se a meio caminho entre o funcionalismo e a profissáo liberal: ao longo da sua história sempre procuraram conjugar os privilégios de ambos os estatutos.

A partir do final do século XVIII não é permitido ensinar sem uma licença ou autori- zação do Estado, a qual é concedida na sequência de um exame que pode ser requerido pelos indíviduos que preencham um certo número de condições (habilitações, idade, com- portamento moral, etc.). Este documento constitui um verdadeiro suporte legal ao exercí- cio da actividade docente, na medida em que contribui para a delimitação do campo pro- fissional do ensino e para a atribuição ao professorado do direito exclusivo de interven~ão nesta área.

A criação desta licença (ou autorização) é um momento decisivo do processo de pro- fissionalização da actividade docente, uma vez que facilita a definição de um perfil de competências técnicas, que servirá de base ao recrutamento dos professores e ao delinear de uma carreira docente. Este documento funciona, também, como uma espécie de "aval" do Estado aos grupos docentes, que adquirem por esta via uma legitimação oficial da sua actividade. As dinâmicas de afirmação profissional e de reconhecimento social dos pro- fessores apoiam-se fortemente na consistência deste título, que ilustra o apoio do Estado ao desenvolvimento da profissão docente (e vice-versa).

Os professores são funcionirios, mas de um tipo particular, pois a sua acção está impregnada de uma forte intencionalidade política, devido aos projectos e às finalidades sociais de que são portadores. No momento em que a escola se impõe como instrumento privilegiado da estratificação social, os professores passam a ocupar um lugar-chameira nos percursos de ascensão social, personificando as esperanças de mobilidade de diversas camadas da população: agentes culturais, os professores são também, inevitavelmente, agentes politicos.

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Os professores são os protagonistas no terreno da grande operação histórica da escola- rização, assumindo a tarefa de promover o valor educação: ao fazê-lo, criam as condições para a valorização das suas funções e, portanto, para a melhoria do seu estatuto sociopro- fissional. No século XIX, a expansão escolar acentua-se sob a pressão de uma procura social cada vez mais forte: "a instrução foi encarada como sinónimo de superioridade social, mas era apenas o seu corolário" (Furet e Ozouf, 1977, p. 176).

Os professores utilizam sistematicamente dois argumentos em defesa das suas reivin- dicações socioprofissionais: o carácter especializado da sua acção educativa e a realização de um trabalho da mais alta relevância social. O desenvolvimento das técnicas e dos ins- trumentos pedagógicos, bem como a necessidade de assegurar a reprodução das normas e dos valores próprios da profissão docente, estão na origem da institucionalização de uma formaçáo especljcica especializada e longa.

Esta etapa decisiva do processo de profissionalização permite, por um lado, a consoli- dação do estatuto e da imagem dos professores e, por outro, a organização de um controlo estatal mais estrito. A criação de instituições de formação é um projecto antigo, mas que só se realizará em pleno século XIX, graças à conjugação de interesses vários, nomeada- mente do Estado e dos professores.

As escolas normais representam uma conquista importante do professorado, que não mais deixará de se bater pela dignificação e prestígio destes estabelecimentos: maiores exi- gências de entrada, prolongamento do currículo e melhoria do nivel académico são algu- mas das reivindições inscritas nas lutas associativas dos séculos XIX e XX. As escolas nor- mais estão na origem de uma verdadeira mutação sociológica do corpo docente: o "velho" mestre-escola é definitivamente substituído pelo "novo" professor de i n s tqão primária.

As instituições de formação ocupam um lugar central na produção e reprodução do corpo de saberes e do sistema de normas da profissão docente, desempenhando um papel crucial na elaboração dos conhecimentos pedagógicos e de uma ideologia comum. Mais do que formar professores (a título individual), as escolas normais produzem a profissão docente (a nível colectivo), contribuindo para a socialização dos seus membros e para a génese de uma cultura profissional.

A segunda metade do século XIX é um momento importante para compreender a ambiguidade do estatuto dos professores. Fixa-se neste período uma imagem intermédia dos professores, que são vistos como indíviduos entre várias situações: não são burgueses, mas também não são povo; não devem ser intelectuais, mas têm de possuir um bom acervo de conhecimentos; não são notáveis locais, mas têm uma influência importante nas comunidades; devem manter relações com todos os grupos sociais, mas sem privilegiar nenhum deles; não podem ter uma vida miserável, mas devem evitar toda a ostentação; não exercem o seu trabalho com independência, mas é útil que usufruam de alguma auto- nomia; etc. Estas perplexidades acentuam-se com a feminizaçáo do professorado, fenó- meno que se toma bem visível na viragem do século e que introduz um novo dilema entre as imagens masculinas e femininas da profissão.

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A "indefinição" do estatuto e o relativo "isolamento social" dos professores provocam um reforço da solidariedade interna ao corpo docente e, num certo sentido, a emergência de uma identidade profissional. É um trabalho largamente realizado no seio das escolas normais, mas que não pode ser compreendido em toda a sua complexidade sem olhar para a acção das associaç6es de professores.

De facto, coincidindo com os esforços de implantação do ensino normal, assiste-se em meados do século XIX ao aparecimento de um "novo" movimento associativo docente, que corresponde a uma tomada de consciência dos seus interesses como grupo profissional. Trata-se de um momento importante do processo de profissionali- zação, na medida em que estas associações pressupõem a existência de um trabalho prévio de constituição dos professores em corpo solidário e de elabora~ão de uma mentalidade comum: não espanta, por isso, que as associações tenham à sua frente professores e antigos alunos normalistas, portadores de um projecto renovado da pro- fissão docente.

A escolha do modelo associativo mais adequado aos professores foi objecto de lon- gas controvérsias, bem como as suas filiações políticas e ideológicas. Mas as práticas associativas pautaram-se quase sempre por três eixos reivindicativos: melhoria do esta- tuto, controlo da profissão e definiçáo de uma carreira. O prestígio dos professores no início do século XX é indissociável da acção levada a cabo pelas suas associações, que acrescentam à unidade extrinseca do corpo docente, imposta pelo Estado, uma unidade intrínseca, construída com base em interesses comuns e na consolidação de um espírito de corpo.

A profissão docente exerce-se a partir da adesáo colectiva (implícita ou explícita) a um conjunto de normas e de valores. No princípio do século XX, este "fundo comum" é alimentado pela crença generalizada nas potencialidades da escola e na sua expansão ao conjunto da sociedade. Os protagonistas deste desígnio são os professores, que vão ser investidos de um importante poder simbólico. A escola e a instrução incarnam o pro- gresso: os professores são os seus agentes. A época de glória do modelo escolar é também o período de ouro da profissão docente.

Durante os anos vinte, o Movimento da Educação Nova ilustra, em todos os sentidos (alguns contraditórios), a conjugação de projectos culturais, científicos e profissionais. Nesta perspectiva, ele é a consequência de uma lenta evolução cultural que impôs socialmente a ideia de escola e o produto da afirmação das "novas" ciências sociais e humanas (nomeadamente das ciências da educação), mas representa também um forte contributo para a configuração do modelo do professor profissional. Não espanta por isso que a definição sincrónica do professor ideal recorte com bastante rigor a análise diacrónica do percurso da profissão docente, como se demonstra pelo comentário da figura seguinte.

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PROCESSO DE PROFISSIONALIZAÇÁO DO PROFESSORADO (Modelo de análise)

CONJUNTO DE NORMAS E DE VALORES I 1 .- etapa EXERC~CIO A TEMPO INTEIRO (OU COMO OCU-

PAÇAO PRINCIPAL) DA ACTIVIDADE DOCENTE

ESTABELECIMENTO DE UM SUPORTE LEGAL PARA O EXERC~CIO DA ACTIVIDADE DOCENTE I

4.ktapa CONSTITUIÇÃO DE ASSOCIAÇOES PROFISSIONAIS DE PROFESSORES

CORPO DE CON CIMENTOS E DE TÉCNICAS

Esta figura sistematiza um modelo de análise do processo histórico de profissionaliza- ção do professorado em torno de quatro etapas (que não devem ser lidas numa perspec- tiva sequencial rígida), de duas dimensóes e de um eixo estruturante. Mas, olhando para esta figura, também é possível delinear os contornos dos professores profissionais dos anos vinte; trata-se de indíviduos que:

Quatro etapas 1. Exercem a actividade docente a tempo inteiro (ou, pelo menos, como ocupação

principal), não a encarando como uma actividade passageira, mas sim como um trabalho ao qual consagram uma parte importante da sua vida profissional.

2. São detentores de uma licença oficial, que conf i ia a sua condição de "profissionais do ensino" e que funciona como instrumento de controlo e de defesa do corpo docente.

3. Seguiram uma formação profissional, especializada e relativamente longa, no seio de instituições expressamente destinadas a este fim.

4. Participam em associações profissionais, que desempenham um papel fulcral no desenvol- vimento de um espírito de corpo e na defesa do estatuto sociogrofissional dos professores.

Duas dimensões 1. Possuem um conjunto de conhecimentos e de técnicas necessários ao exercício

qualificado da actividade docente; os seus saberes não são meramente instmmen- tais, devendo integrar perspectivas teóricas e tender para um contacto cada vez mais estreito com as disciplinas científicas.

2. Aderem a valores éticos e a normas deontológicas, que regem não apenas o quoti- diano educativo, mas também as relações no interior e no exterior do corpo docente; a identidade profissional não pode ser dissociada da adesão dos professo- res ao projecto histórico da escolarização, o que funda uma profissão que não se define nos limites internos da sua actividade.

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Um eixo estruturante Gozam de grande prestígio social e usufruem de uma situação económica digna, con- dições que são consideradas essenciais para o cumprimento da importante missão que está confiada aos professores. Apesar de manterem uma dinâmica reivindicativa forte, é possível verificar que, nos anos vinte, os professores se sentem pela primeira vez confortáveis no seu estatuto socioeconómico.

Apesar das precauções teóricas e metodológicas, a análise do processo de profissiona- lização sugere sempre uma evolução linear e inexorável. Nada de mais errado. A afirma- ção profissional dos professores é um percurso repleto de lutas e de conflitos, de hesita- ções e de recuos. O campo educativo está ocupado por inúmeros actores (Estado, Igreja, familias, etc.) que sentem a consolidação do corpo docente como uma ameaça aos seus interesses e projectos. Por outro lado, o movimento associativo docente tem uma história de poucos consensos e de muitas divisões (Norte/Sul, progressistas/conservadores, nacio- nalistas/intemacionalistas, católicos/laicos, etc.). A compreensão do processo de profis- sionalização exige, portanto, um olhar atento às tensões que o atravessam.

Por um momento, parámos a nossa narrativa nos anos vinte, período em que se fixa um retrato do professor profissional. Mas a história da profissão docente continua, desen- volvendo-se quantas vezes segundo processos contraditórios. Partindo de diferentes pers- pectivas, vários autores assinalaram a desprofissionalização (ou proletariza~áo) a que os professores têm estado sujeitos nas últimas décadas.

Reportando-nos ao caso português, é possível identificar tendências de desprofissiona- lização em momentos muito distintos: durante o Estado Novo, por via de uma política de desvalorização do professorado, mas também no pós-25 de Abril, onde as dimensões ideo- lógicas prevaleceram sobre os critérios profissionais, e no âmbito da Reforma de 1986 com um acentuar do fosso que separa os actores e os decisores. Por outro lado, é evidente que a expansão escolar e o aumento do pessoal docente, bem como uma relativa incerteza face às finalidades e às missões da escola e ao seu papel na reprodução cultural e na formação das elites, também contribuíram para movimentos de desprofssionalização do professo- rado. Refiram-se, por último, certas correntes pedagógicas (como, por exemplo, as teses da desescolarização e da educação permanente) e a consolidação de um grupo cada vez mais numeroso de especialistas pedagógicos, como factores que tendem a ocupar margens de competência dos professores.

Estas tendências necessitam de ser confrontadas com os processos de afirmação autó- noma e científica da profissão docente, que ganharam um novo ímpeto nos anos oitenta. A compreensão contemporânea dos professores implica uma visão rnultifacetada que revele toda a complexidade do problema. As questões sociais nunca são simples. Muito menos as que que dizem respeito à educação e ao ensino. Na parte seguinte deste texto procuraremos demonstrar de que forma o modelo de análise atrás apresentado pode cons- tituir uma grelha pertinente para o estudo actual da profissão de professor.

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Esboço de um modelo de análise da profissão docente

crise da profissão docente arrasta-se há longos anos e não se vislumbram perspecti- vas de superação a curto prazo. As consequências da situação de mal-estar que atinge o professorado estão à vista de todos: desmotivaqão pessoal e elevados índi-

ces de absentismo e de abandono, insatisfa~ão profissional traduzida numa atitude de desinvestimento e de indisposição constante (face ao Ministério, aos colegas, aos alunos, etc.), recurso sistemático a discursos-alibi de desculpabilização e ausência de uma refle- xão crítica sobre a acção profissional, etc. Esta espécie de autodepreciação é acompa- nhada por um sentimento generalizado de desconfiança em relação às competências e à qualidade do trabalho dos professores, alimentado por círculos intelectuais e políticos que dispõem de um importante poder simbólico nas actuais culturas de informação.

Mas é preciso contar também o outro lado da história, verificando com alguma sur- presa que, apesar de tudo, o prestígio da profissão docente permanece intacto. A confir- mação deste facto é dada por sondagens publicadas com alguma frequência na imprensa e por relatórios diversos sobre a situação dos professores: nuns e noutros casos a imagem da profissão docente é bastante positiva, nomeadamente no confronto com outras activi- dades profissionais. Por outro lado, é inegável que as sociedades contemporâneas já com- preenderam que o desenvolvimento sustentável exige a realização de importantes investi- mentos na educação.

Este paradoxo explica-se pela existência de uma brecha entre a visão idealizada e a realidade concreta do ensino. É nesta falha que se situa o epicentro da crise da profissão

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docente, que pode ser útil se a soubermos apreender na sua acepção original (krisis =

decisão), assumindo-a como um espaço para tomar decisões sobre os percursos de futuro dos professores.

Apesar de ter estado submetido a grandes pressões demográficas e sociais desde mea- dos do século XX, o ensino não sofreu transformações estruturais tão significativas como as de outras profissões. Atente-se, por exemplo, no caso dos médicos que, independente- mente de manterem uma actividade liberal (aliás, em larga medida "convencionada"), sáo praticamente obrigados a um trabalho no seio das organizações da saúde, o que tem vindo a modificar progressivamente o seu estatuto profissional. Idêntica evolução têm sofrido as profissões jurídicas, nas quais a percentagem de assalariados com a tendência para o exer- cício liberal ser realizado como "segunda actividade" ou através de contratos com firmas ou associações diversas. A evolução nos campos da Medicina e do Direito não é apenas metodológica ou tecnológica, e toca no cerne dos modelos organizativos e identitários destas profissões. É preciso compreender este processo a luz de novas realidades sociais, nomeadamente do direito dos cidadãos a uma presença com capacidade de decisáo (e não meramente consultiva) nos territórios da saúde e da justiça, tradicionalmente monopoliza- dos por profissionais especializados. Esta decisáo exprime-se, por exemplo, na responsa- bilização das pessoas pela sua própria saúde e na importância de uma participação activa na prornogão de comportamentos (individuais e colectivos) saudáveis. Exprime-se tam- bém em novas práticas na área do Direito, recuperando nalguns casos tradições antigas, as quais concedem às comunidades um papel crucial na realização da justiça. É curioso observar que esta mudança de perspectiva tem sido mais lenta ao nível do ensino, uma vez que a reivindicação de um poder profissional continua a fazer-se (muitas vezes) con- tra as famílias e as comunidades: se certas modalidades de avaliação dos alunos, nomea- damente no final de um ciclo de escolaridade, constituem um julgamento, porque não comparar os professores a "juízes" e "advogados", que instruem o processo e o encami- nham do ponto de vista técnico, aceitando que o veredicto compete a um júri indepen- dente?

É preciso romper com a lógica estatal da educação e com a imagem profissionalizada das escolas: o papel do Estado na área do ensino encontra-se esgotado, a vários títulos, sendo urgente legitimar novas instâncias e grupos de referência no domínio educativo; simultaneamente, impõe-se questionar o papel exclusivo dos professores na organização e direcção do trabalho escolar, e a sua subordinação às autoridades estatais. Após a fase de hegemonia da Igreja (séculos XVI-XVIII), é provável que estejamos agora a assistir ao fim do período de monopólio do Estado sobre a educação (séculos XVIII-XX): os homens da "desescolariza~ão" já tinham anunciado este desfecho, ainda que, contrariamente às suas previsões, não estejamos a encaminhar-nos para uma "sociedade sem escolas", mas antes para a definição de novos poderes e regulações no seio das instituições escolares.

A criação de um Ministério da Instruçáo Pública constituiu uma das principais reinvin- dicações dos educadores do século XIX. O que se compreende facilmente. Agora talvez

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tenha chegado a altura de formular como proposta a extinção do Ministério da Educação: as diversas forças sociais e profissionais teriam então oportunidade de assumir as suas responsabilidades, erigindo novas modalidades de funcionamento e de acção escolar. A sugestão é imprudente, mas não é totalmente irreflectida ...

Tendo como pano de fundo estas preocupações, procurarei evocar, de seguida, alguns dos dilemas e problemas actuais dos professores. Fá-10-ei adoptando como matriz o modelo de análise do processo histórico de profissionalização, de forrna a mostrar a actua- lidade radical das opções com que os professores se confrontam, as quais não se compa- decem com um olhar nostálgico sobre o passado, antes exigem uma ruptura decidida com os próprios alicerces fundacionais da profissão docente.

EXERC~CIO A TEMPO INTEIRO (OU COMO ACTIVIDADE PRINCIPAL) DA PROFISSÃO DOCENTE

Continuam próximos os tempos em que o primeiro-ministro João Franco aconselhava os professores das cidades a completarem os seus salários com outras actividades e os do campo a cultivarem umas batatas, bem como o período do Estado Novo durante o qual o salário dos professores chegou a ser considerado uma espécie de "gratificação", admitindo assim, tacitamente, a "dupla actividade". A questão ainda está na ordem do dia, na medida em que os professores buscam no exterior os estímulos (econórnicos, culturais, intelec- tuais, profissionais, etc.) que muitas vezes não conseguem encontrar no interior do ensino.

O problema tem contornos que abrangem aspectos vários do trabalho docente, desde a questão dos horários até às distintas formas de mobilidade (destacamentos, mudança de escolas, etc.), passando pela estabilização profissional e pela organização interna das escolas. Os estabelecimentos de ensino continuam a ser vistos, essencialmente, como um "agrupamento de salas de aula"; descura-se toda a vida escolar para além dos "50 minutos lectivos", bem como uma afectação de espaços nos quais os professores possam trabalhar individualmente ou em grupo (Smyth, 1991). É preciso incentivar uma maior identifica- ção pessoal dos professores com o local de trabalho e aumentar o seu tempo de presença nas escolas (Noffke, 1992).

Adaptando um trabalho de Mintzberg, Walo Hutmacher (1992) verifica que, contraria- mente a outras organizações, as escolas dedicam muito pouca atenção ao trabalho de pen- sar o trabalho, isto é, às tarefas de concepção, análise, inovação, controlo e adaptação. A explicaçáo deste facto reside em primeira linha na lógica burocrática do sistema de ensino, mas tem como consequência uma organização i1,dividual do trabalho docente e uma redução do potencial dos professores e das escolas.

Por outro lado, é útil questionar as regras de acesso às escolas de formação de profes- sores e de recrutamento dos docentes, que são duplamente inadequadas: favorecem a entrada de indivíduos que jamais pensaram ser professores e que não se realizam nesta profissão (Esteve, 1991) e excluem as organizações escolares e os corpos docentes deste processo, dificultando um trabalho colectivo e participado.

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É preciso contrariar a lógica de uma "passagem pelo ensino", à espera de encontrar uma coisa melhor: "Se há falta deles; se até se ganha uns trocos (oh tempo! oh chances!) enquanto não se arranja outra coisa mais ... enfim ...; se até o desemprego diminui ..." (Costa, 1989). Até porque esta espera eterniza-se muitas vezes, mantendo no ensino pro- fessores a contragosto, que buscam uma identidade (pessoal e social) noutras actividades. A este propósito, é necessário criar os dispositivos que permitam que situações fundamen- tais para o aprofundarnento da carreira docente - por exemplo, a possibilidade de traba- lhar durante um período de tempo fora da escola ou de frequentar formações longas - não sejam investidas numa perspectiva de "fuga ao ensino".

ESTABELECIMENTO DE UM SUPORTE LEGAL PARA O EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE DOCENTE

O princípio de um profissionalismo docente licenciado pelo Estado, que constituiu uma das mais importantes conquistas históricas do professorado, é uma ideia a rever. A subordinação exclusiva às autoridades estatais, sem regulações interínédias de poder (ao nível local, organizacional e profissional), é um factor de estrangulamento do professo- rado e do seu desenvolvimento profissional (Lawn, 1988).

Para além da tradicional autonomia na sala de aula, os professores têm de adquirir margens mais alargadas de autonomia na gestão da sua própria profissão e uma ligação mais forte aos actores educativos locais (autarquias, comunidades, etc.). Neste sentido, há que imaginar formas contratuais, nomeadamente em modalidades de partenariado, que dêem corpo a um novo enquadramento dos professores e que estipulem normas de res- ponsabilidade profissional (Grace, 199 1).

Segundo John Elliott, as novas imagens profissionais têm as seguintes característi- cas comuns:

" - Colaboração com os clientes (individuais, gmpos, comunidades) na identificação, clarificação e resolução dos seus problemas; - A importância da comunicação e da empatia com os clientes como um meio de perceber as situações a partir de um outro ponto de vista; - Uma nova ênfase numa compreensão holística das situaqões como base da prática profissional, em vez de uma compreensão exclusiva em termos de um conjunto de categorias especializadas; - Auto-reflexão como um meio de superar as respostas e os julgamentos estereotipados" (1 99 1, p. 3 1 2 ) .

Esta perspectiva implica o corte com uma visãofuncionarizada do professorado e a assun- ção dos riscos e responsabilidades inerentes a um estatuto profissional autónomo. A presença estatal no âmbito do ensino é importante, nomeadamente para assegurar uma equidade social e serviços de qualidade, mas o seu papel de supervisão deve exercer-se numa lógica de acompa- nhamento e de avaliação reguladora, e não numa lógica prescritiva e de burocracia regulamen- tadora. Esta mudança de atitude coloca a profissão docente perante desafios inadiáveis, aos quais os professores e as suas organizações não têm sabido responder com criatividade.

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CRIAÇÃO DE INSSITUIÇOES ESPEC~FICAS PARA A FORMAÇÁO DE PROFESSORES

A formação de professores é, provavelmente, a área mais sensível das mudanças em curso no sector educativo: aqui não se formam apenas profissionais; aqui produz-se uma profissão. Ao longo da sua história, a formação de professores tem oscilado entre modelos académicos, centrados nas instituições e em conhecimentos "fundamentais", e modelos práticos, centrados nas escolas e em métodos "aplicados". É preciso ultrapassar esta dico- tomia, que não tem hoje qualquer pertinência, adoptando modelos yrofssioriais, baseados em soluções de partenariado entre as instituições de ensino superior e as escolas, com um reforço dos espaços de tutoria e de altemância.

Esta o p ~ ã o obriga à instauração de novos mecanismos de regulação e de tutela da for- mação de professores, o que passa pela autonomia das Universidades ' e das escolas e pela celebração de acordos que traduzam a diversidade de interesses e de realidades institucio- nais: "Eu quero professores que não se limitem a imitar outros professores, mas que se comprometam (e reflictam) na educação das crianças numa nova sociedade; professores que fazem parte de um sistema que os valoriza e lhes fornece os recursos e os apoios necessários à sua formação e desenvolvimento; professores que não são apenas técnicos, mas também criadores" (Lawn, 1991, p. 39).

Por outro lado, a formação de professores precisa de ser repensada e reestruturada como um todo, abrangendo as dimensões da formação inicial, da indução e da forina$io contínua (Hargreaves, 1991). Os modelos profissionais de formação de professores devem integrar conceptualiza~ões aos seguintes níveis: "(1) contexto ocupacional; (2) natureza do papel profissional; (3) competência profissional; (4) saber profissional; (5) natureza da aprendizagem profissional; (6) currículo e pedagogia" (Elliott, 199 1, p. 3 10). Parece evi- dente que, tanto as Universidades como as escolas, são incapazes isoladamente de respon- der a estas necessidades.

A montagem de dispositivos organizacionais de articulação entre as Universidades e as escolas passa pela definição de novas figuras profissionais e pela valorização dos espa- ços da prática e da reflexúo sobre a pratica (Zeichner, 1992). Os estudos dos anos 80, que apontam para uma concepção reflexiva da profissão docente, inserem-se nesta ten- dência de "terceira via", que define a praxis como o lugar de produção da consciência crí- tica e da acção qualificada (Adler, 199 1 ; Rudduck, 199 1).

As evoluções recentes da investigação em ciências da educação e, sobretudo, as corren- tes que procuram estimular uma atitude investigativa no seio dos professores têm vindo a consolidar as bases teóricas e conceptuais do movimento acima descrito (Elliott, 1990; Per- renoud, 1992). Assim sendo, é natural que os esforços inovadores na área da formagão de professores contemplem práticas deformaçáo-acçúo e de formaçáo-investigação.

E intencional a referência exclusiva a Universidades, porque considero que a existê~icia de uma "carreira docente Única" e a dignificação da profissão docente exigem que a formação de todos os professores tenha um esta- tuto universitário.

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CONSTITUIÇÃO DE ASSOCIAÇÕES PROFISSIONAIS DE PROFESSORES

O movimento associativo desempenhou um papel primordial na construção da profis- são docente. Após longos debates, o modelo sindical tornou-se hegemónico, o que se situa num plano de coerência com a consolidação do estatuto de funcionários concedido aos pro- fessores: "Na medida em que os professores são assalariados como os outros, os seus sindi- catos são sindicatos como os outros: associações clássicas de defesa dos profissionais face aos empregadores e aos utilizadores e instrumentos de negociação das condições de traba- lho, dos salários, das qualificações, do emprego, das férias, do estatuto, da carreira, da for- mação contínua, da reforma, da assistência social, etc." (Perrenoud, 1991, p. 31).

É verdade que o sindicalismo docente tem contornos próprios, em sintonia com a pró- pria especificidade do estatuto dos professores; mas parece inevitável que a queda de uma visão funcionarizada da profissão acarrete o seu declínio. A diversificação das dinâmicas associativas a que se tem assistido ultimamente em Portugal é um sintoma da incapacidade do modelo sindical para responder às novas necessidades organizativas dos professores.

As formas associativas emergentes exprimem-se através: - da identificação a um saber disciplinar (associações de professores de história, de

matemática, etc.), o que tem grandes potencialidades, mas encerra o risco de uma menor pertença ao "grupo docente" no seu conjunto;

- da manifestação de tendências pedagógicas, bem patentes nas novas modalidades de "ensino em equipa" e no reforqo dos espaços de cooperação entre os professores (Little, 1990);

- da vontade de exercer um novo poder profissional, no quadro da afirmação de uma colegialidade docente, que procura reagir contra o maior controlo estatal a que os professores foram submetidos na década de 80 (Smyth, 1991 j.

Esta última forma é particularmente importante, uma vez que se articula com os pro- jectos de autonomia e de reorganização das instituições escolares e com o fortalecimento das redes de partilha e de cooperação no seio do corpo docente. Num interessante trabalho sobre a cultura dos professores e a estrutura das escolas, sugere-se a interdependência de três elementos: a capacidade de empreendimento educativo, o autogoverno das escolas e a colegialidade docente (Wehlage et a/., 1989). A reconfiguração da profissão docente e o desenvolvimento de comunidades escolares autónomas constituem condições necessárias ao aparecimento de um novo associativismo docente, agente colectivo de um poder pro- fissional cuja legitimidade não reside apenas numa delegação de competências do Estado.

CONSTRUÇÂO DE UM CORPO DE CONHECIMENTOS E DE TÉCNICAS

A relação dos professores ao saber constitui um dos capítulos principais da história da profissão docente: Os professores são portadores (e produtores) de uin saber próprio ou são apenas transmissores (e reprodutores) de um saber alheio? O saber de referência dos professores é, fundamentalmente, científico ou técnico? Na resposta a estas e a muitas

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outras questões encontram-se visões distintas da profissão docente e, portanto, projectos contraditórios de desenvolvimento profissional. Pelo meio estão os intermináveis debates sobre a pedagogia e as ciências da educagão (no plural ou no singular).

A análise da evolução dos currículos da formação de professores revela-nos uma osci- lação entre três pólos: metodológico, com uma atenção privilegiada às técnicas e aos ins- trumentos da acção; disciplinar, centrado no conhecimento de uma dada área do saber; científico, tendo como referência as ciências da educação, numa perspectiva autónoma ou enquadradas por outras ciências sociais e humanas (especialmente a psicologia). Estes pólos tendem a reproduzir dicotomias várias, nas quais, aliás, a epistemologia das ciências da educação tem estado encerrada: conhecimento fundamental/conhecimento aplicado, ciênciaJtécnica, saberesJmétodos, etc.

Num texto muito polémico, Mark Holmes argumenta que há duas tendências contem- porâneas que têm vindo a invadir as escolas, uma tecnocrática e a outra terapêutica, com resultados nefastos: "ambas as vias de mudança educacional conduzem à subversão da educação" (1991, p. 65). O esforço para escapar a um vaivém redutor tem sido levado a cabo de forma sistemática desde meados dos anos 80, começando a adivinhar-se os con- tomos de um novo tipo de saber identitário da profissão docente. Por via de uma reflexão sobre o trabalho escolar, André Giordan avança propostas interessantes:

"A escola deve promover o saber como instrumento: por um lado, cen- trando-se numa dezena de conceitos de base, interdisciplinares, que constituem outros tantos ângulos de abordagem da realidade dos dias de hoje; por outro lado, aprendendo a organizar a massa de conhecimentos actuais" (1991, p. 10).

Neste domínio, o pensamento mais estimulante tem procurado delimitar os saberes profissionais a partir de um olhar sobre a especificidade da acção concreta dos professo- res. De entre a abundante literatura produzida recentemente sobre esta questão, vale a pena assinalar, a título de exemplo, três abordagens convergentes: de Shirley Grundy (1989) quando refere um investimento teórico da praxis e a importância dos julgamentos práticos (phronesis) na acção docente; de Max Van Manen (1991) que se reporta a uma teorização do tacto pedagógico "que permite uma resposta imediata, da globalidade da pessoa, face a situações inesperadas e imprevisíveis" (1991, p. 519); de Daniel Hameline (no texto seguinte deste livro) ao trabalhar o conceito de acçáo sensata, mostrando a importância que ele adquire no trabalho docente.

ELABORAÇAO DE UM CONJUNTO DE NORMAS E DE VALORES

Os valores que sustentaram a produção contemporânea da profissão docente caíram em desuso, fruto da evolução social e da transformação dos sistemas educativos; os gran- des ideais da era escolar necessitam de ser reexaminados, pois já não servem de norte à acção pedagógica e à profissão docente. Por outro lado, o enquadrarnento normativo for- necido pelo Estado foi-se esvaziando progressivamente e, hoje em dia, só restam tentati- vas caricaturais de regressar a um tempo passado.

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Os professores têm de reencontrar novos valores, que não reneguem as reminiscências mais positivas (e utópicas) do idealismo escolar, mas que permitam atribuir um sentido à acção presente. Por outro lado, precisam de edificar normas de funcionamento e regula- ções profissionais que substituam os enquadramentos administrativos do Estado.

A produção de uma cultura profissional dos professores é um trabalho longo, realizado no interior e no exterior da profissão, que obriga a intensas interacções e partilhas. O novo profissionalismo docente tem de basear-se em regras éticas, nomeadamente no que diz respeito à relação com os restantes actores educativos, e na prestação de serviços de quali- dade. A deontologia docente tem mesmo de integrar uma componente pedagógica, na medida em que não é eticamente aceitável a adopçáo de estratégias de discriminação ou de teorias de consagração das desigualdades sociais.

É fundamental que a nova cultura profissional se paute por critérios de grande exigên- cia em relação à carreira docente (condições de acesso, progressão, avaliação, etc.). Se os próprios professores não se investirem neste projecto é evidente que outras instâncias (Estado, Universidades, etc.) ocuparão o território deixado livre, reivindicando uma qual- quer legitimidade de pilotagem da profissão docente.

Os professores encontram-se numa encruzilhada: os tempos são para refazer identida- des. A adesão a novos valores pode facilitar a redução das margens de ambiguidade que afectam hoje a profissão docente. E contribuir para que os professores voltem a sentir-se bem na sua pele ...

O estatuto social e económico é a chave para o estudo dos professores e da sua profis- são. Num olhar rápido temos a impressão que a imagem social e a condição económica dos professores se encontram num estado de grande degradação, sentimento que é confir- mado por certos discursos das organizações sindicais e mesmo das autoridades estatais. Mas cada vez que a análise é mais fina os resultados são menos concludentes e a profissão docente continua a revelar facetas atractivas.

Em Portugal, o ReZatório Braga da Cruz não deixa de conter alguns resultados sur- preendentes, como, por exemplo, a opinião do público sobre o estatuto socioprofissional dos professores. E num estudo recente sobre a imagem profissional dos professores na imprensa inglesa entre 1950 e 1990, Peter Cunningham concluiu que, "apesar dos ata- ques da direita política e do seu eco na imprensa, parecia existir em 1990 uma tendência ascendente no que diz respeito ao apoio público aos professores e a uma apreciação favorável do seu papel" (1992, p. 55).

É evidente que há uma perda de prestígio, associada à alteração do papel tradicional dos professores no meio local: os professores do ensino primário já não são, ao lado dos párocos, os únicos agentes culturais nas aldeias e vilas da província; os professores do ensino secundário já não pertencem à elite social das cidades, cujo recrutamento não passa apenas por critérios escolares. E é verdade que os professores não souberam substi- tuir estas imagens-força por novas representações profissionais.

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Os professores constituem um dos mais numerosos grupos profissionais das socieda- des contemporâneas, o que, por vezes, dificulta a melhoria do seu estatuto socioeconó- mico. Toda a gente conhece um ou outro professor que não se investe na sua profissão, que não possui as competências mínimas, que procura fazer o menos possível. O profes- sorado no seu conjunto é penalizado pela existência destes "casos", que a própria profis- são não tem maneira de resolver: os colegas estão amarrados por uma "solidariedade" muitas vezes deslocada; os directores das escolas recusam-se a intervenções susceptíveis de serem consideradas autoritárias; os sindicatos são supostos defenderem os interesses de todos os seus membros; etc. Neste sentido, parece fundamental dotar a profissão docente dos mecanismos de selecção e de difrrenciaçáo, que permitam basear a carreira docente no mérito e na qualidade.

No fundo, o que está em causa é a possibilidade de um desenvolvimento profissional (individual e colectivo), que crie as condições para que cada um defina os ritmos e os per- cursos da sua carreira e para que o conjunto dos professores projecte o futuro desta profis- são, que parece reconquistar, neste final de século, novas energias e fontes de prestígio.

Num texto intitulado A escola deve seguir ou antecipar as mudanças de sociedade?, Philippe Perrenoud (1991a) interroga-se sobre os actores e as instâncias que pensam o futuro, as mudanças de sociedade e as suas implicações para a educação. Os parágrafos seguintes são uma tradução livre das suas reflexões que, aliás, não são particularmente animadoras.

O sistema educativo é uma componente da administração, cuja missão é executar leis e promover políticas. Formalmente, a responsabilidade de pensar o futuro pertence ao parlamento e ao governo, que devem apresentar projectos, leis e decisões a aplicar nas escolas. Na realidade, o aparelho de Estado está muito ocupado, entre duas eleições, a gerir as diversas crises nacionais e internacionais. Os políticos visionários são cada vez mais raros e a maior parte limita-se a gerir o curto prazo. Os partidos políticos deixaram de ser lugares de doutrina e transformaram-se em "máquinas eleitorais", orientadas para a participação no poder e nas instituições; mesmo os partidos de esquerda, tradicionalmente portadores do sonho de uma socie- dade nova, desinteressam-se consideravelmente pela educação e cultura. Em termos gerais, os sindicatos deixaram de ser forças utópicas, dinamizadas pela ideia de um futuro diferente; as incertezas e as crises económicas mobilizam mais os aparelhos do que os projectos de sociedade. Os meios de comunicação social desempenharam, durante muito tempo, um importante papel doutrinal, sobretudo a imprensa escrita. Hoje, a lógica dominante é a competição pelo mercado publicitário e a imprensa não pode assumir o risco de pensar o futuro de forma contínua, coerente e séria, comprometendo-se num projecto de sociedade.

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Os intelectuais também se deixaram apanhar pela "sociedade do espectáculo", que estimula as ideias na moda, em vez de um pensamento rigoroso sobre as evoluções possíveis no decurso das próximas décadas; o seu trabalho é vendido no mercado mediático e é avaliado pelo sucesso fácil. Os investigadores são cada vez mais numerosos, mas rareiam os verdadeiros sábios, munidos de uma cultura filosófica e conhecedores de várias disciplinas. O trabalho científico está fragmentado e altamente especializado, mesmo nas ciências sociais e humanas, e não exige muitas ideias gerais. É enorme a falta de sábios capazes de pro- duzirem sínteses do conhecimento que ajudem as sociedades a pensar e pensar-se. Algumas fundaçóes e organizaçóes internacionais têm realizado uma importante acção prospectiva, apelando a uma certa continuidade de reflexão. Mas, pela sua pró- pria natureza, estas organizações estão dependentes de equilíbrios políticos frágeis ou de patrocínios comprometidos nos mercados mundiais, que neutralizam os aspectos críticos e inovadores dos relatórios. Nas multinacionais e nas grandes empresas encontram-se forças coerentes de previsão do futuro em certos domínios (energia, informática, etc.) e existe uma definição clara das suas necessidades em matéria de educação; mas estas organizações não são instân- cias democráticas e podemos recear um mundo no qual as forças visionárias estariam tão dependentes de estratégias de lucro, de crescimento e de conquista de mercados.

O inventário poderia continuar, encaminhando-nos pouco a pouco para a constatação de que a escola é, talvez, o lugar onde se concentra hoje em dia o maior número de pes- soas altamente qualificadas, que se encontram relativamente protegidas dos confrontos políticos, das competições comerciais e das tentações gestionárias. Será que pertence à escola um papel primordial na tarefa de pensar o futuro? Provavelmente, sim.

Para os professores o desafio é enorme. Eles constituem não só um dos mais numero- sos grupos profissionais, mas também um dos mais qualificados do ponto de vista acadé- mico. Grande parte do potencial cultural (e mesmo técnico e científico) das sociedades contemporâneas está concentrado nas escolas. Não podemos continuar a desprezá-lo e a menorizar as capacidades de desenvolvimento dos professores. O projecto de uma autono- mia profissional, exigente e responsável, pode recriar a profissão professor e preparar um novo cicio na história das escolas e dos seus actores.

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Daniel
Caixa de texto
1995

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