Transcript

110

Populismo no Brasil de 1945 a 1964: as interpretações da Escola de Sociologia da USP, do

ISEB e do pensamento econômico liberal

ResumoO pensamento social brasileiro procurou, ao longo do século passado, compreender os processos de mudança no país, especialmente na relação entre o Estado e a sociedade. Este artigo procurou discutir as interpretações sobre as manifestações populistas no período de 1945 a 1964, oferecidas pela Escola de Sociologia da Universidade de São Paulo, pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, e por representantes do pensamento econômico liberal. Foi possível verificar que as contribuições estudadas afirmaram a relevância dos estudos sobre o populismo para a compreensão da política brasileira no período de 1945 a 1964, como também ajudaram na propagação do debate sobre o fenômeno do populismo no mundo público. Entretanto, em razão dos pressupostos teóricos diferentes que fundamentavam suas análises, não foram capazes de contribuir para uma definição precisa do fenômeno aqui estudado.Palavras-chave: Populismo; Escola de Sociologia da Universidade de São Paulo; ISEB; pensamento econômico liberal.

AbstractThe Brazilian social thought sought, throughout the past century, to understand the processes of change in the country, especially the relation between the State and the society. This article tried to discuss the interpretations on the populist manifestations during the period from 1945 to 1964, proposed by the School of Sociology of the University of São Paulo, by the Superior Institute of Brazilian Studies (ISEB), and by representatives of the liberal economic thought. It was possible to verify that the studied contributions pointed out the relevance of populism studies for better understanding Brazilian politics during the period from 1945 to 1964, as well as helped to spread the discussion about the phenomenon of populism in the public sphere. However, as a consequence of the distinct fundamentals through which different theoreticians based their analyses, they had not been able to accomplish to a precise definition of the phenomenon.Key words: Populism; School of Sociology of the University of São Paulo; ISEB; liberal economic thought.

Leo Posternak1

1 Bacharel e Mestre em Ciências Sociais pela PUC-Rio. E-mail: [email protected]

111

Introdução

A ação política de inúmeros governos contemporâneos tem sido chamada de populista. Este termo, acerca do qual estamos longe de ter um consenso nos estudos a ele relacionados nas Ciências Sociais, vem sendo usado, tanto pela literatura especializada, quanto pela sociedade, sem que possamos claramente conceituá-lo. Temos encontrado governos e políticos aos quais se tem chamado de populistas em uma grande variedade espacial e histórica. Pode-se dizer que não há uma conceituação acabada no objeto de estudo ao qual se tem denominado populismo, pois encontramos diferentes análises no pensamento social brasileiro, marcadas por ocorrências históricas, interpretações, e ideologias distintas.

A expressão populismo começou a frequentar a agenda política na Rússia, no século dezenove. De acordo com Daniel Aarão Reis Filho (2007), o movimento populista na Rússia apresentou-se, em função de diferentes circunstâncias, de formas distintas. No entanto, haveria certo consenso em relação a algumas recorrências básicas que têm justificado atribuir o nome de populista a diversas práticas e pensamentos presentes na Rússia czarista daquele século. Os populistas abominavam o Estado czarista, e clamavam pela substituição da autocracia, emancipação dos camponeses e oprimidos da cidade, e pela superação das desigualdades características da sociedade russa. No fim do século dezenove a expressão populismo estava presente na agenda política dos Estados Unidos da América. Surgiu a partir de um movimento que unia os fazendeiros do Sul e do Meio-Oeste em uma luta contra as modificações introduzidas pelo forte desenvolvimento econômico trazido pelas ferrovias e pelas novas formas de comercialização que, ao diminuir o poder de barganha relativo dos fazendeiros, trouxe como consequência uma deflação nos preços dos produtos agrícolas.

Em sua análise sobre as alterações nas estruturas políticas, sociais e econômicas no Brasil, em função do crescimento demográfico, urbano e industrial, Michael Conniff (1981) afirma que, à medida que a classe trabalhadora urbana crescia, suas ações não mais podiam ser totalmente controladas como era tradição na República Velha. Líderes populares de diversos matizes convenciam os operários a se unir aos sindicatos e às sociedades de ajuda mútua, com o objetivo de melhorar seus padrões de vida. Era difícil, na década de 1920, manter a militância, mas a difusão de associações voluntárias no seio da classe trabalhadora era o presságio de um importante incremento da presença das massas na vida pública. Alguns membros da elite e setores da classe média enxergavam a necessidade de reformas e de programas para os mais necessitados. A importância eleitoral da população urbana reflete-se no fato de que os dois candidatos à Presidência, em 1930, prometiam reformas que eram apoiadas pelos eleitores urbanos, como temas relacionados ao trabalho, serviço público, comércio, e planejamento urbano.

Conniff argumenta, ainda, que quando o populismo surgiu adotou propostas reformistas que atuavam como uma ponte entre as antigas tradições que marcavam os governos locais e os sistemas políticos do século vinte. O populismo chegou favorecendo

112

as eleições representativas, o intervencionismo e um sistema social orgânico, tendo a qualidade de olhar, tanto para o tradicional, quanto para o moderno. Os líderes populistas nem sempre estavam conscientes das fontes de sua inspiração, mas os costumes e tradições coloniais ofereciam legitimidade e aceitabilidade às suas propostas. Estas pareciam familiares e justas, ficando mais próximas de um consenso do que o conseguiram as ideologias importadas. Além disso, para Conniff, o populismo prometia restaurar a sociedade holística e autogovernada, que foi sendo substituída ao final do século dezenove. Isto fazia sentido para uma sociedade na qual havia um lugar para todos os indivíduos, indistintamente da classe à qual pertenciam. Ao contrário do liberalismo, que parecia somente poder ser aproveitado pelos mais ricos, o populismo clamava por um Estado intervencionista que cuidaria de todos os indivíduos, regularia as relações econômicas, promoveria o bem-estar dos oprimidos, e traria justiça social a todos. A força do populismo provinha do fato de que ele reavivava costumes que ainda não haviam ficado esquecidos na memória popular. Evidentemente, os políticos populistas não poderiam recriar, no século vinte, as cidades coloniais; no entanto, trouxeram, evitando anacronismos, os elementos que puderam ser adaptados à cidade grande. Combinaram uma ordem patrimonialista com as antigas tradições da autonomia municipal. Desta forma, o populismo prometia a restauração da soberania ao povo e relações harmoniosas com as autoridades nacionais. Conniff considera que a dificuldade em se caracterizar ideologicamente o populismo está no fato de que ele remetia a uma tradição claramente compreendida pela maioria das pessoas, sem necessidade de maiores elaborações; em consequência, o líder populista mantinha a fé dos seus seguidores, mesmo quando suas metas falhavam, tendo em vista a promessa implícita de restauração das tradições que se haviam perdido.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a democracia representativa chega ao Brasil com a derrubada da ditadura Vargas, cercada de expectativas. As oligarquias já não mais podiam definir o sistema político em um ambiente de expansão do eleitorado e de existência de partidos competitivos. Passa a haver uma disputa eleitoral real, cujo resultado não podia ser antecipado, como antes, por acordos oligárquicos. Estas mudanças eram mais sentidas nas áreas urbanas. Nos grotões, a ação das oligarquias ainda se fazia sentir, mas sua influência sobre os resultados finais perderam força, e a imprevisibilidade passou a ser um fator presente nas eleições majoritárias. Neste novo contexto político, ganha impulso o fenômeno populista.

No Brasil, podemos aceitar que foi no Estado de São Paulo onde a expressão populismo surgiu com significado político. Regina Sampaio (1982) descreve que Adhemar de Barros e seus partidários usavam expressões associadas a este termo no sentido de alcançar o eleitorado paulista, conforme pode ser visto neste depoimento tomado pela autora: “Todas as noites, às sete horas, [...] ele tinha aquela conversa de caboclo franco [...] falava errado até. Era uma novidade, nunca houve isso, foi daí que surgiu o termo populismo” (Sampaio, 1982:45). Nesta ocasião, começou a surgir o mito Adhemar de Barros, que era composto pelo administrador empreendedor, mas com um absoluto desprezo pelas limitações de

113

ordem financeira, ao lado do político identificado com o Estado e responsável direto pela proteção aos humildes, que não tinham acesso às estruturas de poder.

Embora a ação política de lideranças políticas no pós-1945 seja vista como responsável pelo fortalecimento do populismo no Brasil, José Murilo de Carvalho (2002) aponta o governo do prefeito Pedro Ernesto, na década de 1930, no Distrito Federal, como o que deu os primeiros passos daquilo que se tem chamado de populismo. Ao procurar apoio na população pobre das favelas, e ser o pioneiro na utilização política do rádio em suas campanhas, o prefeito teria iniciado o que depois foi chamado de política populista no Brasil. Considero que o esforço para um melhor entendimento sobre o populismo no Brasil está ligado, e com grande aceitação na literatura a este tema relacionada, à utilização deste termo para o período de 1945 até 1964, ou seja, da redemocratização do pós-guerra até o movimento militar de 1964. De acordo com Maria Celina D’Araújo (1992), o populismo é visto, por uma maioria de cientistas políticos e historiadores, como um aspecto primordial da política brasileira no período pós-1945.

Para Octavio Ianni (2004), uma das características da história do Brasil é que o nosso país se pensa contínua e periodicamente. O pensamento social brasileiro, desde a Proclamação da República, tem dado ênfase à questão da inserção do Brasil na modernidade. Temas como urbanização e industrialização estiveram presentes nos estudos dos pensadores preocupados em compreender quais poderiam ser as condições e possibilidades de alcançarmos nossa modernização. O que torna fascinante e instigante o estudo destas ideias é a variedade das interpretações e, consequentemente, das “receitas” para a superação do nosso atraso. Estas interpretações e suas diretrizes são múltiplas, e frequentemente contraditórias, apesar de podermos agrupá-las, pois tendem a se aglutinar em certas orientações, linhagens ou “famílias”.

Algumas destas, no período de 1945 a 1964, podem ser destacadas. Nos escritos de Francisco Weffort e de Octavio Ianni, da Escola de Sociologia da USP, constata-se uma interpretação afinada com a perspectiva marxista da divisão social em classes, tendo sido o populismo analisado sob este viés. Já as análises acerca do populismo de autores como Helio Jaguaribe, Guerreiro Ramos e Candido Mendes, que fizeram parte do ISEB, estavam focadas na preocupação com o desenvolvimento nacional. O pensamento econômico liberal de autores como Eugênio Gudin, Octavio Gouvêa de Bulhões, e Roberto de Oliveira Campos identifica no populismo um viés econômico que funciona como um obstáculo ao desenvolvimento sustentado de uma sociedade. Isto aconteceria porque, para eles, o populismo procura alocar recursos preferencialmente a grupos políticos mais ativos, e é marcado pela ausência de preocupações para com a responsabilidade fiscal, uma vez que o discurso do “bem do povo” justificaria estas ações.

A Escola de Sociologia Paulista

É sobejamente conhecida a relevância acadêmica que teve a Escola de Sociologia

114

Paulista, não somente por razões históricas, uma vez que foi na USP que se realizaram as primeiras tratativas no sentido da institucionalização desta disciplina como profissão acadêmica no Brasil, como pela considerável quantidade e qualidade das pesquisas e publicações nesta área de estudo. Um elemento que considero de fundamental importância para o melhor entendimento das preocupações acadêmicas dos intelectuais da Escola de Sociologia Paulista é o fato de eles estarem situados no epicentro da industrialização e das consequentes mudanças sociais no país. Sendo esta Escola fortemente marcada, no período 1945-1964, pelo pensamento marxista, é lícito argumentar que o sucesso político de Adhemar de Barros e Jânio Quadros junto ao eleitorado de um estado cada vez mais industrializado como São Paulo, trazia preocupações intelectuais aos estudiosos cujo marco teórico estava fundamentado na divisão da sociedade em classes sociais. Bolivar Lamounier (2005) considera que os termos “populismo” e “liderança carismática” eram função dos referenciais teóricos sob os quais fossem estudados. Assim sendo, para os autores marxistas, o populismo seria uma forma de liderança que se valeria da demagogia para fazer com que os interesses de classe não pudessem ser enxergados.

A influência do pensamento marxista, na análise que Francisco Weffort faz do populismo no Brasil no período de 1945 a 1964, é básica. Destacarei dois conceitos marxistas que perpassam suas análises. Um deles é o que ficou conhecido como bonapartismo; Marx (1987), procura explicar as razões de “não-classe” que levaram os camponeses franceses a apoiar Luís Bonaparte. O conceito de bonapartismo questiona a ideia de que haveria uma correspondência direta entre as classes e o Estado. Teria surgido para tentar explicar governos nos quais o Estado arbitrava entre diferentes classes proprietárias, apoiando-se em setores não proprietários. Napoleão III teria se apoiado no campesinato para isolar o proletariado. Segundo Weffort, o populismo é um fenômeno político de massas, típico das regiões atingidas pela intensificação do processo de urbanização, pautado por uma relação específica entre os indivíduos e o poder político; esse poder é exercido através de um líder tutelador. Weffort (2003) afirma que essa dominação é como uma expressão política de interesses determinados de classe. E numa clara referência ao conceito de bonapartismo, afirma que o populismo seria sempre uma forma de exaltação de uma pessoa na qual esta aparece como a imagem desejada para o Estado. A massa voltar-se-ia para o Estado e dele esperaria “o sol ou a chuva”.

Um segundo conceito do pensamento marxista a ser ressaltado é o de alienação, ou ausência de consciência (Marx e Engels, 2001). Weffort argumenta que a ausência de uma consciência de classe marcava o comportamento político das classes populares urbanas durante o período populista: “Seu caráter de massas está condicionado diretamente à heterogeneidade de sua composição, que tanto obscurece uma possível consciência de seus interesses comuns como classe, quanto cria possibilidades de mobilidade intraclasse” (Weffort, 2003:176). A partir da redemocratização, a “democracia defronta-se – apenas começa a instaurar-se no pós-guerra – com a tarefa trágica de toda democracia burguesa: a incorporação das massas populares ao processo político” (ibidem:15) e as massas passam

115

a exercer crescente pressão sobre a estrutura do Estado. O autor considera que quando as massas populares urbanas aparecem na história do Brasil, elas se tornam “a única fonte de legitimidade possível ao novo Estado brasileiro” (ibidem:54). A tensão entre populismo e nacionalismo, naquele período, está presente nos escritos de Weffort. Na sua crítica ao nacionalismo reformista, Weffort afirma que este “foi pouco mais que uma forma pequeno-burguesa de consagração do Estado” (ibidem:45). Acusa, também, os nacionalistas de não serem capazes de entender o populismo, recusando-lhe um sentido ideológico, “o que significa considerá-lo um fenômeno pré-político ou para-político” (ibidem:25). Além do mais, tal como os populistas, os nacionalistas também teriam prejudicado a formação da consciência de classe dos operários e são responsabilizados pela derrota ante o movimento militar de 1964 (ibidem:41).

Faz-se necessário atentar à ênfase que Weffort dá à necessidade de se relativizar, tanto a noção de manipulação, quanto a de passividade popular, enraizadas no senso comum, e associadas ao populismo. Weffort considera que a imagem mais adequada para que sejam mais bem compreendidas as relações entre as massas urbanas e os grupos representados no Estado é a de uma tácita aliança entre partes de diferentes classes sociais. Mas a ideia de manipulação está presente nos escritos de Weffort quando se refere ao período da ditadura Vargas. Este criara uma estrutura sindical que ele iria controlar nas próximas décadas, pela via de uma legislação trabalhista para as massas urbanas.

A dependência de diferentes grupos em relação ao Estado é uma figura recorrente e básica nos argumentos de Weffort. Com a crise das oligarquias, cria-se um quadro no qual diversos agentes políticos e econômicos que disputam a hegemonia do poder não consigam alcançá-la. O conceito de “crise de hegemonia” é também desenvolvido por Weffort (s. d.). Neste trabalho, ele realça a importância das influências econômicas, políticas e ideológicas durante o período da redemocratização, chamando a atenção para as condições que foram herdadas das estruturas anteriores. O equilíbrio instável daí decorrente e, primordialmente, a incapacidade de qualquer dos grupos assumirem a representatividade da classe dominante, teria sido uma das características mais marcantes do período da redemocratização. Nestas circunstâncias, as massas populares conquistam uma relevância ímpar. Estaria na fragilidade e ineficiência dos grupos dominantes de assumir, como classe, o poder e as responsabilidades do Estado, a eficácia das lideranças populistas.

Para Ianni (1975), durante o período de 1914 a 1964 foram criadas as condições institucionais, políticas e culturais para uma sociedade industrializada e de predominância urbana. A partir de 1945 as massas teriam começado a participar em decisões políticas e na formulação dos objetivos nacionais. Argumenta que o modelo de desenvolvimento e organização da economia, ao qual chama de getuliano, apoiava-se na substituição de importações. Para isto, fazia-se necessário atender ao setor agrário que, na fase inicial do processo, continuaria a prover as divisas a serem usadas em investimentos que demandassem importações. O conceito marxista de luta de classes é uma importante referência na crítica que Ianni faz da atuação das esquerdas no Brasil no período considerado, notadamente

116

com relação ao Partido Comunista. Ianni interpreta que, na prática, a esquerda adotou a política de substituição de importações como uma etapa do processo de revolução no Brasil. Grave erro, pois a esquerda, ao “adotar e emaranhar-se na política de massas [...] não pode transformar a política de massas em luta de classes” (Ianni, 1975: 93).

A política de massas, o dirigismo estatal, e uma política externa independente eram os elementos fundamentais de um padrão político e econômico consubstanciado na democracia populista no pós-1945. Em Ianni, a política das massas é um elemento crucial no processo de industrialização. Chama a atenção para o que denomina de núcleo ideológico da política de massas: o nacional-desenvolvimentismo, com uma crescente participação do Estado na economia, exigência e consequência de um programa de nacionalização de decisões. O fenômeno populista estaria ancorado no binômio industrialização-urbanização. A migração interna seria outro elemento importante para a compreensão da estrutura do populismo. O horizonte cultural daquele migrante que ia para as cidades e para os centros industriais ainda estava marcado por valores e padrões do mundo rural.

Pela importância que o modelo de desenvolvimento apoiado na substituição de importações teve no crescimento da nossa economia, destaco a afirmação de Ianni de que “os elementos fundamentais desse padrão político-econômico estão consubstanciados na democracia populista desenvolvida depois de 1945” (ibidem:54). Por estar baseado na transferência de divisas do setor agroexportador para investimentos destinados a atender ao mercado interno, o modelo referido rompia com os até então paradigmas de relações entre o Estado e as forças agrícolas internas. O Estado “com base na política de massas e no dirigismo estatal, estabelece gradações nas rupturas estruturais indispensáveis à sua execução. Fundamenta a política externa independente e implica uma doutrina do Brasil como potência autônoma” (idem).

Para Ianni, a queda de Vargas, em 1945, na onda de redemocratização do mundo capitalista, abriu espaço para o pluripartidarismo, mas não foi o fim das políticas populistas. Mais que isto, elas foram usadas como forma de legitimar a dominação: a política de massas, diferentemente da política de partidos, “é o fundamento da democracia populista, que se organizou paulatinamente nas décadas que antecederam a mudança repentina ocorrida a partir do Golpe de Estado de 1º de abril de 1964” (Ianni, 1975:9).

Populismo e nacional-desenvolvimentismo

Os encontros do que ficou conhecido como grupo de Itatiaia iniciaram-se em agosto de 1952, no Parque Nacional de Itatiaia, em local cedido pelo Ministério da Agricultura, quando começou a reunir-se um grupo de intelectuais em cuja agenda constava “o esclarecimento de problemas relacionados com a interpretação econômica, sociológica, política e cultural de nossa época, [...] e com o estudo histórico e sistemático do Brasil” (Schwartzman, 1981:3). Este grupo seria a semente do Instituto Brasileiro de Economia,

117

Sociologia e Política (IBESP) e do subsequente Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Em 1953, o IBESP começa a publicar os Cadernos do Nosso Tempo, totalizando cinco volumes. Esta publicação seria considerada o berço da ideologia nacional-desenvolvimentista, que cresceria no decorrer da década, sendo o IBESP o núcleo básico para a organização do ISEB.

As ideias do ISEB estavam afinadas, no plano econômico, com o pensamento da CEPAL, em especial com as de Celso Furtado que, embora não tenha feito parte formal do ISEB, estava próximo das ideias daquele grupo. Esta proximidade é claramente evidenciada quando se destaca que um importante livro de Celso Furtado, A Operação Nordeste (1959), é fruto de uma exposição, seguida de debates, por ele realizada no curso de “Introdução aos problemas do Brasil”, destinado aos oficiais das Forças Armadas, em 13 de junho de 1959, no auditório do ISEB, na Rua das Palmeiras, 55, Rio de Janeiro. Bresser-Pereira (2004) nota a presença de uma forte sinergia entre os pensamentos da CEPAL e do ISEB, embora sublinhe que as ideias deste não eram radicais no plano político, uma vez que consideravam que a formação do Estado nacional deveria ser efetivada por meio de uma aliança entre capital e trabalho.

Thomas Skidmore (1976) chama a atenção para as opiniões e as características do grupo que modelou o pensamento do ISEB, nos seus primórdios. Seus integrantes pertenciam, em sua maioria, a uma geração com cerca de 30 anos de idade, pertencendo a uma elite administrativa e intelectual. A classe média urbana que emergia estava ávida pelos empregos que um projeto desenvolvimentista alavancado pelo Estado certamente lhe traria. Por outro lado, a classe operária urbana era um receptáculo previsível ao discurso nacionalista, como ficou comprovado na campanha pela criação da Petrobrás. “De fato, a linguagem do nacionalismo econômico parecia-lhes mais fácil de entender do que a ideia do conflito interno de classes” (Skidmore, 1976:143). Os intelectuais do ISEB entendiam o desenvolvimento, em sua forma mais abrangente, como reformas estruturais profundas e, mais especificamente, como um processo de industrialização mediante o qual o crescimento da renda per capita seria autossustentável. Durante o processo de institucionalização do mercado interno, haveria uma associação entre a burguesia nacional, a burocracia estatal, e os trabalhadores, sendo o interesse nacional o objetivo comum.

No artigo Que é o ademarismo ( Jaguaribe 1981:23-30) publicado no primeiro semestre de 1954, os intelectuais do IBESP ressaltam a relevância do estudo do populismo por enxergarem a possibilidade de sucesso da candidatura de Adhemar de Barros nas eleições presidenciais de 1955. Na procura do entendimento de o que seria o ademarismo, afirma-se contundentemente: “O ademarismo é um populismo” (ibidem:25). Esta seria a classificação que melhor lhe conviria e que, segundo o artigo, já vinha sendo utilizada na linguagem corrente inúmeras vezes. Chamava a atenção, no entanto, para o fato de que o populismo, nas condições brasileiras, ainda não havia sido conceituado. Identificava-se uma influência marxista na confusão que se tem feito entre movimentos de base popular e os movimentos de esquerda. Argumenta que, uma vez que para estes existe o pressuposto de

118

que posições reacionárias só podem ser assumidas por integrantes das classes dominantes, surge uma tendência a interpretar que quaisquer manifestações políticas apoiadas em extensa base popular tenham valores progressistas e inovadores. O populismo, entretanto, seria uma manifestação de massas, e não de classe.

A política de massas, uma das características do populismo, poderia ser vista como decorrente da moderna divisão do trabalho, com sua proletarização e urbanização, mas sem que os trabalhadores tivessem alcançado, nem consciência, nem sentimento de classe. Isto, porém, não seria suficiente para o surgimento do populismo. Far-se-ia necessário, também, que a classe dirigente tivesse perdido sua representatividade. Por meio deste processo, a classe dirigente, transformada em classe dominante, “perde, igualmente, seu poder criador e sua exemplaridade, deixando de criar os valores e os estilos de vida informadores da conduta média da comunidade” (ibidem:26). Estas condições históricas e sociais ainda não bastavam. Além destas condições mais gerais, seria preciso uma terceira condição, “que é o aparecimento do líder populista, do homem carregado de um especial apelo às massas, apto a mobilizá-las politicamente para a conquista do poder” (ibidem:27).

A maioria dos intelectuais do ISEB concordava que a questão do desenvolvimento nacional era do interesse de toda a nação, e não apenas dos grupos dominantes do cenário político-social. Tendo passado por momentos de dissensões e reformulações internas, as posições destes intelectuais em relação às ações políticas e econômicas eram diversas. Um marcante episódio de tensão foi por ocasião do lançamento do livro O nacionalismo na atualidade brasileira, de Hélio Jaguaribe (1958). Neste livro, Jaguaribe fazia fortes críticas ao nacionalismo brasileiro, afirmando tratar-se de uma ideologia vaga, sem formulação teórica e carregada de contradições, de insuficiente caracterização, reunindo correntes de extrema direita, ligadas, no passado, aos movimentos de propensão fascista, e correntes de extrema esquerda, como o Partido Comunista.

Skidmore comenta que os nacionalistas radicais, de dentro do ISEB viam a abertura para o capital estrangeiro como excessivamente pragmática. Esta queda-de-braço trouxe como consequência um racha no Instituto, que levou às renúncias, em fins de 1958 e princípios de 1959, de Jaguaribe, de Candido Mendes e de Guerreiro Ramos. Conforme Maria Emilia Prado (2007), a obra de Jaguaribe acima citada teria sido um ponto de inflexão nos debates intelectuais dentro do ISEB. Prado enfatiza a contribuição de Jaguaribe na quebra da quase unanimidade das interpretações hegemônicas na intelectualidade ligada, à época, ao desenvolvimentismo, e que rejeitava a possibilidade de aceitarmos o capital estrangeiro como parceiro na busca do desenvolvimento do Brasil.

Jaguaribe (1967) apresentou uma interessante análise crítica sobre o fenômeno populista na América Latina em geral, e no Brasil, em particular. Na sua interpretação, o populismo representaria uma relação direta entre as massas e um líder, em uma aliança que forneceria ao líder o apoio das massas, em seu objetivo de conquista de poder político. O líder necessitaria ser carismático o suficiente para fazer as massas acreditarem que suas (do povo) expectativas de ascensão social seriam atingidas, caso ele alcançasse o poder. Além

119

disso, seria típico do populismo que as relações entre o líder e as massas fossem diretas, sem intermediações de qualquer espécie, apoiadas na esperança de que, quanto mais rapidamente fosse entregue mais poder ao líder, também mais rapidamente beneficiadas seriam as massas. Uma razão pela qual o populismo teria sido um caminho recorrente no desenvolvimento político latino-americano estaria no fato de que houve, na América Latina, uma contenção na modernização das massas, que somente no século vinte veriam difundidos as ideias, os valores, e o comportamento modernos, em função da carência da educação das massas em nosso continente. Isto teria levado a uma conscientização explosiva “de sua condição de miséria, bem como de sua possibilidade de mudar tal estado de coisas através de meios políticos, e investiram suas expectativas [...] no expediente mais direto, ou seja, o líder carismático” ( Jaguaribe, 1967:168). No caso brasileiro, Jaguaribe aponta como uma das causas do fracasso do populismo a incapacidade de os movimentos populistas conquistarem maiorias suficientemente amplas. Não teriam sido capazes de incorporar, majoritariamente, a classe média, tampouco a maioria do eleitorado.

Guerreiro Ramos foi um dos intelectuais mais influentes do ISEB, e também o diretor do seu Departamento de Sociologia até a sua saída, em dezembro de 1958. No livro A crise do poder no Brasil, publicado em 1961, desenvolve cinco formas, ou fases, de políticas no intuito de analisar a evolução da política brasileira. Chama a atenção para o fato de que, apesar de estas fases da política possuírem uma tendência a surgir sucessivamente, podem, eventualmente, apresentar-se simultaneamente.

A primeira seria a política de clã, dominante no Brasil colonial, com seus pequenos grupos de população, com alto grau de isolamento e de autossuficiência. “O clã é unidade social cujos integrantes acham-se fortemente ligados por laços de parentesco, em suas várias formas, e de dependência residencial, e não têm consciência de nenhum instituto de direito público” (Ramos, 1961:49). Ali, a autoridade do senhor territorial é avassaladora, não se separando o poder privado do poder público. Ramos denomina a segunda política de política de oligarquia. Diferentemente da primeira, cujos limites não ultrapassam as terras do senhor, a política de oligarquia aparece quando o Estado se organiza nas ordens municipais, provinciais e nacionais. Os antigos clãs teriam se organizado em grupos maiores, as oligarquias, com o objetivo de disputar o poder.

Quando começa a “surgir o ‘espírito público esclarecido’ e ‘a opinião que se faz respeitar’” (ibidem:55) estarão criadas as condições para o surgimento da política populista, a terceira fase de política sugerida por Ramos. O populismo seria um avanço quando comparado à política de clã e à política de oligarquia, pois apelaria apenas a uma discreta solidariedade social, e não ao parentesco, em suas diversas formas. Mesmo reconhecendo que já havia sinais de populismo na República Velha, Ramos considera que a política populista só passa a ser dominante depois do fim do Estado Novo. Isto porque a independência dos eleitores, comparada ao sistema eleitoral no período oligárquico, e o sucesso eleitoral de líderes populistas somente são possíveis em um quadro eleitoral com um mínimo de respeitabilidade às leis.

120

A quarta fase, a política de grupos de pressão, seria contemporânea de uma época na qual já há uma abrangente organização de classes sociais em partidos, e uma adiantada estrutura econômica. Já não mais seria possível que os governos fossem exercidos de forma pessoal ou por meio de apenas simbólicos entraves institucionais. Estes grupos de pressão seriam a forma de atuação de demanda de diferentes círculos, atuando junto às autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Guerreiro Ramos afirma que onde as atividades produtivas não são bem diferenciadas, não há a ocorrência de formação de grupos ou classes sociais, “distintos em sua psicologia” (ibidem:60). Quando isto ocorre, passa a haver a exigência de uma política ideológica, a quinta fase de política de Ramos.

Candido Mendes de Almeida (1977) defende que a vida política brasileira do pós-guerra é marcada por três elementos essenciais. Inicialmente, teria surgido uma polarização persistente entre os seguidores de Vargas e seus opositores. O longo primeiro governo de Vargas, presidente de 1930 a 1937 e, em seguida, chefe do Estado Novo, de 1937 a 1945, influenciou profundamente a cena política. O segundo elemento é que a inflação e a crescente dívida externa destruíram os esforços no sentido de se dar continuidade a políticas de longo prazo, que pudessem passar de um governo para os seguintes. As tentativas no sentido de se debelar a inflação baseadas em políticas ortodoxas de austeridade encontraram forte resistência social e, aos primeiros sinais de recessão, deram lugar a políticas destinadas a aumentar o crescimento econômico. Isto fez com que houvesse um relaxamento no controle de crédito, nas medidas destinadas a conter os gastos públicos, e na pressão por aumentos salariais. A dívida externa passou a ser um elemento político complicador. A terceira característica seria a presença ativa das Forças Armadas, prontas a intervir sempre que os procedimentos “legais” fossem obstaculizados, ou parecessem ameaçados.

Por trás desta marca na nossa vida política encontraríamos alguma capacidade de adaptação na sociedade brasileira do pós-guerra. Tendo amadurecido em sua situação neocolonial derivada de seu status de nação independente, o Brasil experimentou as dificuldades de uma sociedade que se modernizava e industrializava, e estas modificações se refletiriam no jogo político. Segundo Mendes, de uma forma esquemática, a chegada de Getulio Vargas ao poder, em 1930, marcou o fim da República Velha. Antes, a vida política era protagonizada por uma pequena elite, nos estados, de uma forma altamente descentralizada; as importantes influências políticas eram exercidas pelos grandes proprietários de terras e pelas grandes empresas exportadoras; agora, a vida política começava a ser aberta a novas classes sociais. O eleitorado, ainda que com a exclusão dos analfabetos, incorporou um número crescente de empregados e operários nas cidades. A política varguista anterior à guerra, claramente reconhecia estas mudanças sociais. Candido Mendes pontua que as mudanças estruturais precipitadas pelas condições que surgiram após 1945 tornaram possível o começo de mudanças sociais sem que fossem testados os mecanismos de pressão por parte de grupos de interesse e classes sociais. O populismo teria procurado substituir o dinâmico processo de demandas sociais e pressões coletivas

121

pelo uso dos mecanismos de Estado na decisão de alocação de recursos. Considera que a utilização, de forma populista, das regulamentações institucionais introduzidas após 1930, teve um efeito decisivo para a mobilização social. Delas surgiram os mecanismos de assistência mediante os quais o Estado comandava o processo de mudanças no Brasil, independentemente da força relativa dos grupos em disputa. Como exemplos destas ações, Mendes cita a instituição do salário mínimo, que se tornou necessário em função da expansão do mercado interno e do setor industrial, e a manipulação das taxas de câmbio, com o objetivo de beneficiar a crescente burguesia nacional. De ações com este viés teria surgido um Estado onipresente, cuja relação com a sociedade era ambígua.

Populismo e liberalismo econômico

Eugênio Gudin Filho, Octavio Gouvêa de Bulhões e Roberto de Oliveira Campos se destacaram por suas ideias afinadas com as do liberalismo. Suas análises são relevantes para a compreensão do fenômeno do populismo no período de 1945 a 1964. Pela atuação e influência que tiveram, tanto no campo acadêmico quanto na vida pública, considero-os representativos da visão do pensamento econômico liberal sobre o fenômeno populista. Embora a perspectiva economicista destes pensadores fosse claramente hegemônica, quando vista de uma forma mais ampla havia algumas diferenças entre eles, dependendo de sua maior ou menor aproximação com temas tais como o liberalismo econômico clássico, sua propensão a aceitar o envolvimento do Estado, e suas análises sobre a inflação. Apesar do fato de admitirem um limitado envolvimento do Estado no processo de desenvolvimento, suas teorias e práticas procuraram marcar a importância de uma visão ortodoxa e liberal da economia, tanto como ciência, quanto na execução de políticas públicas. A crise internacional e as transformações econômicas, políticas e sociais que se seguiram aos anos 30 do século XX enfraqueceram a tradição da ideologia econômica brasileira liberal. Em consequência, esta ideologia teve de passar, no Brasil, por transformações que viabilizassem sua ação frente à nova realidade. Os economistas liberais preocupavam-se, primordialmente, em defender o sistema de mercado, e dois aspectos caracterizaram sua posição: eram partidários da redução da intervenção do Estado na economia brasileira, e manifestavam-se a favor de políticas de equilíbrio monetário e financeiro.

Gudin é considerado o mentor, tanto de Bulhões, como de Campos. Estes pensadores preocupavam-se com a inflação, os déficits orçamentários, e as distorções e subsídios que prejudicavam a formação de preços e a alocação mais eficiente dos recursos produtivos. Raposo (1997) chama a atenção para a importância que teve, no Brasil, o relacionamento pessoal das elites burocráticas, relacionamento este capaz de compensar a fragilidade do nosso sistema institucional. Raposo mostra que a antiga Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade do Brasil (onde lecionaram Gudin, Campos e Bulhões) e o Núcleo de Economia, liderado por Gudin e que se formou nos anos 40 na Fundação Getulio Vargas, também no Rio de Janeiro, serviram de base para

122

a sinergia que existiu nos quadros que colaboraram nas políticas econômicas do governo Castelo Branco. O ideário liberal que lhes servia de postulado redundava em propostas econômicas que visavam, primordialmente, à estabilidade monetária. A preocupação com a inflação era imensa, e ela era vista como causa principal dos déficits externos. Gudin, a partir da década de 30, passou a integrar importantes órgãos técnicos e consultivos de coordenação econômica criados pelo governo federal. Primeiro ministro da Fazenda do governo Café Filho, entre agosto de 1954 e abril de 1955, herdou uma difícil situação econômica, agravada pelo decreto de Vargas, de maio de 1954, concedendo um aumento de 100% ao salário mínimo. Gudin comprometia-se com um plano de estabilização e com o corte dos déficits do governo, vistos como os principais responsáveis pela inflação. Em setembro, viajou para Washington para o encontro anual do Banco Mundial e do FMI, no qual pretendia informar sobre o programa de combate à inflação que iria lançar. A reação das esquerdas logo se fez sentir: “Os críticos ‘nacionalistas’ no Brasil aproveitaram a sua viagem para atacar Gudin, pela sua missão de ‘pedinte’, dizendo que sua política monetarista ortodoxa resultaria em estagnação econômica” (Skidmore, 1976:199).

As ações de Gudin mais significativas na sua tentativa de controle monetário foram a de reduzir consideravelmente as reservas monetárias, ao aumentar o saldo de caixa mínimo exigido aos bancos comerciais, assim como a obrigatoriedade do recolhimento da metade de todos os novos depósitos na Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), o órgão monetário nacional. As restrições tiveram consequências rápidas e duras: em novembro de 1954, o Banco do Brasil foi chamado a fazer adiantamentos a diversos bancos, no sentido de aplacar o pânico que se criou após o fechamento de dois bancos em São Paulo. No início de 1955, Café Filho cedeu a pressões no sentido de fazer mudanças na política de restrição creditícia. Em abril de 1955, antevendo que os compromissos políticos de Café Filho trariam danos irreparáveis ao seu programa antiinflacionário, Gudin demitiu-se (Skidmore, 1976).

Era fundamental, para Gudin, a necessidade de se manter a previsibilidade do valor da moeda. Uma moeda corroída pela inflação, rejeitada pelos agentes econômicos, deformaria os investimentos, inviabilizando o planejamento das empresas e prejudicando o desenvolvimento econômico. A busca da estabilidade deveria ser feita com o maior rigor possível, mas sem utilizar-se da deflação, por seu impacto negativo sobre o nível de emprego, a produção e a arrecadação: “O que importa é o restabelecimento do equilíbrio. Assim, os dirigentes da economia de um país, que decidem pôr termo aos males causados pela inflação, devem limitar-se a fazer cessar essa inflação, e nunca a proceder a uma deflação” (Gudin, 1965:17).

Fiel às suas ideias, marcadas pela defesa incondicional do liberalismo econômico, bem como em suas críticas à utilização exacerbada da política fiscal no sentido arrecadatório e às teorias econômicas keynesianistas que legitimavam os déficits públicos, Gudin cita Milton Friedman ainda ao tempo em que as teorias de John Maynard Keynes eram politicamente incontestadas:

123

Contra o uso e abuso da política fiscal tem-se insurgido ultimamente o eminente professor Milton Friedman, declarando que “de todas as ferramentas à disposição do Governo, a mais importante e de mais rápida ação é, de muito, a arma monetária, inteligentemente utilizada, a tempo e a hora” e que os keynesianos têm confiado demais nas medidas fiscais e subestimado a influência da política monetária. Sua previsão de que nos Estados Unidos a sobrecarga de 10% no Imposto de Renda seria ineficaz, sem o complemento do descongestionamento monetário, prova ser verdadeira. Conquanto as idéias de Friedman sejam consideradas por demais radicais pela maioria dos grandes economistas americanos, suas idéias sobre a política monetária têm tido indiscutível repercussão (Gudin, 1974:258).

O círculo vicioso das seguidas emissões de papel-moeda foi denunciado por Gudin, ao analisar o governo Kubitschek. Durante este governo, o Congresso Nacional autorizou aquelas emissões como forma de financiar o déficit público, o que era visto por Gudin como um ato irresponsável por parte do Estado e gerador de pressão inflacionária, por vir acompanhado de mais despesas do governo: “Enquanto o Congresso Nacional puder votar despesas sem indicar as fontes de receita correspondente, não poderá haver equilíbrio nas contas financeiras da União” (Gudin, 1965: 53).

Ao emitir dinheiro com o objetivo de cobrir suas despesas, o governo estaria desvirtuando as qualidades básicas de uma economia de mercado, entre as quais, a da livre concorrência. Nenhum outro setor estaria em condição de concorrer com o poder de um governo que assim agisse. Acontece que, assim procedendo, o governo incentivava a pressão por aumento de salários, lucros e juros, o que tenderia a reequilibrar o processo em outro patamar de preços. Esta prática, utilizada continuadamente, levaria a uma inflação crescente. O dinheiro ficava mais disponível, pois, além das emissões feitas pelo governo, estávamos diante de uma “flexível” política salarial. No intuito de alcançar ganhos políticos imediatos, os governos com orientação populista lançam mão de aumentos salariais acima da produtividade do trabalho, melhorando o bem-estar dos trabalhadores no curto prazo, sem levar em consideração as consequências de longo prazo de tais políticas. Esta lógica populista produz distorções, pois o excesso de demanda provocado por estas políticas salariais não tem uma contrapartida no aumento da capacidade produtiva. O aumento artificial dos salários reais provoca fortes desequilíbrios, que prejudicam a situação dos trabalhadores em termos de ganhos reais e emprego. Esta disponibilidade da base monetária era o diferencial que catalisava a espiral inflacionária (Gudin, 1965).

Gudin foi uma voz combatente contra o populismo salarial, visto como um excesso demagógico que, em vez de procurar atender aos princípios de eficiência e utilidade, satisfazia necessidades políticas imediatistas. Para ele, a fixação dos salários mínimos, a partir de 1954, em níveis consideravelmente mais altos do que os da capacidade de produção do país, trazia como consequência uma elevação dos preços e do custo de vida. Estes aumentos de preços e custos levavam, inevitavelmente, à anulação de quaisquer

124

vantagens imaginadas pelos supostos beneficiários.Octavio Gouveia de Bulhões fez parte de grupo de intelectuais que deu início aos

modernos estudos da economia brasileira. Segundo Bulhões (1969), a forte presença do Estado na economia de um país é obstáculo intransponível à livre formação de preços pelo mercado. Era, no entanto, pragmático com relação à importância que o Estado poderia ter no sentido de alavancar o desenvolvimento em certas circunstâncias, mormente em ambientes de desaceleração econômica. “A intervenção do Estado como empreendedor tem razão de ser quando se está passando por uma fase depressiva, por uma fase de difícil remuneração dos empreendimentos” (ibidem:31-32).

A consequência inevitável para uma economia em que não houvesse estabilidade monetária seria uma baixíssima taxa de poupança, uma vez que os agentes econômicos procurariam se livrar da moeda desvalorizada. Para Bulhões, em assim agindo, os agora improváveis investidores na produção passariam a alocar seus recursos de maneira conflitante com o interesse geral. Isto porque o ambiente desfavorável, por incerto, das aplicações em longo prazo, leva à aplicação dos recursos em empreendimentos que proporcionem resultados imediatos. Este imediatismo torna-se prioritário em vista das circunstâncias desfavoráveis aos planejamentos econômicos e financeiros de longo prazo. Haveria, também, outra distorção na alocação dos recursos: aquela que resultaria numa opção exagerada para bens de raiz que proporcionem garantia patrimonial. Esta consequente insuficiente formação de poupança traria a redução dos investimentos, com seus conhecidos efeitos nefastos para o crescimento econômico.

A importância da formação de poupança é salientada por Bulhões. Defendendo a meritocracia, explica que em qualquer sistema econômico, salários superiores são, normalmente, destinados aos indivíduos com capacidade acima da média. Quando um indivíduo recebe um salário superior ao comumente recebido, ele passa a dispor de um poder de compra maior. Caso ele aplicasse todo o seu excedente em consumo, provavelmente haveria um desperdício de recursos, principalmente se estivermos diante de um quadro de excesso de demanda. Para que se possa assegurar um desenvolvimento harmônico da economia, far-se-ia necessária a aplicação de parte do excedente salarial no financiamento de investimentos. Acontece que, para que seja atraente a alternativa de poupar, há que se remunerar a poupança e salvaguardá-la dos perigos inflacionários.

Fica claramente marcada a oposição que Bulhões quer enfatizar entre o pensamento liberal, em que os beneficios do crescimento econômico somente podem ser alcançados a longo prazo e com labuta incessante, e o pensamento dos populistas, com seu discurso voltado à realização das satisfações populares a curto prazo. Aqui ele estaria explicitando suas preocupações com a dificuldade de se convencer a maioria da população sobre a necessidade da aceitação do pensamento liberal.

Durante o início de sua carreira, Roberto Campos defendeu uma moderada intervenção estatal na economia, desde que ligada ao desenvolvimento e em conjunto com o setor privado e sem preconceitos contra o capital estrangeiro. Com a aceleração

125

do gigantismo estatal e da burocratização no Brasil durante os subsequentes governos militares, muito especialmente no governo Geisel, assumiu a posição de liberal econômico ortodoxo e passou a defender que um país só pode ter liberdade política com liberdade econômica. Convenceu-se de que o estatismo é trágico e empobrecedor quando foi embaixador em Londres, nas décadas de 1970 e 1980, e testemunhou o programa de privatização da economia inglesa, empreendido por Margaret Thatcher. Ex-keynesiano, na década de 70 foi influenciado pelas ideias do economista austríaco Friedrich August von Hayek, a quem conheceu em Londres. Conforme nos conta Campos (2008), seu contato com Hayek marcou-o profundamente, fazendo-o chegar à conclusão de que os governos teriam três tarefas essenciais a cumprir. A primeira, seria a de controlar a inflação, porque esta, ao não ter sido votada, era antidemocrática, além de especialmente cruel com os mais pobres. A segunda tarefa dos governos seria a de promover a universalização da educação básica. Por último, aos governos caberia a proteção aos desvalidos, no intuito de garantir a coesão social. A questão da desigualdade foi analisada por Campos a partir da expressão “justiça social”, discutida, naquele livro, por Hayek. Campos afirmava que esta expressão é desprovida de sentido. A ausência de critérios claros para que se faça a distribuição desta justiça, bem como para a definição de quem a distribuiria, faria com que, em uma sociedade de homens livres, todos se julgassem injustiçados.

A dificuldade em conciliar o aumento do desenvolvimento, o combate à inflação, e uma mais equitativa distribuição da renda, é vista por Campos como um grande óbice: “eis a cava angústia e o áspero desafio da questão salarial” (Campos, 1969:200). Enxergava nos países subdesenvolvidos dois enfoques que se salientam no trato da questão salarial: o populista, e o que chamou, à época, de tecnocrático. Este procuraria utilizar as receitas do liberalismo, mas teria dificuldades de se implementar de forma ortodoxa: “Lutando contra a inércia de uma longa tradição populista, o enfoque tecnocrático teve limitada aplicação no Brasil, a partir de meados de 1964” (ibidem:202). Campos lembra que a solução liberal para acabar com a pobreza está na criação de riqueza: no processo de criação de riqueza haveria uma melhora no nível de vida. Para os liberais, há dois tipos de pobreza, e, para cada um, as soluções têm que ser diferentes. Há a pobreza dos desvalidos que, pelos mais diversos motivos, não estão em condição de entrar no mercado de trabalho. O liberal reconhece que para estes deve ser encontrada, por cada sociedade, uma rede de proteção abaixo da qual ninguém seja permitido cair, sendo, portanto, uma obrigação do Estado, que para este fim poderia legitimamente tributar, cuidando apenas de não desestimular os incentivos à produção, pela consequente dilapidação da base tributária. Um exemplo desta proteção é a renda mínima, sugerida por Friedman. Outro tipo de pobreza é a conjuntural: apesar de capaz de trabalhar, o indivíduo não consegue trabalho e se torna pobre. O liberal considera que para resolver este problema faz-se necessário criar mecanismos que favoreçam ao investimento, que criará empregos. Está se referindo a um ambiente de liberdade para investimentos e movimentação de capitais (Campos, 1994).

126

Foi o pensamento de Gudin, no entanto, que mais fortemente influenciou Campos: “Gudin foi talvez a maior influência em minha formação profissional” (Biderman, Cozac e Rego, 1997:37). Nesta entrevista, Campos comenta que Gudin ia na contramão das teses hegemônicas da época, sendo um ferrenho crítico dos monopólios estatais, do relaxamento em relação à estabilidade monetária e intransigente defensor da ideia clássica liberal de que o Estado deveria atuar basicamente nas funções de segurança, justiça, educação e saúde.

Acredito que Campos enxergava um componente cultural na atração exercida, sobre nossa sociedade, pelo populismo salarial, ao qual chama de “enquistamento de ilusões” (Campos, 1969: 202). Através de um processo de alheamento da realidade e das evidências de tentativas passadas, o assalariado esperaria, em cada novo reajuste, que, por algum milagre, não se repetisse a experiência anterior de rápida perda do valor aquisitivo do salário pela alta de preços. Concomitantemente, o político via no populismo salarial uma solução duplamente agradável, pois se dispensava da impopularidade de tributar, ou de exigir produtividade no trabalho, e dividia fartamente gordas fatias de um bolo imaginário. Este comportamento social se traduzia em políticas que Campos (1967) condenava e se sentia impotente para impedir, mesmo participando do governo. O desenvolvimentismo populista encontraria o beneplácito dos agentes econômicos: “O que há de perturbador em tudo isso é a popularidade do empreiteiro alegre, e a total indiferença do povo pela fadiga honesta do contador. A irresponsabilidade assume colorido de heroísmo. A decência fiscal é prova de mesquinhez” (ibidem:74). Campos enxergava o perigo do retorno das ações de viés populista, anteriores ao movimento militar. Elas estariam fortemente introjetadas na sociedade brasileira e fazia-se necessário estar atento a este fenômeno.

O planejamento centralizado era vitorioso nos anos 50, tanto na Academia, quanto nas políticas públicas. Contra ele os liberais posicionaram-se enfaticamente. Segundo sua lógica, todos planejamos, e o fazemos baseados em nosso próprio conhecimento das condições que nos cercam. No entanto, argumentam, existem muito mais informações úteis e disponíveis no conhecimento disperso na sociedade do que jamais poderia ser coletada por uma agência de planejamento centralizada. Apesar de, durante a década de 50, Campos ter feito parte dos pensadores que viam na industrialização acelerada por um Estado planejador um meio para a superação da pobreza e do subdesenvolvimento, já em 1961 apontava para dúvidas quanto à eficácia do modelo desenvolvimentista. Ao mesmo tempo em que criticava a CEPAL, “sempre movida (coitada!) pela preocupação construtiva de dar cobertura teórica às imprudências dos Governos da região” (Campos, 1964:89), atacava os que acreditavam que o desenvolvimento poderia ser conseguido sem maiores preocupações com a inflação, e em 1994, fazia uma confissão aberta de seu arrependimento por admitir uma economia centralmente planejada durante parte de sua vida, por ocasião do evento 1964 – 30 Anos Depois, realizado em março de 1994, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro:

127

Nessa época eu era acometido de ímpetos juvenis de planejamento. Superestimava enormemente a capacidade da tecnocracia de intuir o futuro e guiar a sociedade. [...] Foi então que surgiu uma grande controvérsia entre dois grandes amigos, eu e o professor Eugenio Gudin. Ele tinha horror à palavra planejamento. [...] Hoje, acho que ele estava perfeitamente certo. (Campos, 1994:57)

Considerações finais

O pensamento social brasileiro preocupou-se com o fenômeno do populismo no período de 1945 a 1964, procurando compreender os processos de mudança no país, especialmente na relação entre o Estado e a sociedade. Dentre as várias interpretações sobre este fenômeno, acredito ser possível apontar três principais. Este artigo procurou discutir as interpretações que trataram das manifestações populistas no período de 1945 a 1964, oferecidas pela Escola de Sociologia da Universidade de São Paulo, pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, e por representantes do pensamento econômico liberal.

Uma das causas da emergência do populismo no Brasil foi entendida por Weffort e Ianni, dois expoentes da Escola de Sociologia da USP, como consequência da crise da dominação oligárquica. Nos regimes oligárquicos, a burguesia, aliada aos produtores agrícolas, detinha o controle do poder e das instituições políticas. Sob o impacto de duas guerras mundiais e da crise de 1929, as oligarquias voltadas à exportação se enfraqueceram. Por sua parte, os novos grupos sociais, que então surgiam no ambiente urbano, passaram a reivindicar uma participação política ampliada. A urbanização e a industrialização, nos anos 1930, criaram a possibilidade de mobilidade social para as classes populares e médias, que não enxergavam as suas reivindicações em termos de luta de classe. O populismo teria nascido da aliança entre as classes populares e a burguesia nacional, uma vez que o enfraquecimento das oligarquias criou um vazio político no qual nenhuma classe conseguia ser hegemonicamente dominante, nem capaz de ocupar isoladamente o poder. O populismo teria vindo preencher este vazio, apoiando-se nas novas condições sociopolíticas, e forjando uma coalizão temporária, em que a ideia de “povo” criava uma ilusão de solidariedade.

Esta combinação de forças heterogêneas no poder constituía o “estado de compromisso”, base do regime populista: uma vez que nenhum dos grupos participantes do poder detinha a hegemonia, todos dependiam do Estado, e a ele dirigiam as mais contraditórias reivindicações. A aliança tácita que está na base do populismo se apóia sobre um processo de identificação entre o líder, o Estado e as massas. O líder, ou chefe, configura-se não somente como protetor, mas também como porta-voz e intérprete das aspirações populares. Daí resulta a relativa utilidade dos partidos políticos e a despolitização dos sindicatos. Ligado diretamente ao povo, o líder populista encarna a soberania do Estado e é o árbitro dos conflitos entre classes.

Diante da urbanização e da industrialização que ocorriam no Brasil, surgiam atores

128

sociais diferentes dos da Primeira República. Nas interpretações de Francisco Weffort e Octavio Ianni, a atração da classe trabalhadora passaria, no populismo, não pelo plano ideológico, mas pela política social. A sociologia marxista, fundamental nas análises feitas na Escola de Sociologia da USP, considerava que a modernização e a urbanização trariam avanços para a revolução. A proletarização de grande parte da população incrementaria as contradições entre o capital e o trabalho. Os conflitos seriam desejáveis, por trazer novas sínteses. O populismo, ao criar obstáculos à conscientização da classe proletária, trabalharia no sentido de prejudicar o progresso da revolução. A política de alianças entre classes foi atacada pelos autores, sendo vista como uma das principais causas que levaram à derrota das esquerdas, em 1964. A ideia de política de massas e a busca do entendimento de o que teria levado a classe operária a abrir mão da revolução em favor da reforma, permitiram um desenvolvimento intelectual que até hoje repercute na Academia e na agenda política brasileira.

Deve ser destacado que foi no industrializado Estado de São Paulo que surgiram dois líderes populistas importantes, Jânio Quadros e Adhemar de Barros, ao mesmo tempo em que foi lá que ocorreu forte crescimento populacional no século XX, impulsionado por altos índices de migração interna e de imigrações. Weffort destaca esta relação ao ressaltar que estas migrações e a expansão dos meios de comunicação catalisaram o populismo, uma vez que “colocam amplos setores da população do país em situação de disponibilidade política” (Weffort, 2003:158).

Nos estudos de Jaguaribe, Guerreiro Ramos e Candido Mendes, importantes figuras do ISEB, embora o populismo político não fosse visto como um procedimento enriquecedor da democracia, o fenômeno não era o alvo maior de suas preocupações. O foco destes intelectuais estava no desenvolvimento, em um ambiente reformista que, por meio da industrialização, traria o crescimento da nossa economia. Embora considerassem que o populismo político não fosse a forma mais avançada de comportamento político, era uma manifestação da democracia, uma vez que abria espaço para que o povo se manifestasse politicamente. Sua principal diferença em relação à Escola de Sociologia da USP estava na crença (por parte destes intelectuais do ISEB) de que o caminho do nacional-desenvolvimentismo, em especial a aliança entre o Estado e a burguesia industrial, iria trazer modernização econômica, seguida de transformações sociais. Jaguaribe destacou que a necessidade de se conquistar votos apresentando-se como lideranças capazes de alcançar, em curto prazo, melhores condições de vida para a população, fez com que os líderes populistas desenvolvessem um estilo de comunicação direcionado à satisfação imediata dos desejos das massas.

Considero oportuno chamar a atenção para o fato de que o ISEB estava geograficamente situado na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, com ligações institucionais e de vizinhança com o Estado. O fato de seus intelectuais aceitarem a possibilidade de alianças entre as classes econômicas estava, possivelmente, ligado à necessidade de equacionar o problema de alcançar o desenvolvimento em um ambiente democrático, com eleições livres.

129

Foi marcante a influência do pensamento cepalino sobre o ISEB. A ideia de uma vanguarda racional comandando o processo de desenvolvimento latino-americano encontrou solo fértil no Brasil. A noção de planejamento era vitoriosa naqueles anos, e a possibilidade de mudanças estruturais de amplo alcance via ação do Estado era sedutora, eleitoralmente.

As preocupações de Gudin, Bulhões e Campos, intelectuais que expressaram as preocupações do liberalismo econômico com o populismo, estavam centradas nas mazelas que viam no populismo econômico. No período de 1945 a 1964, no Brasil, o pensamento keynesianista era dominante. A força das ideias do Welfare State facilitava a aceitação dos discursos de políticos que propunham ações desenvolvimentistas por meio de promessas eleitorais sem preocupações orçamentárias. Era, em quase todo o mundo, a época de ouro do planejamento, e, aqui, as empresas estatais floresciam. Além disso, programas ligados à responsabilidade fiscal não tinham apelo eleitoral em um país com profundas desigualdades sociais, como o Brasil. Os liberais viam com clareza a dificuldade de se conquistar eleitores, na nossa desigual sociedade, para um discurso que prometia trabalho árduo e recompensas em longo prazo, em oposição a um em que tudo se resolveria após a próxima eleição.

Para os pensadores liberais, o ideário do projeto desenvolvimentista, apoiado nas concepções econômicas da CEPAL, havia se tornado um obstáculo que precisava ser eliminado. A oposição entre monetaristas e desenvolvimentistas pode ser vista como uma das mais importantes do período estudado. Os liberais condenaram a irresponsabilidade com que os gastos dos governos foram tratados, bem como a utilização de critérios políticos na alocação destes gastos. O populismo econômico pode ser entendido como uma política que dá prioridade ao crescimento econômico e à redistribuição de renda, ao mesmo tempo em que ignora (ou não se preocupa com) a inflação, o déficit orçamentário, e a reação dos agentes econômicos às políticas não direcionadas ao mercado.

Do ponto de vista ideológico, podemos identificar diferenças entre as três interpretações. Os intelectuais da USP, naquele momento, estavam preocupados com o fortalecimento da classe operária urbana, ator político fundamental para produzir profundas mudanças na sociedade, via luta de classes. No entendimento dos intelectuais do ISEB aqui analisados, encontramos uma visão reformista afinada com a perspectiva do reformismo social, na busca de um desenvolvimento nacional sem rupturas. A visão liberal econômica, que dá ênfase às vantagens da economia de mercado, está na análise que considera o populismo econômico um entrave ao crescimento econômico das sociedades.

Podemos dizer que as interpretações do pensamento social brasileiro aqui estudadas ajudaram a propagação do debate sobre o fenômeno do populismo no mundo público. No entanto, em razão dos pressupostos teóricos diferentes que fundamentavam suas análises, não foram capazes de contribuir para uma definição precisa do fenômeno. Na Escola de Sociologia da USP teve relevância o conceito de “estado de compromisso” desenvolvido

130

por Weffort, e que buscava entender a diminuição da importância da luta de classes no período populista. Por outro lado, os intelectuais do ISEB, que trabalharam sob influência do pensamento cepalino, viam o populismo como uma passagem na evolução para a modernização do país, e davam ênfase à preocupação com o nacional-desenvolvimentismo. Já os pensadores econômicos liberais se mantinham fiéis ao liberalismo econômico, marcando suas críticas aos governos que não priorizavam o equilíbrio fiscal.

Duas questões quanto ao populismo são recorrentes nos estudos das Ciências Sociais e da historiografia brasileira. Primeiramente, temos a pergunta de quando teria surgido o fenômeno do populismo no Brasil. Apesar do fato de que, tanto Conniff, como José Murilo de Carvalho fazerem referência ao populismo no governo Pedro Ernesto, as interpretações que estudamos trataram do populismo no período 1945-1964. Nas três perspectivas analíticas aqui discutidas, o fenômeno ganhou visibilidade e vitalidade nesse período.

Em segundo lugar, discute-se a importância da questão do populismo para o entendimento do período de 1945 a 1964. Ela é fundamental para que possamos entender essa etapa da política brasileira, de acordo com o que podemos deduzir das análises realizadas nas interpretações vistas aqui. Segundo os representantes do pensamento econômico liberal estudados, não poderemos entender a economia do setor público sem observar a influência dos políticos populistas. Mesmo a economia privada também teve, certamente, suas tomadas de decisão influenciadas pelos líderes populistas que traziam um discurso político intimidador à lógica do mercado. Por outro lado, a relação entre o Estado e a sociedade ficou marcada por fenômenos como manipulação, cooptação ou pelo “estado de compromisso”, conforme elaborou Weffort. Podemos dizer que o discurso populista traz resultados, do ponto de vista eleitoral, quando atua sobre uma massa popular de uma sociedade com profundas desigualdades sociais, bem como confere legitimidade aos governantes populistas até o momento em que suas ações econômicas começam a produzir os esperados efeitos negativos (inflação, crise cambial, endividamento, entre outros).

De acordo com as interpretações estudadas, algumas condições presentes na época, no Brasil, agiram no sentido de favorecer o fortalecimento do fenômeno do populismo. A emergência das massas populares no processo eleitoral; o conflito distributivo e a desigualdade de renda no mercado de trabalho; e instituições políticas ainda em formação, trazendo instabilidade política e insegurança em relação à normalidade democrática, podem ser destacadas. Weffort deu ênfase à crise de hegemonia de poder que teria advindo do enfraquecimento das oligarquias e da ausência de uma classe que pudesse exercer o poder por si própria. Como consequência, abriu-se espaço para que líderes populistas, em uma relação direta com as massas, alcançassem legitimidade eleitoral, diminuindo a importância dos partidos políticos e da luta de classes no cenário político. Guerreiro Ramos, apesar de entender que já havia sinais de populismo na República Velha, afirmou que a política populista só passou a ser dominante depois do fim do Estado Novo, uma vez

131

que a independência dos eleitores, comparada ao sistema eleitoral no período oligárquico, criou as condições para o sucesso eleitoral dos líderes populistas. O populismo seria uma fase na evolução política brasileira, posterior à fase da oligarquia e anterior à da política baseada nos grupos de pressão. Gudin marcou suas críticas ao populismo econômico pela luta contra o desequilíbrio fiscal e contra os aumentos salariais sem base em aumentos de produtividade, que seriam responsáveis por uma catastrófica inflação de demanda sem correspondência com uma capacidade de aumento de produção, em prazos compatíveis.

Apesar de suas divergências, os três grupos aqui estudados tinham um aspecto em comum: a marca do intelectual. Atuando na esfera acadêmica e na esfera pública, todos eles procuraram entender a realidade brasileira para intervir sobre ela. Escreveram para ser lidos, objetivando participar do debate público e disputar a definição da agenda pública.

132

Referências bibliográficas

BIDERMAN, C.; COZAC, L. F. L.; REGO, J. M. Conversas com economistas brasileiros. São Paulo: Editora 34, 1996.

BRESSER-PEREIRA, L. C. O conceito de desenvolvimento do ISEB rediscutido. In DADOS – Revista de Ciências Sociais, vol. 47, nº 1, 2004.

BULHÕES, O. G. de. Dois conceitos de lucro. Rio de Janeiro: APEC, 1969._____. Economia e política econômica. Rio de Janeiro: Agir, 1960._____. Octavio Gouvêa de Bulhões: depoimento. Brasília: Memória do Banco Central

– Programa de História Oral do CPDOC/FGV, 1990.CAMPOS, R. de O. A geléia filantrópica. In: Pensadores brasileiros. Disponível em:

http://home.comcast.net/~pensadoresbrasileiros/RobertoCampos/a_geleia_filantropica.htm. Acesso em 06 junho 2009.

_____. A moeda, o governo e o tempo. Rio de Janeiro: APEC, 1964._____. Do outro lado da cerca. Rio de Janeiro: APEC, 1967._____. Ensaios contra a maré. Rio de Janeiro: APEC, 1969._____. Planejamento e mercado na economia brasileira. In RAPOSO, E. (coord.).

1964, 30 anos depois. Rio de Janeiro: Agir, 1994.CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2002.CONNIFF, M. L. Urban politics in Brazil: the rise of populism. Pittsburgh: University

of Pittsburgh Press, 1981.D’ARAÚJO, M. C. S. O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e

crise política. São Paulo: Editora Ática, 1992.FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. Brasil: Artenova, 1977.FURTADO, C. A Operação Nordeste. Rio de Janeiro: ISEB, 1959.GUDIN, E. Análise de problemas brasileiros (coletânea de artigos – 1958-1964). Rio

de Janeiro: Agir, 1965._____. Para um Brasil melhor. Rio de Janeiro: APEC, 1969._____. Princípios de economia monetária. Rio de Janeiro: Agir, 1974.HAYEK, F. A. Direito, legislação e liberdade: uma nova formulação dos princípios

liberais de justiça e economia política. Volumes I, II e III. São Paulo: Visão, 1985.IANNI, O. In BASTOS, E. R. Conversas com sociólogos brasileiros/entrevistas. São

Paulo: Editora 34, 2006._____. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975._____. Pensamento social no Brasil. Bauru, SP: EDUSC, 2004.JAGUARIBE, H. Que é o ademarismo? In SCHWARTZMAN, S. (sel. e introd.). O

pensamento nacionalista e os “Cadernos de Nosso Tempo”. Brasília: UnB/Câmara dos Deputados, 1981.

_____. O nacionalismo na atualidade brasileira. Rio de Janeiro: ISEB, 1958.

133

_____. Problemas do desenvolvimento latino-americano. Estudos de política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

KEYNES, J. M. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

LAMOUNIER, B. Da independência a Lula: dois séculos de política brasileira. São Paulo: Augurium Editora, 2005.

LEAL, V. N. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo: Editora Globo, 1975.MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova

Cultural, 1987.MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001.MENDES, C. Beyond populism. Albany: State University of New York at Albany,

1977.PRADO, M. E. Os intelectuais e a nação. Considerações acerca das concepções de Hélio

Jaguaribe e do papel do Instituto Superior de Estudos Brasileiros no decênio de 1950. In Anais do XXIV Simpósio Nacional de História. São Leopoldo, Unisinos: Disco óptico org. por Elisabete Leal, 2007.

RAMOS, A. G. A crise do poder no Brasil (problemas da revolução nacional brasileira). Rio de Janeiro: Zahar, 1961.

RAPOSO, E. Competição política desestabilizadora: a crise do Estado. In RAPOSO, E. (coord.). 1964, 30 anos depois. Rio de Janeiro: Agir, 1994.

_____. O Estado dentro do Estado. Tese de Doutoramento. Rio de Janeiro: Iuperj, 1997.

REIS FILHO, D. A. Lenin e as heranças do populismo. Núcleo de Estudos Contemporâneos, UFF. Disponível em: http://www.historia.uff.br/nec/textos/text39.PDF. Acesso em 06 junho 2009.

SAMPAIO, R. Adhemar de Barros e o PSP. São Paulo: Global Editora, 1982.SCHWARTZMAN, S. (sel. e introd.). O pensamento nacionalista e os “Cadernos de

Nosso Tempo”. Brasília: UnB/Câmara dos Deputados, 1981.SKIDMORE, T. Brasil: de Getulio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.WEBER, M. Os três tipos puros de dominação. São Paulo: Ática – Coleção Grandes

Cientistas Sociais, 1991.WEFFORT, F. C. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

2003._____. Partidos, sindicatos e democracia. Mimeo, s. d..


Top Related