PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CAMILA POMPEU DA SILVA
A ARTE COMO EXPRESSÃO DA LIBERDADE: O CORPO E AS
EXPRESSÕES ARTÍSTICAS NO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE
CURITIBA 2009
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CAMILA POMPEU DA SILVA
A ARTE COMO EXPRESSÃO DA LIBERDADE: O CORPO E AS
EXPRESSÕES ARTÍSTICAS NO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito para a Banca de Defesa de Dissertação.
Orientador: Prof. Dr. Peri Mesquida
CURITIBA 2009
Dados da Catalogação na Publicação Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Sistema Integrado de Bibliotecas – SIBI/PUCPR Biblioteca Central
Silva, Camila Pompeu S586a A arte como expressão da liberdade: o corpo e as expressões artísticas no 2009 pensamento de Paulo Freire / Camila Pompeu da Silva ; orientador, Peri Mesquida. – 2009. 110 f. , il. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2009 Bibliografia: f. 99-107 1. Educação – Filosofia. 2. Arte – Estudo e ensino. 3. Freire, Paulo, 1921- 1997. 4. Expressão corporal. I. Mesquida, Peri. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Educação. III. Título. CDD 20. ed. – 370.1
CAMILA POMPEU DA SILVA
A ARTE COMO EXPRESSÃO DA LIBERDADE: O CORPO E AS
EXPRESSÕES ARTÍSTICAS NO PENSAMENTO DE PAULO FREIRE
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito para a Banca de Defesa de Dissertação.
Orientador: Prof. Dr. Peri Mesquida
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Prof. Dr. Peri Mesquida
____________________________________
Prof.Dr. Jamil Ibrahim Iskandar
____________________________________
Profª Drª Pura Lucia Oliver Martins
Curitiba, 18 de fevereiro de 2009
AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Peri Mesquida, orientador desta dissertação, por todo empenho, sabedoria, compreensão e, acima de tudo, exigência. Gostaria de ratificar a sua competência, participação com discussões, correções, revisões de lâminas, sugestões que fizeram com que concluíssemos este trabalho. Ao Prof. Dr. Abdeljalil Akkari, pela oportunidade de crescimento, aprendizado, realização profissional e pessoal e pela confiança em mim depositada, pela abertura de portas, para um futuro desconhecido mas realizável. Ao Prof. Dr. Jamil I. Iskandar e a Profª Pura Lúcia Oliver Martins por aceitarem participar da Banca de Defesa desta Dissertação, proporcionando discussões e sugestões que servirão para crescimento, aprendizado e incentivo à pesquisa. À CAPES pela concessão da bolsa de estudos; Á todos os meus professores, que com atitudes e exemplos, fizeram-me refletir e escolher por onde andar. Aos meus familiares que sempre me deram amor e força, valorizando meus potenciais. Ao Anderson, por todo amor, força e compreensão. A todos os meus amigos e amigas que sempre estiveram presentes me aconselhando e incentivando com carinho e dedicação. A todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram para a execução dessa Tese de Mestrado.
Á meu pai e minha mãe, que sempre estiveram comigo, mesmo geograficamente
distantes.
“La taille directe est la vraie route de la sculpture mais ça n'est pas le bon chemin pour ceux qui ne savent pas marcher."
C'est en taillant la pierre que l'on découvre l'esprit de la matière, sa propre mesure. La main pense et unit la pensée à la matière. C'est l'acte même du sculpteur face à un matériau dont la connaissance ne s'apprend que lentement, et réserve toujours
un inattendu qu'il faudra résoudre sans pouvoir jamais rien ajouter, par seul retranchement. Il faut tailler et non blesser la pierre, trouver la solution devant
l'apparition d'une veine ou d'une tache non prévue : il faut savoir lutter avec la pierre, la caresser, la polir, savoir avec angoisse comme avec joie, faire surgir la forme que l'on porte en soi, mais qu'elle peut aussi nous avoir inspiré selon sa texture, la forme
même du bloc que l'on a choisi ou trouvé.” BRANCUSI
RESUMO
Freqüentemente, a Arte busca desvelar as supostas verdades e certezas da educação. Faz surgir possibilidades de trilhar caminhos desconhecidos, pois a maioria de seus trabalhos não são previsíveis. Nesta pesquisa, questionamos o papel das expressões artísticas no ambiente escolar, e em que sentido poderiam contribuir para exercícios de práticas pedagógicas libertadoras, numa perspectiva freireana. Neste sentido, entendemos que o corpo, enquanto espaço eminentemente expressivo, foi interditado ao longo de nossa história. A preocupação com o poder, buscou, desenfreadamente, uma disciplinarização dos corpos, principalmente no espaço escolar. A padronização de gestos, ações e movimentos, tiraram a liberdade de expressão por meio dos corpos, destruindo assim, as capacidades expressivas, inventivas e comunicativas. Esse processo de adestramento corporal desconsiderou o corpo como objeto de arte. Tendo como objetivo geral investigar sobre o papel das expressões artísticas na prática pedagógica como prática de liberdade, sob um olhar freireano, buscamos na hermenêutica, como método, interpretar os dados obtidos na bibliografia e nos documentos pesquisados. A significação do texto é percebida pela análise objetiva da obra aliada à subjetividade do leitor. Como principais autores, procuramos entender o corpo sob as perspectivas de Michel Foucault (1979, 1983, 1987, 2006), Maurice Merleau-Ponty (1999, 2004), Mesquida (1994, 2007, 2008), Joan Amos Comenius (1954) e Paulo Freire (1979, 1980, 1995, 1997, 1996, 2000, 2002). No pensamento de Foucault, tratamos o tema sob a perspectiva opressora do corpo e seus atravessamentos pelas forças de saber-poder. Merleau-Ponty, ressaltou o corpo em seu aspecto fenomenológico, perceptivo, expressivo. A questão do corpo é fundamental no pensamento desses dois autores, porém, guardadas as diferenças entre eles, destacamos o corpo como potência de conhecimento, como uma racionalidade que contempla o corpo e o conhecimento sensível. Comenius, em seu livro Orbis Pictus ou o Mundo Sensível das Imagens, valorizou o uso das vias sensoriais para favorecer o processo de aprendizagem, propondo uma educação natural. Sua produção cientifica possibilitou relacionar questões presentes no pensamento de Paulo Freire, à arte e ao corpo no contexto pedagógico. Assim, em Freire encontramos uma constante busca de conexão entre teoria, valores e prática, que nos permitiu trabalhar o corpo na educação estabelecendo essa relação. Portanto, neta dissertação a arte é entendida como expressão da liberdade que pode encontrar no corpo sua expressão genuína, no sentido de libertar os corpos interditados de ser, que por imposições de outros, tornou-se incapaz de agir e se expressar naturalmente. Corpos dóceis, sem conscientização da sua situação de opressão podem, por meio de uma educação problematizadora, humanizar-se, transformando o oprimido em sujeito ativo no mundo em que vive. Isso significa perceber o corpo em movimento, atuando ao lado da arte, em favor de uma ação pedagógica libertadora. Palavras-chave: educação, corpo, arte-educação, Freire, movimento, educação emancipatória.
ABSTRACT
Frequently, Art seeks an alternative to the supposed truths and evidence of traditional schooling. It makes possibilities to explore unknown ways. Therefore, the majority of Art’s outputs are not totally predicable. In this research, we analyse the artistic expressions in school environment and explore how they could contribute to a pedagogical libratory practices in a freirian perspective. Therefore, we consider that the body, while eminently expressive space, was interdicted throughout human history. Different powers seek the control of bodies particularly in the school arena. The standardization of gestures, action and movements took off the freedom of expressing meanings of bodies. This process limited the expressive, communicative inventiveness capacities of Human being. The process of corporal control disrespected the body as art object. The main objective of our work is to investigate artistic and pedagogical expressions as a practice of freedom. We investigate the hermeneutics as a method to analyze an extended bibliography. The significance of the text is perceived by the objective analysis combined to the subjectivity of the reader. As main authors, we used the perspectives of Michel Foucault (1979, 1983, 1987, 2006), Maurice Merleau-Ponty (1999, 2004), Peri Mesquida (1994, 2007, 2008), Joan Amos Comenius (1954) and Paulo Freire (1979, 1980, 1995, 1997, 1996, 2000, 2002). In the perspective of Foucault, we deal with the perspective of body oppression and control by the forces of power- knowledge. Merleau-Ponty pointed out the body in its phenomenological and expressive dimensions. The question of the body is central in the thought of these two authors. However, keeping in mind the differences between them, we analyzed the body as “power-knowledge” and “sensible-knowledge”. Comenius valued the use of sensorial ways to favour the learning process and to build a natural education. His scientific production made possible to relate his educational thought to Freire pedagogical thinking. We seek to connect the art and the body in the pedagogical context. Thus, in Freire legacy, we identified his constant search of connection between theory, values and practice. Establishing this strong connection, we centred our analysis on the body in the education. We tried in this study to understand the art as expression of the freedom of the body expression. Docile bodies, without awareness of its situation of oppression can by a consciousness’s education humanize its selves again, transforming the oppressed into active citizens. The body in movement using the art may result in a liberating pedagogical action. Keywords: education, body, art-education, Freire, movement, emancipatory education.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Imagem utilizada para a discussão do conceito antropológico de
cultura....................................................................................................................... 80
Figura 2 – Orbis Pictus – Sleights…………………………………………………….... 87
Figura 3 – Orbis Pictus – The Society Betwixt Parents and Children……….……… 88
Figura 4 – Obra número 5 da série Paulo Freire – Francisco Brenand.................... 89
Figura 5 – Obra número 6 da série Paulo Freire – Francisco Brenand.................... 89
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 10
2 Estudos sobre o corpo....................................................................................... 17
2.1 A arte como expressão do corpo em movimento............................................... 18
2.2 Modernidade: Corpo e Homem.......................................................................... 22
2.2.1 Corpo na modernidade: perspectiva histórica................................................ 23
2.3 Michel Foucault: Corpo e Poder......................................................................... 30
2.4 Merleau-Ponty: corpo, sensação e diálogo pelo toque...................................... 35
2.5 A experiência do corpo próprio.......................................................................... 38
2.6 Corpo e movimento humano.............................................................................. 40
3 CORPO E EDUCAÇÃO NO CONTEXTO BRASILEIRO.................................... 45 3.1 Diálogos entre o Ensino da Arte e os Movimentos de Renovação Educacional,
no século XX............................................................................................................ 61
4 PAULO FREIRE, CORPO E ARTE/EDUCAÇÃO: DO CORPO DÓCIL, DE FOUCAULT, À CONSCIÊNCIA DO CORPO EM MOVIMENTO, DE MERLEAU-PONTY..................................................................................................................... 68 4.1 Paulo Freire : educação e vida........................................................................... 69
4.2 Breve Biografia e Síntese do Pensamento de Paulo Freire............................... 69
4.3 Freire: do corpo interditado na escola ao corpo emancipado............................ 73
4.4 Uma epistemologia freireana do corpo negado................................................. 76
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 94
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 99
ANEXOS............................................................................................................... 108
1 INTRODUÇÃO
As práticas pedagógicas tradicionais pressionam o professor a trabalhar de
maneira a seguir padrões e normas pré-estabelecidas e com isso garantir mais
segurança, pois já se sabe o que e como fazer, pela experiência adquirida, e também já
se conhece o resultado, pois os métodos não proporcionam liberdade suficiente para
fazer as coisas de modo diferente. Desta forma, a educação torna-se mais controlável.
Sabe-se, assim, antecipadamente quais serão os resultados: alunos desinformados e
formatados pela fôrma de um sistema educacional que conforma idéias pré-
estabelecidas.
A Arte, então, se contrapõe às supostas verdades e certezas da educação. Faz
surgir possibilidades de trilhar caminhos desconhecidos, pois seus trabalhos nem
sempre são previsíveis. Seus aspectos criativos e transformadores, apresentam
resultados quase sempre indeterminados. Esse processo exige uma prática integrada
entre educador e aluno, já que ambos constroem o ensino-aprendizagem. A crítica e
reflexão de Paulo Freire, em seu livro Medo e Ousadia, trazem contribuições para esse
debate, ao afirmar que
[...] a educação é muito mais controlável quando o professor segue o currículo padrão e os estudantes atuam como se só as palavras do professor contassem. Se os professores ou os alunos exercem o poder de produzir conhecimento em classe, estariam então reafirmando seu poder de refazer a sociedade. A estrutura do conhecimento oficial é também a estrutura da autoridade social. (...) É o modelo de ensino mais compatível com a promoção da autoridade dominante na sociedade e com a desativação da potencialidade criativa dos alunos. (FREIRE, 1996, p. 21)
A criatividade sempre foi uma característica inerente ao ser humano. O homem
sempre buscou maneiras para superar suas dificuldades, vencer desafios, buscar o
melhor para si e muitas vezes, conseguiu graças a essa criatividade. Criatividade que
muitos usam, por vezes, para encontrar maneiras de inibi-la nos outros...
Progressivamente, o homem passou a desestimular suas possibilidades criativas em
detrimento a uma racionalidade demasiada, aquela que prioriza a dedução, a lógica e
11
desconsidera os sentidos. Com isso, o saber sensível que é a fonte na qual a
criatividade busca forças, passou a ser pouco valorizado.
Paulo Freire fala sobre a idéia de criatividade na educação afirmando que é
necessário criatividade para aprender e a criatividade necessita de liberdade.
E qual é o tempo que destinamos para um trabalho livre e criativo? Seja na
escola ou em outros ambientes, em casa, no trabalho, na vida? Valoriza-se o tempo
empregado para produzir, lucrar, avançar racionalmente. O tempo que se reserva à
diversão, ao prazer, à arte acaba sendo pouco e não tão essencial. Esses momentos
acabam sendo uma espécie de recompensa para quem trabalha em prol da geração de
lucros ou até mesmo um escape, uma pausa para repor as energias gastas nesse
árduo trabalho.
O homem contemporâneo tende a se submeter às exigências mercadológicas,
que prioriza a rapidez e a produção. É pressionado pelas mídias que o fazem
transformar lazer em obrigação - trabalho. Ergue muros para se proteger dos outros e
de certo modo, de si mesmo; não reconhece mais seus sentimentos e acaba por fazer
tudo mecanicamente, sem consciência de si e de suas possibilidades transformadoras.
A preocupação com o poder, com o domínio de uns sobre os outros gerou uma
disciplina que busca padronizar os corpos e tirar-lhes a liberdade, destruindo, assim
suas capacidades expressivas, inventivas, comunicativas (FOUCAULT, 1999). Esse
adestramento corporal carregado de séculos de preconceitos, quanto aos gestos,
exposição e até mesmo percepção e consciência de si próprio, afastou do âmbito
escolar uma educação corporal, com foco na expressividade, na comunicação e criação
individual, ou seja, desconsiderou o corpo como processo, produto e objeto da arte e da
educação em arte.
O corpo como compreensão da arte pode tornar-se um instrumento para a
libertação de padrões disciplinares instituídos no decorrer dos séculos pela sociedade
dominante. Ensinar a relação do corpo com a arte é ensinar a usar o corpo como meio
de expressão de anseios, emoções, expectativas, críticas, idéias. A escola, que sempre
foi um espaço favorável para educar e transmitir conhecimentos pré-estabelecidos de
uma classe, não ofereceu um ambiente para o desenvolvimento da arte e de saberes
que permitissem aos alunos questionar ou mesmo perceber o porquê das coisas serem
12
da forma como são. Afinal, certamente seria muito interessante educar corpos rígidos,
treinados e oprimidos, como diz Foucault (1999), pois desta maneira, a imposição,
manipulação e dominação se tornam mais fáceis. Não é difícil daí, entender porque as
disciplinas, chamadas humanas, possuíam (e possuem) carga horária reduzida;
disciplinas essas que poderiam proporcionar ao aluno algum tipo de reflexão ou crítica.
A escola, por muito tempo, negligenciou o corpo e a arte, destituindo os alunos de
qualquer possibilidade criadora. Preparou apenas, nos últimos anos, corpos para a vida
profissional, sem pensamentos e ações autônomas, convertendo pessoas para uma
visão hermética de mundo. Ou seja, a escola atual não educa para o saber, mas para o
fazer mecânico, não-criativo.
Durante anos a arte passou por momentos de rejeição e desvalorização nas
escolas. Hoje, a arte procura reconquistar seu espaço; as pesquisas universitárias
passaram a serem mais respeitadas, mas ainda falta reconhecimento. Como bem
lembra Ana Mae Barbosa, em sua entrevista à Revista Educação de maio de 2005, que
há uma onda “sentimentalóide” em torno da educação em arte, dizendo-se que torna o
aluno mais sensível, mas não há uma explicação clara do que se entende por sensível.
A arte não pode restringir-se somente a essa idéia. Necessita estar associada a outros
aspectos que busquem uma educação em arte que possibilite o aluno aprender
criticamente, criativamente; que desenvolva a cognição, a capacidade de aprender para
então facilitar a descoberta dos seus direitos e deveres e a conscientização social.
As pesquisas em torno do ensino da arte no Brasil ainda são escassas. O
número de pós-graduações nessa linha não chega a uma dezena em todo o Brasil1. E,
menor ainda, é o número de pesquisas que envolvem a expressão do corpo na
participação ativa desse processo de compreensão da arte e seu ensino. Ainda hoje,
valoriza-se mais o saber racional, no sentido anteriormente esclarecido, esquecendo-se
que o corpo é sujeito da educação. Como bem diz Rubem Alves, em seu artigo para a
Folha de São Paulo, de 05 dezembro de 2001, “é o corpo que quer aprender para poder
viver.”
O corpo, como prerrogativa para todos os saberes, tornará possível a formação
do seu próprio “eu”, um “eu” individual, um “eu” de sua própria invenção. Pois o “eu” que
1 Fonte: <http://revistaeducacao.uol.com.br/textos.asp?codigo=10675>
13
vigora no sujeito hoje, é um “eu” que foi inventado pela sociedade, pelo outro. Sendo
assim, o sujeito perde a capacidade crítica, pois seu “eu” não foi constituído por ele
mesmo.
O corpo também se constrói socialmente; é influenciado pelo ambiente social e
político; ele absorve idéias, expectativas, intenções. Mas a conscientização leva à
transformação e ao domínio sobre essas influências. As palavras de Paulo Freire,
citadas por Gadotti (2004, p. 94), complementam essa discussão ao dizer que “ser
consciente é a forma radical de ser do seres humanos enquanto seres que, refazendo o
mundo que não fizeram, fazem o seu mundo, e neste fazer e re-fazer se re-fazem. São
porque estão sendo.” É a relação entre educação e humanização que se traduz pela
busca por uma formação do ser humano, completo, integrado, crítico e liberto, disposto
a conseguir alcançar sua consciência crítica.
Para tanto, Freire lança mão do diálogo, categoria epistemológica que permite a
comunicação entre arte e educação, em particular possibilita um desafio para o
pesquisador, forma de desenvolver a relação da arte como expressão artística do corpo
em liberdade.
A dialogicidade, categoria filosófico-pedagógica empregada por Paulo Freire para
identificar o encontro entre o eu e o tu, como diria Martin Buber (1982 e 1977), fonte
principal dos conceitos freireanos de dialógico e dialogicidade, impulsiona o (a)
pesquisador (a) a colocar questões sobre arte/educação e sobre a formação do
professor, em especial, das séries iniciais. Isso porque a arte nem sempre faz parte da
formação docente.
De acordo com Paulo Freire, é preciso que o iletrado aprenda a fazer a leitura do
mundo para, então, proceder à leitura da palavra. E, a leitura do mundo se faz,
inicialmente, por meio da imagem do mundo que vai sendo construída. Isso significa ir
da imagem à palavra. Por isso, Paulo Freire conta, na sua Pedagogia da indignação
(2000), como, a seu pedido, Francisco Brenand, artista plástico brasileiro de renome
internacional, produziu as dez “situações” que iriam ser trabalhadas por ele, Paulo
Freire, na preparação dos “animadores culturais”. Imagens estas que produzem a
reflexão em torno da tomada de consciência da libertação do corpo interditado.
14
Portanto, como as expressões artísticas foram usadas nos círculos de cultura
tornando-se pedagogia para possibilitar a leitura de mundo.
Dessa maneira, ao libertar o corpo da interdição que o sufoca, a educação como
prática da liberdade, realiza a pedagogia do oprimido que é uma pedagogia para a
liberdade. E, para Paulo Freire, amante da estética e, portanto, das expressões
artísticas, aí está o que ele chamava de “boniteza” da ação pedagógica. Portanto, a
curiosidade despertada pela imagem, pelo belo artístico, levaria os alfabetizandos a
“sentirem-se cultos”, pois eles também “podiam fazer isso”, diziam, “apontando para o
jarro de barro projetado na tela” (FREIRE, 2000a, p. 98-99).
Portanto, a base teórica que iremos construir a partir de obras de Paulo Freire e
também da Didática Magna (1954) e do Orbsi Pictus (1659), de Comênio, que
inspiraram o educador brasileiro, acreditamos que irá nos dar os elementos teóricos de
que necessitamos para trabalhar o problema de pesquisa que, em última análise,
pretende investigar a importância da educação artística para a formação do educador, e
em particular, a arte como instrumento para a libertação da “interdição do corpo”.
Por tudo isso, destaca-se aquele professor que, consciente de sua dimensão de
constante reconstrução pessoal e profissional, trabalhe de forma a articular
conhecimentos e saberes, ciente de sua contribuição para a formação integral do
educando. Nesse sentido, remetemo-nos novamente à arte, por entender que esta seja
um campo fértil para o desenvolvimento pessoal, e também um espaço propício para a
expressão de idéias, sentimentos, inquietudes, exposição de opiniões, inovações,
pensamentos criativos, reflexivos e críticos. Essa é uma forma especial de olhar a arte e
vê-la como possível mediadora de um processo educacional consistente e que possa
também contribuir na formação dos professores nos cursos de graduação permeando
uma prática que tem em si “o cerne de possibilitar uma ação dialógica, revolucionária e
transformadora do mundo e das pessoas.” (FELDMANN, 2004)
Desta forma, buscamos questionar se as expressões artísticas, no ambiente
escolar, contribuem para o exercício de uma prática pedagógica libertadora, na
perspectiva freireana.
Tendo como objetivo geral investigar sobre o papel das expressões artísticas na
prática pedagógica como prática de liberdade, sob um olhar freiriano, buscamos na
15
hermenêutica como método buscar os dados obtidos na bibliografia e nos documentos
pesquisados. Entendemos o método hermenêutico a partir de Paul Ricoeur (1969).
Para ele, o essencial na hermenêutica é que os fatos se constituem em relação com os
critérios que permitem constatá-los. Por isso o pesquisador é um intérprete, alguém que
"compreende" - que estabelece uma comunicação entre dois mundos, entre o mundo
do sujeito e o mundo do objeto do conhecimento, lançando luz tanto sobre um quanto
sobre outro e proporcionando o diálogo de sujeito e objeto do conhecimento
(RICOEUR, 1969, p. 14). Paul Ricoeur acrescenta que a hermenêutica possibilita ao
pesquisador compreender um texto e "compreendê-lo a partir da sua intenção,
baseando-se no fundamento daquilo que ele pretende dizer". Portanto, trata-se de uma
exegese que "implica uma teoria do signo e da significação. Assim, a hermenêutica
coloca em jogo o problema geral da compreensão". Trata-se, portanto, de compreender
o que o autor quer dizer, não somente fazendo uma exegese do texto, mas, ainda,
contextualizando-o, para retirar dele o seu significado último. Dessa forma,
"compreender é uma maneira de conhecer o compreendido". Por isso, para desnudar
os textos historiográficos e documentais e o lugar ocupado pela arte e pelas mais
diversas expressões artísticas, é fundamental apelar para a "compreensão
hermenêutica, isto é, para a sua interpretação". Todavia, "o sujeito que interpreta,
interpretando os signos, não é mais o cogito cartesiano: é um existente que descobre,
pela exegese, o modo de existir do ser interpretado" (RICOEUR, 1969, p. 8-11).
Assim, para alcançar tal objetivo, organizou-se o primeiro capítulo, no qual
refletimos sobre a relação entre o homem e arte, uma relação contínua que se perpetua
ao longo da história. Por atuar de forma subjetiva, a arte atua no âmago das pessoas,
conquista pelas emoções, expressões, sentimentos que suscita nas mesmas. Pensar
na arte como expressão do corpo, levou-nos a refletir sobre vários aspectos que
envolvem a relação entre corpo e disciplina, a partir das idéias de Foucault e também
sobre a idéia de corpo reflexionante, sujeito da percepção, segundo o pensamento de
Maurice Merleau-Ponty: o corpo que possibilita a relação do ser com o mundo. Tais
possibilidades serão discutidas nesse primeiro capitulo.
No segundo capítulo, procuramos identificar as marcas históricas da dominação
sofrida pelo corpo do homem e da mulher brasileira, inicialmente pelos colonizadores, e
16
depois, pelas classes sociais mais privilegiadas. Principalmente o corpo da mulher
sofreu com essa dominação, limitando seu acesso a determinados lugares e limitando
suas ações.
Nesse capítulo são abordadas questões sobre a presença no Brasil dos
portugueses, a partir de 1500 e, depois, de outras nacionalidades européias neste e
nos séculos subseqüentes, Essa presença foi marcada pelo não reconhecimento
daqueles que aqui viviam, pois os mesmos não eram reconhecidos como iguais aos
invasores, mas como “outros” e, portanto, não-seres. Também há uma reflexão sobre o
trabalho pedagógico de catequização dos jesuítas, o qual tinha o objetivo de propagar a
fé católica e garantir a estrutura territorial do estado. A educação assume o papel de
agente colonizador, e através da pedagogia dos jesuítas, caracteriza-se pelo apego à
autoridade, pela transmissão disciplinada de uma cultura literária, retórica,
enciclopédica e mnemônica que inibia a criatividade e toda atividade inovadora.
Em seguida, em um terceiro e último capítulo, traremos para a discussão as
idéias de um grande educador brasileiro, Paulo Freire que defendeu a idéia de
conscientização como o caminho para liberdade. E a educação através do diálogo, o
veículo para se chegar a este objetivo. Nesta etapa da pesquisa, estabelecemos as
relações entre as discussões realizadas nos capítulos anteriores, aliadas ao
pensamento desse grande educador. A escolha por ele, se deu também pelo fato de
sua busca constante para conectar teoria, valores e prática, e trabalhar com o corpo na
educação permite estabelecer essa relação. Ele também falou da importância da
questão da cultura. E a concepção do corpo faz parte da cultura, pois o corpo,
envolvido numa atmosfera artística, pode ser melhor compreendido pela metáfora da
obra de arte. O corpo, nesta perspectiva, realça e procura por novas formas de
compreender o mundo, indo além do racionalismo. Portanto, buscamos desvelar os
sentidos múltiplos do corpo relacionado ao pensamento de Paulo Freire, buscando aí
uma relação entre alguns conceitos por ele desenvolvidos e a libertação do corpo pela
expressão artística.
17
2 ESTUDOS SOBRE O CORPO
Os múltiplos sentidos do corpo nos pedem múltiplos olhares, reflexões e
encaminhamentos diversos para seu estudo. Falar das propriedades corporais, da
sua trajetória histórica, de suas características mais genuínas, exige um grande
esforço e empenho para ter sensibilidade suficiente para lidar principalmente com os
dados subjetivos que envolvem esse tema. Pode se seguir por diversos caminhos ou
abordagens, desde o aspecto da medicina à arte, da antropologia aos preceitos que
a moda impõe.
O corpo além de ser território biológico é também permeado por seus
aspectos simbólicos e subjetivos. O corpo é, certamente, a primeira forma de
visibilidade humana. É por meio dele que se corporifica o humano.
Verdadeiro arquivo vivo, inesgotável fonte de desassossego e de prazeres, o corpo de um indivíduo pode revelar diversos traços de sua subjetividade e de sua fisiologia mas, ao mesmo tempo, escondê-los. Pesquisar seus segredos é perceber o quanto é vão separar a obra da natureza daquela realizada pelos homens: na verdade, um corpo é sempre “biocultural”, tanto em seu nível genético, quanto em sua expressão oral e gestual. (SOARES apud SANT’ANNA 2006, p.3)
Pesquisar sobre o corpo envolve todos esses aspectos e, mais ainda, procura
desvelar seus mistérios, revelando suas características mais intrínsecas, reforçando
o que já é explícito e relacionando com perspectivas históricas, políticas, sociais e
culturais. Como bem ressalta SANT’ANNA (2006, p. 4),
São antigas as tentativas de minimizar os efeitos do que é desconhecido nos corpos. Da religião à ciência, passando por diferentes disciplinas e pedagogias, a vontade de manter o próprio corpo sob controle, se possível desvendando-o exaustivamente, caracteriza a história de numerosas culturas.
Conhecer o desconhecido sempre leva à insegurança, e tudo que é mais
previsível, com conhecimento prévio torna-se mais fácil e dá mais segurança. Mas,
conhecer o desconhecido pode favorecer a aquisição de poder. Neste sentido, a arte
pode ser usada para o exercício do poder e, até mesmo, da dominação, pois saber
lidar com características desconhecidas do corpo pode auxiliar a alcançar objetivos
18
que têm a ver com o poder com o exercício do domínio e da dominação sobre o
corpo e os corpos. Acompanhando essa idéiam novamente SANT’ANNA (2006, p.4)
comenta que:
Assim, diferente de uma história do corpo, talvez seja mais instigante e viável realizar investigações sobre algumas das ambições de governá-lo e organizá-lo conforme interesses pessoais ou coletivos. Pois cada vontade de manter o corpo sob controle, por exemplo, é constituída por fragilidades e potencias, expressando especificidades e generalidades culturais.
Para essa pesquisa, os caminhos escolhidos para desvelar os sentidos
múltiplos do corpo seguiram a rota da arte, da filosofia, da história e da pedagogia
em especial da arte e da arte/educação.
O homem e arte estabelecem uma relação contínua, que se perpetua ao
longo da história. A arte é produzida pelo homem e, ao mesmo tempo em que a
produz, ele se modifica no contato com a sua produção, pois ela atua sobre o interior
das pessoas conquistando suas emoções, suas expressões e os sentimentos que
ela suscita (MARX, 2004). É produção coletiva ou individual; representa o imaginário
de um povo ou sua realidade, ou simplesmente idéias, reflexões particulares. Mas,
sempre, expressa um pouco da alma do artista que a criou.
A arte atua no âmago das pessoas, conquista pela emoção, expressão,
sentimentos que suscita nas mesmas. Pensar na arte como expressão do corpo,
levou-nos a refletir sobre vários aspectos que envolvem a relação entre corpo e
disciplina, a partir das idéias de Foucault e também sobre a idéia de corpo
reflexionante, sujeito da percepção, segundo o pensamento de Maurice Merleau-
Ponty: o corpo que possibilita a relação do ser com o mundo. Essas serão as
principais questões abordadas nesse capítulo.
2.1 A arte como expressão do corpo em movimento
Cada época, cada comunidade humana, ao longo dos anos construiu suas
singularidades e deixou marcas no tempo que são lembradas no futuro. A arte, por
ter a capacidade de atingir a essência do ser humano, contribui para que
19
determinados momentos da história permaneçam no tempo. As obras de arte, então
produzidas são, ao mesmo tempo, produto cultural de uma determinada época e
uma criação singular do sujeito que as imaginou, ou seja “a obra de arte situa-se no
ponto de encontro entre o particular e o universal da experiência humana.” (PCNs
Arte, 2000, p. 35). A obra de arte permanece porque nela o ser humano se reflete e
se identifica, o artista fala diretamente à essência do homem e da mulher. A arte fala
daquilo que nós somos ou do que poderíamos ser.
A arte está, pois, presente na vida dos homens desde os tempos mais
remotos, na época das cavernas. Todas as culturas possuem um tipo particular de
arte, seja no modo como pintam os corpos e as coisas, seja no modo como fazem
cinema ou teatro. A arte, então, é uma constante na vida do homem, é um fenômeno
comum a todas as culturas e que se revela das mais distintas maneiras.
Por meio dessa linguagem podemos perceber a história e o momento
histórico do artista e/ou da sociedade que a produziu. Por isso a arte é também uma
forma de marcar os fatos na história, fazendo com que sejam sempre lembrados.
Por muitas vezes essa representação de momentos da história é acompanhada pelo
olhar crítico de quem refletiu sobre eles. Ou, então, com a marca da insatisfação de
não poder refletir ou criticar, quando a arte mostra a hierarquia de classes,
restringindo o seu acesso a um grupo específico. Ou, ainda, quando reflete as artes
populares, típicas de um povo, que mesmo sem instrução acadêmica, produz seus
trabalhos artísticos seguindo tradições seculares.
A arte aparece também constantemente no nosso cotidiano, muitas vezes
passando despercebida. Ao acordar, por exemplo, podemos ter nosso primeiro
contato com a arte quando olhamos as horas no relógio. O formato, as cores, as
características desse relógio passaram por um processo artístico de pesquisa acerca
das cores, formas, enfim, da estética para chegar a esse modelo. Muitos objetos do
nosso cotidiano nos aproximam da arte e muitas vezes não estamos prontos para
perceber isso. A arte do dia-a-dia é percebida por poucos devido ao ritmo de vida
acelerado que as condições política e econômica atuais exigem. A arte pode se
revelar nos mais simples objetos do dia-a-dia ou através dos mais requintados
espetáculos ou exposições. No entanto, ela é sempre uma busca de expressão, no
sentido de manifestação de sentimentos, emoções, idéias, que não se traduzem
20
explicitamente pela linguagem escrita ou oral. Nas palavras de Duarte Jr. (1991, p.
44) se os símbolos lingüísticos são incapazes de nos apresentar integralmente os sentimentos, a arte surge como uma tentativa de fazê-lo. A arte é algo assim como a tentativa de se tirar um instantâneo do sentir; a arte não procura transmitir significados conceituais, mas dar expressão ao sentir. A arte, portanto está envolta por ambigüidade e subjetividade, pois a
expressão artística dependerá de interpretações singulares da pessoa e de quem a
percebe; e, portanto, continuamente, passível de variadas interpretações. Essa
variedade de interpretações que a arte possibilita e às quais está sujeita, a faz
reviver a cada olhar, a cada toque dos sentidos, da mesma forma como Paul
Ricoeur pensava a sua “hermenêutica”, ao declarar que pela hermenêutica, o texto
ganha vida quando interpretado. A arte, de certa forma, exterioriza os sentimentos
para que possamos percebê-los, ou compreendê-los, interpretá-los para os
ressignificar. E, como comenta Santin (2003, p. 73), “muitos sentidos são audíveis e
manifestos na intersubjetividade e na subjetividade. Talvez seja óbvio alertar que a
subjetividade não é um total descomprometimento com a objetividade. Acontece que
a subjetividade faz parte da objetividade dos fatos humanos.”
Não pretendemos nesta dissertação desenvolver conceitos sobre a arte, visto
que parece legítimo afirmar a dificuldade de conceituá-la, mas, refletir sobre as
expressões artísticas que nos auxiliam a aprofundar o tema de pesquisa proposto.
Se interrogarmos as pessoas sobre o que significa a arte para elas, podemos ouvir
as mais diversas respostas: expressão de sentimentos, beleza, distração, lazer,
quadros de artistas famosos, enfim, diversas definições de acordo com a vivência de
cada um em relação à arte. E se buscarmos o significado do vocábulo no dicionário1,
encontraremos 16 significações que o termo carrega em nosso idioma, além ainda,
das várias expressões em que o termo é usado juntamente com outras palavras.
Dentre os vários significados, encontramos a arte como: a capacidade que tem o ser
humano de pôr em prática uma idéia, valendo-se da faculdade de dominar a matéria;
a utilização de tal capacidade, com vistas a um resultado que pode ser obtido por
meios diferentes; atividade que supõe a criação de sensações ou de estados de 1 Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0, 2004.
21
espírito de caráter estético, carregados de vivência pessoal e profunda, podendo
suscitar em outrem o desejo de prolongamento ou renovação; a capacidade criadora
do artista de expressar ou transmitir tais sensações ou sentimentos; capacidade
natural ou adquirida de pôr em prática os meios necessários para obter um
resultado; dom, habilidade, jeito; ofício, profissão (nas artes manuais,
especialmente); artifício, artimanha, engenho; maneira, modo, meio, forma.
Contudo, é o ser humano que faz arte, ou tem habilidade para tal. É ele quem tem a
intenção de utilizar-se desta para ter um resultado. Acompanhando essa idéia,
valemo-nos das palavras de Leon Tolstoi, em seu livro “O que é Arte”, quando diz
que “a arte é toda atividade humana que consiste em um homem comunicar conscientemente a outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que
vivenciou, e os outros serem contaminados desses sentimentos e também os
experimentar.” (TOLSTOI, 2002,p. 15, grifo nosso). Assim, para Tolstoi, a arte é um
universo muito particular ou uma forma de conhecimento muito peculiar de qualquer
ser humano que busca, por meio de perguntas fundamentais, encontrar seu lugar no
mundo.
Dessa maneira, não conhecer arte, não possibilitar essa vivência para o ser
humano, é limitar suas capacidades criadoras, ou seja,
[...] o ser humano que não conhece arte tem uma experiência limitada, escapa-lhe a dimensão do sonho, da força comunicativa dos objetos à sua volta, da sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das cores e formas, dos gestos e luzes que buscam o sentido da vida. (PCNs Arte, 2000, p. 21)
A arte é uma forma não-diretiva de expressão do ser humano, pois exige não
só a visão, a escuta, mas os demais sentidos como portas de entrada para a
compreensão efetiva das questões sociais, políticas e econômicas. Por isso,
compreendendo o corpo como expressão de arte, estaremos lançando novas
possibilidades de criação de conhecimentos significativos para o ser humano e,
conseqüentemente sua conscientização enquanto ser atuante em uma sociedade.
Porém, ao observarmos ao longo da história percebemos que,
progressivamente, o corpo foi sendo afastado da mente. Essa discussão permeia
principalmente o período da modernidade, cuja paternidade atribui-se a Descartes,
com a res cogitan e a res extensa (DESCARTES, 1958). A discussão concentra-se
22
principalmente numa visão conceitual que atribui à medicina moderna o cuidado do
corpo, como veremos nos capítulos que seguem.
2.2 Modernidade: Corpo e Homem
O significado de modernidade encontrado no dicionário Aurélio Eletrônico
Século XXI, refere-se à qualidade de moderno; dos tempos atuais ou mais próximos
de nós; recente; atual, presente, hodierno; que está na moda. No entanto, para
entender precisamente o sentido do conceito de modernidade faz-se necessário
esclarecer o contexto no qual este termo foi e pode ser utilizado.
O conceito de modernidade implica, segundo Edgar e Sedgwick, uma
oposição a algo, e particularmente a uma época histórica que tenha passado e tenha
sido superada, ou seja, não há resgate de memória, o que ficou para trás já foi
superado e não tem mais valor. Porém, os mesmos autores encontram outros
contextos nos quais o termo modernidade é empregado. Por exemplo, quando se
refere ao termo derivado do latim modernus (“modo”), “caracteriza a era cristã (a
partir do século V, nos escritos de Santo Agostinho), em contraste com um passado
pagão” (EDGAR; SEDGWICK, 2003, p.217). Já nos séculos XVII e XVIII, a
modernidade veio a ser associada ao Iluminismo, movimento intelectual que ocorreu
na Europa durante a parte final do século XVIII. Durante esse período, segundo
Edgar e Sedgwick, o desenvolvimento tecnológico e industrial, com mudança social
associada, tornou-se mais evidente. Assim, a modernidade não mais remete
simplesmente ao que é mais novo ou recente e passa a ser o que é mais
progressista. A racionalidade científica e a palavra de ordem, nesse contexto que
valoriza o progresso, o desenvolvimento, a superação. O sentir já não é mais
valorizado.
Porém, neste estudo, entender-se-á a modernidade segundo o conceito de
Duarte Jr.(2003), que pensa a modernidade como um período que teve suas bases
e fundamentos encontrados entre os séculos XI e XIV. Este autor afirma que a
busca destes fundamentos em épocas mais antigas – no âmago da Idade Média –
23
auxilia na compreensão das transformações na vida e na concepção de mundo dos
povos europeus.
Por isso, nas linhas que se seguem, serão abordados de maneira breve,
aspectos históricos deste período e, seguidamente, dar-se-á ênfase maior aos
séculos XVIII e XIX, visto que, para o presente estudo, este período será
considerado o auge da modernidade, devido ao despontar da Revolução Industrial,
marco essencial para as discussões acerca das transformações nos hábitos
corporais das pessoas.
2.2.1 Corpo na modernidade: perspectiva histórica
Na época das cruzadas, nos séculos XII e XIII, as “guerras santas”
possibilitaram a exploração de novas rotas comerciais entre a Europa e o Oriente.
Assim, surgem as “comunas”, na região onde hoje se situa a Itália, estas cidades
prototípicas, termo usado por Duarte Jr (2003), autor sobre cujo pensamento iremos
nos basear para discutir este tema. Assim, como dizíamos, essas cidades
prototípicas eram habitadas principalmente por burgueses que se dedicavam ao
comércio. O costume consistia no escambo, isto é, trocas simples de mercadorias e
produtos. Essa troca não distinguia qualitativamente produtos diversos e por isso, a
popularização e o estabelecimento do dinheiro resolveria o problema, pois, como
afirma Duarte Jr (2003, p. 38)
[...] deste modo, com o uso corrente da moeda, diferenças qualitativas podiam ser tornadas diferenças quantitativas, facilitando as comparações, o comércio e a obtenção do lucro. Para empregar termos consagrados, o valor da troca começava ali a substituir o valor do uso dos produtos, gerando essa atitude que pode ser considerada a essência do mundo moderno: a troca do qualitativo pelo quantitativo, enquanto modo mais seguro de se conhecer o mundo – seguro, é claro, no tocante, originalmente, aos interesses financeiros.
Outras mudanças fizeram-se necessárias, como por exemplo, a mensuração
correta das distâncias e sua representação exata nos mapas, bem como também o
próprio tempo veio a adquirir caráter numérico com a invenção do relógio mecânico.
24
Ou seja, a preocupação com o preciso regramento da vida cotidiana já começa a
emergir. Como anota Duarte Jr (2003, p. 39), “o tempo, portanto, ia se tornando
visível não mais através das alterações qualitativas da natureza, e sim por meio dos
signos numéricos dispostos nos planos circulares da nova máquina que tanta euforia
vinha causando desde a sua invenção”.
Inicia-se o processo de matematização do mundo e, em decorrência disto, o
espaço, que antes era entendido como algo sentido e vivenciado pelo corpo numa
abstração, passa a ser objeto de raciocínio representado matemática e
geometricamente. Como bem resume Duarte Jr (2003, p. 41), neste mundo que
desponta observa-se
[...] uma transferência dos sentidos para o cérebro, seguindo a exigência da modernidade que então principia a nascer. Está, pois alicerçado o mundo moderno nesta tendência que, progressivamente, irá se solidificar: a maior confiabilidade na descrição quantitativa do mundo em detrimento da qualitativa, o que significa uma migração da atenção humana dos sentidos e sensações – isto é, do corpo – para o cérebro.
Somado ao pensamento de Duarte Jr, Figueiredo (1995, p. 131) analisa o
homem do século XV como “um ser sem natureza nem posição previamente
definidas e que pode escolher livremente para si mesmo uma natureza e uma
posição – um ser, portanto, que de início e por natureza nada é, mas por isso
mesmo tudo pode”. A reflexão deste autor está em consonância com o que Duarte
Jr relata, pois um ser sem natureza é alguém que se encontra distante das suas
raízes, das suas tradições, e o pensamento moderno abre as portas para uma
liberdade infinita de mudanças, transformações, descobertas. Já no século XVI, as
aventuras marítimas foram ampliadas, bem como as fronteiras na geografia e na
mente dos homens.
Assim, consolida-se a preocupação com o futuro e a idéia do progresso, que
era ausente nos tempos medievais. A esperança cresce na mente das pessoas, e
também a idéia de que o futuro será melhor do que o presente, bastando apenas o
esforço e o trabalho de cada um.
Num período em que o homem é convidado a olhar para o futuro, no qual iria
se “cumprir o destino [...] do ser em movimento [...] inconcluso e por isso, com olhar
no horizonte” (BLOCH, 2005, p.143-145). O homem ocidental vive, então, um
25
verdadeiro “otimismo militante” (BLOCH, 2005, p. 196). Com o olhar fixo no amanhã
em busca da cidade do Sol (Campanella) da concretização do sonho acordado
antecipando o futuro em utopia. (MORUS, 2005)
A arte aparece no pensamento e Bloch e tem um importante papel desde
suas primeiras obras, segundo FURTER (1931). Utilizando a arte musical, Bloch
tentava suas interpretações iniciais sobre a utopia refletindo mais profundamente
sobre a música, em particular. Sobre isso, FURTER (1931, p. 33) comenta que
Bloch vê hoje na arte musical uma interpretação concreta, objetiva e coletiva (pela sua tradição histórica) que ordena o mundo pelo ritmo e pela harmonia, sempre aberta ao futuro de possíveis e novas interpretações. A arte musical é a encarnação da esperança numa série de obras em desenvolvimento, pelas quais o homem pode discernir a sua própria capacidade criadora e encontrar, também as raízes do seu esforço pessoal de criação. As obras musicais pelo seu dinamismo prometem e abrem horizontes novos, testemunhando de uma maneira discreta, mais eficaz ao homem atento, uma esperança possível.
Acompanhamos o pensamento de Bloch (2005) e acrescentamos que a arte,
em todas as suas expressões, possui um papel extraordinário na sociedade no
sentido de trazer desse pensamento utópico. Assim, para FURTER (1931, p.33)
[...] a importância crescente que se dá ao espetacular (ver os “happenings”) na criação musical; a interpretação em ação (a renovação do teatro musical na “bossa nova”); e sobretudo à necessidade de encarnar para os outros a compreensão musical na dança coletiva, a forma mais pura, da nova cultura juvenil. Se, na era do “jazz-hot”, tínhamos um fenômeno de retração, uma verdadeira descida nos inferninhos e nas catacumbas, hoje estamos assistindo com os hippies, por exemplo, a uma expansão na esfera pública, isto é à descida na rua. Não é pois pura coincidência se naqueles movimentos juvenis renasce o pensamento utópico.
A arte busca sempre novas interpretações e muitas vezes isso gera novos
pensamentos e ideais. A arte normalmente provoca no apreciador um constante
estado de inquietação, seja pelo simples fascínio em tentar descobrir como se pinta
uma tela com tanta perfeição ou na tentativa de refletir sobre o tema que inspirou a
criação do artista; ou na composição primorosa de uma música; na escolha dos
movimentos corporais de uma coreografia, enfim, nas diferentes maneiras da
expressão pela arte, sempre algo nos provoca.
Ao mesmo tempo, o processo de criação está ao alcance de todos, e não
determinado a um número específico de pessoas. Ernst Bloch abole a singularidade
26
do artista ao valorar antropologicamente – isto é, na existência de cada homem – o
papel da imaginação e do imaginário. Segundo FURTER (1931, p. 101) e BLOCH
(2005) o que fica como privilégio ao artista é que ele será sempre um “especialista”
do imaginário. Mas, de um imaginário que se abre para o futuro, em especial quando
se trata da música, pois esta “tem um efeito explosivo, ocorrendo no espaço aberto”,
e se disseminando pelo infinito (BLOCH, 2005, p.213)
A utopia seria concretizada pela materialidade da obra de arte. Diferente da
consciência antecipadora – fato universal, fundamental torna-se específica – torna-
se específica quando se realiza por meio da obra de arte. “A obra de arte se
distingue das outras criações da consciência antecipadora pela sua concretitude [...]
é suscetível de ser percebida e apreciada coletivamente.” (FURTER, 1931, p. 102)
A obra de arte visa uma totalidade, mesmo se sua concretização é singular. O
fragmento presente na obra é esperança de uma totalização possível. (FURTER,
1931, p. 103)
Com esse espírito esperançoso, adentramos no século XVII, no qual surge o
conceito de mobilidade, promovido pelas Grandes Navegações, na forma de se
fazer ciência. O trabalho de duas pessoas, então, será de grande importância para
estabelecer bases definitivas sobre o conhecimento moderno. René Descartes e
Galileu Galilei. Este é considerado iniciador da ciência experimental moderna e
aquele, da filosofia moderna. Sobre Descartes, com sua dirigida sistemática, irá
problematizar o mundo e o homem para concluir que a compreensão do mundo e do
homem somente seria possível pela mathesis (Descartes, 2004)
Descartes (2004) também teria contribuído para o estabelecimento da
dicotomia corpo/mente, isto é, a separação entre o corpo e a mente, e a prioridade
desta sobre aquela. Com sua visão da dúvida metódica, coloca em suspeita as
verdades até então estabelecidas e separa a relação homem e mundo em dois
pólos: o do sujeito que investiga e o do objeto que se deixa investigar, trazendo
conseqüências sobre as “revoluções científicas”. Como exemplo, a passagem do
geocentrismo para o heliocentrismo, século XVI, não só representou e se constituiu
no símbolo da Revolução Copérnico-Galileana, segundo SANTIN (2003), como
também significou a mudança de nosso sistema cósmico. Assim, com essa nova
cosmologia, institui-se no homem uma nova rachadura, e desta emerge uma nova
27
Antropologia. Ou seja, o mundo acabou por dividir-se em duas partes, dois mundos
distintos, duas verdades. “A verdade da ciência ou do mundo, e a verdade do
homem. A verdade da ciência é indiferente às verdades do homem.” (SANTIN,
2003, p. 18) As velhas certezas e as velhas verdades já não mais são tidas como
certas; passam pelo crivo dos métodos empírico-racionais. Tudo que norteava o
homem até aqui se esvaziou de sentido; o mundo agora seria constituído da
matemática e da geometria, segundo a visão galileana. É o processo de
matematização do mundo, a quantificação das coisas em detrimento da qualificação.
E, Galileu também promove uma grande revolução epistemológica na
modernidade através do estudo do movimento dos corpos, a partir de equações e
fórmulas matemáticas. A partir de Galileu, portanto, a essência das coisas não
estará mais em jogo, e sim sua função. Pensando no corpo, esquece-se então, sua
natureza para dar prioridade à funcionalidade do corpo como objeto de trabalho.
Diante de tudo isso, emerge a ciência moderna e, por conseqüência, o “novo
homem”, em busca de suas novas verdades, objetivas. Para tanto, precisa renunciar
de sua condição existencialista e substituir sua consciência, até então, subjetiva,
pela razão universal. O método a ser agora utilizado será, então o lógico-
matemático. Assim, segundo SANTIN (2003), o homem defronta-se com três
grandes projetos e imagens do mundo:
A imagem galileana do mundo, como um livro escrito em caracteres matemáticos, constitui o primeiro projeto. A segunda imagem está baseada na idéia de um mundo harmonioso definido por Kepler ao dizer que os movimentos celestes nada mais são que uma canção para várias vozes. E, por fim, a imagem do mundo, a mais antiga, que nos vem da tradição bíblica expressa no Salmo 19, onde se lê: ‘os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos.’ (SANTIN, 2003, p. 19)
Portanto, o homem encontra-se diante de novos caminhos e sua angústia
agora é tentar reconstruir-se nessas novas perspectivas de mundo e tentar refazer
seu projeto pessoal.
À medida que cada ciência define seu objeto e estabelece seus métodos,
tem-se a fragmentação do conhecimento limitado em áreas e regiões
epistemológicas. O conhecer é obtido por meio do processo de dividir, fragmentar,
separar, classificar. O mundo é visto como uma grande máquina e o princípio
28
científico da fragmentação e do determinismo acarretaram uma visão da natureza
como um mecanismo que pode ser demonstrado e analisado sob a forma de leis.
Tudo que não se encaixa nos seus princípios metodológicos e epistemológicos é
considerado como não científico. Não há mais a idéia de um conhecimento universal
da realidade. Tudo precisa ser explicado por meio de princípios lógico-matemáticos.
Dessa maneira, o senso comum e os estudos humanísticos não seriam tratados
como conhecimentos científicos.
Com o advento da Revolução Industrial, no século seguinte (XVIII), há
alterações ainda mais profundas, incidindo diretamente na vida e nos hábitos das
pessoas. Pode-se dizer que houve um processo de reeducação do corpo humano:
quem antes era um artesão, agora se tornara um operário. Ao contrário do artesão,
o operário passou a ter a vida dirigida pela lógica da produção industrial, seguindo
os horários fixados por ela. Ou seja, não tinha mais a vida regida pela natureza ou
pelo próprio corpo, e também não fazia mais seus horários pelo ritmo vital.
O regime de trabalho proposto pelas indústrias era totalmente alheio às suas
demandas corporais, por isso,
não é demais afirmar-se que, primordialmente e em termos dos indivíduos, a Revolução Industrial significou um radical processo de reeducação do corpo humano. Corpo esse que, de maneira acelerada, precisou adaptar-se a um esquema produtivo que se mostrava indiferente às suas necessidades e ritmos vitais, os quais até então eram obedecidos pelos antigos lavradores e artesões. (DUARTE Jr, 2003, p. 47)
A valorização da racionalidade desprendeu-se da preocupação com o corpo.
Fez-se necessário uma padronização da maneira de movimentar-se, de trabalhar,
de viver, pois a uniformidade do movimento dos corpos das pessoas significava
maior facilidade no domínio dos mesmos. Quanto mais regrado e submisso fosse o
corpo do operário, maior a produtividade no trabalho e maiores os lucros do
empregador. Toda energia deveria ser canalizada para a produção. Portanto, festas,
divertimentos e prazeres deveriam ser reduzidos e controlados, pois comprometiam
a cada passo, a reclamada economia dos corpos. Ou seja, os corpos só se
valorizavam na medida em que pudessem contribuir para a afirmação dos novos
valores de trabalho, do rendimento e do progresso. Confirmou-se, então, a
necessidade de iniciar um controle social sobre os corpos evitando o que era
29
entendido por desperdício inútil das energias humanas. Jorge Crespo comenta sobre
o policiamento dirigido aos corpos. Segundo ele
os fatos demonstravam que as condutas humanas não se revelavam de acordo com a reclamada civilização dos costumes; as exigências de austeridade e de contenção dos gestos não se cumpriam; os desvios de comportamentos denunciavam a inexistência de um controle social eficaz. (CRESPO,1990, p. 464)
Dessa forma, constatamos então, que o corpo se constrói socialmente, pois a
visão que o homem tem do corpo é influenciada pelo ambiente social, político e
econômico em que está inserido, portanto, acaba por absorver idéias, expectativas e
intenções desse meio. Ou seja, não é constituído por uma universalidade das
vontades, como diria Foucault (1979, p. 146): “não é o consenso que faz surgir o
corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos
indivíduos.”
Neste contexto, eram definidos os planos de educação, que compreendiam
um conteúdo moral acentuado tendo em vista implantar um regime de submissão e
restrições de comportamentos. Ou seja, os sentidos vão sendo negados e a
elevação da racionalidade humana, glorificada.
E é com esse pensamento de supremacia da razão humana que o movimento
iluminista postulava suas concepções. A razão foi considerada primordial dentre as
faculdades humanas e, por isso “devia ser devidamente educada e desenvolvida, a
fim de que a humanidade pudesse caminhar (utopicamente) em direção à sua
maioridade.” (DUARTE Jr, 2003, p. 46), em atendimento à exortação de Kant em “o
que é iluminismo?”: ousai saber.
Para isso, a multiplicação das escolas tornou-se ferramenta essencial e,
associada ao pensamento do Estado em efetivar um controle social sobre os corpos,
a escola tornou-se um lugar propício no qual poder-se-ia desenvolver a mente e
treinar os corpos, para adaptá-los ao convívio social.
Já no século XIX, o espírito que prevalece, ao contrário do pensamento
iluminista sobre a crença na ciência, é o da ciência como uma nova forma de
superstição, ou seja, fé num ilimitado progresso científico e tecnológico,
desenvolvendo um utopismo técnocientífico. Uma nova esperança é depositada no
30
progresso, nas novas descobertas e invenções, como a máquina e o navio a vapor,
as ferrovias, o telégrafo, a luz elétrica, os jornais.
O triunfo da razão já era inquestionável, e fazia acreditar que a maioridade
humana – célebre expressão dos iluministas – estava próxima (KANT, 2008). A
ciência vai avançando em suas descobertas; as máquinas seduzem por tornarem as
tarefas mais fáceis, ágeis, encurtando distâncias e aumentando a velocidade. Em
meio a tudo isso, Nietzsche, Spengler e Freud destoam com suas advertências
discordantes. Porém, suas vozes parecem ecoar no vazio, dado o clima de
excitação com a modernidade tecnológica que cresce e se expande rapidamente.
E é com essa “crença ferrenha na racionalidade” – expressão de Duarte Jr,
que o mundo ingressa no século XX, inserido em um mal estar e em uma descrença
na tão vangloriada racionalidade humana que principia a eclodir. As máquinas, que
antes só traziam benefícios, agora trazem destruição; tornaram-se mortíferas. Essa
solidez da razão começa a ruir com a eclosão da Grande Guerra e o desespero e o
mal estar tornar-se-ão agudos com a Segunda Guerra; com Hiroshima e sua bomba
atômica e Auschwitz, o campo de concentração e de morte. Nesse contexto, as
conseqüências decorrentes do processo da modernidade levam a questionamentos
e conflitos quanto às idéias de progresso, ciência, racionalidade, evolução e por
conseqüência, valores atribuídos ao corpo.
2.3 Michel Foucault: Corpo e Poder
A preocupação com o poder levou também à descoberta do corpo como
objeto e alvo do mesmo. A atenção dedicada ao corpo para torná-lo hábil e útil, se
manifesta pelas ações de manipulação, modelagem, treinamento, regramento e
disciplina que se impõem sobre o corpo. Mas há de se lembrar que o poder não
somente tem a função de repressão, pois agindo somente assim tornar-se-ia frágil,
como bem ressalta Foucault (1979), quando distingue a existência da consciência do
efeito de poder sobre o corpo na situação de trabalho na perspectiva marxista. Esta
dá
31
[...] noção de repressão uma importância exagerada. Pois se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através de um conjunto de disciplinas militares e escolares. (FOUCAULT, 1979, p. 148)
Portanto, ao mesmo tempo em que se busca a formatação de corpos para o
trabalho também se preza pela valorização dele, mas de maneira a escravizá-lo,
tirar-lhe a liberdade sem que disso a pessoa tome consciência. Um exemplo disso
seria o culto ao corpo, que reina até os dias atuais. Aprecia-se o corpo sadio, magro,
esbelto e tudo gira em torno desse estereótipo de beleza. As mídias propagam essa
idéia e procuram vender todos os produtos imagináveis para que as pessoas
alcancem esse ideal corporal, negligenciando até mesmo questões físicas e
psicológicas.
Segundo Foucault (1987), em qualquer sociedade a questão do corpo é
questão do poder. Os corpos que podem ser modelados em favor de interesses de
determinadas pessoas ou classes seria o que Foucault chama de corpos dóceis.
Corpos que podem ser adestrados, manipulados. “É dócil um corpo que pode ser
submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.”
(FOUCAULT, 1989, P. 118). Essa disciplina corporal que busca padronizar os
corpos e tirar-lhes a liberdade destruindo assim, suas capacidades expressivas,
inventivas, comunicativas, carregadas de séculos de preconceitos quanto aos
gestos, exposição e até mesmo percepção e consciência de si próprio, afastou do
âmbito escolar uma educação corporal, com foco na expressividade, na
comunicação e criação individual, ou seja, desconsiderou o corpo como processo,
produto e objeto da arte e da educação em arte disciplinado-o e o tornando dócil.
Disciplina tida como uma fórmula geral de dominação, mas uma disciplina que
domina os corpos em favor da utilidade e conseqüência da obediência e vice-versa.
Foucault compara e distingue a forma de dominação por meio da docilidade dos
corpos com a escravidão, com a domesticidade, vassalidade e o ascetismo.
Interessante observar essa distinção e ver que o corpo que agora é dócil, não se
conscientiza de sua situação porque é iludido pelos resultados que seu corpo
32
produz, por se sentir útil, capacitado e com aptidão para realizar o que lhe é
proposto, acaba não percebendo que é ao mesmo tempo, dominado, devendo
submeter-se às exigências alheias. Nas palavras de Foucault (1989, p. 119) essas
formas são diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar essa relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes. Diferentes também da domesticidade, que é uma relação de dominação constante, global, maciça, não analítica, ilimitada e estabelecida sob a forma da vontade singular do patrão, seu “capricho”. Diferentes da vassalidade que é uma relação de submissão altamente codificada, mas longínqua e que se realiza menos sobre as operações do corpo que sobre os produtos do trabalho e as marcas rituais da obediência. Diferentes ainda do ascetismo e das disciplinas de tipo monástico, que têm por função realizar renúncias mais do que aumentos de utilidades e que, se implicam em obediência a outrem, têm como fim principal um aumento do domínio de cada um sobre seu próprio corpo. O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente.
A disciplina irá fabricar corpos submissos, ‘dóceis’, que lhes tirará também
suas singularidades; não saberão mais quem realmente são, seus gestos e
movimentos serão pensados por outras pessoas, por outras instâncias de poder.
Não tem mais consciência própria, agem em função de objetivos, de sua capacidade
de produzir. Na “Microfísica do Poder”, Foucault diz: o poder penetrou no corpo,
encontra-se exposto no próprio corpo, por isso, para ele, nada é mais real na
sociedade capitalista do que o exercício do poder causado pela dominação do
corpo. Neste sentido, o corpo é não somente objeto do poder, como também
exercício do poder. Objeto do poder para produzir cada vez mais o exercício do
poder de persuasão para o consumo do que foi produzido, e assim, toda essa
manifestação se dá.
Lembra que o poder disciplinar se exerce por meio de técnicas de vigilância
sobre o corpo e de atos punitivos sobre o corpo. Para ele, as relações de poder
“operam sobre o corpo de modo imediato; eles o investem, o marcam, o dirigem, o
supliciam, submetem-no a trabalhar, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais.”
(FOUCAULT, 1983, p. 28)
33
A supremacia da burguesia para exercer a dominação econômica, precisava
apelar para a dominação física, pois “uma das formas primordiais de consciência de
classe é a afirmação do corpo.” (FOUCAULT, 1980, p. 119)
Por isso mesmo Foucault irá criar uma nova categoria de análise denominada
por ele de “bio-poder”. A partir do conceito de bio-poder ele mostra como o sistema
capitalista e a classe social que o criou o utiliza para o exercício do poder sobre os
indivíduos: “ o poder foi, sem dúvida, o elemento indispensável ao desenvolvimento
do capitalismo, que só pode ser garantido às custas da inserção controlada dos
corpos no aparelho de produção e, por meio de um ajustamento dos fenômenos de
produção ao processo econômico.” (FOUCAULT, 1980, p. 132)
Para Foucault, a burguesia capitalista precisa criar um novo tipo de sociedade
a fim de manter o poder político e econômico: “a sociedade disciplinar”, pois o
capitalismo precisa de corpos produtivos, dóceis e disciplinados. Dessa maneira, a
disciplina pretende tornar o corpo dócil para melhor explorá-lo em favor da produção.
A rigor, o corpo para se tornar apto para produzir, precisa ser modelado, formado.
Daí, um papel importante atribuído à escola capitalista neste processo de
docilização e formação de corpos disciplinados. Assim, de acordo com Foucault, o
disciplinamento dos corpos precisa seguir três critérios: 1) tornar o exercício do
poder menos custoso possível (economicamente pela pouca despesa que acarreta
politicamente, por sua discrição, sua fraca exteriorização, sua relativa visibilidade, o
pouco de resistência que suscita); 2) fazer com que os efeitos desse poder social
sejam levados a seu máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível,
sem fracassos, nem lacunas; 3) ligar, enfim, esse crescimento econômico ao poder e
o rendimento dos aparelhos no interior dos quais se exerce (sejam parelhos
pedagógicos, militares, industriais, médicos, midiáticos). Em suma, fazer crescer ao
mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema.
(FOUCAULT, 1987, p. 101)
Portanto, a disciplinarização dos corpos passa a ter uma espécie de modelo
disciplinar a ser aplicado nos hospitais, na indústria, nas forças armadas, nas
escolas, vistas como “instituições disciplinares” que definem um certo modo de
investimento político detalhado do corpo, uma nova “microfísica do poder”,
(FOUCAULT, 1987, p. 128). Nasce, então, o que Foucault chama de “arte do corpo
34
humano”, a partir desse modelo de disciplinarização do corpo, com a finalidade de
submetê-lo, sujeitá-lo para que se torne mais obediente e, é claro, mais útil: “a
disciplinarização fabrica corpos submissos e exercitados, corpos dóceis”. Ainda
mais,
a disciplina aumenta a força do corpo e diminui essa mesma força. Ela dissocia o poder do corpo, faz dele por um lado, uma ‘aptidão’ e, por outro lado, a energia, a potência que poderia resultar disso e fez dela uma relação de sujeição estrita. Dessa forma, a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada. (FOUCAULT, 1987, p. 127)
Foucault vê a disciplinarização dos corpos como uma ação sutil que vai se
apoderando delas sem que eles tomem consciência dela – construindo, mesmo, o
que Paulo Freire chamaria de consciência ingênua, pois nesta situação, a
consciência do opressor passa a “habitar a consciência do oprimido”. Vem a ser,
portanto, uma ação que faz uso de “pequenas astúcias dotadas de grande poder de
difusão, arranjos sutis de aparência inocente, mas profundamente suspeitos,
dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções
sem grandeza.” (FOUCAULT, 1987, p. 128) Essa técnica de disciplinarização dos
corpos se realiza pela “minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das
inspeções, o controle das mínimas parcelas de vida e do corpo e darão em breve no
quadro da escola (supervisão, inspeção escolar), do quartel, a hospital ou da
oficina.” (FOUCAULT, 1987, p. 129).
Portanto, entendemos com Foucault que o bio-poder funciona como uma
espécie de “anatomia-política” sobre o corpo e, também como uma bio-política no
corpo social, pois “as disciplinas do corpo e as relações da população constituem os
dois pólos em torno dos quais se desenvolvem as organizações do poder sobre a
vida.” (FOUCAULT, 2003, p. 131)
É neste sentido que podemos entender a interdição do corpo: proibido de se
expressar autonomamente, proibido de mover-se com independência, proibido de
ser.
Como vimos, o pensamento de Michel Foucault acerca do corpo, destaca-o
como sustentação das forças de poder e de saber, ou seja, o corpo é atravessado
por relações de poder/saber. O corpo é sujeitado à dominação dentro da sociedade
35
capitalista. É redutível a certos arranjos sócio-histórico-culturais que irão constituir a
identidade histórica do sujeito.
Porém, entendemos que, apesar de ser de suma importância compreender o
corpo na perspectiva foucaultiana, é importante também abordá-lo sob outra ótica
também: o corpo como fonte da percepção de sentidos. E é com Maurice Merleau-
Ponty que buscaremos agora a libertação do corpo aprisionado de Foucault. A
questão do corpo é central nos estudos desses dois autores, sendo que em Foucault
ressaltam-se os aspectos culturais e históricos, já em Merleau-Ponty, o que se
destaca são os aspectos ligados ao que é natural do sujeito, não se limitando aos
seus significados histórico e culturais. Para Merleau-Ponty, o corpo é o ponto de
apoio das percepções e de sensações na existência do indivíduo, como
observaremos na continuidade dessa pesquisa. Veremos também que a arte, em se
tratando de percepção, terá papel importante, visto que trabalha diretamente com o
sensível.
2.4 Merleau-Ponty: corpo, sensação e diálogo pelo toque
Reflexões sobre a questão corporal inculquem no pensamento acerca das
formas de lidar com a corporalidade, entendendo que esta é resultante de um
processo histórico e, portanto, uma construção social. A realidade atua no indivíduo
assim como este atua sobre a realidade. Mas podemos dizer que a realidade pode
direcionar e até formalizar suas maneiras de sentir, pensar, e agir. Segundo
Gonçalves (1997, p. 14), “a cultura imprime suas marcas no indivíduo, ditando
normas e fixando ideais nas dimensões intelectual, afetiva, moral e física.”. Ou seja,
o indivíduo absorve do meio onde vive tudo aquilo que vai compor sua forma de ver
e vivenciar o mundo a sua volta. O corpo, portanto pode até revelar singularidades,
mas também e principalmente, expressa tudo aquilo que caracteriza o grupo social
ao qual pertence. A arte, então, fará parte desse todo que influencia o indivíduo.
Portanto, seu acesso ou restrição à arte, distingue de alguma maneira sua forma de
36
expressar-se por meio do corpo. “O corpo expressa a história acumulada de uma
sociedade que nele marca seus valores, suas leis, suas crenças e seus sentimentos,
que estão na base da vida social.” (GONÇALVES, 1997, p. 14)
Se buscarmos referências na história, veremos que nossa herança cultural
sempre nos leva a pensar o homem de forma dualística. Dentro dessa dualidade a
valorização dos aspectos espiritual, psíquicos e intelectuais é constante. O corpo só
pode ser considerado numa função de serviçal, sendo apenas um instrumento para
atingir fins específicos. Nas palavras de Santin (2003, p. 63),
chega-se a conceder ao corpo certas funções que lhe são especificas, apenas quando tem, como finalidade e objetivos, valores superiores. A psique, ou a alma, a consciência ou a mente usam o corpo como veículo que conduz à perfeição, mas que pode dificultar o bom andamento quando ele não obedece aos ditames espirituais.
Enquanto permanecer a idéia da dualidade, da visão antropológica dualista,
que compreende o homem como sendo formado por duas partes distintas,
separadas e autônomas. A inferioridade corporal permanecerá, pois o corpo sempre
estará a serviço de um ideal de empreendimentos de dominação e de supremacia
ideológica.
Em contraponto a esse pensamento dualista, cartesiano, encontram-se as
investigações filosóficas de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que situa no cerne
de suas reflexões a crítica radical à metafísica cartesiana que, fundada na
separação de alma e corpo, instaurou no conhecimento uma cisão, no qual de um
lado encontra-se a objetividade da ciência e, de outro, a subjetividade empirista.
Essa visão dualista reduz o corpo à condição de objeto, e como tal, o sujeito faz do
corpo um objeto de representação e com ele só mantém relações de exterioridade.
Schmoller (1995, p. 30) opõe-se a essa visão afirmando que “meu corpo não é
objeto físico estudado pelas ciências através da atitude reflexiva; esta atitude purifica
simultaneamente a noção comum do corpo como uma soma de partes sem interior,
e a alma, como um ser totalmente presente a si mesma, sem distância.”.
Quando se estabelece essa distinção, o corpo não se deixa conhecer,
somente quando existencialmente é conhecido na sua vivência, quando alguém vive
seu corpo intencionalmente, confunde-se com ele, seu ‘eu’ se estende de forma
37
intencional ao mundo. O sujeito não é corpo separado de si mesmo, não pode estar
diante de seu corpo, pois é corpo em sua totalidade. O corpo não é objeto, porque
está sempre com o sujeito que não pode se separar dele, e ele nunca pode deixá-lo.
Não são duas realidades diferentes e separadas, nem a somatória de duas
realidades.
Na Fenomenologia da Percepção, o capítulo sobre a Experiência do Corpo e
a Psicologia Clássica, Merleau-Ponty (1999) afirma que o corpo próprio, segundo as
concepções desta abordagem, se distingue dos demais objetos porque o sujeito não
pode se afastar dele para observá-lo. Na medida em que é um “objeto que não o
deixa”. Mas, em seguida, o próprio autor questiona se realmente o corpo “é um
objeto que não me deixa”. O que caracterizaria um objeto, é a sua capacidade de
ser observável, de poder situar-se diante do nosso olhar, pois “de outra maneira, ele
seria verdadeiro como uma idéia e não presente como uma coisa.” (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 133) A rigor, uma abstração. A permanência do corpo próprio é
diferente daquela dos objetos, porque se recusa a ser explorado tal como os demais
objetos o são. Não posso mudar o ângulo de visão do meu corpo, como faço com os
outros objetos; meu corpo se apresenta a mim sempre do mesmo ponto de vista. A
permanência do corpo,
não é uma permanência no mundo, mas uma permanência ao meu lado. Dizer que ele está sempre perto de mim, sempre aqui para mim, é dizer que ele nunca está verdadeiramente diante de mim, que não posso desdobrá-lo sob meu olhar, que ele permanece à margem de todas as minhas percepções, que existe comigo. É verdade que também os objetos exteriores só me mostram um de seus lados, escondendo-me os outros, mas pelo menos posso escolher à vontade o lado que eles me mostrarão. (1999, p. 134)
Assim sendo, podemos afirmar com Merelau-Ponty, que o meu corpo me
impõe um determinado ponto de vista. Meu corpo é minha possibilidade de estar no
mundo, de ver outros corpos e outros objetos exteriores, de manejá-los, dar a volta
em torno deles, mas quanto ao corpo próprio essa possibilidade não existe, já que
precisaria de outro corpo para observá-lo. (Merleau-Ponty, 1999, p. 135)
O sujeito, enquanto ser que é corpo, não faz uso dele, mas vive como tal,
sente-se corpo: “nele, encontro aquela projeção que me faz ser no mundo,
justamente porque o corpo é atualização da minha existência.” (SCHMOLLER, 1995
38
p. 30) Apesar de ver e tocar o mundo por meio do meu corpo, a situação inversa não
seria realizável, segundo Merleau-Ponty. A explicação se dá, na medida em que o
corpo é aquilo que faz as coisas existirem como objetos. “Ele não é nem tangível
nem visível, na medida que é aquilo que vê e que toca.” (1999, p.136) Nesse
sentido, no pensamento de Merleau-Ponty, o corpo daria ao indivíduo o que ele
chamou de “sensações duplas”, que é o tocar-se tocando, numa organização
ambígua no qual as partes do corpo podem alternar-se na função de tocada e
tocante. Dá o exemplo das duas mãos que se tocam, e que não se trata de duas
sensações sentidas em conjunto, mas cada mão pode dar e se dar significado
concomitantemente.
Portanto, se o corpo próprio, apresenta essa ambigüidade, anteriormente
citada, se é, ao mesmo tempo em que existe, que deseja intencionalmente abrir-se
para o mundo, e não é simplesmente um objeto entre os outros, como poderia a
psicologia clássica, tendo como ponto de partida do seu conhecimento o fato,
descrever essa experiência do corpo. Nas palavras de Merleau-Ponty (1999, p.139),
se a descrição do corpo próprio na psicologia clássica já apresentava tudo o que é necessário para distinguí-lo dos objetos, de onde provém que os psicólogos não tenham feito essa distinção ou que, em todo caso, não tenham extraído dela nenhuma conseqüência filosófica?
Seria necessário um retorno a si mesmo, instalando um pensamento universal
que recalca tanto sua experiência do outro como experiência de si mesmo.
2.5 A EXPERIÊNCIA DO CORPO PRÓPRIO
Após as reflexões acerca do corpo como mero objeto, nas perspectivas da
psicologia clássica, segundo análise das idéias de Merleau-Ponty, é importante
discutir o corpo enquanto experiência vivida por meio da arte.
Ao pensar a arte que se expressa por meio do corpo, pensamos também o
homem como corporeidade, e como tal, é expressão, presença, gesto, comunicação.
O homem é um ser capaz de assumir posturas expressivas corporalmente, de
comunicar por meio de seu corpo suas intenções, seus desejos, anseios,
39
sentimentos. Santin (2003, p. 35), interpretando Merleau-Ponty, descreve essa
presença do homem como corporeidade, não reduzindo a um conceito material de
corpo, mas enquanto fenômeno corporal, ou seja, na medida em que ele é
expressividade, palavras e linguagem. O mesmo autor se refere à educação física e
reforça que esta deverá se contrapor ao exercício mecânico, vazio e ritualístico,
porque o gesto precisa ser “falante”, e esse gesto é o movimento que não se repete,
mas que se refaz, e refeito diz cem vezes, tem sempre o sabor e a dimensão de ser
inventado, feito pela primeira vez. A repetição criativa não cansa, não esgota o
gesto, pois não é repetição, mas criação. Assim, ele é sempre novo movimento,
diferente, original. Ele é arte. Paulo Freire (1987, p. 58) comenta sobre a
memorização fundada na repetição reprodutiva do saber; vê o processo educativo
não como algo que se repete, mas como algo que se refaz, como veremos mais
adiante. E, se para Santin (2003), como vimos, na Educação Física, os movimentos
devem ser gestos artísticos, criativos, na expressão artística como seriam? Na arte,
os movimentos são também gestos criativos, seja quando um pintor movimenta o
pincel com seu braço, quando um bailarino executa sua coreografia, ou quando um
músico toca um instrumento musical, os gestos são carregados de originalidade,
expressividade, refletindo um movimento contínuo, mas sempre novo e criativo. Ao
propor que os gestos sejam artísticos também no espaço dos exercícios físicos, se
propõe também que a arte que se expressa pelo corpo amplie suas dimensões e
não fique somente reduzida ao espaço da arte. Entender que o corpo pode
expressar-se criativamente aproxima-nos da idéia de Merleau-Ponty quando
compara o corpo não ao objeto físico, mas a obras de arte, sejam elas quais forem.
Ele toma como exemplo um quadro de Cézanne, e afirma que a comunicação
da idéia se faz pelo desdobramento das cores e dos sons. E prossegue dizendo que
é a percepção dos quadros que dá o único Cézanne existente. Assim como nas
pinturas de Cézanne, não é possível distinguir a expressão daquilo que é expresso
ou interpretado pelo apreciador, e o sentido só pode ser acessível por um contato
direto com a obra, com o corpo ocorre a mesma situação, não se separa o físico do
psíquico, ambos formam uma unidade, ressaltando a compreensão do homem como
um todo. É assim que pode se estabelecer a relação entre corpo e obra de arte, pois
40
o corpo, “ele é um nó de significações vivas e não lei de um certo número de termos
co-variantes.” (MERLEAU-PONTY,1999, p. 210)
A experiência do corpo próprio, como corpo reflexionante é essencial no
pensamento de Merleau-Ponty. Dessa maneira, o corpo como sujeito da percepção
apresenta a capacidade de reflexão, que antes era atribuído à consciência. É nesse
ponto que Merleau-Ponty encontra a superação, segundo Schmoller, do dualismo
cartesiano, res cogitans/ res extensa (corpo/alma).
2.6 Corpo e movimento humano
Após procurarmos entender os diversos aspectos do corpo, sua existência e
sua ambigüidade, cabe agora pensar na motricidade desse corpo que, como vimos,
é reflexionante, segundo os pressupostos de Merleau-Ponty.
Todo homem é um ser em movimento, desde seu nascimento. Falar do
movimento humano, não parece tarefa fácil, pois não falaremos apenas de um corpo
que se move, mas de um corpo com todas as características anteriormente citadas e
que não pode mais ser encarado como movimento mecânico. Segundo Merleau-
Ponty, o movimento é flexibilidade, inteligibilidade e criação:é inteligência, reflexão e
compreensão juntamente com todos os mecanismos fisiológicos (1999, capítulo III).
Mover-se não é simplesmente pensar um movimento; toda movimentação é
carregada de inteligibilidade. Para executar determinados movimentos não é
necessário pensar em tudo que vou fazer, meu corpo por si só consegue realizar
sozinho, ou seja age mecanicamente e também reflexivamente. A Filosofia
fenomenológica-existencial afirma que toda ação humana é intencional, que se dá
na relação do corpo-sujeito com o mundo. Portanto,
partindo do princípio da intencionalidade de todo agir humano conclui-se que os movimentos humanos estão sempre envolvidos pelo mundo das significações. Em outros termos, nenhum movimento humano esta no mesmo nível do movimento animal e das máquinas. O homem se posiciona e se move sempre intencionalmente, ou seja, significativamente. (SANTIN, 2003, p. 46)
41
E será que também não se move conscientemente, no sentido de consciência
de si mesmo, e de suas possibilidades motoras, expressivas e criativas? Se o
homem age com intenções em que momento essa capacidade se perde?
Então, se a intencionalidade fundamenta a articulação e a organização dos
movimentos do homem, será possível também propor outras intencionalidades,
diferentes das atuais, que por sua vez proporão outras articulações do movimento.
(SANTIN, 2003)
Santin (2003) sugere um levantamento dos componentes intencionais,
responsáveis pelas diferentes maneiras de articular ou organizar as múltiplas
intencionalidades e possibilidades a que o movimento está sujeito. Para facilitar a
abordagem o autor dividiu os componentes intencionais em dois tipos: internos e
externos.
Os componentes internos serão considerados como aqueles que são
constituídos pelas significações ou valorações, elementos estes que acompanham e
se confundem com os próprios movimentos. Destaca-se dentre eles, a
expressividade, pois é por meio dela que os movimentos se constituem em
linguagens que traduzem ou identificam o movimento com seu significado. O gesto e
seu significado não podem ser separados, expressar-se por meio de linguagens
artísticas, por exemplo, é carregar de significados todos os gestos envolvidos nas
ações do corpo que se expressa, que comunica. A linguagem na arte é o veículo
pelo qual a criação artística se constitui, é todo o sistema de signos2 que possibilita a
criação do artista.
O homem se comunica a partir da linguagem e é por meio dela que tem
acesso à informação, que expressa seus desejos, vontades, pontos de vista,
constrói sua concepção de mundo, compartilha idéias, enfim, produz conhecimento.
A linguagem é o instrumento que possibilita a coexistência de um grupo humano,
compartilhando uma mesma estrutura de valores. Ao utilizar uma linguagem, uma
“comunidade interpreta o mundo e traça as diretrizes para sua sobrevivência. A
linguagem, tornando significativos os valores, possibilita ao homem um esquema
2 Segundo Santaella (2002, p. 8-10) signo é “qualquer coisa de qualquer espécie que representa uma outra coisa, chamada de objeto do signo, e que produz efeito interpretativo em uma mente real ou potencial, efeito esse que é chamado de interpretante do signo. Ou seja, o signo é o mediador entre o objeto e o interpretante. É aquilo que dá corpo ao pensamento, às emoções, reações, etc”.
42
interpretativo do mundo, de maneira que este possa orientar sua ação.” (Duarte Jr,
1988, p. 38)
A linguagem da arte pode ser considerada um modo particular de perceber e
organizar o mundo, pois na incapacidade dos símbolos lingüísticos traduzirem os
sentimentos, a arte surge como uma tentativa de fazê-lo através de formas
simbólicas não-convencionais. A arte buscará expressar um instante do sentir
humano, expressando um ou vários sentimentos.
Uma obra de arte revela a personalidade de seu criador, sua atitude seletiva
frente ao contexto cultural no qual vive, os processos criativos pelos quais passou, a
organização das idéias e os sentimentos que optou por expressar. Assim, a
imaginação e a linguagem adquirem formas pessoais e subjetivas, até. Entretanto,
segundo Ostrower (1987), daí não se conclui que a linguagem em si seja subjetiva.
Pois, a linguagem
[...] é objetivada como ordenação essencial de uma materialidade. Essa objetivação da linguagem pela matéria constitui um referencial básico para a comunicação; é uma referência, antes de tudo, para os critérios de realização, os critérios de valor. Ilumina no ‘como’, de uma comunicação o ‘quê’ da expressão, o conteúdo expressivo. Ilumina ainda no ‘como’, na forma objetivada, a extensão do subjetivo que a forma também contenha. (OSTROWER, 1987, p. 37)
Ou seja, a arte é subjetiva, mas em determinados aspectos. Enquanto
linguagem que objetiva alguma coisa e que se ordena e se materializa, sua
objetivação se faz presente. Mas, enquanto possibilidades de interpretações,
reflexões, expressões, diversidade de criação, combinações, daí então, sua
subjetividade é iminente.
O corpo ao se expressar faz uso de uma linguagem: a linguagem como
expressão é comunicação, capaz de estabelecer diálogo entre sujeitos. Portanto,
retomando a idéia da intencionalidade do movimento humano, afirmada pela
Filosofia fenomenológica-existencial, percebemos que todo agir do homem quando
originado do dinamismo expressivo, transforma-se em linguagem, cercada por
significações. Na fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty afirma que o corpo é
eminentemente um espaço expressivo. Assim, tanto o corpo, como seus
movimentos são o centro de toda e qualquer manifestação e possibilidade
expressiva. É na corporeidade que o homem se faz presente, pela suas ações,
43
atitudes. “A dimensão da corporeidade vivida, significante e expressiva caracteriza o
homem e o distancia dos animais. Todas as atividades humanas são realizadas e
visíveis na corporeidade.” (SANTIN, 2003, p. 66) O corpo é nossa maneira de ter um
mundo e atuar nele. A idéia de se usar o corpo para agir deve ser substituída por ser
um corpo, ou seja, sentir-se como corpo, vivenciá-lo a todo instante. Cada corpo tem
seu mundo ou compreende seu mundo, e ao mesmo tempo que está atado a um
certo mundo, é também espaço. Segundo Merleau-Ponty (1999, p. 149), é na ação
que a espacialidade do corpo se realiza.
Considerando o corpo em movimento, vê-se melhor como ele habita o espaço (e também o tempo), porque o movimento não se contenta em submeter-se ao espaço e ao tempo, ele os assume ativamente, retoma-os em sua significação original, que se esvai na banalidade das situações adquiridas.
Ao habitar o espaço é que o corpo o assume, antes mesmo de ter
conhecimento sobre ele. É pelo movimento que o corpo o assume ativamente. O
corpo que se movimenta é o corpo que “sabe” o espaço para coexistir com ele. O
corpo sabe-se como corpo e como espacialidade, sabe-se como um ser que habita e
ao mesmo tempo o define. Pois,
enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para mim o espaço e o tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma infinidade de relações das quais minha consciência operaria a síntese e em que ela implicaria meu corpo; não estou no espaço e no tempo, não penso o espaço e o tempo;eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca. A amplitude dessa apreensão mede a amplitude de minha existência... (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 195)
Todo movimento é ao mesmo tempo movimento e consciência de movimento,
corpo e consciência não limitam um ao outro, eles só podem ser paralelos.
(MERLEAU-PONTY, 1999) Não sou um eu ou uma consciência que são os donos de
um corpo e usufruem dele como qualquer objeto. O eu e a consciência são
corporeidade e não realidades transcendentais que residem num corpo. (SANTIN,
2003) A consciência não é um “eu penso que”, fazendo referência ao idealismo, mas
um “eu posso” no mundo prático-perceptivo, orientando-os para unidade
intersensorial de um mundo.
44
Dessa forma, a reflexão de Merleau-Ponty caminha no sentido de crítica à
soberania da consciência em detrimento da sensibilidade, pois para ele, consciência
e sensação são elementos de uma só realidade: a realidade do ser-corpo.
Privilegia o olhar e a atitude expressiva imanente ao ser humano. O mundo
fenomenológico é o mundo dos sentidos, assim, visualizamos na experiência
sensível perspectivas para a construção de uma racionalidade que contemple o
corpo nas suas mais variadas expressões.
Ao analisarmos o pensamento de Foucault sobre o corpo, percebemos a
forma como, na história do ocidente, o corpo foi oprimido, proibido, docilizado. Em
Merleau-Ponty encontramos uma reflexão sobre as possibilidades do corpo se
expressar, desvencilhando-se da dominação opressora: o corpo em movimento.
Ernst Bloch nos permitiu um encontro do corpo e da arte como expressões
nitidamente humanas. Dessa maneira, esboçamos um referencial que nos permitirá
seguir os caminhos do corpo, da história da educação no Brasil, objeto do próximo
capítulo desta dissertação. Este referencial nos auxiliará, ainda, a compreender a
relação entre corpo e arte/educação à luz da pedagogia libertária de Paulo Freire,
tema do terceiro capítulo desta pesquisa.
45
3 CORPO E EDUCAÇÃO NO CONTEXTO BRASILEIRO Inicialmente, é importante destacar que para determinar as características
históricas de um fenômeno social, ressaltando as mudanças e a suas características
na sociedade em que se desenvolveu, não se pode entender a história como uma
sucessão de fatos no tempo, “mas o modo como os homens, em condições
determinadas, criam os meios e as formas de sua existência social, econômica,
política e cultural, reproduzindo-as ou transformando-as” (CHAUÍ, apud ROMERO,
1995, p. 15)
Segundo MESQUIDA (2008), é atribuída a Parmênides de Eléa (530 – 460
AC) a expressão “o ser é, e o não-ser não é”. Portanto, todo aquele que não se
enquadra na categoria ôntica de “ser”, é percebido como a negação do ser. A
presença no Brasil dos portugueses, a partir de 1500 e, depois, de outras
nacionalidades européias neste e nos séculos subseqüentes, foi marcada pelo não
reconhecimento daqueles que aqui viviam, pois os mesmos não eram reconhecidos
como iguais aos invasores, mas como “outros” e, portanto, não-seres.
Sendo assim, é natural que nossa história comumente tenha sido narrada por
aqueles que impuseram a dominação, a partir de uma visão positivista de mundo. O
cenário dessa época, foi marcado por um estado de violência constante. A vida era
considerada um bem de pouco valor.
No mesmo texto, Mesquida diz que o Frei Bartololeu de Las Casas (1474 –
1556) na sua “Brevíssima relación de la destruyción de las Indias”, de 1552,
endereçada ao “poderoso señor el príncipe de las Españas, Don Felipe, nuestro
señor”, apresenta sua indignação com o que tem sido chamado de “conquistas”, que
se fazem contra as “indianas gentes”, as quais (as conquistas), na realidade, são
“inicuas, tiranicas, y por toda ley natural, divina y humana condenadas, detestadas y
malditas”, e são acometidas pelos “cristianos” contra “los cuerpos de los naturales
moradores y poseedores”, matando, “injusta y tiranicamente”, em 42 anos, perto de
150.000 “cuerpos de hombres y mujeres y niños”. A exposição de Las Casas sobre a
violência cometida contra os corpos das pessoas nas Américas espanhola e
46
portuguesa, dá uma idéia da maneira como eram vistos os moradores da terra,
“verdaderos poseedores”, pelos “conquistadores”: não-seres.
No Brasil, os atos de violência contra o autóctone levaram, em 500 anos, ao
quase extermínio daqueles que aqui viviam. Eram corpos que não tinham razão de
ser na medida em que não serviam aos “conquistadores”. A violência impetrada
contra o corpo da mulher, coisificado, explorado e, então, aniquilado, se estendia ao
corpo do homem, eliminando-o quando não podia ser útil. Tudo em nome dos
projetos vislumbrados pelos colonizadores e por isso justificava-se qualquer atitude
contrária aos seus hábitos e valores. E consideravam suas atitudes como naturais
nas condições então vivenciadas.
Olhos astutos e inquiridores podem ver a história social e política do Brasil
como uma história de violência contra os corpos do índio, da mulher, e dos negros,
trazidos à força do seu habitat natural, contra os corpos dos pobres, e os destituídos
de posses que não eram donos dos próprios corpos, pois não pertenciam à
categoria de “homens bons”, já que não eram ricos, proprietários de terras. Estes
eram “domus”, dominadores de gentes, coisas e bichos por atribuição dos deuses,
como na Grécia de Heráclito. Para o filósofo Enrique Dussel, a partir da “fysis uns se
adiantam como deuses e outros como homens, uns livres e outros escravos”
(DUSSEL, 1977, p. 56), naturalmente. Dessa maneira, é o próprio Deus quem quer
assim, portanto, não há culpa na dominação, na violação do corpo do outro, este
visto como exterioridade, um não-ser.
Na Idade Média (século V a XV d.C.) vigorava em toda a Europa o
feudalismo. Uma das características primordiais desse modo de produção era a
existência do senhor feudal e do servo, em lados opostos. O servo era parcialmente
livre, pois poderia usufruir certas vantagens se formos compará-lo ao escravo. Podia
aproveitar parte daquilo que produzia, ou seja, apesar de pouquíssima, recebia uma
recompensa pelo trabalho que desempenhava; valor mínimo para sua sobrevivência.
Com o cristianismo, ideologia dominante nesse regime, o acúmulo de capital
era irrealizável. Porém, com algumas mudanças tecnológicas na área agrícola2
(século XI e XIII), percebeu-se que uma nova ordem social fazia-se emergente.
2 Dentre os avanços na área agrícola podemos citar: o desenvolvimento do arado de ferro com rodas, do moinho hidráulico, entre outros.
47
Aos poucos, uma nova classe começa a aparecer – a burguesia. O regime
feudal passa a dar espaço para o capitalismo. Se antes se produzia em função do
que era consumido, ou seja, visava-se um equilíbrio entre o que era consumido e o
que era produzido; com o capitalismo “o homem passa a produzir mais do que o
necessário; produz-se o excedente econômico.” (MEDINA, 1990, p. 33)
A idéia de lucro, antes inexistente no feudalismo, é instaurada e passa a ser o
canal condutor desse novo modo de produção.
Assim, ao chegar em terras brasileiras, o colonizador português teve pouco
interesse comercial, pois quando aqui chegou, encontrou um povo que considerava
estar num estágio muito primitivo de civilização. Os índios, na visão lusitana,
encontravam-se em estado de regressão social. Na verdade, segundo Beltrão
(1971, p. 18) eles estavam num estado de evolução gradativa, interrompida
subitamente pelo aparecimento do homem branco no continente. Não havia
perspectiva de geração de lucros, nem tão pouco havia uma visão promissora de
desenvolvimento de uma Nação forte economicamente.
Além disso, havia a dificuldade com o idioma, pois os colonizadores tiveram
que aprender com os índios seu idioma para que pudessem deles se aproximar. É
pela linguagem falada, principalmente, que acontece a comunicação. E se era em
tupi que o indígena conversava ao pé da fogueira, para discutir a vida da tribo, para
tomar decisões, contar histórias, lendas, mas também para trocar informações
importantes, dar “notícias de minas de ouro, de prata e de esmeraldas” e indicar “a
localização dos ricos campos nativos de pau-brasil...que tanto interesse
despertavam” (BELTRÃO, 1971, p. 21) nos colonizadores.
Com a expansão do mundo ocidental, seguindo o progresso científico e
tecnológico, países como Portugal e Espanha, que mantém a burguesia atrelada à
nobreza, entram em decadência e perdem espaço para países como Inglaterra,
França e EUA, que se fortalecem no capitalismo.
Desta maneira, é nesse cenário que o Brasil se constitui. Medina (1990, p. 36)
acrescenta que
o colonizador português, como já vimos, produto de um regime feudal decadente, aqui se instala submetendo o índio e, em seguida, o negro. O processo de transplantação da cultura3 (aculturação) 3 Aqui, Medina faz referência ao autor Florestan Fernandes. Sociedades de Classes e Subdesenvolvimento.
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metropolitana no Brasil se dá através de traços de brutalidade sobre as comunidades primitiva e escrava. A formação étnica brasileira se faz basicamente a partir destes três elementos: o branco português, o indígena nativo e o negro africano.
No período de 1534 a 1850, o Brasil produziu diversos produtos, mas não
conseguiu criar um mercado interno, pois sua produção escoava para as
Metrópoles: Portugal, Espanha e Holanda. Nada do que produzia gerava riqueza
interna; tudo tinha o destino da exportação para a Europa. Isso porque o Brasil
deveria fornecer para esses países o que eles não podiam ou não queriam mais
produzir. Segundo Ana Maria Freire (2001), era esta a divisão mundial do trabalho, o
chamado Pacto Colonial. Esse pacto, como vimos, foi extremamente adverso para a
formação política, econômica e cultural brasileira.
No ano de 1534, fora criada a Companhia de Jesus, por Inácio de Loyola,
para defender a ortodoxia católica das “heresias” protestantes. Nasceu, portanto, no
bojo da contra-reforma. Os jesuítas eram formados para ser “Soldados de Cristo” em
defesa dos princípios fundamentais do catolicismo, utilizando a educação como
arma preferencial.
Alicerçados na metafísica aristotélica consubstanciada na obra de Tomás de
Aquino (Suma Teológica), os jesuítas chegaram ao Brasil dispostos a cumprir uma
tríplice missão:
a) Catequizar os índios, informados pelo “paganismo”, mas suscetíveis de
salvação;
b) Formar os filhos dos colonizadores a fim de manter, por meio deles a
hegemonia política e cultural de Portugal e a hegemonia religiosa da Igreja;
c) Prevenir e impedir a irrupção das heresias protestantes. (MESQUIDA,
2007)
Os jesuítas, desenvolveram, então, um trabalho pedagógico de catequização,
com o objetivo de propagar a fé católica e garantir a estrutura territorial do estado. A
educação assume o papel de agente colonizador, e através da pedagogia dos
jesuítas, caracteriza-se pelo apego à autoridade, pela transmissão disciplinada de
uma cultura literária, retórica, enciclopédica e mnemônica que inibia a criatividade e
toda atividade inovadora. Como diz Fernando de Azevedo (1943, p. 300)
49
com esse espírito de autoridade e disciplina e com esse instrumento intelectual de domínio e penetração, que foi o seu ensino sábio, sistemático, medido, dosado, mas nitidamente abstrato e dogmático, o jesuíta exerceu na Colônia, um papel eminentemente conservador [...].
Sem liberdade para criar, o aluno diante do mestre, guardião do saber, não é
senhor de si mesmo e menos das suas opiniões. Obriga-se a aceitar tudo que lhe é
imposto, tem introjetado em si a cultura do conformismo. O que era ensinado nas
escolas estava longe de qualquer sentido prático e crítico, pois aprender latim,
literatura clássica e retórica estava distante da realidade dos alunos. Isso contribuiu
para aumentar a distancia entre os que sabiam e os que não tinham condições ou
possibilidade de adquirir esses saberes. O dualismo colégio para os ricos e escolas
de ler e escrever para os pobres (futuros liceus de artes e ofícios), avalizou a
distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual, caracterizando a distância que
se estabelecia entre elite (os que tinham posses e detinham os saber) e o povo (os
destituídos).
Dessa forma, o papel da arte, nesse contexto, era o de mero instrumento
nesse processo, ficando a serviço da doutrinação da religião cristã. A arte foi então,
um dos recursos escolhidos pelos jesuítas para aproximarem-se dos índios,
conseguindo assim sua atenção e, por conseqüência, marcando seus corpos com a
ideologia que pregavam, ensinando-lhes normas, valores, preconceitos, hierarquias,
discriminações e padrões de comportamento determinados pelos Soldados de
Cristo. A leitura de mundo dos jesuítas foi instituída naquele início de Brasil e
mantém raízes profundas até os dias atuais. Podemos dizer também que, com os
jesuítas, surge uma das primeiras manifestações do ensino da arte no Brasil.
Logicamente que o objetivo não era a aprendizagem da arte propriamente dita, mas
sim, um recurso para catequização. Em uma obra elaborada para mostrar a
utilização da arte como instrumento pedagógico pelos jesuítas, Paulo Romualdo
Hernandes (2008) recupera o lema que Inácio de Loyola cunhou para os membros
da Companhia de Jesus: “Sêde tudo a todos” e educai pela arte, pois ela se constitui
em uma “pregação universal” (HERNADEZ, 2008, p. 21 e 32). Assim, fazendo uso
das expressões corporais pela música e pelo teatro, Anchieta procurava incutir
mensagens na mente dos indígenas, despertando o imaginário e realizando uma
obra pedagógica de docilização dos corpos (HERNANDES, 2008). Assim, os
50
jesuítas usavam o teatro, a música, os diálogos em versos e também a dança, para
cativar as crianças. Elas, então, retribuíam representando, cantando, dançando, e
pouco a pouco, aprendendo “os bons costumes” e a religião cristã. FREIRE (2001a)
faz um breve comentário sobre isso, enfatizando a criação de escolas para índios e
filhos de colonos. Em suas palavras,
de 1549 a 1570, abriram-se escolas para índios e filhos de colonos – brancos e mamelucos – para o aprendizado da língua portuguesa, da doutrina cristã, do ler e escrever, do canto orfeônico, da música instrumental, do teatro, da dança, do aprendizado profissional e agrícola e das aulas de gramáticas para os mais hábeis, conforme o Regimento de D. João III.( FREIRE, 2001a, p. 38)
Dessa forma, a preocupação com o corpo neste período, se deu a partir do
momento em que se pensou numa educação que fosse capaz de tornar dócil e
submissa a população. Ou seja, via-se como necessário e urgente educar a
população nativa, bem como os filhos dos colonos, seguindo assim a política
colonizadora portuguesa.
Para isso, a prática de domesticação, bem como a repressão cultural e
religiosa eram utilizadas como forma de docilização do povo. Dessa forma, os
jesuítas reforçavam e impunham a visão maniqueísta de mundo sobre estes
colonizados. Freire ressalta que
domesticando através das interdições, sobretudo as do corpo, superestimaram o incesto, o canibalismo e a nudez. Introjetaram comportamentos de submissão, obediência, hierarquia, disciplina, devoção cristã, imitação e exemplo. Serviram-se para isto das práticas do batismo, confissão, admoestação particular ou pública do púlpito, casamentos, missa, comunhão, confirmação, pregações, procissões, rezas, jejuns, flagelações, teatralizações e ensino da vida ascética e de pobreza acintosa como viviam eles, os jesuítas. (FREIRE, 2001a, p. 33)
A intenção, certamente, era a de passar uma visão de mundo que satisfizesse
os interesses dos jesuítas e dos portugueses, de acordo com a leitura dos
padres/profesores. A preocupação maior era promover uma educação que fizesse a
população abandonar as práticas de “devassidão” para convertê-los ao catolicismo e
assim implementar uma ideologia que marcou e deixou vestígios até hoje. Todas as
normas, valores, princípios, regras, condutas instauradas por essa visão do
cristianismo, baseava-se na idéia de que por meio da alma é que se pode ver a
51
Deus, e não através do corpo. Então, na medida em que o corpo pode dificultar essa
visão, tudo que é relativo a ele passa a ser repudiado, para que não seja mais um
obstáculo à salvação da alma.
Os jesuítas, elaboraram um plano didático-pedagógico capaz de auxiliá-los
na ação pedagógica doutrinadora: O Ratio Studiorum, publicado a partir de 1563 e
concluído em 1599. Fruto de um estudo do processo educativo em todas os colégios
da Companhia pelo mundo, foi posto em prática imediatamente após sua
divulgação. Segundo Freire (2001a), apesar de possuir coerência interna, por
preocupar-se com inúmeros detalhes em suas normas, conteúdos, disciplinas, “não
tinha coerência externa, pois era válido para todo aluno de qualquer lugar no mundo
e inflexível com o decorrer dos tempos.” (2001a, p.39).
Dessa forma, o Ratio Studiorum regeu nossa educação por longos 210 anos,
sem qualquer modificação visando uma adaptação à realidade brasileira.
Essa forma escolar tinha em seu interior características da prática da
interdição do corpo, denunciadas por Freire (2001a). Ao constatar a presença,
principalmente dos valores medievais, o corpo era reprimido em diversos momentos,
como por exemplo, no que concerne aos castigos corporais aplicados pelo corretor;
também pelo pequeno período de férias anuais, para que as crianças
permanecessem o mínimo possível longe das regras e normas da escola, o que
revelava uma grande preocupação em reduzir o contato com o “mundo de
tentações” que existia fora do colégio. Essa visão do mundo sob a ótica aristotélica-
tomista é que permeava o modelo educacional jesuítico e ressaltava a ideologia da
interdição do corpo.
Se olharmos atentamente para nossas práticas escolares de hoje, certamente
encontraremos indícios desse modelo educacional, possivelmente com algumas
transformações, mas somente na forma, não em sua essência. Observando o
cotidiano na escola, por exemplo, facilmente encontraremos atitudes como estas:
alunos que demonstraram mau comportamento durante a aula, vão ficar sem seu
momento de recreio. Ou seja, só poderá participar do momento de socialização com
os demais colegas, aqueles que estejam prontos para conviver. E estar pronto
significa saber e praticar regras, condutas, disciplinas pré-estabelecidas. Se
pensarmos mais profundamente, veremos que a prática da interdição do corpo,
52
denunciada por Freire (2001a), acontece duplamente, na situação exemplificada.
Primeiramente quando se transmitem certas regras de conduta corporal e, num
segundo momento, quando se nega a presença corporal num espaço e tempo
determinados – o recreio. Se analisarmos outras situações escolares, certamente
iremos constatar essa duplicidade de interdição. Isso confirma a presença das
marcas de uma ideologia que ultrapassou séculos e séculos de história.
Mas, cabe aqui ressaltar também que, além do poder na esfera educacional
e religiosa, os jesuítas tinham poder na esfera econômica4. Gradativamente
integraram-se na vida econômica da colônia, cultivando terras, possuindo navios,
criando animais, obtendo suas fazendas agrícolas e de gado. Com essa
diversificada economia, agregaram bons recursos financeiros, garantindo assim,
poder político.
Durante mais de dois séculos, os jesuítas transmitiram por meio da
educação, uma ideologia do pecado e da interdição do corpo que enclausurou os
alunos em uma educação reprodutivista, que limita a ação do corpo, permeada por
castigos corporais, preconceitos, discriminações e que encobre uma leitura do
mundo real, impondo uma visão elitista da sociedade. Daí, a interdição do corpo que
se expressa não somente pela proibição do homem ser ele mesmo, como também
pela exclusão, a exemplo da interdição da mulher de participar da sociedade em
igualdade com o homem, e pela punição por meio da palmatória, e de outros
castigos corporais impingidos na forma de penitência5.
Novamente citando Freire (2001a), conhecemos uma interessante relação
entre o analfabetismo e a prática da interdição do corpo no Brasil, em seu livro sobre
o analfabetismo no Brasil. Segundo essa autora, realmente foi desde a época dos
jesuítas que essa ideologia da interdição do corpo nos atinge e é justificadora das
diferenças existentes na sociedade brasileira. Portanto o período jesuítico foi o início
da interdição do corpo. “A preocupação pela educação surgiu como meio capaz de
tornar a população dócil e submissa, atendendo à política colonizadora portuguesa
[...]” (FREIRE, 2001a, p.32) Ou seja, a preocupação com o corpo também se fazia
necessária para a educação, nesse contexto. Como já citado anteriormente, vale
4 Para mais detalhes, consultar FREIRE, (2001a, p.43-46) e LEITE, História da Companhia de Jesus no Brasil. 5 Ver Freire, 2001.
53
ressaltar que para ter uma população dócil e submissa, é necessário corpos dóceis
e submissos e para isso, instituiu-se uma educação corporal, preocupada com esses
aspectos.
Segundo Ana Maria Freire (2001), a proibição do corpo teve maior ênfase
sobre a mulher, o índio e o negro, que tiveram suas presenças físicas e políticas
negadas na sociedade em formação. Comenta que “[...] diferenças que marcam as
hierarquias, os valores e os costumes quando se incluem apenas os homens
brancos ou tentam excluir mulheres, negros e índios (tentam porque estes fazem a
história como excluídos) do processo construtor da nação brasileira.” (FREIRE,
2001a, p. 20). Literalmente é o “corpo” que é conformado, impedido de expressar-se
de maneira criativa e autônoma. Segundo Berger (1977), se observarmos a
distribuição geográfica das escolas jesuíticas, não é difícil perceber que estas não
eram destinadas aos índios, pois,
considerando-se que um dos principais objetivos era a formação de elites, pode-se compreender porque a maioria das escolas foram construídas nas regiões onde se encontravam os mais ricos e influentes senhores de engenho. [..] Desta forma encontravam-se em todos os setores influentes das sociedades indivíduos formados pelos jesuítas. (BERGER, 1977, p. 219)
Assim, a ênfase educacional destina-se à formação das elites, acentuando a
influência generalizada dos jesuítas sobre as camadas superiores.
E além disso, existiu ainda a negação da possibilidade da presença física do
corpo em determinados lugares ou atividades. Negou-se, por exemplo, a
possibilidade do acesso da mulher à escola ou a determinadas disciplinas escolares
que eram exclusivamente ensinada aos homens. A monocultura intelectual instituída
pela ação pedagógica dos jesuítas, destruiu em torno do indivíduo a sua paisagem
intelectual (BERGER, 1997, p.222). Isso porque permitia apenas a germinação de
idéias voltadas à ortodoxia católica e o conteúdo estudado se baseava no latim, uma
língua morta e totalmente adversa à realidade brasileira. Com isso, quebrou-se a
relação lírica entre o homem e o saber, perdeu-se o gosto por conhecer, a
curiosidade, a espontaneidade e a sensibilidade. Ou seja, a imaginação e a ação
criadora foram profundamente debilitadas, fragilizadas.
54
Observamos também algumas similaridades entre o sistema educacional dos
jesuítas e o sistema patriarcal. O método de dominação era muito similar, visando a
passividade e a obediência da criança e do jovem, suprimindo sua individualidade.
As relações de poder influenciam diretamente no entendimento do corpo,
como vimos no capítulo anterior. A passagem do escravismo para o trabalho
assalariado, por exemplo, tem também a ver com o corpo e com o poder: a
exploração do corpo agora voltado à preocupação com o maior rendimento
produtivo. Com o avanço da economia do café, o trabalho assalariado constituiria a
base da força de trabalho nessas fazendas. O modo de produção capitalista dava,
então, seus primeiros passos, provocando assim, a imigração para dar conta da
demanda de trabalho agora instituída. O poder sobre o corpo visava neste momento
o controle para o trabalho produtivo, com fins específicos.
No entanto, o contexto que envolvia esse momento de transição era muito
complexo, pois não houve uma devida preparação para a substituição da mão-de-
obra escrava pelo trabalho assalariado. Os ex-escravos não estavam preparados
para desfrutarem de sua liberdade. Tiveram pouco acesso à educação e à
preparação profissional. Por não possuírem essa instrução profissional qualificada
passaram a fazer parte de uma massa populacional de excluídos, propensos então,
à vadiagem. Segundo Carvalho (1989), as teses racistas, que haviam sido
articuladas em defesa da imigração, e que excluíam os libertos do mercado de
trabalho, são agora reformuladas. Segunda essa autora
Se a cor da pele permanecia assombrando os novos intérpretes do Brasil que entram em cena nos anos 20, ganhava força entre eles a idéia de que a educação era fator mesológico determinante no aperfeiçoamento dos povos, sobrepujando os fatores raciais. As imagens do negro e do mestiço como “vadio” continuam a inquietar esse imaginário, mas deixam de ser signo de uma incapacidade inamovível para o trabalho livre. O liberto e seus descendentes permanecem estigmatizados como criaturas primitivas e por isso propensos a vadiagem. Mas esta passa a ser a também o resultado da incúria política de abolicionistas e republicanos que não os teriam adestrado para as imposições da liberdade. (CARVALHO, 1989, p.11,12)
Somaram-se a esse grupo, as pessoas vindas do campo em busca de
trabalho, mas como vinham sem esse preparo profissional adequado, somente
engrossaram as fileiras de pobreza. O corpo precisava ser preparado para o
trabalho.
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Os imigrantes, oriundos de diversas etnias, que para cá vieram, a partir do
século XIX, já possuíam certa preparação profissional, estavam mais preparados
para responder às novas exigências do mercado de trabalho. O incentivo à
imigração no Brasil tinha diversos motivos, dentre eles o exemplo dos Estados
Unidos que estava em acelerado desenvolvimento devido ao grande número de
imigrantes; como uma forma de garantir a ocupação do espaço geográfico,
favorecendo o crescimento das cidades, entre outros. Muitos autores apontam
também motivos de ordem racial, esclarecendo que a imigração de brancos
europeus tinha como objetivo o branqueamento da pele.
Segundo Kreutz (2000), os estudos sobre a presença dos imigrantes no Brasil
mostram que estes normalmente preservavam alguma forma de identificação étnica,
especialmente a manutenção do idioma e algumas organizações escolares e
religiosas. Essa manutenção da tradição cultural dos imigrantes materializou-se
principalmente em escola étnicas. Mas não somente por surgiram para essa
manutenção, como ressalta Kreutz (2000, p. 348), “a organização das escolas
étnicas deve ser atribuída mais às especificidades do contexto de imigração do que
a uma opção prévia dos imigrantes” A falta de escolas públicas de qualidade no
Brasil fez surgir essa necessidade para os imigrantes.
Ao mesmo tempo, no momento histórico da imigração no Brasil, o cenário
internacional enfatizava a formação da nacionalidade, como uma tendência à
afirmação de uma unidade nacional,
buscava-se um pretenso coletivo, operava-se uma universalização no conceito de povo e de nação em detrimento das especificidades e diferenciações culturais. O nacionalismo desencadeava um movimento de afirmação de uma unidade simbólica, necessária pela modernização econômica. Apoiava-se na expansão de um sistema escolar igualitário, com a função de difundir uma cultura uniforme. Inventava culturas amplamente desprovidas de toda base étnica, com a finalidade de unificar o imaginário das nações. (KREUTZ, 2000, p.351)
Por isso, a presença dos imigrantes começou a desencadear certas
dificuldades, pois estavam agora embaraçando a instauração de uma identidade
nacional. Traziam consigo suas raízes e identidades culturais que se diferenciavam
e, muitas vezes, confrontavam-se com os ideais brasileiros. Não eram mais vistos
pelos signos da operosidade, vigor e disciplina, como os promotores da imigração
56
assim os descreviam anteriormente. Eram agora vistos como figura incômoda,
principalmente por liderarem movimentos operários, organizando greves
reivindicando melhores condições de vida e de trabalho. Além disso, proporcionaram
também um grande aumento populacional, aumentando ainda mais a massa popular
a ser atendida pelo governo. A dificuldade em controlar os corpos dos imigrantes era
um obstáculo diante dos objetivos almejados por uma determinada classe da
sociedade.
A ideologia5 que começa a vigorar nesse momento de passagem do século
XVIII para o século XIX, colocava em dúvida o pensamento conservador católico
dominante, e portanto, o Império. A sociedade transpirava novas idéias difundidas
pelos cientificistas, incluindo diversas correntes, como por exemplo o positivismo,
sociologismo, liberalismo, entre outros. Segundo Freire essa época do surgimento
de novas idéias ficou conhecida como a Ilustração Brasileira.
Os homens ilustres se propuseram a transformar nossa sociedade, criando uma realidade pela ação educativa da lei, da escola, da imprensa e do livro. O ideal ilustrado brasileiro não nasceu de uma reinvindicação popular, antes procurou criá-la através de um governo republicano, garantir um programa político social que elevaria o Brasil ao nível do século. Pretendia-se sincronizar o Brasil com o mundo capitalista moderno. (FREIRE, 2001a, p. 78)
A economia, estimulada pela produção do café, começa a beneficiar o
movimento de acumulação de capital. Com isso, surgiram novos centros urbanos e
novos grupos sociais. A camada média urbana, constituída principalmente por
pequenos comerciantes, intelectuais e profissionais modificaram, segundo Mesquida
(1994, p. 69), “o mapa da estratificação social brasileira durante a segunda metade
do século XIX.”. Com tudo isso, se impôs a necessidade de mudança do regime
político. Foi então que se iniciou a desintegração do regime que era sustentado pela
elite dominante. Vários fatores incidiram diretamente nesse momento, dentre eles a
visão de mundo liberal, com idéias em favor da luta pela mudança do regime. Nos
Estados Unidos os postulados liberais – liberdade e individualismo – se
intensificaram e atingiram sua mais alta expressão.
6 Aqui entendemos ideologia em seu uso mais comum para se referir ao conjunto articulado de idéias, valores, opiniões, crenças, etc e que conferem uma unidade a certo grupo social.
57
Ao contrário dos países da Europa e dos Estados Unidos, aqui no Brasil o
liberalismo não tomou as mesmas formas, nem se baseou nos mesmos princípios.
Os princípios liberais que se desenvolveram em função da revolução industrial e das
lutas de classes, entre a burguesia e a aristocracia, não foram as causas
determinantes para a proliferação do liberalismo no Brasil. A presença da
escravatura e a manutenção de estruturas de produção consideradas arcaicas, foi o
que fez proliferar a visão de mundo liberal. Segundo Mesquida (1994, p. 71)
O liberalismo brasileiro adquiriu, por isso, um significado específico, que surgiu de uma realidade histórica diferente da européia, conferindo-lhe, assim, um sentido também diferente, apropriado a um país dependente, inserido no sistema capitalista internacional. Tal “adaptação” forçada fez dos ideais liberais “idéias fora do lugar” [...] dessa maneira, não havia eco na sociedade civil.
Desse modo, as idéias republicanas tiveram grande proliferação, pois diante
dessa situação, havia a preocupação em dar ocupação a esse enorme contingente
de pessoas. Para os republicanos, a educação pública seria a melhor forma de
solucionar os problemas enfrentados até então, ou seja, depositou-se na escola a
responsabilidade da condução do projeto de construção da nação brasileira, e mais
ainda, seria o instrumento de regeneração da nação, de moralização da civilidade e
dulcificação de costumes. A escola da República nasceu, no cerne de um projeto
político, no qual a educação seria a principal responsável na formação da cidadania
para possibilitar, então, a reforma da sociedade em geral. Assim,
regenerar as populações brasileiras, núcleo da nacionalidade, tornando-as saudáveis, disciplinadas e produtivas, eis o que se esperava da educação, erigida nesse imaginário em causa cívica de redenção nacional. Regenerar o brasileiro era dívida republicana a ser resgatada pelas novas gerações. (CARVALHO, 1989, P. 10)
Nesse contexto, houve, nas primeiras décadas da República, uma alteração
na concepção de escola. Segundo Simão (2003), esta foi se impondo como
instituição específica; foi deixando de lado o método individual de ensino e cedendo
lugar ao ensino simultâneo, com a idéia de várias classes e vários professores.
Houve também maior seletividade na escola, criando a noção de repetência, devido
ao aperfeiçoamento dos exames escolares. Acabou-se criando também um novo
58
conceito de cultura escolar referente ao espaço e ao tempo escolar. O tempo
escolar contribuiu para a construção de uma nova ordem escolar e social, os ritmos
foram alterados devido às novas metodologias. O tempo foi também instrumento de
controle, materializando-se em anos/séries, horários rígidos de aula, sinais que
marcavam o fim ou início das aulas, entre outros procedimentos escolares. Isso
levou a uma padronização de ações e gestos que foram sendo disciplinados
seguindo essa rigidez do tempo, atuando sobre o corpo.
Como em todas as relações de poder há influências no entendimento e na
maneira como se aborda a questão do corpo, na escola republicana não foi
diferente. Reiterando o que foi dito no capítulo anterior, a preocupação com o poder
acaba levando também a descoberta do corpo como objeto e alvo do poder. Havia o
interesse, como já foi dito anteriormente, em repassar valores republicanos através
da educação. Ao impor padrões disciplinares, acaba-se dando atenção dedicada ao
corpo para torná-lo hábil e útil, isso se manifesta pelas ações de manipulação,
modelagem, treinamento, regramento que se impõe sobre o corpo. A relação entre
saber e poder é a base na qual se estabelecem todas as relações pedagógicas. O
saber é o objeto a ser transmitido que já foi previamente selecionado e determinado
socialmente. Dessa forma,
dependerá da concepção que cada sociedade, num determinado momento histórico, tem do saber e da sua função social, da valorização e hierarquia dos vários saberes, das formas de poder que esses saberes originam ao constituírem-se grupos que se arrogam como seus detentores exclusivos e criam mecanismos de defesa desse privilégio. (ESTRELA, 1992, p. 37)
Manter o privilégio de ter o domínio do conhecimento é manter a possibilidade
de exercer ações transformadoras de mundo. Por isso, há sempre a constante
preocupação daqueles que detém o saber em produzir cada vez mais maneiras de
se manter nessa situação.
Mas há de se lembrar que o poder não somente tem a função de repressão,
pois agindo somente assim tornar-se-ia frágil. (Foucault, 1979, p.78) Podemos
observar isso, ao percebermos que uma das propostas da Pedagogia da Escola
Nova, pedagogia esta que começou a florescer no período da Primeira República,
estava na discussão da relação professor-aluno, propondo uma postura
59
diferenciada do professor, saindo de cena a imposição da autoridade e entrando em
sala o professor orientador, que incentivava a troca de experiências. Isso pode levar
ao entendimento de que o professor não seria mais a autoridade maior como no
Império, que impunha todos os saberes, cultivando a impessoalidade e
condicionando até mesmo os sentimentos dos alunos ao condicionar a possibilidade
de sua exteriorização; mas sabe-se que a autoridade se fazia por outros meios não
tão explícitos, como por exemplo a própria disciplina exigida, que deixa de ser por
meio de coerção externa para se transformar em autocontrole e autogoverno.
Portanto, ao mesmo tempo em que se buscava a formatação de corpos para o
trabalho ou para a regeneração da sociedade para o progresso, como citado
anteriormente, também se prezava pela valorização dele, mas de uma maneira a
escravizá-lo, tirar-lhe a liberdade sem que isso lhe fosse consciente.
Quanto ao espaço, essa nova concepção de escola também exigiu um
espaço físico diferenciado, um prédio próprio, um lugar propício para o
desenvolvimento dos objetivos elegidos. Foram denominados “Palácios de
Instrução” ou “Templos de civilização“, segundo Simão (2003). Sobre isso a autora
acrescenta que
novos métodos pedagógicos e novas práticas escolares foram introduzidos, nesses novos ambientes, modelares para a educação pública brasileira, que se caracterizaram pela padronização do ensino, pela graduação das séries escolares, pela profissionalização do magistério, pela divisão de trabalho docente, pelo estabelecimento de disciplinas distintas, pela implantação de exames e provas, por novos horários e ritos. (SIMÃO, 2003, p. 02).
As questões que envolviam a educação nesse período não foram
simplesmente pedagógicas, mas continham uma dimensão sócio-política de
reconstrução nacional. Os grupos escolares tinham como intenção tornarem-se
veículos de difusão dos valores republicanos. Mas sabemos que essa educação não
era para todos. O cidadão que o imaginário republicano tinha o dever e o interesse
de formar não estava ao alcance principalmente dos negros. A idéia de transformar
a raça brasileira, substituindo-a através da imigração européia, foi uma alternativa
escolhida no ano de 1890. Exemplo disto são os projetos de republicanos como o de
Caetano de Campos, que sugere um transplante cultural, importando métodos,
60
material didático e até professores para transformar a raça brasileira. Como comenta
CARVALHO (1989, p. 36),
o imigrantismo propunha não somente a troca do negro pelo branco nos setores fundamentais da produção, como também arquitetava um projeto de regeneração e capacitação para o trabalho, cujo instrumento era a miscigenação de que se esperava um desejado branqueamento moralizador das populações negras.
Porém, como vimos anteriormente, esse mesmo imigrante do qual se
esperava o aprimoramento da raça brasileira, mais tarde passou a ser visto como
ameaça ao desenvolvimento do caráter nacional. Era necessário então, assimilar o
estrangeiro aqui instalado.
Todos esses fatores citados anteriormente convergiram para remodelações
no ensino e encaminhou-se para apropriações de concepções da Pedagogia da
Escola Nova. Essa nova pedagogia, que se diferenciava da pedagogia tradicional
em muitos aspectos, reorganizou a vida escolar elaborando métodos pedagógicos e
comportamentais, programas escolares, instauração de ritos particulares, entre
outros aspectos. Importante ressaltar que a Escola Nova brasileira é também
influenciada pelo movimento internacional da Educação, representado por John
Dewey nos Estados Unidos, Montessori na Itália e Piaget na Suíça. Mas
principalmente as idéias de Dewey, na leitura de Anísio Teixeira, orientaram as
reformas no ensino e marcaram nosso ideário pedagógico.
O intuito dessa nova proposta era construir a representação do “novo” que se
diferenciava das práticas e propostas pedagógicas anteriores. As mudanças
afirmadas pelo escolanovismo povoaram o imaginário das escolas nos anos 1920 e
asseveravam que o aprendizado deveria partir sempre do interesse da criança e
com isso, tornar a escola mais ativa. Com isso, alterou-se significativamente a
concepção de aluno, professor, conteúdos, trabalho pedagógico. Manifestava
também, grande preocupação com “relação às normas higiênicas na
disciplinarização do corpo e de seus gestos, a cientificidade da escolarização de
saberes e fazeres sociais e a exaltação do ato de observar, de intuir, na construção
do conhecimento do aluno.” (VIDAL, 2000, p.497)
61
Nessa concepção, o apreender é um ato interior ao aluno, ou seja, ele
assumia o centro dos processos de aquisição do saber escolar. Nessa corrente
pedagógica, pode-se perceber a ruptura nos saberes e fazeres escolares, alterando
significativamente a cultura escolar. O ensino deu lugar à aprendizagem;
“racionalização e eficiência eram máximas que se impunham ao trabalho do aluno.”
(VIDAL, 2000, p. 515)
Analisando os dados apresentados até o momento, podemos perceber que as
características inerentes à história brasileira, sempre forma cercadas por questões
de imposições de visões de mundo vistas de um ponto de vista determinado.
Inicialmente os jesuítas, depois os republicanos. Ambos utilizaram maneiras
específicas com características diferenciadas. Mas o objetivo era o mesmo, alcançar
uma forma de dominação da massa populacional para garantir benefícios a poucos.
O controle sobre o corpo era fundamental para conseguir esse controle. Com os
jesuítas isso acontecia de forma um pouco mais explicita. Já com os republicanos
isso era camuflado por votos de progresso, bens individuais e prosperidade geral.
No capítulo seguinte, procuraremos refletir sobre questões mais específicas
voltadas à arte e ao seu ensino, para estabelecer relações entre os movimentos
educacionais apresentados até então e sua relação com movimentos artísticos da
época, bem como sobre a presença ou não do corpo nesses contextos.
3.1 Diálogos entre o Ensino da Arte e os Movimentos de Renovação Educacional, no século XX
Novamente, relembrando a influência dos jesuítas, mas agora no contexto
epistemológico sobre uma concepção de arte e seu ensino no Brasil, podemos
afirmar que o mesmo teve origem na data de sua colonização, com a chegada dos
jesuítas que trouxeram consigo o estilo barroco que estava em voga na Europa,
particularmente em Portugal. A arte barroca no Brasil, teve especialmente um
caráter religioso, pois se manifestou a partir da prática confessional professada pela
missão jesuítica. Os centros onde essa corrente artística se desenvolveu foram Rio
62
de Janeiro, Bahia, Minas Gerais e Pernambuco. Em Minas Gerais, o barroco teve
como seu grande expoente o artista Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o qual
marcou de forma original o Barroco Mineiro, principalmente por ser filho de um
mestre-de-obras português e uma escrava. Suas reflexões sociológicas giram em
torno das condições de classe dos mulatos na Colônia e a sua presença nas artes
brasileiras. O Aleijadinho, artista mulato, conseguiu imprimir originalidade à nossa
arte, e é por isso mesmo o nosso mais autêntico representante nacional.
Segundo Beltrão (1971), Aleijadinho remeteu nas suas obras uma mensagem
libertária, “uma expressão de revolta contra o meio social e do desejo do brasileiro,
nativo ou mestiço, para se libertar dos senhores brancos ou europeus, e dos
exploradores reinóis do trabalho escravo” (p.138) Neste sentido, a arte de
Aleijadinho é uma arte de expressão do corpo remetendo-nos às suas estátuas, em
particular àquelas de Congonhas do Campo. Trata-se da expressão de corpos
oprimidos, pois os santos refletem a tristeza e a dor da escravidão.
No início do século XIX, com a transferência da corte portuguesa para o Rio
de Janeiro e com a chegada da Missão Artística Francesa (1816), deu-se abertura
cultural para as elites que se encontravam eufóricas com os hábitos e costumes
europeus. Com essa Missão veio então, o estilo estético europeu – o neoclássico –
que satisfez oportunamente as necessidades da classe dominante brasileira. Este
novo estilo foi um movimento posterior ao Barroco, e possuía concepções artísticas
baseadas no ideal de beleza clássica greco-romana. Esse estilo, portanto,
confrontou-se com a arte já aqui instituída, o barroco brasileiro, que tinha origem
popular e era regido por bases religiosas. Mesmo não tendo repercussão popular, o
estilo neoclássico foi instituído no Brasil para atender aos interesses culturais de
uma classe social especifica, a aristocracia cortesã. A arte tornou-se, então, um
símbolo de distinção, refinamento, ou seja, o acesso se restringia a uma minoria.
Dessa maneira, houve portanto, um processo de interrupção do desenvolvimento da
arte barroca brasileira. Isso resulta em uma concepção de arte elitizada, tirando do
artista popular o mérito de fazer parte da arte, agora acadêmica. Assim, institui-se
no Brasil o ensino da arte neoclássica, possuindo como conteúdo curricular um conjunto de regras fundamentado na copia e na repetição de um modelo ideal de beleza, no qual os alunos tinham no modelo apenas um referencial básico a partir deste chegavam a uma representação embelezada da realidade. (SIMÃO, 2003, p.23)
63
Foi nesse contexto de uma arte idealizada, normatizada pelos padrões de
beleza do cânone clássico que se oficializou no Brasil o ensino da arte na Escola
Imperial de Belas Artes. Com a inauguração dessa Escola, a distância entre arte
acadêmica e arte popular aumenta consideravelmente. Com isso, pode-se afirmar
que o projeto de educação artística se instituiu no Brasil baseado em regras
normativas, características do estilo neoclássico, que não privilegiava a expressão
pessoal, assinalando uma prática autoritária e reprodutivista. Uma arte que expressa
corpos bem apessoados, livres, pois é reflexo dos corpos da aristocracia cortesã.
Essa corrente artística teve grande influência no meio do ensino da arte até 1920,
onde sofreu grandes questionamentos que culminaram na Semana de Arte
Moderna, de 1922, em São Paulo.
Os movimentos artísticos modernos dialogaram com o momento histórico
pelos quais foram envolvidos, sendo marcados por diversos movimentos políticos e
culturais, tais como: as greves operárias, o tenentismo, a fundação do Partido
Comunista do Brasil. A Semana de 22 foi o impulso inicial para que escritores e
poetas de todos os cantos do país aderissem aos princípios libertários do
modernismo. Os temas sociais e brasileiros eram muito valorizados nos trabalhos
desses artistas. Pintores reuniram-se e mostraram o que se fazia de mais moderno.
Era a busca do novo e de uma expressão genuinamente nacional, embora inspirada
nos impulsos libertadores europeus. Era possível detectar em boa parte da obra dos
artistas, que buscavam reformular suas bases estilísticas, suas inquietações sobre
uma sociedade em transformação. A Semana de 22, iniciou, portanto, o abandono
tanto de matrizes neoclássicas quanto daquelas que deram origem ao Barroco, e
insuflam a idéia de introduzir no Brasil a arte moderna européia. Dessa forma,
pode-se entender o movimento modernista, inaugurado com Semana de Arte Moderna de vinte e dois e desdobrando-se em outros movimentos ressonantes focalizadores da causa brasileira, na busca da identidade cultural. Mas é importante registrar que o movimento modernista não foi um programa sistemático e linear de renovação, pois superou inúmeras hesitações e dificuldades diante de um ambiente político e cultural letárgico com o qual rompia. (SIMÃO, 2003, p. 26)
Ao mesmo tempo em que se aspirava modernizar o campo da arte no Brasil,
ocorria paralelamente o movimento de renovação educacional, propondo “regenerar“
a nação, na busca da identidade brasileira, como citado na primeira parte do
64
presente trabalho. Uma regeneração que deveria ocorrer estimulada pelo higienismo
e o eugenismo, na busca de mentes sãs em corpos sãos (mens sana in corpore
sano). No campo do ensino da arte, foram formulados princípios inovadores para
essa área de ensino, abordando aspectos da Pedagogia da Escola Nova. A arte
também se centrou no processo de desenvolvimento do aluno, valorizando sua
expressão, seus interesses e sua espontaneidade. Assim a descrevem os
Parâmetros Curriculares da Arte (2000, p. 26),
o ensino da Arte volta-se para o desenvolvimento natural da criança, centrado no respeito às suas necessidades e aspirações, valorizando suas formas de expressão e de compreensão do mundo. As praticas pedagógicas, que eram diretivas, com ênfase na repetição de modelos e no professor, são redimensionadas, deslocando-se a ênfase para os processos de desenvolvimento do aluno e sua criação.
Por intermédio do norte-americano John Dewey, o ensino da arte tomou
novos rumos, contribuindo com o princípio da função educativa da experiência, cujo
centro não é o conteúdo a ser ensinado nem tampouco o professor, mas sim o aluno
em constante crescimento.
Hoje, as tecnologias facilitam o acesso à informação; há uma verdadeira
proliferação da informação. Freqüentemente, somos submergidos pela quantidade
de informações transmitidas pela mídia ou na Internet. As informações sobre o
amanhã anulam as de hoje. Além disso, o verdadeiro problema não é o da
informação quantitativa, mas o da má organização das mesmas. Quantos
conseguem organizar, selecionar e ressignificar essas informações transformando-
as, efetivamente em conhecimentos?
Por tudo isso, podemos afirmar que a sociedade na qual vivemos é a
sociedade da informação e do conhecimento desqualificado, configurada pelos
avanços tecnológicos, pela mundialização da economia e pelas novas concepções
de trabalho.
As influências que as mídias acarretam no corpo são visíveis se pararmos
para refletir sobre isso. Atualmente, a publicidade reproduz uma imagem de corpo
que, muitas vezes, é inatingível. A cultura da “boa-forma”, que se encontra em alta
no mercado, ressalta a cultura do consumo. O consumismo exacerbado segue em
busca de uma preparação do corpo que retarde seu envelhecimento, transformando
65
a imagem corporal e colocando-a como miragem de um ideal corporal a ser atingido.
É a força desse ideal que estimula o investimento na reconstrução do corpo, dentre
elas, duas formas de tratamento destacam-se: a medicina e a ginástica. Ambas irão
lembrar dos movimentos higienista e eugenista e da ênfase sobre os exercícios
físicos na década de 1930, em particular durante o Estado Novo. Cuidados sobre o
corpo se justificam para que se tenha uma raça pura e forte (mens sana in corpore
sano). “Cuidar da imagem corporal implica regular sua sociabilidade cujos efeitos e
fórmulas são extremamente relacionados ao padrão cultural imposto pela veiculação
massiva (e globalizada) da mídia.” (GARCIA, 2005, p. 26) Assim, a aparência do
corpo torna-se condição essencial à socialização. E o corpo, deixa de ser objeto
meramente orgânico para transforma-se em linguagem, que comunica por meio da
forma, agregando e enunciando valores socioculturais.
Essas alterações da imagem corporal, desconfiguram a percepção de corpo,
e este resume-se a um objeto de desejo do público, que exterioriza somente os
produtos divulgados pela publicidade. Essa mistura entre biológico e sociológico,
distorcem e distanciam a noção de alteridade individual do corpo do sujeito. O
paradoxismo da perfeição faz com que os corpos, principalmente das mulheres,
assemelhem-se uns aos outros. Santaella, comenta sobre isso, acrescentando que a
fotografia favoreceu a possibilidade de contemplação estética do corpo e como
os padrões de beleza são tão imperiosamente obedecidos que, por mais que variem as mulheres fotografadas, nas imagens todos os corpos se parecem. O que se apresenta aí é o corpo homogeneizado como lugar de produção de signos: o mesmo olhar sob o mesmo tipo de maquiagem, os mesmos lábios enxertados [...] o mesmo sorriso, as mesmas poses [...] (SANTAELLA, 2004 p.128)
A padronização do corpo agora está presente também na sua imagem,
impecavelmente sem defeitos. O poder que as imagens midiáticas exercem sobre a
consciência do sujeito é tão forte que mesmo quando se tem consciência da sua
atuação em despertar o desejo, não se está livre de sua influência no inconsciente.
“Vem daí a busca de satisfação de seu próprio corpo que as pessoas buscam dar a
si mesmas” (SANTAELLA, 2004, p.130)
A dificuldade em abdicar desse discurso da beleza está justamente porque a
publicidade difunde que cada um é responsável pelo seu corpo, não lhe sobram
66
alternativas a não ser amar a si mesmo, investir em si mesmo de acordo com as
regras que a sociedade impõe. Cada um se vê praticamente obrigado a seguir essas
regras, para não se colocar “à margem das luzes gloriosas do exibicionismo”,
segundo Santella (2004).
Atualmente é notável o papel atribuído ao corpo em diferentes aspectos.
Segundo, Villaça e Góes (1998, p. 28), “assistimos à multiplicação e à mutação do
corpo em paradoxais metáforas identitárias”, que tendem a conduzir o corpo a um
modelo padrão instituído pela indústria da moda, ou então desconstroem imagens
ou criam virtualizações por meio da técnociência. Então,
na era industrial, o corpo era manipulado como instrumento da produção, lugar de disciplina e controle. Na sociedade pós-industrial, caracterizada pela difusão do saber e da informação, por uma tecnologia que ultrapassa a ciência e a máquina para tornar-se social e organizacional, repensa-se esse controle. O corpo dominado é apenas o do trabalhador? O controlar sobretudo o cidadão consumidor através da produção incessante de serviços e desejos. O que se percebe é que uma leitura do corpo [...] disciplinado pelas regras da estetização geral da sociedade pós-industrial, pode incidir numa versão redutora do papel do corpo. (VILLAÇA; GÓES, 1998, p. 30)
Aqui cabe resgatar o pensamento de Foucault e a construção de corpos
dóceis, conformados e sem consciência de que estão sendo manipulados para
servirem ao interesse do mercado. Ao submeter-se às regras da indústria da
‘estética’ (aqui entendida na forma simplista como o senso comum significa esse
termo, relacionando-o com beleza, dentro de padrões previamente instituídos) o
opressor passa a ser a sociedade do consumo. Assim, o corpo torna-se escravo
pela domesticação, mas sem consciência de que perdeu sua liberdade. Um corpo
disciplinado, docilizado é um corpo oprimido; seja quem for o agente de opressão.
O controle e repressão preconizados em Foucault agora se transformam em
controle e estimulação, pois estimula a beleza, a exibição dos corpos, mas seguindo
à risca padrões de peso, altura e até mesmo da cor da pele, bronzeada. A
estimulação acaba sendo repressora também, pois inibe aqueles que se encontram
fora dos modelos corporais estipulados.
Nessa leitura, retomamos o pensamento de Merleau-Ponty, que busca o olhar
expressivo no campo da estética compreendida na esfera do sensível e que é co-
extensiva ao corpo, ou seja o corpo é apanhado na experiência sensível. O corpo
67
encontra seu sentido e compreensão na intersubjetividade. Dessa maneira poderá
libertar-se das amarras sociais, culturais, políticas e econômicas.
As marcas históricas da dominação sofrida pelo corpo, discutidas neste
capítulo, nos levam a refletir de que maneira podemos desenvolver esta consciência
e propiciar sua libertação e sua autonomia. Se as formas de opressão e controle são
diversas, se sabemos que nosso corpo é eminentemente um espaço ligado ao
sensível, à expressão, como trilhar caminhos que nos levem a estas percepções e
às ações efetivas no mundo em que habitamos. Por isso, no capitulo seguinte
procuraremos vislumbrar no pensamento pedagógico de Paulo Freire, elementos
que permitam uma visão teórico-prática da importância das expressões artísticas
para a ação educativa.
68
4 PAULO FREIRE, CORPO E ARTE/EDUCAÇÃO: DO CORPO DÓCIL, DE FOUCAULT, À CONSCIÊNCIA DO CORPO EM MOVIMENTO, DE MERLEAU-PONTY
Como vimos, Foucault trata a perspectiva opressora do corpo e seus
atravessamentos pelas forças de poder-saber. Merleau-Ponty, ressalta o corpo em
seu aspecto fenomenológico, perceptivo, expressivo. A questão do corpo é
fundamental no pensamento desses dois autores, porém, guardadas as diferenças
entre eles, destacamos o corpo como potência de conhecimento, como uma
racionalidade que contempla o corpo e o conhecimento sensível. Sabemos que o
corpo tem em si historicidade e culturas; é dotado de capacidades naturalmente
expressivas, no entanto, necessita ser liberto das amarras sócio-culturais que o
domina.
Vimos no segundo capítulo deste estudo, que o corpo no contexto histórico
brasileiro foi marcado pela dominação, inicialmente pelos colonizadores, e depois,
pelas classes sociais mais privilegiadas. Principalmente o corpo da mulher sofreu
com essa dominação.
Portanto, neste capítulo, iremos estabelecer as relações entre as discussões
até então realizadas e o pensamento de Paulo Freire, principalmente por suas
reflexões acerca do diálogo como libertação, e de conscientização para a liberdade
e para a autonomia. A escolha por este educador, se deu pelo fato de que ele
buscou constantemente a conexão entre teoria, valores e prática, e trabalhar o corpo
na educação permite estabelecer essa relação. Ele também falou da importância da
questão da cultura. E a concepção do corpo faz parte da cultura.
Veremos também que o corpo, envolvido numa atmosfera artística, será
melhor compreendido pela metáfora da obra de arte. O corpo, nesta perspectiva,
realça e procura por novas formas de compreender o mundo, indo além do
racionalismo.
Portanto, para seguir nos caminhos escolhidos, para desvelar os sentidos
múltiplos do corpo trataremos nas páginas subseqüentes sobre a idéia de corpo em
69
Paulo Freire, buscando no pensamento deste educador uma relação entre alguns
conceitos por ele desenvolvidos e a libertação do corpo pela expressão artística.
4.1 Paulo Freire : educação e vida
Paulo Freire foi um pensador comprometido com a vida, não pensa idéias,
pensa a própria existência. É também educador; existencia um pensamento para
uma prática libertadora. É sem duvida o educador mais conhecido de nossa época e
mundialmente considerado como um dos maiores educadores do século XX. Seu
compromisso com o educando é um dos maiores fundamentos de sua metodologia.
O papel do educador é o de favorecer a compreensão dos educandos sobre sua
própria realidade, inserir na aprendizagem uma leitura de mundo e não somente
leitura de palavras, para colocar o oprimido como sujeito de sua aprendizagem e da
transformação da realidade.
4.2 Breve Biografia e Síntese do Pensamento de Paulo Freire
Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, no dia dezenove de setembro
de 1921. Aprendeu a ler com os seus pais à sombra das árvores no quintal de sua
casa. A alfabetização que teve partiu de suas próprias palavras, palavras da
infância, da sua realidade, da sua prática, de suas experiências como criança. Era
considerado um aluno atrasado em relação aos demais, quando tinha 15 anos. Ele
mesmo comenta sobre suas dificuldades, quando comenta entrou no ginásio, ainda
escrevia ‘rato’ com dois rr. (FREIRE, 1980, p. 14).
Mesmo com uma infância penosa, sempre se perguntava o que poderia fazer
para ajudar aos homens. Paulo Freire preocupa-se em como dar ao processo
educativo as condições essenciais para que este pudesse contribuir na realização
plena e consciente do sujeito na sociedade na qual vive. A educação deverá ter uma
visão global e ampliada do educando.
70
Freire ingressou na Faculdade de Direito do Recife, em 1943, mas também se
dedicou aos estudos de filosofia da linguagem. Apesar disso, nunca exerceu a
profissão, e preferiu trabalhar como professor numa escola de segundo grau
ensinando a língua portuguesa.
Em 1944, casou com Elza Maia Costa de Oliveira, professora primária , e com
ela teve cinco filhos. Foi Elza quem o estimulou a dedicar-se aos estudos de forma
sistemática, chegando a colaborar no método que ficou sendo conhecido, Método
Paulo Freire.
Ao longo de sua vida, escreveu mais de mais de 25 livros, lecionou nas
Universidades de Harward, Genebra, Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Recebeu o
título de doutor Honoris Causa em mais de 20 Universidades, de diversos países,
pelo reconhecimento e valorização das suas reflexões e contribuições no campo
educacional.
Sua biografia destaca o compromisso com uma educação que lê o mundo
pelas palavras, que busca sua transformação, preza pela autonomia do sujeito, pelo
diálogo e pela liberdade. É marcada também por despertar nas pessoas a crença
que é possível mudar o mundo – a utopia por um mundo possível.
Freire destaca-se dentre os demais educadores porque sempre procurou
aplicar seus conceitos na prática, como as 40 horas de Angicos, em 1963, uma
experiência pioneira na educação, ou como na década de 70, quando assessorou
países da África, recém-libertada da colonização européia, na implantação de seus
sistemas de educação. Aceitou também ser secretário da educação na cidade de
São Paulo, entre 1988 e 1991.
Faleceu em 1997, aos 76 anos, vítima de um infarto, mas deixando para
todos um autêntico trabalho de educação que identifica a alfabetização com um
processo de conscientização.
Um dos seus livros mais conhecidos é a Pedagogia do Oprimido, onde relata-
nos sua experiência em cinco anos de exílio, mostra o papel da conscientização,
numa educação realmente libertadora.
Freire ao fazer a crítica sobre a educação bancária, lembrou que essa prática
pedagógica é alienante, autoritária e inibidora da expressão autônoma do homem e
71
da mulher. O aluno é considerado como parte de um mundo que irá conhecer, ou
seja, a realidade ainda lhe será transmitida. Na aprendizagem, há uma espécie de
armazenagem de conhecimentos, somente por meio da instrução e transmissão de
conteúdos.
Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os
educandos são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-
se, o educador faz comunicados e depósitos que os educandos, meras incidências,
recebem pacientemente, memorizam e repetem....a única margem de ação que se
oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.
(FREIRE, 1987, p. 58)
E estes conteúdos “recebidos” e “arquivados” muitas vezes não têm qualquer
relação com a realidade social do aluno; não há sentido algum naquilo em que estão
aprendendo. Quem instrui os alunos são os professores e estes estabelecem uma
relação vertical com os alunos. Nas aulas, há um grande predomínio da metodologia
expositiva, na qual o professor, detentor de todo saber, fala aos seus alunos e estes
devem apenas ouvi-lo, sem manifestar divergências de opiniões. A avaliação é tida
como verificação da capacidade momentânea de memorização dos conteúdos;
momentânea, porque, freqüentemente, depois de passado o período de avaliação,
tudo que foi “aprendido” é esquecido, justamente porque não tinha sentido para
quem o aprendeu. Estas são características da chamada educação bancária,
criticada por Freire, como citado anteriormente, onde o saber é depositado na
cabeça do aluno como se o educando fosse um recipiente passivo de conteúdos.
A educação bancária que, desde os jesuítas, informou o ensino brasileiro, é
vista por Paulo Freire como uma prática pedagógica de “interdição do corpo”
(FREIRE, 2000a, p. 102). Trata-se de uma prática docente que “dociliza” e
“conforma”, proibindo os homens de “ser, saber e poder” (FREIRE, 2000a, p. 232).
Literalmente, é o “corpo” que é conformado, impedido de expressar-se de maneira
criativa e autônoma. Isso porque no pensamento de Paulo Freire, a expressão da
palavra é uma ação que se origina do homem integral, do homem enquanto
“SOMA”, nas suas mais diversas formas de ser em liberdade. A ideologia da
“interdição do corpo” submete o indivíduo, inconscientemente, à opressão, fazendo
72
com que ele permaneça no estágio da “consciência ingênua” ou “semi-transitiva”
(FREIRE, 2000a, p. 102).
Freire defende uma pedagogia a qual denominou Concepção
Problematizadora e Libertadora da Educação, onde há uma busca pela interação
entre homem e mundo. Essa concepção, que tem em seu cerne as bases do
pensamento freireano, o sujeito é entendido como elaborador e criador de
conhecimentos, ele mesmo é o sujeito do conhecimento. E por isso, na ação
educativa fundada no diálogo, as figuras de professor e aluno são substituídas pela
de educandos, pois, ninguém ensina ninguém, os homens se educam uns com os
outros.
Um dos fundamentos dessa concepção é a criatividade, que estimula a
reflexão, a ação criadora e inovadora, frente à realidade. Paulo Freire fala sobre a
idéia de criatividade na educação afirmando que é necessário criatividade para
aprender e a criatividade necessita de liberdade. Por isso, esta deve ser estimulada
pelo professor, pois é peça-chave para a evocação da imaginação, intuição,
capacidade de criar, transformar e transcender. E nesse contexto a arte pode
exercer papel essencial como agente facilitador dessas perspectivas. Segundo Ana
Mae, “o ensino da arte nas escolas incentiva a criatividade, facilita o processo de
aprendizagem e prepara melhor os alunos para enfrentar o mundo.” (BARBOSA,
2005)
A concepção bancária imobiliza e inibe a atitude criativa. Nessa concepção,
portanto, as expressões criativas e artísticas do corpo não possuem espaço. A arte é
tolhida e o corpo tem sua expressividade prejudicada.
Por isso, o corpo não pode ser conformado, impedido de expressar-se de
maneira criativa e autônoma no processo educativo. Dessa maneira, ao libertar o
corpo da interdição que o sufoca, a educação como prática da liberdade, realiza a
pedagogia do oprimido que é uma pedagogia para a liberdade. Por tudo isso,
destaca-se aquele professor que, consciente de sua dimensão de constante
reconstrução pessoal e profissional, trabalhe de forma a articular conhecimentos e
saberes, ciente de sua contribuição para a formação integral do educando.
73
4.3 Freire: do corpo interditado na escola ao corpo emancipado
Tudo que diz respeito ao corpo, sempre é mais difícil de ser captado, porque
este não deixa marcas precisas para o estudo. Os registros dos quais dispomos são
sempre narrações, representações ou mediações acerca do corpo. Como bem
ressalta Oliveira (2006, p. 8) “o que efetivamente faziam corporalmente alunos e
professores, que atividades e manifestações desenvolviam e experimentavam, só
podem ser objeto de estudo histórico a partir das ”falas“ preservadas sobre aquelas."
Ou seja, a linguagem que se tem acesso para o estudo do corpo não é a linguagem
corporal.
Desde cedo todo aluno aprende a seguir várias regras que visam o
autocontrole de suas ações no âmbito escolar, primeiramente, e que se expande no
âmbito do convívio social. desta forma, "ser aluno significa, antes de mais nada,
assumir o papel designado." (OLIVEIRA, 2006a, p. 60)
A escola, como uma instituição eminentemente moderna, traz consigo
maneiras peculiares de lidar com a questão do corpo e suas imbricações. Ao
analisar as práticas corporais na escola, podemos perceber um contaste esforço em
negar sua presença ou sua expressão genuína. Esse histórico de negação da
corporalidade na escola não é descontextualizado, pois contém traços de uma
sociedade marcada pela dominação.
A passagem da escola doméstica, criada no âmbito da vida cotidiana dos
professores, para a escola graduada, gerida no âmbito da preocupação com a
escolarização de massas, foi segundo Oliveira (2006) um processo multifatorial de
transformação. Seja no tocante de ensino, à conformação e distribuição do espaço e
do tempo escolares (aí incluídos o mobiliário, os espaços de aprendizagem e de
recreação, os tempos de recreio e de intervalo etc.) à formação de agentes
especializados (os professores), à expansão dos serviços de inspeção escolar, à
criação de toda uma imagética própria e cara ao mundo escolar, muitas foram as
dimensões sobre as quais foram mobilizados esforços e investimentos no sentido de
reformar de cima a baixo o processo de escolarização. (OLIVEIRA, 2006, p. 4)
74
Dentre todos as formas mobilizadas nesse processo, muitas foram no sentido
de redefinir o papel do corpo ou da corporalidade dos alunos no novo modelo
escolar. Ou seja, sobre o corpo da criança e do jovem deveria incutir a nova
instituição, inscrevendo-se nas ações do corpo.
Os ventos da mudança no âmbito escolar sopraram fortemente no ambiente
escolar para a consolidação da “modernidade”, nos anos finais do século XIX. O
sentimento de autoridade, a ênfase sobre a necessidade de algum tipo de
direcionamento social mantêm-se firmes para promover a formação humana nas
sociedades complexas, sendo que a corporalidade passa a ganhar destaque nesse
percurso.
A relação autoritária entre professor e aluno, que se manifesta não poucas
vezes como de violência contra o corpo do outro na forma de “castigos”, de punição,
ressalta essa necessidade de imposição de poder sobre o corpo de outrem. “Falei
longamente com Piaget sobre a representação do castigo na criança, defendendo
uma relação dialógica amorosa, entre pais, mães, filhos, filhas, professores,
professoras, alunos e alunas, que fosse substituindo o uso dos castigos violentos”
(FREIRE, 1994, p. 105).
Em seu comentário Freire reafirma suas idéias sobre a “teoria dialógica da
ação educativa que nega o autoritarismo” (FREIRE, 2003, p. 210). E, o autoritarismo
refletido na violência contra o corpo do outro como ser físico, pensante, atuante e
manifesta-se em ações que o reproduzem nas relações sociais, já que o oprimido
carrega em si a consciência do opressor (FREIRE, 2003, p. 46) que se exprime nas
relações entre oprimido/oprimido e oprimido/opressor. Portanto, a violência que
começa com a violência da negação do outro enquanto corpo consciente, se
estende na direção da violência contra a mulher, o afrodescendente, o diferente, o
despossuído, é, muitas vezes, gestada na escola tendo origem nas relações que se
estabelecem entre os que sabem e aqueles que os que sabem julgam ser
destituídos de conhecimento, pois essas relações partem de uma concepção falsa
dos homens. Ou seja, Os investimentos sobre a escolarização dos corpos são frutos
do próprio processo de organização social que foi se tornando cada vez mais
complexo.
75
A falta de uma ordem escolar, uma ordem corporal comum, acarretaria um
verdadeiro caos nas instituições escolares, pois determinaria uma heterogeneidade
de hábitos, de ações e gestos, segundo Oliveira (2006). Dessa forma, o
autoritarismo, aliado principalmente aos castigos corporais, gera a desconfiança e o
medo, que tem um impacto substantivo sobre a vida social, cultural, econômica e
política de um país
reduz a disposição das pessoas para ações coletivas, aumentando a desconfiança entre elas, inibindo o exercício de capital social, porque reduz o diálogo e, portanto, a identificação de que problemas são compartilhados, afetando ainda o exercício da solidariedade (CÁRDIA, 2008, p. 37).
Podemos dizer, em síntese, que o medo é a base de sustentação da
formação do aluno. Percebemos claramente isso, recordando sobre a diferenciação
feita entre alunos, exaltando os que se encaixam perfeitamente nos moldes
oferecidos e o repúdio por aqueles que não se ajustam e desafiam as normas e
padrões. Estes, tendem a sofrer com os dispositivos de repressão, que muitas vezes
é realizada diretamente no corpo. Mas como vimos nas primeiras páginas desse
trabalho, Foucault nos lembra que a punição corporal gradativamente cede lugar a
formas mais sutis de controle, fomentada por um poderoso código coercitivo.
Outra conseqüência importante sobre o autoritarismo é que o medo da
violência tende a enclausurar as pessoas amplificando o sentimento de solidão,
isolando-as umas das outras e impossibilitando-as de realizar o diálogo. O medo
minimiza a reflexão, gera desesperança, e segundo Freire (1987), não existe diálogo
sem esperança e sem ele, não há comunicação e, portanto, não há educação.
As escolas em nossa sociedade deveriam ser lugares nos quais a experiência
formativa fossem concretizadas, intensificando as buscas por uma reflexão maior da
dimensão corporal. No entanto, o que se constata é que as possibilidades de
vivências corporais autônomas são restringidas e as relações de poder e de
domesticação do corpo são reforçadas.
76
4.4 Uma epistemologia freireana do corpo negado
Nas sociedades cujas formações sociais foram de origem colonizada, as
reflexões filosóficas e históricas em torno da negação do corpo do outro mostram
que nestas sociedades a negação se apresenta na forma de violência sobre o corpo.
Acompanhando essa reflexão, Ana Mae Barbosa, em seu livro Recorte e Colagem,
acrescenta que uma sociedade dependente como a nossa, estará sempre sujeita
aos modelos instituídos pelas sociedades dominantes. Ela diz que
[...] através da educação, os mesmos valores e aspirações já alcançados por sociedades dominantes independentes são transmitidos às sociedades dependentes, impedindo-se com isso que formem seus próprios valores. [...] Tornamo-nos realmente incapazes de modelar nossa cultura, porque não somos livres para determinar nosso próprio sistema de valores. (BARBOSA, 1989, p. 12).
Nossa desfavorável colonização, fortemente predatória e assinalada pela
exploração, aponta para o que Paulo Freire chamou de uma “inexperiência
democrática” das pessoas submetidas a essa educação.
As influências políticas e sociais na educação são perceptíveis quando
desenvolvemos uma consciência crítica quanto a nossa realidade social. Educação
e sociedade estabelecem uma relação vertical quando esta exerce dominação sobre
aquela, e conseqüentemente, a modela em seu favor. Paulo Freire (1986, p. 49)
também discute essa idéia destacando que
[...] não é a educação que modela a sociedade mas, ao contrário, a sociedade é que modela a educação segundo os interesses dos que detêm o poder. Se é assim, não podemos esperar que a educação seja a alavanca da transformação destes últimos. Seria ingênuo demais pedir à classe dirigente no poder que pusesse em prática um tipo de educação que pode atuar contra ela. Se se permitisse à educação desenvolver-se sem fiscalização política, isso traria infindáveis problemas para os que estão no poder. Mas as autoridades dominantes não permitem que isso aconteça e fiscalizam a educação.
Neste contexto, Paulo Freire fala da “autodemissão” do corpo consciente,
uma forma de violência simbólica perpetrada pelo “poder da domesticação alienante”
(FREIRE, 1997, p. 128) sobre os corpos de homens e mulheres. Trata-se da
77
“dominação”, da imposição sutil, persuasiva, de um poder que se apresenta como
inquestionável e que conduz à acomodação, ao conformismo. Isto é, um poder
capaz de modelar a vontade fazendo com que o outro assuma a forma de ser
domesticado, docilizado, um corpo disciplinado, como escreveu Foucault (1987). A
ação de “autodemitir-se” do corpo, ou seja de si mesmo, pois como vimos em
Merleau-Ponty, somos corpo em sua totalidade, é uma ação de leva a uma
sensação de determinismo conformado, a aceitação de domínio que é exercido
sobre seu corpo, como fato consumado, contra o qual não há nada que possa ser
feito.
Neste sentido, Paulo Freire acentua sua negação ao determinismo, à
fatalidade, em particular quando se trata da situação em que vivem os
“esfarrapados” da terra. Cada sujeito deve se reconhecer como “seres que estão
sendo, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo
histórica também, é igualmente inacabada.” (FREIRE, 1987, p.72). O fixismo
presente na pedagogia bancária imobiliza e faz com que a situação em que estão
lhes pareça fatal e intransponível, quando deveria lhes parecer como desafiadora,
que apenas os limita.
Enquanto a prática “bancária”, por tudo o que dela dissemos, enfatiza, direta
ou indiretamente, a percepção fatalista que estejam tendo os homens de sua
situação, a prática problematizadora, ao contrário, propõe aos homens sua situação
como problema. Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação,
os homens se “apropriam” dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de
ser transformada por eles, (FREIRE, 1987, p. 74)
Portanto, a autodemissão do corpo requer uma ação contrária: a admissão do
corpo na sua totalidade e nas suas expressões para o mundo. Trata-se de uma
atitude de reconhecimento de si mesmo e do outro como ser – humano – corpo.
Como Merleau-Ponty pensava o corpo, como gesto, sensibilidade, expressão
criadora inata de cada ser humano.
Em um diálogo com Sergio Micelli, cujo relato foi publicado na revista Teoria
em Debate, no primeiro trimestre de 1992, Paulo Freire lança mão da expressão
“interdição do corpo”6 para dizer que, historicamente, no Brasil, o corpo, em especial
6 Termo este usado posteriormente por Ana Maria Araújo Freire, sua segunda esposa.
78
o corpo dos mais frágeis, for proibido de ser, não foi sujeito, mas sujeitado. Para ele,
somos “vocacionados para a humanização e, temos na desumanização, fato
concreto na história, a distorção da vocação” (FREIRE, 1994, p. 99). Essa sujeição
desumanizante que a tudo interditava, tem origem na escola por meio da educação.
(MESQUIDA, 2008)
A interdição do corpo tem, portanto, sua origem na história social, política,
econômica e cultural e no processo de escolarização a educação foi utilizada para
dominar, submeter, inibir, de forma autoritária, com a finalidade maior de manter a
consciência ingênua, a acriticidade (FREIRE, 2003) e, assim, a negação do outro. A
verticalidade da ação pedagógica, fundada na posse do conhecimento, refletia a
verticalização autoritária que imperava na sociedade. A histórica relação autoritária
entre professor e aluno imperante na escola brasileira, reafirma a educação
bancária.
No entanto, a dialogicidade, categoria filosófico-pedagógica empregada por
Paulo Freire para identificar o encontro entre o eu e o tu, como diria Martin Buber
(1982 e 1977), fonte principal dos conceitos freireanos de dialógico e dialogicidade,
impulsiona o (a) pesquisador (a) a colocar questões sobre arte e educação, já que é
pela palavra que o homem se faz presente no mundo. Mas a palavra em suas duas
dimensões: que mobiliza reflexão e ação. “Não há palavra verdadeira que não seja
práxis. Daí que a palavra verdadeira seja transformar o mundo”. (FREIRE 1987, p.
77) Aprender a ler, é aprender a ler as palavras e ler o mundo também para poder
atuar na sua transformação. A arte, então, tem muito a colaborar nessa leitura de
mundo.
A existência humana precisa nutrir-se de palavras verdadeiras, para
pronunciar o mundo. Fazer a leitura de mundo pela arte é interagir sensivelmente
com ele. E essa sensibilidade que designa também inteligibilidade e reflexão. A Arte
como aguçadora dos sentidos, irá transmitir significados que dificilmente seriam
transmitidos por outras linguagens, tal como a científica ou discursiva. Ler o mundo
por uma obra de arte, seja ela visual, sonora ou corporal, e deter seus códigos de
interpretação supõe muito mais que um conhecimento ou sensitivo ou intelectual,
mas deve gerar uma interpretação do mundo, através do contato com diferentes
79
culturas, modos distintos de dar significado estético a sensações e emoções que a
arte provoca.
De acordo com Paulo Freire, é preciso que o iletrado aprenda a fazer a leitura
do mundo para, então, proceder à leitura da palavra. E, a leitura do mundo se faz,
inicialmente, por meio da imagem do mundo que vai sendo construída. Isso significa
ir da imagem à palavra. Por isso, Paulo Freire conta, na sua Pedagogia da
indignação (2000), como, a seu pedido, Francisco Brenand, artista plástico brasileiro
de renome internacional, produziu as dez “situações” que iriam ser trabalhadas por
ele, Paulo Freire, na preparação dos “animadores culturais”. Assim, se expressa
Paulo Freire, afirmando que
eram dez as situações concretas, codificações, como as chamo, cuja “leitura” possibilita o começo do desvelamento da atividade cultural humana. Foi Francisco Brenand, genial artista brasileiro, excelente pintor e não menos ceramista, que as produziu a meu pedido. A bem da verdade, foi Ariano Suassuna ...quem me disse: “Você precisa conversar com Brenand. Já estou vendo a beleza do trabalho dele pintando as diferentes situações de que você necessita para desafiar os animadores na discussão sobre cultura” (FREIRE, 2000, p. 96).
Assim, Paulo Freire lançou mão da expressão artística para “desafiar” os
animadores culturais, formadores nos círculos de cultura, a fazerem eles mesmos a
leitura do mundo. Era a imagem, criada pela mão de um artista, que iria servir à
educação na tarefa de levar os educadores a realizarem a leitura do mundo. E, para
Paulo Freire, amante da estética e, portanto, das expressões artísticas, aí está o que
ele chamava de “boniteza” da ação pedagógica. Portanto, a curiosidade despertada
pela imagem, pelo belo artístico, levaria os alfabetizandos a “sentirem-se cultos”,
pois eles também “podiam fazer isso”, diziam, “apontando para o jarro de barro
projetado na tela” (FREIRE, 2000a, p. 98-99).
O objetivo de Paulo Freire trabalhar com as imagens era, segundo Lyra
(1996) esclarecer ao analfabeto os conceitos antropológicos de cultura, dividindo-os
em dois mundos: o da natureza e o da cultura. “A cultura como acréscimo que o
homem faz ao mundo que ele não criou. A cultura como resultado de seu trabalho e
de seu esforço criador e recriador. O homem, afinal, no mundo e com o mundo,
como sujeito e não como objeto.” (LYRA, 1996, p. 23)
80
Dessa maneira, aprendendo a ler o mundo, em diálogo com a arte, os
educadores poderiam expressar o mundo por meio da palavra criadora de cultura,
colocando em xeque a educação bancária reprodutora e mantenedora do status
quo.
Os slides projetados mostravam várias situações codificadas, que eram
capazes de motivar a discussão no grupo e depois decodificar as situações
apresentadas. Ao olhar as imagens um sentimento de curiosidade era despertado
em cada educando. “No momento em que é iniciada a projeção, cessam os ruídos.
Todos se concentram totalmente na imagem projetada.” (LYRA, 1996, p.24)
As perguntas elaboradas pelos coordenadores faziam a leitura da imagem e
ao mesmo tempo instigavam a reflexão. Como podemos observar no exemplo
abaixo, sobre a imagem:
Imagem utilizada para a discussão do conceito antropológico de cultura
Fonte: Revista Educação em Questão, Natal, v. 21, n. 7, p. 105, set./dez. 2004
O objetivo deste primeiro slide é o despertar da autoconsciência, da consciência do homem diante da natureza e da cultura; e do conceito antropológico de cultura. Pergunta: O que vemos aí? Ou: O que está diante de nós? Respostas: “Um pé de pau” (Árvore); “Um poico”; “Um porquinho”; “Uma estauta” (o homem); “Um passo” etc. Simples substantivos, nenhuma oração formada.
81
Evidentemente, não os corrigimos, mas quando falávamos indiretamente o fazíamos lentamente: pássaro, estátua, pois eles não estavam errados, mas tão certos quando nós, sociologicamente... Pergunta: O que significam estas linhas (setas)? Respostas: As mais comuns foram “lápis”, “palito”. No entanto, alguns disseram: “O juízo do homem”; “A ciença do homem”; “O homem tem necessidade disto”; “É o caminho do homem para o mundo”. (LYRA, 1996, p. 24)
Carlos Lyra acrescenta que para Paulo Freire, estas seriam “respostas
altamente inteligentes”, porque demonstravam a capacidade do homem perceber o
mundo a sua volta.
Estabelecendo uma relação com a leitura de obras de arte – sejam elas
pinturas, esculturas, coreografias, músicas, etc – ao ler essa produção artística, cria-
se na mente uma série de pensamentos que podem ser diferentes a cada vez que
se repete a mesma atividade de ver e observar a obra de Arte. De acordo com o
repertório e o modo de vida que cada observador/leitor possui, haverá diferentes
interpretações da mesma obra.
Nos círculos de cultura, a escolha foi pela leitura de imagens, embora estas
não fossem conscientemente consideradas como arte, e o objetivo não fosse o
prazer estético, mesmo assim, a leitura acontecia e a estética ajudava à formação
intelectual e política. A imagem enquanto linguagem visual é, então, construção
humana que visa à comunicação de idéias, objetivando uma compreensão de suas
relações com a realidade dos educandos. Ou seja, o objeto enquanto arte, pode ser
considerado como um texto visual. Ao percorrer o olho sobre a imagem, no tempo e
no espaço, um caminho é construído e nele são geradas as significações e a
construção de sentidos.
As respostas dos educandos na leitura das projeções revelavam, segundo
Carvalho (2004, p.112), “um alto poder de abstração, passível, a princípio
acadêmico, em inteligências privilegiadas ou cultas, capazes de estabelecer ou
produzir interpretações muito complexas.” Talvez porque seus olhares não
receberam a forte influência do ritmo alucinante que existe atualmente nas cidades.
Esse ritmo, priva as pessoas de experimentar um contato mais próximo com a arte,
num tempo que é do corpo do leitor, um tempo que possibilita reações afetivas de
ordem e qualidade diferente daquelas reações determinadas pela visão acelerada,
do corpo acelerado da sociedade atual. Acompanhando esse pensamento, Buoro
82
(2002) acrescenta que o ritmo da cidade, para a maioria da população que não tem
oportunidade de experimentar um contato mais intimo com obras de arte além
daquele que a rotina incidentalmente lhe permite, impõe assim sua norma ao nosso
olhar e, desse modo, toda a obra de arte passa a ser vista rapidamente, com a
mesma velocidade de olhar que nos é imposta pela imagem da publicidade exposta
no outdoor.
É olhar que olha sem a consciência do ver, justamente este olhar que Paulo
Freire não almejava em seus trabalhos nos círculos de cultura. Para ele é
fundamental ler a imagem na busca do conhecimento do homem como ser no
mundo e com o mundo. É decodificar, interpretar, reconhecer- se nela, refletir,
criticar e criar suas próprias idéias. Como queria Paulo Freire, quando afirma que
durante o debate acerca das situações e palavras geradoras, levará os grupos “a se
conscientizarem para que, ao mesmo tempo, se alfabetizem”. (FREIRE, 1979, p. 75)
A eficiência da utilização de imagens se dava, principalmente porque
representavam situações, objetos, animais, enfim, tudo que era familiar ao universo
cultural do educando.
A série de dez imagens que o artista Francisco Brennand criou a pedido de
Paulo Freire, são figuras de cores e traços simples, mostrando desde animais até
algumas situações de trabalho e de lazer.
A presença da imagem no cotidiano das pessoas ocupa um espaço
considerável. Se olharmos ao redor, perceberemos inúmeras fontes visuais, tais
como a tv, outdoors, revistas, cinema entre outros que produzem imagens
transitórias e ao mesmo tempo incessantes. Todos esses meios de comunicação
visual estão ao alcance da maioria da população, mas se tem pouca consciência
dessa presença maciça devido a grande quantidade de informação. De modo geral,
a relação que esse estabelece com esse aglomerado de imagens é pouco
significativa. As pessoas tornaram-se consumidores passivos de imagens e, muitas
vezes, são submetidas a elas inconscientemente, sem possibilidade de
questionamento. Segundo BUORO (2002, p. 34)
tanto isso é verdade que, se pesquisarmos, por exemplo, a historicidade da presença da imagem nos livros de educação escolar no Brasil, no século XX, veremos as imagens, invadiram todas as áreas do conhecimento sem que tivéssemos aprendido a tirar proveito de seus potenciais comunicativos com o fito de construir um conhecimento mais amplo acerca de seus processos de leitura, em
83
especial no que diz respeito ao trabalho do educador. As imagens, que aparecem majoritariamente com função intransitiva de mera decoração nos livros do ensino fundamental e da educação infantil, surgem assim como que parcialmente emudecidas e, portanto, incapacitadas para fornecerem significados a professores e crianças e, mais ainda, para encaminhá-los no sentido de sua apropriação como poderoso recurso a serviço da prática pedagógica.
O uso de imagens pelo Método de Alfabetização proposto por Paulo Freire, foi
uma maneira de empregar a arte e os elementos da cultural local. Mas este uso não
se restringe à mera observação. A análise das imagens ultrapassa os aspectos
estritamente artísticos, e passa a evidenciar sua funcionalidade pedagógica. A
leitura e apreciação das imagens atende à intenções de conscientização política
implícitas no método Paulo Freire.
Recordando as idéias de Merleau-Ponty, este afirma que o olhar do
racionalismo adota e rejeita perspectivas. Tudo só é possível de ser visto de um
certo ponto de observação por um olho imóvel fixo num certo ponto de fuga, de uma
certa linha de horizonte. Mas o olhar que busca ver de maneiras diversas a mesma
situação, não pode ser imoto. Um olhar sensível vai buscar as diferentes
significações, veladas pelos processos de massificação que as culturas imprimem ao
homem e à mulher. Dessa forma, poderão ver o mundo com a nitidez necessária
para serem sujeitos ativos na sociedade em que vivem. É isto que Merleau-Ponty
afirma sobre a necessidade do diálogo com o pensamento improvisador da arte. Em
suas palavras, “o pintor é o único que tem o direito de olhar sobre todas as coisas
sem nenhum dever de apreciação. Dir-se-ia que diante dele as palavras de ordem
do conhecimento e da ação perdem a virtude”. (MERLEAU-PONTY, 2004, p.15).
Ou seja, o artista tem o privilégio de libertar-se da ordem e das regras impostas
pelo conhecimento, justamente porque sua maneira de pensar é diferente, pois olha
o mundo com outros olhos, com os olhos sensíveis e questionadores da arte. Por
isso, Paulo Freire foi buscar a mão de um artista, Brennand, para pintar as imagens
que iriam ser utilizadas para despertar no alfabetizando o desejo de ler o mundo e, a
partir daí, ler a palavra. Ao mesmo tempo, Paulo Freire trouxe para a arena do seu
método de alfabetização o método comeniano de ensinar tudo a todos, como
veremos.
Pensar a educação pelo viés do diálogo com a arte e a expressão artística a
partir de sua relação com a educação, é um desafio. E desafio maior ainda quando
84
também se procura resgatar, a partir de Comenius (1572-1670) essa relação. O
pensamento humanista desse grande educador tcheco, do século XVII, irá contribuir
sobremaneira para o presente estudo, pois ele serviu de inspiração para Paulo
Freire. O resgate de alguns pontos de sua produção científica servirá para
estabelecer algumas relações com as ações pedagógicas de Paulo Freire, pois a
coerência de seu pensamento rompe as barreiras de seu contexto, aproxima-se da
atualidade e lança idéias para o futuro.
Comenius inicia uma linha de pensamento que se propaga pelos pedagogos e
filósofos da educação que o sucederam. Pode ser considerado pai de uma
concepção humanista e espiritualista na educação. Dentre outras coisas, Comenius
propunha:
· o respeito ao estágio de desenvolvimento da criança, no processo de aprendizagem; · a construção do conhecimento através da experiência, da observação e da ação; · educação sem punição, mas com diálogo, exemplo e ambiente adequado; · ambiente escolar arejado, belo, com espaço livre e ecológico; · interdisciplinaridade; · afetividade do educador; · coerência de propósitos educacionais entre família e escola; · desenvolvimento do raciocínio lógico e do espírito cientifico; · a formação do homem religioso, social, político, racional, afetivo, moral – enfim, do homem integral. (COLOMBO, 2006, p. 24, grifo nosso).
Analisando e comparando com as práticas pedagógicas de Freire,
observamos nítidas semelhanças, dentre elas a educação com o diálogo, pois para
Freire não existe conhecimento válido, a não ser que seja compartilhado com o
outro. Se todos fazem uma leitura de mundo, é no diálogo que se estabelece a troca
das diferentes leituras de mundo ou encontram-se as semelhanças dessas leituras
do mundo.
Em seus processos pedagógicos Comenius desenvolveu propostas baseadas
na democracia do saber, na interdisciplinaridade e na humanização, para que
[...] todos os homens sejam educados plenamente, em sua plena humanidade, não apenas um indivíduo, não alguns poucos, nem mesmo muitos, mas todos os homens [...] todo homem seja educado integralmente, formado corretamente, não num objeto particular ou em alguns objetos ou mesmo em muitos, mas em tudo o que aperfeiçoa a espécie humana; para que ele seja capaz de saber a verdade e não seja iludido pelo falso [...] (COLOMBO, 2006, p. 40)
85
Ou seja, a educação não estaria limitada a uma elite privilegiada e nem tão
pouco os saberes selecionados para o povo que tem pouco acesso à ela. A
educação defendida por Freire é voltada para o povo, para os “esfarrapados do
mundo”, como ele mesmo cita nas primeiras páginas da Pedagogia do Oprimido.
Educar integralmente, não só ensinar a repetir palavras desconexas, sem
significados para os educandos, é também politizar, é partir de poucas palavras para
gerar um universo vocabular de conceitos, idéias e ações. É conscientização de sua
situação, é consciência reflexiva da cultura para reconstruir criticamente o mundo
humano e abrir novos caminhos.
Com o livro Orbis Sensualium Pictus ou O mundo sensível das imagens,
Comenius remonta toda a história do uso de imagens na humanidade. Redigido em
1653 e publicado pela primeira vez em 1658, em Nuremberg em formato bilíngüe,
alemão e latim, o livro contém 150 imagens diferentes, com índices numéricos de
tudo que nela contém. Estes objetos estão descritos na legenda, que faz parte do
corpo do texto. Este livro tinha como objetivo ser útil para crianças desde totalmente
iletradas até adultos iniciantes em latim, como segunda língua. Ao mesmo tempo
iniciava o aluno em todas as coisas que existem no mundo.
Segundo Colombo (2006), até o século XVII, as imagens eram usadas nas
artes ou em manifestações culturais mas sempre com o propósito de ligarem-se ao
mundo adulto, com funções específicas. Com o surgimento do Orbis Pictus, veio
uma nova característica educacional ao uso da imagem. As imagens, até então, não
eram dirigidas às crianças. Somente um século depois do lançamento do livro
didático de Comenius é que foi surgir a literatura infantil.
A organização do livro é didática e baseia-se em imagens e palavras.
Compõe-se de três elementos: figuras, nomenclaturas e as descrições. Todas as
figuras são relativas a tudo que nos é visível no mundo; as nomenclaturas são como
índices ou títulos escritos sobre a própria figura, detalhando os elementos presentes
na mesma; e as descrições são as explicações das partes destacadas na figura.
Uma das preocupações neste livro era justamente com que a língua a ser estudada
não estivesse desconectada da realidade, feita através da imagem. Percebemos aí
uma semelhança forte com as idéias de Freire, quando em seu método, é feita a
86
leitura de mundo dos educandos para depois realizar a pesquisa temática do
universo vocabular. Para Freire (1980, P. 42)
não só se retêm as palavras mais carregadas de sentido existencial - e, por causa disto, as de maior conteúdo emocional - senão, também as expressões típicas do povo: formas de falar particulares, palavras ligadas à experiência do grupo, especialmente à experiência profissional.
Ou seja, o educando se identifica com aquilo que esta aprendendo, não há
nada aquém da sua realidade. E com o uso das imagens, da expressão artística,
acrescentava a experiência sensorial.
Já na abertura do livro, a construção visual da primeira imagem mostra um
cenário aberto, tendo natureza e cidade ao fundo, e em primeiro plano o mestre que
conversa com puer, convidando-o a aprender a ser sábio. A postura corporal do
aprendiz não demonstra inferioridade frente ao mestre, mas sim, uma atitude de
interesse, de curiosidade, como o diálogo logo abaixo da figura ressalta:
- “Come Boy! Learn to be wise.” Venha, garoto! Aprenda a ser sábio. - “What doeth (?) this mean, to be wise?” O que significa ser sábio? - “To Understand rightly, to do rightly, and to speak out rightly, all that are necessary.” Para entender corretamente, para agir corretamente e falar corretamente, tudo isso é necessário. - “Who will teach me this?” Quem me ensinará isto? - “I, by God’s help.” Eu, com a ajuda de Deus. - “How?” Como? - “I will guide thee through all. I will show thee all. I will name thee all.” Eu guiarei por tudo; Eu mostrarei tudo. Eu nomearei tudo. - “See, here I am; lead me in the name of God.” Olhe, Aqui estou; ensine-me em nome de Deus. - “ Before all things, thou oughtest to learn the plain sounds, of which mans speech consisteth; which living Creatures know how to make and thy tougue knoweth how to imitate, and thy hand can picture out. Afterwards, we will go into the world, and we will view all things.” Antes de tudo, tu deverás estudar os simples sons, os quais consiste a palavra humana; com as quais as Criaturas viventes sabem como fazer e sua língua é capaz de imitar e, suas mãos capazes de pintar. Posteriormente, ande pelo mundo e olhe tudo. (COMENIUS, 1659, p. 2, livre tradução nossa)
O início do livro é um convite ao conhecimento e também à expressão
artística. A preocupação com as imagens é evidente, pois na maioria das unidades,
uma página toda é dedicada à figura e outra para as explicações desta figura. As
primeiras unidades se referem aos elementos naturais (fogo, ar, terra e água) e os
aspectos do mundo vegetal - Deus e o Mundo. No entanto, percebemos que
Comenius dá exclusiva atenção à área prática das artes e ofícios, que representam
87
um terço do livro. Segundo Colombo (2006), Comenius sempre procura unir prática
e teoria, a imagem com conceito, a língua com a essência do significado.
Notamos mais uma vez, outra semelhança com o método trabalhado por
Freire ao usar as fichas e projeções de imagens para desenvolver o vocabulário dos
educandos, como veremos nas páginas subseqüentes. A alfabetização é ao mesmo
tempo um ato de criação, capaz de gerar outros atos criadores, ou seja, está o
tempo todo unindo teoria e prática, dando significado ao que se aprende. A arte, ao
estabelecer o laço semântico entre a palavra e sua significação, adquire sua
importância no processo educativo. A imagem implica um conhecimento direto e
prévio da realidade, ponto de partida da ação pedagógica de Paulo Freire.
A característica das imagens é de uma essencialidade de traços que muitas
vezes limita-se a sugerir do que detalhar. As imagens com pessoas, em sua maioria,
sempre sugerem o corpo em movimento, como na página sobre sleights ou truques
que representa uma espécie de uma ginástica de circo, com acrobacias.
Fonte: http://www.uned.es/manesvirtual/Historia/Comenius/OPictus/Pictus133.jpg
Outro detalhe interessante observado encontra-se na figura sobre The Society
Betwixt Parents and Children ou a Sociedade Entre os Pais e Crianças, onde a
figura paterna aparece pintando uma tela enquanto as crianças e a esposa se
88
distraem de outras maneiras, mas sempre com uma postura corporal que pressupõe
algum movimento.
Fonte: http://www.uned.es/manesvirtual/Historia/Comenius/OPictus/Pictus122.jpg
Isso mostra que a expressão artística tem sua relevância e nos mostra a
expressão na sua forma mais natural. Todas as figuras mostram esta tendência
naturalista, da vida, do cotidiano, da expressão cotidiana. Expressão pelo corpo das
ações humanas registradas nas imagens.
Freire também utilizou imagens para trabalhar nos círculos de cultura. O
trabalho gráfico dessas imagens, por vezes realizadas por artistas, como o já
citado, Francisco Brenand, as quais encontram-se em anexo neste trabalho, também
sugerem situação cotidianas, do brasileiro de diversas regiões. Uma das figuras,
logo abaixo, apresenta um homem vestido com roupas tipicamente gaúchas. Nesta
imagem, não há sugestão de movimento, mas mostra a expressão firme e ao
mesmo uma postura corporal descontraída, retratando um bem-estar pessoal.
89
Fonte: Acervo do artista, disponibilizado digitalmente
Já em outra figura, retrata um índio com seu arco e flecha na postura de
caçador. Sua atitude corporal demonstra determinação e precisão de movimentos. O
arco como prolongamento do braço, seu instrumento de caça. O conceito
antropológico estava sempre presente nas intenções pedagógicas neste trabalho
com as fichas com imagens do cotidiano.
Fonte: Acervo do artista, disponibilizado digitalmente
90
Dentre as fichas das quais tivemos acesso, as imagens cedidas pelo artista
Francisco Brenand e a descrição escrita por Carlos Lyra, apenas uma reproduziu a
imagem da mulher: ficha F, descrita por Lyra (1996) "mulher sentada à mesa
comendo. Ao fundo, através da janela visão do monte Cabugi.” Seria este um
resquício impregnado em Freire da cultura domesticadora do colonizador, que
interditou o corpo da mulher? Por ventura sim, mas necessário seria um estudo
mais detalhado sobre esta questão. O mais provável nesta situação, é que isto seria
a tentativa de uma aproximação da cultura local dos educandos que tinham essa
visão de mundo que restringe o papel das mulheres, para depois ser trabalhado esta
conscientização.
Sobre a qualidade gráfica das representações realizadas pelo artista,
esta tende a um estilo naturalista, de maior aproximação com os objetos e situações
representadas. Percebe-se que as imagens buscam uma aproximação ao universo
cultural do educando e talvez por isso a pouca preocupação com o detalhamento
visual. As imagens observadas em geral mantêm um nível de estilização em relação
às coisas representadas, que permite o reconhecimento e identificação de quem as
observa. Ao mesmo tempo mostra uma postura corporal que lembra movimento,
ação. Provavelmente para mobilizar nas pessoas à prática, à ação educativa, que
interfere no mundo em que habitam.
O conceito de educação desenvolvido por Comenius tem características
próprias e relevantes. Dentre elas, considera que nossa vida é uma escola em que
estamos constantemente aprendendo. Essa idéia vai ao encontro do pensamento de
Paulo Freire (1987, p. 72), quando afirma que todo homem é um ser inconcluso,
consciente de sua inconclusão, e de seu permanente movimento de busca do ser
mais. Assim como Comenius, Freire nunca dissociou a educação das relações
sociais, políticas e científicas. A educação nunca é neutra, como defendia Paulo
Freire, numa sociedade marcada pela dialética opressor/oprimido, o não
posicionamento favorece o sistema vigente que indubitavelmente está do lado dos
opressores. Quebrar o conceito de que não existe um direito natural para o domínio
dos opressores sobre os oprimidos tem sido um desafio para os defensores de uma
educação transformadora. O comodismo nos leva a uma educação conformista,
silenciosa e submissa às desigualdades que nos cercam. Por isso a necessidade de
91
um professor politizado, que consiga perceber o papel da educação nessa
sociedade em conflito. Uma sociedade em conflito, como a nossa, exige
profissionais com coragem em mostrar e problematizar as dificuldades que
encontram no ambiente escolar.
Segundo a Didática Magna, na qual Comenius mostra como pretendia
reformar a educação, é através dela que devemos ambicionar a reforma de toda a
humanidade. Assim,
a educação para Comenius, interferia em todos os campos do conhecimento e do desenvolvimento humano e se ela fosse usada como ferramenta de transformação do mundo não poderia estar isolada das outras áreas de conhecimento. (COLOMBO, 2006, p. 99)
Seu pensamento é que todo o universo das coisas está interligado, como uma
rede de significações e nada pode ser entendido sem conhecer seu lugar neste
universo. Por isso formulou a idéia da Pansofia, uma ciência universal que
compreende todo saber humano, onde todo conhecimento é interligado e tudo deve
ser ensinado a todos. Segundo Colombo (2006), ao pensar desta forma, Comenius
reagia a uma ameaça de dissolução dos saberes, que se fortificava com o
crescimento da especialização das ciências. “Para isso, propunha uma rede mundial
de sábios ou colégio dos sábios onde toda informação e pesquisa fossem trocadas
entre todos os sábios em todos os lugares. Nem por isso propunha uma exclusão
dos que não faziam parte do mundo dos sábios.” (COLOMBO, 2006, p. 101) O
projeto de ensinar tudo a todos, proposto por Comenius, busca uma superação para
os enfados, as mesmices, as agressões a que a educação estava exposta na época
em que vivia. Vale a pena transcrever seus propósitos na abertura de sua Didática
Magna, na qual afirma que
a proa e a popa da nossa Didáctica será investigar e descobrir o método segundo o qual os professores ensinem menos e os estudantes aprendem mais; nas escolas, haja menos barulho, menos enfado, menos trabalho inútil, e, ao contrário, haja mais recolhimento, mais atractivo e mais sólido progresso; na Cristandade, haja menos trevas, menos confusão, menos dissídios, e mais luz, mais ordem, mais paz e mais tranqüilidade.(COMENIUS, 1954, p. 44)
92
Aqui não há como não recorrer à obra de Paulo Freire, quando afirma que
“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre
si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p.68). Possivelmente, Freire está
aprofundando, com mais clareza e entendimento, a postura de Comenius.
Sobre o uso das vias sensoriais para favorecer o processo de aprendizagem,
podemos observar que Comenius deu grande valor à sensibilidade, à percepção.
Segundo Colombo (2006), este educador propunha uma educação natural e sem
violência:
Se observarmos as pegadas da natureza, torna-se evidente que a educação
da juventude se processará facilmente se: começar cedo, antes da corrupção das
inteligências; [...] os espíritos não forem constrangidos a fazer nada mais que aquilo
que desejam fazer espontaneamente, segundo a idade e por efeito do método; [...]
se todas as coisas forem ensinadas, colocando-as imediatamente sob os sentidos e
fazer ver a utilidade imediata [...] (COMENIUS, 1954 )
Ou seja, afirma a importância do uso dos sentidos na educação, pois são
mais diretivos e cognitivos do que a racionalização. Desta forma, entendemos a
importância do trabalho com a arte que prioriza as expressões artísticas do corpo,
que não constranja o espírito, como o próprio Comenius cita, que possibilite a
comunicação entre os sujeitos, que humanize e transforme o oprimido em sujeito
ativo em suas relações com o mundo.
A arte, portanto aproxima e articula a consciência e a práxis. Pode ser o
instrumento humanizador, pois focada no corpo, pode libertar para a consciência
crítica de si mesmo, do ambiente social e político no qual está inserido, atuando
assim nas transformações.
“A arte é o caminho mais curto entre dois homens. O caminho mais curto
porque não comporta a mediação abstrata, impessoal, do conceito e da palavra.”
(GARAUDY, 1980, p. 21) A arte atua no âmago das pessoas, conquista pelas
emoções, expressões, sentimentos que suscita na pessoas; por isso deve ser
trabalhada com objetivos claros, com a consciência de quem busca a transformação
pela conscientização.
Por isto mesmo, Paulo Freire lançou mão das expressões artísticas. Afinal,
tratava-se de libertar corpos oprimidos, interditados de ser, incapazes de tomarem
93
consciência de si e de sua situação de docilização. Acreditava ele que a arte era um
fenômeno de percepção capaz de atuar na consciência das pessoas, indo além da
simples racionalização intelectual. Portanto, a “interdição do corpo inconsciente” é
vencida pela ação libertadora da pedagogia utilizando como instrumento a
expressão artística: corpo em movimento.
94
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa sempre é movida por um querer saber, querer compreender
algo ou alguma coisa desconhecida ou que causa inquietação. E, além disso,
saber percorrer os corretos caminhos que conduzam às novas visões do objeto a
ser estudado. Como diz Santin (2003, p.123), “é diante da dificuldade do
desconhecido que a investigação segue os impulsos da criatividade”.
E, com essa curiosidade, juntamente com esse querer saber, é que
buscamos trilhar caminhos sobre o corpo e as expressões artísticas no
pensamento de autores como Merleau-Ponty, Michel Foucault e, em especial, de
Paulo Freire.
Tentar revelar o lugar ocupado pela arte e por suas expressões por meio
dos textos historiográficos e documentais, somente foi possível apelando para a
compreensão hermenêutica, isto é, para sua interpretação. O “mundo do texto”,
utilizando as palavras de Ricoeur, surge da objetividade da obra aliada à
subjetividade do leitor. Sua significação é percebida pela análise objetiva da obra
aliada à subjetividade do leitor. Sua significação é percebida pela análise objetiva
de seu código e pela apropriação subjetiva do seu conteúdo pelo leitor.
No início da pesquisa questionamos sobre qual o papel das expressões
artísticas no ambiente escolar, e em que sentido poderiam contribuir nos
exercícios de práticas pedagógicas libertadoras, numa perspectiva freireana.
Neste sentido, entendemos que o corpo, enquanto espaço eminentemente
expressivo, foi interditado ao longo de nossa história. Com a preocupação com o
poder, buscou-se desenfreadamente uma disciplinarização dos corpos,
principalmente no espaço escolar. A padronização de gestos, de ações e de
movimentos, tirou a liberdade de se expressar por meio do corpo, destruindo
assim, as capacidades expressivas, inventivas e comunicativas. Esse processo de
adestramento corporal desconsiderou o corpo como sujeito/objeto de arte.
Desvelar os caminhos percorridos pelo corpo, como vimos, não foi tarefa
fácil, pois o mesmo é atravessado por subjetividades e simbolismos. O humano se
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corporifica pelo corpo. E, ao mesmo tempo em que o corpo revela seus aspectos
subjetivos, pode também escondê-los.
Assim, buscamos não só investigar os caminhos do corpo, numa
perspectiva artístico/pedagógica, como também sobre as ambições de governá-lo
e organizá-lo conforme normas pré-estabelecidas, regidas conforme interesses
pessoais ou coletivos.
Isto posto, ao entender que o corpo foi alvo das esferas dominantes da
sociedade, buscamos no pensamento de Michel Foucault esta relação entre corpo
e poder. Entretanto, para compreendê-lo é necessário, primeiramente, dirigir a
atenção a um dos elementos centrais de seus escritos: a modernidade. Por isso,
antes de discutir suas idéias, resgatamos o período da modernidade. Foucault
(2004) propõe que a modernidade é caracterizada como uma anátomo-política do
corpo e por uma bio-política da população. Isto se expressa por intermédio das
disciplinas corporais, que são os procedimentos do poder que assumem o corpo
como máquina e se incubem de seu adestramento e, ao mesmo tempo, da
ampliação de suas aptidões para o trabalho. A docilidade do corpo fabricará
corpos submissos e úteis às exigências alheias. Os mecanismos de controle, ou
as intervenções do poder que regulam toda essa situação de opressão definem
um certo modo de investimento político detalhado do corpo, uma nova “Microfísica
do Poder” (FOUCAULT, 1987).
Tendo então esclarecido questões sobre o corpo e o poder, amparada no
pensamento foucaultiano, encaminhamos as reflexões para as investigações
filosóficas de Maurice Merleau-Ponty, o qual afirma que o corpo possibilita a
relação do ser com o mundo. No pensamento deste autor, encontramos as
possibilidades do corpo de expressar-se, desprendido dos mecanismos de
dominação: o corpo em movimento pode libertar-se das amarras sociais, culturais,
políticas e econômicas. O que se destaca é o corpo em seu aspecto
fenomenológico, perceptivo e expressivo. O corpo do sujeito é sua possibilidade
de estar no mundo, de ver outros corpos, tocá-los, ver outros objetos, enfim,
observá-los, mas quanto ao corpo próprio, isso já não seria possível, porque
precisaria de outro corpo para observá-lo (MERLEAU-PONTY, 1999). Ou seja, o
96
corpo não é objeto, porque está sempre com o sujeito e este é o próprio corpo.
Sente-se corpo, confunde-se com ele, seu ‘eu’ se estende de forma intencional no
mundo. O corpo é reflexionante, superando assim a dualidade cartesiana. Por
meio do corpo é que agimos no mundo, e, ao habitar o espaço, o corpo o assume,
e o corpo que se movimenta conhece o espaço para coexistir com ele.
As reflexões desses dois autores sobre o corpo, guardadas suas diferenças,
nos encaminharam para uma investigação do corpo e suas marcas históricas da
dominação no contexto brasileiro. Inicialmente, pelos colonizadores, e,
posteriormente, pelos grupos sociais privilegiados. Vimos que o corpo da mulher
foi quem mais sofreu com a opressão, pois normalmente era proibido ou limitado
seu acesso a determinados lugares ou a determinados saberes.
Os jesuítas que aqui estabeleceram seus trabalhos pedagógicos de
catequização, tinham o objetivo de propagar a fé católica pelo apego à autoridade.
Essas práticas inibiam a criatividade e qualquer ação criadora dos alunos. Sem
liberdade para criar, eles obrigam-se a aceitar tudo que lhes é transmitido, não
sendo mais senhores de si mesmos. É imposta a visão de mundo segundo os
padrões jesuíticos, e, ao mesmo tempo, uma educação capaz de fazer a
população abandonar as práticas de “devassidão”, ou seja, o corpo necessitava de
domesticação para adequar-se aos modelos europeus. A repressão cultural e
religiosa foi utilizada como forma de docilização da população. Ana Maria Freire,m
lançando mão do pensamento de Paulo Freire expresso em texto referenciado
nesta dissertação, destaca a ideologia da interdição do corpo como justificadora
das diferenças sociais existentes em nossa sociedade. Os que reprimem se
destacam e compõem as elites da sociedade e os reprimidos permanecem alheios,
compondo as esferas mais baixas.
Diante disso, o pensamento de Paulo Freire vem contribuir para estabelecer
as relações entre todas as discussões até então expostas. Este autor contribuiu
com suas idéias acerca do diálogo como libertação, como encontro dos homens
para ser mais. (FREIRE, 1987). O diálogo liberta o corpo por fazendo-o sujeito
capaz de sentir-se participante ativo na construção do mundo. Segundo Freire
(1987, p. 81), “o homem dialógico, que é crítico, sabe que, se o poder de fazer, de
97
criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em
situação concreta, alienados, ter este poder prejudicado.”
Esta possibilidade de fazer, transformar e criar pode constituir-se a partir de
sua conscientização, de sua luta pela liberdade. Sua busca por unir sempre teoria,
valores e prática, nos instigou a relacionar o corpo neste cenário. Assim, o corpo
dócil de Foucault que, na fenomenologia de Merleau-Ponty, ganhou em aspectos
expressivos e perceptivos, agora caminha em busca de sua libertação pela
conscientização através da ação dialógica e educativa.
Corpo este pertencente sempre a uma determinada cultura, conceito este
muito valorizado por Freire em seus Círculos de Cultura, pois ele buscou sempre
esclarecer o analfabeto este conceito, distinguido dois mundos: o da natureza e o
da cultura. Este trabalho freqüentemente era realizado com a utilização de
imagens. A arte se fazia presente neste momento, aguçando os sentidos dos
educandos, auxiliando na construção de significados, na leitura do mundo por uma
obra de arte Ao aprender a ler o mundo através deste diálogo com a arte, os
educandos podem expressar-se por meio da palavra criadora de cultura,
abandonando assim a educação bancária, fortemente criticada por Freire.
Ao fazer a leitura da obra de arte, cada educando criava em sua mente uma
série de pensamentos de acordo com seu repertório pessoal e sua maneira de
viver.
O poder de abstração dos educandos, ao apreciar e fazer a leitura das
imagens, revelou uma capacidade de estabelecer e produzir uma rede de
interpretações muito complexa. Ou seja, a arte usada em favor de uma
funcionalidade pedagógica, mas, ao mesmo tempo, desenvolvendo o olhar
sensível. Dessa maneira, é importante retornar ao pensamento de Merleau-Ponty,
quando afirma que o olhar deve buscar maneiras diferentes de ver o mesmo
objeto. O artista tem o privilégio de ver as coisas com a liberdade que a arte lhe
proporciona, libertando-se de regras e ordem impostas. O corpo sensível à arte
está aberto ao mundo, e nele pode realizar seus sonhos.
A ação dialógica fazendo a ponte entre a arte e a expressão artística a
partir da sua relação com a educação, torna-se mais desafiadora ao resgatar as
98
idéias do educador tcheco, do século XVII, Joan Amos Comenius. Sua produção
cientifica possibilitou relacionar tudo que até então fora tratado e nos auxiliou a
refletir sobre as idéias de Paulo Freire, a arte e o corpo no contexto pedagógico.
Encontramos diversas semelhanças entre o pensamento pedagógico desses dois
educadores. Destacamos aqui a grande importância que Comenius deu ao uso de
imagens em seu livro Orbis Sensualium Pictus, ou o Mundo Sensível por meio das
Imagens, destaca a sensibilidade presente nas imagens, que levará o educando a
sensibilizar-se para o mundo em que vive. Carregadas de sentido existencial,
estas imagens apresentavam o mundo para aqueles que nele viviam. E, a reflexão
sobre o corpo apresentou-se de forma instigante, pois já no início do livro notamos
que não há posturas de superioridade do mestre em relação ao educando. Isso já
demonstra que, conscientemente ou não, houve uma preocupação com o que o
corpo comunica por meio de suas posições. Muitas das imagens também sugerem
o corpo em movimento, ou seja, indo totalmente contra o que temos atualmente
nas escolas, onde as crianças permanecem praticamente imobilizadas em suas
carteiras, em filas. Tudo isso, assemelha-se às fichas utilizadas por Freire,
encomendadas por ele ao artista Francisco Brenand, por reconhecer sua peculiar
maneira de pintar e esculpir. Freire, copiando Comenius, valorizou muito o uso das
vias sensoriais para favorecer o processo de aprendizagem, propondo uma
educação dialógica.
Portanto, a arte como expressão da liberdade pode encontrar no corpo sua
expressão genuína, no ímpeto de libertar os corpos interditados de ser, que por
imposições de outros, tornaram-se incapazes de agir, expressar-se naturalmente.
Corpos dóceis, sem conscientização da sua situação de opressão podem, por
meio de uma educação problematizadora, humanizar-se, transformando o
oprimido em sujeito ativo no mundo em que vive. É o corpo em movimento,
atuando a partir e por meio da arte, em favor de uma ação pedagógica libertadora.
Concluímos nossa pesquisa com essas reflexões, mas acreditamos que ela
não termina aqui, as descobertas e apontamentos nela descritos abrem inúmeras
possibilidades de caminhos a serem trilhados, visto que o espírito crítico,
questionador e criador sempre acompanha o investigador.
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SIMÃO, Giovana Terezinha. Emma Koch e a Implantação das Escolinhas de Arte na Rede Oficial de Ensino: mudanças na cultura escolar curitibana.
Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação, da
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SOARES, Carmen Lúcia (org). Corpo e História. Campinas, SP: Autores
Associados, 2006.
___________. Pesquisas sobre o Corpo: ciências humanas e educação.
Campinas, SP: Autores Associados, 2007
TOLSTÓI, Leon. O que é arte?: a polêmica visão do autor de Guerra e paz. São
Paulo: Ediouro, 2002
VIDAL, Diana Gonçalves. Escola Nova e Processo Educativo. In: LOPES, E. M. T.;
107
FARIA FILHO, L. M.; VEIGA, C. G. Quinhentos anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
VILLAÇA, Nízia; GÓES, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998
ANEXO A - LISTA FOTOGRÁFICA DAS PINTURAS
:: Série Paulo Freire
Total de Obras obras| 10
SériePaulo Freire
1 2
3 4
5 6
[Lista fotográfica das Pinturas]Série
Paulo Freire
7
8
9 10
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