PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Fourpome Brando
ANÁLISE DA ATIVIDADE DOCENTE: EM BUSCA DOS SENTIDOS E
SIGNIFICADOS CONSTITUÍDOS PELO PROFESSOR ACERCA DAS
“DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”
Doutorado em Educação: Psicologia da Educação
São Paulo
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Fourpome Brando
ANÁLISE DA ATIVIDADE DOCENTE: EM BUSCA DOS SENTIDOS E
SIGNIFICADOS CONSTITUÍDOS PELO PROFESSOR ACERCA DAS
“DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”
Doutorado em Educação: Psicologia da Educação
São Paulo
2012
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Educação: Psicologia da Educação sob a orientação do Prof. Dra. Cláudia Leme Ferreira Davis
BANCA EXAMINADORA
A função da arte
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o
mar. Viajaram para o sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito
caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu
fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!
(Eduardo Galeano)
Dedico esta tese a minha mãe,
a mulher mais corajosa que já conheci.
Por me ajudar a olhar.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos os que contribuíram, direta ou indiretamente, para a realização desta
pesquisa. Nada teria sido possível sem a ajuda, o apoio, as lições e a presença de cada uma
dessas pessoas. E cada uma delas, de seu jeito particular, foi fundamental ao longo do
processo. Expresso, aqui, minha profunda gratidão:
À minha querida orientadora e amiga Cláudia Davis, a quem agradeço profundamente
por ter tido o privilégio de conviver e trabalhar durante tantos anos. Pelo apoio, pela
colaboração e pela compreensão. Pelas lições, pelo respeito, pelas broncas e pelo carinho.
Impossível descrever o quanto me ensinou, em todas as áreas da vida. Impossível agradecer o
suficiente...
À Ia, por ser um exemplo de professora maravilhosa, pesquisadora rigorosa e amiga
fiel. Agradeço por todos os ensinamentos (não só os teóricos e metodológicos) ao longo do
mestrado e do doutorado, que permanecerão por toda a vida.
À professora Maria Vilani Cosme de Carvalho, pelas contribuições teóricas e
metodológicas fundamentais, elaboradas de forma tão precisa, atenciosa e esclarecedora no
momento da qualificação. E por aceitar o convite para participar da banca de defesa.
À professora Marisa Eugenio Melillo Meira, por ter despertado em mim, desde a
faculdade, a paixão pela Psicologia da Educação. Por ter me proporcionado uma base teórica
crítica, por ter guiado meus passos nas primeiras experiências na área e por ter aceitado,
carinhosamente, fazer parte da banca de defesa.
À professora Ana Mercês Bahia Bock, pelos importantes ensinamentos ao longo da
pós-graduação e por participar da banca de defesa.
Ao professor Sérgio Vasconcelos Luna, por ter marcado de forma indelével minha
formação acadêmica e profissional. Por ter me ensinado, paciente e rigorosamente, os
fundamentos metodológicos necessários ao delineamento de uma boa pesquisa científica.
À professora Mitsuko Aparecida Makino Antunes, pelas importantes e variadas
contribuições a minha formação acadêmica.
Ao querido colega, amigo, e agora doutor, Julio Ribeiro Soares, pelas inúmeras
contribuições à realização desta pesquisa.
Aos colegas e parceiros de trabalho, que se tornaram também bons amigos, e com os
quais muito aprendi: Nilson Berenchtein Netto, Vivian Rachman, Virginia Machado.
Aos professores da Unesp Bauru, que me presentearam com uma excelente formação,
especialmente em Psicologia Sócio-Histórica, e mudaram para sempre minha concepção de
homem e mundo.
A minha mãe, por ser a melhor e mais maravilhosa do mundo. Por ter despertado e
alimentado, em mim, a paixão pelo conhecimento. Sem ela, nada seria possível.
À Domitila Miranda, minha irmã, não de sangue, mas para sempre. Pela parceria, pelo
companheirismo, pelo apoio e amor incondicional.
À Marília Facco, por ser, além de companheira de trabalho, amiga para a vida toda.
Por seu ânimo contagiante e sua presença constante.
Ao querido amigo Roberto Vieira, pelo companheirismo, pela sinceridade e por
compartilhar as alegrias e angústias, sempre.
Ao amigo e parceiro Marcel Mitsuto, por estar sempre presente e por jamais
abandonar um amigo.
Ao meu amor, Peter Grabher, por ter aparecido na hora certa e por ter me ajudado a
cada minuto desde então.
Às minhas amigas/irmãs, Janaína Macena, Maria Otávia Crepaldi e Alnilan Terreri.
Por estarem ao meu lado em todos os momentos, apesar da distância.
Aos meus amigos/irmãos, que fizeram do doutorado um período leve e divertido:
Pedro Radwansky, Gabriel Franco, Domingos Meira.
Ao Edson, secretário do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Educação, que
tanto me ajudou ao longo desses anos. E às antigas secretárias Irene e Helena, que tanto me
ajudaram antes dele.
À professora participante da pesquisa, pelo papel fundamental que aqui desempenhou,
de muitas formas. Pelo tempo dedicado, pela paciência, pela vontade contínua de melhorar o
que já está ótimo. Por ser um exemplo de que é possível ensinar muito bem a todos os alunos,
mesmo em condições adversas. Por ter não só me ajudado, mas me ensinado muito. E por ter
se tornado uma boa amiga.
À toda a equipe da escola na qual se realizou esta pesquisa: a coordenadora
pedagógica, a diretora, todo o corpo docente e também aos funcionários e merendeiras, por
terem me recebido tão bem na escola e por terem me ajudado tanto, criando um clima de
colaboração e amizade.
À professora convidada a participar da autoconfrontação cruzada, pela presença e
disponibilidade.
À equipe do Procad, pelas diversas contribuições metodológicas e oportunidades de
aprendizado.
À Fernanda, pela revisão ágil e cuidadosa deste texto.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação, por ter me
recebido de braços abertos. Pelo apoio e pela contribuição inestimáveis ao longo desses anos.
À PUC e ao CNPq, por possibilitarem minha dedicação integral aos meus estudos pós-
graduados e ao desenvolvimento desta pesquisa.
RESUMO
O objetivo da presente pesquisa foi investigar os sentidos e os significados constituídos por
uma professora acerca das “dificuldades de aprendizagem”. O referencial teórico e
metodológico adotado foi o da Psicologia Sócio-Histórica, assim como o da Clínica da
Atividade. O sujeito da pesquisa foi uma professora do primeiro ano do ciclo I do Ensino
Fundamental. A coleta de dados envolveu a utilização de técnicas distintas: observações e
filmagens das aulas ministradas pela professora; seleção de trechos filmados e editados –
episódios curtos – para ilustrar aspectos da atividade docente relativos às “dificuldades de
aprendizagem”; entrevistas com a professora buscando aprofundar questões relacionadas a
sua atividade; sessões de autoconfrontação simples (ACS) e cruzada (ACC), nas quais a
professora assistia e analisava episódios sobre sua atuação em sala de aula sozinha e/ou
acompanhada. As sessões de autoconfrontação foram filmadas e transcritas. A partir desse
material e daquele coletado na entrevista, foram empregados os procedimentos propostos por
Aguiar e Ozella (2006) para se alcançar núcleos de significação. A análise dos núcleos
indicou que os sentidos e os significados constituídos pela professora acerca das “dificuldades
de aprendizagem” articulavam-se, na constituição de sua subjetividade, de um lado à
importância da práxis na oferta de uma atividade docente de boa qualidade, capaz de atender
às necessidades dos alunos com diferentes ritmos de aprendizagem e, de outro, à centralidade
das relações profissionais para que isso viesse a ocorrer. Verificou-se, ainda, que a passagem
pelo processo de observação e análise da própria atividade, ao converter a professora em uma
observadora de si mesma durante a atuação profissional, proporcionou-lhe o necessário
distanciamento crítico para perceber, nela, problemas que, na e pela discussão com a
pesquisadora, parecem ter ensejado oportunidades para ressignificar sua própria atividade
docente.
Palavras-chave: Atividade docente, sentidos e significados, dificuldades de aprendizagem.
ABSTRACT
The objective of this research was to investigate the senses and meanings constituted by a
teacher about the "learning difficulties" of her pupils. The theoretical and methodological
framework adopted was that of the sociocultural approach in Psychology, as well as the one
proposed by the Clinical Activity. The research subject was a first-grade teacher, teaching the
first year of basic schooling. Data collection involved the use of different techniques: a)
observations and video recordings of classes taught by the teacher; b) selection of excerpts
filmed and edited - short episodes - in order to illustrate teaching aspects related to the
"learning difficulties"; c) interviews with the teacher, seeking to go deeply into issues related
to her professional activity; d) sessions of simple self-confrontation (ACS) and crossed-
confrontation (ACC), in which the teacher, alone and/or monitored, watched and analyzed
episodes in which she was teaching her students. The self-confrontation sessions were
videotaped and transcribed. From this material and the one collected by the interview, it was
adopted the procedures proposed by Aguiar and Ozella (2006) to reach nuclei of meaning.
The core analysis indicated that the senses and meanings constituted by the teacher about the
"learning difficulties" of her students were articulated, first, to the importance of the
pedagogical practice in providing a good quality of teaching activity, one capable of meeting
the needs of students with different learning paces; and, second, to the fact that this will only
occur through professional relationships. Going deep in the observation and analysis of one’s
own activity, making the teacher an observer of herself during the professional activity,
provided her with the necessary critical distance to see problems in it that by and via
discussion with the researcher, provided opportunities to transform her teaching.
Keywords: teaching activity, senses and meanings, learning difficulties, sociocultural
approach in Psychology.
RESUMÉ
L'objectif de cette recherche était d'étudier les significations faites par une enseignante sur les
"difficultés d'apprentissage" de leurs élèves. Le cadre théorique et méthodologique adopté est
celui de la psychologie socio-historique, ainsi que de la clinique d’activité. Le sujet a enseigné
a la 1ére année du premier cycle de l'enseignement primaire. La collecte de données
comportait l'utilisation de différentes techniques: observations et enregistrements vidéo de
classes de classe donné aux enseignées, la sélection d'extraits filmés et édités - épisodes courts
- pour illustrer les aspects de l'enseignement se rapportant à des difficultés d'apprentissage,
des entretiens avec l'enseignant qui cherchent à s’ approfondir sur des questions liées à leur
activité; sessions de autoconfrontation simple (ACS) et croisés (ACC), auxquelles
l'enseignant - seul et/ou accompagné- regarde et analyse des épisodes de leur salle de classe.
Les sessions d'auto-confrontation ont été filmées et transcrites. A partir de ces matériaux et,
aussi, de ceux obtenus lors des inteviews, ont eté utilisées les procédures proposées par
Aguiar et Ozella (2006), pour atteindre des noyaux de sens. L'analyse de base a indiquée que
les significations faites par l'enseignante sur les «difficultés d'apprentissage» de ses étudiants
ont été articulées, dans la constitution de sa subjectivité, à l'importance accordée a la pratique
en vue de fournir une bonne qualité des activités d'enseignement, capable de satisfaire aussi
bien aux besoins des élèves ayant des rythmes d'apprentissage différents et qu’a la centralité
des relations professionnelles. En outre, il a été également constaté que vivre le processus
d'observation et d'analyse de l'activité, en faisant de l'enseignant un observateur au cours de
son activité professionnelle, a donné à l'enseignant la distance critique nécessaire pour voir,
lui même, des problèmes qui, dans et à travers de la discussion avec le chercheur, semblent
avoir procurer des possibilités de transformer son propre enseignement.
Mots-clés: activité d'enseignement, senses et significations, difficultés d'apprentissage,
Psychology Socioculturel.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 15
CAPÍTULO I
AS “DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”.......................................................... 19
CAPÍTULO II
REFERENCIAL TEÓRICO ......................................................................................... 36
PSICOLOGIA SÓCIO-HISTÓRICA ...................................................................... 36
1.1 Atividade ........................................................................................................ 39
1.2 Consciência .................................................................................................... 42
1.3 Mediação ........................................................................................................ 44
1.4 Pensamento e linguagem .............................................................................. 47
1.5 Sentido e significado ...................................................................................... 50
1
1.6 Subjetividade .................................................................................................. 53
2 CATEGORIAS CENTRAIS DA CLÍNICA DA ATIVIDADE .............................. 55
CAPÍTULO III
MÉTODO ........................................................................................................................ 63
1 PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS ................................................................. 63
1.1 Psicologia Sócio-Histórica ............................................................................. 63
1.2 Clínica da Atividade ....................................................................................... 66
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................. 69
2.1 Local ............................................................................................................... 69
2.2 Sujeito ............................................................................................................ 71
2.3 Técnicas de levantamento de dados ............................................................... 71
2.3.1 Observação .......................................................................................... 72
2.3.2 Entrevistas ........................................................................................... 73
Autoconfrontações .............................................................................. 75
Edição dos episódios ................................................................. 75
Autoconfrontação simples ........................................................ 77
2.3.3
Autoconfrontação cruzada ........................................................ 78
2.4 Procedimentos de análise dos dados ............................................................. 79
CAPÍTULO IV
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS ........................................................... 83
1 A ESCOLA .............................................................................................................. 83
2 A PROFESSORA .................................................................................................... 85
3 NÚCLEOS DE SIGNIFICAÇÃO ........................................................................... 87
3.1 Núcleo de significação 1 – A importância da teoria como suporte para a prática pedagógica: “tudo que eu aprendo, eu procuro colocar na sala de aula” ...............................................................................................................
90
3.2 Núcleo de significação 2 – “Preciso pensar primeiro nos que têm mais dificuldade” ....................................................................................................
98
3.3 Núcleo de significação 3 – Atividade docente: “Eu invisto muito no trabalho em grupo, porque no grupo tem sempre alguém que está um pouco mais na frente” ................................................................................................
109
3.4 Núcleo de significação 4 – Relações institucionais mediadoras da atividade docente: “Tem gente que tem medo, então não quer mudar” .........................
123
3.5 Núcleo de significação 5 – Reflexões sobre a prática após a AC: “Eu poderia ter...” ..................................................................................................
129
3.6 Análise internúcleos ....................................................................................... 137
CAPÍTULO V
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 147
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 154
ANEXOS
1 PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA PUC-SP ..................... 166
2 TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA COM A PROFESSORA ............................. 167
3 TRANSCRIÇÃO DA AUTOCONFRONTAÇÃO SIMPLES ................................ 178
4 TRANSCRIÇÃO DA AUTOCONFRONTAÇÃO CRUZADA ............................. 193
5 QUADROS DE PRÉ INDICADORES E INDICADORES PROVENIENTES DA ENTREVISTA .................................................................................................. 197
6 QUADROS DE PRÉ INDICADORES E INDICADORES PROVENIENTES DA AUTOCONFRONTAÇÃO SIMPLES ............................................................. 226
7 QUADROS DE PRÉ INDICADORES E INDICADORES PROVENIENTES DA AUTOCONFRONTAÇÃO CRUZADA .......................................................... 253
15
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa buscou investigar os sentidos e os significados constituídos por uma
professora acerca das “dificuldades de aprendizagem”. O interesse por esse tema foi
despertado por dois motivos principais – ambos relacionados à história de vida da
pesquisadora. O primeiro deles surgiu do contato bastante próximo com uma criança que foi,
desde tenra idade, estigmatizada como portadora de “dificuldades de aprendizagem”. Essa
criança, entretanto, sempre se mostrou extremamente inteligente e capaz de aprender, desde
que o conteúdo a ser aprendido lhe causasse interesse. Assim, seu problema nunca foi
“dificuldade para aprender”, mas sim falta de um bom motivo para se submeter às normas
escolares e aos conteúdos curriculares.
O segundo elemento que estimulou a curiosidade acerca do fenômeno das
“dificuldades de aprendizagem” surgiu em decorrência da realização de dois estágios
profissionais durante a formação em Psicologia. Um desses estágios, na área de Psicologia
Escolar, tratava diretamente de temas relacionados à aprendizagem, apresentando uma série
de questões bastante interessantes acerca da relação ensino-aprendizagem. O outro não
apresentava, à primeira vista, nenhuma relação com a questão das “dificuldades de
aprendizagem”. Este foi realizado em um hospital público, no qual a pesquisadora era
responsável por realizar a triagem de todos os casos encaminhados aos atendimentos
psicológicos oferecidos pelo hospital, determinando para qual tipo de terapia cada paciente
seria encaminhado. O fato surpreendente no decorrer desse estágio foi perceber que a queixa
mais comum para atendimento psicológico de crianças era relacionada às “dificuldades de
aprendizagem”. Essa realidade encontrada no serviço público de saúde produziu uma
profunda inquietação em relação à questão das dificuldades na relação ensino-aprendizagem,
de modo que, ao delimitar um problema de pesquisa a ser investigado no doutorado, tomou-se
a decisão de direcionar a pesquisa para essa questão.
A fim de investigar os sentidos e os significados atribuídos pelos professores às
“dificuldades de aprendizagem”, partiu-se da metodologia desenvolvida por Aguiar e Ozella
(2006), denominada “Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da
constituição dos sentidos”. Para estudar as articulações de tais sentidos e significados com a
atividade docente, foram empregadas também as técnicas da autoconfrontação simples e
cruzada, conforme a proposta da Clínica da Atividade, desenvolvida por Clot (2001) e seus
colaboradores.
16
O interesse por tal abordagem metodológica teve início ainda durante o processo de
definição do projeto de mestrado, cuja ideia inicial consistia em investigar, segundo o método
da Clínica da Atividade, os impedimentos subjetivos dos professores que ministram aulas de
Orientação Sexual. Tal investigação se realizaria de acordo com a proposta metodológica de
Yves Clot (2001) – a autoconfrontação simples e cruzada dos registros da atividade – pois se
considerou que essa proposta poderia responder aos objetivos da investigação científica e, ao
mesmo tempo, constituir um importante instrumento de formação docente para os
profissionais que dela participavam.
Entretanto, durante a realização da pesquisa de mestrado, diversos fatores
impossibilitaram a utilização do método completo, e apenas seus pressupostos teórico-
metodológicos foram empregados na coleta e na análise dos dados. O método foi adaptado de
acordo com as condições reais de tempo, material e número de sujeitos disponíveis. Ainda
assim, a análise – empreendida à luz do referencial teórico da Psicologia Sócio-Histórica e da
Clínica da Atividade – dos dados levantados por meio de observação, filmagem e entrevista
forneceu resultados relevantes e bastante interessantes acerca do problema levantado e
despertou ainda mais o interesse em aprofundar certos temas da investigação, tanto em
relação a aspectos da atividade docente quanto no que concerne ao método proposto por Clot.
O interesse provocado pelo método em questão não é, de forma alguma, individual:
existe um grupo de alunos e professores que tem buscado sistematicamente aprofundar seu
conhecimento teórico sobre a proposta de Clot, desenvolvendo pesquisas que pretendem
contribuir para a compreensão tanto do objeto de investigação de cada pesquisa quanto das
implicações metodológicas de tal abordagem. Assim, o presente trabalho faz parte de um
Projeto de Cooperação Acadêmica (Procad), que reúne pesquisadores de três universidades,
vinculados aos seguintes programas: Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira
(Ufal), Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro.
O eixo temático comum às atividades de ensino, pesquisa e formação docente
desenvolvidas no âmago desse amplo projeto é a atividade docente. Os pesquisadores
envolvidos têm se dedicado à realização de pesquisas que, pautadas pela proposta
metodológica de Clot e pelos princípios do Materialismo Histórico e Dialético, buscam
responder a diferentes aspectos constitutivos da atividade docente. As três principais
perguntas que têm norteado as investigações são: a) Como se configura, para o professor, o
17
trabalho docente? b) Quais são os sentidos e os significados que o professor atribui ao
trabalho docente e como eles se articulam na constituição de sua subjetividade docente? c)
Como se dá a dinâmica do desenvolvimento profissional em cada professor que participa do
estudo e no conjunto de professores investigados, a partir da observação e análise da prática
docente? (PROCAD, 2008, p. 10).
Partindo das questões levantadas acima, na presente pesquisa foram empregadas as
técnicas de autoconfrontação simples e cruzada com o intuito de aprofundar a investigação
acerca da atividade docente, principalmente no que se refere aos sentidos e significados
constituídos pelos professores acerca de sua atividade. Mais especificamente, buscou-se
investigar os sentidos e significados constituídos pelos professores acerca das “dificuldades
de aprendizagem” dos alunos e como tais elementos subjetivos se articulam com a atividade
docente.
Esta pesquisa assumiu a hipótese de que a proposta de Clot para investigação e estudo
da atividade pode auxiliar a formação docente continuada e também a inicial1. Assim, este
trabalho também objetivou verificar se a passagem pelo processo de observação e análise da
própria atividade – conforme a proposta da autoconfrontação – pode acarretar o
desenvolvimento da atividade profissional dos participantes, aumentando seu poder de
reflexão e ação sobre a própria atividade, ou provocar uma ressignificação dos sentidos e
significados que atribuem a sua profissão.
Desse modo, o objetivo principal foi aprofundar a compreensão acerca dos sentidos e
significados atribuídos por uma professora às “dificuldades de aprendizagem”, ao passo que
os objetivos específicos foram: 1) investigar como esses sentidos se articulavam em sua
atividade docente; 2) compreender como se dava a relação pedagógica entre a professora e os
alunos que, segundo a própria professora, apresentavam alguma “dificuldade de
aprendizagem”; 3) averiguar se a experiência de analisar aspectos da própria atividade
docente durante o processo de autoconfrontação provocaria ressignificações e/ou mudanças
em sua atuação em sala de aula, geradas por um aumento de seu poder de reflexão e ação no
decorrer da atuação profissional.
A relevância da pesquisa repousa na possibilidade de construção de conhecimentos na
área da Educação, mais especificamente na Psicologia da Educação, tanto no que se refere à
compreensão dos sentidos e significados constituídos pelos professores acerca das
“dificuldades de aprendizagem” quanto no que concerne à construção e ao desenvolvimento 1 Na formação inicial, a autoconfrontação poderia ser empregada mediante transformação dos episódios em animações a serem discutidas em sala de aula com os futuros docentes.
18
de novas ferramentas de formação docente por meio da maior compreensão da atividade
profissional.
A pesquisa está organizada em cinco capítulos. O primeiro deles traz uma breve
revisão de literatura sobre a questão das “dificuldades de aprendizagem”, na qual se discutem
as principais concepções sobre o tema e delimita-se a perspectiva adotada na presente
pesquisa.
O segundo capítulo expõe os fundamentos teóricos que nortearam todo o processo de
investigação e encontra-se dividido em duas partes. A primeira apresenta algumas categorias
fundamentais da Psicologia Sócio-Histórica. A segunda trata dos principais conceitos
desenvolvidos pela Clínica da Atividade.
O terceiro capítulo discute os pressupostos metodológicos que embasam o estudo,
além de trazer aspectos relativos ao método empregado, tais como os procedimentos de coleta
e a análise de dados.
No quarto capítulo, são descritos e analisados os dados encontrados, os quais são
dispostos da seguinte maneira: inicialmente, são apresentados alguns aspectos de
caracterização da escola e da professora participante da pesquisa. Em seguida, procede-se à
análise de cada núcleo de significação, ou seja, a análise intranúcleos. Finalmente, os núcleos
são articulados entre si, configurando a análise internúcleos.
A apresentação da pesquisa se encerra com o quinto capítulo, no qual se encontram as
considerações finais.
19
CAPÍTULO I
AS “DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”
Se os distúrbios de aprendizagem são mito, os distúrbios do processo
ensino-aprendizagem são reais. (Moysés)
A expressão “dificuldades de aprendizagem” abrange numerosas definições,
apresentando uma heterogeneidade de conceitos que incluem aspectos passíveis de afetar o
desempenho acadêmico (FONSECA, 1995; DIAS; ENUMO, 2006). Diante de tantas
definições, Fonseca constata que a proposta pelo National Joint Committee on Learning
Disabilities (NJCLD) é a mais amplamente empregada, por dar ênfase à importância atribuída
às habilidades acadêmicas: “dificuldades de aprendizagem” (DA) é um termo geral que se
refere a um grupo heterogêneo de transtornos que se manifestam por dificuldades
significativas na aquisição e uso da escuta, da fala, leitura, escrita, raciocínio ou habilidades
matemáticas.” (FONSECA, 1995, p. 71).
Essa conceituação de “dificuldade de aprendizagem”, entendida como transtorno ou
distúrbio, é extremamente comum e pode ser encontrada em diversos artigos científicos sobre
o tema (MACEDO et al., 2004; RODRIGUES et al., 2006; MARINI; DEPIATTI, 2010). O
termo consta, inclusive, da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e do Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM – IV), de 1995, em sua apresentação
acerca dos critérios diagnósticos para os transtornos da aprendizagem:
[...] são diagnosticados quando os resultados do indivíduo em testes padronizados e individualmente administrados de leitura, matemática ou expressão escrita estão substancialmente abaixo do esperado para sua idade, escolarização e nível de inteligência. Os problemas de aprendizagem interferem significativamente no rendimento escolar ou nas atividades da vida diária que exigem habilidades de leitura, matemática ou escrita. (DSM – IV, 1995, p. 299). [...] A característica essencial do Transtorno da Leitura consiste em um rendimento da leitura (isto é, correção, velocidade ou compreensão da leitura, medidas por testes padronizados administrados individualmente) substancialmente inferior ao esperado para a idade cronológica, a inteligência medida e a escolaridade do indivíduo (Critério A). A perturbação da leitura interfere significativamente no rendimento escolar ou em atividades da vida cotidiana que exigem habilidades de leitura (Critério B). (DSM – IV, 1995, p. 312). [...] A característica essencial do Transtorno da Matemática consiste em uma capacidade para a realização de operações aritméticas (medida por testes padronizados, individualmente administrados, de cálculo e raciocínio matemático) acentuadamente abaixo da esperada para a idade cronológica, a
20
inteligência medida e a escolaridade do indivíduo (Critério A). A perturbação na matemática interfere significativamente no rendimento escolar ou em atividades da vida diária que exigem habilidades matemáticas (Critério B). (DSM – IV, 1995, p. 328). [...] A característica diagnóstica essencial do Transtorno da Expressão Escrita consiste de habilidades de escrita (medidas por um teste padronizado individualmente administrado ou avaliação funcional das habilidades de escrita) acentuadamente abaixo do nível esperado, considerando a idade cronológica, a inteligência medida e a escolaridade apropriada à idade do indivíduo (Critério A). A perturbação na expressão escrita interfere significativamente no rendimento escolar ou nas atividades da vida diária que exigem habilidades de escrita (Critério B). (DSM – IV, 1995, p. 340).
Collares e Moysés (1992) apresentam uma contundente crítica à compreensão das
“dificuldades de aprendizagem” como transtorno ou distúrbio. De acordo com as autoras, o
termo distúrbio, do ponto de vista etimológico, compõe-se do radical turbare, que significa
“alteração violenta na ordem natural” e do prefixo dis, que expressa “alteração com sentido
anormal, patológico”. Assim, essa palavra pode ser compreendida como “anormalidade
patológica por alteração violenta na ordem natural”. Segundo as autoras, seguindo a mesma
perspectiva etimológica, a expressão distúrbios de aprendizagem significaria “anormalidade
patológica por alteração violenta na ordem natural da aprendizagem”. Nesse sentido, um
distúrbio de aprendizagem remeteria a uma doença que acomete o aluno em nível orgânico e
individual. A utilização do termo distúrbio apresenta-se, portanto, como um reflexo do
processo de medicalização ou patologização da aprendizagem, conforme será explicitado
mais adiante.
Maia (2007) propõe uma problematização dos termos e conceitos empregados na
discussão das “dificuldades de aprendizagem”. De acordo com a autora, os termos
“dificuldade”, “transtorno”, “problema” e “distúrbio” são empregados indiscriminadamente,
às vezes com o mesmo significado, para conceituar as causas do não aprendizado. No entanto,
afirma que é importante problematizar esses termos, pois “a forma que utilizamos para nos
referir aos problemas, dificuldades, distúrbios ou transtornos de aprendizagem nos localiza
epistemológica e paradigmamente.” (MAIA, 2007, p. 3). De acordo com o dicionário Houaiss
(2001), os termos são assim definidos:
dificuldade s.f. 1. O que é difícil 2. obstáculo 3. complexidade 4. situação aflitiva (p.142). distúrbio s.m 1. perturbação 2. Doença (p. 146). problema s.m. 1. algo de difícil solução ou explicação 2. situação difícil 3. questão matemática para ser solucionada 4. distúrbio orgânico ou físico (p. 357) transtorno s.m. 1. desordem, desorganização 2. situação incômoda 3. contrariedade, decepção (p. 437).
21
Com base nessa definição e no referencial teórico de autores como França (1996) e
Collares e Moysés (1992) – Maia (2007) aponta que, quando se utilizam os termos
“distúrbio”, “problema” ou “transtorno”, geralmente se trata de uma concepção tradicional de
aprendizagem, pois se localiza no sujeito o não aprender, determinado por fatores físicos,
orgânicos ou emocionais. Ao passo que, para a autora, o termo “dificuldade” relaciona-se não
apenas ao aluno mas também às questões sociais, culturais e econômicas de seu entorno,
incluindo-se aí o fazer pedagógico do professor.
Adotando uma perspectiva piagetiana, Miranda (2005) esclarece que, usualmente, são
considerados alunos com “dificuldades de aprendizagem” aqueles que apresentam: a)
problemas em relação à leitura e/ou à escrita e/ou à matemática, que lhes impedem de
acompanhar o ritmo dos colegas e de se apropriar dos conteúdos básicos das disciplinas
escolares; b) desinteresse pelas explicações dos professores e pelas atividades didáticas,
podendo demonstrar um histórico de múltiplas reprovações; c) comportamentos agressivos
com relativa frequência, assim como pouca (ou nenhuma) autonomia em atividades
acadêmicas; d) desenvolvimento intelectual que, em linhas gerais, se encontra aquém do
esperado. Fica claro, assim, que a classificação do aluno como um indivíduo que apresenta
“dificuldades de aprendizagem” se baseia em critérios que pressupõem heterogeneidade,
linearidade e regularidade no processo de ensino-aprendizagem, desconsiderando as
diferenças entre os indivíduos e as muitas formas do aprender. Miranda (2005, p. 9) critica
esse tipo de classificação, ao afirmar que: A atribuição aos alunos desse tipo de classificação, quando comum entre os professores, estabelece um parâmetro de normalidade almejado na avaliação, ao mesmo tempo em que, ao ressaltar as dificuldades, bloqueia as capacidades: desconsidera o potencial e a plasticidade do processo de aprendizagem. Isso significa rejeitar a possibilidade de modificar as condições do aprender, de forma a viabilizar o desenvolvimento do sujeito.
Ao apresentar um estado da arte sobre as pesquisas acerca do fracasso escolar
realizadas no período de 1991 a 2002, Patto 2 (2004) aponta que há, nelas, quatro principais
concepções. Cada uma delas adota um enfoque distinto sobre as causas das “dificuldades de
aprendizagem”, que ora são vistas como algo: a) próprio dos aprendizes, ou seja, a dificuldade
é entendida como um problema essencialmente psíquico; b) inerente aos professores, de modo
2 A autora centrou sua discussão na questão do fracasso escolar. Nesta pesquisa, compreende-se este conceito como equivalente às dificuldades de aprendizagem, considerando que, na definição apresentada por Miranda (2005), as dificuldades de aprendizagem são caracterizadas pelos mesmos elementos apontados por Patto na década de 1980.
22
que a dificuldade constitui um problema meramente técnico; c) constituído nas relações
institucionais; d) gerado pelo sistema sociopolítico.
A primeira dessas concepções caracteriza as “dificuldades de aprendizagem” como
dificuldades do aprendiz, ou seja, localiza no sujeito a causa do problema e acaba por
culpabilizar, de diferentes formas, tanto o aluno quanto sua família. A culpabilização pode
ocorrer quando se busca atribuir as “dificuldades de aprendizagem” a problemas psíquicos ou
emocionais do aluno, a problemas familiares, à pobreza, à carência cultural ou a transtornos
médicos. Esse tipo de concepção está presente em boa parte das pesquisas relativas ao tema.
Podem-se citar estudos que relacionam as “dificuldades de aprendizagem” às “alterações
cognitivas em escolares de classe desfavorecida” (MACEDO et al., 2004); “ao baixo
autoconceito” (STEVANATO et al., 2003, CARNEIRO et al., 2003); “ao baixo peso ao
nascer” (RODRIGUES et al., 2006); “ao suporte parental” (BACARJI et al., 2005), todos
constituindo claros exemplos de atribuição das causas das dificuldades aos alunos e/ou a suas
famílias.
Pesquisas realizadas entre professores apontam na mesma direção dos resultados
elencados por Patto (2004). Segundo Martini e Del Prette (2002), em estudo sobre as causas
do sucesso e do fracasso escolar, os aspectos considerados pelos docentes como principais
determinantes do mau desempenho dos alunos foram a falta de capacidade do aluno, as
características emocionais e a ausência de esforço. É interessante ressaltar que, em relação ao
bom desempenho dos alunos, os professores atribuíram sua causa não só às características
individuais dos escolares mas também à ajuda do professor. Outras investigações conduzidas
entre professores obtiveram resultados que vão ao encontro dos anteriormente apresentados.
Ao estudarem as atribuições de causalidade por parte de professores de escolas públicas
quanto ao desempenho escolar dos alunos, Gama e Jesus (1994) verificaram que, para o
fracasso escolar, as causas recaem, principalmente, nos indivíduos: os alunos e sua família
(especialmente o interesse, o esforço e as condições econômicas).
Em pesquisas semelhantes, Maluf e Bardelli (1991) e Neves e Almeida (1996)
indicaram que professoras do ensino fundamental geralmente atribuem o mau rendimento
escolar de seus alunos a problemas de saúde e a causas familiares. Patto (2004) revela que
uma das concepções mais comuns acerca das “dificuldades de aprendizagem” é a que parte do
princípio de que elas se devem a prejuízos no desempenho intelectual dos alunos, em
decorrência de problemas emocionais: “Entende-se que a criança é portadora de uma
organização psíquica imatura, que resulta em ansiedade, dificuldade de atenção, dependência,
23
agressividade etc., que causam, por sua vez, problemas psicomotores e inibição intelectual
que prejudicam a aprendizagem escolar.” (PATTO, 2004, p. 60).
Dentre as variadas pesquisas acerca das “dificuldades de aprendizagem”, todas elas
apoiadas em perspectivas desse tipo, pode-se citar o exemplo de Fernández (1991), que
descreve as “dificuldades de aprendizagem” como sintomas ou “fraturas” no processo de
aprendizagem. De acordo com a autora, a dificuldade para aprender seria o resultado da
anulação das capacidades e do bloqueio das possibilidades de aprendizagem de um indivíduo,
algo que pode ter sua origem em fatores externos – a exemplo da estrutura familiar – ou
internos, como a estrutura psíquica individual. Assim, ela considera as “dificuldades de
aprendizagem” como sintomas de uma estrutura psíquica que leva ao desejo inconsciente de
não conhecer e, portanto, de não aprender.
Nesse tipo de abordagem, as “dificuldades de aprendizagem” são estudadas sem que
se considerem a escola, suas condições concretas e suas implicações para a produção do
fracasso escolar. Estuda-se a questão apenas sob a perspectiva “interna” ou subjetiva do
aluno, na qual não se articulam as dimensões sociais, culturais e econômicas envolvidas.
Assim, “isola-se o aluno que ‘não aprende’ da escola que o ensina” (PATTO, 2004, p. 60).
Essa instituição é concebida, de maneira idealizada, como o lugar que possibilita o
desenvolvimento e a aprendizagem de seus alunos, competindo a estes adaptar-se ao ambiente
escolar. A autora afirma, ainda, que “no interior de uma concepção de normalidade como
adaptação, o não ajustamento à escola ou a insatisfação com as características do ambiente
escolar, são considerados como incapacidade individual de orientar-se pelo princípio de
realidade.” (PATTO, 2004, p. 60).
A fim de garantir o ajustamento do aluno a um conceito de normalidade e linearidade
previamente estabelecido, recorre-se, cada vez mais, a explicações e tratamentos pautados
pela perspectiva médica das “dificuldades de aprendizagem”. Esse processo é denominado
medicalização, de acordo com Collares e Moysés (1994, p. 25):
Medicalização refere-se ao processo de transformar questões não médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo.
24
As autoras argumentam que a medicalização ocorre em escala crescente,
representando franca biologização dos conflitos sociais. O processo de medicalização do
ensino pode ser percebido pelo número cada vez mais alto – e, por isso, alarmante – de
crianças diagnosticadas como portadoras de transtornos relacionados à aprendizagem, tais
como dislexia e transtorno de hiperatividade e déficit de atenção (TDHA). Por meio de
mecanismos ideológicos, recorre-se ao reducionismo biológico, segundo o qual a situação de
vida de indivíduos e grupos se deve a suas próprias características individuais. Nessa
perspectiva, as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e históricas influenciam muito
pouco a vida das pessoas, de modo que os únicos responsáveis por sua condição são elas
mesmas. Da biologização das questões de ordem social decorre a isenção da responsabilidade
do sistema sociopolítico de solucionar tais questões e a consequente culpabilização da vítima
(COLLARES; MOYSÉS, 1994, p. 26). Conforme apontam Zucoloto e Patto (2007, p. 137),
“medicalizar o fracasso escolar é interpretar o desempenho escolar do aluno que contraria
aquilo que a instituição espera dele em termos de comportamento ou de rendimento como
sintoma de doença localizada no indivíduo”. Ainda segundo as autoras: A patologização da educação consiste em um reducionismo biológico, que é explicar a situação e o destino de indivíduos e grupos através de suas características individuais; desse modo, escondem-se os determinantes políticos e pedagógicos do fracasso escolar, isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a instituição escolar. Como decorrência dessa concepção, é o indivíduo o maior responsável por sua condição de vida e destino, pois as circunstâncias sociais e políticas teriam influência mínima. (ZUCOLOTO; PATTO, 2007, p. 137-138).
Collares e Moysés (1994, p. 26) apontam as implicações da medicalização na
educação, afirmando que: A Educação, assim como todas as áreas sociais, vem sendo medicalizada em grande velocidade, destacando-se o fracasso escolar e seu reverso, a aprendizagem, como objetos essenciais desse processo. A aprendizagem e a não aprendizagem sempre são relatadas como algo individual, inerente ao aluno, um elemento meio mágico, ao qual o professor não tem acesso – portanto, também não tem responsabilidade. Diante de índices de 50, 70% de fracasso entre os alunos matriculados na 1ª série da Rede Pública de Ensino brasileira, o diagnóstico é centrado no aluno, chegando no máximo até sua família; a instituição escolar, a política educacional raramente são questionadas no cotidiano da Escola. Aparentemente, o processo ensino-aprendizagem iria muito bem, não fossem os problemas existentes nos que aprendem.
Moysés (1998) salienta as duas principais explicações patologizantes das “dificuldades
de aprendizagem”: a que as consideram como consequência da desnutrição ou a que as vê
25
como resultado da existência de disfunções neurológicas, como a hiperatividade e a dislexia.
Ambas as explicações são refutadas pela autora, que apresenta resultados de pesquisas
(COLLARES; MOYSÉS, 1998) que invalidam a relação de causalidade entre desnutrição e
fracasso escolar. As autoras questionam, ainda, a própria existência dos distúrbios de
aprendizagem, considerando a falta de comprovação científica e a inexistência de critérios
diagnósticos claros e precisos. Elas afirmam que os distúrbios de aprendizagem são um mito:
o que existem são distúrbios no processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, a disseminação
desse mito acarreta consequências bastante reais e negativas: Ao mito corresponde a realidade inegável da medicalização da Educação, do espaço pedagógico e do próprio ambiente escolar. Trata-se de um grave problema educacional, de origem sociopedagógica como questão médica, tentando encontrar em cada criança, em nível individual, uma “doença” que justifique seu mau rendimento escolar. […] Instituição e sistema escolar são preservados de críticas, isentos de responsabilidades, ao se centrar na criança, na família e/ou no professor a busca de causas e, supostamente, de soluções. (MOYSÉS, p. 30, sem data).
Outra forma bastante frequente de culpabilizar o aluno ou sua família pelas
“dificuldades de aprendizagem” provém da ideia, amplamente difundida, de que uma de suas
principais causas está na precariedade socioeconômica da vida dos alunos, ou seja, na
pobreza. De fato, nessa interpretação, a pobreza é apontada como a razão da suposta
“deficiência intelectual” apresentada por muitas das crianças de baixa renda, bem como por
comportamentos considerados inaceitáveis em sala de aula. Considera-se que a pobreza cria,
nas crianças, maior suscetibilidade às “dificuldades de aprendizagem”. Soares (1991, p. 12-
13) assinala que: Segundo essa concepção, as condições de vida de que gozam as classes dominantes e, em consequência, as formas de socialização da criança no contexto dessas condições, permitem o desenvolvimento, desde a primeira infância, de características – hábitos, atitudes, conhecimentos, habilidades, interesses – que lhe dão a possibilidade de ter sucesso na escola. Ao contrário, as condições de vida das classes dominadas e as formas de socialização da criança no contexto dessas condições não favoreceriam o desenvolvimento dessas características e, assim, seriam responsáveis pelas “dificuldades de aprendizagem” dos alunos delas provenientes.
A teoria da “privação cultural” é um claro exemplo desse tipo de abordagem que
culpabiliza o indivíduo. Por meio de resultados de testes de inteligência questionáveis, os
estudos fundamentados nesse pensamento afirmam que crianças de classes sociais
desfavorecidas seriam portadoras de inúmeras deficiências, apresentando problemas em seu
26
desenvolvimento psicomotor, perceptivo, linguístico, cognitivo e emocional, que acarretariam
problemas em seu desempenho escolar (MEIRA, 2000). Esse discurso é norteado pela ideia
de “carência” ou “deficiência”, ou seja, de “falta” de cultura do aluno, cabendo à escola
“suprir” essas deficiências de natureza sociocultural. Em concepções desse tipo, “qualquer
referência às crianças de camadas populares é realizada ‘pela negação, pela desqualificação’,
adicionando-se, ainda, estereótipos em relação a suas famílias, as quais são vistas como
desestruturadas e desestruturantes” (EARP, 1997, p. 179). Para esse autor, a diferença é vista
“enquanto desvio ou atraso, a partir de uma concepção etnocêntrica da sociedade humana, em
que o observador toma sua cultura de origem como ponto de referência” (p. 180).
Atitudes como essa implicam considerar “cultura” apenas a das classes dominantes,
desconhecendo que todo conhecimento e todas as construções desenvolvidas socialmente pela
humanidade ao longo da história constituem cultura. Assim considerada, existe,
necessariamente, uma grande diversidade de culturas, estruturadas e complexas, sem que haja
entre elas qualquer hierarquia (SOARES, 1991). Dessa forma, todos os indivíduos
humanizados encontram-se inseridos em determinada cultura, na qual são constituídos e da
qual são constituintes. Estão, portanto, inseridos em uma condição objetiva de produção,
reprodução e transmissão cultural, ainda que suas manifestações culturais não sejam aquelas
definidas e aceitas pela classe dominante. Ideais como a de privação cultural são inerentes a
um sistema de classes, que designa a cultura da elite como adequada e a cultura popular como
ausente ou deficiente, convertendo diferenças culturais em deficiências cognitivas. De acordo
com Miranda (2009, p. 35): Com base nessa perspectiva, as diferentes estruturas sócio-políticas (nas quais as instituições de ensino se encontram inseridas) são colocadas em segundo plano, sem que nenhuma crítica seja tecida às relações de poder produzidas e reproduzidas no contexto educacional, gerando uma valorização da cultura de classes dominantes e, ao mesmo tempo, uma desvalorização daquela das classes trabalhadoras.
Na posição de instância constituída e constituinte de relações socioculturais desiguais,
a escola tem produzido a exclusão de indivíduos e grupos cujos padrões culturais não
correspondem aos dominantes. Em pesquisas desenvolvidas com professores, tem se
evidenciado que, muitas vezes, as expectativas docentes acerca do desempenho escolar de
alunos que apresentam padrões culturais diferentes daqueles dos padrões dominantes são
repletas de estereótipos que se refletem na prática do professor (CANDAU, 1995; SILVA,
1992). De acordo com os resultados de sua pesquisa, Canen (2001, p. 222) afirma que as
representações docentes “revelam, muitas vezes, uma visão fragmentada dos universos
27
culturais dos alunos, percebidos, em grande parte, em termos dos aspectos que lhes ‘faltam’
para se equipararem àqueles das camadas dominantes da população”. O mesmo autor salienta
a necessidade de viabilizar práticas pedagógicas que resgatem e celebrem a diversidade
cultural, algo a ser conquistado por meio de uma formação docente capaz de sensibilizar os
professores para a pluralidade de alunos presentes em sala de aula:
A importância da preparação docente que leve em conta a diversidade cultural tem sido reconhecida em virtude de dois aspectos relevantes: por um lado, a constatação do peso de estereótipos sobre o rendimento de alunos de universos culturais diferentes daqueles que perpassam as práticas pedagógico-curriculares no cotidiano escolar. Nesse sentido, preparar professores na linha da apreciação da diversidade cultural e da quebra de estereótipos favoreceria atitudes positivas que contribuiriam para transformar a situação de fracasso escolar. Por outro lado, a importância de tal educação reforça-se também em artigos recentes, que têm contribuído para desvelar o mito da democracia racial vigente até bem pouco no âmbito de nossa sociedade e para a conscientização acerca da relevância de práticas docentes que preparem futuras gerações nos valores da tolerância e apreciação à diversidade cultural, de forma a desafiar preconceitos e promover uma educação para a cidadania. (CANEN, 2001, p. 210).
Assim, é preciso vincular a educação multicultural às perspectivas de transformação
da escola e de superação dos mecanismos de exclusão presentes em seu cotidiano, o que
implica reconhecer que a necessária sensibilização para a diversidade cultural não pode ser
realizada de forma dissociada da realidade escolar. Kramer (1995) e Candau (1995) alertam
para a necessidade de promover, entre os docentes, uma atitude de compreensão e valorização
de todos os grupos étnico-culturais, entendendo-os como portadores e produtores de cultura.
Canen também discute essa questão: Reconhecer a diversidade de universos culturais de alunos no âmbito de práticas docentes implica não só a conscientização acerca do peso dessas práticas no sucesso ou no fracasso destes alunos, mas também a importância em se trabalhar no sentido de mobilizar expectativas positivas que promovam a aprendizagem de todos, independentemente de raça, classe social, sexo ou padrões culturais. Nesse sentido, trabalhar com uma proposta de conscientização cultural em formação docente significa, também, ter em vista as representações e o saber desenvolvido por docentes em seu cotidiano escolar, de forma que se incorporem as iniciativas de ruptura com a homogeneização cultural e se combatam as expectativas negativas com relação àqueles cujos padrões culturais não correspondem aos dominantes. (CANEN, 2001, p. 222).
É importante superar esse quadro de desvalorização das manifestações culturais
diversas, que acabam marginalizando alunos que não correspondem ao idealizado,
contribuindo para a caracterização das supostas “dificuldades de aprendizagem”. Como
28
salienta Canen (2001, p. 207), reconhecer que a sociedade brasileira é multicultural implica
compreender a diversidade cultural dos diferentes grupos sociais que a compõem. No entanto,
“significa, também, constatar as desigualdades no acesso a bens econômicos e culturais por
parte dos diferentes grupos, em que determinantes de classe social, raça, gênero e diversidade
cultural atuam de forma marcante”.
De acordo com Patto (2004), outra concepção amplamente difundida acerca das
“dificuldades de aprendizagem” é a de que elas seriam causadas pelo uso de técnicas de
ensino inadequadas ou pela falta de prática ou de formação necessária dos professores, ou
seja, seria um problema meramente técnico. Nesse tipo de abordagem, o foco da
responsabilidade sobre as “dificuldades de aprendizagem” não se localiza mais nos problemas
individuais dos alunos ou suas famílias, mas na competência do professor. Em concepções
desse tipo, a escola chega a ser considerada um dos agentes causadores das “dificuldades de
aprendizagem”, mas a partir de uma relação abstrata e dualista, desvinculada do contexto
social, econômico e histórico mais amplo. Segundo Patto (2004, p. 61): Mesmo quando faz referência ao “descaso das autoridades” para com a escola pública, as teses dessa vertente continuam dentro da lógica tecnicista, pois o descaso é reduzido ao fato de as autoridades não proporcionarem formação técnica adequada aos professores. Afirma-se que o fracasso escolar é produzido na e pela escola, mas reduz-se esta produção a sua inadequação técnica. Na verdade, continua-se a compreender o fracasso escolar como resultado de variáveis individuais, embora nessas teses a variável independente investigada seja a capacidade profissional do professor.
Nota-se, nos estudos que adotam essa perspectiva, o pressuposto de que, se o professor
empregar técnicas de ensino corretas, será capaz de resolver e/ou sanar as “dificuldades de
aprendizagem” geradas por problemas de ordem emocional, cultural ou econômica dos
alunos. Assim, além de se culpar estes últimos por suas dificuldades, se culpabiliza o
professor, incapaz de eliminá-las. Considera-se que, se o docente apresentar certos atributos –
tais como formação adequada, capacidade de refletir sobre a própria prática, de planejar
intervenções e despertar motivação –, ele deverá ser capaz de solucionar as “dificuldades de
aprendizagem” de seus alunos. Caso, ainda assim, algum tipo de dificuldade permaneça, ela
será atribuída a um problema psíquico individual do aluno.
Abordagens como essa denotam uma perspectiva unilateral do processo de ensino-
aprendizagem, na qual todo o poder de ação está nas mãos do professor, cabendo ao aluno
apenas submeter-se à atividade docente: seu desempenho está direta e exclusivamente
relacionado à qualidade das práticas de ensino empregadas pelo professor. Desconsidera-se,
29
assim, o aluno como sujeito ativo no processo de aprendizagem e nas relações constitutivas
do ambiente escolar. Da mesma forma, desconsidera-se quem é esse aluno, ou seja, a quem
essa técnica se dirige. Afirmar que a técnica adequada é capaz de garantir a aprendizagem de
todos os alunos significa supor que todos os alunos são iguais e aprendem da mesma maneira,
no mesmo ritmo.
Nesse tipo de interpretação, as questões sociais, políticas, econômicas e históricas
envolvidas na produção das “dificuldades de aprendizagem” são, mais uma vez, ignoradas.
Essa perspectiva penaliza o professor, ao alegar que ele não sabe como atuar para garantir a
aprendizagem dos alunos, por não ter se apropriado devidamente daquilo que marca sua
profissão. O mau professor é, portanto, compreendido como um fracasso decorrente dele
mesmo, já que são desconsiderados os aspectos relativos a sua formação e ao contexto
socioeconômico mais amplo no qual ele se insere. O docente passa a ser inteiramente
responsabilizado por seu fracasso e pelo de seus alunos (PATTO, 2004).
É interessante ressaltar que o discurso que responsabiliza o professor pelo fracasso de
seus alunos não considera a qualidade de sua formação docente ou os aspectos políticos e
econômicos que a determinam e constituem. Perceber as “dificuldades de aprendizagem”
como uma questão meramente técnica significa adotar uma perspectiva na qual o processo de
ensino-aprendizagem é visto como mecânico, linear e reprodutivista. Responsabilizar
unicamente a má qualidade da formação do professor pela aprendizagem dos alunos é ignorar
que a reprodução de técnicas e práticas de ensino – desvinculadas da realidade concreta dos
estudantes e dos aspectos sociais e históricos mais amplos – não garante a qualidade da
aprendizagem nem a formação dos alunos, como bem aponta Miranda (2009, p. 39):
Assim, torna-se importante considerar a existência da relação entre a boa qualidade da prática pedagógica e o processo de aprendizagem dos alunos. Mas é necessária ainda a compreensão de que esta relação, em si, não garante que os alunos deixem de manifestar as supostas “dificuldades de aprendizagem”. Este fenômeno deve ser considerado para além da relação professor – aluno ou de um polo isolado desta relação. Tanto a visão que culpabiliza o aprendiz, quanto esta, que culpabiliza o docente, consideram as escolas (que formam cidadãos) e as instituições de ensino superior (que formam os docentes) como lugares harmônicos, que possibilitam o desenvolvimento pleno dos indivíduos. Como nesta visão as instituições de ensino não se vinculam em geral à sociedade nas quais estão inseridas, as “dificuldades de aprendizagem” são tidas, sempre, como os resultados de variáveis individuais que ora se centram no aluno, ora no professor.
Vale mencionar, também, que esse tipo de abordagem se apoia na ideia de que a
atividade docente é meramente uma técnica, desconsiderando assim sua dimensão política,
30
ética e estética. Segundo Rios (2008, p. 94), a técnica diz respeito à realização de uma ação, a
certa forma de fazer algo: Chamamos a dimensão técnica de suporte da competência, uma vez que esta se revela na ação dos profissionais. A técnica tem, por isso, um significado específico no trabalho, nas relações. Esse significado é empobrecido, quando se considera a técnica desvinculada de outras dimensões. É assim que se cria uma visão tecnicista, na qual se supervaloriza a técnica, ignorando sua inserção num contexto social e político e atribuindo-lhe um caráter de neutralidade, impossível justamente por causa daquela inserção.
Como ressalta Saviani (2008, p. 35), “a competência técnica é, pois, necessária,
embora não suficiente para sustentar na prática o compromisso assumido teoricamente”.
Assim, é preciso, ainda, contemplar as demais dimensões constitutivas da atividade docente: a
estética, a ética e a política. De acordo com Rios (2008), a primeira diz respeito à
sensibilidade como elemento constituinte do saber e do fazer docente, que o orienta em uma
perspectiva criadora. Ainda segundo a autora, “a docência envolve, portanto, técnica e
sensibilidade. E a docência competente mescla técnica e sensibilidade orientadas por
determinados princípios, que vamos encontrar num espaço ético-político” (RIOS, 2008, p.
99). A dimensão ética relaciona-se à necessária reflexão acerca dos valores, dos costumes e
princípios, social e historicamente constituídos. Assim, essa dimensão da educação trata da
reflexão crítica sobre o conjunto de valores e princípios que orientam a conduta dos
indivíduos e grupos nas sociedades, ou seja, concerne à orientação da ação, fundada no
princípio do respeito e da solidariedade, voltada para a realização do bem coletivo. A terceira
dimensão – a política – consiste na participação na construção coletiva da sociedade e no
exercício de direitos e deveres (RIOS, 2008, p. 108). Segundo a autora, todas essas dimensões
são indissociáveis de uma docência de boa qualidade.
Em seu estado da arte sobre o fracasso escolar, Patto (2004) aponta uma terceira
vertente nas pesquisas que estudam as “dificuldades de aprendizagem”: aquela que aborda
essa questão como uma construção institucional. Partindo do princípio de que o fracasso
escolar – fenômeno presente desde o início das instituições educativas no Brasil – é
construído na e pela instituição escolar, inserida em uma sociedade de classes e regida pelos
interesses do capital, esses estudos consideram que as políticas públicas são determinantes na
constituição das “dificuldades de aprendizagem”. Esse tipo de investigação apresenta avanços
em relação àqueles anteriormente relatados, pois, além de retirar do indivíduo, seja o aluno ou
o professor, a responsabilidade exclusiva pelas “dificuldades de aprendizagem”, considera os
31
aspectos políticos e sociais nela presentes. No entanto, segundo Patto (2004, p. 62), a linha
teórica adotada nesses estudos alcança apenas uma visão parcial do assunto: Tais princípios não impedem, entretanto, uma compreensão parcial das teorias críticas da escola nas pesquisas que as têm como referência: ao mesmo tempo em que afirmam que para pensar a escola e seus resultados é preciso tomá-la como instituição seletiva e excludente, os estudos retomam o tecnicismo, ao admitirem a possibilidade de pôr sob controle o fracasso escolar, por meio da adequada implementação de políticas educacionais “progressistas”, com especial ênfase na política de ciclos de aprendizagem. O insucesso de reformas e projetos nesta direção encontra explicação no conservadorismo dos professores que, pela resistência à inovação, prejudicam sua implementação. A saída apontada é o investimento na formação intensiva dos professores, de modo a levá-los a conhecer em profundidade as propostas governamentais e, assim, garantir a realização do objetivo final de reformas e projetos oficiais: a reversão do fracasso escolar.
Existe, contudo, um risco em considerar as questões sociais e políticas como as únicas
responsáveis pela construção das “dificuldades de aprendizagem”, pois se acaba por atribuir
exclusivamente às primeiras o papel de sanar as segundas. Essa perspectiva pode acarretar um
distanciamento entre as dificuldades escolares do aluno e a prática docente, a gestão escolar e
a atividade pedagógica como um todo (MIRANDA, 2009). Dessa forma, os sujeitos
envolvidos no processo de produção das “dificuldades de aprendizagem” podem se sentir
impotentes diante dele, algo que, justificado pela falta de investimento público em políticas
educacionais eficazes, pode levar os agentes educacionais das escolas a não assumirem sua
parcela de participação na produção das dificuldades escolares dos alunos.
Finalmente, a quarta abordagem das pesquisas sobre fracasso escolar descrita por
Patto (2004, p. 62-63) é a que enfatiza a dimensão política da escola:
Assim como as pesquisas que se debruçam sobre a lógica excludente da educação escolar, analisadas no item anterior, aqui também se compreende a escola como uma instituição social regida pela mesma lógica constitutiva da sociedade de classes. O foco, entretanto, incide nas relações de poder estabelecidas no interior da instituição escolar, mais especificamente na violência praticada pela escola ao estruturar-se com base na cultura dominante e não reconhecer – e, portanto, desvalorizar – a cultura popular.
Esta última visão considera os determinantes sociopolíticos da educação e tece uma
crítica às concepções de “dificuldade de aprendizagem” anteriormente citadas. Refuta a tese
da carência cultural, questiona a existência e a produção das deficiências cognitivas ou
emocionais dos alunos, bem como as tentativas de superação das “dificuldades de
aprendizagem” por meio de medidas puramente técnicas. E a justificativa para tal negativa
residiria no fato de que não se deve entender a escola como uma entidade abstrata:
32
Essas pesquisas criticam as relações causais lineares entre “problemas individuais” e “problemas de aprendizagem” para explicar as dificuldades de escolarização dos alunos oriundos das classes populares, porque questionam a polarização entre indivíduo e sociedade e compreendem a constituição do sujeito nas condições concretas de existência num determinado lugar da hierarquia social. (PATTO, 2004, p. 63).
Patto (2004) afirma que, em estudos que defendem esse ponto de vista, é comum a
construção de procedimentos de pesquisa que implicam ativamente os pesquisados – que
deixam de ser vistos apenas como “objetos de pesquisa” e passam a ter o estatuto de sujeitos
ativos no processo de investigação, sem os quais seria impossível produzir conhecimento.
Existe, desse modo, uma ruptura epistemológica, a partir da qual não se busca mais a
compreensão do fenômeno apenas nos alunos, em suas famílias ou professores, mas sim nas
múltiplas relações que o constituem.
Para Miranda (2009), estas duas últimas abordagens se aproximam mais de uma
perspectiva materialista histórica e dialética, pois se contrapõem à visão que atribui ao
indivíduo – aluno ou professor – a culpa pelas “dificuldades de aprendizagem”,
compreendendo-as à luz das relações que produzem e são produzidas por um sistema
educacional complexo, situado em uma sociedade de classes, determinada pelas relações de
capital. No entanto, a autora adverte sobre o risco de atribuir ao “sistema” a responsabilidade
integral pela produção das “dificuldades de aprendizagem”: Considerar o sistema complexo de relações que configuram a multideterminação das ““dificuldades de aprendizagem”” não exclui a ação pedagógica e as relações intra e extraescolares deste sistema. Fato é que a ação pedagógica é constituinte e constituída destas relações, e dessa forma, não se justifica a argumentação que aponta a “culpa do sistema” pela má qualidade do ensino, como se este “sistema” fosse também excluído desta relação dialética. O “sistema” é constituído por pessoas, pelas suas atividades, crenças e valores, por suas ações políticas e sociais. Culpabilizar o “sistema” como se a responsabilidade do ato pedagógico estivesse fora do alcance dos sujeitos envolvidos neste processo, mascara a responsabilidade das pessoas, agentes das relações ensino-aprendizagem e se distancia de uma proposta transformadora de educação. (MIRANDA, 2009, p. 42).
Apesar de não caber ao “sistema” a responsabilidade exclusiva pela produção das
“dificuldades de aprendizagem”, na presente pesquisa considera-se que um dos aspectos
constitutivos dessa produção reside justamente no fato de que a instituição escolar é uma
instância produzida por e produtora de uma sociedade de classes, regida por padrões culturais
e discursos ideológicos impostos pela classe dominante. A necessária articulação entre os
33
fatores individuais, pedagógicos, sociais e históricos é discutida por Tuleski e Eidt (2007),
numa perspectiva que muito se aproxima da adotada no presente trabalho: Como demonstramos anteriormente, grande parte da produção científica atual acerca dos problemas de escolarização tem centrado suas análises, unicamente, nas características individuais – tomadas como naturalmente patológicas, descolando o sujeito da sociedade na qual ele está inserido. Além disso, as características humanas muitas vezes são entendidas como a-históricas, pois são apresentadas como constantes, comuns a todas as épocas e a todos os homens. Contrariando essas perspectivas, o que queremos postular é que distúrbios/dificuldades de aprendizagem precisam ser datados – analisados a partir das condições sociais e econômicas de uma determinada época histórica – e compreendidos no interior da sociedade em que se desenvolvem. Deste modo, é de fundamental importância que se analise a qualidade das mediações estabelecidas em diferentes contextos sociais (como a família e a escola), considerando que o esfacelamento das relações entre os indivíduos se tornou uma característica da pós-modernidade, na qual se verifica o surgimento de verdadeiras epidemias de desordens de aprendizagem. [...] A discussão, portanto, deve deslocar-se para o que a sociedade atual vem ou não fazendo para que os sistemas funcionais de origem cultural não se constituam a contento em muitas crianças. (TULESKI; EIDT, 2007, p. 538).
Portanto, nesta pesquisa, entende-se que as “dificuldades de aprendizagem” são
produzidas em meio a um conjunto de relações institucionais, históricas, econômicas,
culturais e pedagógicas que se constituem no cotidiano educacional, sendo, portanto, fruto de
múltiplas determinações. Dessa forma, qualquer explicação que se centre exclusivamente em
um dos aspectos constituintes do fenômeno é considerada reducionista, justamente por ignorar
a complexa teia de relações que o constituem. Assim, parte-se do princípio de que as relações
de poder existentes e constitutivas de um sistema de ensino excludente e elitizado – regido
pelos interesses do capital e historicamente produzido e reproduzido por discursos e relações
ideológicas – são constitutivas das “dificuldades de aprendizagem”, sem que, no entanto, se
retire dos sujeitos diretamente envolvidos sua participação nesse processo. Isso significa que
as “dificuldades de aprendizagem” são aqui compreendidas como um fenômeno
multideterminado, construído nas múltiplas relações históricas, econômicas e sociais que
conformam as instituições de ensino e os sujeitos nela inseridos. Dessa forma, a concepção de
“dificuldades de aprendizagem” que embasa esta investigação encontra apoio na perspectiva
assumida por Proença (sem data), segundo a qual: O desvelamento da vida diária escolar aponta para a complexidade das relações ensino-aprendizagem. Tais relações envolvem aspectos da política educacional, da organização institucional, da formação de professores, das histórias individuais e profissionais, das relações da escola com os pais e destes com a escola, da relação face a face da sala de aula, da constituição de grupos em sala de aula, da constituição de normas e regras de
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funcionamento, dentre outros. Esse conjunto de relações se entrelaça na história escolar de cada criança e na história profissional de cada professor.
A autora propõe um deslocamento no enfoque tradicionalmente conferido à questão
das “dificuldades de aprendizagem”, de modo que se busque compreender não mais “por que
a criança não aprende”, e sim “que relações e situações vivenciadas no cotidiano escolar estão
produzindo o não aprendizado da criança”. Ainda segundo Proença, a natureza de tais
questões define explicações diferentes acerca das “dificuldades de aprendizagem”. Sua
proposta consiste, portanto, em transferir o foco dos “problemas de aprendizagem” para os
“problemas de escolarização”:
A abordagem que se desloca dos problemas de aprendizagem para os problemas de escolarização possibilita-nos outra percepção da complexidade dos fenômenos escolares e a busca negociada de resolução de problemas no âmbito da escolarização. Quaisquer abordagens em Psicologia que garantam voz àqueles que historicamente têm sido desconsiderados no processo educacional estarão, de alguma forma, assumindo um compromisso político e social na direção do processo de humanização. [...] Os modelos patologizantes de interpretação do processo educacional precisam ser diariamente questionados e superados, por meio da análise e da reflexão a respeito da prática pedagógica que muitas vezes contradiz discursos mais avançados. O enfrentamento das ambiguidades dos discursos educacional e psicológico possibilitará novos agenciamentos entre os profissionais que atuam no campo educacional, impulsionando novos enfrentamentos no sentido de construir uma educação com qualidade social para todos os alunos. (PROENÇA, sem data).
Com base nos postulados mencionados acima, considera-se que, por meio da análise e
da reflexão sobre a prática pedagógica – o que inclui uma compreensão mais aprofundada a
respeito dos sentidos e significados constituídos pelos professores acerca das “dificuldades de
aprendizagem” – pode-se buscar “o enfrentamento das ambiguidades dos discursos
educacional e psicológico”, possibilitando novos “enfrentamentos no sentido de construir uma
educação com qualidade social para todos os alunos”, como bem salienta Proença. Assim,
acredita-se, aqui, que uma aproximação dos sentidos e significados constituídos pelos
professores em relação às “dificuldades de aprendizagem” pode contribuir, efetivamente, para
a construção de programas de formação docente capazes de romper com os velhos
paradigmas que permeiam a produção dessas dificuldades. Entretanto, compreender o
problema como síntese de múltiplas determinações implica reconhecer que sua solução não
está relacionada apenas a um dos aspectos constitutivos do fenômeno. Dessa forma, acreditar
que apenas programas de formação docente sejam suficientes para transformar essa realidade
35
seria recair na perspectiva simplista que atribui apenas aos professores – ou a sua formação –
a culpa pelas “dificuldades de aprendizagem” dos alunos.
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CAPÍTULO II
REFERENCIAL TEÓRICO
A uva e o vinho
Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de
morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva – sussurrou – é feita de vinho.
Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a
gente seja as palavras que contam o que a gente é.
(Eduardo Galeano)
1 Psicologia Sócio-Histórica
O referencial teórico que fundamenta a presente pesquisa é o da Psicologia Sócio-
Histórica, que se pauta, por sua vez, pelo Materialismo Histórico e Dialético, o que implica
uma concepção de homem como ser social e historicamente construído. Nessa perspectiva,
existe uma interação contínua entre natureza e homem, pois a ação humana transforma a
natureza, e a natureza, transformada, cria novos homens, de forma que ambos, homem e
natureza, se constituem mutuamente (VYGOTSKY, 2003). Dessa maneira, apesar de
pertencer à espécie humana – condição geneticamente garantida desde sua concepção –, o
homem só se humaniza por meio da apropriação da cultura na qual está inserido, ou seja, as
características tipicamente humanas não são transmitidas por hereditariedade biológica, mas
sim adquiridas no processo de apropriação da cultura criada pelas gerações precedentes. Isso
porque: O homem não nasce dotado das aquisições históricas da humanidade. Resultando estas do desenvolvimento das gerações humanas, não são incorporadas nem nela, nem nas suas disposições naturais, mas no mundo que o rodeia, nas grandes obras da cultura humana. Só apropriando-se delas no decurso de sua vida ele adquire propriedades e faculdades verdadeiramente humanas. (LEONTIEV, 2004, p. 301).
Isso significa que o homem se humaniza porque nasce e se desenvolve em um
contexto humanizado, construído social e historicamente ao longo das gerações que o
precederam: “O homem é um ser de natureza social, e tudo que tem de humano provém da
sua vida em sociedade, no seio da cultura criada pela humanidade” (LEONTIEV, 2004, p.
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279). Ainda de acordo com Leontiev (2004, p. 285), “cada indivíduo aprende a ser um
homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não basta para viver em sociedade. É-lhe ainda
preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da sociedade
humana”.
Nessa perspectiva, o bebê humano possui já todas as propriedades biológicas
necessárias a seu desenvolvimento sócio-histórico ilimitado. Em outras palavras, “a passagem
do homem a uma vida em que sua cultura é cada vez mais elevada não exige mudanças
biológicas hereditárias” (LEONTIEV, 2004, p. 281). Logo, as modificações biológicas
hereditárias não determinam o desenvolvimento sócio-histórico do homem e da humanidade,
pois ele é impulsionado por outras forças que não as leis da variação e da hereditariedade.
A partir de uma base biológica, que garante a existência das funções psíquicas
elementares – definidas como habilidades naturais, tais como a memória, a atenção, a
percepção e os reflexos –, o homem constrói suas funções psicológicas superiores, nas formas
tipicamente humanas de atividade. As funções psíquicas elementares, imediatas e
involuntárias, possibilitam o desenvolvimento de aptidões, ou seja, fornecem as condições
biológicas para o processo de formação de sistemas cerebrais funcionais que originam as
funções psicológicas superiores, tais como o pensamento, a linguagem e a imaginação. Estas
não surgem naturalmente: elas são construídas, se desenvolvem a partir de transformações
qualitativas na atividade humana e são, sempre, mediadas e intencionais. Conforme indica
Veresov3 (2010, p. 84), as “funções psicológicas superiores não são construídas sobre os
processos elementares, como se fossem um ‘segundo andar’; elas são sistemas psicológicos
novos, que envolvem um complexo nexo de funções elementares que, como parte desse novo
sistema, passa a atuar segundo novas leis”.4
Assim, o homem não está subordinado apenas às leis biológicas, como esclarece Luria
(1979, p. 72): “encontramos frequentemente situações nas quais a atividade consciente do
homem, além de não se sujeitar às influências e necessidades biológicas, ainda entra em
conflito com elas e chega inclusive a reprimi-las”. Portanto, o homem está subordinado
principalmente às leis sócio-históricas, constituídas pelo movimento, pelas mudanças, tecidas
e fixadas na atividade e na cultura humana. É por meio do contato social e da apropriação da
cultura de seu entorno que o homem aprende a ser humano:
3 Todas as traduções são nossas. 4 “Higher mental functions are not built on top of elementary processes, like some kind of second storey, but are new psychological systems comprising a complex nexus of elementary functions that, as part of a new system, being themselves to act in accordance with new laws.”
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Cada geração começa, portanto, a sua vida num mundo de objetos e de fenômenos criados pelas gerações precedentes. Ela apropria-se das riquezas desse mundo participando no trabalho, na produção e nas diversas formas de atividade social e desenvolvendo assim as aptidões especificamente humanas que se cristalizaram, encarnaram nesse mundo. (LEONTIEV, 2004, p. 284).
É importante ressaltar que a apropriação da cultura humana não ocorre de forma
automática ou passiva. Trata-se de um processo sempre ativo, por parte do indivíduo,
conforme explica Leontiev (2004, p. 286): “devemos sublinhar que este processo é sempre
ativo do ponto de vista do homem”. Outro aspecto fundamental do processo de apropriação é
que este é sempre mediado socialmente: As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, a criança, o ser humano, deve entrar em contato com os fenômenos do mundo circundante através de outros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função este processo é, portanto, um processo de educação. (LEONTIEV, 2004, p. 290).
Dessa forma, a humanização, isto é, o desenvolvimento dos processos tipicamente
humanos – a construção das funções psicológicas superiores – acontece por meio da
apropriação, em nível ontológico, da cultura desenvolvida pelas gerações precedentes: “nas
palavras de Vygotsky, desenvolvimento metal consiste na ‘transição das formas diretas, inatas
e naturais de comportamento para funções mentais mediadas e artificiais que se desenvolvem
no processo de desenvolvimento cultural” 5 (VERESOV, 2010, p. 86) Assim, o processo de
desenvolvimento das funções psicológicas superiores é o principal objeto de estudo da
Psicologia Sócio-Histórica: “precisamos concentrar-nos não nos produtos do
desenvolvimento, mas no próprio processo pelo qual as formas superiores são estabelecidas” 6
(VERESOV, 2010, p. 86)
Adotando essa concepção de homem como ser social e historicamente constituído –
que aprende a ser humano apropriando-se da cultura, por meio de atividades e relações
mediadoras – para compreendê-lo, é preciso estudá-lo em seu processo histórico, em suas
transformações e em sua gênese, ou seja, estudá-lo dialeticamente. A Psicologia Sócio-
5 “InVygotsky words, mental development consists in the ‘the transition from direct, innate, natural forms and methods of behavior to mediated, artificial mental functions that develop in the process of cultural development.’” 6 “We need to concentrate not on the product of development but on the very process by which higher forms are established.”
39
Histórica propõe algumas categorias teóricas que se aplicam a esse estudo dialético do
homem. Tais categorias, compreendidas como formulações teóricas que representam uma
realidade concreta, buscam descrever, explicitar e explicar um fenômeno em sua totalidade,
carregando seu movimento, suas contradições e sua historicidade (AGUIAR, 2001). É
importante ressaltar que, embora cada categoria tenha sua especificidade, elas estão
interligadas, de modo que cada uma constitui as outras, em um constante movimento
dialético: uma não pode ser compreendida sem as demais. Algumas delas, centrais para o
entendimento dos fenômenos analisados nesta pesquisa, serão discutidas a seguir.
1.1 Atividade
Essa categoria é de fundamental importância para a Psicologia Sócio-Histórica, pois é
por meio da atividade que o homem desenvolve suas funções psicológicas superiores e se
humaniza. Isso se dá porque, para se apropriar da cultura, ou seja, dos conhecimentos e
fenômenos historicamente produzidos e acumulados pela humanidade, para constituir sua
consciência e os demais processos que o caracterizam como humano, é necessário que o
homem realize atividades mediadas e mediadoras, social e historicamente construídas. De
acordo com Leontiev (2004, p. 286), “para se apropriar dos objetos e fenômenos que são
produto do desenvolvimento histórico, é necessário desenvolver em relação a eles uma
atividade que se reproduza, pela sua forma, os traços essenciais da atividade encarnada,
acumulada no objeto”. Ainda segundo o autor:
[...] pela sua atividade, os homens não fazem senão adaptar-se à natureza. Eles a modificam em função do desenvolvimento das suas necessidades. Criam os objetos que devem satisfazer as suas necessidades e, igualmente, os meios de produção destes objetos, dos instrumentos às maquinas mais complexas [...]. Os progressos realizados na produção de bens materiais são acompanhados pelo desenvolvimento da cultura dos homens. (LEONTIEV, 2004, p. 283).
A atividade não consiste somente em um simples reflexo ou resposta a um estímulo
externo: ela implica o processo dialético de transformação entre natureza e homem,
humanizando tanto um quanto outro. O homem não se relaciona com a natureza a não ser por
meio de uma atividade, ou seja, esta é mediadora na relação entre homem e natureza. Ao
mesmo tempo, a atividade é sempre mediada: ao realizar uma atividade, o ser humano não
age apenas sobre a natureza: ele colabora com seus pares, relaciona-se com os demais, e é nos
limites dessas relações sociais que se estabelece sua atividade. Dessa forma, a atividade é
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sempre mediada simultaneamente pela sociedade e pelos instrumentos e signos socialmente
construídos (LEONTIEV, 2004). A atividade só existe ligada às relações sociais e, portanto,
está subordinada às condições de vida. Segundo Leontiev (2004, p. 84), “é precisamente a
atividade dos outros homens que constitui a base material objetiva da estrutura específica da
atividade do indivíduo humano”. A atividade é voluntária e intencional e está diretamente
relacionada às necessidades e aos motivos, conforme aponta Leontiev (2001, p. 68): [...] designamos por esse termo apenas aqueles processos que, realizando as relações do homem com o mundo, satisfazem uma necessidade correspondente a ele. [...] Por atividade, designamos os processos que são psicologicamente caracterizados pelo fato de que aquilo a que o processo, como um todo, se dirige (seu objeto), coincidir sempre com o objetivo que estimula o sujeito a executar esta atividade, isto é, o motivo.
As necessidades podem ser definidas como “um estado de carência do indivíduo, que
leva a sua ativação com vistas à sua satisfação, dependendo das suas condições de existência”
(AGUIAR, 2006, p. 288). A partir de um processo ao mesmo tempo histórico, singular e
subjetivo de configuração das relações sociais, as necessidades são constituídas pelo
indivíduo socialmente situado, embora este, muitas vezes, não tenha consciência ou controle
do processo de constituição de suas necessidades. Trata-se de um processo não intencional,
fruto de um tipo específico de registro cognitivo e emocional. Ademais, as necessidades são
historicamente construídas e variáveis de um indivíduo para outro. Sua unidade essencial é a
emoção, e mesmo as necessidades ditas naturais são constituídas nas relações sociais ao longo
da história.
Os motivos são aquilo que desperta e orienta a atividade e estão sempre ligados a uma
necessidade. São configurações subjetivas, produzidas nos diferentes espaços sociais de
atuação do indivíduo, e estão associados aos estados afetivos e aos sentidos subjetivos. Para
Leontiev (2004, p. 104), o termo “motivo” não designa “o sentimento de uma necessidade; ele
designa aquilo em que a necessidade se concretiza de objetivo nas condições consideradas e
para as quais a atividade se orienta, o que a estimula”. Os motivos surgem quando o sujeito
significa algo de sua realidade social como capaz de atender suas necessidades. São os
motivos, portanto, que impulsionam a ação (AGUIAR; OZELLA, 2006). Compreendida
como um processo estimulado e orientado por um motivo, no qual está objetivada uma
necessidade, a atividade é motriz do desenvolvimento da humanidade. De fato, a necessidade,
como força interior, pode realizar-se apenas na atividade (LEONTIEV, 2001). A atividade
produz uma necessidade que, para ser satisfeita, produz uma nova atividade, que gera, por sua
vez, outra necessidade, em um processo dialético que provoca o desenvolvimento humano.
41
Existe um processo dialético de mútua constituição entre o homem e a atividade, pois,
ao realizá-la, o homem não está apenas modificando o meio ao qual pertence: ele está,
também, transformando a si próprio e a própria história humana. Ao transformar a natureza, o
homem transforma a si mesmo, convertendo o mundo externo em um mundo interno e,
concomitantemente, o mundo interno em externo, de forma dialética. Assim, é por meio da
atividade que o homem transforma o natural em social. Ao mesmo tempo em que a atividade
é prática e externa, ela é também interna e psicológica. Ambos os aspectos ocorrem
simultaneamente e são indissociáveis, pois a atividade externa cria possibilidades de
construção da atividade interna, gerando uma série de transformações internas, decorrentes da
transformação prática da realidade objetiva (VYGOTSKY, 2003).
Logo, por meio de sua atividade, o homem realiza ativa e simultaneamente dois
processos complementares e indissociáveis: a subjetivação, ou seja, a reconstrução interna de
uma operação externa; e a objetivação, isto é, a materialização de aspectos de sua
subjetividade. As operações que inicialmente representam atividades externas passam a
ocorrer internamente, de modo que os processos interpessoais são transformados em
processos intrapessoais graças a uma série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento: [...] todas as funções psicointelectuais superiores aparecem duas vezes no decurso do desenvolvimento da criança: a primeira vez, nas atividades coletivas, nas atividades sociais, ou seja, como funções interpsíquicas; a segunda, nas atividades individuais, como propriedades internas do pensamento da criança, ou seja, como funções intrapsíquicas. (VYGOTSKY, 2003, p. 115).
De acordo com Vygotsky (2003), o processo de subjetivação consiste numa série de
transformações. Inicialmente, uma operação que representa a atividade externa é reconstruída,
passando a ocorrer internamente, de modo que um processo interpessoal transforma-se, assim,
num processo intrapessoal. A transformação de um processo interpessoal em intrapessoal
resulta de um conjunto de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento: “o processo, sendo
transformado, continua a existir e a mudar como uma forma externa de atividade por um
longo período de tempo, antes de internalizar-se definitivamente” (VYGOTSKY, 2003, p.
75). O autor esclarece que toda função psicológica superior, antes de se tornar uma função
psicológica interna, foi uma função externa, pois foi social antes de se tornar individual e
estritamente mental – anteriormente, era uma relação social entre duas pessoas. Ou seja, todas
as funções psicológicas superiores são relações sociais internalizadas (VYGOTSKY, 1997).
Assim, antes de se tornar uma função individual, tal função não ocorreu na relação social,
42
mas foi a relação social em si mesma. Dessa forma, a relação social torna-se, em si mesma,
uma função psicológica humana individual, como salienta Veresov (2005, p. 38): “relação
social não é a ‘área’, nem o ‘campo’ ou o ‘nível’ no qual as funções mentais aparecem – a
relação social em si mesma torna-se a função individual humana – aqui repousa a resposta”.7
1.2 Consciência
Ao se apropriar do conjunto de produções historicamente acumulado pela
humanidade, ao subjetivar o mundo objetivo e objetivar seu mundo subjetivo por meio de
atividades mediadoras, o homem constrói seus registros psicológicos. Assim, o mundo
psicológico, aqui compreendido como todas as funções psicológicas superiores que
constituem o psiquismo, se constitui a partir da relação do homem com a realidade física e
social, ambas históricas. Isso significa que o mundo psicológico não se constitui no homem,
mas na relação do homem com o mundo objetivo, social e cultural. Dessa forma, rompe-se a
dicotomia entre o mundo interno e o mundo externo, pois as realidades objetivas e subjetivas
passam a ser vistas numa relação de mediação, na qual uma é através da outra, sem, no
entanto, se diluírem nem perderem sua identidade (AGUIAR, 2001, p. 98). Na passagem
transcrita a seguir, Leontiev (2004, p. 94) discorre acerca do desenvolvimento histórico da
consciência e explica as condições determinantes que possibilitaram, em nível filogenético e
ontogenético, seu desenvolvimento: Vimos que a consciência não podia aparecer a não ser nas condições em que a relação do homem com a natureza era mediatizada pelas suas relações de trabalho com outros homens. Por conseguinte, a consciência é um produto histórico desde o início. Vimos em seguida que a consciência só podia aparecer nas condições de uma ação efetiva sobre a natureza, nas condições de uma atividade de trabalho por meio de instrumentos, a qual é ao mesmo tempo a forma prática do conhecimento humano. Nestes termos, a consciência é a forma do reflexo que conhece ativamente. Vimos que a consciência só podia existir nas condições de existência da linguagem, que aparece ao mesmo tempo em que ela no processo de trabalho. Por fim, vimos que a consciência individual do homem só podia existir nas condições em que existe a realidade social. A consciência é o reflexo da realidade, refratada através do prisma das significações e dos conceitos linguísticos elaborados socialmente. Estes traços característicos da consciência são todavia apenas os mais gerais e mais abstratos. A consciência do homem é a forma histórica concreta do seu psiquismo. Ela adquire particularidades diversas segundo as condições da vida dos homens e transforma-se na sequência do desenvolvimento de suas relações econômicas.
7 “Social relation is not the ‘area’, not the field, and not the ‘level’ where mental function appears – the social relation itself becomes human’s individual function – herein lays the answer.”
43
A partir de tais condições de desenvolvimento da consciência, é possível perceber que
esta não é imutável – ao contrário, ela se modifica de acordo com as transformações da
atividade e das relações sociais desenvolvidas pelo homem. Assim, o desenvolvimento do
psiquismo deve ser considerado um processo de transformações qualitativas, entre as quais se
destaca a construção da consciência. A consciência é entendida, portanto, como uma etapa
superior do desenvolvimento psíquico. Vale ressaltar que essas etapas não ocorrem
naturalmente, mas são determinadas pelas circunstâncias da existência do sujeito. Nas
palavras de Leontiev (2004, p. 75): A passagem à consciência é o início de uma etapa superior no desenvolvimento psíquico. O reflexo consciente [...] é o reflexo da realidade concreta destacada das relações que existem entre ela e o sujeito, ou seja, um reflexo que distingue as propriedades objetivas estáveis da realidade. [...] A consciência humana distingue a realidade objetiva do seu reflexo, o que leva a distinguir o mundo das impressões interiores e torna possível, com isso, o desenvolvimento da observação de si mesmo.
Conforme aponta Vygotsky (2001, p. 44), a consciência pode ser compreendida como
“as formas mais complexas de organização do nosso comportamento, particularmente como
certo desdobramento da experiência, que permite prever por antecipação os resultados do
trabalho e encaminhar as nossas próprias respostas no sentido desse resultado”. Pode-se
definir a consciência, portanto, como a função psicológica que estabelece a distinção entre a
dimensão subjetiva e a objetiva da realidade. Segundo Aguiar (2001), a consciência origina-se
a partir da relação do homem com a realidade e pode ser compreendida como um sistema
integrado, em permanente movimento, no qual as condições históricas e sociais se
transformam em construções simbólicas e singulares, por meio de um processo de conversão.
A autora explica que a constituição do homem e de sua consciência é a síntese do processo de
transformação do social em individual, ou seja, a construção de um mundo interno, subjetivo,
a partir da relação dialética com a realidade objetiva. Assim, a consciência apresenta-se como
um fenômeno histórico, dialético e socialmente determinado: constitui-se e desenvolve-se na
e pela relação com os demais, em um dado tempo e lugar.
É na atividade histórica e socialmente mediada, ao mesmo tempo coletiva e individual,
que o homem se apropria da realidade e constrói sua consciência. Compreender o processo de
aparecimento da consciência na perspectiva sócio-histórica implica compreender as categorias
essenciais que a determinam, sendo a principal delas a atividade. Segundo Leontiev (2004, p.
98), “a estrutura da consciência do homem transforma-se com a estrutura da sua atividade”.
Dessa forma, a consciência conserva um caráter mutável diante do desenvolvimento histórico
44
e social do indivíduo, caráter este que decorre da integração entre mecanismos que compõem
o processo de apropriação e as relações de produção que determinam as condições de
existência. De acordo com Aguiar (2001), a consciência tem um caráter social e histórico,
origina-se a partir da relação do homem com a realidade e está ligada ao trabalho e à
linguagem.
A compreensão da categoria “consciência” é fundamental para a apreensão das demais
categorias da Psicologia Sócio-Histórica, uma vez que estas se constituem mutuamente, numa
relação dialética. Assim, a constituição da consciência encontra-se profundamente ligada à
atividade mediada, uma vez que ambas se configuram dialeticamente: a atividade proporciona
o desenvolvimento da consciência, e esta, por sua vez, determina o desenvolvimento da
atividade mediada. Ao mesmo tempo, a consciência é produzida e produtora do
desenvolvimento da linguagem e, portanto, do pensamento. Além disso, os sentidos e os
significados são os principais componentes da estrutura interna da consciência (LEONTIEV,
2004). Dessa forma, estudar o desenvolvimento da consciência em seu caráter histórico e
social desempenha um papel central na compreensão da atividade docente e na aproximação
dos sentidos e significados constituídos pelo professor.
1.3 Mediação
A mediação é compreendida como uma instância que articula fatos e fenômenos, que
os constitui, possibilitando a existência de ambos. Assim, ela não deve ser vista como a mera
ligação de dois elementos, pois representa o próprio centro organizador da relação entre esses
elementos. Pode-se dizer, portanto, que a mediação é o processo pelo qual os indivíduos se
apropriam da realidade objetiva. Severino (2001, p. 44) a define da seguinte forma: “uma
instância que relaciona objetos, processos ou situações entre si; [...] o conceito designa um
elemento que viabiliza a realização de outro e que, embora distinto dele, garante a sua
efetivação, dando-lhe concretude”.
A realização da atividade e, consequentemente, os processos de subjetivação e
objetivação que são dela constitutivos, não ocorrem de forma direta. Esses processos são
sempre mediados, ou seja, a atividade não é subjetivada em si, ela é mediada semioticamente,
ao ser subjetivada (AGUIAR, 2001). A mediação, ou a realização de atividades mediadoras,
acontece por meio de instrumentos e signos. Os instrumentos são as ferramentas que o
homem desenvolve e utiliza para transformar a natureza, e trazem em si, cristalizadas, as
atividades nas quais e para as quais foram desenvolvidos. Nesse sentido, o instrumento não é
45
apenas um objeto dotado de determinadas características físicas: ele é, também e
principalmente, um objeto social, produto de uma prática social de trabalho: O uso do instrumento só será possível se o homem tiver consciência das propriedades objetivas do objeto da ação, pois o instrumento passa a ser portador da primeira abstração, ou generalização, consciente e racional. [...] O instrumento passa a ser considerado como um modo de uso que lhe foi conferido socialmente, no decurso do trabalho coletivo. Por exemplo, o machado não é simplesmente um objeto feito da junção de partes de materiais, mas um meio de ação que foi elaborado socialmente, ou seja, o machado refere-se às operações de trabalho que foram nele condensadas. Desta forma, possuir um instrumento não é apenas ter um objeto: é, sobretudo, estar de posse também da ação em que ele é o elemento material para realizá-la. (DAVIS; AGUIAR, no prelo b, p. 9).
Ao passo que os signos são sistemas simbólicos que dirigem a atividade interna do
homem. As funções psicológicas superiores são mediadas por esses instrumentos culturais.
De acordo com Severino (2001, p. 35): Como objeto da experiência, o mundo só alcança o homem através da mediação simbólica. Para chegar ao sujeito, o mundo passa pelo corpo, via órgãos dos sentidos. Mas esses elementos percebidos nada expressariam além de suas afecções neurofisiológicas se não se redimensionassem enquanto símbolos.
Conforme aponta Vygotsky (2003, p. 71), o signo, na condição de instrumento da
atividade psicológica, é mediador, pois ele reorganiza toda a estrutura das funções
psicológicas superiores, assim como a inclusão de uma ferramenta reorganiza toda a estrutura
de um processo de trabalho: “a analogia básica entre signo e instrumento repousa na função
mediadora que os caracteriza”. Os signos, fundamentais no processo de reorganização
qualitativa das funções psicológicas, formam um centro estrutural que determina a
composição de tais funções e a importância relativa de cada processo. De acordo com
Veresov (2010, p. 86-87): Em outras palavras, olhando sob uma perspectiva estrutural, o signo é o produto do desenvolvimento. Mas uma análise apenas estrutural da mediação simbólica não é suficiente: a abordagem genética é necessária. Nas palavras de Vygotsky, o desenvolvimento mental consiste na “transição das formas diretas, inatas e naturais de comportamento para funções mentais mediadas e artificiais, que se desenvolvem no processo de desenvolvimento cultural”. Portanto, o segundo ponto crucial sobre o signo e a mediação simbólica na teoria histórico-cultural não consiste em investigar apenas seu lugar e seu papel na estrutura das funções maduras e reorganizadas (os “frutos do desenvolvimento”), mas estudá-las na perspectiva do processo de desenvolvimento, nas transições de seus “brotos” para seus “frutos”. Na teoria histórico-cultural, o signo é um instrumento da mente, que não simplesmente existe, que não apenas reorganiza a estrutura das funções, mas
46
que surge da necessidade, no processo de desenvolvimento cultural das funções psicológicas superiores. [...] A teoria histórico-cultural apresenta o signo em uma perspectiva do desenvolvimento: o signo (ou o sistema simbólico) existe originalmente como uma ferramenta externa, como um tipo de material cultural e, posteriormente, torna-se um instrumento da atividade mediadora interna. Aqui, novamente, vemos que a mediação simbólica é apresentada do ponto de vista da transição da ação não mediada para a ação mediada. 8
A diferença mais substancial entre o signo e o instrumento é que o instrumento é
externamente dirigido, uma vez que faz a atividade do homem convergir para o objeto de sua
atividade externa, resultando em alguma mudança nesse objeto, ou seja, o instrumento dirige-
se à transformação da realidade concreta, à transformação da natureza. Por sua vez, os signos
se dirigem à atividade interna do homem, controlando seus processos comportamentais e
cognitivos, transformando suas funções elementares em funções psicológicas superiores, ou
seja: são internamente dirigidos e se voltam para a transformação do indivíduo (VERESOV,
2010). Apesar de Vygotsky ter traçado uma analogia entre signos e instrumentos, a diferença
entre ambos é evidenciada por Veresov (2005, p. 44-45): Em outras palavras, para Vygotsky o signo não é como uma ferramenta de trabalho (assim como uma analogia não é um sinônimo!). Um signo cultural (por exemplo, uma palavra, gesto ou mesmo um sinal de trânsito) faz sentido no fato de ser dirigido a outras pessoas. Um signo é um meio para a realização das relações sociais (na forma de comunicação), incluindo o amplo contexto social de comunicação. As relações sociais concretas nas quais a criança participa da comunicação são a fonte da mente humana (incluindo os componentes volitivo-emocionais). Em outras palavras, signo, como uma ferramenta psicológica, origina-se nas situações sociais de desenvolvimento. Além disso, a atividade interna (funções psicológicas mediadas pelos signos, originalmente sociais) é essencialmente diferente de atividade orientada ao objeto (mediada pelas ferramentas de trabalho) e não é dela derivada. Atividades externas (dirigidas ao objeto) e internas (mentais) são essencialmente diferentes em função dos diferentes meios de organização e dos diferentes tipos de mediação envolvidos. 9
8 “In other words, looking at it from a structural perspective, the sign is the product of development. But just a structural analysis of sign mediation is not enough; the genetic approach is needed. In Vygotsky’s words, mental development consists in the transition from direct, innate, natural forms and methods of behavior to mediated, artificial mental functions that develop in the process of cultural development. [13, p. 168]. Therefore, the second crucial point about sign and sign mediation in cultural-historical theory was not to investigate its place and role in the structure of matured (what) reorganised functions (fruits of development) only, but to study it within the frames of developmental process, i. e., within the transition from the buds of development to its fruits. In cultural-historical theory, the sign is a mental tool (tool of mind) which does not simply exist, and does not only reorganize the structure of functions, but arises with necessity in the process of the cultural development of the higher mental functions. […] Cultural Historical Theory presents the sign from developmental perspective: the sign (or system of signs) originally exists as an external tool, as a kind of cultural material, and later it becomes a tool of internal mediating activity. Here again we see that sign mediation is presented in cultural historical theory from the point of view of the transition from non-mediated to mediated action.” 9 “In other words, for Vygotsky the sign is not like tool of labor (just as an analogue is not a synonym!). A cultural sign (for example, a word, gesture or even a traffic sign) makes sense in its being directed towards other
47
Assim, na realização de uma atividade externa – sempre mediada pelos instrumentos e
pela realidade social – o indivíduo objetiva aspectos de sua subjetividade. Ao mesmo tempo,
na realização de uma atividade interna – sempre mediada pelos signos – o individuo subjetiva
aspectos da realidade social. Os signos, instrumentos psicológicos, podem assumir diferentes
configurações. No entanto, pode-se afirmar que a linguagem é o principal sistema simbólico
constituído/constitutivo do homem. A seguir, as categorias linguagem e pensamento serão
brevemente apresentadas, pois apenas por meio da discussão de tais categorias é possível
apreender a constituição dos sentidos e dos significados, e como eles se articulam na
subjetividade do sujeito.
1.4 Pensamento e linguagem
A linguagem é um sistema de signos, sendo principalmente por meio dela que o
homem se apropria da cultura que o cerca. Ao nascer em um contexto humanizado, a criança
depara-se constantemente com a linguagem e, aos poucos, dela se apropria por meio das
relações sociais que estabelece com o mundo a seu redor. Da mesma forma que ocorre com as
demais atividades mediadoras, a linguagem aparece inicialmente como um processo
interpsíquico que, ao ser subjetivado, torna-se um processo intrapsíquico. Assim, a linguagem
desenvolve-se, primeiramente, para suprir uma necessidade comunicativa da criança em
relação ao mundo e realiza-se apenas na relação com o outro. A linguagem exterior é,
portanto, uma linguagem para o outro.
Em um segundo momento, a linguagem começa a ser internalizada: a criança exibe
uma fala “egocêntrica”, como se falasse consigo mesma. Essa fala egocêntrica desempenha
um papel fundamental no desenvolvimento infantil, dado que “é tão importante quanto a ação,
para [a criança] atingir um objetivo. As crianças não ficam simplesmente falando o que elas
estão fazendo; sua fala e ação fazem parte de uma mesma função psicológica complexa,
dirigida para a solução de problemas” (VYGOTSKY, 2003, p. 34). O autor explica, então,
que a fala egocêntrica constitui uma forma de transição entre a fala exterior e a interior. Aos
poucos, a criança internaliza a fala socializada, de modo que esta passa a desempenhar não só
people. A sign is a means for conducting social relations (in the form of communication), including the wide social context of communication. The concrete social relations within which the child participates in communication are the source of the human mind (including volitional-emotional components). In other words, sign as a psychological tool originates in the social situation of development. Moreover, internal activity (sign-mediated mental functions, originally social ones) is essentially different from object-oriented activity (mediated by tools of labor) and is not derivative from it. External (object-related) and internal (mental) activities are essentially different because of the different means of organization and different types of mediation involved.”
48
uma função interpessoal, mas também intrapessoal. Vygotsky afirma que o processo de
internalização da fala social ocorre de modo que, num primeiro estágio, a fala acompanha as
ações da criança; num estágio posterior, a fala se desloca em direção ao início do processo, de
forma que passa a preceder a ação. Passa a desempenhar, portanto, a função de planejamento
da ação: “inicialmente a fala segue a ação, sendo provocada e dominada pela atividade.
Posteriormente, entretanto, quando a fala se desloca para o início da atividade, surge uma
nova relação entre palavra e ação” (VYGOTSKY, 2003, p. 37). Uma vez que a criança
aprende a empregar a linguagem para planejar sua atividade, seu campo psicológico
transforma-se radicalmente. Dessa forma, a linguagem egocêntrica é compreendida como uma
das manifestações da transição das funções interpsicológicas para as intrapsicológicas. Essa
transição, como salienta Vygotsky (2001), é uma lei geral do desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, que surgem como formas de atividade externa, socialmente mediada,
para então serem subjetivadas, constituindo atividades internas.
Conforme a criança vai internalizando a linguagem exterior e abandonando a fala
egocêntrica, vai constituindo a linguagem interior. Esta é uma linguagem para si, não para os
outros. Segundo Vygotsky (2001, p. 425), existe uma diferença fundamental entre a
linguagem exterior e a interior: “não se pode admitir nem por antecipação que essa diferença
radical e fundamental de funções dessa ou daquela linguagem possa não ter consequências
para a natureza estrutural de ambas as funções discursivas”. Vale ressaltar que a diferença
entre ambas não está relacionada com a vocalização da palavra, mas sim com a estrutura e a
função de cada uma: “o estudo da natureza psicológica da linguagem interior [...] nos
convenceu de que a linguagem interior não deve ser vista como fala menos som mas como
uma função discursiva absolutamente específica e original por sua estrutura e seu
funcionamento” (VYGOTSKY, 2001, p. 445). Ao internalizar a linguagem, a criança é capaz
de realizar uma fala inteiramente interna. Esse momento caracteriza-se pelo fato de a criança
ter apreendido, da linguagem externa, os aspectos semânticos, os significados, passando a
empregá-los não mais apenas para a comunicação, mas para a organização de seu
pensamento. Assim, a linguagem é fundamental na construção e na organização do
pensamento.
Isso significa que a linguagem não é apenas mediadora na relação entre os indivíduos:
ela é, também, mediadora da relação dialética entre pensamento e palavra. Pode-se afirmar,
consequentemente, que a linguagem é o instrumento do pensamento. É por meio dela que o
pensamento se constitui, se organiza, se expressa. Cabe ressaltar que o pensamento e a fala
49
têm raízes diferentes, de modo que existe um estágio pré-intelectual no desenvolvimento da
fala infantil e um estágio pré-verbal no desenvolvimento de seu pensamento. Até determinado
ponto do desenvolvimento da criança, ambas as modalidades seguem linhas diferentes e
independentes, até que as linhas se cruzam, e o pensamento torna-se verbal e a linguagem,
intelectual (VYGOTSKY, 2001). Assim, não existe um vínculo primário entre pensamento e
palavra. Esse vínculo surge, modifica-se e amplia-se no processo de desenvolvimento da
palavra e do pensamento. Pensamento e palavra possuem raízes genéticas diferentes, mas
mantêm uma relação dialética, na qual ambos se constituem mutuamente, apesar de não se
diluírem um no outro. De acordo com Vygotsky (2001a, p. 412):
Por sua estrutura, a linguagem não é um simples reflexo especular da estrutura do pensamento, razão pela qual não se pode esperar que o pensamento seja uma veste pronta. A linguagem não serve como expressão de um pensamento pronto. Ao transformar-se em linguagem, o pensamento se reestrutura e se modifica. O pensamento não se expressa, mas se realiza na palavra.
Partindo da relação dialética entre pensamento e palavra, conclui-se que a palavra com
significado pode ser objeto de análise do pensamento humano, pois contém as características
e propriedades do pensamento discursivo como um todo. O significado constitui, portanto, a
principal unidade de análise das funções psicológicas superiores. A palavra é uma unidade
viva de som e significado, que nunca se refere a um objeto isolado, mas sim a um grupo ou a
uma classe de objetos, compondo sempre como uma generalização ou significação. Conforme
aponta Vygotsky (2001, p. 398): Encontramos no significado da palavra a unidade que reflete de forma mais simples a unidade do pensamento e da linguagem. O significado da palavra [...] é uma unidade indecomponível de ambos os processos e não podemos dizer que ele seja um fenômeno da linguagem ou um fenômeno do pensamento. A palavra desprovida de significado não é uma palavra, é um som vazio. Logo, o significado é um traço constitutivo indispensável da palavra. É a própria palavra vista em seu aspecto interior [...]. Do ponto de vista psicológico, o significado da palavra não é senão uma generalização ou conceito. Generalização e significado da palavra são sinônimos. Toda generalização, toda formação de conceitos é o ato mais específico, mais autêntico e mais indiscutível de pensamento. Consequentemente, estamos autorizados a considerar o significado da palavra como fenômeno do pensamento.
O autor elucida essa questão ao afirmar que o significado da palavra é um fenômeno
do pensamento na medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela
materializado. E é um fenômeno da linguagem na medida em que a linguagem está vinculada
50
ao pensamento: “É um fenômeno do pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a
unidade da palavra com o pensamento” (VYGOTSKY, 2001, p. 398, grifo do autor). Ele
aponta que, no campo semântico, os significados correspondem às relações que uma palavra
pode encerrar; no campo psicológico, são generalizações, conceitos. Essas generalizações
permitem uma aproximação dos processos subjetivos, o que faz que os significados, assim
como os sentidos, constituam-se em categorias centrais para a Psicologia Sócio-Histórica.
1.5 Sentido e significado
Apesar de serem categorias distintas, de forma que cada uma apresenta sua
singularidade, sentido e significado travam entre si uma relação dialética na qual se
constituem mutuamente, sendo indissociáveis e impossíveis de serem compreendidos
separadamente. Os significados podem ser definidos como construções ou acordos sociais,
sínteses provisórias, compartilhadas socialmente e elaboradas historicamente. Como aponta
Vygotsky (2001), os significados constituem a unidade da palavra e do pensamento, ou seja,
do ponto de vista psicológico, são conceitos ou generalizações; do ponto de vista semântico,
são acordos sociais acerca das palavras. Portanto, embora sejam relativamente estáveis, pois
permitem a comunicação entre os indivíduos e a socialização de experiências, os significados
transformam-se e desenvolvem-se ao longo da história e nas diferentes relações. O caráter
compartilhado dos significados faz que eles se situem mais no âmbito do social e é nessa
condição que são apreendidos pelos sujeitos (AGUIAR; OZELLA, 2006). Assim, os
significados podem ser compreendidos como definições ou conceitos formados no processo
social e histórico e que são representados pela palavra, o que os coloca em um sistema de
relações objetivas. O significado carrega, portanto, a experiência social. De acordo com
Leontiev (2004, p. 100), o significado “é aquilo que num objeto ou fenômeno se descobre
objetivamente num sistema de ligações, de interações e de relações objetivas. A significação é
refletida e fixada na linguagem, o que lhe confere estabilidade”. Ainda segundo o autor, o
significado: É a generalização da realidade que é cristalizada e fixada num vetor invisível. Ordinariamente a palavra ou a locução. É a forma ideal, espiritual da cristalização da experiência e da prática sociais da humanidade. A sua esfera das representações é uma sociedade, a sua ciência, a sua língua existem enquanto sistemas de significação correspondentes. A significação pertence, portanto, antes ao mundo dos fenômenos objetivamente históricos. [...] Assim, psicologicamente, a significação é, entrada na minha consciência, o reflexo generalizado da realidade elaborada pela humanidade
51
e fixada pela forma de conceitos, de um saber ou mesmo de um saber-fazer. (LEONTIEV, 2004, p. 100-102).
A relação do homem com os múltiplos significados das palavras faz, por sua vez,
surgir o sentido. É na apropriação dos significados sociais que o sujeito constrói
paulatinamente seus sentidos, de maneira que se pode afirmar que o sentido resulta do
confronto entre os significados socialmente acordados e a vivência de cada indivíduo em
particular (AGUIAR; OZELLA, 2006). Dessa forma, o sentido ainda se relaciona aos
aspectos objetivos da palavra, mas se encontra integrado às experiências e às vivências do
indivíduo. Leontiev (2004, p. 102) elucida essa questão: O homem encontra um sistema de significações pronto, elaborado historicamente, e apropria-se dele tal como se apropria de um instrumento, esse precursor material da significação. O fato propriamente psicológico, o fato da minha vida, é que eu me aproprie ou não, que eu assimile ou não uma dada significação, em que grau eu assimilo e também o que ela se torna para mim, para minha personalidade; este último elemento depende do sentido subjetivo e pessoal que esta significação tenha para mim.
Assim, ao passo que os significados são compartilhados socialmente, os sentidos são
singulares, pessoais e instáveis, pois são construções de cada sujeito ao longo de sua história
de vida, processados nas relações sociais que estabelece, na articulação entre experiências,
emoções e relações. São, portanto, resultantes da relação dialética existente entre o sujeito e o
mundo histórico e social. Os sentidos contêm, portanto, aspectos objetivos, uma vez que são
constituídos numa relação objetiva entre sujeito e mundo, de modo que se pode dizer que os
significados são a parte mais objetiva dos sentidos. Nas palavras de Leontiev (2004, p. 245),
“o sentido é parte integrante da consciência, sendo pessoal e único para cada indivíduo”.
Ainda segundo autor: “a entrada dessa significação na consciência do indivíduo dá-se de
maneira não conscientizada, ou seja, ela não é pensada [...] o sentido traduz, precisamente, a
relação do sujeito com os fenômenos objetivos conscientizados”, ou seja, traduz a relação do
sujeito com os significados socialmente construídos.
Vygotsky (2001, p. 465) assinala que “o sentido de uma palavra é a soma de todos os
fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma
formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada”. O
significado é, desse modo, a zona mais estável dos sentidos, os quais se encontram mais no
campo do sujeito, de sua singularidade. O sentido é muito mais amplo que o significado, pois
constitui a articulação entre os eventos psicológicos que o sujeito produz em dada realidade
52
(AGUIAR; OZELLA, 2006). Um mesmo evento gera diferentes sentidos para cada um dos
indivíduos que dele participam, cada um o percebe por um prisma particular e idiossincrático,
constituído e constituinte de uma teia de sentidos dinâmica e fluida, ainda que sócio-
historicamente construída. O sentido destaca justamente essa singularidade historicamente
construída, razão que permite afirmar sua dinâmica própria: ele traduz a relação subjetiva do
sujeito com os fenômenos objetivos.
De acordo com Rey (2005), os conteúdos referentes aos sentimentos e pensamentos
relacionados às práticas sociais são elementos de sentido subjetivo10, constituídos nas
diferentes relações da vida em sociedade. Assim, o autor define sentido subjetivo como um
sistema complexo e dinâmico, a unidade inseparável dos processos simbólicos e das emoções
num mesmo sistema, no qual a presença de um desses elementos evoca o outro, sem que seja
por ele absorvido. Ainda segundo Rey (apud TACCA, 2005, p. 236), o sentido subjetivo é
“um sistema subjetivo que expressa, de forma única e diferenciada, o valor subjetivo de uma
experiência para um indivíduo e para um espaço social concreto”.
De acordo com Aguiar e Ozella (2006), os significados constituem o ponto de partida
para uma melhor compreensão do sujeito. Por conterem mais do que aparentam, sua análise e
interpretação torna possível caminhar para as zonas mais instáveis, fluidas e profundas, ou
seja, para as zonas de sentido. Sendo os significados a parte mais objetiva dos sentidos, ao
acessar os significados, também se acessam os processos subjetivos, constituídos pelos
sentidos. É impossível apreender os sentidos sem contemplar os significados, assim como é
impossível compreender os significados sem relacioná-los aos sentidos. Aguiar e Ozella
(2006) ressaltam, ainda, que apreender os sentidos não significa alcançar uma resposta única,
definida e coerente, visto que representam a busca de expressões do sujeito que são, muitas
vezes, contraditórias, parciais e complexas. De fato, o sentido não se revela facilmente, pois
não está na aparência e, muitas vezes, o próprio sujeito os desconhece.
No que concerne aos sentidos e aos significados constituídos pelos professores, vale
notar que as relações pedagógicas são constituídas por diversas configurações de sentidos e
significados, produzidas nas relações estabelecidas nos espaços sociais, e os protagonistas
dessas relações não são somente os professores e os alunos, mas todos os envolvidos nas
dimensões dos processos subjetivos que compõem a educação escolar. Entre os possíveis
indicadores da produção de sentidos nas relações escolares, encontram-se a infraestrutura das
10 Rey (2005) emprega a terminologia “sentidos subjetivos” para se referir aos sentidos. Assim, na presente pesquisa, nos momentos em que o texto se pauta pelas ideias desse autor, emprega-se a terminologia por ele utilizada.
53
instituições, os aspectos relacionados às condições concretas de trabalho, as relações
estabelecidas entre todos os indivíduos ali presentes, as práticas docentes, a formação dos
profissionais, a gestão educacional, as propostas curriculares e as políticas de
profissionalização docente (STANGHERLIM, 1999). É importante ressaltar que os sentidos
estão em constante movimento de reconfiguração e transformação, de modo que não podem
ser universalizados, uma vez que se configuram em uma determinada realidade escolar, por
indivíduos singulares, com experiências próprias e particulares.
1.6 Subjetividade
A subjetividade é uma categoria compreendida como um sistema de produção e
articulação de sentidos e significados, os quais são constituídos a partir de múltiplos
elementos. Para Leontiev (1978, p. 142), a subjetividade é o que “permite a particularidade do
indivíduo, seja nas esferas constitutivas das funções psíquicas, da atividade, da consciência e,
também da personalidade. O fato da subjetividade referir-se àquilo que é único e singular do
sujeito não significa que sua gênese esteja no interior do indivíduo”. Nessa perspectiva, a
subjetividade é a articulação entre o social e o individual.
Isso se dá porque o processo dialético de apropriação, ou seja, de objetivação e
subjetivação, envolvido na atividade, não ocorre de forma direta: ele é sempre mediado pela
realidade social e histórica. Quando o indivíduo se apropria de seu meio social, o objetivo
transforma-se em subjetivo, um processo que não se dá de maneira imediata, mas mediada
pelos sentidos e significados. Dessa forma, o homem apropria-se da realidade a partir de sua
subjetividade e, dialeticamente, constitui sua subjetividade a partir da realidade social e
histórica. Isso significa que, a partir das relações entre o indivíduo e a realidade, esta se
transforma e transforma também o indivíduo, configurando sua subjetividade.
De acordo com Rey (2005), a subjetividade possui caráter multidimensional, recursivo
e contraditório, tanto em sua dimensão individual quanto social, sendo constituída por
configurações de sentidos subjetivos. Essas configurações se formam quando os elementos de
sentido de diferentes experiências de vida do sujeito emergem no decorrer de uma atividade
praticada por ele, integrando-se umas às outras. A formação social da mente é um processo de
produção de sentidos e significados, não podendo ser entendida como mera interiorização das
condições externas do meio. Ainda segundo o autor:
A teoria da subjetividade que assumo rompe com a representação que constringe a subjetividade ao intrapsíquico e se orienta para uma apresentação da subjetividade que em todo momento se manifesta na
54
dialética entre social e individual, esse último representado por um sujeito implicado de forma constante no processo de suas práticas, de suas reflexões e de seus sentidos subjetivos. O sujeito representa um momento de contradição e confrontação não somente com o social, mas também com sua própria constituição subjetiva, que representa um momento gerador de sentido de suas práticas. (REY, 2005, p. 240).
A constituição da subjetividade é um processo complexo, que surge na relação
dialética entre o homem e a sociedade, ou seja, origina-se do movimento social/individual,
por meio do qual o social se subjetiva e o subjetivo se objetiva. Assim, a subjetividade
consiste numa configuração que é, concomitantemente, subjetiva e objetiva. É uma forma
qualitativa de existência do real, irredutível a outros níveis, como o biológico e o social. De
acordo com Bock e Gonçalves (2005, p. 113-114): A subjetividade, processo individual que congrega as experiências do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, consequência e condição dessas experiências, constitui-se nesse mesmo processo. De acordo com a concepção sócio-histórica, a subjetividade é constituída em relação dialética com a objetividade e tem caráter histórico. Isso quer dizer que é na materialidade social que se encontra a gênese das experiências humanas que se convertem em aspectos psicológicos; quer dizer ainda que as experiências individuais e subjetivas são possíveis apenas a partir das relações sociais e do espaço da intersubjetividade, e que esses têm existência e determinação material e histórica; por fim, quer dizer que a subjetividade não está pré-definida em cada indivíduo nem se constitui de processos ou estruturas universais da humanidade. Ao contrário, configura-se como algo que se constitui nessas condições e que está sempre em processo, uma vez que decorre de situações concretas que incluem, necessariamente, a atividade objetiva e subjetiva do indivíduo.
Assim, a dimensão social e a subjetiva, embora diferentes, se constituem mutuamente,
e ambas constituem o sujeito. Na subjetividade, encontram-se articulados o social e o
individual como dimensões de um mesmo processo, que os relaciona e integra, provocando o
desenvolvimento de ambos. Ao constituir sua subjetividade, o indivíduo interage com os
diferentes sistemas de relações sociais e reconfigura, continuamente, sua subjetividade.
Segundo Rey (2005), a subjetividade se organiza por processos e configurações que se
interpenetram continuamente, de modo que estão em constante movimento e
desenvolvimento. Ainda segundo o autor, o sentido subjetivo, constituído a partir de uma
dada experiência do indivíduo, não é a expressão direta da interação entre o indivíduo e a
experiência. Ele é, sim, o resultado de uma reorganização, realizada pelo sujeito, que integra o
interno e o externo de forma dialética, estabelecendo, dessa forma, uma nova dimensão
subjetiva, que se converte também em social.
55
Constituindo-se na relação entre o social e o individual – relação que é, sempre,
mediada pelos sentidos e significados – a subjetividade apresenta-se como uma categoria
fundamental para a apreensão de tais sentidos e significados, uma vez que é por eles
constituída. A subjetividade é, portanto, uma categoria de análise central para possibilitar a
compreensão do processo de constituição da singularidade do professor. Segundo Cunha
(2005, p. 203-204): Quando refletimos sobre o processo de constituição do professor no dia a dia da sala de aula [...] constatamos, mais uma vez, que, do ponto de vista de uma análise histórico-cultural, a constituição do professor ocorre de acordo com as vivências e as relações desse profissional, quaisquer que sejam elas. Constatamos, também, que a significação e a produção de sentidos são operações que fundamentam as experiências na sala de aula e que o professor, quando produz seu trabalho ou fala sobre si mesmo, enfatiza aquelas questões que, em um determinado momento, são consideradas por ele, como significativas. Por isso, tais produções podem indicar uma síntese personalizada do processo social de constituição do sujeito. Podemos tomar, assim, o que é falado/pensado/discutido/feito pelo professor em relação às condições de produção do cotidiano da escola e da sala de aula, como indícios da constituição do sujeito. [...] Consideramos que a reflexão, o julgamento e as ações que o professor realiza no cotidiano da escola são vias de significação e produção de sentidos.
Dessa forma, investigar as configurações de significados e sentidos construídas pelo
sujeito acerca de um determinado fenômeno implica investigar o processo de constituição de
sua singularidade, ou seja, de sua subjetividade. O espaço escolar e todas as relações que ali
se desenvolvem representam espaços de desenvolvimento do sujeito e, por conseguinte, da de
sua subjetividade, tornando-se, portanto, necessário contemplá-la quando se busca uma
aproximação entre os sentidos e os significados atribuídos pelos professores às dificuldades
de aprendizagem.
2 Categorias centrais da Clínica da Atividade
Considerando que a atividade de trabalho assume um papel mediador entre o homem e
a natureza – ao agir sobre a natureza, transformando-a de acordo com suas necessidades, o
sujeito também é transformado pelos efeitos e resultados de sua ação –, a análise do trabalho
não pode se restringir a sua dimensão técnica, econômica ou social, justamente por ser,
também, subjetivo e intersubjetivo (DEJOURS; MOLINIER apud CLOT, 2010). Buscando
compreender a atividade de trabalho em suas esferas mais profundas, o pesquisador Yves Clot
e seus colaboradores do Conservatoire National des Arts et Métiers desenvolveram uma
56
proposta metodológica para análise do trabalho denominada Clínica da Atividade. Sua base
teórica assenta-se nos postulados de Vygotsky, assumindo, ao mesmo tempo, a tradição da
psicopatologia do trabalho (LE GUILLANT, 1984; BILLIARD, 1998) e da ergonomia
francesa (WISNER, 1995; DANIELLOU, 1996). O objetivo central dessa abordagem é
transformar para compreender e, concomitantemente, compreender para transformar: “sem
esse compromisso, não acreditamos que a análise do trabalho possa trazer alguma coisa a
mais para aquele que a ela se entrega junto conosco” (CLOT, 2001a, p. 7). A preocupação
com a ação e com a transformação das situações de trabalho é, portanto, o que move os
esforços da Clinica da Atividade:
É verdade, que o objetivo é compreender para transformar. Nesse sentido, eu penso que a ergonomia também é Análise, desse ponto de vista. Quer dizer, é um dispositivo de transformação da situação e de restauração da saúde. É por isso que é Clínica: por buscar transformar a situação e também em função do modelo teórico que se adota. Evidentemente, quando dizemos “clínico” em psicologia, pensamos imediatamente no modelo de psicanálise. É por isso que podemos dizer que a psicodinâmica do trabalho, na tradição psicanalítica, é também uma Análise do trabalho. É verdade, eu decidi manter a ideia de “Clínica” ao lado, colada, digamos assim, à de “atividade”. Trata-se de uma Clínica da atividade, porque eu insisto no fato de que não podemos tratar da atividade sem tratar da subjetividade. De certa forma, a diferença entre a ergonomia e a “Análise da Atividade” reside no fato de que atividade e subjetividade são inseparáveis e é essa dupla – atividade e subjetividade – que me interessa na situação de trabalho. Por isso, eu uso o termo “clínico”: clínico do ponto de vista do meu engajamento, do lado da experiência vivida, do sentido do trabalho e do não sentido do trabalho; “clínico” do ponto de vista da restauração da capacidade diminuída. A Análise médica visa restaurar a saúde, e a “Clínica da Atividade” é a ação para restituir o poder do sujeito sobre a situação. Essa ideia eu tomo do meio médico porque eu tenho em conta uma tradição em psicopatologia do trabalho dada pelos trabalhos de Le Guillant, cuja característica é o retomar a Análise sem ter como referência essencial a psicanálise; por isso, eu me interessei por Le Guillant. [...] Trata-se de uma Análise do trabalho porque traz a ideia de que é preciso disciplina: trata-se de Análise, no sentido médico, por ter como objeto uma doença nas situações reais de trabalho. Além disso, baseia-se na ideia de que a psicologia do trabalho parte do campo (da realidade de trabalho) e volta ao campo. Em suma, a ideia é a de que não há psicologia do trabalho sem transformação da situação de trabalho. (CLOT, 2006b, p. 167).
Fica evidente, no trecho acima, que a preocupação de restaurar a saúde do trabalhador
e ampliar seu poder de agir sobre a própria atividade de trabalho assume papel fundamental
nesse processo. Clot define saúde como poder de agir sobre si e sobre o mundo. Para o autor,
a saúde está diretamente ligada à atividade vital de um sujeito, não no sentido de manutenção
da normalidade, mas no de possibilitar-lhe ir além da norma e de instituir normas novas em
57
situações novas, permitindo a transformação de uma experiência vivida em forma de se viver
outras experiências. Assim, o objetivo da Clínica da Atividade de restaurar a saúde do
trabalhador implica “aumentar o poder de agir dos coletivos de trabalhadores dentro do
ambiente de trabalho real e sobre si mesmos” (CLOT, 2001a, p. 8).
Segundo Murta (2008), a partir de observações de atividades de trabalho em situações
reais, pesquisadores da ergonomia francesa perceberam que geralmente a atividade realizada
não correspondia ao que era esperado, ou seja, ao prescrito. Assim, a ergonomia francesa tem
distinguido a tarefa prescrita da atividade realizada, considerando existir uma distância entre
aquilo que deve ser feito – a tarefa – e a atividade – aquilo que efetivamente se faz. A tarefa
refere-se, mais precisamente, ao resultado esperado da atividade, ou seja, direciona a
atividade para a obtenção de seus objetivos utilizando determinados meios. É algo prescrito
ao sujeito, que requer dele adaptação às condições de execução da atividade. A tarefa tem
como principais características as descritas a seguir: sempre antecede a atividade; sugere,
implícita ou explicitamente, uma forma de execução do prescrito e, ainda, requer do sujeito
uma dupla atividade: a de elaboração mental e a manual. Envolve, dessa forma, como
determinantes no trabalho, aspectos institucionais e normativos, formais e informais
(FERREIRA, 2000). No entanto, segundo Clot (2004), a tarefa não considera as relações entre
o objeto e o meio, ou seja, o prescrito não considera as inúmeras variáveis que podem vir a
constituir a atividade. A tarefa é, portanto, incapaz de contemplar a multiplicidade de
possibilidades de atividades que a perpassam, de modo que só se transforma em atividade
porque o sujeito não se limita a suas imposições. Logo, é preciso deliberadamente transcender
o anunciado na tarefa para que se possa realizá-la. Clot (2001) denomina atividade realizada
aquela que efetivamente ocorreu, ou seja, a atividade passível de ser observada ao longo de
sua realização. Assim, a atividade realizada diz respeito à “atualização de uma das atividades
realizáveis, na situação em que ela surge. [...] dentro dessa situação, o desenvolvimento da
atividade que venceu é dirigido pelos conflitos entre as atividades concorrentes, que poderiam
ter realizado a mesma tarefa a outros custos” (CLOT et al., 2001, p. 17).
Com base na categoria “atividade”, tal como proposta por Leontiev (2004), bem como
na percepção da distância existente entre tarefa e atividade realizada, Clot (1999; 2001)
avança, ao considerar a atividade sob um espectro mais amplo, destacando que atividade
realizada e atividade real não coincidem. O autor apresenta uma perspectiva de atividade que
não se restringe apenas às ações que foram de fato realizadas, mas também às ações que não o
foram. Propõe, então, a distinção entre atividade real – que indica o que foi realizado e inclui
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tudo o que é observável, ou seja, todas as ações efetivamente desenvolvidas durante o
trabalho – e real da atividade – que designa não só o que foi feito, como também aquilo que
não o foi, que se tentou fazer sem conseguir, que se gostaria de ter feito, que foi feito para
evitar fazer o que deveria ser feito. Assim, atividade é muito mais do que aquilo que foi
efetivamente realizado. Clot (2010, p. 66) recorre à teoria de Vygotsky para explicar que “o
homem está repleto, a cada instante, de possibilidades não realizadas” e que o comportamento
observado se limita sempre ao “sistema de reações vencedoras”. Assim, a atividade oculta,
impedida ou retirada, não está de modo algum ausente. Ela pesa sobre a atividade realizada,
pois ela é apenas a atividade que “venceu” entre inúmeras outras possíveis. Essas últimas,
ainda que não tenham sido escolhidas, permanecem suspensas, impedidas ou contrariadas,
tencionando a atividade realizada e, nessa medida, são dela constitutivas. Por essa razão,
devem ser também incluídas na análise. Segundo Clot (1999, p. 75): [...] a atividade não é apenas aquilo que se faz, mas também o que não se faz, o que não pode ser feito, o que se busca fazer sem lograr êxito (os fracassos), o que poderia ter sido feito, o que se desejou fazer, o que se pensa ou se sonha fazer em outra ocasião, o que fazemos para não fazer o que deve ser feito, o que fazemos sem querer fazer, o que está para ser refeito, o que foi suspenso, o não realizado.
Para Clot (2006, p. 115-116), “as reações que não venceram, as que foram mais (ou
menos) reprimidas, formam resíduos incontrolados, cuja força é apenas suficiente para
exercer uma influência na atividade do sujeito, mas contra a qual ele pode ficar sem defesa”.
Ainda segundo o autor, a atividade possui um conteúdo que ultrapassa a atividade
efetivamente realizada e encontra-se repleta de conflitos que a constituem e tencionam: “a
atividade é uma provação subjetiva, mediante a qual o indivíduo avalia a si próprio e aos
outros, para ter a oportunidade de vir a realizar o que deve ser feito” (CLOT, 2010, p. 104).
Fica clara, portanto, a importância de considerar a atividade de forma ampliada, ressaltando
que ela não se limita ao que pode ser observado: abrange uma série de aspectos não
observáveis, mas que, nem por isso, deixam de constituir e tencionar o que se observa. A
Clínica da Atividade pretende, justamente, conhecer as possibilidades e os conflitos que
tencionam e constituem a atividade, por meio de sua transformação. O objetivo, assim, é
transformar a atividade para compreendê-la, uma vez que os conflitos e as possibilidades não
realizados, constituintes da atividade, não se revelam por meio da simples observação:
revelam-se apenas nos movimentos, em sua dinâmica de desenvolvimento.
A atividade – constituída pela tarefa, pela atividade real e pelo real da atividade –
marca, portanto, o distanciamento entre o que é prescrito e o que é efetivamente realizado.
59
Essa distinção entre prescrito e realizado não é imediata: ela é mediada pelo gênero
profissional, um corpo de avaliações compartilhadas, que regulam a atividade profissional de
forma tácita (CLOT, 2001). Trata-se de um corpo social e simbólico, que se interpõe entre a
organização do trabalho e o próprio sujeito, uma espécie de memória impessoal e coletiva,
mobilizada pela ação, para indicar formas de se comportar profissionalmente. Essas formas de
se relacionar com as coisas e com as pessoas em determinado ambiente de trabalho integram
um repertório de atos adequados (ou inadequados), produzidos e conservados na história
desses ambientes. O gênero remete, desse modo, à “história de um grupo e a uma memória
impessoal de um local de trabalho” (CLOT, 2006, p. 38) e faz-se presente por meio das
prescrições institucionais, que estabelecem normas, papéis, obrigações e condutas e
determinam as atividades, apesar da dimensão subjetiva dos trabalhadores envolvidos (CLOT,
2006; CLOT et al., 2001). Se, por um lado, essas normas tácitas são restritivas, elas são
também um recurso da vida profissional, pois ajudam o sujeito a se situar e a saber como agir
em cada situação de trabalho. De acordo com Clot (2001c, p. 2): É, portanto, de forma essencialmente impessoal, que o gênero profissional exerce uma função psicológica na atividade de cada indivíduo. O gênero organiza as atribuições e as obrigações, definindo essas atividades independentemente das propriedades subjetivas dos indivíduos que as desempenham em determinado momento. Ele não regula as relações intersubjetivas, mas, sim, as relações interprofissionais.
O gênero consiste em um “trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos
profissionais, uma recriação da organização do trabalho pelo trabalho de organização do
coletivo” (CLOT et al., 2001, p. 18). Nessa perspectiva, o gênero profissional é o instrumento
coletivo da atividade, pois permite colocar os recursos da história acumulada a serviço da
atividade profissional em curso. Para o autor, o gênero desempenha um papel central no
desenvolvimento do poder de agir dos trabalhadores, uma vez que “apenas os coletivos
podem operar transformações duradouras em seus ambientes de trabalho” (CLOT et al., 2001,
p. 17).
Tendo em vista essas considerações, o gênero profissional assume uma função
essencial na mobilização psicológica da atividade de trabalho, dado que regula a ação dos
sujeitos nas atividades, apresentando-se como uma espécie de “guia” para a atividade e
contribuindo para minimizar a incidência de erros diante de inúmeras possibilidades. O
gênero define a filiação a um grupo profissional e orienta a ação nesse grupo, “oferecendo,
fora dessa ação, uma forma social que a representa e a precede, prefigura-a e, desse modo, a
significa” (CLOT, 2010, p. 125). Assim, o gênero designa maneiras de ver e agir sobre o
60
mundo consideradas adequadas no grupo, ou seja, constitui significações comuns a um
determinado coletivo profissional: “Trata-se de um sistema flexível de variantes normativas e
de descrições [...] que nos diz como funcionam aqueles com quem trabalhamos, como agir ou
abster-se de agir em situações precisas, e como conduzir a bom termo as transações
interpessoais exigidas pela vida em comum...” (CLOT, 2010, p. 125). Dessa forma, o gênero
desempenha uma função psicológica importante no que se refere às relações interpessoais da
atividade de trabalho.
É interessante ressaltar que, ao mesmo tempo em que é resultante de um processo de
construção coletiva inesgotável, o gênero é também mediação constitutiva da atividade
profissional. Entretanto, o corpo simbólico de normas, procedimentos e prescrições
representado pelo gênero não é apropriado da mesma maneira por todos os profissionais: ele é
objeto de ajuste e retoque por parte daqueles que o constituem. Segundo Clot (2010), a
estabilidade do gênero é sempre transitória, uma vez que ele é um meio para agir com
eficácia, é constantemente submetido à prova da realidade, de modo que se encontra em
constante transformação. Isso porque os sujeitos não aplicam todas as normas contidas no
gênero: eles as adaptam, ajustam, modificam, provocando o aperfeiçoamento do gênero
profissional (CLOT, 2006). O trabalho de ajuste e reelaboração do gênero para transformá-lo
em instrumento de ação é denominado estilo da ação, uma espécie de libertação de certas
imposições genéricas, de atividades prescritas, sem negá-las, mas desenvolvendo-as de
formas diferentes. De acordo com Davis e Aguiar (2009, p. 8): [...] o estilo pessoal está relacionado ao sentido da atividade para o próprio sujeito, dizendo respeito à subjetividade do indivíduo e, tal como ele, constituída social e historicamente. [...] O estilo pessoal é um “jeito” de fazer singular e, ao mesmo tempo, social e histórico. É ele que, de certa forma, contribui para o movimento contínuo e constante de renovação e reconstrução do gênero que, ao ser interiorizado, colabora para a transformação do próprio sujeito. Compreender o estilo é apreender o gênero, porque um constitui o outro.
O estilo não consiste apenas em “libertar-se do gênero profissional, desenvolvendo-o
[...] a libertação do sujeito para agir não está unicamente voltada para o coletivo e suas
obrigações; está voltada também para si mesmo” (CLOT, 2010, p. 128). Assim, Clot et al.
(2001) consideram que o estilo se define como uma dupla libertação do indivíduo, pois, ao
estilizar o gênero na atividade de trabalho, ele liberta-se, simultaneamente, da história
impessoal e pessoal. Em relação à primeira, é essencial o afastamento do corpo simbólico
socialmente imposto, para que o sujeito possa realizar a atividade, imprimindo nela suas
61
particularidades, ao modificar falas, condutas e procedimentos. Simultaneamente, ocorre
também a libertação da história pessoal do indivíduo, ou seja, “seus esquemas pessoais
também são pressionados a se mobilizarem para buscar o melhor ajuste de acordo com o
sentido que confere à atividade e perseguindo a eficiência das operações” (CLOT et al. 2001,
p. 19). Esse movimento de emancipação possibilita o desenvolvimento do indivíduo por lhe
permitir aumentar seu poder de ação sobre o meio e sobre si mesmo (CLOT, 2004; CLOT et
al., 2001).
Além de permitir ao sujeito ampliar seu poder de ação sobre a própria atividade ao
estabelecer variações do gênero, o estilo é capaz de, concomitantemente, transformar o
gênero, na medida em que é por ele validado e “absorvido”. O estilo pessoal constitui-se na
forma como o sujeito se apropria do gênero, de modo que o gênero se movimenta e se
desenvolve a partir de estilos. Segundo Clot (2010, p. 126), o “estilo pessoal é, antes de mais
nada, a transformação dos gêneros na história real das atividades no momento de agir em
função das circunstâncias”. Ambos, gênero e estilo, constituem-se dialeticamente, de modo
que existe “uma função psicológica dos gêneros sociais, assim como existe uma função social
dos estilos individuais” (CLOT, 2001, p. 3).
Outro conceito proposto por Clot (2006, p. 181) é o de catacrese, definida como a
atribuição de novas funções aos instrumentos, consistindo em um uso desviado e, ao mesmo
tempo, inventivo de uma ferramenta: “a função do conjunto de ferramentas se vê afetada por
uma atividade de reconcepção ou de recriação de técnicas, cujo uso é deslocado ou
subvertido. Chamamos de catacrese essa atribuição de novas funções às ferramentas, esse uso
desviado que se faz dela”.
De acordo com Fonseca (2010), a catacrese, ao ultrapassar o uso previsto dos
instrumentos de trabalho, amplia as possibilidades de emprego desses instrumentos e lhes
atribui novas funções, enriquecendo-os. Assim, a catacrese “não deve ser interpretada como
um erro ou um desvio pois, sendo elaborada pelo trabalhador, tem por finalidade mantê-lo
vinculado as suas ocupações” (FONSECA, 2010, p. 114). É importante ressaltar que os
instrumentos e as ferramentas não designam apenas objetos materiais: eles também se referem
a instrumentos psicológicos, como a linguagem, as diversas formas de contar e calcular, os
planos, os mapas e todos os signos possíveis (CLOT, 1993). Dessa forma, as catacreses
ocorrem tanto em relação aos instrumentos materiais como aos psicológicos. Para designar
essa dupla orientação, Clot (2001) estabelece uma distinção entre catacreses centrífugas ou
centrípetas, sendo aquelas dirigidas prioritariamente para o mundo, ao passo que estas se
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voltam principalmente para o próprio sujeito. Entretanto, ao modificar o uso previsto para
uma ferramenta, ambas agregam-lhe uma nova função psicológica, necessariamente diferente
da prevista.
As categorias propostas pela Clínica da Atividade discutidas acima representam
constructos teóricos importantes para fundamentar a compreensão da atividade de trabalho.
Assim, tais categorias, articuladas com as da Psicologia Sócio-Histórica, embasam o processo
de investigação e análise acerca da atividade docente empreendido nesta pesquisa.
63
CAPÍTULO III
MÉTODO 1 Pressupostos metodológicos
Este capítulo tem como objetivo apresentar os pressupostos metodológicos que
orientaram toda a trajetória do processo de pesquisa. Com base em tais pressupostos, pautados
pelo método materialista histórico e dialético e tendo em vista o problema aqui investigado –
os sentidos e os significados atribuídos pelos professores às “dificuldades de aprendizagem” –
foram definidos instrumentos, técnicas e procedimentos de levantamento de dados, bem como
procedimentos de análise dos dados levantados. Tais elementos são também apresentados no
presente capítulo.
1.1 Psicologia Sócio-Histórica
Considerando que a presente pesquisa tem sua fundamentação teórica e metodológica
na Psicologia Sócio-histórica e no Materialismo Histórico e Dialético, o método aqui
empregado pauta-se pelas considerações metodológicas desenvolvidas por Vygotsky (2003)
com base nos postulados de Marx e Engels (1845). Ao estudar os aspectos metodológicos de
diferentes abordagens de investigação e pesquisa em Psicologia nas primeiras décadas do
século XX, Vygotsky afirmou que a Psicologia vigente na época, baseada principalmente em
modelos teóricos e metodológicos (experimentais) pautados em estruturas do tipo estímulo-
resposta, seria inadequada ao estudo das formas superiores, tipicamente humanas, de
comportamento. Segundo o autor, todos os métodos do tipo estímulo-resposta pressupõem
que a relação entre comportamento e natureza é unidirecionalmente reativa. O autor e seus
colaboradores partilhavam da concepção dialética marxista que admite “a influência da
natureza sobre o homem, mas afirma que o homem, por sua vez, age sobre a natureza e cria,
através de mudanças nela provocadas, novas condições para sua existência” (VYGOTSKY,
2003, p. 80).
Ao admitir essa relação dialética entre homem e natureza, tornava-se imprescindível
delinear um método adequado a essa concepção. Vygotsky revelou, assim, a necessidade de
um método de investigação capaz de fazer a mediação entre o método materialista histórico e
os fenômenos psíquicos. O método dialético de Marx e Engels proporcionou a Vygotsky a
base para a discussão dos problemas teóricos e metodológicos da Psicologia, bem como para
64
a elaboração de um método de investigação capaz de abarcar a complexidade do que ele
compreendia como objeto da Psicologia, ou seja, o homem e suas funções psicológicas
superiores. De acordo com Vygotsky (2003, p. 80), o método dialético “representa o
elemento-chave de nossa abordagem do estudo e interpretação das funções psicológicas
superiores do homem e serve como base dos novos métodos de experimentação e análise que
defendemos”. Ele postulou, então, três princípios básicos que norteiam sua abordagem de
investigação e análise de tais funções.
O primeiro desses princípios prescreve que a análise deve focar processos e não
resultados. Vygotsky (2003, p. 81) traçou uma distinção entre essas duas modalidades e
considerou que a primeira “requer uma exposição dinâmica dos principais pontos
constituintes da história dos processos”, pois os processos psicológicos não são estanques e,
portanto, sofrem necessariamente mudanças ao longo de seu desenvolvimento. Dessa forma, a
tarefa básica da pesquisa é fazer que o processo analisado retorne a seus estágios iniciais,
reconstruindo-os, a fim de compreendê-lo.
O segundo princípio metodológico postula que a análise deve redundar em
explicações e não em descrições dos fenômenos estudados. Vygotsky (2003, p. 83) cita Marx
ao defender a necessidade de explicar os processos e não apenas descrever seus aspectos
externos: “se a essência dos objetos coincidisse com a forma de suas manifestações externas,
então, toda ciência seria supérflua”. Considera-se, aqui, o fato de que fenômenos de aparência
bastante similar podem ter relações dinâmico-causais radicalmente diferentes, ou seja,
apresentar diferenças internas ocultadas por similaridades externas. Assim, a tarefa de análise
torna-se a de revelar essas relações, explicitando a essência dos fenômenos psicológicos e não
só suas características perceptíveis, de modo que se possa compreender sua gênese e suas
relações dinâmico-causais.
O terceiro princípio metodológico trata dos comportamentos fossilizados, definidos
como “processos que passaram através de um estágio bastante longo do desenvolvimento
histórico e fossilizaram-se” (VYGOTSKY, 2003, p. 84). Em função de sua origem remota e
constante repetição, tais formas fossilizadas tornaram-se mecanizadas e perderam sua
aparência original, de modo que nada, em sua aparência externa, revela sua natureza interna.
Logo, para compreendê-las, é preciso compreender antes de tudo sua origem e sua
constituição. Para tanto, o pesquisador precisa romper o caráter automático, mecânico e
fossilizado dessas formas e buscar reconstruir os estágios do processo que levaram a sua
cristalização. Tudo isso implica retornar à origem do desenvolvimento de uma determinada
65
estrutura e estudar o fenômeno historicamente, ou seja, em seu processo de mudança
(VYGOTSKY, 2003, p. 86).
Tendo como fundamentos norteadores do método de investigação e análise dos
fenômenos psicológicos os três princípios já explicitados, Aguiar e Ozella (2006, p. 5)
acrescentam: “nossa tarefa, portanto, é apreender as mediações sociais constitutivas do
sujeito, saindo assim da aparência, do imediato, indo em busca do processo, do não dito, do
sentido”. Os autores destacam que a adoção dessa perspectiva leva a uma crítica radical das
visões reducionistas (tanto objetivistas quanto subjetivistas), à discussão sobre aparência-
essência, à importância da noção de processo e de historicidade. Em consonância com tais
postulados, os pesquisadores desenvolvem uma proposta metodológica para estudar uma parte
importante da consciência humana: os sentidos constituídos pelos sujeitos. Aguiar e Ozella
(2006, p. 10) esclarecem, no entanto, que “a apreensão dos sentidos não significa
apreendermos uma resposta única, coerente, absolutamente definida, completa, mas
expressões do sujeito muitas vezes contraditórias, parciais, que nos apresentam indicadores
das formas de ser do sujeito, de processos vividos por ele”.
Tal proposta emprega entrevistas e relatos de história de vida dos sujeitos como
instrumentos de coleta de dados, tendo em vista seu potencial de permitir acesso a
determinados processos psíquicos, mais especificamente aos sentidos e significados atribuídos
pelos sujeitos a um dado evento. Contudo, para que tais conteúdos sejam acessíveis, é preciso
que as entrevistas sejam claras, consistentes, amplas e recorrentes, ou seja, a cada entrevista,
após uma primeira leitura, o entrevistado deve ser consultado a fim de eliminar dúvidas e
aprofundar reflexões. Um plano de observação – capaz de permitir a identificação de
indicadores não verbais ao longo das entrevistas – também é indicado, bem como a
complementação por outros materiais, tais como filmagens, observações e desenhos, a fim de
enriquecer o processo de análise. Aguiar e Ozella (2006, p. 12) consideram que: A palavra com significado é a primeira unidade que se destaca no momento ainda empírico da pesquisa. Partimos dela, sem a intenção de fazer uma mera análise das construções narrativas, mas com a intenção de analisar o sujeito. Assim, temos que partir das palavras inseridas no contexto que lhe atribui significado, entendendo aqui como contexto desde a narrativa do sujeito até as condições histórico-sociais que o constituem.
Assim, após a realização e a transcrição das entrevistas, o pesquisador deve iniciar o
processo de análise que envolve a identificação de pré-indicadores, de indicadores e de
núcleos de significação. Esse processo está detalhadamente descrito mais à frente, na seção
“Procedimentos de análise”.
66
1.2 Clínica da Atividade
Embasados na teoria vygotskiana e pautados pelos princípios do método Materialista
Histórico e Dialético, Yves Clot (2001) e seus colaboradores do Conservatoire National des
Arts et Métiers (CNAN) desenvolveram uma abordagem teórica e metodológica denominada
Clínica da Atividade, que busca compreender, de forma ampla, a atividade e a dinâmica de
ação dos trabalhadores. O principal pressuposto dessa abordagem consiste na ideia de que não
só é preciso compreender para transformar, mas também é preciso transformar para
compreender. Para tanto, desenvolveram um método de estudo e análise da atividade de
trabalho denominado autoconfrontação simples (ACS) e autoconfrontação cruzada (ACC),
que assume a forma de uma atividade reflexiva dos trabalhadores sobre seu próprio trabalho e
busca possibilitar a aumento do poder de agir desses trabalhadores sobre a própria atividade.
Nas palavras dos autores: [...] esse método visa, acima de tudo, criar um quadro de referência que permita o desenvolvimento da experiência profissional dos profissionais envolvidos no trabalho de análise [...] essa metodologia privilegia o aumento do poder desses coletivos (de trabalho) de transformar os objetivos, os meios e os conhecimentos de sua atividade profissional. (CLOT et al., 2001, p. 3-5).
O método em questão utiliza imagens como principal suporte das observações e
propõe como fundamental a possibilidade de que os trabalhadores possam se tornar
observadores da própria atividade, uma vez que, depois de realizadas a observação e a análise,
a experiência passada (já analisada) pode se transformar em novas formas de viver situações
presentes ou futuras. Isso significa que o processo de observação e análise da própria
atividade pode possibilitar uma ressignificação do fazer, promovendo transformações e
aumentando o poder de agir do sujeito sobre sua atividade profissional. De acordo com Clot
(2001, p. 3): A análise do trabalho é um recurso para sustentar uma experiência coletiva de modificação do trabalho feita por aqueles que o fazem. [...] O objetivo da Clínica da Atividade não é, portanto, a observação, mas o desenvolvimento, entre os trabalhadores, da observação de sua própria atividade: uma mudança dos protagonistas da observação.
A fim de alcançar essa mudança nos protagonistas da observação, Clot propõe que o
método de investigação e análise da atividade envolva três fases. A primeira trata da
constituição de um grupo de análise: “é preciso começar por um longo trabalho de observação
das situações e dos ambientes profissionais, para produzir concepções compartilhadas com os
67
trabalhadores” (CLOT, 2001, p. 4). A partir dessas concepções, o coletivo de trabalho escolhe
o grupo cuja atividade será analisada, bem como as sequências de atividades que serão
filmadas, de forma que a construção da análise é feita coletivamente.
A segunda fase do método consiste na realização das filmagens a das sessões de ACS
e ACC. As filmagens registram os trabalhadores desenvolvendo sua atividade de trabalho. A
partir dessas imagens, realiza-se então o processo de autoconfrontação. A ACS refere-se à
interação entre o pesquisador e o sujeito da atividade perante as imagens. Nesse momento, o
sujeito vê, analisa, comenta com o pesquisador e explica as imagens de seu trabalho. O sujeito
busca explicar o que fez e por que o fez, além de refletir e discorrer sobre o que poderia (ou
não) ter feito de outra forma. O papel do pesquisador, aqui, é o de tecer conjecturas e pontuar
o discurso do sujeito com trechos do filme, buscando “mostrar ao sujeito que a minúcia da
observação da atividade realizada é um meio de ter acesso ao real da atividade” (CLOT Et al.,
2001, p. 4). As sessões de ACS são também registradas em filme, de forma a enquadrar de
frente o sujeito e as cenas analisadas.
A ACC consiste na interação do pesquisador com dois sujeitos e as imagens da
atividade registrada. As sessões também são inteiramente filmadas, com os dois sujeitos
enquadrados de frente. Nesse momento, é apresentada, sucessivamente, a filmagem de cada
um deles em atividade, cabendo ao pesquisador solicitar, sistematicamente, comentários por
parte do sujeito que está assistindo à filmagem da atividade de seu colega. Assim, o sujeito
cuja atividade está sendo analisada é confrontado com os comentários e as reflexões de seu
colega sobre sua própria atividade. A seguir, os papéis são invertidos, de modo que ambos os
sujeitos tenham oportunidade de analisar a própria atividade e a de seu par.
De forma geral, é comum que, na ACS, o sujeito recorra ao gênero profissional para
encontrar argumentos capazes de justificar sua atividade, ou seja, ele tende a lançar mão das
prescrições genéricas que orientam a atividade analisada. Entretanto, na ACC, o sujeito se
confronta com comentários e questões colocados por um colega pertencente ao mesmo gênero
profissional, de modo que não lhe é mais possível servir-se das prescrições genéricas para
justificar sua atividade, o que o leva a recorrer ao estilo pessoal na busca de explicar suas
escolhas. O material filmado durante as sessões de autoconfrontação é editado, sendo
realizada uma montagem com o material filmado e validado pelo grupo, o que encerra a
segunda fase do método. A terceira fase estende o trabalho de análise para o coletivo
profissional: A partir do conjunto de dados produzidos durante os momentos anteriores, o coletivo coloca-se novamente no trabalho de análise, estabelecendo um
68
círculo entre o que os trabalhadores fazem e o que afirmam fazer, em busca do real da atividade. Busca-se reencontrar, a partir das imagens daquilo que foi feito e daquilo que os profissionais dizem que fizeram, aquilo que poderia ter sido feito. Enfim, é uma forma de análise do trabalho que assume a forma de um empreendimento que parte do concreto – a atividade – para, via reflexão e análise, ampliar, para o coletivo, a visão acerca de seu próprio trabalho. (RACHMAN et al., 2011, p. 21).
Como fica claro na proposta da Clínica da Atividade elucidada acima, Clot e seus
colaboradores realizam a investigação e a análise da atividade com coletivos de trabalhadores.
Na França, onde ocorre boa parte das pesquisas realizadas segundo essa abordagem
metodológica, existe uma demanda dos próprios coletivos profissionais para que esse tipo de
pesquisa/intervenção se realize. Entretanto, no Brasil, a realidade é bastante diversa, e as
pesquisas que buscam analisar a atividade docente segundo a proposta da Clínica da
Atividade não puderam, ainda, ser feitas de acordo com todas as prerrogativas da proposta
original. Assim, o método proposto por Clot tem sido adaptado ao contexto educacional e
social vivenciado pelos pesquisadores brasileiros. Pesquisas recentes (MURTA, 2008;
DAVIS; AGUIAR, 2009; SOARES, 2011) realizadas com base nesse método e voltadas para
a investigação de diversos aspectos da atividade docente têm procurado seguir, tanto quanto
possível, os procedimentos propostos por Clot e seus colaboradores. Rachman et al. (2011, p.
23) argumenta, contudo, que nem sempre tem sido possível empregar todos os procedimentos: Principalmente no que se refere à primeira etapa do método, ou seja, a organização de um coletivo de trabalhadores engajados no processo de análise da atividade, ainda não tem sido possível, na realidade das pesquisas nacionais, alcançar tal nível de colaboração. No contexto presente, os pesquisadores têm realizado o processo de autoconfrontação com professores que se disponibilizem a participar do projeto, e não com aquela indicada pelos coletivos profissionais, dada a inexistência, até o momento, de uma demanda coletiva por intervenções dessa espécie. Da mesma forma, a escolha e edição dos episódios filmados a serem analisados tem sido realizada por pesquisadores, bem como a análise das sessões de autoconfrontação.
É importante ressaltar que, na presente pesquisa, não foi empregado o método
completo da autoconfrontação, conforme proposto por Clot e seus colaboradores. Da mesma
forma que Murta (2008) e Soares (2011), foram realizados aqui os processos de ACS e ACC,
sem, no entanto, recorrer ao coletivo profissional na escolha dos sujeitos participantes ou das
cenas analisadas. Pode-se dizer, assim, que apenas a segunda etapa do método de Clot foi
seguida, abdicando-se da primeira e da terceira etapas. Lousada (2006, p. 126) discorre acerca
das diferenças entre as pesquisas que seguem esse método na França e no Brasil. Em sua
69
pesquisa de doutorado, a autora empregou apenas a técnica da ACS, mas crê que a restrição
da proposta não acarreta a perda da validade do material colhido: Surge, assim, a questão da validade dos nossos procedimentos de realização das ACS. Mesma estando conscientes das diferenças e reconhecendo o interesse em realizar esse procedimento tal como é desenvolvido na França, acreditamos que as análises feitas nos parecem confirmar a validade de nosso processo de realização das ACS.
Considera-se, portanto, que, embora o método francês tenha sido submetido a
adaptações no contexto brasileiro, ele não perdeu seu valor ou sua especificidade. Seu
emprego em trabalhos realizados aqui mantém os pressupostos fundamentais, além do
objetivo de promover o desenvolvimento da atividade por meio da análise feita por aqueles
que a exercem, propiciando aos sujeitos envolvidos refletir sobre sua atividade profissional,
ressignificando-a e transformando-a, aumentando, assim, seu poder de agir. As pesquisas
feitas com esse método têm indicado que, apesar das adequações necessárias ao contexto
nacional, o processo de autoconfrontação pode se constituir em um importante instrumento de
pesquisa e formação docente. Ao tratar dos resultados de sua pesquisa, na qual empregou o
método da autoconfrontação, Soares (2011, p. 282) afirma que: Não podemos deixar de reconhecer que, ao passar por um marcante processo de autoconfrontação, vivendo, com isso, um intenso movimento de reflexão, o sujeito não deixa de ressignificar algumas de suas ações. Com isso, queremos ressaltar que, embora a professora tenha demonstrado, em alguns momentos das autoconfrontações, indícios de resistência em relação às mudanças no modo como operacionaliza a sua prática, noutros ela demonstrava-se aberta a possíveis mudanças, chegando, inclusive, a ponto de tecer críticas a seu modo de realizar algumas ações.
O autor complementa, ainda, que a pesquisa de autoconfrontação, “além de apresentar
um grande potencial de explicação do real, produzindo novos conhecimentos sobre a
realidade estudada, também pode contribuir para possíveis intervenções, gerando, com isso,
movimentos no sujeito” (p. 283).
2 Procedimentos metodológicos
2.1 Local
A coleta de dados foi realizada em uma escola municipal de Ensino Fundamental do
ciclo I. A escolha da escola em questão se deu por dois motivos. O primeiro foi a imensa
dificuldade percebida em realizar a pesquisa em alguma escola existente na cidade de São
70
Paulo, onde foram realizados numerosos contatos com diversas escolas da rede pública de
Ensino Fundamental. Tais contatos se mostraram infrutíferos, uma vez que as escolas em
questão apresentaram diferentes argumentos para justificar a impossibilidade da pesquisa se
realizar em seu interior. Algumas escolas recusaram logo de início, outras após a reunião com
diretores e professores, nas quais eram explicitados os objetivos e o método de coleta dos
dados.
Dada essa enorme dificuldade em conseguir uma escola cujos professores se
disponibilizassem a participar da pesquisa, passou-se a considerar a possibilidade de realizar a
coleta de dados em uma instituição fora da cidade de São Paulo, partindo da hipótese de que
em tal metrópole os professores da rede pública de ensino se encontram em uma situação
mais complexa, repleta de problemas e exigências que dificultam sua participação em um
projeto que exigiria ainda mais de seu tempo e disponibilidade. Considerando ainda que o
problema de pesquisa poderia ser investigado em praticamente qualquer escola de Ensino
Fundamental, uma vez que, de acordo com a literatura, os professores se deparam com alunos
que eles consideram apresentar alguma “dificuldade de aprendizagem” em qualquer tipo de
ambiente escolar, decidiu-se que a coleta de dados poderia ocorrer em uma instituição
localizada em outra região.
O município de Lençóis, no estado da Bahia, foi então escolhido em função de seu
tamanho reduzido e ao fato de a pesquisadora frequentar sazonalmente tal localidade. Em
oposição à realidade encontrada na cidade de São Paulo, as tentativas de contato com escolas
de Ensino Fundamental no município em questão foram altamente frutíferas. A pesquisadora
foi extremamente bem recebida nas escolas, nas quais teve a oportunidade de apresentar o
projeto de pesquisa de forma detalhada, além de ter encontrado diversos professores dispostos
a colaborar. Estes demonstravam não apenas disponibilidade, mas também interesse,
disposição e até certo orgulho de fazer parte de uma pesquisa de doutorado vinculada a uma
instituição de renome. Ao contrário do cenário encontrado em São Paulo, os professores não
se mostravam saturados de problemas, mas animados e interessados.
A partir dessa recepção calorosa e interessada, foi definido como local de coleta de
dados uma escola municipal de Ensino Fundamental, a maior do município. Convém
esclarecer que o principal aspecto que motivou a escolha dessa instituição foi o acolhimento e
a gentil recepção com a qual a pesquisadora deparou-se desde o início. Todo o corpo de
funcionários e docentes da instituição mostrou-se sempre bastante cordial e acessível, de
modo que se estabeleceu uma relação bastante próxima e amigável. Diversas vezes, a
71
pesquisadora foi convidada para almoços coletivos e outras atividades extracurriculares, nas
quais foi possível confraternizar com a equipe docente. De igual modo, a pesquisadora foi
convidada a assistir às reuniões pedagógicas semanais. A presença nas reuniões que se
realizaram durante o processo de coleta e produção de dados permitiu maior aproximação
com a realidade da escola.
2.2 Sujeito
A definição do sujeito de pesquisa ocorreu quando o projeto foi apresentado à equipe
gestora da escola selecionada. Realizou-se uma reunião com a diretora e a coordenadora
pedagógica a fim de explicar os objetivos da pesquisa e os procedimentos que seriam
empregados, bem como elaborar o cronograma das atividades que ocorreriam no espaço
escolar. Isso feito, a diretora e a coordenadora pedagógica indicaram uma professora que,
segundo elas, se interessaria em colaborar no processo de investigação. Ainda de acordo com
esses atores, a professora apresentaria disponibilidade para refletir a respeito de sua atividade
docente.
Foi realizada, então, uma segunda reunião, dessa vez apenas com a professora
indicada, com o intuito de apresentar os objetivos e procedimentos metodológicos da pesquisa
e, ainda, de verificar seu interesse em se envolver no estudo. Nessa reunião, foi abordada a
questão da importância de contar com um professor que quisesse analisar sua prática
pedagógica e refletir sobre ela, já que essa atitude era essencial para o processo de
autoconfrontação. A professora prontamente anuiu em participar da pesquisa, dizendo-se
disposta a analisar e a refletir sobre sua atuação profissional. A seguir, foram agendados os
dias e os horários nos quais seriam realizadas as observações e as filmagens das aulas. Nessa
mesma ocasião, foram distribuídos também os “Termos de Consentimento Livre e
Esclarecido” para serem assinados pela professora, pela coordenadora pedagógica, pela
diretora e pelos pais de alunos, conforme a demanda do Comitê de Ética da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
2.3 Técnicas de levantamento de dados
Com base nos pressupostos metodológicos discutidos anteriormente, foram definidas
algumas técnicas de produção e coleta de dados, consideradas capazes de fornecer
informações relevantes à pesquisa, subsidiando uma aproximação dos sentidos e significados
72
constituídos pelos professores acerca das “dificuldades de aprendizagem”. Considerou-se que
a utilização de várias técnicas e diferentes fontes de informação poderia enriquecer
notavelmente a compreensão do fenômeno estudado, por proporcionar valiosos indicadores
que, possivelmente, não seriam alcançados apenas por meio de apenas uma delas. Assim,
foram empregadas entrevistas, observações e autoconfrontação simples e cruzada na produção
e coleta de dados. A seguir, apresenta-se o papel de cada uma delas nesse processo, além da
descrição da forma como foram utilizadas na presente pesquisa.
2.3.1 Observação
Nas pesquisas de abordagem qualitativa, a observação é uma das técnicas mais
empregadas, por permitir uma maior aproximação da realidade na qual um determinado
fenômeno ocorre. De acordo com Alvez-Mazzotti (1999, p. 166), a observação tem um papel
importante nas pesquisas qualitativas graças ao fato de permitir que comportamentos sejam
“observados e relatados da forma como ocorrem, visando a descrever e a compreender o que
está ocorrendo em uma dada situação”. Segundo Ludke e André (2003, p. 26), outro ponto a
ser considerado na produção e coleta de dados por meio da observação é que: “na medida em
que o observador acompanha in loco as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar
apreender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os
cerca e às suas próprias ações”.
Assim, ao longo deste processo de pesquisa, empregou-se a técnica da observação
direta, ou seja, o “registro de uma dada situação ou fenômeno enquanto ele ocorre” (LUNA,
2003, p. 51). Uma filmadora foi utilizada durante todo o processo de observação, a fim de
fornecer um registro preciso das aulas observadas, capaz de permitir, ainda, uma segunda
observação, posterior e mais detalhada, fornecendo as imagens que, uma vez editadas, dariam
origem aos episódios posteriormente utilizados no processo de autoconfrontação. Após o
contato com a escola e a aprovação da professora, iniciou-se a observação do espaço físico e
do ambiente escolar, com o intuito de compreender sua organização, seu funcionamento e sua
dinâmica, para que fosse possível perceber as relações institucionais e identificar algumas das
mediações de gênero profissional ali presentes.
A seguir, iniciou-se o processo de observação das aulas ministradas pela professora
participante da pesquisa, com o objetivo de permitir a familiarização com o ambiente de sala
de aula e ter acesso a uma visão mais ampla da vida escolar e da prática docente. Foram
observadas aulas desenvolvidas nos meses de julho e agosto de 2011, sempre no período
73
matutino, em diferentes dias da semana. A escolha das aulas observadas deu-se de maneira
aleatória. Foram registrados em vídeo 9h57’46’’ de aula. Normalmente, das quatro horas
diárias de aula, eram realizadas observações em sala durante aproximadamente duas ou três
delas, mas esse período, de fato, variava de acordo com as atividades desenvolvidas pela
professora e, também, em função das demais atividades escolares. Assim, às sextas-feiras, por
exemplo, o período de permanência da pesquisadora em sala de aula era menor porque o dos
alunos também o era, uma vez que eram liberados mais cedo em razão da reunião semanal
dos professores com a equipe gestora.
Desde o início do processo de observação e filmagem, os alunos demonstraram muita
curiosidade em relação à presença da pesquisadora na sala de aula. Vinham frequentemente
conversar ou fazer perguntas. Pareciam, também, muito interessados nas filmagens realizadas,
manifestando, repetidamente, a vontade de aparecer no vídeo por meio de sinais, caretas e
gestos diante da câmera. Essa curiosidade foi maior no início do procedimento, mas não
desapareceu de todo, mantendo-se estável até o fim das observações e filmagens. Entretanto,
as manifestações de interesse e curiosidade dos alunos não atrapalharam, em absoluto, o
registro das aulas. De igual modo, a professora afirmou que a presença da pesquisadora em
sala de aula também não dificultou ou tolheu o desenvolvimento de suas atividades
pedagógicas. O processo de observação e filmagem prosseguiu até que as informações e
impressões coletadas e registradas fossem consideradas ricas o bastante para permitir uma
análise acerca da atividade docente, mais especificamente no que dizia respeito à forma como
a professora lidava com os alunos que ela considerava apresentar alguma “dificuldade de
aprendizagem”.
2.3.2 Entrevistas
A entrevista consiste em uma técnica de coleta e produção de dados amplamente
empregada em pesquisas científicas, defendida por diversos autores em função das vantagens
que apresenta em relação a outros instrumentos desse tipo. Dentre suas vantagens, pode-se
citar seu potencial para investigar temas complexos, dificilmente apreendidos por meio de
questionários (ALVES-MAZZOTTI, 1999). Na verdade, a entrevista envolve uma relação
pessoal entre o pesquisador e o(s) sujeito(s) da pesquisa, facilitando o esclarecimento de
pontos nebulosos e permitindo o aprofundamento de aspectos levantados por outras técnicas
de coleta e produção de dados, como a observação e o questionário (MOROZ;
GIANFALDONI, 2002; LUDKE; ANDRÉ, 2003).
74
Existem diferentes técnicas e modalidades de entrevistas, de modo que sua
classificação varia de autor para autor. Segundo Mazzotti e Gewandsznajder (2002, p. 168),
as modalidades de entrevistas diferenciam-se em razão do grau de controle exercido pelo
pesquisador durante sua realização. Na presente pesquisa, foram empregadas entrevistas
estruturadas, semiestruturadas e não estruturadas. A primeira consiste em um roteiro fechado
de perguntas, bastante semelhante a um questionário, que fornece informações pontuais
acerca da realidade investigada. Esse tipo de instrumento foi empregado junto à equipe
gestora da instituição, para colher informações sobre a escola, tais como quantidade de
alunos, professores e funcionários; turnos de funcionamento; aspectos relacionados à
infraestrutura e ao espaço físico, como a existência de biblioteca, laboratórios, computadores
etc. Essa mesma técnica também foi utilizada para obter dados relativos ao sujeito de
pesquisa, tais como idade, estado civil, número de filhos e tempo de experiência no
magistério.
A técnica de entrevista semiestruturada consiste em um esquema flexível de perguntas
que, a partir de um roteiro básico, permite ao pesquisador uma grande liberdade para adaptar
e/ou aprofundar as perguntas feitas. Esse recurso foi empregado na obtenção de dados
relativos à estrutura administrativa e pedagógica da escola, tais como elaboração do projeto
político e pedagógico; realização de reuniões pedagógicas; formação do corpo docente;
relações institucionais etc. Elas foram empregadas junto à diretora e à coordenadora
pedagógica da escola, para melhor conhecer a dinâmica da organização e o funcionamento da
instituição, ou seja, como nela se planejavam, avaliavam e coordenavam as práticas
pedagógicas.
A entrevista não estruturada, a terceira modalidade aqui empregada, diferencia-se das
anteriores por seu “caráter aberto”: apesar de centrar-se no tema ou no tópico que se busca
investigar, não existem perguntas predeterminadas ou fixas. O pesquisador apenas pede ao
sujeito que fale livremente a respeito dos temas de interesse e, a partir daí, propõe perguntas
que possam esclarecer ou aprofundar certos aspectos da fala do sujeito. No presente estudo,
essa técnica foi utilizada junto à professora para conhecer sua história de vida, principalmente
no que se refere a sua vida escolar e profissional, de modo a compreender as experiências que
ela vivenciou ao longo de sua formação como docente. Os temas aqui focados foram a opção
pela docência, sua experiência e formação profissional, as práticas pedagógicas adotadas, a
perspectiva acerca das dificuldades de aprendizagem, as relações institucionais, entre outros.
O objetivo era conseguir material que permitisse, posteriormente, a constituição dos núcleos
75
de significação e, assim, uma aproximação dos sentidos e significados que a professora havia
constituído acerca das “dificuldades de aprendizagem”. Uma vez transcritas as entrevistas,
seu conteúdo foi apresentado aos participantes para que eles conferissem e/ou
complementassem suas falas.
2.3.3 Autoconfrontações
Para que fosse possível dar início ao processo de autoconfrontação simples e cruzada,
foi necessário, antes de tudo, selecionar e editar trechos do material filmado ao longo da
observação das aulas ministradas pela professora. Foram editados, então, três episódios para
serem utilizados nas sessões de autoconfrontação. Os critérios para edição desses episódios
foram os seguintes: eles deveriam ser curtos, com aproximadamente cinco minutos cada;
apresentarem começo, meio e fim; e, principalmente, permitirem ilustrar momentos da
atividade docente que estivessem diretamente relacionados ao problema de pesquisa
investigado. Assim, na edição dos episódios, priorizaram-se os momentos nos quais a
professora interagia com alunos que ela havia informado que apresentavam “dificuldades de
aprendizagem”. Os episódios deveriam evidenciar contradições ou aspectos da atividade
docente que poderiam ser tratados de outra forma, permitindo, ainda, uma análise mais
aprofundada quando do momento da autoconfrontação. Os conteúdos de tais episódios
encontram-se descritos a seguir.
Episódio 1 – Escrita da palavra “pé” (duração: 5’25”)
Esse episódio retratava um momento da aula de Língua Portuguesa no qual a
professora trabalhava leitura e escrita com base em uma parlenda já bastante conhecida pelos
alunos. A cena mostrava a professora e um aluno junto ao quadro-negro, momento em que a
primeira pedia ao segundo para localizar a palavra “pé” no texto escrito na lousa. O menino
esforçava-se nitidamente para responder de forma correta, sem alcançar sucesso, apesar do
direcionamento e das pistas fornecidas pela professora, que escreveu na lousa outras palavras
que se iniciavam com a letra “p”, indicando que a palavra a ser identificada começava da
mesma forma: com a mesma letra. Outras pistas foram dadas, sem que o aluno conseguisse
identificar a palavra. Em determinado momento, o menino apontou a palavra “pulem” (que se
iniciava com “p”), seguindo a dica apresentada pela professora. Ela, então, lhe disse que
aquela não era a palavra buscada, salientando, no entanto, que ela começava com a mesma
76
letra. Contudo, a professora deixou de estabelecer a diferença entre o som da palavra “pé” e o
da palavra “pulem”, bem como de mostrar, sonoramente, que havia diferenças na quantidade
de letras entre os dois vocábulos ou mesmo de dizer que “pé” só apresenta duas letras. Até o
fim da atividade, o aluno não foi capaz de identificar a palavra correta. A professora pediu,
então, aos demais alunos que lhe mostrassem qual era a palavra “pé”, o que foi feito com
bastante entusiasmo. Apesar de o aluno chamado à frente não ter acertado a resposta, a
professora não o repreendeu, tampouco desvalorizou sua resposta. Ao final da atividade,
disse-lhe o seguinte: “Muito bem, fulano! Você tentou de verdade! Na próxima vez, você vai
conseguir acertar!”.
Episódio 2 – Correção da lição de Matemática (duração: 5'42'')
O episódio mostrava a professora e os alunos sentados no chão, em círculo, corrigindo
o dever de casa de Matemática, passado no dia anterior. No início da atividade, todos
participavam e mostravam-se bastante interessados. No entanto, ao longo da correção da
lição, foram ficando cada vez mais dispersos. A professora averiguou que um dos alunos não
havia feito o dever, chamando-o, então, para ilustrar, na lousa, a forma como resolveria os
problemas propostos. Os colegas deveriam ajudá-lo a fazer isso, indicando-lhe a forma como
haviam solucionado os problemas em casa. O aluno que foi à lousa desenhava traços
referentes aos valores numéricos como estratégia para solucionar as questões. No entanto, era
nítida sua dificuldade para resolver os problemas: ora desenhava traços a mais, ora a menos
do que os necessários para a solução da conta. Posteriormente, outro aluno foi chamado à
frente para demonstrar à classe sua forma de resolver os problemas. A mesma estratégia do
aluno anterior foi empregada: desenhar pequenos traços para indicar números. Ambos os
alunos chamados à lousa pareciam bastante à vontade na situação e não apresentavam
qualquer tipo de inibição por estarem diante da classe. Ao contrário, pareciam satisfeitos com
seu papel. Enquanto isso se passava, os demais alunos dispersavam-se mais, prestando menos
atenção à correção dos problemas.
Episódio 3 – Palavras cruzadas (duração 5'57'')
Esse episódio mostrava um grupo de alunos sentados no chão, em círculo, diante da
classe. Os demais alunos permaneciam sentados em suas carteiras. O episódio iniciava-se com
77
a professora explicando que apenas os alunos que estavam na frente poderiam participar da
atividade, enquanto os demais deveriam permanecer quietos e atentos. Com isso, deixou claro
que não havia necessidade de todos participarem da atividade. Algumas das crianças
excluídas questionaram a decisão da professora, propondo a alternância dos grupos, para que
todos tivessem a oportunidade de participar da atividade. A professora explicou-lhes que esse
modo de executar a atividade não fora planejado por ela, de modo que fazer a inversão
atrapalharia a própria atividade. Os alunos aceitaram essa resposta e aquietaram-se, prestando
atenção ao que os colegas que deveriam fazer a atividade – que, segundo a explicação da
professora, consistia em completar e resolver um jogo de palavras cruzadas pendurado na
lousa, composto de palavras provenientes da parlenda já conhecida por eles. Eram, portanto,
palavras com as quais os alunos estavam bastante familiarizados. Após explicar
detalhadamente a atividade, a professora chamou um dos alunos sentados no chão para ir até a
lousa, fornecendo-lhe uma série de letras recortadas, com as quais ele deveria preencher um
dos espaços vazios, completando a palavra “pulem”. O estudante selecionou a letra “u” e a
professora, então, chamou uma de suas colegas para ajudá-lo a preencher as letras dos demais
espaços. A professora deu dicas, escrevendo na lousa a palavra “pular” e indicando que
“pulem” começava com a mesma letra. A aluna selecionou o “p” apesar de não saber o nome
dessa letra. Nesse momento, os demais alunos gritavam em uníssono “p”. A seguir, a
professora indagou qual seria a próxima letra da palavra e alguns deles responderam: o “l”.
Nesse momento, muitas crianças já estavam se levantando do chão e de suas carteiras para ir
até a lousa. A professora pediu a um deles que selecionasse o “l” dentre as letras recortadas.
Cada vez mais alunos se levantando, aglomerando-se junto à lousa. Todos queriam participar.
Autoconfrontação simples (ACS)
Conforme explicitado anteriormente, a ACS consiste, basicamente, em gravar, em
vídeo, um trabalhador executando sua atividade, para, depois, confrontá-lo com sua imagem
gravada, momento em que são feitas perguntas sobre ela. Na presente pesquisa, a ACS teve
duração de aproximadamente 1 hora e 20 minutos. Foi realizada na escola em um horário
posterior ao período de aulas. O primeiro episódio foi apresentado à professora e visto por ela
com atenção. A seguir, a pesquisadora formulou questões e solicitou comentários relativos à
cena apresentada. Essas perguntas buscavam indagar a professora acerca do que ela havia
planejado fazer, do que havia realmente feito e do que ficara faltando fazer, além de pedir que
comentasse sobre os aspectos que considerava positivos (ou negativos). O mesmo
78
procedimento foi adotado em relação aos dois outros episódios, ou seja, primeiro a professora
assistia à cena inteira, depois ela a comentava, explicando o que havia feito, quais eram seus
objetivos naquele momento, o que havia deixado de fazer ou, ainda, o que poderia ter sido
feito de outra forma. A sessão de ACS foi inteiramente filmada e contou apenas com a
presença da professora e da pesquisadora. A primeira parecia confortável na situação de
autoconfrontação, fato que permitiu que este fosse um momento bastante rico em termos de
análise da própria atividade.
Autoconfrontação cruzada (ACC)
A ACC consiste na interação de dois professores e do pesquisador diante dos registros
filmados da atividade de cada um deles. É apresentada a filmagem de um deles em atividade,
após a qual o pesquisador solicita comentários do sujeito que assiste à filmagem da atividade
de seu colega. A seguir, os papéis são invertidos, de modo que o segundo sujeito tenha
oportunidade de analisar a própria atividade e a de seu par. Na presente pesquisa, a ACC
contou com duas professoras, mas apenas uma delas teve sua atividade analisada. Assim,
nesse processo, os episódios contendo os registros da atividade da professora participante da
pesquisa foram vistos e analisados por ela e outra professora, convidada apenas para a ACC.
Não houve, dessa forma, inversão dos papéis, situação na qual cada docente analisaria sua
atividade e, ainda, a executada por seu colega.
A ACC ocorreu em um dia diferente da ACS, com a presença de uma segunda
professora, que atuava em outra escola e que foi convidada para analisar a atividade docente
daquela que participava da pesquisa. Essa segunda professora lecionava em uma escola
municipal de Ensino Fundamental do ciclo II, dando aulas de Língua Portuguesa. As duas
professoras já se conheciam, pois já haviam lecionado em uma mesma instituição. A ACC
durou aproximadamente 45 minutos, em razão de alguns contratempos11. Os procedimentos
foram os mesmos anteriormente adotados na sessão de ACS: primeiro, as professoras
assistiam às cenas inteiras e, depois, a professora convidada requisitava da outra, cuja
atividade estava sendo analisada, que comentasse e justificasse cada uma das cenas. A sessão
de ACC foi também inteiramente filmada. Participaram dela a pesquisadora e as duas
professoras. O material filmado na ACS e na ACC foi inteiramente transcrito e,
posteriormente, utilizado na formulação dos núcleos de significação.
11 Tais contratempos serão descritos detalhadamente no capítulo de apresentação e análise dos dados.
79
2.4 Procedimentos de análise dos dados
Esta seção tem como objetivo apresentar os procedimentos adotados para analisar os
dados levantados. Busca-se, neste momento da pesquisa, articular as informações produzidas
por meio das técnicas de coleta descritas, ou seja, observação, entrevistas e autoconfrontação
simples e cruzada, sempre à luz do referencial teórico adotado. É importante lembrar que, na
pesquisa qualitativa, o processo de análise ocorre de forma interpretativa, como argumenta
Rey (2005, p. 47): “o conhecimento se produz em um processo construtivo-interpretativo do
pesquisador sobre as expressões múltiplas e complexas dos sujeitos estudados”. Assim, o
processo de análise constituiu-se em um movimento analítico-interpretativo, no qual, como
bem salienta Soares (2011, p. 137), “a análise é sempre histórica e determinada pelos
sentimentos e emoções de quem analisa”.
O processo de análise e interpretação dos dados foi realizado de acordo com a
proposta de Aguiar e Ozella (2006), denominada “Núcleos de significação como instrumento
para a apreensão da constituição dos sentidos”, com o intuito de buscar uma maior
aproximação dos sentidos e significados constituídos pela professora em relação às
dificuldades de aprendizagem. Ao discorrer sobre essa proposta metodológica, Soares (2011,
p. 138) afirma que, nela, “o pesquisador tem a obrigação de não apenas descrever, decompor
e articular dados empíricos, mas, também, a partir da manipulação teórica desses dados,
penetrar as zonas de sentidos do sujeito e, com isso, inferir e explicar os movimentos da
realidade investigada”.
A análise teve início com sucessivas leituras “flutuantes” do material gravado e
transcrito da entrevista com a professora e das sessões de autoconfrontação simples e cruzada.
Pretendia-se, com isso, alcançar uma boa familiarização e apropriação de seus conteúdos.
Essas leituras permitiram destacar e organizar os pré-indicadores, ou seja, identificar os
vários temas presentes nos relatos analisados e, ainda, sua frequência na fala do sujeito, seja
por repetição ou reiteração, por apresentarem uma carga emocional ou, ainda, por suas
contradições. Os pré-indicadores foram bastante numerosos e compuseram um quadro amplo
de possibilidades para serem aglutinados em indicadores, de acordo com a orientação de
Aguiar e Ozella (2006). O critério básico para filtrar os pré-indicadores foi o de sua
importância na compreensão do objetivo da investigação. Vale ressaltar que o levantamento
de pré-indicadores foi realizado com o material transcrito da entrevista e de cada sessão de
autoconfrontação separadamente, ou seja, ao fim desse procedimento, contava-se com três
80
diferentes quadros de pré-indicadores, cada um deles com material proveniente de uma
determinada técnica de coleta e produção de dados (ver anexos 5, 6 e 7).
Os pré-indicadores levantados foram reunidos com base nos critérios de similaridade,
complementaridade, contraposição ou contradição, dando origem aos indicadores. Esses
critérios, vale lembrar, não são mutuamente excludentes nem necessariamente isolados entre
si, de modo que podem ter significados diversos em condições específicas: “Os indicadores só
adquirem significado quando inseridos e articulados na totalidade dos conteúdos temáticos
apresentados, ou seja, na totalidade das expressões do sujeito” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p.
13). O número de indicadores, expressivamente menor do que o de pré-indicadores, permitiu
caminhar em direção à constituição dos núcleos de significação. Segundo Aguiar e Ozella
(2006, p. 229), “este momento já caracteriza uma fase do processo de análise, mesmo que
ainda empírica e não interpretativa, mas que ilumina um início de nuclearização”. Ainda em
relação aos indicadores, eles foram aglutinados com base nos pré-indicadores advindos das
falas da entrevista e das autoconfrontações separadamente, originando, assim, três quadros
distintos.
Teve início, então, o processo de organização e articulação dos indicadores, o que
levou à constituição dos núcleos de significação. Os indicadores que possibilitaram a
identificação dos conteúdos presentes na fala (e suas múltiplas relações), revelando e
objetivando a essência dos conteúdos expressos pelo sujeito, foram também articulados com
base nos mesmos critérios: semelhança, complementaridade, contraposição e/ou contradição.
É importante mencionar que foi tomada a decisão de formar os núcleos de significação a
partir dos indicadores encontrados por meio de instrumentos distintos: a fala da professora na
entrevista, na ACS e na ACC. Embora esses indicadores sejam provenientes de três técnicas
diferentes de coleta de dados, caracterizando três momentos e três contextos bastante distintos
e específicos da fala da professora, optou-se por reuni-los. Essa decisão se deu porque, uma
vez realizadas as leituras do material transcrito e definidos os pré-indicadores e indicadores
provenientes de cada uma dessas técnicas, percebeu-se a semelhança, a complementaridade, a
contraposição ou a contradição existentes entre eles.
Assim, notou-se que, se fossem formados núcleos isolados para cada um desses
momentos da fala da docente, eles trariam conteúdos bastante repetitivos e, em especial, não
dariam conta de articular a complexidade dos sentidos atribuídos pela professora às
“dificuldades de aprendizagem” dos alunos. Apesar da compreensão acerca das
peculiaridades relativas a cada um desses diferentes contextos de fala da professora,
81
considerou-se que eles tratam da mesma atividade e dos mesmos conteúdos, situação que
possibilita articular, em núcleos conjuntos, indicadores provenientes de distintos momentos.
Acredita-se que essa junção proporcionou mais e melhores articulações entre os indicadores,
algo que dificilmente se obteria caso os dados produzidos por meio de diferentes técnicas
fossem analisados separadamente.
Estabelecida a organização dos núcleos, foi possível verificar algumas transformações
e contradições que ocorreram no processo de constituição de sentidos e significados relativos
às dificuldades de aprendizagem. Considera-se que, desse modo, foi possível alcançar uma
análise mais consistente, capaz de ir além da aparência, por considerar as condições
subjetivas, sociais e históricas do sujeito e de seu ofício naquele momento e local. Nesta etapa
do processo, esperava-se um número bem reduzido de núcleos, a fim de evitar o retorno aos
indicadores. De acordo com os propositores dessa forma de análise: [...] é nesse o momento em que, efetivamente, iniciamos o processo de análise e avançamos do empírico para o interpretativo. Os núcleos resultantes devem expressar os pontos centrais e fundamentais que trazem implicações para o sujeito, que o envolvem emocionalmente, que revelam as suas determinações constitutivas. (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 230).
Seguindo a proposta dos autores, a nomeação dos núcleos foi extraída da própria fala
da professora, utilizando uma ou mais de suas expressões, de modo a compor uma frase curta,
que ilustrasse tanto a articulação realizada na elaboração dos núcleos quanto o processo e o
movimento do sujeito. Dessa forma, os nomes dos núcleos expressaram o que eles tinham de
central, ou seja, o que, a partir do movimento interpretativo da análise, foi percebido como
essencial em sua compreensão. A análise dos núcleos de significação foi realizada,
inicialmente, para cada núcleo (intranúcleo), avançando, posteriormente, para uma análise
capaz de articular os conteúdos dos vários núcleos (internúcleos). Esse procedimento tentou
apreender, notadamente, as contradições, pois se considera que são elas que revelam o
movimento do sujeito. Tais contradições – vale ressaltar – não se encontram necessariamente
expressas na fala dos sujeitos, devendo ser apreendidas por meio da análise interpretativa do
pesquisador, uma vez que o procedimento adotado busca avançar do empírico para o
interpretativo, isto é, da fala para seu sentido. Dessa forma: [...] o processo de análise não deve ser restrito à fala do informante: ela deve ser articulada (e aqui se amplia o processo interpretativo do investigador) ao contexto social, político e econômico ou, em síntese, histórico, por permitir acesso à compreensão do sujeito, na sua totalidade. Assim, só avançaremos na compreensão dos sentidos, quando os conteúdos dos núcleos forem articulados. (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 230).
82
Os núcleos de significação foram analisados à luz do contexto social e histórico,
sempre com base na teoria sócio-histórica. É importante ressaltar que, a fim de alcançar uma
aproximação dos sentidos constituídos pelo sujeito, é fundamental considerar suas
determinações constitutivas, suas necessidades e sua atividade. Enfim, é fundamental situá-lo
sócio-historicamente. Em consonância com os pressupostos teóricos e metodológicos
apresentados, a análise e a interpretação dos núcleos de significação compuseram-se por meio
de um movimento que buscou articular dois referenciais teóricos: o da Psicologia Sócio-
Histórica e o da Clínica da Atividade. Dessa forma, procurou-se apreender as mediações
constitutivas do sujeito, suas necessidades e seus motivos, bem como os significados
compartilhados com outros docentes, em busca dos sentidos constituídos pelo próprio sujeito.
Pretendeu-se, também, articular a tarefa, o real da atividade e a atividade real, de forma que,
partindo da realidade empírica, fosse possível apreender o movimento contraditório criado
entre as prescrições da tarefa e a atividade realizada, para, assim, alcançar o real da atividade.
Na análise dos núcleos, foram também consideradas as mediações do gênero e do estilo, bem
como as possíveis reflexões e transformações na atividade docente geradas pelo processo de
análise da própria atuação profissional ao longo do processo de autoconfrontação.
83
CAPÍTULO IV
APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS
O presente capítulo tem como objetivo apresentar os dados coletados por meio das
técnicas anteriormente descritas – observação, entrevista e autoconfrontação – bem como
ilustrar o processo de análise dos núcleos de significação. Assim, o capítulo tem início com
uma breve exposição do contexto da pesquisa, na qual são descritos o município e a escola em
que foi realizada a coleta de dados; a seguir, é apresentada uma caracterização do sujeito da
pesquisa, com base nos dados levantados durante a entrevista e a observação das aulas
ministradas. Na sequência, é apresentado o quadro contendo os núcleos de significação e seus
respectivos indicadores, compostos pelos conteúdos advindos da entrevista e das sessões de
autoconfrontação. O capítulo apresenta, então, a análise de cada um dos núcleos de
significação, ou seja, a análise intranúcleos. Finalmente, os núcleos são articulados entre si,
configurando a análise internúcleos.
1 A escola
Considerando que a abordagem epistemológica que orienta a presente pesquisa – a
Materialista Histórica e Dialética – defende que o indivíduo se constitui na relação dialética
com o mundo material, para compreendê-lo faz-se necessário considerar seu contexto social e
histórico. Conforme afirma Soares (2011, p.143): Embora a fala seja um elemento fundamental em todo esse processo de investigação, ela, por si só, não é capaz de revelar as zonas de sentidos do sujeito, isto é, as zonas mais fluídas e dinâmicas que constituem as articulações entre pensamento e linguagem. Para nos apropriarmos dessas articulações, devemos conhecer as condições históricas objetivas e subjetivas nas quais elas são dialeticamente constituídas.
Alcançar, portanto, uma aproximação dos sentidos atribuídos pelo professor a sua
atividade docente requer considerar o contexto no qual essa atividade se insere, além de suas
condições objetivas e subjetivas, pois delas provêm muitos dos elementos constituintes de tais
sentidos. Ou seja, é preciso conhecer a escola na qual a atividade docente aqui analisada se
desenvolve, sua conjuntura administrativa e pedagógica. Essa escola localiza-se em Lençóis,
um município da região central do estado da Bahia que tem como principal atividade
socioeconômica o turismo. De acordo com o Censo brasileiro realizado pelo Instituto
84
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2010, Lençóis contava com
aproximadamente 10.000 habitantes, possuía 13 pré-escolas (41,9% do total de escolas da
cidade), 17 escolas de ensino fundamental (54,8%) e uma escola de ensino médio (3,2%). O
número de matrículas por série revelava que 13,7% dos estudantes estavam matriculados na
pré-escola, 71,1% no ensino fundamental e 15,3% no ensino médio.
A escola funcionava tanto no período matutino quanto no vespertino e tinha 311
alunos, dez professores e oito funcionários, dentre os quais uma diretora, uma coordenadora
pedagógica e uma vice-diretora, que também atuava como professora. Em relação ao espaço
físico, a escola dispunha de oito salas de aula, todas elas bastante limpas, bem iluminadas e
ventiladas. Uma sala grande era subdividida entre secretaria, diretoria e sala de professores.
Todas essas salas estavam distribuídas dos dois lados de um amplo pátio central, no qual os
alunos brincavam na hora do intervalo entre as aulas, realizando, também ali, as aulas de
Educação Física, uma vez que a escola não dispunha de quadras esportivas. Na sala da
secretaria e da direção, havia computadores que podiam ser utilizados pelos professores, mas
não pelos alunos, aos quais era vedado o acesso. A biblioteca estava passando por um
processo de reativação, de modo que não havia uma sala reservada para esse fim: os livros
ficavam em um pequeno anexo da secretaria, de difícil acesso aos alunos. Havia ainda uma
cozinha, mas como a escola não possuía um refeitório, a merenda era preparada na sala de
aula, antes do horário da recreação.
No que diz respeito à estrutura administrativa e pedagógica, a escola passava por um
processo de intensa mudança no momento em que se realizou a coleta de dados. Essa
mudança, iniciada com a saída do diretor anterior e o ingresso da nova diretora, buscava
implementar e consolidar diversas alterações no funcionamento da instituição, boa parte delas
já propostas e reivindicadas pelos próprios professores. Entre elas, pode-se destacar o suporte
às novas propostas pedagógicas trazidas pelos docentes, bem como a substituição de uma
parte do quadro dos funcionários (merendeiras) que, de acordo com o relato de algumas
professoras, não se relacionavam bem com os demais colegas, gerando um ambiente
desagradável.
Além das propostas implementadas pela nova diretora, outro acontecimento
primordial para a transformação das relações constituintes do ambiente escolar e das práticas
pedagógicas ali desenvolvidas foi a saída da antiga coordenadora pedagógica. Seu posto foi
ocupado por uma professora que já fazia parte do corpo docente da escola, indicada pelos
demais professores, que consideravam seu trabalho excelente. Apesar de não ter formação
85
específica para essa nova função, a professora, ao ser indicada, buscou um curso de
capacitação que lhe fornecesse os subsídios necessários para a adequada realização de sua
nova atividade profissional.
Em relação ao projeto político e pedagógico, as professoras e a coordenadora
pedagógica esclareceram que ele foi sempre desenvolvido de forma coletiva, envolvendo uma
intensa participação de todo o corpo docente. Observou-se, também, que semanalmente
ocorria uma reunião, da qual participavam todos os professores, a coordenadora pedagógica e
a diretora e na qual eram discutidos assuntos relativos à pratica docente, tais como as
concepções e as expectativas dos professores acerca da relação ensino-aprendizagem; as
dificuldades encontradas por eles em sala de aula e suas possíveis soluções; as atividades a
serem realizadas, os objetivos a serem alcançados e os materiais a serem nelas empregados.
Tais momentos de discussão coletiva pareciam funcionar como uma importante oportunidade
de troca de conhecimentos teóricos e práticos, capazes de auxiliar os professores na realização
de suas tarefas e na reflexão acerca da própria atividade e daquela de seus pares. Foi possível
observar, também, que as relações interpessoais entre professores, funcionários e alunos
ocorriam de forma harmônica e tranquila, existindo, na escola, um clima de cooperação entre
todos os envolvidos.
2 A professora
A professora que se disponibilizou a fazer parte da pesquisa foi extremamente cordial,
atenciosa e colaborativa durante todo o processo de levantamento de dados. A seguir, são
apresentados alguns aspectos de sua história de vida considerados importantes para
possibilitar uma melhor compreensão de seu percurso e de sua formação como docente.
No momento da coleta de dados, Cássia12 tinha 37 anos, era casada e mãe de dois
filhos: um menino de 17, que também gostaria de seguir carreira no magistério, e uma menina
de 15. Essa professora lecionava para o 1o ano do Ensino Fundamental em uma escola
municipal, na qual atuava havia oito anos, sempre em séries iniciais, ou seja, como professora
alfabetizadora. Sua carga horária era de 40 horas semanais. Antes disso, Cássia havia
trabalhado, durante um período de sete anos, como professora de classes multisseriadas em
uma escola rural de um povoado localizado nos arredores de Lençóis.
Segundo seu relato, um dos principais fatores que a levaram a decidir-se pela docência
foi sua trajetória como estudante, fortemente marcada por uma professora que desempenhou
12 Nome fictício escolhido pela docente.
86
um papel fundamental nessa história. De acordo com Cássia, essa professora era muito
carinhosa e, ao mesmo tempo, empenhava-se muito para que todos os alunos aprendessem.
Trabalhava segundo o método tradicional, utilizando a cartilha como principal material
pedagógico, mas ensinava também valores e princípios éticos, opondo-se radicalmente, por
exemplo, à forte discriminação racial que existia dentro e fora da escola. Segundo Cássia, essa
professora lhe despertava muita admiração, fator determinante em sua escolha pela profissão
docente.
Outro aspecto fundamental no processo de escolha de Cássia foi a falta de opções
profissionais no município de Lençóis. Fica evidente em seu relato que, apesar de gostar
muito de ser professora, caso fosse mais amplo seu escopo de opções profissionais, sua
primeira opção não seria a docência. Comentou seu interesse e sua admiração pela profissão
de enfermeira, que escolheria caso lhe fosse possível. Disse, ainda, que a desvalorização da
docência em termos de remuneração salarial era um fator que a faria considerar outras
profissões, uma vez que seu salário não era suficiente, por exemplo, para manter os filhos em
uma boa faculdade. Antes de começar a trabalhar como professora, Cássia atuou como
cozinheira, atendente de hotel e recepcionista da Secretaria de Educação. Desempenhou essas
atividades profissionais até aparecer uma oportunidade como professora na zona rural em um
povoado nos arrabaldes de Lençóis, como já mencionado.
Dessa forma, Cássia deu início a sua carreira docente sem nenhuma formação
específica para isso. Inclusive, até o momento em que se realizou o levantamento de dados
para a pesquisa, ela ainda não contava com tal formação. Estava cursando o 7o semestre da
faculdade de Pedagogia, e lhe faltava ainda um ano para que se graduasse como pedagoga.
Assim, não havia concluído nem a formação inicial, apesar de atuar como docente há quase
15 anos. Fica bastante claro, no discurso de Cássia, que o curso que realizava estava
contribuindo para seu desempenho na atividade docente: “Mas, aí, depois que eu entrei na
faculdade, muita coisa melhorou... E, aí, eu pude investir mais nisso, com embasamento
teórico, né? Fui percebendo que eu estou indo na linha certa”. De fato, por algumas vezes ao
longo da entrevista, a professora reiterou que a faculdade estava lhe fornecendo os subsídios
teóricos para refletir sobre sua prática em sala de aula e aperfeiçoá-la. Quando indagada sobre
a importância da formação inicial para sua atividade docente, respondeu:
Essa importância, assim, de que a gente não trabalha aleatoriamente: você tem um embasamento para trabalhar e você tem o conhecimento para estar entendendo melhor o aluno... Essa vinculação da teoria com a prática... Tudo que eu aprendo lá, eu tento colocar em prática. [...] Ajuda bastante na minha prática... Por isso que eu escolhi pedagogia, porque é a minha área
87
mesmo, uma coisa que eu quero entender. E vou fazer psicopedagogia também, depois que eu concluir a faculdade.
Cássia também ressaltou, na entrevista, que desde o início de sua trajetória docente,
sempre preferiu trabalhar com classes de alfabetização, por considerar que esta constitui a
base fundamental do ensino. Sua preferência por ensinar crianças entre cinco e sete anos
vinha ainda do fato de considerá-las mais respeitosas e compreensivas do que os alunos mais
velhos ou adolescentes. Afirmou que via seus alunos “como seres pensantes, que já trazem
muito conhecimento” e que considerava importante sempre valorizar e compartilhar esses
conhecimentos. Mencionou, inclusive, que essa valorização dos conhecimentos prévios dos
alunos era justamente um dos pontos positivos de sua prática como professora .
Ao ser indagada sobre aquilo de que gostava em sua atividade profissional, Cássia
relatou: Eu gosto de trabalhar com crianças... Eu sei que é desvalorizado, é muito desvalorizada essa nossa classe [profissional], mas eu gosto de trabalhar, eu me sinto muito satisfeita ao ver que as crianças estão aprendendo... Estão aprendendo de uma maneira diferente, mas estão aprendendo... E de valorizar isso também, a sala de aula como um todo... Porque, antigamente, a gente trabalhava de outra maneira, trabalhava com a cartilha... E, hoje em dia, a gente pode trabalhar o mesmo conteúdo, sem precisar da cartilha, e sem precisar também dizer: “fulano sabe mais do que sicrano”!
No que se refere às aulas observadas ao longo da pesquisa, foi possível constatar que
Cássia era uma professora bastante dinâmica, que imprimia em suas atividades um tom
lúdico, pois frequentemente utilizava músicas, parlendas, brincadeiras e jogos como recursos
pedagógicos. Além disso, muitas vezes as atividades propostas aos alunos eram realizadas em
duplas ou grupos, cujos resultados eram, quase sempre, socializados com toda a classe ao
final. Foi possível perceber também que o relacionamento da professora com seus alunos era
muito afetuoso, sem deixar de ser firme quando necessário. Sua relação com os demais
docentes da escola, bem como com a equipe gestora e os funcionários, pareceu bastante
cordial e respeitosa.
3 Núcleos de significação
Apresenta-se, a seguir, o quadro contendo os núcleos de significação articulados com
base nos pré-indicadores e indicadores levantados da fala da professora durante a entrevista, a
autoconfrontação simples (ACS) e a autoconfrontação cruzada (ACC). É possível observar
88
que, ao lado de cada indicador, está assinalada a técnica de coleta de dados da qual o
respectivo indicador foi extraído.
Núcleos de significação formados por indicadores da entrevista e das autoconfrontações
Núcleos Indicadores Falta de formação docente: estou cursando Pedagogia (Entrevista) Escolha profissional (Entrevista) Admiração por uma professora como forte fator de influência na escolha profissional (Entrevista) Trajetória na profissão docente (Entrevista) Transformações na prática pedagógica provocadas pela formação docente: a vinculação entre teoria e prática (Entrevista) Importância da formação continuada no trabalho do corpo docente da escola (Entrevista) Transformações na atividade da professora após o inicio da formação docente: a importância da teoria como suporte para a prática em sala de aula (ACS) A importância da formação profissional no trabalho da equipe escolar (ACS)
A importância da teoria como suporte para a prática pedagógica: “tudo que
eu aprendo, eu procuro colocar na sala de aula”.
Considerações sobre a formação inicial e continuada disponibilizada no município (ACS) Atividade diferenciadas para alunos em diferentes níveis de aprendizagem (Entrevista) Problemas enfrentados para lidar com alunos que tem dificuldades (Entrevista) Quem são os alunos com “dificuldades de aprendizagem” (Entrevista) Estratégias para lidar com alunos com dificuldades (ACS) Alunos com “dificuldades de aprendizagem” (ACS) “Preciso pensar primeiro nos que tem mais dificuldade” (ACC) Justificativas para a estratégia de chamar alunos com dificuldade na lousa (ACS) Justificativa da escolha de certos alunos para ir à lousa (ACC) Atividades diferenciadas para alunos com diferentes ritmos de aprendizagem (ACS) Os alunos mais adiantados ficam impacientes por ter que esperar os mais atrasados (ACC) Sobre a relação dos pais com a aprendizagem dos alunos (Entrevista)
“Preciso pensar primeiro nos que têm
mais dificuldade”
Sobre o papel dos pais na aprendizagem dos
89
alunos (ACS) Dificuldades geradas por falta de acompanhamento dos pais (ACC) Organização do tempo (Entrevista) Prática pedagógica: formas de trabalhar em sala de aula (Entrevista) Importância de atividades em grupo (Entrevista) Trabalho coletivo na escola ajuda bastante na prática pedagógica (Entrevista) Sobre avaliação (Entrevista) Preferência por séries iniciais (Entrevista) Valorização da profissão: “é muito desvalorizada a nossa classe” (Entrevista) Atividade de leitura com parlenda: textos conhecidos pelos alunos facilitam a aprendizagem (ACS) Intervenções da professora ajudam as crianças a conseguir desenvolver a atividade (ACC) Importância da intencionalidade na prática docente (ACS) Sobre silabação (ACS) Atividades em grupo: vantagens e desafios (ACS) Atividades em grupos: os alunos se ajudam (ACC) Critérios para formação de duplas de trabalho (ACS) Benefícios e dificuldades das atividades em duplas (ACS) Quem é o aluno (Entrevista) Auto avaliação - pontos positivos da prática docente: sempre valorizar o que a criança já traz (Entrevista) Auto avaliação - pontos negativos da prática docente (Entrevista) Dificuldades na prática pedagógica: “gostaria de fazer outras atividades” (Entrevista) Ausência de material didático (ACS) Dificuldades na prática pedagógica (ACS) Necessidade de ajuda: gostaria de ter mais uma professora auxiliando na atividades durante as aulas (ACC) Dificuldades na prática pedagógica geradas por falta de material didático (Entrevista) Meta: alfabetizar todos os alunos (Entrevista) Meta de alfabetizar todos os alunos: ideal X realidade (ACS)
Atividade docente: “Eu invisto muito no trabalho em grupo, porque no
grupo tem sempre alguém que esta um pouco a mais na frente”.
Meta de alfabetizar todos os alunos: “não quero cumprir só por cumprir, mas porque sei que eles
90
precisam” (ACC) Realização profissional: se sente satisfeita ao ver que as crianças estão aprendendo (Entrevista) Trabalho coletivo na escola ajuda bastante na prática pedagógica (Entrevista) Mudanças na equipe gestora: “muita coisa já mudou” (Entrevista) Mudanças na equipe de funcionários decididas coletivamente após a mudança da equipe gestora (Entrevista) Relações com as novas professoras: “tem gente que tem medo, então não quer mudar” (Entrevista) Avaliação da escola (Entrevista)
Relações institucionais mediadoras da atividade docente: “Tem gente que tem
medo, então não quer mudar”.
Importância da continuidade entre o trabalho de professoras de diferentes séries (ACS) Reflexões críticas sobre a atividade da parlenda (ACS) Reflexão sobre a prática da correção coletiva do dever de casa: poderia ter disponibilizado material concreto que ajudasse na apresentação dos problemas resolvidos (ACS) Reflexões sobre a atividade da cruzadinha: poderia ter disponibilizado um banco de dados (ACS) Repensando a prática docente: chamar alunos com dificuldade para responder questões na lousa (ACS) Reflexões sobre o processo de autoconfrontação simples (ACS)
Reflexões sobre a prática após a AC:
“Eu poderia ter...”
Auto avaliação da prática em sala de aula: deveria ter avançado mais (ACS)
3.1 Núcleo de significação 1 – A importância da teoria como suporte para a prática
pedagógica: “tudo que eu aprendo, eu procuro colocar na sala de aula”.
Este núcleo de significação é resultado de um processo de articulação de indicadores
cujos conteúdos tratam, de forma ampla, da formação docente. Assim, estão aqui aglutinados
desde indicadores relativos à escolha da profissão e à trajetória profissional até aqueles
referentes às transformações na prática docente desencadeadas pela formação inicial e
continuada. Alguns dos indicadores reunidos neste núcleo foram extraídos da fala da
professora no decorrer da entrevista, tais como: 1) a falta de formação docente inicial: estou
cursando Pedagogia ; 2) a escolha profissional; 3) a admiração por uma professora como forte
91
fator de influência na escolha profissional; 4) a trajetória na profissão docente; 5) as
transformações na prática pedagógica provocadas pela formação docente: a vinculação entre
teoria e prática e 6) a importância da formação continuada no trabalho do corpo docente da
escola.
Outros indicadores foram levantados com base na fala da professora no momento da
autoconfrontação simples: 1) as transformações na atividade da professora após o início da
formação docente: a importância da teoria como suporte para a prática em sala de aula; 2) a
importância da formação profissional no trabalho da equipe escolar e 3) as considerações
sobre a formação inicial e continuada disponibilizada pelo município. Não existem, neste
último núcleo, indicadores extraídos da autoconfrontação cruzada.
Um dos indicadores deste núcleo trata da questão da escolha profissional de Cássia.
Em seu discurso, a professora apontou que, em Lençóis, onde nasceu e residiu durante toda
sua vida, não existiam muitas opções profissionais: tratava-se de uma cidade pequena, na qual
não havia cursos profissionalizantes. As ofertas de trabalho eram, portanto, restritas à
prestação de serviços relacionados ao turismo – principal atividade econômica da região – ou
à lavoura, ou seja, ao pesado trabalho na roça. Para as mulheres, uma das poucas opções de
atividade econômica distinta das arroladas acima era o magistério. Assim, Cássia nunca pôde,
de fato, escolher sua profissão. Antes de ser professora, ela trabalhou em setores relacionados
à prestação de serviços: foi cozinheira, recepcionista, atendente em hotel. Diante da falta de
oferta profissional, quando surgiu a oportunidade de atuar como professora, ela
imediatamente a agarrou.
É relevante salientar duas questões divergentes em relação à carreira seguida por
Cássia. Por um lado, ela afirmou nunca ter tido uma vasta gama de opções profissionais, por
isso a escolha pela docência não teria sido exatamente uma escolha, mas sim a adesão a uma
das poucas oportunidades que o ambiente profissional de sua cidade lhe propiciava. Segundo
seu próprio discurso, se pudesse ter optado por outra carreira, teria preferido ser enfermeira.
Por outro lado, Cássia afirmou também que sempre quis ser professora. Essa contradição fica
mais aparente em seu discurso quando se analisam, conjuntamente, os seguintes pré-
indicadores, retirados de momentos distintos da sua entrevista: E, aí, também, Lençóis não tem muitas oportunidades... Aí, quando eu cresci, realmente segui essa carreira. Não tinha, também, outras oportunidades... [...] ela [uma das professoras que teve quando aluna] sempre fazia uma redação, em que perguntava: o que vocês querem ser quando crescer? Aí, eu falava: eu quero ser professora, igual à senhora.
92
Desse modo, a opção de Cássia pela docência parece ter decorrido, por um lado, da
falta de outras perspectivas profissionais e, por outro, do gosto pelos estudos, aliados à
admiração que nutria pela antiga professora, cuja atuação marcou positivamente a história de
Cássia como estudante. Esses aspectos parecem ter exercido uma forte influência na decisão
de ingressar na carreira docente tão logo surgisse uma oportunidade. Essa contradição entre a
falta de escolha profissional e o desejo de ser professora evidenciou-se, também, quando da
análise do pré-indicador “Por isso que eu escolhi pedagogia: porque é a minha área
mesmo, uma coisa que eu quero entender, e eu vou fazer psicopedagogia também, depois
que eu concluir a faculdade”. Aqui, Cássia parecia remeter-se ao curso de pedagogia como
uma escolha bem justificada. No entanto, é possível perceber que essa eleição se deu dentre as
limitadas possibilidades disponíveis, ou seja, entre ser atendente de hotel ou recepcionista, a
preferência recaiu sobre ser professora, como ficou claro em seu relato: “antes, passei por
essas outras experiências, porque eu não tinha oportunidade para ensinar. Aí, quando
surgiu...”.
Consideradas as duas razões que teriam levado Cássia à sala de aula, pode-se indagar,
então, como essa contradição entre a falta de opções profissionais e o desejo de ser professora
articula-se na constituição dos sentidos e significados que Cássia atribui à própria atividade
docente. A fim de melhor compreender essa questão, é interessante, aqui, retomar alguns
pontos relacionados à constituição das necessidades e dos motivos, tal como são concebidos
na perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica. De acordo com Aguiar e Ozella (2006, p. 228),
as necessidades consistem em um “estado de carência do indivíduo que leva a sua ativação
com vistas à sua satisfação, dependendo das condições de existência”. Como salientam os
autores, as necessidades têm estrita relação com o social, uma vez que “se constituem e se
revelam a partir de um processo de configuração das relações sociais, processo esse que é
único, singular, subjetivo e histórico ao mesmo tempo”.
Os motivos, por sua vez, podem ser compreendidos como configurações subjetivas,
constituídas na articulação de elementos de sentidos, com base nos quais os sujeitos
significam algo da realidade social como sendo suficiente para satisfazer suas necessidades.
São os motivos, portanto, que impulsionam a ação. Segundo Leontiev (2004, p. 104), “para
encontrar o sentido pessoal devemos descobrir o motivo que lhe corresponde”. Assim, em
termos de necessidades e motivos, é possível inferir que a constituição de Cássia como
professora partiu da necessidade, social e historicamente construída, de ter uma profissão.
Apesar de não ser a que ela escolheria caso existissem outras possibilidades, a docência foi
93
uma profissão significada por ela como sendo capaz de atender a suas necessidades. Dessa
forma, Cássia conseguiu encontrar no professorado algo que se configurou como um motivo,
impulsionando sua ação em direção ao magistério. Posteriormente, a atuação como professora
converteu-se, ela mesma, em um motivo capaz de levar Cássia a buscar um curso de formação
profissional na área, fato que ela descreveu como uma escolha desencadeada por um motivo,
e não como simples consequência da falta de opções antes mencionada.
É interessante notar que, embora o magistério se apresentasse como uma das poucas
opções profissionais disponíveis em Lençóis, até poucos anos atrás não existiam no município
cursos de formação docente. Havia, sim, a possibilidade de cursar o magistério no decorrer do
ensino médio (antigo segundo grau), mas não existiam cursos de Pedagogia nem licenciaturas
de qualquer espécie. Tampouco era oferecido qualquer tipo de formação continuada. A
graduação tornou-se possível para os professores há apenas quatro anos. Ainda assim, Cássia
relatou uma série de problemas relacionados aos cursos de formação docente: inicialmente,
uma boa universidade estadual oferecia o curso de Pedagogia, uma vez que um campus
avançado havia sido inaugurado na cidade, contando com ótimos professores e boas
condições de ensino. No entanto, em razão de problemas políticos, essa instituição retirou-se
do município:
[...] a Uefes era ótima, menina! É a faculdade de Feira de Santana. Mas, aí, teve um problema na prefeitura, que não estava pagando a Uefes e, aí, eles fecharam a unidade daqui... Era naquele prédio branco na praça, sabe? Era ótimo! Mas, aí, acabou... porque a prefeitura não pagou [o que devia].
Após a desativação da universidade, o curso de Pedagogia passou a ser oferecido por
outra, cuja qualidade era, segundo a professora, bastante questionável:
Agora, nesse curso, a gente está fazendo assim: a gente paga e a prefeitura dá a metade (da mensalidade). Mas não é tão boa, não, como a anterior. E está uma confusão, tem um monte de problemas lá: parece que a prefeitura também não está pagando direito a parte dela... Mas a gente não quer desistir!
Cássia afirmou, repetidamente, que a base da boa formação docente dos professores da
cidade se devia ao curso iniciado na universidade anterior: “como antes dessa faculdade a
gente já tinha iniciado, a gente fez, antes, seis meses de Uefes... e eram todos os dias... A
gente já estava bem, a gente tinha ótimos professores e, aí, a gente seguiu essa linha”.
Posteriormente, a professora reafirmou essa mesma posição: “como a gente já vinha naquela
94
linha, com aquela vontade de estudar e tal, porque a gente fazia Uefes antes, a gente seguiu
[em frente, na mesma orientação]”.
A professora contou que, no seu entender, o curso oferecido no momento da coleta de
dados cumpria apenas a função de disponibilizar aos alunos materiais de apoio pedagógico.
Assim, ao longo das entrevistas, torna-se claro que o primeiro curso de Pedagogia exerceu um
papel fundamental em sua formação docente – uma vez que, conforme verifica-se na
pesquisa, eram os conteúdos ali ministrados que norteavam sua atividade em sala de aula – ao
passo que o curso atual lhe disponibilizava apenas suporte pedagógico. Considerando que este
último curso oferecia apenas aulas virtuais que ocorriam, além disso, apenas uma vez por
semana, é possível compreender a insatisfação da professora. Segundo ela, “a FTC, na
realidade, ela tem material, tem tudo para ajudar, mas é um só dia de aula e é aula
virtual! Então, tem gente que vai e não liga muito para a aula, porque é virtual e o professor
não está ali, ao vivo. Mas a gente tem material disponível”.
Este núcleo indica, de maneira bastante clara, a importância atribuída por Cássia ao
processo de formação docente. O discurso da professora remeteu-se, reiteradamente, às
transformações que sua atividade pedagógica havia sofrido em função da formação pela qual
estava passando. É interessante notar que, apesar de lecionar há cerca de 15 anos, Cássia
nunca havia realizado nenhum curso, como fica claro no indicador “Falta de formação
docente: estou cursando Pedagogia”. Conforme citado anteriormente, o ingresso de Cássia
nessa profissão não se deu em razão de uma escolha bem pensada de sua parte e, sim, graças a
um convite inesperado: ela não havia sequer cursado o magistério no ensino médio. Durante
anos, sua atuação docente pautou-se exclusivamente por sua experiência como aluna em sala
de aula e, um pouco mais tarde, como professora leiga. O simples fato de ter sido uma boa
aluna e de sempre ter gostado de estudar pareceu-lhe suficiente para desenvolver a docência
na zona rural, trabalhando junto a classes multisseriadas.
Essa forma de atuação, orientada pela espontaneidade e marcada pela falta de
referencial teórico, na qual a cartilha era o único recurso pedagógico utilizado, foi bastante
criticada por Cássia ao longo da pesquisa. A formação até então realizada em Pedagogia havia
lhe permitido transformar a compreensão acerca das questões pedagógicas e das
possibilidades de atuação em sala de aula. Essas transformações foram extremamente
significativas para Cássia, se considerada a frequência com que apareceram em seu discurso.
Dois indicadores ilustram claramente a importância dada à formação profissional:
“Transformações provocadas na prática pedagógica pela formação docente: a vinculação entre
95
teoria e prática” – indicador extraído da entrevista – e “Transformações na atividade da
professora após o início da formação docente: a importância da teoria como suporte para a
prática em sala de aula”, proveniente da autoconfrontação simples.
Cássia apontou o embasamento teórico como o aspecto fundamental da sua formação
docente. Diversos pré-indicadores demonstram as mudanças ocasionadas pelo contato com as
teorias pedagógicas, bem exemplificados nos dois fragmentos da entrevista transcritos abaixo: E, outra coisa, antigamente, quando eu trabalhava na zona rural e não tinha essa formação, eu pensava assim: tinha que trabalhar com silabação, né?! Então, hoje em dia, eu não penso mais assim. [...] porque, antigamente, a gente trabalhava de outra maneira, trabalhava com a cartilha... E, hoje em dia, a gente pode trabalhar o mesmo conteúdo, sem precisar da cartilha e sem precisar, também, dizer assim: “fulano sabe mais do que sicrano”... Eu gosto mais [agora]
Além de ocasionar o abandono de práticas que marcavam sua antiga forma de
trabalhar, a fundamentação teórica também proporcionou a Cássia embasamento para outras
atividades pedagógicas, como bem ilustra a fala que segue: “olha, desde quando eu
trabalhava na zona rural, eu já via por esse lado! Só que eu não tinha nenhum
embasamento teórico, eu fazia [de um dado modo], porque eu acreditava que era assim que
tinha que ser...”. Dessa forma, o saber acadêmico revelou-se central na atividade docente de
Cássia, tanto por proporcionar mudanças em práticas de ensino já ultrapassadas, quanto por
justificar práticas consideradas, intuitivamente, mais efetivas. O pré-indicador “Mas, aí,
depois que eu entrei na faculdade, muita coisa melhorou... E, aí, eu pude investir mais
nisso, com embasamento teórico, né? Fui percebendo que eu estou indo na linha certa” é um
exemplo claro da influência exercida pela formação teórica na prática de sala de aula,
segundo a opinião da professora.
Como já visto, a vinculação entre teoria e prática foi tema bastante recorrente no
discurso de Cássia. Para ela, residiria nessa ligação o aspecto fundamental da formação
docente: [...] essa importância, assim, de que a gente não trabalha aleatoriamente, de você ter um embasamento para trabalhar, e de você ter o conhecimento para estar entendendo melhor o aluno... Essa vinculação da teoria com a prática... Tudo que eu aprendo lá, eu tento colocar em prática.
Na autoconfrontação, esse também foi um tema frequente, como comprova o exemplo
a seguir: questionada sobre o que, a seu ver, havia promovido tantas transformações em sua
96
atividade docente, a professora respondeu: “foi depois que eu comecei... Depois da faculdade,
depois que comecei a faculdade. Eu sempre gostei muito de estudar e tudo que iam falando
lá, eu comecei a botar na prática”. Cássia salientou que os conhecimentos teóricos que
obteve sobre a sala de aula passaram a orientar sua atuação docente, promovendo avanços
significativos na aprendizagem dos alunos: “Aí eu fui vendo isso, os níveis de aprendizagem,
como fazia. Aí eu comecei a ver isso mesmo como uma coisa da minha prática, e trouxe
para a sala de aula. E funcionou bem, muita coisa já mudou. Muita coisa mesmo”.
A importância atribuída por Cássia à vinculação entre teoria e prática parece ser uma
exceção entre professores. Diversas pesquisas têm apontado que, de forma geral, os docentes
conferem muito mais valor aos saberes adquiridos na própria experiência de sala de aula do
que à fundamentação teórica proporcionada pelos cursos de formação inicial e/ou continuada.
Alunos de licenciatura entrevistados no estudo de Mizukami (1983) afirmaram que aprendiam
mais com a prática docente de seus próprios professores do que com as teorias sobre práticas
docentes que eles lhes ensinavam. Ao analisar os sentidos e os significados conferidos por
três professoras à profissão docente, Cericato (2010, p. 193) afirma que duas delas “atribuem
grande valor aos conhecimentos que o professor produz em função de sua atuação cotidiana,
desvalorizando totalmente aqueles oriundos da formação técnica e especializada”.
Essa afirmação vai ao encontro dos resultados alcançados em outras pesquisas
(GUARNIERI, 1996; CANDAU; LELIS, 1983; MIZUKAMI, 1983; SILVA, 2005; LELIS,
2011) acerca da atividade docente, nas quais se evidencia a presença de um discurso corrente
entre os professores, segundo o qual “se aprende a ser professor na sala de aula”. De acordo
com Lelis (2011, p. 43), “sob matrizes diversas, o que parece ser consenso é a valorização da
prática cotidiana como lugar de construção de saberes”. Silva (2005, p. 157) afirma que “a
frase ‘é na prática que se aprende a ser professor ou professora’ é um discurso que no Brasil
ninguém pode negar nunca ter ouvido de profissionais do ensino, de alunos e de pessoas que
nunca exerceram a profissão docente”.
Em contraposição à tendência traçada por esses estudos, Cássia demonstrava perceber
a fundamentação teórica como um aspecto fundamental e indissociável da prática cotidiana.
Por isso, afirmava levar para a sala de aula os conceitos e as técnicas aprendidos no curso de
Pedagogia, buscando no saber acadêmico a instrumentalização necessária para o bom
exercício da docência. Segundo Candau e Lelis (1999), a relação entre teoria e prática pode
ser compreendida a partir de duas perspectivas: a dicotômica e a da unidade. A primeira
repousa na separação entre teoria e prática, enfatizando a autonomia de uma em relação à
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outra. Ao passo que a segunda prega que teoria e prática são componentes indissolúveis da
práxis, definida como atividade teórico-prática, na qual ambos os aspectos da atividade
constituem uma unidade de tal ordem que a teoria se modifica em função da experiência
prática, na mesma medida em que esta se altera com a teoria. Pode-se dizer, então, que Cássia
percebia sua atividade docente na perspectiva da práxis.
Vale ressaltar que não era apenas em relação à própria atividade que Cássia via a
teoria e a prática como uma unidade indissociável. Essa mesma perspectiva era empregada
quando analisava a atuação dos demais professores da escola, algo que os indicadores
“Importância da formação continuada no trabalho do corpo docente da escola” (extraído do
conteúdo da entrevista) e “Importância da formação profissional no trabalho da equipe
escolar” (cujo conteúdo proveio da autoconfrontação simples) evidenciaram. Cássia
enfatizou, ainda, que as mudanças ocasionadas pela formação docente inicial não incidiram
apenas em sua atividade: elas imprimiram mudanças também no desempenho profissional das
demais professoras que estavam passando pelo mesmo processo. Segundo disse, até poucos
anos atrás, nenhum membro do corpo docente da escola tinha qualquer formação para o
magistério: “aqui, na escola, todo mundo era concursado e ninguém tinha formação!
Hoje, já temos duas pedagogas, uma psicopedagoga e temos nós, que estamos concluindo no
ano que vem. Nós, eu digo, tem seis professoras”. Além das docentes que haviam concluído
ou estavam concluindo a formação inicial em Pedagogia, todo o corpo docente passava,
segundo Cássia informou, por um processo de formação continuada, no qual se abriu espaço
para a reflexão coletiva acerca dos problemas enfrentados no cotidiano da sala de aula. Em
suas palavras: “são professores especializados, que vão trabalhar tudo que a gente trabalha na
faculdade. E vai trazendo para eles de uma maneira, sabe... E traz a prática da sala de aula
para estar sendo analisada por nós”.
Mais uma vez, cabe destacar que Cássia explicitou, em seu relato, considerar a
formação um elemento essencial para a boa prática docente. Isso reapareceu quando se referia
às professoras que ainda não tinham formação: “porque isso, que eu te falei antes, do aluno
que escreve de uma maneira que a gente, antes, achava que era insignificante, a gente já
tem uma nova visão sobre isso. Quem está chegando agora, não tem e continua trabalhando
da mesma forma, do jeito que essa pessoa acredita que deve ser”. Posteriormente, Cássia
complementou: “tem as formações, embora essas professoras novas, que estão chegando, elas
não fazem ainda faculdade, mas elas participam da formação. E essa formação é
justamente para isso”. É possível perceber, portanto, a importância atribuída pela professora à
98
formação, considerada um instrumento fundamental de transformação da prática docente.
Cássia salientava, reiteradamente, que passar pelo processo de formação docente – tanto
inicial quanto continuada – permitia-lhe tentar novas possibilidades e imprimir modificações
significativas no trabalho que desenvolvia na escola, como bem ilustra a fala a seguir: Sinto [que a formação docente faz diferença]. Está fazendo um efeito grande, porque todo mundo aqui incorporou e está trazendo isso para a sala de aula. A gente fica buscando, sabe? Se preocupa, sai daqui e vai para a outra escola, quem vai pegar a turma, a gente vai na Secretaria de Educação, conversa... A gente já estava naquela linha da Uefes, então, a gente está pegando o melhor dessa [formação], pegou o melhor da Uefes e está trazendo para cá [a sala de aula]! Estamos estudando, então isso está melhorando. A gente sabe que tem muita coisa que precisa mudar, mas a gente evoluiu bastante já.
Nota-se, assim, que o valor conferido por Cássia à formação docente relaciona-se
diretamente à questão da unidade entre teoria e prática, ou seja, da práxis. Esse era o aspecto
concreto que vinha desempenhado um papel transformador na realidade da escola.
Efetivamente, o contato com o arcabouço teórico da Pedagogia parece ter trazido, para aquela
escola e para aqueles professores, a possibilidade de implementar novas práticas, que, por sua
vez, levantavam novas questões, respondidas pelas professoras mediante consulta à teoria.
Esse processo dialético parece ter possibilitado o desenvolvimento da atividade docente.
3.2 Núcleo de significação 2 – “Preciso pensar primeiro nos que têm mais dificuldade”
O segundo núcleo de significação é constituído de indicadores cujo conteúdo diz
respeito a diferentes aspectos relativos às “dificuldades de aprendizagem”. Dada a natureza da
presente pesquisa e considerados os objetivos propostos, cabe notar a extrema relevância da
constituição e da análise deste núcleo. Nele, foram aglutinados depoimentos da professora que
tratam tanto de seu entendimento acerca das “dificuldades de aprendizagem” quanto de suas
formas de atuação perante tais dificuldades. Assim, o núcleo articula aspectos diversos das
significações constituídas pela professora a respeito dessa questão, por meio de indicadores
provenientes da entrevista e das autoconfrontações.
Dentre os extraídos da entrevista estão: 1) as atividades diferenciadas para alunos em
diferentes níveis de aprendizagem; 2) os problemas enfrentados para lidar com alunos que
têm dificuldades; 3) quem são os alunos com “dificuldades de aprendizagem” e 4) a relação
dos pais com a aprendizagem dos alunos. Dos indicadores provenientes da ACS encontram-
se: 1) as estratégias para lidar com alunos com dificuldades; 2) os alunos com “dificuldades
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de aprendizagem”; 3) as justificativas para a estratégia de chamar alunos com dificuldade na
lousa; 4) as atividades diferenciadas para alunos com diferentes ritmos de aprendizagem e 5)
o papel dos pais na aprendizagem dos alunos. Finalmente, os indicadores retirados da ACC
são: 1) “Preciso pensar primeiro nos que têm mais dificuldade”; 2) a justificativa da escolha
de certos alunos para ir à lousa; 3) os alunos mais adiantados ficam impacientes por ter de
esperar os mais atrasados e 4) as dificuldades geradas pela falta de acompanhamento dos pais.
Com base no material empírico coletado – os depoimentos da professora –, foi
possível buscar uma articulação dessa materialidade e, por meio de um processo analítico-
interpretativo, alcançar uma aproximação com os sentidos e significados constituídos por
Cássia a respeito das “dificuldades de aprendizagem”. Cabe, assim, destacar um primeiro
aspecto em seu discurso sobre a questão: ao longo da coleta de dados, ela citou dados
diferentes com relação ao número de crianças que, a seu ver, apresentavam alguma
dificuldade. Assim, quando questionada acerca dos alunos que tinham dificuldade, em alguns
momentos ela se referiu a cinco deles e, em outros, mencionou oito. Na entrevista, afirmou:
“quem tem ‘dificuldades de aprendizagem’... Tenho, aqui, nessa turma da manhã, cinco
alunos; à tarde, já tem uns oito...”. Na ACS, entretanto, relatou: “acho que são seis ou oito...
Deixe ver... [ela enumera os alunos citando seus nomes]. São seis. Não, são sete... Então, eu
tenho que ficar com esses sete e ver o que eu posso fazer com eles, para ver se eles
avançam...”. Essa imprecisão do número de alunos com dificuldades pode indicar que, para
Cássia, não estava muito claro quais eram, como se constituíam e se manifestavam essas
dificuldades, o que dificultaria identificar, de fato, os alunos que as apresentavam.
De acordo com a hipótese aqui levantada, a falta de clareza quanto às “dificuldades de
aprendizagem” parece estar relacionada a outro fato: o de Cássia não significar as diferenças
de aprendizado em termos de “dificuldades”, mas segundo “diferentes ritmos de
aprendizagem”. Na verdade, a professora quase nunca se referiu aos alunos que se
encontravam defasados no aprendizado como apresentando alguma “dificuldade”. Esse termo
apareceu em seu discurso apenas quando se viu questionada a respeito. De forma geral, Cássia
referiu-se sempre aos diferentes ritmos de aprendizagem dos alunos, ou seja, atribuiu a maior
dificuldade de alguns para aprender a um processo mais lento de apropriação e não às
“dificuldades de aprendizagem” em si. Isso fica claro no pré-indicador retirado da ACS:
Ele aprende de um outro jeito, em outro ritmo e a gente fica angustiado, querendo que ele aprenda logo... Porque cada um tem seu ritmo, mas eu fico preocupada: “ai, meu Deus, só avançou até aqui, tem que chegar até aqui”! A minha preocupação é essa! Não quer dizer que ele não avançou, mas que avança em outro ritmo, mais devagar. Esses seis mesmo estão
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assim... E, apesar de estarem menos avançados, eles avançaram, mas cada um dentro de um nível. Ou [pode ser que] estão no mesmo nível, mas pensam diferente.
Entretanto, existe em seu discurso uma notável contradição em relação a sua própria
concepção dos diferentes ritmos de aprendizagem. Por um lado, Cássia acredita que todas as
crianças são capazes de aprender e que as diferenças encontradas entre elas se devem aos
ritmos variados com os quais aprendem – algo que fica claro em sua fala na entrevista:
“quando a gente tem uma sala... por exemplo, na manhã são 25 alunos, mas tem uns poucos
que já leem convencionalmente, outros não... Mas eu sei que, apesar de ainda não estar
decodificando, eles também estão aprendendo”. Por outro lado, na ACS, afirmou: “tem
alunos que a gente está explicando, está explicando, e ele não consegue entender e nem ele
pergunta! Ele se esforça, mas não consegue aprender! A gente fica preocupada”. Aqui,
fica evidente a contradição mencionada: Cássia considerou que, por mais que o aluno se
esforçasse, ele não conseguia aprender. Cabe perguntar, então, se essa “incapacidade” para
aprender se deveria, em seu entender, a uma “dificuldade de aprendizagem” ou a uma
dificuldade de ensino, agora causada pela professora, considerando que, em sua própria
opinião, todos eles são capazes de aprender.
Ainda que não se solucione a contradição aqui apresentada, uma vez que ela parece ser
parte constitutiva dos sentidos e significados que Cássia atribui às “dificuldades de
aprendizagem”, uma possível resposta a essa questão pode ser encontrada no discurso da
professora. Ela se questionou, repetidamente, sobre a possibilidade de a qualidade das aulas
por ela ministradas estar diretamente relacionada ao não aprendizado por parte de alguns
alunos: “fico preocupada, porque eu queria que eles avançassem mais rápido e eu acho
que está faltando alguma coisa para poder ajudar. Mas eu não sei o que é! Não sei se são
as atividades, a forma... Eu não sei, porque, assim, a gente trabalha mais com texto, papel,
quadro, essas coisas”.
Em outro momento da entrevista, o mesmo questionamento reapareceu: “às vezes, eu
fico, assim, com alguma dúvida, porque eu queria que todo mundo aprendesse da mesma
maneira, no mesmo momento, né?”. Nesse fragmento, Cássia parece sugerir que considera
seus alunos capazes de aprender, mas que esse aprendizado se processa em diferentes ritmos
para diferentes alunos. E preocupa-se com essa situação por querer que todos aprendam da
mesma maneira, no mesmo momento. Fica claro, portanto, que a professora questiona a
qualidade do ensino que oferece às crianças e, ainda, que considera a possibilidade de as
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dificuldades enfrentadas pelos alunos estarem diretamente relacionadas à forma como exerce
a atividade docente.
É interessante notar que Cássia desenvolve as atividades pedagógicas sempre tendo
em vista as diferenças nos ritmos de aprendizagem das crianças, algo que parece se coadunar
com a perspectiva de que todos os alunos estão aprendendo, ainda que de formas e ritmos
diversos. A professora relatou que procura realizar atividades diferenciadas, que contemplem
cada aluno em seu nível de aprendizagem: “eu tento montar uma atividade que caiba para
vários graus de aprendizagem. Agora, é difícil, né?”. Na entrevista, a docente explicou
como planeja e cumpre essas atividades: “todo mundo trabalhando com o mesmo texto. É
assim: todo mundo participa, todo mundo tem conhecimento do mesmo texto: a atividade
é que é diferenciada”. Ela mencionou, ainda, que, para os alunos mais adiantados, as
atividades envolvem a solução de questões mais complexas e também que “para aqueles que
já estão mais avançados, tem atividades de produção e revisão textual, já pensando nas
questões ortográficas”. Na ACS, a professora novamente discorreu sobre sua forma de
desenvolver atividades diferenciadas: “aí, você dá a mesma atividade e não é a mesma
atividade. Às vezes, pode até ser a mesma, mas a forma de conduzir é diferente”. Em outro
momento da ACS, Cássia reforçou essa questão:
No caso dessa aula de Matemática, ou nas aulas de Português, eu sempre coloco a mesma atividade, o mesmo texto. Mas, aí, um vai escrever o texto de memória, outros vão montar, outros encontrar palavras, outros vão selecionar as letras que formam tais palavras... É a mesma atividade, assim, mas não é a mesma forma.
No entanto, Cássia relacionou uma série de problemas para oferecê-la, contemplando
todos os alunos, em diferentes momentos do aprender. Um deles se refere à necessidade de,
nas atividades, atingir não só os alunos com dificuldades, mas também os mais adiantados.
Estes últimos, segundo Cássia, frequentemente terminam suas tarefas muito mais rápido que
os demais, ficando impacientes ou entediados por terem de esperar os outros, conforme
explicitou em seu relato: “Você vê que, quando uns avançam demais, outros menos,
aqueles que avançam demais correm o risco até de regredir, porque já sabem tanto e
não têm tanto desafio: fica monótono!”. Posteriormente, ela complementou: “Então,
trabalhar essa diferença é muito complicado, mesmo trabalhando com grupo produtivo e
tudo”. Na ACC, esse conteúdo foi, mais uma vez, retomado: “como os meninos [mais
adiantados] já tinham feito essa atividade, não era desafiador ficar ali, só prestando
atenção... Aí, começaram a sair do lugar, ficar agoniados, já queriam logo fazer...”.
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É interessante notar, entretanto, que o fato de os alunos mais adiantados terminarem
mais depressa e ficarem entediados ou impacientes – e, portanto, começarem a bagunçar –
parece ser decorrência de uma falha no planejamento das atividades. Isso porque, se elas
devem atingir todas as crianças, precisam ser elaboradas de modo que seus níveis de
dificuldade sejam suficientemente desafiadores para manter a classe toda ocupada. Mas, ao
que consta, não é isso o que acontece, pois elas o são apenas para os alunos mais defasados.
Pode- se inferir que essa falha no planejamento das atividades diferenciadas decorra do fato
de Cássia privilegiar, constantemente, justamente esses alunos – os mais atrasados – durante a
elaboração das atividades pedagógicas.
Esse procedimento realizado pela professora fica bastante evidente no indicador
“Preciso pensar primeiro nos que têm mais dificuldades”, retirado da ACC, no qual Cássia
afirmou o seguinte: “já tem uma grande maioria, graças a Deus, que já está lendo, mas têm
aquelas crianças, ali, que são seis, que ainda não reconhecem nem as letras! Então, a gente
tem que, primeiro, pensar nelas”. Em outro momento da ACC, ela reiterou essa opinião:
“preciso ajudar os alunos, preciso pensar primeiro, agora, nesse momento, mais neles, os
que estão mais atrasados e precisam de mais investimento. E preciso elaborar, também,
atividades para os outros”. Apesar de Cássia afirmar a necessidade de elaborar atividades para
os mais adiantados, fica bastante nítido, em seu discurso e em sua prática em sala de aula,
que, ao planejar tais atividades, ela se dedica majoritariamente aos alunos mais atrasados,
conforme se pode perceber em sua fala na ACC: Os outros, que já estavam mais avançados, ficaram impacientes. E a gente, também, tem que pensar em atividades que favoreçam esses... Porque, geralmente, quando eu vou pensando, planejando, penso que tem pouco tempo para os outros avançarem, esses também, esses que ainda não avançaram tanto... E os outros, que já estão mais adiante, eles querem ajuda logo, porque eles precisam, também, fazer a parte deles, seguir [em frente].
A realização do planejamento das atividades pedagógicas focadas, principalmente, nos
alunos mais atrasados em termos de aprendizagem aparece também na estratégia,
frequentemente empregada por Cássia, de privilegiar esses alunos na produção coletiva,
quando toda a classe compartilha as atividades realizadas. Nesses momentos, mostrou-se
comum a professora chamar alunos para responder às questões no quadro-negro, para que
pudessem dividir com os colegas os resultados que cada um havia alcançado. Na escolha dos
alunos para resolver as atividades na lousa, a professora geralmente selecionava os mais
atrasados. Nos indicadores “Justificativas para a estratégia de chamar alunos com dificuldade
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na lousa” (retirado da ACS) e “Justificativa da escolha de certos alunos para ir à lousa”
(proveniente da ACC), Cássia explicou essa estratégia: é preciso cuidar da autoestima das
crianças. Segundo ela: [...] quando vai na frente, ele [o aluno] se sente importante e, ao mesmo tempo que pode se sentir vulnerável, ele se sente também protegido, porque sabe que alguém vai ajudar. Porque eu sempre peço: “gente, agora vocês podem ajudar fulano”... Então, eu acho isso interessante, também.
A docente tem razão quando considera que as crianças chamadas à lousa se sentem
reconhecidas: Cássia encontra-se respaldada na atitude dos próprios alunos, que aparentam,
de fato, apreciar – com raríssimas exceções – a oportunidade de resolver as atividades diante
dos demais, algo observado pela pesquisadora no decorrer das aulas filmadas. A satisfação
das crianças escolhidas para ir à lousa era evidente, uma vez que todas requisitavam e
insistiam muito para serem chamadas.
Entretanto, nem todas iam à lousa com a mesma frequência. Conforme explicado
anteriormente, Cássia privilegia, nesses momentos, os alunos mais atrasados em termos de
aprendizagem, justificando essa seleção com uma série de argumentos. O primeiro deles é o
de que, indo à lousa para responder às questões, os alunos com dificuldades ficam mais
atentos e menos dispersos: “aí, com eles, foi, também, porque eles são inquietos, não prestam
muita atenção... Então, eles indo na frente, também tem essa coisa de que eles, estando lá,
ficam mais centrados lá...”. Assim, Cássia demonstra que, para ela, responder às questões no
quadro-negro constitui um momento especial para o aprendizado das crianças, como
esclareceu no pré-indicador: “Eu queria chamar esses meninos aí, para que eles percebessem
realmente a questão”. Ela explicou a importância de chamar à frente da lousa os alunos menos
adiantados, pois: “se eu deixasse cá num canto, eles nem iriam ligar, porque, para eles,
não tem tanto significado, como para os outros; eles ainda não sabem ler nem escrever
direito, eles iriam pensar: ‘ah, deixa lá para quem já sabe! Vamos ficar brincando aqui’... Por
isso, eu chamo eles para ir [à lousa]”.
Se, por um lado, ir à lousa constitui um fator de mais atenção para os alunos
defasados, na opinião de Cássia, essa mesma atividade pode ser considerada muito fácil pelas
crianças mais adiantadas e sua resolução muito rápida. A professora afirmou acreditar que,
caso chamasse com mais frequência os mais adiantados, eles responderiam facilmente às
questões, impedindo, assim, que os colegas se apropriassem de suas respostas: “porque, se eu
chamasse, logo de imediato, os meninos que já sabem, eles já saberiam de imediato e a
gente não teria, assim, esse momento para eles [os mais atrasados] aprenderem”. Outra
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justificativa ressaltou que os alunos mais adiantados haviam sido muitas vezes chamados para
participar junto à lousa no início do ano letivo, de modo que, em meados de julho, quando se
deu a coleta de dados, era chegada a vez de investir mais fortemente nos mais atrasados. Esse
conteúdo aparece no pré-indicador “É porque, no início, eles [os mais adiantados] já foram
muito até a lousa e conseguiram avançar. E, então, agora, é o momento desses outros...”.
Apesar das diversas explicações oferecidas por Cássia para suas escolhas pedagógicas,
as crianças mais adiantadas eram claramente preteridas nos momentos de participação
coletiva, ressentindo-se dessa situação: esse descontentamento era demonstrado tanto por
meio de palavras e pedidos de participação quanto por atitudes que sinalizavam que, caso a
situação perdurasse, sem que fossem chamadas a participar, deixariam de prestar atenção às
explicações dadas em aula. Esse conteúdo aparece nos episódios analisados nas
autoconfrontações, momento em que Cássia percebeu essa realidade, conforme indicou em
sua fala: “porque você vê que alguns ficam chateados, ou começam a brincar... Mas...
Esse também é um problema, né?”. Se a professora nota isso, ela dá, ao mesmo tempo, sinais
de que não sabe ao certo como lidar com esse problema. E reflete sobre o assunto: Agora, realmente, eu tenho que pensar em outras atividades que eles poderiam ir mais... Para chamar a atenção desses outros, também... Porque eles estão indo menos, mesmo. Tem uma justificativa: tem essas questões de ter que ajudar mais quem precisa mais, mas eles, os outros, não entendem isso e acabam ficando chateados... É um problema. Não é um problemão, mas é um problema.
Novamente, cabe aqui uma reflexão acerca da estratégia adotada pela professora no
planejamento das atividades pedagógicas. Em diversos momentos, ela indicou ter consciência
de não estar contemplando, em suas aulas, as necessidades de todos os alunos e reafirmou sua
prioridade em relação aos mais atrasados, algo que é compreensível, porque tais crianças
realmente precisam de atenção e dedicação maiores. Entretanto, não se justifica a elaboração
de estratégias pedagógicas voltadas apenas para as necessidades de uma parcela dos alunos.
Caso a professora tivesse elaborado atividades diferenciadas, que se mostrassem interessantes
e complexas para as diferentes crianças às quais se destinavam – e não apenas às mais lentas –
o problema poderia ter sido sanado e as crianças mais velozes não teriam se entediado. Da
mesma forma, se Cássia tivesse um repertório mais variado, a docência seria mais fácil para
ela, pois disporia de mais recursos para ajudar as crianças que mais necessitam dela. Se, em
vez de chamar os mesmos alunos sempre à lousa, ela propusesse, por exemplo, mais
exercícios em duplas e/ou grupos, a classe ficaria entretida na solução dos problemas, de sorte
que ninguém precisaria esperar, pacientemente, o término da exposição dos outros colegas de
105
como solucionaram as questões dadas no quadro-negro. Nesse sentido, a falta de formação
docente sólida faz-se presente, em prejuízo dos alunos.
Outro fator citado pela professora como grave dificuldade para a realização de
atividades diferenciadas refere-se à forma de administrar uma sala de aula repleta de alunos
em diferentes níveis de aprendizagem: “tem horas que a gente tem que dar muita assistência
para esses alunos que têm mais dificuldades! E, como as salas são lotadas, às vezes, a
gente não consegue dar conta. [...] Você quer dar uma atenção especial para aquela
criança e não tem como...”. À dificuldade de gerir a sala de aula soma-se o grande número
de alunos, de modo que Cássia sente-se premida por vários obstáculos para a adequada
realização da atividade docente, conforme reiterou na entrevista: Porque tem momentos em que aquela criança não quer fazer nada Mas, no momento que ela quer fazer, se você chegar perto, aí ela consegue dar uma avançada... E, às vezes, naquele momento, você não tem como chegar perto dele, porque tem que dar conta de outros, ou de outras coisas, na própria sala: tipo alguém que não trouxe material ou outro, que está cutucando o coleguinha.
Em busca de estratégias eficazes para sanar essa dificuldade de administrar uma sala
de aula formada por alunos diferentes entre si em termos de conhecimentos, experiências e
ritmos de aprendizagem, Cássia contou ter encaminhado a questão ao conselho docente, com
o intuito de receber de seus pares uma eventual sugestão ou solução para esse problema.
Entretanto, o encaminhamento oferecido pelo conselho não lhe trouxe resultados positivos.
Em suas palavras:
A gente colocou como encaminhamento, no conselho de classe, que tem alguns alunos bem adiantados e outros bem menos. A gente colocou, assim, 15 minutos ou 20 antes de ir para casa: eles [os alunos mais atrasados] ficam com o professor, enquanto os outros brincam ou fazem alguma atividade e tal. Mas não está funcionando! Eu tento fazer isso, mas, quando eu vejo, o tempo já passou e os outros brincam e brigam, fazem barulho... Aí, eu não dou conta, atrapalha. E a criança que esta lá, também, ela fica perdida, fica agoniada, aquele barulho, todo mundo brincando e ela lá.
Em outro momento da ACS, a professora mencionou mais um possível
encaminhamento para essa questão. Disse que conversaria com a professora de Educação
Física para “ver se prioriza mais a minha turma. Não que deixe de dar [aulas] para as
outras turmas também, mas que priorize, depois do intervalo, a minha, para que eu fique 40
minutos só com aqueles que precisam mais. Porque, se eu trago todos para a sala, não dá
certo”. É possível perceber, assim, que os demais professores da escola também não sabem
106
como se portar diante dos impasses que a variedade dos alunos coloca à docência.
Aparentemente, não foi cogitada a possibilidade de desenvolver outras atividades
pedagógicas, capazes de interessar e ocupar todos os alunos. Uma única estratégia foi
levantada pela equipe docente: separar os alunos segundo diferentes níveis de aprendizado.
Em momento nenhum foi mencionada a hipótese de elaborar novas estratégias que reunissem
os alunos para permitir a troca de conhecimentos e, sobretudo, para que uns pudessem
contribuir para o aprendizado dos outros.
Cássia referiu-se, repetidamente, ao fato de não conseguir, sozinha, coordenar a sala
toda, pois alguns alunos se dispersam e causam tumulto. Isso significa que a docente se
considera a única mediadora entre os alunos e o conhecimento. Desconsidera, portanto, a
possibilidade de outros estudantes, os mais adiantados, poderem realizar essa mediação,
ajudando os mais defasados na apropriação dos conteúdos ministrados em aula e das
habilidades que deles se esperam. É interessante observar que, embora busque soluções para
trabalhar com os diferentes ritmos de aprendizagem, a professora não dispõe de um arcabouço
teórico e metodológico que lhe permita adotar uma abordagem mais efetiva quanto a isso.
Sem dúvida, Cássia busca romper com a perspectiva das “dificuldades de aprendizagem”
como sendo um problema localizado exclusivamente no aluno: para ela, as dificuldades são
significadas como diferentes ritmos de aprendizagem. Ela indicou, também, que busca refletir
acerca da própria atividade na tentativa de melhor lidar com a situação. No entanto, apesar de
suas louváveis intenções, a professora não consegue se desvencilhar de velhos padrões,
provavelmente porque eles foram construídos ao longo de anos – algo que a breve formação
docente recebida não lhe permite, ainda, modificar inteiramente.
Ainda que Cássia signifique as “dificuldades de aprendizagem” como ritmos
diferentes de aprendizagem e tente buscar, em sua atividade pedagógica, as soluções para tais
questões, a professora recai na perspectiva frequentemente assumida pelos professores: a de
que a subjetividade do aluno – ou sua condição material – é a possível causa das “dificuldades
de aprendizagem”. Essa posição de Cássia apareceu quando, na entrevista, ela citou os
prováveis motivos das dificuldades enfrentadas pelos alunos mais “lentos”: Uns, é porque faltam muito; outros não têm acompanhamento em casa: chega, na sala, sem material – e a gente tem que estar improvisando no momento da aula; e alguns que têm outros fatores, assim, pessoais. Chegam e não querem fazer nada! Estão tristes, alguns que até questionam, que não têm comida em casa, essas coisas...
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Essa explicação de Cássia vai ao encontro de diversas pesquisas (FERNANDEZ,
1991; MARTINI; DEL PRETTE, 2002; PATTO, 2004) realizadas com professores, segundo
as quais os docentes tendem a atribuir as causas das “dificuldades de aprendizagem” às
características individuais do aluno. Em outros momentos, Cássia atribuiu à estrutura familiar
do aluno um papel importante – embora não único – no sucesso escolar. Essa concepção
aparece claramente nos indicadores “Sobre a relação dos pais com a aprendizagem dos
alunos”, retirado da entrevista; “Sobre o papel dos pais na aprendizagem dos alunos”,
proveniente da ACS, e “Dificuldades geradas por falta de acompanhamento dos pais”, da
ACC. O pré-indicador “Fora isso, tem a questão dos pais, que não ajudam muito... Não
ajudam mesmo. É uma minoria, os pais que chegam, aqui, para poder saber sobre o filho. Só
vêm quando é chamado nas reuniões” exemplifica como a professora configura o problema.
Outro exemplo é o pré-indicador “Eles não têm apoio em casa, nas atividades... Eles teriam
que ter sempre alguém ali observando, apoiando...”. Esse conteúdo apareceu, também, quando
Cássia comentou a relevância da formação dos pais: Tem a questão dos pais, alguns pais não têm nenhuma formação também, não estudaram, ou estudaram muito pouco, trabalham muito, outros que acham que o papel da escola é ensinar e acabou! Então, não fazem o dever de casa, não ajudam, tem meninos que chegam com o material incompleto... Então, isso são fatores que vão contribuindo para que esses alunos não avancem...
De acordo com Patto (2004), a responsabilização da família do aluno pelas
“dificuldades de aprendizagem” é muito frequente entre os professores. Contudo, cabe
salientar que, apesar de atribuir aos pais parte importante da culpa pelos problemas
pedagógicos enfrentados pelos alunos, Cássia não se exime de sua parcela de
responsabilidade na produção e na manutenção de tais problemas, como fica claro no pré-
indicador transcrito abaixo:
Mas eu acho que é essa questão do acompanhamento em casa... na sala, tem também a questão do pedagógico, talvez não é de qualidade, assim, como eles gostariam que fosse. Mas, também essa questão de... em casa, o desinteresse... Aí, chega na escola, presta atenção em alguma coisinha, mas não acha assim, tão interessante e chega em casa, leva a atividade, mas o pai não dá a devolutiva. Tem sempre alguém que fala assim: “ah, meu pai estava cansado, minha mãe estava cansada, não fez a atividade porque disse que pode fazer na sala, com a senhora, que essa questão, aí, a senhora que tem que fazer”... Então, isso deixa muito a escola sobrecarregada, eles tiram o corpo fora e a gente não dá conta!
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A professora acredita, portanto, que a atenção e a ajuda dos pais são uma condição
necessária para um ensino eficaz, desconsiderando que a função docente é dela e não da
família: “eles não têm esse acompanhamento e isso dificulta, porque a gente precisa
dessa parceria. Você sabe, né? A gente precisa dessa parceria! Se não tem, fica só o
professor lá, se desmiolando. E, às vezes, o resultado não vem como a gente quer...”. A
professora relatou que, dada a importância da família no sucesso da aprendizagem de seus
filhos, ela vinha buscando formas de fortalecer os laços da escola com os pais de seus alunos: Agora a gente está explicando [aos pais] como é feito o trabalho, baseado em que o que a gente está aprendendo, o que os meninos estão trazendo, para eles perceberem que a escola não trabalha isolada da sociedade, que a escola trabalha em parceria, quer trabalhar em parceria...
Tendo em vista tais considerações, este núcleo de significação possibilita, de fato, uma
aproximação com os sentidos e, principalmente, com os significados constituídos por Cássia
acerca das “dificuldades de aprendizagem”. Fica claro, aqui, que o processo de formação
docente provocou mudanças em sua atividade pedagógica, alterando sua maneira de significar
as “dificuldades de aprendizagem”, que passaram a ser percebidas como diferentes ritmos de
aprendizagem. Essa transformação é extremamente positiva, uma vez que permite a
compreensão do fenômeno sob uma ótica a partir da qual é possível desenvolver práticas
pedagógicas eficazes para que o ensino por ela ministrado provoque o aprendizado de todas as
crianças, com seus diversos ritmos e formas de aprender. Por outro lado, pode-se inferir que,
se para Cássia os significados foram bastante alterados, os sentidos constituídos acerca das
“dificuldades de aprendizagem” não sofreram o mesmo impacto. Embora a professora tenha
apresentado sinais claros de que a mudança nos significados acarretou uma ressignificação,
ou seja, a transformação da constituição de seus sentidos sobre essa questão, eles,
aparentemente, ainda se encontram vinculados à ideia de que o problema se localiza ora nos
alunos, em suas famílias ou em suas condições sociais; ora em sua própria atividade docente.
Assim, segundo sua perspectiva, as dificuldades estão sempre fundamentadas em um dos
polos da relação ensino-aprendizagem, ou seja, a professora não extrapolou ainda essas
esferas, de modo a articular a produção das “dificuldades de aprendizagem” às múltiplas
determinações que as constituem.
109
3.3 Núcleo de significação 3 – Atividade docente: “Eu invisto muito no trabalho em
grupo, porque no grupo tem sempre alguém que está um pouco mais na frente.”
O terceiro núcleo de significação é resultado de uma grande variedade de indicadores,
uma vez que trata de uma série de conteúdos relacionados à atividade docente de forma
ampla. Assim, inclui desde indicadores relativos às práticas pedagógicas, aos objetivos e às
metas que direcionam a atividade, às dificuldades enfrentadas na prática de sala de aula, até as
concepções que norteiam essa prática e, ainda, a forma como os alunos e a própria atividade
profissional são avaliados pela professora. Este núcleo é, também, fruto da articulação de
indicadores retirados tanto da entrevista quanto das sessões de autoconfrontação. Os
indicadores da entrevista são: 1) a organização do tempo; 2) a prática pedagógica: as formas
de trabalhar em sala de aula; 3) a importância das atividades em grupo; 4) os aspectos
envolvidos na avaliação; 5) a preferência pelas séries iniciais; 6) a valorização da profissão:
“é muito desvalorizada a nossa classe”; 7) quem é o aluno; 8) a autoavaliação – pontos
positivos da prática docente: sempre valorizar o que a criança já traz; 9) a autoavaliação –
pontos negativos da prática docente; 10) as dificuldades na prática pedagógica: “gostaria de
fazer outras atividades”; 11) as dificuldades na prática pedagógica geradas pela falta de
material didático; 12) a meta: alfabetizar todos os alunos e 13) a realização profissional:
satisfação ao ver que as crianças estão aprendendo.
Incorporaram-se também a este núcleo indicadores advindos da ACS, a saber: 1) a
atividade de leitura com parlenda: textos conhecidos pelos alunos facilitam a aprendizagem;
2) a importância da intencionalidade na prática docente; 3) a silabação; 4) as atividades em
grupo: vantagens e desafios; 5) os critérios para a formação de duplas de trabalho; 6) os
benefícios e as dificuldades das atividades em duplas; 7) a ausência de material didático; 8) as
dificuldades na prática pedagógica e 9) a meta de alfabetizar todos os alunos: ideal versus
realidade. A ACC forneceu os seguintes indicadores: 1) as intervenções da professora ajudam
as crianças a desenvolver a atividade; 2) as atividades em grupo: os alunos se ajudam
mutuamente; 3) a necessidade de ajuda: “gostaria de ter mais uma professora auxiliando as
atividades durante as aulas” e 4) a meta de alfabetizar todos os alunos: “não quero cumprir só
por cumprir, mas porque sei que eles precisam”.
A partir deste núcleo, é possível compreender certos aspectos constituintes da
atividade docente de Cássia, que afirmou gostar muito de ser professora, embora saiba que a
carreira docente é muito desvalorizada: “eu gosto de ser professora, mas queria ser mais
110
valorizada, financeiramente... E penso, também, nos meus filhos, porque com o salário que
eu ganho, não posso mandá-los para uma faculdade boa...”. A desvalorização da docência é
um fato já bastante conhecido na realidade da educação brasileira. Apesar do baixo salário,
Cássia afirmou: “é muito desvalorizada, a nossa classe; mas eu gosto de trabalhar, eu me
sinto muito satisfeita ao ver que as crianças estão aprendendo”. Dessa forma, a vivência
de Cássia em relação à profissão parece ser bastante positiva. Essa impressão acentua-se ainda
mais quando se observa que seu filho expressou o desejo seguir a mesma carreira da mãe, o
que provavelmente indica que o contato com tal profissão em casa – e por meio da mãe – foi
bastante positivo.
Além de gostar de lecionar, Cássia aprecia também o fato de poder ministrar aulas
para as crianças das séries iniciais: “eu sempre trabalhei com [o ensino] multisseriado, com a
educação de jovens e adultos. Eu tenho preferência por trabalhar com as séries iniciais, na
faixa etária de cinco até sete anos”. A professora afirmou que essa preferência se deve a dois
motivos. O primeiro diz respeito ao conteúdo a ser ensinado, ou seja, a alfabetização: “porque
eu trabalho com alfabetização e eu gosto, porque acho que é a base...”. A possibilidade de
alfabetizar crianças apresenta-se, para ela, como um forte motivo de realização profissional,
como indicou em sua fala: “agora, eu me sinto realizada assim, porque eu estou
trabalhando com a turma que gosto, que é a de alfabetização”. A segunda razão
assinalada por Cássia como determinante de sua preferência pelas séries iniciais é a faixa
etária dos alunos: “eu gosto de trabalhar com criança. Adolescente... eu já acho que eles são
agitados demais... As crianças são agitadas, mas elas compreendem mais, elas respeitam
mais... Aí, eu gosto mais dessas séries”.
Em relação à preparação das aulas, Cássia relatou que, semanalmente, são realizadas
reuniões com as demais professoras e a equipe gestora, para planejar os conteúdos a serem
ministrados. No entanto, o tempo disponível para essas reuniões não é suficiente para preparar
as aulas: “Eu fico 40 horas na escola; e a gente, na sexta-feira, a gente planeja aqui. Mas eu
dou continuidade em casa, porque é muita coisa, a gente tem que pesquisar o material e, aí,
na escola, não dá!”. Assim, Cássia desenvolve em casa, diariamente, o planejamento de suas
aulas: “eu levo para casa, para poder estar planejando diariamente as atividades da
segunda, terça, quarta e assim vai de acordo com o que a gente discutiu no grupo”.
Segundo Cássia, o planejamento diário das atividades a serem desenvolvidas em sala
de aula é muito importante em razão do papel fundamental que ela atribui à intencionalidade
da atividade docente. Ela relatou que, muitas vezes, os professores não desenvolvem uma boa
111
docência pela falta de planejamento, ou seja, pela falta de clareza acerca dos objetivos que
buscam alcançar e das atividades que devem desenvolver para que tais objetivos sejam
alcançados. Essa perspectiva adotada por Cássia fica evidente no seguinte pré-indicador: E isso por causa da falta desse planejamento do como ensinar, do que você quer fazer com cada um, ou com cada dupla. Tem que intencionar mesmo! Porque se você não intenciona, fica aquela coisa: você lá na frente pá, pá, pá, pá, achando que está dando tudo na aula. Os meninos repetindo que nem uns papagainhos e a gente achando que está fazendo e acontecendo! E não está! Está discriminando, está deixando para lá e nem está pensando [que isso está acontecendo]!
Cássia acredita, entretanto, que não basta a intenção de ensinar a todos os alunos: é
preciso ter, também, uma base teórica que fundamente a prática. É necessário conhecer os
processos de ensino-aprendizagem para criar estratégias eficazes de aprendizado. Segundo
seu relato: “antes, eu tinha intenção de ajudar os alunos, quando eu trabalhava na zona
rural. Mas eu não tinha esse conhecimento, ainda. Então, os meninos silabavam que era
uma beleza, mas os que não conseguiam logo, coitados, acabavam perdendo, ficavam para
trás”. Da mesma forma, quando se remeteu ao reforço escolar, Cássia assumiu uma posição
crítica, atribuindo-lhe um papel central, desde que executado por professores qualificados e
bem embasados teoricamente, capazes de superar práticas ultrapassadas, como a silabação: Teria que ser um reforço de alguém que está nessa área e entenda [do assunto]. Porque alguns reforços por aí, não adiantam: só fazem a criança copiar... E em outros, os professores só silabam e não querem nem saber como a criança aprende, não querem saber de nada.
Além da importância da intencionalidade e da fundamentação teórica para o exercício
de uma boa docência, Cássia confere um papel importante ao desenvolvimento de atividades
capazes de despertar o interesse dos alunos. A seu ver, elas deveriam ser lúdicas e dinâmicas,
mantendo uma relação clara com a realidade concreta das crianças. A professora relatou,
como exemplo, uma experiência bem-sucedida, que gerou interesse e promoveu efetivamente
a aprendizagem das letras do alfabeto: “aí, eu fiz um alfabeto móvel e a gente coletou garrafa
PET para fazer um boliche. E isso ajudou bastante, foi bem interessante!”. Na ACS, Cássia
abordou, também, a questão de desenvolver atividades que estabeleçam relação com
conteúdos conhecidos pelos alunos. Informou que, a partir de uma parlenda já trabalhada
diversas vezes de forma lúdica – cantada em roda na aula de Educação Física e,
posteriormente, em uma atividade em que os alunos pulavam corda –, ela desenvolveu
atividades de leitura e escrita. Duas dessas atividades, baseadas na parlenda em questão,
112
foram analisadas nas sessões de autoconfrontação. Cássia comentou, na ACS, a importância
de trabalhar a habilidade de leitura com base em um texto já conhecido pelos alunos, visto por
eles como algo leve e divertido: Então, eu já tinha feito uma sequência e eles já tinham brincado com essa música, também, na aula de Educação Física, pulando corda. Então, percebi que eles já sabiam esse texto de memória e, então, apresentei esse texto de memória escrito, para que eles percebessem esse paralelo entre como se fala e como se escreve. Assim, teria que ser um texto conhecido, porque o texto facilitaria essa leitura! A gente não poderia pegar um texto do nada: teria que ser um texto de memória, porque essa é uma condição muito boa, para que o aluno comece a despertar esse interesse em ler.
A percepção de Cássia sobre a necessidade de desenvolver, frequentemente, atividades
lúdicas ligadas à realidade dos alunos, aparece, também, como preocupação em relação à boa
qualidade de seu trabalho. Apesar de buscar constantemente preparar atividades pedagógicas
planejadas e, portanto, com intencionalidade educativa, a professora afirmou que nem sempre
consegue atingir suas metas: “eu queria estar fazendo coisas a mais, coisas mais lúdicas...
Porque essa fase, né, exige isso. Então, às vezes, eu acho que fica faltando algo, que fica
muito pobre para eles...”. Essa inquietação retornou quando, ao avaliar os aspectos positivos e
negativos de sua prática docente, apresentou como ponto negativo a impossibilidade de
desenvolver, diariamente, práticas pedagógicas vinculadas à realidade concreta dos alunos.
Em suas palavras: “é um ponto negativo, para mim, não dar essa condição para o aluno
trabalhar diretamente com o útil, todos os dias. E eu não tenho essa condição, a de fazer
essas atividades desse jeito e nem tenho quem me ajude a fazer”.
Cássia parece não ter percebido a impossibilidade de realizar todas as atividades
pedagógicas relacionando-as à realidade concreta dos alunos. Nem sempre é possível
apresentar as atividades previstas no currículo vinculando-as ao dia a dia das crianças, de
modo que a ideia apresentada por Cássia parece bastante idealizada. Nas situações nas quais
não é possível vincular os conteúdos programáticos às vivências cotidianas, o desejável é que
se explique a importância do que se aprenderá para a vida presente ou futura dos alunos.
O valor atribuído por Cássia ao planejamento e à realização de atividades lúdicas e
concretas relaciona-se, diretamente, ao fato de ela acreditar que ambas exercem um papel
fundamental na aprendizagem, especialmente na faixa etária com a qual trabalha: crianças de
seis a sete anos de idade. A professora considera que só assim se consegue despertar o
interesse dos alunos e, consequentemente, promover a aprendizagem dos conteúdos. É
interessante observar que a importância dada às atividades que se vinculam diretamente à
113
vivência concreta das crianças encontra apoio na teoria de Vygotsky (2000), no que se refere
à formação de conceitos espontâneos e conceitos científicos.
Os conceitos espontâneos são cotidianos, informais, não mediados. Ou seja, são
adquiridos na e pela experiência direta das crianças em seus contextos de vida, sem mediação
docente e, portanto, sem que exista nenhuma intencionalidade educativa. Os conceitos
científicos, por sua vez, são mediados pelo professor, que ajuda a criança a formar um sistema
hierarquizado de conhecimento. Segundo Vygotsky (2000), a diferença fundamental entre os
conceitos espontâneos e os científicos reside, justamente, na mediação do docente. Assim, o
desenvolvimento de um conceito científico parte de uma definição verbal, abstrata, que vai ao
encontro do concreto, do que é vivido no cotidiano. Nas palavras de Vygotsky (2000, p. 244),
o caminho do desenvolvimento dos conceitos científicos “é determinado pela definição verbal
primária que, nas condições de um sistema organizado, descende ao concreto, ao fenômeno,
ao passo que o desenvolvimento dos conceitos espontâneos se dá fora do sistema, ascendendo
para generalizações”.
Ainda segundo o autor, a aprendizagem escolar – que trata especificamente dos
conceitos científicos – é sempre mais abstrata e genérica do que a aprendizagem dos conceitos
cotidianos. Desse modo, para ensinar os conceitos científicos, é importante que o professor
seja capaz de estabelecer os nexos entre os conceitos científicos e os cotidianos, de modo que
os primeiros se enraízem nos segundos. Entretanto, nem sempre se alcança esse
entrelaçamento entre os dois tipos de conceitos, uma vez que muitas vezes os científicos não
apresentam uma relação imediata com a realidade concreta do aluno naquele determinado
momento da aprendizagem. Apesar disso, discutir as articulações entre os conceitos
científicos e cotidianos, de modo a evidenciar a centralidade da apropriação dos conceitos
científicos para os conhecimentos futuros do aluno é, sim, factível para um bom professor.
Para Daniels (2003, p. 73), “uma maneira de compreender parte do processo de ensino
é em termos de ajudar as crianças a fazerem ligações entre sua compreensão cotidiana e o
conhecimento escolarizado”. Assim, quando Cássia enaltece a importância de partir do
conhecimento concreto, que o aluno já traz de seu cotidiano, a fim de se apropriar do
científico, ela está, por um lado, de acordo com os conceitos elaborados pela teoria
vygotskiana, que busca ancorar os conceitos científicos nos conhecimentos cotidianos. Por
outro lado, Cássia acaba limitando a abrangência de seu ensino: se não lhe é possível
relacionar os conceitos científicos aos cotidianos, ela acaba também por não discutir a
importância dos primeiros para a vida atual ou futura dos alunos.
114
De fato, o valor que ela atribui à relação entre os dois tipos de conhecimento a serem
ensinados vincula-se à maneira como vê seus alunos, conforme relatou na entrevista: “eu vejo
meus alunos como seres pensantes, que já trazem muitos conhecimentos... Eles trazem
muitos conhecimentos, mas, eu diria que alguns conhecimentos precisam ser aprimorados e
compartilhados...”. Quando indagada, durante a entrevista, acerca do que considerava ser o
ponto positivo de sua prática docente, Cássia respondeu: “pontos positivos? Humm... A
questão de valorizar tudo que a criança já traz com ela e tentar ajudar, da melhor maneira,
ela a lidar com isso, a socializar, a fazer enxergar”. Nesse sentido, ela corroborou a posição
assumida por Paulo Freire (1996, p. 33) de que “ensinar exige respeito aos saberes dos
educandos”, ou seja, aos saberes socialmente construídos, nas práticas comunitárias,
discutindo, com os alunos, como se dá a relação da realidade concreta com os conteúdos da
disciplina que se está ensinando.
Outro ponto que merece destaque no discurso de Cássia é o papel que ela atribui à
aprendizagem na atividade educativa. Em seu discurso, promover aprendizagem de todos os
alunos é o cerne da atividade docente. Esse fato vai ao encontro da afirmação de Saviani
(2000, p. 17), para quem “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente,
em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens”. Nessa perspectiva, a relação ensino-aprendizagem é a razão mesma da
existência das instituições escolares.
Esse fato pode parecer óbvio, mas, infelizmente, nem todos os professores têm clareza
acerca dos objetivos da escola e de sua função social, ética e política. Como bem salienta
Paulo Freire (1996), não existe ensino sem aprendizagem, de forma que não há como o
professor afirmar que ensina se os alunos não aprendem com ele. Em sua pesquisa sobre os
sentidos da profissão docente, Cericato (2010, p. 144) depara-se com o depoimento de
professoras que, apesar de acreditarem desempenhar bem sua função docente, aceitam
tranquilamente o fato de não ensinarem a todos os alunos. A autora destaca a ausência de
compromisso político visível nesse tipo de posição: A escola é a instituição social responsável por transmitir o conhecimento historicamente produzido e acumulado de forma sistematizada e organizada. Quando o professor não ensina adequadamente a todos os estudantes, ele está prejudicando o futuro das novas gerações, justamente porque compromete a transmissão de saberes. Assim, além de realizar sua atividade sem compromisso político, ele prejudica, no mesmo movimento, as possibilidades de desenvolvimento dos alunos.
115
Vê-se, dessa forma, que Cássia demonstra comprometimento ético e político com a
educação. De fato, ao considerar que a promoção da aprendizagem de todos os alunos é o que
caracteriza efetivamente o professor, a aprendizagem constitui a principal realização docente:
“é muito desvalorizada nossa classe [docente], mas eu gosto de trabalhar, eu me sinto
muito satisfeita ao ver que as crianças estão aprendendo...”. Ela contou que seu momento
de maior alegria e realização profissional ocorreu quando conseguiu alfabetizar uma turma
inteira, apesar da utilização de métodos tradicionais, que, atualmente, considera ultrapassados: Foi quando eu trabalhava na Ponte, lá na zona rural... E, lá, eu trabalhava com três turmas, a da manhã, a da tarde e a da noite... E eu consegui alfabetizar a turma todinha, a turma da manhã todinha, a turma da alfabetização... Na época, ganhei até um prêmio, aqui, de melhor professora alfabetizadora! Nessa linha, né, tradicional mesmo... Mas, aí, eu consegui, eu me senti muito realizada!
Em outro momento de sua fala, o sentimento de realização por promover a
aprendizagem dos alunos mostrou outra faceta: a da preocupação por não conseguir sempre
alcançar esse objetivo: “agora, eu me sinto realizada, assim, porque eu estou trabalhando
com a turma que eu gosto: a de alfabetização. Mas, eu estou um pouco triste, também,
porque a essa altura [do ano], ainda não tem nem metade de sala alfabetizada...”. Mais
uma vez, percebe-se, aqui, a presença, de um compromisso da professora com a educação de
seus alunos. De fato, a meta de alfabetizar todos eles apareceu muito frequentemente em seu
discurso e parece direcionar sua atividade docente: “como é uma classe de alfabetização, eu
tracei, desde o final do ano passado, que eu queria que essa turma desse ano saísse todo
mundo, 100% da classe, bem alfabetizada. A gente sempre pensa alto, porque quer o
melhor...”. O tema é recorrente, visto que ela discorre sobre ele em todos os momentos da
coleta de dados. Na ACS, essa mesma meta reapareceu, não como uma decisão sua ou da
escola, mas como uma meta traçada por toda a rede municipal de ensino: Porque, assim, se a gente tem uma meta de alfabetizar, a gente colocou 100% das crianças – a gente, eu digo, a rede, o município todo – e estou percebendo que isso está difícil... Eu já consegui bastante, mas essa minoria que está aí vai fazer o diferencial, na hora de olhar para essa porcentagem. Então, eu quero investir mais neles... Porque a meta é alfabetizar todos, com qualidade, sem discriminação, essas coisas...
É possível perceber que Cássia se preocupa bastante com a possibilidade de não
atingir a meta traçada: “estamos no mês de julho, e eu percebo que não vou alcançar
totalmente essa meta. Mas 80% [de alunos alfabetizados], eu creio que sim”. Na ACS, mais
uma vez ela se referiu à mesma preocupação: “só que eu fico preocupada, porque já
116
estamos em agosto e não sei se vão chegar a estar alfabetizados até o fim do ano”. A
estratégia elaborada por Cássia para alcançar o objetivo de alfabetizar a todos foi separar os
alunos em grupos, com base nos níveis de apropriação do código de representação da língua
escrita em que se encontravam, conforme esclareceu no pré-indicador retirado da entrevista:
“e, assim, o que eu vou fazer para alcançar essa meta é... Eu fiz alguns encaminhamentos,
eu separei por grupos, cada nível em que eles se encontram...”. A partir disso, ela afirmou que
procuraria dedicar mais tempo e atenção aos alunos que ainda não estavam alfabetizados,
conforme relato feito na ACS: “Então, a gente tem que ver tudo isso, porque se a gente
pensar, se eu quiser fazer além agora, eu não vou dar conta! Eu tenho que pensar nesses,
que ainda não sabem, nessa porcentagem”.
É interessante observar certa ambiguidade no discurso de Cássia. Ora, sugere ter um
forte compromisso político com a educação de todas as crianças, ora a alfabetização integral
aparece como uma imposição da rede municipal de ensino. Essa oscilação revela-se bastante
contraditória e levanta dúvidas a respeito de seu compromisso pessoal com a aprendizagem da
leitura e da escrita de todos os alunos. Ao analisar a fala de Cássia, encontrada no pré-
indicador retirado da ACS – “você sabe que a criança está com problemas e que isso pode
estar impactando no aprendizado, mas, no final do ano, você é cobrado pelo que
determinou junto com a rede, na meta” –, fica evidente que existe, por parte da Secretaria
Municipal de Educação, uma cobrança em relação à porcentagem de alunos alfabetizados até
o final do ano letivo. Nessa perspectiva, alfabetizar todos eles se apresenta como uma tarefa a
ser a todo custo realizada.
No entanto, essa evidente contradição entre a imposição da tarefa e o compromisso
pessoal com a educação de todos pode ser mais bem compreendida quando se considera que
Cássia está ciente de que existem diferentes ritmos de aprendizagem. Assim, para ela, todos
estão aprendendo, mesmo que alguns ainda não estejam alfabetizados: “e, agora, assim, eu
posso até não conseguir os 100% alfabetizados, mas muitos desses que ainda não estão,
têm condição plena de ir para a próxima série”. Na verdade, apesar de haver uma meta,
muito desejável, a ser cumprida por todos os professores da rede municipal de ensino – a de
alfabetizar todos os alunos –, ela não se configura como pré-requisito para o ingresso no 2o
ano do ciclo 1 do Ensino Fundamental. Mesmo considerando a possibilidade de não conseguir
alcançá-la, a professora explicou que, caso isso venha a ocorrer: [...] nem por isso eles serão reprovados! Porque a gente vê, também, muita coisa da parte qualitativa deles... E, aí, a gente vai analisar, vai ver a questão das competências, que eles devem ter conseguido ao final dessa série e, é em cima disso, que a gente vê se eles serão aprovados, ou não.
117
Cássia demonstra, assim, desconhecer a Resolução nº 07 do CNE/CER, que trata das
Novas Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental de nove anos, segundo a qual a
escola deve considerar os três primeiros anos do Ensino Fundamental como um bloco ou um
ciclo sem interrupção. Isso significa que a retenção não é desejável nesse início da educação
básica. Dessa forma, os alunos devem passar para o segundo ano, mesmo sem pleno domínio
da leitura e da escrita, exceção feita aos casos em que a frequência escolar for inferior a 75%
de comparecimento nas aulas dadas.
Ainda assim, ser cobrada pela Secretaria Municipal de Educação para alfabetizar todos
os alunos é um fator de muita preocupação para Cássia. Segundo seu relato, o que mais a
inquieta é a certeza de a leitura e a escrita serem conquistas fundamentais e necessárias para
os alunos. Na ACC, ela abordou essa questão: E, aí, minha intenção é, assim... Eu já tinha até comentado que a gente tem uma meta para o final de cada série e uma dessas metas foi alfabetizar 100% dos alunos. A gente ousou: 100%! Então, eu tenho que conseguir, mas esses seis alunos aí, eles vão ser uma porcentagem altíssima e vai implicar... E, aí, a minha intenção é fazer com que eles aprendam, mas aprendam mesmo, com qualidade! Eu não quero só cumprir por cumprir, eu quero, porque eu sei que eles precisam disso para seguir para a próxima série.
É possível perceber novamente, aqui, a contradição. Considerando que os alunos não
devem ser reprovados nos primeiros anos do Ensino Fundamental, a preocupação de Cássia
com a cobrança da Secretaria Municipal de Educação parece relacionar-se não tanto ao fato
de os alunos ficarem retidos, uma vez que eles não devem mesmo ser reprovados. Sua
preocupação com a cobrança da rede municipal não se liga aparentemente nem mesmo ao
possível prejuízo a ser sofrido por seus alunos caso não se alfabetizem: é esperado, na cultura
escolar, que nem todos cheguem ao 2º ano alfabetizados. A mesma cultura prega que cabe à
professora do ano seguinte estar preparada para completar esse processo. Além disso, a
preocupação com a necessidade de alfabetizar todas as crianças no 1º ano vai de encontro à
perspectiva, assumida pela docente, de que todos estão aprendendo, embora em ritmos
diferentes. A inquietação de Cássia parece estar relacionada, portanto, mais a aspectos
constituintes de sua subjetividade, como sua própria expectativa em relação à qualidade de
seu trabalho e, ainda, à possibilidade de ver destruída a imagem de excelente professora que
construiu junto à equipe gestora e ao corpo docente da escola.
No que concerne à avaliação dos alunos, a professora explicou que essa atividade é
feita de forma processual, ao longo de todo o ano letivo, por meio de diversos instrumentos:
118
“a avaliação, na realidade, a gente faz através de diagnósticos, através da observação, na
própria sala de aula, diante das atividades. É uma coisa constante, a gente está sempre
registrando”. Ela salientou, ainda, que cada aluno é comparado com ele mesmo e não com a
turma como um todo, para que seja possível verificar o avanço de cada um, individualmente.
Na entrevista, ela discorreu sobre como é o processo avaliativo:
No final do ano, eu faço, assim, tipo uma prova, mas, na verdade, ela não é o único instrumento para avaliação. Tem essa prova, tem o registro individual da cada aluno, tem a apresentação dos resultados de cada um... A gente tem portfólios: a gente vai guardando as atividades escritas, os registros que a gente faz, diariamente, o prazer de casa13, tudo isso... Aí, a gente vai avaliar, quantitativamente e qualitativamente. Agora, o que conta mais aí, é qualitativamente. Aí, a gente avalia em cima disso, dessa ficha – e essa ficha é elaborada em cima dos PCNs, que trazem as habilidades e competências para cada série.
A forma de avaliar descrita por Cássia segue as prescrições genéricas da atividade
docente, ao menos de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), para os
quais a avaliação deve ocorrer da seguinte maneira: A avaliação, ao não se restringir ao julgamento sobre sucessos ou fracassos do aluno, é compreendida como um conjunto de atuações que tem a função de alimentar, sustentar e orientar a intervenção pedagógica. Acontece contínua e sistematicamente, por meio da interpretação qualitativa do conhecimento construído pelo aluno. Possibilita conhecer o quanto ele se aproxima (ou não) da expectativa de aprendizagem que o professor tem em determinados momentos da escolaridade, em função da intervenção pedagógica realizada. Portanto, a avaliação das aprendizagens só pode acontecer se forem relacionadas com as oportunidades oferecidas, isto é, analisando a adequação das situações didáticas propostas aos conhecimentos prévios dos alunos e aos desafios que estão em condições de enfrentar. (BRASIL, 1997, p. 81).
Cabe ressaltar que os PCNs seguem uma orientação construtivista, pautada pela teoria
de Piaget. Em relação ao processo de avaliação, Cássia parece seguir essa mesma orientação,
que, não obstante, a leva a variar os instrumentos de avaliação e a avaliar seus alunos muitas
vezes. Com isso, torna-se possível conhecer melhor não só o que os alunos já dominaram
como também, em especial, aquilo que ainda não são capazes de fazer sozinhos, sem ajuda.
Em outras palavras, ao agir assim, Cássia consegue identificar a natureza da ajuda que é
preciso dar às crianças: formar novas duplas, retomar os conhecimentos recém-ensinados,
13 Cássia e seus alunos empregam o termo “prazer de casa” para denominar a lição – ou dever – de casa, na tentativa de romper com uma perspectiva que associa as atividades extrassala a algo negativo, desprazeroso.
119
avançar nos conteúdos a serem tratados, de modo a ensinar o que está faltando para que os
alunos consigam dominar o conteúdo que se pretende trabalhar.
No entanto, sua prática avaliativa difere bastante da proposta por Vygotsky (2000),
uma vez que, na ótica desse autor, a avaliação não se prende ao conhecimento prévio, ao
menos não pelas razões piagetianas, que se devem, notadamente, à maturação. Na proposta
vygotskiana, o foco está na zona de desenvolvimento próximo, de modo que o trabalho
pedagógico deve recair sobre os procedimentos empregados pelos docentes, que foram – ou
não – capazes de nela atuar. Logo, o foco está em analisar os erros cometidos pelos alunos,
com o intuito de melhor planejar a atividade docente e, não, com o objetivo de traçar um
diagnóstico acerca do desempenho dos alunos.
Por outro lado, um aspecto bastante positivo da atividade docente desenvolvida por
Cássia, que coincide com a proposta vygotskiana, está na importância que ela atribui às
atividades em duplas ou grupos. Segundo seu relato e com base no observado em suas aulas,
as atividades em duplas ou grupos constituem uma das principais estratégias empregadas pela
professora no desempenho de sua atividade docente: “eu trabalho bastante com essa coisa
de um ajudando o outro, essa parceria... São grupos produtivos, eu trabalho com isso”.
Cássia acredita que as atividades em grupo favorecem a aprendizagem dos alunos, pois nelas
eles se ajudam e se ensinam mutuamente, conforme elucida o pré-indicador retirado da ACS:
“o grupo ajuda, ainda mais nessa turma, que já tem muitos alunos alfabéticos... Ajuda,
porque um vai de encontro com o outro, e explica [para ele]. Aí, o outro começa a pensar
e vê, percebe que é realmente daquela forma e avança, muda de nível”. Na ACC, ela,
novamente, justificou seu investimento nas atividades coletivas:
Quando se coloca [os alunos] em grupos, favorece, porque eu coloco sempre uma questão que vá dar discussão, porque eu percebo que se um já sabe o número, mas o outro ainda não conhece aquele número, o que já tem um conhecimento a mais já ajuda o outro.
Cássia explicou, entretanto, que a formação de grupos ou duplas não ocorre de forma
aleatória, mas com base em critérios bem definidos: Assim, apesar de colocar [as crianças] nas duplas, tem critérios... A gente tem que ver... Eu não posso, também, colocar um aluno que sabe, de um nível diferenciado, com um que só conhece as letras, mas ainda não conhece som nenhum, junto com um aluno já alfabético, que já sabe tudo! Porque, daí, ele vai e faz para o outro [o aluno que não sabe]. Isso já aconteceu aqui na sala. Então, eu tenho que colocar aquele que sabe menos com um que saiba um pouquinho mais, que saiu um pouco daquele nível, por exemplo [...]. Então é isso: na hora de escolher as duplas, eu coloco crianças de níveis diferentes, mas próximos. Níveis próximos: aí funciona bem.
120
Esse critério de formação de duplas ou grupos está de acordo com os postulados de
Vygotsky (2000), segundo os quais o professor deve ter como meta incidir na zona de
desenvolvimento próximo, ou seja, organizar situações de aprendizagem que se antecipem
àquilo que o aluno já alcançou. Uma das formas de incidir na zona de desenvolvimento
próximo é, justamente, criar situações de ensino nas quais a colaboração entre pares de
crianças com diferentes níveis de aprendizagem promova a aprendizagem da dupla e,
consequentemente, seu desenvolvimento. Isso porque, em colaboração, a criança é capaz de
realizar muito mais do que o é sozinha, de maneira independente. Segundo Daniels (2003, p.
81), o foco de ação na zona de desenvolvimento próximo recai “na criação, no
desenvolvimento e na comunicação de significados, pelo uso colaborativo de meios
mediacionais e, não, na transferência de habilidades do parceiro mais capaz para o menos
capaz”.
A experiência de Cássia com o trabalho em duplas corrobora a teoria de Vygotsky,
como se pode observar em um dos exemplos obtidos na ACS: “aí, elas [as duas alunas]
escreveram o texto completo, sendo que uma ajudou a outra! Não ficou nenhuma parada:
uma foi ditando e a outra escrevendo, mas elas iam se ajudando”. Apesar dos grandes
benefícios para a aprendizagem proporcionados pelas atividades em grupos e/ou duplas,
Cássia relatou que nem sempre é fácil atuar dessa maneira. Em atividades desse tipo, ela
eventualmente se depara com problemas, conforme contou na ACS: “eu sinto dificuldade,
porque eu quero fazer muito nos grupos, mas tem os outros, também, que vêm... Se eu
pudesse estar só com esses aí, investindo, eu sei que eles estariam além [de onde estão hoje],
mas tem essas questões de briga, de sair o tempo todo”. A professora afirmou que o sucesso
das atividades em grupos ou duplas não depende apenas da divisão da turma segundo critérios
adequados. É preciso, também, intervir nesses grupos, de acordo com a necessidade
percebida, dedicando atenção diferenciada a cada um deles. Conforme seu relato na ACS,
essa é uma tarefa difícil:
Só que assim, às vezes é muito trabalhoso porque você tem que dar assistência a todas as duplas ou todos os trios, e vem aquela questão de priorizar os que têm mais necessidade. E, aí, quem termina primeiro, vem atrás, vem e atrapalha: você está explicando para uma dupla e eles vêm e tiram a atenção daqueles que estavam ali [com a professora, antes].
Na ACC, Cássia retomou a questão da importância das intervenções docentes para a
eficácia do aprendizado dos alunos: “em outras atividades a partir daí, eu já sabia que ele ia
precisar de ajuda, aí fui até ele e ele já conseguiu encontrar outras palavras também que a
121
gente foi trabalhando. Mas sempre assim com ajuda”. Ou seja, em sua opinião, não basta
formar duplas ou grupos para que os alunos se ajudem mutuamente. É preciso também
intervir nos momentos em que o conhecimento do grupo não é suficiente para garantir o
aprendizado. Essa fala converge com o conteúdo do indicador anteriormente analisado, no
qual ela se referiu à importância da intencionalidade da prática pedagógica. Cássia percebe
que é fundamental intervir adequadamente a fim de alcançar os objetivos da atividade. Para
tanto, é necessário ter clareza desses objetivos e da forma como se deve intervir para alcançá-
los. Mais uma vez, a perspectiva adotada por Cássia segue os postulados de Vygotsky (apud
DANIELS, 2003, p. 76):
O desenvolvimento do conceito científico – um fenômeno que ocorre como parte do processo educacional – constitui uma forma única de cooperação sistemática entre o professor e a criança. A maturação das funções psicológicas superiores da criança ocorre nesse processo cooperativo, ou seja, pela assistência e pela participação do adulto [...]. Em um problema que envolve conceitos científicos, o aluno deve ser capaz de fazer, com a colaboração do professor, algo que nunca fez espontaneamente.
Em relação às dificuldades enfrentadas por Cássia no desenvolvimento de sua
atividade docente, destacam-se aquelas que aparecem mais frequentemente em seu relato,
tanto na entrevista quanto nas sessões de autoconfrontação. O primeiro aspecto relatado por
ela como algo que dificulta sua atividade é a falta de ajuda em sala de aula. Ela abordou
repetidamente essa questão, explicitando o quanto considera difícil administrar, sozinha, o
aprendizado de um grande número de alunos. Esse conteúdo apareceu no decorrer de sua fala
nos três momentos da coleta de dados. Na entrevista, ela afirmou: “se a gente tivesse pelo
menos uma pessoa para estar ajudando, sabe? Isso ajudaria mais...”. Na ACS, ela abordou
novamente o assunto: “até porque as salas são muito cheias. Alfabetização é primordial, não
é? Agora coloca um professor só para um monte de alunos, vários fatores de vida e tudo, aí a
gente não dá conta”. E complementou: “se o município tivesse condições de colocar dois
professores em uma sala, aí a gente poderia pensar diferente em relação a isso. Mas não
tem! Aí eu não tenho em vista nada que possa ajudar, a não ser um reforço no turno
oposto...”. Na ACC, ao assistir à própria atividade, ela comentou com a outra professora: Até porque a questão – todas as séries eu acredito que precisaria – mas eu penso que na alfabetização, que é uma base para depois, deveria ter uma professora ajudando, para estar dando esse suporte, ajudar com as atividades... Porque se você está ali, para dar conta de tudo é difícil. Você viu, eu nem tinha percebido isso, mas eu estava lá explicando e toda hora interrompendo: “fulano, senta e presta atenção”, aí chega alguém na porta, toda hora tem que parar e voltar de novo. Ter esse controle é um pouco complicado.
122
Esses indicadores sugerem que Cássia se sente incapaz de administrar a constante
demanda de atenção por parte de seus alunos, além das demandas externas, responsáveis por
interromper a aula frequentemente. Essa sensação de desamparo apresentada por ela reflete-se
também em sua fala sobre as atividades que gostaria de poder desenvolver com os alunos,
mas que acaba por não realizar:
Assim, a gente faz algumas atividades na sala de aula, mas a gente gostaria de fazer outras atividades fora da sala de aula... Visita à biblioteca pública... A gente está trabalhando sobre a natureza e a natureza de Lençóis é tão rica! A gente mostra figuras, mostra fotos, mas a gente não visita... Então, tem esse tipo de passeio que a gente... que eu gostaria de fazer, mas não faço, porque tenho medo de ir sozinha com a turma... Tenho medo de acontecer algum acidente, alguma coisa com eles e, depois, eu ter que responder por isso.
Cássia citou também a falta de material didático como um fator que dificulta bastante
sua atividade docente. Ela relatou que, no ano em que se realizou a pesquisa, a escola não
havia recebido os livros didáticos. A falta desse instrumento apareceu em seu discurso como
um aspecto que exerce influência sobre sua prática pedagógica. Na entrevista, ela contou que,
apesar de considerar o livro mais uma ferramenta, ela eventualmente sente falta de poder
contar com esse recurso: A gente está sem livro didático, não que ele seja uma ferramenta única, mas ajuda muito, porque a gente tem uma sequência de atividades, ele vem mais colorido, tem mais imagens.... é tipo um apoio para sistematizar o que está sendo trabalhado. A gente não tem.
Na ACS, ela abordou novamente essa questão, afirmando que o livro em si não é uma
condição, mas um auxílio para o aprendizado dos alunos. Cássia contou que conseguiu, na
Secretaria da Educação Municipal, alguns livros para dar aos alunos. No entanto, o número de
exemplares não foi suficiente para todas as crianças. Cássia revoltou-se ao relatar essa
situação: “eles têm um aí, que eu consegui. Mas não é todo mundo que tem... E esse ano não
chegou o livro didático... Então, isso é uma condição que desfavorece mais ainda aqueles
que já não têm praticamente nada”. Ela mencionou ainda que, além dos livros didáticos,
outros materiais também são escassos na escola: Tem a questão do livro didático, a questão do material, folha de ofício costuma faltar sempre... Agora, nesse momento, a gente está com um pacote para duas turmas, que precisa durar uns três ou quatro meses... E não vai dar certo... Porque, se a gente não tem o livro didático, caderno a gente precisa usar! Mas, nessa faixa etária, não dá para ficar o tempo todo usando caderno, porque vai cansar a criança, né? Então, isso também vem impactando o trabalho da gente...
123
É oportuno, aqui, levantar uma hipótese acerca da relação entre a carência de material
didático e as práticas pedagógicas elaboradas por Cássia: é possível supor que a falta de
materiais, especialmente de livros didáticos, apesar de ser um fator limitador, constitua
também um elemento que contribui para que a professora, comprometida com a qualidade do
ensino que oferece a seus alunos, prepare aulas sempre dinâmicas, lúdicas e criativas? Uma
vez que não dispõe do apoio de material pedagógico, é possível que a docente se esmere ainda
mais na elaboração de atividades pautadas na criatividade e na realidade concreta de seus
alunos? Não se pretende, aqui, responder a tais questões. No entanto, o esforço demonstrado
por Cássia com o intuito de proporcionar uma aprendizagem efetiva aos alunos, a despeito das
dificuldades concretas que enfrenta em seu cotidiano de trabalho, comprova o forte
compromisso assumido pela professora em relação à educação.
3.4 Núcleo de significação 4 – Relações institucionais mediadoras da atividade docente:
“Tem gente que tem medo, então não quer mudar”
O quarto núcleo resulta da aglutinação de indicadores concernentes às relações
institucionais que permeiam a atividade docente. Dada a frequência com que esse tema
aparece na fala da professora – e a importância que ela lhe atribui – constituiu-se um núcleo
de significação que aborda especificamente o tema, em vez de reuni-lo aos indicadores
relativos à prática docente. Os indicadores que aqui são tratados foram retirados da entrevista
e da ACS. Da primeira, foram extraídos os seguintes: 1) o trabalho coletivo na escola ajuda
bastante a prática pedagógica; 2) as mudanças na equipe gestora: “muita coisa já mudou”; 3)
as mudanças na equipe de funcionários decididas coletivamente após a mudança da equipe
gestora; 4) as relações com as novas professoras: “tem gente que tem medo, então não quer
mudar” e, finalmente, 5) a avaliação da escola. Apenas um indicador desse núcleo foi extraído
da ACS: a importância da continuidade entre o trabalho de professoras de diferentes séries.
Os indicadores que compõem este núcleo de significação demonstram a relevância
que Cássia dá às relações institucionais em sua atividade docente, relevância que ora se
apresenta como positiva, ora como negativa. Um ponto muito valorizado pela professora é o
trabalho coletivo do corpo docente e da equipe gestora da escola. Cássia afirmou que,
semanalmente, são realizadas reuniões, das quais participam todas as professoras, a diretora e
a coordenadora pedagógica e cujos objetivos são o planejamento das atividades, a reflexão
conjunta acerca dos desafios enfrentados em sala de aula, a discussão de temas
124
interdisciplinares, a troca de experiências e, também, o levantamento de sugestões para
aprimorar a prática pedagógica.
Nas palavras de Cássia, “a gente tem esse momento para planejar aqui... Sentar,
discutir, ver no que um pode ajudar o outro, conselhos e registros e, assim, apresentar
resultados e também indicar algum livro, alguma atividade, ou até construir atividades...”.
Para ela, esses momentos de reflexão conjunta desempenham um papel importante em sua
atividade: “as reuniões ajudam bastante. A gente tem uma relação boa, de troca de
experiências, um ajuda o outro sempre”. Cássia relatou que planeja suas atividades semanais
baseando-se nas deliberações conjuntas realizadas nessas reuniões: “aqui, eu faço listar [os
conteúdos a serem trabalhados] com colegas, com a coordenação pedagógica, ver algumas
coisas, algumas questões específicas de sala de aula. E, aí, eu levo para casa, para poder
estar planejando diariamente as atividades da segunda, terça, quarta (e assim por diante), de
acordo com o que a gente discutiu no grupo”. Cássia relatou, ainda, que o projeto político-
pedagógico da escola é elaborado coletivamente.
Ao possibilitar um espaço de troca de experiências e reflexões entre professoras, o
trabalho coletivo cumprido na instituição enriquece, significativamente, a atuação em sala de
aula. Nesse sentido, quando Cássia atribui grande importância ao trabalho coletivo, à
interação e à cooperação entre professoras, rompe com a noção de que o trabalho docente
precisa ou deve ser sempre isolado. De acordo com Thurler (2001), essa noção é bastante
disseminada entre os professores, os quais, muito frequentemente, atuam numa perspectiva
solitária e individualista. A autora denuncia, portanto, a existência de uma “cultura do
isolamento”, firmemente enraizada na profissão docente. Reitera, entretanto, o valor da
cooperação profissional, ao sustentar que, nas culturas que rompem com esse paradigma e se
abrem para a cooperação, “cada qual se percebe como uma unidade importante do sistema e
participa ativamente em seu desenvolvimento” (THURLER, 2001, p. 87). Dessa forma, ao
proporcionar espaço para a participação e a cooperação entre as professoras, a escola
pesquisada fomenta a elaboração de melhores formas de ensinar todos os alunos e, também, o
aperfeiçoamento da atividade docente. Essa cultura cooperativa exerce, ainda, um importante
papel no comprometimento das professoras com os objetivos e com as práticas pedagógicas,
uma vez que estes são coletivamente construídos e acordados.
É interessante notar, contudo, que há até pouco tempo, essa escola, como tantas outras,
participava da “cultura do isolamento”. Um ponto muito significativo no relato de Cássia,
justamente, diz respeito ao motivo que teria ocasionado a transformação da “cultura do
125
isolamento” em “cultura da cooperação”. Na opinião de Cássia, isso se deu em razão da
mudança da equipe gestora da escola. Segundo seu relato, a partir do início do ano letivo de
2011, uma nova diretora substituiu o antigo diretor, cujas intervenções repercutiam
negativamente no trabalho desenvolvido pelas professoras: “ele só pensava no poder e não
tinha conhecimento do que é educação. Ele não dava oportunidade de encontros dos
professores e, aí, ele teve que sair. A gente deu graças a Deus”. Ainda de acordo com
Cássia, as professoras buscavam espaços de reflexão conjunta e de colaboração, mas o antigo
diretor impedia ou dificultava tais tentativas: A gente já vinha com essa ideia antes, só que a gente era podada. E, se a gente tentasse fazer [reuniões conjuntas], era assim [como se a gente quisesse] “tomar a frente do diretor”... E, como a gente estava brigando muito com ele, a gente acabava se acomodando também... Com a nova diretora não, tudo mudou.
Ainda sobre essa mudança, ela informou: “agora chegou a nova diretora, que tem
uma nova visão. Ela também é professora; ela está na mesma área que a gente. Então, muita
coisa já mudou”. Em sua fala, é possível perceber, nitidamente, o quanto essa troca na equipe
gestora tem, em sua opinião, contribuído para o desenvolvimento das atividades escolares. A
seu ver, as professoras estão mais envolvidas e engajadas com o trabalho, uma vez que se
sentem corresponsáveis pelas decisões tomadas e pelos projetos elaborados na escola. Cássia
reiterou que as mudanças implementadas pela nova gestão foram muito importantes para sua
própria atividade. Essa importância parece se dever, em grande parte, ao aumento do poder de
agir da professora: “A diretora se reuniu com a gente, pediu opinião [de como a escola
deveria proceder] e todo mundo decidiu. Foi uma decisão coletiva”.
As decisões coletivas – uma antiga solicitação das professoras – passaram a fazer
parte da realidade do trabalho docente, de forma que, segundo Cássia, agora todos têm voz
ativa na definição de estratégias pedagógicas e na solução de problemas enfrentados pela
escola. As reuniões com os pais de alunos são um exemplo de práticas implementadas com
base nas sugestões das professoras: “as reuniões da gente eram bem chatas antigamente!
Agora, já mudamos tanta coisa... Não é mais aquela reunião fechada, até o espaço, mais
aberto, permite um ver o outro, se sentir mais livre...”. Outra decisão tomada coletivamente
foi a escolha da nova coordenadora pedagógica. Após a troca do diretor, a antiga
coordenadora foi também substituída, e sua substituta foi escolhida pelo próprio corpo
docente da escola. De acordo com Cássia, a nova coordenadora já fazia parte do professorado
e acabou eleita para ocupar esse cargo graças ao excelente trabalho que vinha desenvolvendo.
126
Decisões coletivas desse tipo indicam que houve, efetivamente, um grande aumento no poder
de agir dos atores escolares.
Outro exemplo do aumento do poder de agir das professoras no ambiente escolar – e
que parece ser muito significativo para Cássia – diz respeito a um tema espontaneamente
levantado por ela durante a entrevista: a mudança no quadro de funcionários, solicitada pelas
professoras e alcançada após a chegada da nova diretora. Cabe, aqui, relatar como se deu a
entrada desse tópico na conversa. Ao final da entrevista, quando indagada sobre a
possibilidade de abordar algum assunto sobre o qual não fora questionada, ela disse: É a respeito das merendeiras da escola. Elas estavam seguindo a linha do antigo gestor, e aí era muita indireta na escola, muito arrelio, sabe? Criticavam as crianças, criticavam professores, a maneira de vestir, a maneira de falar, tudo. [...] Com a mudança do gestor, a diretora nova foi mostrar... Fez uma reunião e fez uma abordagem assim tão transparente do que ela queria e tal, pediu a opinião das meninas e elas não queriam participar de nada. [...] A gente se reuniu e achou melhor que elas fossem para uma outra escola, fossem remanejadas. E a gente conseguiu isso. Hoje o pessoal que está aqui é ótimo [...]. Elas ajudam a gente em tudo, apoiam os meninos, então o trabalho agora está até mais leve, mais alegre. Todo mundo aqui já chega alegre na escola. [...] As meninas estão envolvidas. Então a escola está mais leve, mais gostosa de trabalhar.
Percebe-se, portanto, que a mudança na equipe gestora ampliou a participação das
professoras, o que resultou no aumento do poder de agir das docentes, não só no que tange a
sua prática em sala de aula, mas também no que concerne ao ambiente escolar como um todo.
Parece ter havido uma profunda transformação na cultura escolar, uma grande mudança nas
mediações do gênero profissional. Vale lembrar que, de acordo com Clot et al. (2001, p. 18),
o gênero constitui um “trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais, uma
recriação da organização do trabalho pelo trabalho de organização do coletivo”. Assim, a
partir dessa reorganização do trabalho pelo coletivo profissional, foi possível instaurar ali uma
nova cultura, pautada pela colaboração, pela cooperação e pela participação de todos. É
importante ressaltar que essa transformação não se deveu apenas à mudança na equipe gestora
mas também à formação inicial e continuada que as professoras têm realizado, conforme
enunciado no Núcleo de significação 1. É possível inferir que o processo de formação docente
trouxe novas perspectivas e ideias para as professoras – tais como a importância da
colaboração e do trabalho conjunto – e que a substituição dos gestores permitiu a execução
dessas ideias na prática pedagógica. Como bem salientam Clot et al. (2001, p. 17), “apenas os
127
coletivos podem operar transformações duradouras em seus ambientes de trabalho”. Ainda
segundo os autores: O gênero profissional é o instrumento coletivo da atividade, permitindo colocar os recursos da história acumulada a serviço da ação presente de uns e de outros. Esse acoplamento da atividade em curso e de seus instrumentos genéricos explica o desenvolvimento do poder de agir. [...] O gênero profissional é um instrumento decisivo no poder de agir. (CLOT, 2010, p. 35).
Como afirma Clot (2010, p. 15), o poder de agir diz respeito à atividade, ou seja, ele se
desenvolve ou se atrofia na atividade; aumenta o raio de ação efetivo do sujeito em sua esfera
profissional habitual, possibilitando uma recriação da atividade. Ademais, ele “aumenta ou
diminui, em função da alternância funcional entre o sentido e a eficiência da ação em que se
opera o dinamismo da atividade, ou seja, sua eficácia”. Quanto à relação entre o sentido da
atividade e o poder de agir, o autor esclarece:
Como vimos, esvaziada de seu sentido, a atividade do sujeito vê-se amputada de seu poder de agir, ou seja, os objetivos da ação em vias de se realizar ficam desvinculados do que é realmente importante para os sujeitos e outros objetivos válidos, terminam por ser reduzidos ao silêncio, terminam sendo deixados em suspenso. Essa desvitalização da atividade constitui uma modalidade corriqueira, que atrofia o poder de agir. (CLOT, 2010, p. 16).
O autor afirma, ainda, que o aumento no poder de agir pode levar a uma renovação do
sentido da atividade para o sujeito, algo que, por sua vez, ocasiona uma intensificação vital na
atividade. Assim, “o sentido da atividade diz respeito, diretamente, ao poder de agir” (CLOT,
2010, p. 17). O aumento do poder de agir resultante da transformação do gênero profissional –
que se deu em virtude da formação docente e da instituição da cultura de colaboração escolar
– parece ter feito que Cássia ressignificasse sua atividade docente, passando a perceber os
professores como uma unidade que caminha em direção aos mesmos objetivos, construídos
coletivamente. Esse ponto de vista se evidencia quando se analisa sua fala a respeito das
professoras recém-chegadas, que ainda não teriam se integrado à nova cultura colaborativa
vigente na instituição: Então a escola vai andando numa linha, aí de repente, por questões políticas, chegam novas pessoas, entendeu? E aí quebra um pouco... Porque tem vários professores trabalhando numa linha, aí chegam outras pessoas, elas sabem da linha, mas trabalham do jeito que acham que deve ser. Então eu não poderia dizer que a escola toda trabalha nessa linha.
128
O fato de algumas pessoas trabalharem numa perspectiva diferente daquela adotada
pelo coletivo da escola parece incomodar Cássia profundamente. Ela tece críticas às novas
professoras, que parecem não querer modificar sua forma de ensinar. Para ela, “mesmo a
maioria trabalhando numa linha, essa minoria que chegou está atrapalhando um pouco,
trabalhando de um jeito diferente. Mas ela está trabalhando dentro do que acredita e está
dando seu melhor também.”. Tais críticas indicam uma preocupação de que a escola, como
um todo, obtenha uma boa qualidade de ensino, uma vez que a instituição é vista por Cássia
como uma unidade. É possível perceber que ela busca compreender os motivos que impedem
as novas professoras de transformar sua atividade, tal como ela e outras fizeram algum tempo
atrás. No entanto, mesmo que isso viesse a ocorrer, os motivos alegados para não adotar
novas estratégias de ação não seriam suficientes para que Cássia aceitasse a imobilidade
percebida nas novas colegas de trabalho: Mas tem gente que tem medo, que já tem segurança no que faz, então não quer mudar de imediato assim porque tem medo, para ele é mais cômodo segurar o que ele já sabe do que arriscar alguma coisa. Então eu não sei até que ponto seria uma coisa boa para a escola, entendeu? Sem menosprezar os colegas, porque eles estão tentando, estão dando o melhor. Mas é complicado, é complicado.
O incômodo que a postura das novas professoras produz em Cássia compareceu
novamente na ACS, quando ela discorreu sobre a importância de assegurar continuidade no
trabalho de professoras de diferentes séries/anos. Ela afirmou que, quando um aluno passa
para a série seguinte, cabe à próxima professora verificar o relatório do ano anterior a fim de
averiguar o que o aluno sabe e dar continuidade ao trabalho iniciado. No entanto, segundo seu
relato, “às vezes aqui não acontece isso, porque tem professores novos chegando, não estão
sabendo ainda desse processo [...]. Nem olham os relatórios, nem nada. Não olham nada
e começam do zero. E, aí, muitos [alunos] repetem, muitos começam a repetir [de ano]”.
Cássia contou que, quando a professora da série seguinte a sua é uma das que já trabalhavam
na instituição – e, portanto, já engajada na cultura da colaboração –, ambas desenvolvem
juntas as atividades mais adequadas para os alunos, de acordo com os conteúdos já
apropriados no ano anterior. No entanto, quando a professora da série seguinte é uma das
professoras novas, esse processo de colaboração fica bastante limitado, acabando por
prejudicar os alunos. Cássia comentou a dificuldade de diálogo e cooperação com as docentes
recém-chegadas: E aí falar às vezes é ruim, porque você acaba conseguindo inimizade. O grupo é bom, é legal, mas assim, quando parte para a sala de aula,
129
quando você quer falar alguma coisa para ajudar – muitos aqui não, porque já sabem, estão estudando o processo – mas quem está chegando agora, essas novas que estão chegando agora, se sentem ofendidas de ouvir alguma coisa [...] Aí é a criança que perde. Mas não é maioria não, a escola já mudou muito.
É interessante observar que, apesar de ter tecido contundentes críticas à postura e ao
trabalho das novas professoras, Cássia procurou suavizar seu julgamento, afirmando,
repetidamente, que “elas estão dando o seu melhor” ou “estão fazendo o que acreditam ser o
certo”. Essa tentativa de amenizar os pontos negativos percebidos na atividade das outras
docentes pode ser interpretada como um esforço para manter relações cordiais de trabalho no
interior da escola, ou seja, pode representar uma tentativa de “não criar inimizades”.
Entretanto, é possível perceber que, para Cássia, a forma de trabalhar de algumas professoras
tem um caráter bastante negativo, influenciando fortemente sua avaliação sobre a escola,
como fica claro no pré-indicador: “Essa escola? Eu daria 8 para ela. Mesmo apesar dessas
mudanças aí... Eu daria 8. Eu sei que ela precisa melhorar muito, muito, muito mesmo, mas
muita coisa já mudou... muita coisa”.
Assim, este núcleo permite perceber que, para Cássia, as relações institucionais,
mediadas pelo gênero profissional, constituem um aspecto fundamental de sua atividade. A
possibilidade de desenvolver um trabalho docente coletivo, compartilhando estratégias,
buscando soluções conjuntas, elaborando novas formas de avaliar assume, assim, um papel
transformador, capaz de construir uma nova perspectiva, na qual todos os profissionais da
escola – funcionários, professores e gestores – são percebidos como uma unidade, um corpo
único de pessoas movidas por um objetivo claro: educar bem todos os alunos.
3.5 Núcleo de significação 5 – Reflexões sobre a prática após a AC: “Eu poderia ter...”
Este núcleo resulta da articulação de indicadores que reúnem as reflexões feitas pela
professora acerca da própria atividade, quando analisou os episódios que retratavam sua
atuação em sala de aula. Ou seja, expõem-se, aqui, os momentos da autoconfrontação nos
quais a professora, ao se deparar com as cenas selecionadas e com as perguntas pertinentes a
sua atividade, refletiu sobre o que fez; o que poderia (ou não) ter feito de outra forma; o que
gostaria de ter feito. Os indicadores constitutivos deste núcleo são provenientes apenas da
sessão de ACS: 1) as reflexões críticas sobre a atividade da parlenda; 2) as reflexões sobre a
prática da correção coletiva do dever de casa: “poderia ter disponibilizado material concreto
130
que ajudasse na apresentação dos problemas resolvidos”; 3) as reflexões sobre a atividade de
cruzadinha: “poderia ter disponibilizado um banco de dados”; 4) repensando a prática
docente: chamar os alunos com dificuldade para responder às questões na lousa; 5) reflexões
sobre o processo de ACS; 6) a autoavaliação da prática em sala de aula: “deveria ter avançado
mais”.
É interessante observar que não existem, neste núcleo, indicadores extraídos da ACC,
embora esta também seja considerada um possível momento de reflexão sobre a própria
atividade. Acredita-se que a ACC não proporcionou essa possibilidade para Cássia em razão
de alguns acontecimentos. O principal aspecto que prejudicou o bom andamento da ACC foi a
limitação do tempo. Ao passo que na ACS Cássia discorreu tranquilamente sobre os episódios
gravados, dedicando-lhes o tempo necessário para tanto e analisando-os sem pressa, a
realização da ACC foi prejudicada por alguns contratempos. Renata14, a professora
convidada, compareceu ao encontro com mais de uma hora de atraso. Como Cássia tinha
outros compromissos agendados para depois, o tempo disponível para a ACC – duas horas,
período suficiente para a análise de três episódios de aproximadamente cinco minutos cada –
acabou sendo reduzido a apenas 50 minutos. Dessa forma, no decorrer da ACC, notou-se a
aflição da professora Cássia, fato que a levou a responder às perguntas de forma resumida,
muitas vezes antecipando-se às questões colocadas por Renata. Em função da pressa, a
professora transmitiu a sensação de que não queria aprofundar as reflexões para que a sessão
pudesse terminar logo.
Além disso, Cássia mostrou-se muito defensiva, parecia temer possíveis críticas a sua
atividade, por isso as antecipava. Descrevia e justificava cada uma de suas ações no vídeo de
forma direta e sucinta, sem abrir espaço para uma análise mais aprofundada de sua própria
atuação. É possível atribuir esse recurso defensivo a duas razões: o tempo escasso disponível
para a ACC e o fato de a análise se restringir à atividade de Cássia. Além disso, não houve
possibilidade de marcar outra sessão de ACC, na qual se poderiam sanar os problemas
enfrentados. Tudo isso prejudicou, em muito, os resultados do processo de ACC.
Por outro lado, a ACS constituiu-se em um processo bastante rico, no qual Cássia
aprofundou a reflexão e a análise sobre sua atividade docente, tentando responder da forma
mais fiel possível ao que lhe era perguntado. A professora salientou ter se sentido confortável
durante a ACS, quando percebeu que a pesquisadora não estava ali para criticá-la nem para
lhe prescrever formas de desenvolver seu trabalho. Essa compreensão levou-a a se sentir livre
14 Nome fictício.
131
para analisar, por si mesma, as cenas apresentadas. Em diversos momentos, a professora
sinalizou que essa análise gerou, de fato, muitas reflexões e, inclusive, ressignificações de
algumas de suas práticas pedagógicas. É interessante notar que, invariavelmente, Cássia
percebia os pontos mais “problemáticos” de sua atividade antes mesmo que as perguntas lhe
fossem propostas. O simples fato de assistir a si mesma em ação parece ter lhe despertado
uma série de considerações a respeito do que deixou de fazer, do que poderia ter feito de outra
forma, do que gostaria de ter feito.
O primeiro episódio, denominado “escrita da palavra pé”, retrata um momento da aula
de Língua Portuguesa no qual a professora trabalhava a leitura e a escrita com base numa
parlenda já bastante conhecida pelos alunos. A cena mostrava a professora e um aluno junto à
lousa. A professora indagava a criança sobre a escrita da palavra pé, e o aluno nitidamente
esforçava-se para responder da forma correta. Entretanto, não era capaz de fazê-lo mesmo
com o direcionamento e as pistas fornecidas pela professora. Na ACS do primeiro episódio,
Cássia inicialmente descreveu a atividade que realizava e, imediatamente após a descrição,
começou a discorrer sobre encaminhamentos que poderia ter realizado de outra forma: Aí teve um momento no “pulem de um pé só” que ele leu “pé” e “só” junto, como uma palavra só, e aí, ao invés de pedir que ele lesse de novo e perguntar “e aí, você sente o som de alguma letra?”, eu nem perguntei para ver se ele iria associar... “tem o É, pro, termina com é”... Então ele iria logo na hora perceber, eu imagino que ele iria perceber que “pé” tem esse som e não precisaria do “só”... Então eu ignorei isso e já fui direto, aqui tem “pulem” e “pé”, tem essa e essa, qual dos dois pode ser... Eu não fui até aquela que ele achou que podia ser “pé”... Acho que isso aí também foi um erro, porque se ele disse que foi aquela outra, eu tinha que continuar intervindo lá, e não na anterior.
Quando questionada se ela considerava que a atividade de leitura havia alcançado os
objetivos propostos para a criança retratada no episódio, Cássia respondeu que “naquele
momento não atingiu, né, porque é um processo... Mas ele percebeu que “pé” não começa
como ele pensava, com qualquer letra...”. É interessante observar que, apesar de ter refletido
sobre a atividade, percebendo alguns aspectos que poderiam ter sido mais bem executados,
Cássia procurou se justificar, afirmando que, se os objetivos não haviam sido completamente
alcançados, ao menos parte deles havia sido cumprida. Mas o que a professora poderia ter
feito de diferente para alcançar plenamente suas metas? Cássia afirmou que não deveria ter
chamado aquele aluno para responder às questões na lousa naquela atividade específica: “eu
faria diferente... Talvez não tivesse chamado ele na frente aquele dia, talvez não fosse o
132
momento... Porque ele foi na frente, quem sabe se ele não ficou meio perdido, porque viu
que todos já estavam além dele? Tem isso também... ele não gostou”.
Aqui, Cássia parece ter percebido que a estratégia – frequentemente utilizada – de
chamar os alunos com dificuldades para responder às questões na lousa nem sempre se mostra
efetiva: a criança pode se sentir pressionada ao ver-se alvo da observação de todos os colegas.
Segundo suas palavras: “talvez não fosse o momento de ter chamado logo esse aluno, porque
ele é um dos que tem mais dificuldade... Talvez se eu deixasse ele no lugar dele, e só
chamasse atenção para que ele percebesse como outra criança faz na frente, seria mais
interessante naquele dia”. Conforme se pode depreender desse fragmento, Cássia reflete
acerca da situação de exposição na qual coloca os alunos mais frágeis em termos de
aprendizagem e dá sinais de notar os danos que isso pode acarretar para a autoestima das
crianças. É possível perceber um importante movimento de reflexão, no qual a docente se
questiona sobre uma prática que emprega amiúde – talvez de forma um tanto quanto
automática. Pode-se supor, então, que essa prática constituía um comportamento fossilizado
da professora, construído e mantido ao longo de anos de repetição mecanizada, e que
possivelmente foi quebrado na ACS, permitindo à docente repensar e refletir acerca de seu
propósito e de sua eficácia.
O segundo episódio ilustrou um momento da aula no qual se realizava a correção do
“prazer de casa” 15. O episódio mostrava a professora e os alunos sentados no chão, em
círculo, corrigindo o dever de Matemática, pedido no dia anterior. No início da atividade,
todos os alunos participavam e mostravam-se bastante interessados. No entanto, ao longo da
correção da lição, os alunos foram ficando cada vez mais dispersos. Alguns deles –
justamente os que não haviam feito a tarefa em casa – foram chamados para indicar, na lousa,
a forma como resolveriam os problemas propostos. Enquanto isso, os demais alunos
distraíam-se cada vez mais, porque já haviam resolvido os problemas e ficavam cansados de
ver os esforços e as tentativas de acerto daqueles que estavam na lousa, junto com a
professora.
Na ACS desse episódio, foi marcante o movimento de análise realizado por Cássia.
Ao assistir a si mesma em atividade, ela imediatamente passou a falar de forma crítica sobre
sua forma de atuação. O primeiro aspecto que lhe chamou a atenção foi a falta de materiais16
15 Cássia e seus alunos utilizam o termo “prazer de casa” para referirem-se ao dever de casa. 16 Vale esclarecer que cada aluno tem uma “caixa” com os materiais de Matemática. Em razão da falta de recursos da escola, os alunos coletaram, no início do ano letivo, uma determinada quantidade de objetos que compõem esse material. Assim, alguns alunos têm em suas caixas conchas, outros têm tampinhas de garrafa
133
concretos que auxiliassem os alunos a solucionar os problemas. Segundo seu relato: “eu
poderia ter colocado, ali, alguns materiais para eles resolverem utilizando aquele
material. E, não, mandar logo no quadro”. Assim, ao se observar em atividade, Cássia
pareceu perceber possibilidades de estratégias não realizadas, que teriam, em seu entender,
tornado a atividade mais interessante. Ela comentou que a resolução de problemas de
Matemática com o auxílio de material concreto teria tornado a atividade mais eficaz, evitando
os erros apresentados pelos alunos chamados ao quadro-negro. Segundo suas palavras: “com
o material... acho que teria sido bem mais interessante e eles, também, aprenderiam
mais... No caso desse aluno, ele foi contar, acabou contando um a mais. Com o material, isso
não aconteceria”. Quando questionada a respeito do que faria de forma diferente, ela
explicou como desenvolveria a atividade caso fosse realizá-la após a ACS: Por exemplo, esse aluno não fez a atividade de casa. Então, nesse caso, eu colocaria todos novamente em roda, para fazer com o material, e ficaria com ele, que não fez... E ele já poderia, também, fazer a atividade com o material! Eu levei ele ao quadro, mas ele não fez a atividade...
É possível perceber que, nesse momento da análise, Cássia já mencionou a
possibilidade de disponibilizar o material para os alunos – algo que ela não havia feito – como
um aspecto resolvido: ela considerou que deveria ter feito isso. Assim, ao dar um exemplo do
que faria de forma diferente, ela refletiu sobre a possibilidade de não pedir ao aluno que não
havia feito o dever que fosse ao quadro, como se o trabalho com o material já estivesse
contemplado. Vale notar que, ao analisar esse episódio, a professora repensou sua prática –
até então rotineira e cuja eficácia não era motivo de reflexão – de chamar os alunos para
resolver questões na lousa. Assim, pode-se perceber que a ACS possibilitou a Cássia um
movimento analítico e reflexivo a fim de avaliar esse procedimento.
Outro aspecto da atividade registrada no episódio que pareceu chamar sua atenção foi
sua própria dispersão durante a atividade: “e eu, também, eu fiquei prestando atenção lá e cá,
lá e cá... Eu teria que estar mais centrada em quem eu queria que, que...”. Ao observar-se
atuando, Cássia percebeu que o fato de dividir os alunos em dois grupos – um sentado em
círculo no chão e outro junto à lousa resolvendo problemas – acabou por dividir sua atenção
entre uns e outros. Dessa forma, nenhum grupo recebeu atenção integral, razão plausível para
explicar a dispersão crescente dos alunos no decorrer da atividade. De fato, caso agisse de
outra maneira, os alunos não precisariam dedicar atenção aos problemas resolvidos na lousa,
PET, anéis de latas de alumínio, etc. Esse material é normalmente utilizado como apoio à realização dos exercícios de Matemática.
134
mas sim ao material concreto colocado diante deles, tentando, por seu intermédio, resolver as
questões. A atividade teria sido mais lúdica e mais concreta, permitindo que todos – e não
apenas os que haviam sido chamados para responder às questões no quadro-negro – se
envolvessem. Finalmente, cabe salientar que, embora Cássia tenha apreendido parte do
problema apresentado nesse episódio, ela não aventou a possibilidade de realizar um trabalho
diversificado, reunindo os alunos em duplas ou grupos de crianças com diferentes
conhecimentos e experiências – que é, precisamente, o que marca o pensamento vygotskyano,
além de ser uma estratégia que ela empregava com frequência em outras situações
pedagógicas.
O terceiro episódio analisado na ACS, denominado “Palavras cruzadas”, mostrava um
grupo de alunos sentados no chão, em círculo, diante da classe. Os demais alunos
permaneciam sentados em suas carteiras. A professora explicou, então, qual seria a atividade
em questão: completar e resolver um jogo de palavras cruzadas, que se encontrava pendurado
na lousa. Esse jogo era formado por palavras provenientes da parlenda, já trabalhada pelas
crianças em diversas outras atividades. Após explicar detalhadamente a proposta, a professora
chamou um dos alunos sentados no chão para ir até a lousa, fornecendo-lhe uma série de
letras recortadas, com as quais ele deveria preencher um dos espaços vazios, avançando na
descoberta da palavra. A criança selecionou uma letra e a professora chamou outra aluna para
ajudar a preencher os demais espaços com as letras disponíveis. Nesse momento, vários
alunos se levantaram – do chão e de suas carteiras – e dirigiram-se à lousa, agrupando-se em
torno da professora.
Na análise desse episódio, Cássia pareceu assustar-se com a bagunça na qual a sala
havia se transformado ao longo da atividade. Aparentemente, durante da aula, ela não havia
percebido a falta de ordem. A professora comentou, também, que poderia ter realizado essa
atividade de outra maneira, modificando-a em distintos aspectos. Em relação à divisão da
classe em dois grupos – um que participaria da atividade e outro que apenas observaria – a
professora comentou: “as atividades poderiam ter sido feitas... Porque eu fiz, não é? Fiz
bastante em grupos, mas poderia ter feito mais... Poderia ter mexido mais nos grupos...”.
Cássia pareceu dar-se conta de que relegar parte da classe à condição de meros observadores,
enquanto os demais participavam da descoberta da palavra, não havia sido uma boa estratégia.
De fato, as crianças demonstraram desejo de participar do desenvolvimento da proposta,
tentando resolver as palavras cruzadas. Mas Cássia justificou o emprego dessa estratégia
afirmando que precisava dar prioridade aos alunos mais defasados, que ainda não
135
reconheciam todas as letras, motivo pelo qual havia solicitado que apenas alguns dos alunos
identificassem as palavras. No entanto, as crianças mais adiantadas, que já conheciam o
alfabeto e eram capazes de formar palavras corretamente, não ficaram satisfeitas com essa
exclusão. Diante desse fato, Cássia explicou que, se fosse realizar novamente o exercício com
palavras cruzadas, faria isso de outra forma:
Aquela cruzadinha, por exemplo, depois dali eu poderia ter feito o que eu não fiz, ter voltado para o grupo em outro dia, porque se não ia ficar cansativo, e fazer a mesma cruzadinha só para esses meninos [os que apresentam mais dificuldade], nos grupos, pedir aos outros que fizessem uma outra atividade, e pedir para eles montarem, dar a quantidade de letras exatas e pedir para eles montarem porque o desafio seria maior, e ficaria com esses no grupo com uma cruzadinha cada um, mas eles iriam fazem em grupo. Aí eu nesse caso sairia perguntando questões para cada um “e aí, fulano, você concorda? Por quê?” Aí eles iriam aprender mais...
Percebe-se, aqui, o movimento empreendido pela professora, ao refletir sobre sua
forma de conduzir a atividade. Em relação ao mesmo episódio, Cássia também demonstrou
insatisfação com a forma como interveio junto às crianças que estavam na lousa. A professora
parece ter percebido que as dicas fornecidas por ela para que fosse possível solucionar as
palavras cruzadas não haviam sido efetivas: “eu teria que ter colocado um banco de dados
para favorecer eles... [...]. Poderia pedir que eles silabassem mesmo a palavra, para sentir,
perceber o som... É, acho que eu poderia ter feito assim...”. Apesar de ter indicado diversos
aspectos que poderiam ser modificados nessa atividade, Cássia considerou que ela foi
bastante produtiva, atingindo os objetivos propostos. A seu ver, se tivesse empregado outras
estratégias, os resultados teriam sido ainda melhores, algo que não implica que essa maneira
não tenha tido impacto na aprendizagem dos alunos: “então, foi bom, mas o banco de dados
iria favorecer mais... Mas eu acho que foi legal. Foi legal”.
Após ver e analisar os três episódios na ACS, Cássia passou a enumerar outros
aspectos dessa mesma atividade que mereceriam uma reflexão mais aprofundada, tendo em
vista que ela só os percebeu durante o processo de ACS. Um desses aspectos foi sua
ansiedade em relação ao aprendizado das crianças: “eu percebi que eu fico muito nervosa, né,
tenho muita ansiedade que eles aprendam logo...”. Tendo observado na ACS a desordem
criada em sala de aula, Cássia questionou-se também acerca da qualidade das atividades
pedagógicas que elaborara e atribuiu a “bagunça” à falta de elementos lúdicos capazes de
despertar a atenção dos alunos: “outra coisa, também, é a questão da concentração na sala de
aula! Eu sou uma pessoa só... E, fico pensando, será que a atividade não está lúdica? Será
136
que ela não está chamando a atenção deles? Então, pode ser também isso, que contribuiu
[para a bagunça em sala]”.
É possível perceber, no discurso de Cássia, que a autoconfrontação permitiu um
processo de auto-observação, reflexão e análise de sua atividade docente, levando-a a levantar
outras formas possíveis de atingir suas metas. A articulação, possibilitada por essa análise,
entre a tarefa a ser desempenhada e a atividade efetivamente realizada gerou uma
aproximação da professora ao real de sua atividade. Ou seja, Cássia conseguiu identificar as
possibilidades que, por não terem sido levadas a cabo, acabaram por tencionar a atividade
realizada, sendo dela constitutivas. Cabe retomar aqui a definição apresentada por Clot (2010)
do real da atividade: ele não é só o realizado, mas também o que não foi feito, o que se tentou
fazer sem conseguir, o que se desejaria fazer ou o que poderia ter sido feito. Assim, segundo o
autor: A atividade possui, portanto, um conteúdo cuja abordagem demasiado cognitiva da consciência, como representação da ação, priva de seus conflitos vitais. Ora, a existência dos sujeitos é tecida nesses conflitos vitais, que procuram reverter em intenções mentais para deles se desprenderem. A atividade é uma provação subjetiva, mediante a qual o indivíduo avalia a si próprio e aos outros, para ter a oportunidade de vir a realizar o que deve ser feito. As atividades suspensas, contrariadas ou impedidas – até mesmo, as contra atividades – devem ser incluídas na análise. Por que negar a qualidade de atividade real à atividade não realizada? A atividade subtraída, ocultada ou recuada, nem por isso está ausente; ela está, com todo o seu peso, na atividade presente. (CLOT, 2010, p. 104).
Isso se dá porque, como bem salienta Vygotsky (apud CLOT, 2010, p. 103), “o
homem está pleno, a cada minuto, de possibilidades não realizadas”, de modo que o
comportamento é o sistema de reações vencedoras dentre todas as outras possíveis. Estas, por
sua vez, formam resíduos incontrolados, que exercem uma forte influência na atividade do
sujeito. Assim, os aspectos da atividade docente de Cássia que não aparecem na atividade
realizada, observada e analisada nos episódios, nem por isso deixam de ser parte constituinte
de sua atividade real. O processo de autoconfrontação pretende, justamente, conhecer as
possibilidades e os conflitos que tencionam e constituem a atividade, por meio de sua
transformação. O objetivo é, portanto, transformar para compreender. Segundo o relato de
Cássia, ao abrir um espaço de análise e reflexão acerca de suas próprias práticas pedagógicas,
a autoconfrontação possibilitou-lhe modificar certos aspectos de sua atuação como docente.
Ao discorrer sobre o processo de ACS, a professora afirmou ter gostado muito dessa
137
experiência: “fez só favorecer, porque me fez perceber: ‘ah, naquele momento, eu poderia
ter feito tal coisa, poderia ter sido feito assim’”. Então, foi muito bom!”.
Ao que tudo indica, o processo de autoconfrontação foi muito significativo para a
professora. Por meio dele, Cássia percebeu novas possibilidades de atuar em sala de aula e de
atingir seus objetivos junto aos alunos. Conforme se evidenciou em seu discurso, buscar
constantemente melhores formas de ensinar parece ser um ponto fundamental em sua prática
docente: Foi muito bom! Foi importante, porque, às vezes, a gente vai fazendo as coisas, achando que está tudo muito bom, e não para nem para refletir tanto... E assim, agora foi muito bom, porque eu comecei a perceber, por exemplo, nas aulas o que poderia ter sido diferente, o que poderia ter feito... Me fez refletir mais sobre, pensar ainda mais neles, nos alunos.
Fica claro, portanto, que a possibilidade de refletir sobre a própria atuação docente,
tendo como suporte as imagens gravadas das aulas, permitiu à professora, se não uma
ressignificação de sua atividade, ao menos uma abertura nessa direção.
3.6 Análise internúcleos
Conforme a proposta metodológica de Aguiar e Ozella (2006), após a realização da
análise de cada um dos núcleos de significação anteriormente apresentados, ou seja, da
análise intranúcleos, cabe, agora, proceder a uma análise que articule os núcleos de
significação entre si, ou seja, proceder a uma análise internúcleos. O objetivo, aqui, é articular
alguns temas e conteúdos que permearam os núcleos anteriormente examinados, com o intuito
de revelar aspectos peculiares, semelhantes, complementares e/ou contraditórios da forma de
pensar e agir da professora participante da pesquisa. De acordo com Aguiar e Ozella (2006, p.
231), o procedimento de análise internúcleos pretende explicitar: [...] semelhanças e/ou contradições que vão, novamente, revelar o movimento do sujeito. Tais contradições não necessariamente estão manifestas na aparência do discurso, sendo apreendidas a partir da análise do pesquisador. Do mesmo modo, o processo de análise não deve ser restrito à fala do informante, pois ela deve ser articulada (e aqui se amplia o processo interpretativo do investigador) ao contexto social, político, econômico, em síntese, histórico, que permite acesso à compreensão do sujeito na sua totalidade.
Dessa forma, a análise internúcleos consiste em um movimento analítico-
interpretativo por parte do pesquisador, que almeja avançar “do empírico para o
138
interpretativo, isto é, da fala para seu sentido” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 231). Os
autores revelam, ainda, a importância de articular não apenas os temas contidos nos diversos
núcleos de significação mas também os elementos de sentidos que emergem das experiências
historicamente vivenciadas pela professora em diferentes espaços sociais: Caminhando na compreensão dos sentidos, relembramos a importância da análise das determinações constitutivas do sujeito, e para isso é importante apreendermos as necessidades, de alguma forma, colocadas pelos sujeitos e identificadas a partir dos indicadores. Entendemos que tais necessidades são determinantes/constitutivas dos modos de agir/sentir/pensar dos sujeitos. São elas que, na sua dinamicidade emocional, mobilizam os processos de construção de sentido e, também, as atividades do sujeito. (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 232).
Assim, a partir da articulação de temas que atravessaram diferentes núcleos de
significação e sempre considerando o contexto social e histórico mais amplo e o referencial
teórico adotado, procura-se, aqui, apreender os movimentos do sujeito, de modo a tornar
possível uma aproximação dos sentidos e significados atribuídos pela professora às
“dificuldades de aprendizagem” dos alunos.
Diversos aspectos dos conteúdos que permearam os núcleos de significação
mostraram-se passíveis de articulação. O primeiro deles refere-se à formação docente e às
relações institucionais, ou seja, articula conteúdos do núcleo 1 – denominado “A importância
da teoria como suporte para a prática pedagógica: ‘tudo que eu aprendo, eu procuro colocar na
sala de aula”’ – e do núcleo 4, “Relações institucionais mediadoras da atividade docente:
‘Tem gente que tem medo, então não quer mudar”’. A partir da articulação dos conteúdos
desses dois núcleos, é possível perceber que a transformação do gênero docente e a
instituição, no âmbito escolar, de uma nova cultura de colaboração (discutida no núcleo 4)
encontram-se diretamente relacionadas à formação docente – relatada no núcleo 1 – pela qual
passavam as professoras da escola investigada. De fato, as mudanças na atividade das
professoras – proporcionadas tanto pela formação profissional quanto pela substituição da
equipe gestora – resultaram na transformação da escola, de suas práticas e, ainda, da cultura
escolar como um todo. Dessa forma, esses dois processos não podem ser compreendidos
separadamente, uma vez que um se encontra profundamente enraizado no outro.
No decorrer da análise do núcleo 1, evidencia-se que a passagem pelo processo de
formação inicial e continuada provocou transformações na atividade docente de Cássia. A
professora discorreu, repetidamente, acerca da importância da fundamentação teórica para o
desenvolvimento de sua prática profissional, ressaltando que a formação até então realizada
139
em Pedagogia lhe permitiu compreender as questões pedagógicas, o que, por sua vez, a levou
a implementar novas práticas em sala de aula. Cássia relatou, também, que a formação
continuada desempenhava, para ela, um importante papel, por permitir que as questões e
dúvidas geradas na e pela prática cotidiana fossem abordadas nesse espaço formativo. Em
razão disso, a professora afirmou que foi capaz de perceber que teoria e prática constituem o
aspecto central da formação docente. Compreende-se, portanto, que a perspectiva da práxis
proporcionou uma profunda reformulação da atividade docente de Cássia.
Na análise do primeiro núcleo, fica claro, também, que a formação docente teve um
papel transformador não só para Cássia como também para as colegas de trabalho. A
professora enfatizou que as mudanças ocasionadas pela formação docente não incidiram
apenas em sua atividade, mas também na das demais professoras que estavam passando pelo
mesmo processo. A formação inicial e continuada, entre outras coisas, abriu espaço para uma
reflexão coletiva sobre os problemas enfrentados no cotidiano da escola. Essa possibilidade
de refletir em grupo constituiu, certamente, um fator determinante na transformação da
cultura escolar, com fortes implicações para a mudança de gênero profissional na instituição.
Assim, a substituição do antigo diretor por uma nova diretora – apontada no núcleo 4
como um fator central na transformação da cultura escolar – não parece ter sido, em si
mesma, suficiente para gerar tão profundas mudanças. Apenas quando se observa a alteração
da equipe gestora de maneira articulada com as transformações na prática pedagógica
desencadeadas pela formação docente é que se pode compreender a instauração de uma nova
cultura de colaboração no bojo da instituição escolar. Da mesma forma, a escolha de uma
nova coordenadora pedagógica, eleita dentre as professoras da escola, parece relacionar-se
diretamente à formação docente. Com base nos estudos teóricos realizados, as professoras
chegaram à conclusão de que era necessário eleger para esse cargo alguém capaz de
compreender as novas perspectivas adotadas pelo corpo docente e apto a assumir uma postura
cooperativa e colaborativa na tomada de decisões relativas ao cotidiano escolar.
Outro aspecto concernente aos núcleos 1 e 4 que merece atenção é a relação com as
novas professoras. Segundo o relato de Cássia, elas ainda não haviam passado pelo processo
de formação inicial e, de certa forma, se recusavam a assumir o novo gênero escolar. Cássia
atribuía à falta de formação de tais professoras essa resistência em participar da cultura
colaborativa instaurada pelas demais. De fato, como não haviam ressignificado sua atividade
docente, provavelmente as novas professoras se encontravam presas às velhas concepções e
aos anteriores padrões de conduta, já abandonados por aquelas que tiveram a oportunidade de
140
passar pela formação. Fica evidente, mais uma vez, a forte relação que se estabelece entre
formação docente e instauração de um gênero profissional renovado, pautado pela
colaboração entre professores, o que amplia o poder de agir de cada um.
É possível inferir que o antigo diretor cerceava toda e qualquer iniciativa das
professoras, de forma a atividade docente encontrava-se desvitalizada. Ora, como bem
salienta Clot (2010, p. 16), o sentido da atividade para o sujeito está diretamente relacionado a
seu poder de agir, de modo que “esvaziada de seu sentido, a atividade do sujeito vê-se
amputada de seu poder de agir, ou seja, os objetivos da ação em vias de se realizar ficam
desvinculados do que é realmente importante para os sujeitos”. Portanto, ao gerar uma
ressignificação do trabalho, a formação docente parece ter aumentado significativamente o
poder de agir das professoras em relação a sua atividade profissional, que foi revitalizada.
Dessa forma, pode-se afirmar que existe uma relação dialética entre formação docente
e transformação do gênero profissional constituído na escola, pois, ao produzir uma
ressignificação do trabalho pedagógico, a formação aumentou o poder de agir das professoras,
o que, por sua vez, incidiu no gênero e na cultura escolar. Tal processo também reconfigurou
os sentidos e significados constituídos pelas professoras. A partir disso, o poder de agir das
professoras também aumentou, provocando mudanças em seus sentidos e significados,
mudanças essas que, por sua vez, produziram transformações na cultura escolar. A
substituição da equipe gestora parece ter sido, assim, providencial, por ter permitido que as
mudanças de fato se instituíssem: o diretor antigo dificultava sobremaneira a instauração de
uma cultura pautada pela colaboração. Desse modo, a formação docente, relacionada
diretamente à questão da unidade entre teoria e prática, ou seja, à práxis, foi um aspecto que
desempenhou um papel transformador concreto na realidade escolar. Logo, a alteração da
equipe gestora e o processo dialético de apropriação do arcabouço teórico da Pedagogia –
além de seu emprego em novas práticas – possibilitaram, em conjunto, o desenvolvimento da
atividade docente e a transformação do gênero profissional ali constituído.
O núcleo que trata da questão da formação docente relaciona-se também ao núcleo 3:
“Atividade docente: ‘Eu invisto muito no trabalho em grupo, porque no grupo tem sempre
alguém que está um pouco mais na frente”’. A articulação dos conteúdos desses dois núcleos
diz respeito às mudanças na atividade docente de Cássia provocadas pelo ingresso no curso de
Pedagogia. No terceiro núcleo, Cássia discorreu a respeito das práticas pedagógicas que
configuravam sua forma de ensinar no cotidiano em sala de aula e relatou que diversas delas
eram pautadas justamente pelo conhecimento adquirido durante a formação. Dentre essas
141
práticas, é possível citar, como exemplo, as atividades em duplas ou grupos de alunos,
frequentemente empregadas pela docente, embasadas em teorias pedagógicas por ela
aprendidas na faculdade. Pode-se ressaltar, também, a estratégia de relacionar, sempre que
possível, os conteúdos ministrados em aula com os conhecimentos prévios dos alunos e sua
vivência cotidiana fora do espaço escolar. Ambas as estratégias fundamentam-se nos
conhecimentos apropriados por Cássia no decorrer de sua formação docente e constituem
práticas bastante positivas para o aprendizado dos alunos em sala de aula. Assim, ao longo da
análise do núcleo 3, evidencia-se a importância do processo de formação para o
desenvolvimento e o aprimoramento dessas práticas, quando contrastadas às realizadas
enquanto ela ainda era uma professora leiga.
No entanto, a partir da articulação do primeiro e do terceiro núcleos, aparece uma
contradição no discurso de Cássia: no primeiro núcleo, a professora mencionou,
enfaticamente, o papel essencial da formação docente para o desenvolvimento de uma prática
profissional de boa qualidade. Ela afirmou, então, que o acesso ao referencial teórico e
metodológico da Pedagogia havia lhe proporcionado a necessária vinculação entre teoria e
prática, a qual acarretou profundas e positivas transformações em sua atividade docente.
Entretanto, no núcleo 3, Cássia relatou que seu momento de maior realização profissional
ocorreu na escola da zona rural, quando conseguiu alfabetizar a turma inteira. Essa realização
se deu, no entanto, antes de todo seu processo de formação docente, pois, até aquele
momento, ela nunca havia tido contato com as teorias educacionais – um exemplo disso pode
ser encontrado em sua metodologia de ensino: a cartilha era seu único instrumento
pedagógico. Além disso, naquele momento, ela ainda utilizava a silabação, método que ela
criticou enfaticamente durante a coleta e a produção dos dados. Evidencia-se, paulatinamente,
em seu discurso, uma contradição: a formação é assinalada como um fator determinante da
docência de boa qualidade, mas o mais importante feito de sua carreira – a alfabetização de
uma turma inteira da zona rural – ocorreu sem a “interferência” do saber acadêmico, apenas
com base em métodos considerados, por ela mesma, limitados e ultrapassados.
Essa divergência em sua fala fica mais aguda quando se considera que seus relatos
foram feitos durante o período em que a professora passava por formação inicial e continuada,
dois processos extremamente valorizados por Cássia. Não obstante, ela se preocupava muito
com a possibilidade de não ser capaz de repetir a mesma façanha: chegar ao fim do ano letivo
com todos os alunos alfabetizados. Ora, se Cássia foi capaz de alfabetizar a turma toda
quando ainda não passara por nenhuma formação, por que não estaria apta a repetir o mesmo
142
feito após se apropriar do referencial teórico e metodológico da Pedagogia? Essa contradição
– entre o valor do arcabouço teórico para a qualidade da prática pedagógica e a realização de
uma docência capaz de alfabetizar a todos sem contar com nenhum apoio teórico – parece ser
um aspecto revelador dos sentidos e significados por ela constituídos acerca de sua atividade.
O tema da formação docente, que constitui o núcleo 1, também se articula com os
conteúdos do núcleo 2: “Preciso pensar primeiro nos que têm mais dificuldade”. Nele, Cássia
relatou a mudança de perspectiva em relação às “dificuldades de aprendizagem”. Como se
pode depreender da análise desse segundo núcleo, a professora conferiu, após o início da
formação profissional, uma nova significação às “dificuldades” no aprender, que passaram a
ser entendidas não mais como problemas ou empecilhos, mas como diferenças de ritmos na
aprendizagem dos alunos. Vale ressaltar que, embora a professora não tivesse se apropriado
completamente de práticas pedagógicas coerentes com a nova significação, ela apostava
fortemente na perspectiva de que “todos os alunos são plenamente capazes de aprender, ainda
que em diferentes ritmos”. Ainda assim, se o processo de formação docente implicou
transformações no significado das “dificuldades de aprendizagem” – que levaram, por sua
vez, à ressignificação da prática docente –, o arcabouço teórico da Pedagogia, com o qual
Cássia passou a ter contato no decorrer de sua formação, não fora, até o momento da coleta de
dados, suficiente para conferir aos pais um novo papel na aprendizagem de seus filhos. A
família continuava a ser vista como figura central na produção e manutenção das dificuldades
dos alunos. Outro aspecto não superado pela professora diz respeito à relação entre as
características subjetivas dos alunos e suas “dificuldades de aprendizagem”: as velhas
significações persistiam.
A análise dos conteúdos dos núcleos de significação 2 e 3 mostra aspectos comuns a
ambos, permitindo sua articulação na análise internúcleos. Um tema que os perpassa refere-se
à dificuldade de Cássia para administrar uma sala de aula repleta de alunos em diferentes
ritmos de aprendizagem e com diferentes necessidades educativas. Nos dois núcleos, essa
questão foi abordada pela professora, que afirmava, muitas vezes, que a boa qualidade de seu
trabalho ficara prejudicada em função da quantidade e diversidade de demandas das crianças,
que interrompiam suas aulas constantemente. Alguns exemplos foram citados por ela, tais
como a desordem provocada pelas crianças que terminavam suas atividades antes das demais,
as interrupções provocadas por alunos que brigavam entre si, as solicitações incessantes para
sair da sala, a permanente demanda por ajuda. Certos indicadores desses núcleos ilustraram o
fato de que Cássia parecia se sentir incapaz de administrar a demanda de atenção por parte
143
dos alunos, que se somavam às demandas externas, contribuindo igualmente para as
frequentes interrupções nas atividades de aula.
Ainda nos núcleos 2 e 3, é possível articular os indicadores que versam sobre a
questão referente aos “diferentes ritmos de aprendizagem”. No segundo núcleo, Cássia
explicou que considerava que todos os alunos estavam aprendendo, ainda que em diferentes
ritmos, salientando que pretendia planejar e desenvolver atividades diferenciadas, capazes de
contemplar as diferenças encontradas nas crianças. Por outro lado, o núcleo 3 trouxe à tona
sua preocupação em não conseguir alcançar a meta da Secretaria Municipal de Educação:
alfabetizar a turma toda até o final do ano. Tal como aqui se entende, a articulação dos
conteúdos desses dois núcleos evidencia, mais uma vez, a contradição já discutida na análise
do núcleo 3 e que incide na meta de alfabetizar 100% dos alunos. Se Cássia acreditava que
todos os alunos estavam aprendendo, ainda que em diferentes ritmos, a que se deveria a
preocupação em atingir uma única meta para todos? Mais uma vez, isso parece sugerir um
aspecto bastante contraditório no discurso e na prática da professora, que se apresenta,
possivelmente, como um aspecto constituinte dos sentidos e significados que ela atribui a sua
atividade docente. Conforme discutido no terceiro núcleo, a preocupação de Cássia em atingir
a meta de alfabetizar a todos até o fim do ano letivo parece relacionar-se mais a aspectos
constituintes de sua subjetividade – como sua própria expectativa em relação à qualidade de
seu trabalho e à possibilidade de comprometer a imagem de excelente professora, construída
junto à equipe gestora e ao corpo docente da escola.
A articulação dos núcleos 3 e 4 demonstra, também, elementos divergentes no
discurso da professora. No decorrer do núcleo 4, Cássia relatou que existia, na escola, uma
nova cultura pautada pela colaboração e pela cooperação entre professores e equipe gestora.
No entanto, no núcleo 3, quando questionada sobre possíveis atividades pedagógicas que
gostaria de realizar, mas que, por alguma razão, não realizava, Cássia informou que gostaria
de poder sair da escola com os alunos, organizar passeios e excursões, a fim de relacionar
certos conteúdos trabalhados em aula com a realidade concreta das crianças. Contou, ainda,
que só não desempenhava essas atividades extraclasses por medo de realizá-las sozinha,
assumindo integralmente a responsabilidade pelas crianças. Considerando que existia, no
interior da instituição escolar, uma cultura de colaboração, por que não se pensou em planejar
tais atividades de modo a envolver mais professoras? Cássia poderia fazer os passeios e
excursões com seus alunos e outras professoras e crianças, com atividades conjuntas.
144
Desse modo, as docentes ajudar-se-iam mutuamente, dividiriam funções e
responsabilidades. Cabe questionar, então, se a impossibilidade de Cássia em levar adiante
atividades extraclasses não ocorreria por falta de planejamento ou de colaboração entre as
professoras. Essa perspectiva pode levar à conclusão de que a cultura da colaboração, embora
fosse muito desejada, era também muito incipiente na instituição. Além disso, cabe mencionar
que o medo, impeditivo relatado pela professora para realizar atividades fora da escola,
aparece como um aspecto constitutivo de sua subjetividade. Conforme salientam Aguiar e
Ozella (2006), sentidos e significados são constituídos pela unidade contraditória do
simbólico e do emocional. Assim, é possível inferir que a oposição entre o medo de assumir
integralmente a responsabilidade pelos alunos fora do contexto da escola e o desejo de
realizar atividades extraclasses configuram elementos de sentidos e significados constituídos
por Cássia acerca de sua atividade.
No que concerne à articulação entre o núcleo 5 – “Reflexões sobre a prática após a
AC: ‘Eu poderia ter...’” – e os demais núcleos de significação, pode-se relacionar certas
reflexões de Cássia sobre sua atividade docente, proporcionadas pela autoconfrontação, a
vários conteúdos de diversos núcleos. Vale salientar que o quinto núcleo apresenta certas
peculiaridades em relação aos demais, pois se restringe à análise que Cássia realiza a respeito
de sua própria atividade. Ao passo que todos os núcleos de significação contêm indicadores
retirados não só da entrevista mas também das sessões de autoconfrontação, o núcleo 5 é
composto apenas por indicadores fornecidos pela ACS, ou seja, por reflexões desenvolvidas
naquele contexto específico. Dessa forma, todas as falas da professora que originaram esse
núcleo se baseiam nas imagens por ela analisadas. É interessante ressaltar que, como explica
Soares (2011, p. 274): [...] o sentido é uma construção histórica e subjetiva de cada sujeito. Por isso, ao se autoconfrontar com imagens de si mesma na atividade de aula, bem como com os comentários de sua colega de profissão, a professora resgata e analisa não apenas a atividade realizada num determinado momento, mas todo um conjunto de elementos que, historicamente, a constitui como sujeito. Em outras palavras, os diversos elementos de sentido que emergem de sua fala durante as sessões de autoconfrontação simples e cruzada, elementos esses que, dialeticamente articulados, se configuram como sentidos constituídos por ela, têm a ver não apenas com a atividade observada, tampouco com o momento em que ela assiste ao vídeo e é convidada a refletir sobre suas ações e, sim, com o conjunto das experiências docente que configura a sua dimensão histórico-subjetiva.
Durante a realização da ACS, Cássia refletiu acerca de aspectos de sua atividade que
se relacionam a conteúdos de outros núcleos. Dentre essas reflexões, destaca-se aquela em
145
que a docente se questionou sobre sua estratégia de chamar alunos para responder a questões
na lousa. Na análise do núcleo 2, nota-se que a professora frequentemente solicitava aos
alunos, especialmente àqueles mais atrasados em termos de aprendizagem, que se dirigissem
ao quadro-negro para resolver e/ou compartilhar com o resto da turma as soluções dadas a
alguns problemas. No conteúdo do segundo núcleo, a professora justificou que o emprego
dessa prática elevava a autoestima das crianças, pois, indo à lousa, elas se sentiam
importantes e valorizadas. A observação realizada pela pesquisadora das aulas de Cássia
confirmou o fato de que os alunos apreciavam a possibilidade de se destacar, respondendo às
questões na lousa. Por outro lado, essa mesma prática pedagógica foi alvo de análise por parte
de Cássia no decorrer da ACS, conforme fica claro no quinto núcleo. O primeiro episódio
analisado na autoconfrontação ilustrou uma situação na qual não se verificou essa reação: o
aluno chamado ficou constrangido por ser chamado à frente. Assim, ao assistir a essa cena e
analisá-la, Cássia questionou muito sua própria estratégia, chegando à conclusão de que não
deveria ter chamado aquele aluno naquele dia específico. Assim, nota-se que foi aberto, na
ACS, um espaço de reflexão sobre práticas e estratégias comumente empregadas pela
professora em sala de aula.
Outro aspecto da atividade docente criticado por Cássia no núcleo 5 refere-se às
práticas seguidas por ela no segundo episódio da ACS. Ali, a professora afirmou que deveria
ter lançado mão de materiais concretos, que poderiam ter auxiliado as crianças a resolver o
problema de Matemática. No núcleo 3, por outro lado, ela disse que procurava realizar,
sempre que possível, atividades pedagógicas que fossem lúdicas e que se relacionassem à
realidade concreta dos alunos. Analisando o episódio apresentado na ACS (ver núcleo 5), a
professora percebeu que, ao não disponibilizar material concreto na solução dos problemas
matemáticos, havia infringido seus próprios parâmetros. Esse fato chocou-se com sua própria
concepção de como deveriam ser desenvolvidas as atividades, algo de que Cássia tomou
ciência durante a autoconfrontação. Assim, foi-lhe possível perceber a contradição entre seu
discurso (núcleo 3) e a atividade analisada (núcleo 5).
Este último núcleo se articula, também, ao núcleo 2, que trata de conteúdos
concernentes às “dificuldades de aprendizagem” ou aos “diferentes ritmos de aprendizagem”.
A relação entre esses dois núcleos repousa na reflexão da professora sobre a prática de
separar, nas atividades pedagógicas, crianças que se encontram em diferentes níveis de
aprendizado, priorizando as mais atrasadas. No núcleo 5, Cássia avaliou que essa é uma
146
prática ineficaz e contraproducente, pois as crianças que não haviam sido chamadas a
participar se sentiram insatisfeitas, algo que acabou por tumultuar a sala de aula.
Por meio da articulação dos conteúdos abordados no núcleo 5 com os conteúdos dos
demais núcleos de significação, percebe-se que o processo de autoconfrontação permitiu que
a professora refletisse criticamente acerca de vários aspectos de sua atividade. Essa reflexão e
análise da própria atividade docente perpassaram amplos aspectos constituintes de sua prática
profissional, abrindo espaço para a constituição de novos elementos de sentidos. Conforme
explica Soares (2011, p. 275): [...] convém ressaltar que, com as sessões de autoconfrontação, não tínhamos a pretensão de levar a professora à produção de novos sentidos, de modo que pudesse configurar uma nova subjetividade a partir da imediaticidade da aplicação desse procedimento. Havia, contudo, uma intenção de contribuir com a sua mobilização, colocando-a na posição de refletir sobre muitas de suas ações. E, assim, potencializar a abertura de novos caminhos, isto é, a constituição de novos elementos de sentido, que pudessem contribuir para a mudança qualitativa em sua forma de mediar a atividade docente. [...] Mesmo não tendo essa pretensão [...] partimos do pressuposto de que a professora, mediada pela experiência afetivo-cognitiva gestada nas sessões de autoconfrontação, poderia constituir novos elementos de sentido que, no decurso do processo histórico, possivelmente viriam a se articular e configurar novos sentidos.
De acordo com essa perspectiva e com base na articulação do núcleo de significação 5
com os demais, é possível afirmar que a ACS realmente potencializou a abertura de um
espaço para a constituição de novos elementos de sentido, precisamente por permitir que
Cássia repensasse e analisasse sua atividade docente. Esses novos elementos podem vir a
transformar os sentidos e significados já constituídos sobre sua docência, configurando novos
sentidos para sua atividade.
147
CAPÍTULO V
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O principal objetivo desta pesquisa consistiu em investigar os sentidos e os
significados constituídos por uma professora do Ensino Fundamental I em relação às
“dificuldades de aprendizagem” de seus alunos. Buscou-se, desse modo, apreender as
configurações subjetivas que constituem a teia de significações produzidas pela professora
perante as experiências historicamente vivenciadas por ela em seus diversos espaços sociais.
É importante ressaltar que apreender os sentidos e os significados não implica alcançar uma
resposta única, definida e coerente, uma vez que a investigação dessas configurações
históricas e subjetivas pretende chegar às expressões do sujeito, as quais são, muitas vezes,
contraditórias, parciais e complexas (AGUIAR; OZELLA, 2006).
A aproximação das configurações subjetivas que constituem os sentidos produzidos
pelo sujeito parte de uma base material desordenada – o empírico – para se encaminhar em
direção ao interpretativo – ou seja, o concreto pensado – para, de posse dele, voltar ao
empírico e verificar se ele se tornou inteligível. Nesse caminho, um aspecto central a ser
examinado é o sentido que o sujeito confere a alguns ou a vários aspectos de sua vivência, que
se apresenta mediante uma fala plena de contradições. Assim, de acordo com Aguiar e Ozella
(2006, p. 225):
[...] a apreensão dos sentidos está pautada em uma visão que tem no empírico seu ponto de partida, mas com clareza de que é necessário irmos para além das aparências, não nos contentarmos com a descrição dos fatos, mas buscarmos a explicação do processo histórico de constituição do objeto estudado.
Ainda segundo esses autores, “nossa tarefa, portanto, é apreender as mediações sociais
constitutivas do sujeito, saindo assim da aparência, do imediato, indo em busca do processo,
do não dito, do sentido” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 227). A busca pela apreensão dos
sentidos é possível a partir da análise e da interpretação dos significados, pois estes últimos,
sendo a parte mais estável e objetiva dos sentidos, contam mais do que aparentam, revelando
os processos mais subjetivos que os constituem. A análise dos significados socialmente
construídos permite caminhar em direção às zonas mais instáveis, fluidas e profundas – as
zonas de sentido. Para tanto, procura-se desvelar semelhanças e contradições envolvidas no
movimento constitutivo da subjetividade dos sujeitos. Aguiar e Ozella (2006, p. 231) afirmam
148
que “tais contradições não necessariamente estão manifestas na aparência do discurso, sendo
apreendidas na análise do pesquisador”.
Na perspectiva teórica adotada, as contradições podem ser compreendidas como uma
composição de forças contrárias, que se inter-relacionam possibilitando o movimento, o
processo de mudança que caracteriza os fenômenos. Estudar os fenômenos em seu
movimento, em seu processo histórico, requer, como condição fundamental, que se
apreendam as contradições que os constituem. A contradição é, portanto, vista como a
unidade dos contrários, ou seja, a afirmação e a negação coexistindo no mesmo ser, no mesmo
momento. A luta de forças contrárias, característica das contradições, ocasiona um
movimento dialético da tese e da antítese, levando a uma síntese qualitativamente superior, ou
seja, à superação de uma e de outra. Como são constitutivas das redes de sentido construídas
pelos sujeitos, as contradições, ao serem por eles apreendidas, podem ensejar a possibilidade
de alcançar novas sínteses – que nada mais são do que a superação das contradições .
Partindo do empírico, ou seja, dos dados coletados na entrevista, na ACS e na ACC,
empreendeu-se, aqui, um movimento analítico-interpretativo, na tentativa de evidenciar como
era o discurso da professora, sua atividade docente e, em especial, as diversas contradições
presentes em um e na outra. Foi preciso, portanto, não só articular os conteúdos de sua fala
em diferentes momentos da coleta de dados mas também relacionar seus relatos com as
atividades realizadas. É interessante observar que as contradições percebidas na análise não
estavam explícitas na fala ou na atividade da participante, de modo que só foi possível acessá-
las quando se articularam e interpretaram os conteúdos nelas presentes.
Por meio da análise dos núcleos de significação, percebe-se que a formação docente,
tanto a inicial quanto a continuada, desempenha, de fato, um papel fundamental na qualidade
da atividade docente. As transformações relatadas por Cássia em sua prática pedagógica após
a formação evidenciam que esse processo incidiu de maneira muito positiva em sua atividade,
provocando nela mudanças profundas. Essa mudança se deve, principalmente, ao fato de a
formação ter proporcionado à professora relacionar, cotidianamente, as teorias apropriadas na
academia a sua prática na escola. A perspectiva assumida pela docente após a formação – a de
que há uma relação indissociável entre teoria e prática – acarretou transformações qualitativas
em sua maneira de desempenhar sua atividade profissional. Segundo seu relato, essa mudança
ocasionada pela práxis – a relação entre teoria e prática, a qual foi apropriada durante a
formação docente – incidiu não apenas em sua atividade mas na de todas as professoras que
passaram pelo mesmo processo.
149
A análise demonstra que a formação acarretou um aumento do poder de agir das
docentes, o que, por seu turno, permitiu a transformação do gênero profissional da instituição.
A mudança na perspectiva das professoras deu-se de maneira tão profunda que ocasionou
também a transformação da cultura escolar. Fica claro, portanto, o poder da formação docente
de converter um trabalho pedagógico bem-intencionado, mas medíocre, em um trabalho de
boa qualidade. É importante salientar que foram tantas e tão profundas as transformações
ocorridas em razão do processo formativo relativamente curto de Cássia, que ela mesma se
questiona como isso foi possível.
Vale notar que, apesar das transformações já relatadas na formação profissional da
professora, a análise de sua atividade docente apresenta, ainda, uma série de contradições
entre aquilo que ela acreditava fazer e/ou deveria fazer e o que, de fato, conseguia realizar.
Torna-se claro que a professora se apropriou de muitos, mas não de todos os aspectos do
arcabouço teórico da Pedagogia, a despeito de buscar, constantemente, fazer a transposição,
frequentemente difícil, dos princípios teóricos do Construtivismo para sua prática docente
cotidiana. Entretanto, ela continuava a empregar determinados modos de ensinar seus alunos
do 1º ano do Ensino Fundamental que se chocavam frontalmente com seus novos
conhecimentos acadêmicos. É importante ressaltar que a presença dessas contradições entre
os preceitos teóricos da Pedagogia e a prática cotidiana dos professores não é, de forma
alguma, uma característica individual de Cássia: ela circula em nossa literatura especializada
desde a década de 1970 e, desde a de 1950, na estrangeira.
Contudo, o objetivo da presente pesquisa não consistiu apenas em perceber as
contradições constitutivas da atividade docente, a fim de poder se aproximar dos sentidos e
significados atribuídos por Cássia às “dificuldades de aprendizagem” dos alunos. A pretensão
era, também, verificar se a utilização da técnica de autoconfrontação ensejaria, na
participante, um movimento de ressignificação. E, efetivamente, observa-se que o processo de
autoconfrontação permitiu que a professora, ao assistir a si mesma e ao analisar sua ação em
sala de aula, percebesse aspectos contraditórios que, de outra forma, dificilmente seriam
acessados. Ao assistir a sua atividade, Cássia deu-se conta de uma série de aspectos que não
estavam de acordo com as perspectivas que pensava ter adotado, situação que lhe provocou
reflexões e questionamentos, abrindo espaço para eventuais transformações nos sentidos
constituídos sobre sua docência e sobre seus alunos “com dificuldades”.
Apesar das grandes possibilidades que a autoconfrontação oferece para a
ressignificação e a transformação da atividade docente, essa técnica tem como aspecto
150
limitador o fato de que apenas as contradições evidenciadas nos episódios selecionados, vistos
no vídeo, foram acessadas pela professora. Todas as demais – as contradições entre seus
vários discursos e entre eles e sua prática pedagógica – não puderam ser apreendidas por
Cássia e permaneceram ignoradas. Como se sabe, se ignoradas, as contradições não
configuram um problema para a pessoa e seguem, desse modo, inalteradas. Assim, apenas as
cenas analisadas permitiram que ela, ao se ver em ação, refletisse sobre suas metas e, à luz
dos resultados obtidos, entrasse em contato com as contradições entre o desejado e o
realizado. As demais, como já mencionado, não puderam ser analisadas pela professora e,
dessa forma, não geraram espaço para uma possível ressignificação. A autoconfrontação,
como se pode inferir, contribui para o desenvolvimento e a transformação da atividade
docente, mas apenas daquela que foi alvo de observação e análise pelo sujeito.
Contradições, por sua vez, não são catastróficas, visto serem inerentes aos fenômenos.
Sua existência não implica, necessariamente, uma avaliação negativa da atividade de Cássia.
Ao contrário: observou-se ao longo desta investigação que a professora apresentava uma série
de características extremamente positivas, que a diferenciavam da maioria dos professores
que têm participado das pesquisas do grupo de estudo da PUC. Cássia quer melhorar sua
atuação, acolhe de bom grado sugestões, procura entender o que lhe é confuso. Tem
disposição para mudar a atividade quantas vezes isso se fizer preciso, parece alguém sempre
em busca de se superar. Ela se percebe em constante transformação e, ao se deparar com a
contradição, busca sua superação.
Quando aspectos de suas práticas pedagógicas cotidianas eram observados pela
pesquisadora, percebia-se o planejamento cuidadoso de atividades que procuravam
contemplar todos os alunos em seus diversos ritmos e formas de aprender; além da tentativa
de sempre apresentar-lhes atividades lúdicas, com muito emprego de materiais concretos, para
que pudessem relacionar os conhecimentos científicos aos espontâneos. Via-se como a
professora se empenhava em utilizar, no cotidiano da sala de aula, os conteúdos apropriados
no decorrer de sua formação pedagógica. Cássia demonstrava forte compromisso com a
educação de seus alunos, percebia que deixar uma criança de lado implicaria derrota política e
ética diante do grupo inteiro. Todos esses aspectos fazem dela uma professora especial, que
acredita em seu ofício e se preocupa com o futuro das próximas gerações. Por isso, quer ser
cada vez melhor.
Ao contrário de tantas outras, que veem a prática como única fonte de conhecimentos
válidos para a docência, Cássia é capaz de perceber e valorizar que a teoria sustenta a prática
151
pedagógica, direcionando-a. Daí a procura por atividades teoricamente bem fundamentadas
para desenvolver junto aos alunos. É no saber teórico que Cássia escrutina respostas para as
questões e os problemas que surgem na e da prática. A perspectiva de práxis assume, para ela,
um papel fundamental: direciona sua conduta profissional. E, justamente, foi essa busca por
constante aprimoramento em seu ofício que a motivou a participar de atividades que poderiam
contribuir positivamente para seu trabalho, caso desta pesquisa e do processo de
autoconfrontação. A disponibilidade para participar desse processo indica que essa professora
não teme o olhar do outro ou as críticas alheias: está aberta a elas, pois sem elas entende que
não há como cumprir o compromisso de ensinar bem a todos os alunos.
Essa aceitação do olhar do outro sobre seu próprio trabalho é um aspecto que distingue
Cássia das demais professoras e indica a valorização do trabalho coletivo, da troca entre
pares, da colaboração recíproca. Logo, pode-se concluir que Cássia procura, com os meios de
que dispõe, melhorar sua atividade docente, sem temer o confronto com as contradições.
Pode-se mesmo afirmar que ela o busca, percebendo que, por meio dele, pode dar um salto de
qualidade e alcançar um novo e melhor patamar para conduzir o processo de ensino-
aprendizagem. Nesse sentido, além de intencionalidade educativa, vê-se nela uma outra: a de
tornar-se uma excelente educadora, traço que a faz se sobressair na massa de professores para
quem a mediocridade é o melhor padrão a seguir.
Essas diferenças, entretanto, não podem ser vistas como os principais determinantes
da atividade profissional de Cássia. Não se trata de voluntarismo, pois só é possível superar as
contradições presentes no real quando o próprio real permite, visto ser ele que as gera.
Superar contradições requer, portanto, condições objetivas para tal: boa formação inicial e
continuada; salário compatível com a importância de educar os adultos de amanhã; um plano
de carreira atraente, uma escola bonita e bem cuidada para alunos e professores, aberta à
comunidade nos finais de semana, com material didático farto, atualizado e em boas
condições para todos os alunos. Uma escola limpa, cheia de luz, muito verde, espaço para
correr e jogar, uma biblioteca bem fornida para que todos possam fruir da leitura. Um espaço
agradável de estar, enfim. São essas condições que podem fazem do magistério uma carreira a
ser seguida por pessoas motivadas, empenhadas, comprometidas ética e politicamente com a
transformação da realidade social. Mas isso tudo é, hoje, no Brasil, um sonho muito distante
da realidade. A escola real é dura, feia, barulhenta, com professoras que lá estão presentes de
corpo, mas não de espírito.
152
Não é de se estranhar, assim, que diversas pesquisas constatem as contradições e não
saibam por que elas não movem os docentes para a tentativa de superação. Se por um lado as
pesquisas apontam, repetidamente, as contradições entre o discurso e a prática docente, por
outro lado não criam as condições para vencer tais contradições. E não o fazem porque agir
diferentemente teria implicações éticas: não se pode apontar para o sujeito as contradições
que permeiam sua prática sem lhe dar condições de lidar com a desestruturação que isso
significa para sua atividade profissional e para a imagem que faz de si mesmo.
As pesquisas científicas ensejam contradições nos sujeitos, mas não podem – nem
devem – fazer que eles tomem delas consciência. Este é um trabalho longo, sistemático e
absolutamente necessário, mas não pode ser empreendido pelo pesquisador, exceto por alguns
que sigam outra proposta metodológica, caso, por exemplo, da pesquisa-ação. Levar os
participantes das pesquisas acadêmicas a entrarem em contato com as múltiplas contradições
que a escola de hoje lhes coloca, sem, no entanto, apresentar-lhes possibilidades efetivas de
agir e de mudar, seria leviandade. Existem limitações na vida acadêmica – tanto objetivas,
como os prazos e as verbas, quanto outras de natureza ética – que impedem o pesquisador de
assinalar problemas e contribuir para sua solução. Desse modo, a pesquisa em Educação
acaba por divulgar conhecimentos para a academia, sem atingir, contudo, os que se encontram
mais diretamente envolvidos: os professores.
Conclui-se, então, que atuar nas contradições do pensar, do sentir e do agir só pode ser
feito com a concorrência de situações materiais propícias, com novos conhecimentos e com a
aprendizagem de novas posturas. Isso é tarefa da formação inicial, a qual, mais uma vez,
ocupa o centro das preocupações dos pesquisadores: como preparar melhor os formadores de
professores? Qual é o papel da Universidade na melhoria da Educação Básica? Como
articular conhecimentos acadêmicos com a realidade das escolas? Essas questões já anunciam
quais são as sugestões para as futuras investigações e estudos na área: focar os formadores
dos futuros professores, de modo que, ao se apropriarem dos conhecimentos elaborados na
academia, tais constructos teóricos possam ser colocados a serviço dos docentes em formação
de maneira sistemática e intencional, para ensejar contradições e permitir que o contato com
elas configure problemas e leve, por sua vez, à possibilidade de transformação. À
Universidade cabe o papel não só de realizar as pesquisas e construir conhecimentos sobre a
realidade educacional. É preciso, também, formar os futuros educadores em licenciaturas
sólidas em termos de conhecimentos científicos e práticas de ensino, para que se graduem
153
dominando teorias e derivando delas rumos de ação, além de empreender o movimento
contrário: por meio da análise da ação, questionar e aprimorar a teoria.
Finalmente, é fundamental investir em políticas públicas que garantam, tanto aos
formadores de professores quanto aos próprios professores, melhores condições de atuar
profissionalmente. Isso implica mais recursos para a educação; mais e melhor formação
docente, capaz de evidenciar o compromisso ético e político inerente ao papel do educador;
escolas mais bem aparelhadas para acolher crianças e jovens e que estes possam contar com a
mediação de um professor valorizado e bem pago ao longo de seu caminho profissional.
Enquanto tais condições não forem garantidas, as pesquisas científicas na área de Educação
continuarão a apresentar apenas as contradições.
Do ponto de vista teórico, cabe investigar melhor por que as contradições
reiteradamente encontradas não propiciam transformações, mesmo que o professor as
conheça. Talvez porque elas não constituam problemas para eles, ao passo que são vitais para
quem pretende transformar a educação. Qualquer que seja a resposta, ela não é nem fácil nem
simples. Algumas hipóteses apontam a importância de romper com a cultura do isolamento
docente, para evidenciar as contradições que não se quer ou não se pode ver. O trabalho
colaborativo entre professores pode, de fato, permitir a apreensão das contradições como
problemas a serem superados, pois o olhar do outro quebra as respostas prontas e os
comportamentos fossilizados, que não são mais produtivos. Isso requer, por sua vez,
considerar os pares como colaboradores e não como fonte de desconfiança.
Outro aspecto fundamental é a formação profissional. A realização de cursos
formativos de boa qualidade pode permitir aos professores perceber as discrepâncias entre o
senso comum, o conhecimento científico e a atividade profissional. Nesse sentido, a técnica
de autoconfrontação mostra-se central para garantir essa apreensão, como já dito. Como seria
emprega-la em situações formativas? A aposta vai nessa direção: se utilizada com a mediação
de um formador bem preparado, em um trabalho sistemático, os próprios professores, ao se
depararem com as contradições, podem ser amparados, acolhidos, empoderados para virem a
superá-las, transformando, portanto, sua atividade. Entende-se que o valor dessa técnica está
na situação em que o professor é colocado: de observado, ele passa a observador, criando um
espaço para refletir sobre sua atividade, ou seja, sobre aspectos da docência que não seriam
acessados de outra forma.
154
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166
ANEXO 1 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA DA PUC-SP SEDE CAMPUS MONTE ALEGRE
Protocolo de Pesquisa nº 426/2011 Faculdade de Educação Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação Orientador(a): Prof.(a). Dr.(a). Claudia Leme Ferreira Davis Autor(a): Maria Fourpome Brando PARECER sobre o Protocolo de Pesquisa, em nível de Tese de Doutorado , intitulado Análise da atividade docente: em busca dos sentidos e significados constituídos pelos professores acerca das “dificuldades de aprendizagem”
CONSIDERAÇÕES APROVADAS EM COLEGIADO
Em conformidade com os dispositivos da Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996 e demais resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde (MS), em que os critérios da relevância social, da relação custo/benefício e da autonomia dos sujeitos da pesquisa pesquisados foram preenchidos.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido permite ao sujeito compreender o significado, o alcance e os limites de sua participação nesta pesquisa.
A exposição do Projeto é clara e objetiva, feita de maneira concisa e fundamentada, permitindo concluir que o trabalho tem uma linha metodológica bem definida, na base do qual sera possível retirar conclusões consistentes e, portanto, válidas.
No entendimento do CEP da PUC-SP, o Projeto em questão não apresenta qualquer risco ou dano ao ser humano do ponto de vista ético.
CONCLUSÃO Face ao parecer consubstanciado apensado ao Protocolo de Pesquisa, o Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP – Sede Campus Monte Alegre, em Reunião Ordinária de 20/12/2011, APROVOU o Protocolo de Pesquisa nº 426/2011. Cabe ao(s) pesquisador(es) elaborar e apresentar ao CEP da PUC-SP – Sede Campus Monte Alegre, os relatórios parcial e final sobre a pesquisa, conforme disposto na Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996, inciso IX.2, alínea “c”, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde (MS), bem como cumprir integralmente os comandos do referido texto legal e demais resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde (MS).
São Paulo, 20 de dezembro de 2011.
Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho
Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-SP.
167
ANEXO 2
Transcrição Entrevista Professora Cássia1 – 1.a serie fundamental 1
P: Bom, primeiro eu gostaria que você me contasse um pouco sobre sua trajetória pessoal, sua
historia de vida, como você chegou até a docência, o que te fez escolher essa profissão, como
foi esse percurso até você se tornar professora?
C: Eu sempre estudei em escola pública, e tive uma professora muito boa... E assim, naquela
época, existia muita discriminação, né? Quando a pessoa era negra... E essa professora só
tinha 3 alunos que tinham uma cor mais clara, e todo mundo era negro mesmo. E ela era de
uma cor misturada, ela tinha a pele mais clara, mas tinha também os descendentes dela que
eram negros, então ela valorizava muito isso. E aí ela tinha muito carinho por todos, e fazia
questão que todos aprendessem. Ela trabalhava no método tradicional, mas que a gente
aprendia principalmente a decodificar e também a valorizar o outro. Ela sempre fazia uma
redação que perguntava: “o que vocês querem ser quando crescer?”, aí eu falava: “eu quero
ser professora igual a senhora”. E aí também que Lençóis não tem muitas oportunidades, aí
quando eu cresci realmente segui essa carreira, não tinha também outras oportunidades... Mas
antes de ser professora eu fui cozinheira, atendente de hotel, recepcionista da Secretaria de
Educação aqui de Lençóis, depois professora.
P: E por que você decidiu abandonar essas outras profissões anteriores e seguir para a
docência?
C: Porque eu antes passei por essas outras experiências porque eu não tinha oportunidade para
ensinar, aí quando surgiu... aí um professor meu veio a minha procura e me perguntou se eu
queria ser professora da zona rural, aí eu aceitei e fui para a zona rural e trabalhei lá 4 anos.
Era um povoado aqui de Lençóis, o nome de lá é Distrito São José, a gente chama lá de Ponte
porque tem uma ponte lá que corta o povoado.
P: E você foi dar aula lá sem ter nenhuma formação especifica?
C: Eu não tinha formação especifica, inclusive ainda não tenho... Estou na área de Pedagogia,
mas ainda não me formei. Estou cursando Pedagogia aqui em Lençóis mesmo. Estou no
sétimo semestre, aí o ano que vem eu concluo.
P: Há quanto tempo você começou a dar aulas nessa escola rural?
1 Nome fictício
168
C: Desde 1997. Faz uns 15 anos. Eu sempre trabalhei com multisseriado, educação de jovens
e adultos, e eu tenho preferência em trabalhar com as séries iniciais, na faixa etária de 5 até 7
anos.
P: E por que essa preferência?
C: Porque eu trabalho com alfabetização, e eu gosto porque eu acho que é a base... Eu gosto
de trabalhar com criança também, adolescente eu já acho que eles são muito agitados
demais... As crianças são agitadas, mas elas compreendem mais, elas respeitam mais... aí eu
gosto mais dessas séries.
P: Ha quanto tempo você trabalha nessa escola?
C: Nessa escola eu trabalho ha 6 anos. Mas assim, esse prédio é do estado e esta emprestado
ao município, e aí eu trabalhava em outro prédio, mas é a mesma escola, José Senna. Aí nessa
escola eu já tenho 8 anos.
P: Você é casada? Tem filhos?
C: Sou casada, tenho 2 filhos, um menino e uma menina, um com 17 e a menina com 15 anos.
O menino também quer seguir a carreira de professor, então ele esta cursando o magistério.
P: E como é a sua carga horária de trabalho?
C: Eu fico 40 horas na escola, e a gente na sexta feira a gente planeja aqui, mas eu dou
continuidade em casa, porque é muita coisa, a gente tem que pesquisar, ver material, e aí na
escola não dá
P: Você prepara as aulas da semana toda às sextas feiras?
C: Aqui eu só faço listar com colegas, com a coordenação pedagógica, ver algumas coisas,
algumas questões especificas de sala de aula, e aí eu levo para casa para poder estar
planejando diariamente as atividades da segunda, terça, quarta, de acordo com o que a gente
discutiu no grupo.
P: E sobra algum tempo livre para você?
C: É corrido, mas sobra, sabe? Porque eu tento organizar bem o tempo... Porque eu também
sou mãe, dona de casa, mulher... Aí tem que organizar o tempo. Também tenho uma mãe que
teve aneurisma cerebral e eu tenho que estar revezando com minhas irmãs para cuidar dela.
P: Você gosta de ser professora?
C: Eu gosto. Eu gosto de trabalhar com crianças... Eu sei que é desvalorizado, é muito
desvalorizada nossa classe, mas eu gosto de trabalhar, eu me sinto muito satisfeita ao ver que
as crianças estão aprendendo... Estão aprendendo de uma maneira diferente, mas estão
aprendendo... E de valorizar isso também, a sala de aula como um todo... Porque antigamente
169
a gente trabalhava de outra maneira, trabalhava com a cartilha... E hoje em dia a gente pode
trabalhar o mesmo conteúdo sem precisar da cartilha, e sem precisar também dizer: “fulano
sabe mais do que sicrano”... Eu gosto.
P: E você acha que essa liberdade de usar outros métodos de ensino... É a Pedagogia que esta
te ajudando ou você já fazia isso antes de entrar na faculdade de Pedagogia?
C: Olha, desde que eu trabalhava na zona rural eu já via por esse lado, só que eu não tinha
nenhum embasamento teórico, eu fazia porque eu acreditava que assim que tinha que ser...
Até porque essa coisa de ver todo mundo aprendendo... Mas aí depois que eu entrei na
faculdade, muita coisa melhorou... E aí eu pude investir mais nisso, com embasamento
teórico, né? Fui percebendo que eu estou indo na linha certa. Às vezes eu fico assim com
alguma dúvida, porque eu queria que todo mundo aprendesse da mesma maneira, no mesmo
momento, né? Quando a gente tem uma sala... por exemplo, na manhã são 25 alunos, mas tem
poucos que já leem convencionalmente, outros não... Por trás disso tem outros fatores também
que estão impactando alguma coisa... mas eu sei que apesar de ainda não estar decodificando,
eles também estão aprendendo...
P: Se você pudesse escolher outra profissão, você escolheria ser professora de novo?
C: Eu gosto de ser professora, mas eu queria ser mais valorizada, financeiramente... E eu
penso também nos meus filhos, porque com o salário que eu ganho eu não posso mantê-los
em uma faculdade boa... E assim, eu escolheria ser enfermeira, porque é uma profissão que eu
acho muito valiosa também, alem de ser professora, porque você vai ajudar alguém, eu acho
tão importante essa questão do cuidar da vida e tudo... Enfermeira. Não sei também se o
salário compensaria, mas eu escolheria enfermeira.
P: Como você vê os seus alunos, e como você se relaciona com eles?
C: Eu vejo meus alunos como seres pensantes, que já trazem muito conhecimento... Eles
trazem muitos conhecimentos, mas alguns conhecimentos precisam ser aprimorados e
compartilhados, eu diria...
P: Que metas você pretende alcançar até o fim do ano, com seus alunos? E quais estratégias
você utiliza para poder alcançar essas metas?
C: Assim, como é uma classe de alfabetização, eu tracei desde o final do ano passado, que eu
queria que essa turma desse ano saísse todo mundo, 100% da classe, alfabetizado. A gente
sempre pensa alto, é, porque quer o melhor... Estamos no mês de julho, e eu percebo que eu
não vou conseguir alcançar totalmente essa meta. Mas 80% eu creio que sim. Mas nem por
isso eles serão reprovados, porque a gente vê também muita coisa da parte qualitativa deles...
170
E aí a gente vai analisar, vai ver a questão das competências que eles devem garantir ao final
dessa série, e em cima disso é que a gente vai ver se eles serão aprovados ou não... Agora essa
meta de 100% alfabetizados, eu creio que não vou conseguir... Mas assim, pode ser que eu
tenha uma surpresa, né? E assim, o que eu vou fazer para alcançar essa meta é... eu fiz alguns
encaminhamentos, eu separei por grupos, cada nível em que eles se encontram, então...
Alguns alunos que estão no nível diferenciado, ou seja, eles conhecem as letras, escrevem
com as letras, porque já sabem que se escreve com letras, mas eles ainda não fazem a
correspondência, então eu pensei em atividades que despertassem neles essa visão de que o
que a gente fala é representado através da escrita, e aí são atividades que tem alfabeto móvel,
atividades com alunos que estão pensando um pouquinho a mais que eles, algum aluno que
esteja no qualitativo, ou no silábico, que aí já tem uma noção de sonoridade e já vai também
ajudar... Eu trabalho bastante com essa coisa de um ajudando o outro, essa parceria... São
grupos produtivos, eu trabalho com isso. E para aqueles que já estão mais avançados também
tem atividades de produção e revisão textual, já pensando nas questões ortográficas. Agora,
com o mesmo texto, entendeu? Todo mundo trabalhando com o mesmo texto. É assim, todo
mundo participa, todo mundo tem conhecimento do mesmo texto, a atividade é que é
diferenciada, pensando no que cada um já trás, e no que pode avançar.
P: E a que você atribui essa diferença entre eles, de alguns já estarem tão para frente dos
outros na questão do aprendizado?
C: No caso dessa turma é porque a maioria esta saindo da creche, é eles estão chegando aqui
já com um déficit... Eles chegam assim, com alguns conteúdos que eles deveriam ter
trabalhado lá e que não foram trabalhados, eu não sei por quais motivos, e aí chega aqui eu
tenho que dar conta disso... Outros porque faltam muito, outros não tem acompanhamento em
casa, chega na sala sem material, a gente tem que estar providenciando, improvisando no
momento da aula, e alguns que tem outros fatores, assim... pessoais... chegam e não querem
fazer nada, estão tristes, alguns que até questionam que não tem comida em casa, essas
coisas...
P: Então você acha que tem alguns alunos na sua sala que tem dificuldade de aprendizagem?
C: Tem. Tem dificuldades de aprendizagem... Tenho aqui nessa turma da manhã 5 alunos, à
tarde tem uns 8.... Que eles não conseguem avançar, por mais diferente que seja a atividade,
eles não conseguem avançar... Agora assim, tem horas que a gente tem que dar muita
assistência para esses alunos que tem mais dificuldades, e como as salas são lotadas, as vezes
a gente não consegue dar conta... Até porque enquanto você esta dando aula, um começa a
171
bater no outro, xingar, e alguém entra na sala, uma pessoa quer falar com você.... Então muita
coisa acontecendo, você quer dar uma atenção especial para aquela criança e não tem como...
Se a gente tivesse pelo menos uma pessoa para estar ajudando, sabe? Isso ajudaria mais...
Porque tem momentos em que aquela criança não quer fazer nada, mas no momento que ela
quer fazer, se você chegar perto, aí consegue dar uma avançada... E as vezes naquele
momento você não tem como chegar perto dele, porque tem que dar conta de outros, ou de
outras coisas na própria sala, tipo violência, agressões, ou alguém que não trouxe material, ou
outro que esta cutucando o coleguinha...
P: Então como você tenta dar conta desses alunos, como você tenta lidar com essas
dificuldades?
Rita: Eu sempre fico pensando, né? Como eu te falei, eu invisto muito no trabalho em grupo,
porque no grupo tem sempre alguém que esta um pouco a mais na frente, então eu tento
investir nesses grupos para um ajudar o outro, e estar me ajudando também... Agora, eu fico
auxiliando todos os grupos.
P; O que você acha sobre avaliação? O que é avaliação para você? Como você aplica? Quais
são seus critérios de avaliação?
C: Assim, a gente trabalha em cima do Projeto Político e Pedagógico, e aqui e gente tem... A
gente trabalha numa concepção sócio-construtivista, a gente avalia... A avaliação, na
realidade, a gente faz através de diagnósticos, através da observação na própria sala de aula,
diante das atividades. É uma coisa constante, a gente está sempre registrando, e isso eu não
fazia antes, quando eu estava lá na zona rural, eu não tinha esse conhecimento. Eu sabia que
tinha isso, mas eu não fazia. Hoje eu já acho necessário que se faça mesmo um registro... A
gente esta sempre registrando para ver o que avançou, porque se você vai avaliar a sala como
um todo, aí você vai pecar, mas se você avaliar diante do que apresenta cada aluno, aí você
vai ter como avaliar, comparando cada um consigo mesmo, e investindo individualmente.
P: E tem prova, ou a avaliação é feita só processual, como você disse?
C: No final do ano, eu faço tipo uma prova, mas na verdade ela não é o único instrumento
para avaliação. Tem essa prova, tem o registro individual da cada aluno, tem apresentação de
resultados de cada um... A gente tem portfólios, e a gente vai guardando as atividades escritas,
os registros que a gente fez diariamente, o prazer de casa, tudo isso. Aí a gente vai avaliar,
quantitativamente e qualitativamente. Agora, o que conta mais aí é qualitativamente,
principalmente nessa turma. Aí a gente avalia em cima disso, dessa ficha, e essa ficha é
172
elaborada em cima dos PCNs, que trazem ali as habilidades e competências de cada série, aí a
gente avalia em cima daquilo, agora não desconsiderando todo o registro anual.
P: Você troca experiências com seus colegas?
C: Trocamos. A gente tem o momento de AC, seria esse momento (da entrevista). Mas assim,
está tendo uma formação, e a diretora e a coordenadora estão lá hoje, nesse momento esta
tendo essa formação. O meu grupo, de professoras de ciclo I do ensino fundamental já
participou, semana passada, e esse outro grupo esta participando hoje, então a nossa
coordenadora está lá, mas a gente tem esse momento para planejar aqui... Sentar discutir, ver
o um pode ajudar o outro, conselhos e registros, e assim, apresentar resultados e também
indicar algum livro, alguma atividade, ou até construir atividades...
P: E esses momentos ajudam você na sua atividade?
C: Ajudam bastante.
P: Como é a relação com os outros professoras, com a diretoria, com a coordenação...?
C: A gente tinha aqui um diretor que era um pouco caxias, né? Ele só pensava no poder, e não
tinha conhecimento do que é educação, aí ele não dava oportunidade de encontros dos
professores, e aí ele teve que sair, a gente deu graças a deus e chegou Mirtes agora, que tem
uma nova visão. Ela também é professora, ela está na mesma área que a gente, então muita
coisa já mudou. A gente tem uma relação boa, de troca de experiências, um ajuda o outro
sempre, por isso que ontem e essa semana os meninos ficaram sem recreio justamente por
isso, porque foi pensando na coletividade... Aconteceu um imprevisto, de os meninos estarem
fazendo uma apresentação sobre mitos africanos, e alguns alunos que não participaram e não
queriam que a coisa acontecesse começaram a vaiar, e toda a escola também começou a vaiar,
mas os menores na realidade eles seriam até dispensados dessa punição, mas dois
participaram vaiando, e aí a gente achou melhor que toda a escola ficasse sem recreio, porque
vaiou os alunos que estavam participando da apresentação. A diretora se reuniu com a gente,
pediu opinião e todo mundo decidiu. Foi uma decisão coletiva.
P: Me fala um pouco sobre suas condições de trabalho, você tem algum obstáculo para
realizar seu trabalho, e como você lida com esses obstáculos, você acha que a escola te
apóia..?
C: Eu tenho vários obstáculos... A gente no momento está sem livro didático, não que ele seja
uma ferramenta única, mas ajuda muito, porque a gente tem uma sequencia de atividades, mas
às vezes a gente precisa de um apoio do livro didático, porque ele vem mais colorido, tem
mais imagens.... é tipo um apoio para sistematizar o que está sendo trabalhado... A gente não
173
tem... O que a gente tem é folha de ofício, temos computadores na escola, mas nem todo
mundo sabe lidar com esse instrumento, eu mesma sei muito pouco. Quem digita meus
trabalhos é ou a secretária ou meu filho... Eu estou aprendendo agora porque estou com essa
necessidade urgente de aprender a fazer. Tem também essa questão da faculdade... E também
tem isso, a gente tem computador agora, mas antes só tinha um, então ficava a fila, para poder
digitar as atividades... Então agora chegaram outros computadores aí, e a gente está se
empenhando mais em aprender e aí acho que vai ajudar bastante. Mas assim, tem a questão do
livro didático, tem a questão do material, folha de oficio, costuma faltar sempre... Agora nesse
momento a gente está com um pacote para duas turmas e tem que durar uns 3 ou 4 meses, e
não vai dar certo... Porque se a gente não tem o livro didático, caderno a gente tem que usar,
mas nessa faixa etária não dá para ficar o tempo todo usando caderno porque vai cansar a
criança, né? Então tem que ter atividades digitadas, construídas mesmo, e isso também vem
impactando o trabalho. E fora isso, tem a questão dos pais que não ajudam muito... Não
ajudam mesmo. É minoria os pais que chegam aqui para poder saber sobre o filho, só vem
quando é chamado nas reuniões... E as reuniões da gente eram bem chatas antigamente, agora
já mudamos tanta coisa... Mas eles já estão habituados com aquele outro tipo de reuniões, já
chegam perguntando: “O que foi que eles aprontaram dessa vez? O que meu filho fez? Eu já
falei com ele, ele vai apanhar” e a gente chega para eles com essa nova visão, eles já dão uma
respirada, mas ainda ficam insistindo no que o filho aprontou... Eles não se colocam também
como pessoa que faz parte da aprendizagem do filho.... Parece que a escola é só a escola e em
casa é outra coisa, eles não querem dar continuidade em casa não...
P: Como vocês estão fazendo essas reuniões com pais agora, que você disse que mudou... ?
C: Na verdade, assim.. A gente apresenta resultados, a gente coloca a coordenação para falar
sobre o trabalho, como é feito, a respeito das atividades, que eles questionam muito... Quando
a criança ainda não sabe ler, eles ficam achando que a atividade está muito além para aquela
turma, aí começam a criticar e tal. Então agora a gente está explicando como é feito o
trabalho, baseado em que, o que a gente está aprendendo, o que os meninos estão trazendo, e
colocamos também temas da atualidade, para eles perceberem que a escola não trabalha
isolado da sociedade, que a escola trabalha em parceria, quer trabalhar em parceria... A gente
coloca várias coisas, vários temas, faz recreação com eles, dinâmicas para descontração, tem
chá.... Não é mais aquela reunião fechada, até o espaço aberto, onde um vê o outro, se sente
mais livre...
P: O que ocasionou essa mudança? Foi uma decisão da direção?
174
C: A nova direção... A gente já vinha com essa ideia antes, só que a gente era podado, e se a
gente tentasse fazer, era assim: “quer tomar a frente do diretor”.... E como a gente estava
brigando muito com ele, e a gente acabava se acomodando também... Com a nova diretora
não, tudo mudou.
P: Tem alguma atividade que você gostara de fazer com seus alunos e você não consegue?
C: Assim, a gente faz algumas atividades na sala de aula, mas a gente gostaria de fazer outras
atividades fora da sala de aula... Visita a biblioteca pública... A gente está trabalhando sobre a
natureza, e a natureza de Lençóis é tão rica, a gente mostra figuras, mostra fotos, mas a gente
não visita... Então tem esse tipo de passeio que a gente... que eu gostaria de fazer, mas não
faço, porque tenho medo de ir sozinha com a turma... Tenho medo de acontecer algum
acidente, alguma coisa com eles, e depois eu ter que responder por isso...
P: Quais você acha que são os pontos positivos da sua prática como professora?
C: Pontos positivos? Hmm... A questão de valorizar tudo que a criança já traz consigo, e
tentar ajudar da melhor maneira a lidar com isso, a socializar, a fazer enxergar.. Por exemplo,
tem criança que se sente com a autoestima lá embaixo, aí eu tento colocar para cima: “ah,
você conseguiu tal coisa, parabéns! Eu sempre soube que você iria conseguir”... Eu acho que
esse lado de sempre colocar a criança para cima, valorizar cada um, é um ponto positivo em
mim, sabe? E também de valorizar tudo que ele traz... Eu fico às vezes preocupada porque eu
queria que eles avançassem mais rápido, e eu acho que esta faltando alguma coisa para poder
ajudar... Mas eu não sei o que é... Não sei se são as atividades, a forma... Eu não sei, porque
assim, a gente trabalha mais com texto, papel, quadro, essas coisas... E aí, eu fui um alfabeto
móvel, e a gente coletou garrafa pet para fazer um boliche, e isso ajudou bastante, foi bem
interessante, mas eu queria estar fazendo coisas a mais, coisas mais lúdicas.. Porque essa fase,
né, exige isso, então às vezes eu acho que fica algo muito pobre para eles... Eu acho... Então
talvez a pergunta que você me fez antes seria essa a resposta, porque assim, é um ponto
negativo, para mim, não dar essa condição para o aluno trabalhar diretamente com o útil,
todos os dias, e eu não tenho essa condição, de fazer essas atividades, e nem tenho quem me
ajude a fazer.
P: Como você se atualiza profissionalmente? E qual a importância que você atribui a essa
formação inicial e depois a alguma formação continuada que você venha a fazer?
C: Qual a importância? Eu te falei... Essa importância assim, de que a gente não trabalha
aleatoriamente, você tem um embasamento para trabalhar, e você tem o conhecimento para
estar entendendo melhor o aluno... Essa vinculação da teoria com a prática... Tudo que eu
175
aprendo lá eu tento colocar em prática. E outra coisa é, antigamente, quando eu trabalhava na
zona rural, não tinha essa formação, eu pensava assim: tinha que trabalhar com silabação,
né?! Tinha que trabalhar uma família por semana, quem desse conta seguia, quem não desse
conta, coitado, ficava lá, entendeu? Mesmo pensando, escrevendo abacate, colocando uma
letra para cada silaba, e lendo abacate, ele lia abacate, aquilo para mim não significava nada...
E aí, as reuniões em cima disso: “olha para cá, falta de atenção, fulaninho escreveu assim,
sicrano escreveu dessa forma”, entendeu? Então hoje em dia eu não penso mais assim, e
quando chega uma mãe já falando justamente isso: “ah, eu olhei o caderno de sicrano, ele já
esta escrevendo bonitinho, até letra cursiva já usa, e o meu filho não, descaramento, vou
bater!” eu já tenho uma nova visão, uma nova explicação, e material que comprove aquilo que
estou dizendo. Ajuda bastante na minha prática. Por isso que eu escolhi pedagogia, porque é a
minha área mesmo, uma coisa que eu quero entender, e vou fazer psicopedagogia também,
depois que eu concluir a faculdade.
P: Você conhece o Projeto Político Pedagógico? Vocês professores ajudam a elaborar, como
funciona?
C: A gente ajuda a elaborar. Foi construído em 2006, aí tem o apoio e mundo, a gente que
ajudou. Inclusive agora a gente vai sentar, na próxima semana, acho que na sexta feira, para a
gente rever, pensar se tem alguma coisa que a gente pode acrescentar, ou tirar.... A gente vai
rever.
P: Como você avalia o trabalho dessa escola?
C: Essa escola é considerada uma escola boa. Mas assim, tem seus poréns, né?! Aqui na
escola, todo mundo era concursado, e ninguém tinha formação. Hoje já temos duas
pedagogas, uma psicopedagoga, e temos nós que estamos concluindo no ano que vem. Nós,
eu digo, tem seis professoras. Só que aí tem professores novos, que entraram agora, ainda não
tem essa formação, ainda estão até na silabação e não gostam de ouvir muita opinião, tal...
Estão chegando agora e ainda estão assim um pouco confusos... Então a escola vai andando
numa linha, aí de repente, por questões políticas, chegam novas pessoas, entendeu? E aí
quebra um pouco... Porque tem vários professores trabalhando numa linha, aí chegam outras
pessoas, elas sabem da linha, mas trabalham do jeito que acham que deve ser... Então eu não
poderia dizer que a escola toda trabalha nessa linha. Tem as formações, embora essas
professoras novas que estão chegando, eles não fazem ainda faculdade, mas eles participam
da formação, e essa formação é justamente para isso. São professores especializados que vão
trabalhar tudo que a gente trabalha na faculdade, e vai trazendo para eles de uma maneira,
176
sabe... e traz a prática da sala de aula para estar analisando... Mas tem gente que tem medo,
que já tem segurança no que faz, então não quer mudar de imediato assim porque tem medo,
para ele é mais cômodo segurar o que ele já sabe do que arriscar alguma coisa. Então eu não
sei até que ponto seria uma coisa boa para a escola, entendeu? Sem menosprezar os colegas,
porque eles estão tentando, estão dando o melhor. Mas é complicado, é complicado. Porque
isso que eu te falei antes do aluno que escreve de uma maneira que a gente antes achava que
era insignificante, a gente já tem uma nova visão sobre isso, quem está chegando agora não
tem, e trabalha da mesma forma, do jeito que essa pessoa acredita que é...
P: Essa questão do erro do aluno... Como você lida com isso?
C: A gente trabalha em cima desse erro, que não é nem tanto erro... É a maneira que ele esta
pensando, inicialmente, porque não conhece ainda outra maneira. Aí a gente trabalha em cima
dessa situação que ele esta trazendo, e aí vai fazer comparações, mostrar exemplos para ele
mesmo perceber que existe uma maneira única de fazer tal coisa, de escrever tal coisa... Para
ele perceber, em cima do que ele fez... Nunca desvaloriza o que ele já traz...
P: Qual foi sua maior realização como professora?
C: Foi quando eu trabalhava na Ponte, lá na zona rural... E aí eu trabalhava com três turmas,
de manha, à tarde e à noite, e aí, assim que eu cheguei, tinha uma moça lá, uma colega, que
não gostava de mim e achava que não iria dar conta... E eu consegui alfabetizar a turma
todinha, a turma da manhã todinha, a turma da alfabetização... Na época ganhei até um
prêmio aqui de melhor professora alfabetizadora! Nessa linha, né, tradicional mesmo... Mas aí
eu consegui. Os meninos também já estavam preparados para... Aí eu consegui, eu me senti
muito realizada. Agora eu me sinto realizada assim, porque eu estou trabalhando com a turma
que eu gosto, que é de alfabetização, mas eu estou triste um pouco porque a essa altura ainda
não tem nem metade de sala alfabetizada... No código...
P: Que nota você daria para essa escola? De zero a dez?
C: Essa escola? Eu daria 8 para ela. Mesmo apesar dessas mudanças aí... Porque mesma a
maioria trabalhando numa linha, essa minoria que chegou está atrapalhando um pouco,
trabalhando de um jeito diferente, mas está trabalhando dentro do que acredita, e está dando
seu melhor também... Eu daria 8. Eu sei que ela precisa melhorar muito, muito, muito mesmo,
mas muita coisa já se mudou, muita coisa.
P: Tem mais alguma coisa que você gostaria de falar?
C: Ahh, não sei... Porque eu estou doida para ir lá no dentista... RS...
177
P: Bom, tudo que você falou vai ficar em sigilo, e seu nome será alterado... Se tiver alguma
coisa que você queira acrescentar ou alterar depois, se lembrar de algo e quiser complementar,
essa possibilidade está aberta a qualquer momento....
C: Tudo bem. Mas eu lembrei agora de uma outra coisa. É a respeito das merendeiras da
escola. Elas estavam seguindo a linha do antigo gestor, e aí era muita indireta na escola, muito
arrelio, sabe? Criticavam as crianças, criticavam professores, a maneira de vestir, a maneira
de falar, tudo.... Num momento desse a gente estaria aqui conversando, elas estariam lá fora
sorrindo... E aí, porque isso, porque elas não cumpriam o horário, e a gente ia questionar e
elas não gostavam... Com a mudança do gestor, a diretora nova foi mostrar... Fez uma
reunião, e fez uma abordagem assim tão transparente do que ela queria e tal, pediu a opinião
das meninas e elas não queriam participar de nada... “Ah, sempre foi assim, eu não vou
cumprir o horário não”... Não secavam talheres, não secavam pratos, não faziam nada na
cozinha, era tudo uma coisa assim mal apanhada... E depois teve o recesso junino, a gente se
reuniu e achou melhor que elas fossem para uma outra escola, fossem remanejadas. E a gente
conseguiu isso, hoje o pessoal que está aqui é ótimo com a gente, prepara almoço, pergunta o
que queremos que prepare, se quiser trazer alguma coisa elas preparam e a gente almoça
junto, tratam as crianças realmente bem, como criança mesmo, ajudam... As meninas, as
crianças estavam brincando aqui na área, elas viam alguma coisa de errado, caíam na risada...
essas novas não, elas estão aí para isso, ganham para isso, não vão reclamar... Elas ajudam a
gente em tudo, apóiam os meninos, então o trabalho agora está até mais leve, mais alegre...
Todo mundo aqui já chega alegre na escola... A gente fez agora uma caixinha do anjo, onde
cada um protege o outro, para não ter essa coisa de discriminação... As meninas estão
envolvidas... Então a escola está mais leve, mais gostosa de trabalhar...
178
ANEXO 3
Transcrição Autoconfrontação Simples
Duração: 1hora e 15 minutos.
Episódio 1:
P: Eu vou passar primeiro o episodio inteiro, depois a gente conversa sobre ele, ta?
Cássia assiste ao episódio. Comenta, durante a apresentação:
“E eu fico estressada.... Só assim para ver mesmo... hehehe...”
P: Cássia, eu queria que você descrevesse essa atividade, o que você estava fazendo?
C: É uma atividade de leitura, onde os alunos teriam que refletir sobre o sistema de escrita
também, uma coisa associada a outra.... E assim, teria que ser um texto conhecido, o texto
facilitaria essa leitura, a gente não poderia pegar um texto do nada, teria que ser um texto de
memória, porque seria uma condição muito boa, seria não, é uma condição muito boa para
que o aluno comece a despertar esse interesse em ler. Então eu já tinha feito uma sequencia,
eles já tinham brincado com essa musica, também na aula de educação física, pulando corda,
então percebi que eles já sabiam esse texto de memória, então apresentei esse texto de
memória escrito, para que eles percebessem esse paralelo entre como se fala e se escreve. A
partir daí eu trabalhei no coletivo, fiz a leitura, cantei com eles, fiz a leitura junto com eles, e
depois chamei para eles identificarem algumas palavras, mas antes disso a gente já tinha
trabalhado também a sequencia de perceber com que letra começa, com que letra termina,
quais letras que devem ter tal palavra... E aí nesse momento eu chamei Thomas e Matheus
porque eles e mais uns 6 aí tem muita dificuldade de aprendizagem. Então como eles já
sabiam o texto de memória, eu pedi que eles fossem à lousa procurar certas palavras.
P: Você acha que foi boa a atividade? Atingiu o objetivo?
C: Naquele momento não atingiu, né, porque é um processo... Mas ele percebeu que “pé” não
começa como ele pensava, com qualquer letra. Porque ele já sabe que se escreve com letras.
No inicio, Thiago, Marcos e Carlos2, eles representavam qualquer palavra com desenhos só, e
aí agora eles já usam letras, mas eles ainda não conseguem selecionar quais letras, e o que eu
queria fazer com que ele percebesse, mesmo que não tenha caído a ficha de imediato, é que a
palavra começa com uma determinada letra, e não qualquer letra.
P: E assistindo agora a atividade, você acha que tem alguma coisa que você poderia ter feito
diferente do que você fez? Alguma coisa que você faria diferente?
2 Todos os nomes são fictícios.
179
C: Eu faria diferente talvez não ter chamado ele na frente aquele dia, talvez não seria o
momento... Eu faria aquele atividade com os que já conseguem, e ele eu faria primeiro no
individual... Talvez no individual... Porque ele foi na frente, quem sabe se ele não ficou meio
perdido porque viu que todos já estavam alem dele.. Tem isso também... ele não gostou...
P: Isso de chamar o aluno na frente... Eu percebi que você utiliza bastante essa estratégia.
Você tem uma razão para fazer isso também...?
C: Tenho, porque assim, é um ajudando o outro. Então quando vai na frente, ele se sente
importante, e ao mesmo tempo que pode se sentir vulnerável, se sente também protegido,
porque sabe que alguém vai ajudar, porque eu sempre peço “gente, agora vocês podem ajudar
fulano”.... Então eu acho isso interessante também. Talvez naquele dia não era o momento de
ter chamado logo Thomas, porque ele é um dos que tem mais dificuldade... Talvez se eu
chamasse, porque minha intenção era que ele percebesse, talvez se eu deixasse ele no lugar
dele, e só chamasse atenção para que ele percebesse outra criança fazendo na frente seria mais
interessante naquele dia.
P: Tem mais alguma coisa que você percebeu nessa atividade que você gostaria de comentar,
explicar melhor...?
C: Assim, eu percebi que eu fico muito nervosa, né, tenho muita ansiedade que eles aprendam
logo... Aí teve um momento no “pulem de um pé só” que ele leu “pé” e “só” junto, como
uma palavra só, e aí ao invés de pedir que ele lesse de novo e perguntar: “e aí, você sente o
som de alguma letra?” eu nem perguntei para ver se ele iria associar.... “tem o É, pro, termina
com é”... Então ele iria logo na hora perceber, eu imagino que ele iria perceber que “pé” tem
esse som e não precisaria do “só”... Então eu ignorei isso e já fui direto, aqui tem “pulem” e
“pé”, tem essa e essa, qual dos dois pode ser... Eu não fui até aquela que ele achou que podia
ser “pé”... Acho que isso aí também foi um erro, porque se ele disse que foi aquela outra, eu
tinha que continuar intervindo lá, e não na anterior...
Episódio 2:
P: Vou passar agora outro episódio, ta? A gente assiste de pois comenta...
P: Bom, de novo, eu queria que você me descrevesse o que você estava fazendo...
C: Situação problema, né... Foi uma atividade de casa, para eles encontrarem... utilizarem
uma estratégia própria para encontrar o resultado. E aí eu fui fazer a verificação da atividade
de casa, quem fez, como fez... Só isso...
P: E qual era o seu objetivo?
180
C: O objetivo era de que eles resolvessem o problema mesmo... É... Porque a gente tinha,
aliás, às vezes a gente ainda tem muito esse hábito, de fazer continhas a partir do nada, e ali
tinha um problema a ser resolvido. Agora, eu poderia ter colocado ali alguns materiais para
eles resolverem utilizando aquele material, e não mandar logo no quadro.
P: Você acha que mandar ao quadro complicou mais a atividade? Você acha que poderia ter
sido melhor?
C: Poderia. E os outros também poderiam estar fazendo naquele momento, porque aí poderia
haver esse confronto, “fulano achou tanto, você achou tanto, como você fez”... Com o
material... Acho que teria sido bem mais interessante, e eles aprenderiam mais... No caso do
Daniel, ele foi contar, contou um a mais, com o material isso não aconteceria. E também eu
fiquei prestando atenção lá e cá, lá e cá... Eu teria que estar mais centrada em quem eu queria
que, que... Por exemplo, Daniel não fez a atividade de casa, então nesse caso eu colocaria
todos novamente em roda para fazer com o material, “faça aí como você fez em casa”, e
ficaria com Daniel, que não fez... E ele já poderia também fazer com a atividade, eu levei ele
ao quadro mas ele não fez a atividade...
P: Essa dinâmica de lidar assim na mesma sala com os alunos que já estão mais adiantados...
C: Isso é um problema... Um problemão, sabia? Porque tem pais que vem às vezes falar, “ah,
fulano ta atrasado, fulano ta adiantado”... Aí você dá a mesma atividade, e não é a mesma
atividade. Às vezes pode até ser a mesma, mas a forma de conduzir é diferente... No caso
dessa aula de matemática, ou nas aulas de português, eu sempre coloco a mesma atividade, o
mesmo texto, mas aí um vai escrever por conta o texto, de memória, outros vão montar,
outros encontrar palavras, outros vão selecionar as letras que formam tais palavras... É a
mesma atividade assim, mas não é a mesma forma. Eu tento montar uma atividade que caiba
para vários graus de aprendizagem. Agora, é difícil, né?! Porque é um pouco complicado.
Tem uns que terminam mais rápido, mesmo se você da um livro para ler, uma pintura, alguma
coisa, eles terminam mais rápido, e já querem fazer logo outra coisa, e eu tenho que ficar de
olho também naqueles que estão menos adiantados. Aí eu começo a ficar preocupada porque
a sala começa a ficar muito bagunçada, eu fico preocupada em dar conta daquela multidão
que esta bagunçando, e acabo até inervando o trabalho, porque eu quero terminar logo, “bora,
fulano”, e fulano esta pensando ainda e tal, quando é a hora dele resolver realmente a questão
eu tenho que parar porque alguém brigou, porque aconteceu alguma coisa, aí já vai, fecha o
caderno, e fulano fica para trás do mesmo jeito. Aí a gente colocou como encaminhamento no
conselho de classe, que tem alguns alunos bem adiantados e outros bem menos, a gente
181
colocou assim, 15 minutos ou 20 antes de ir para casa, ficar com o professor, enquanto os
outros brincam ou fazem alguma atividade e tal. Mas não esta funcionando, porque eu tento
fazer isso, mas quando eu vejo o tempo já passou, os outros brincam e brigam, fazem barulho,
aí eu não dou conta, atrapalha. E a criança que esta lá também, ela fica perdida, fica agoniada,
aquele barulho, todo mundo brincando e ela lá...
P: Pensando idealmente, você imagina alguma solução, algo que ajudaria a resolver isso? A
dar conta dessa disparidade, de uma sala tão heterogênea?
C: É assim, se o município tivesse condições de colocar dois professores em uma sala, aí a
gente poderia pensar diferente em relação a isso. Mas não tem! Aí eu não tenho em vista nada
que possa ajudar, a não ser um reforço no turno oposto... Mas teria que ser também um
reforço de alguém que já esta também nessa área e que entenda. Porque tem alguns reforços
por aí que não adiantam, que fazem a atividade para a criança, copia... E tem reforços também
que os professores só silabam, eles não querem saber como a criança aprende, não querem
saber nada. Aí acontece que alguns conseguem silabar, outros não, aí para. Aí não consegue
seguir mesmo, aí para tudo, trava. Eu acho que é porque alguma coisa de lá ou aqui confunde.
Porque por exemplo, quando eu mando que uma criança identifique uma palavra, “batatinha
quando nasce, batatinha” aí ele fala “B com A, BA, B com A, BA”, aí vai no BA. A primeira
palavra que ele ver que tem o BA, por exemplo, batata e batatinha, ele vai na primeira que
tiver BA, e não sai daquele BA, só naquela primeira silaba... “mas batatinha, batatinha, tem
que ter o TI, nessa daqui tem?” “não, mas tem o BA”. Como ele não trabalhou as outras
silabas ainda, ele não vai descobrir que tem o TA também, que tem o TI... Então a gente tem
percebido isso aqui, em todas as salas.
P: E essa estratégia que você usa bastante de colocar os alunos em duplas, um que sabe mais
com um que sabe menos, como você vê isso?
C: Assim, apesar de colocar nas duplas, tem critérios... A gente tem que ver. Eu não posso
também colocar um aluno que sabe, que esta num nível diferenciado, ou seja, que só conhece
as letras, mas ainda não conhece som nenhum, junto com um aluno que já esta alfabético, que
já sabe tudo, porque ele vai e faz para ele. Isso já aconteceu aqui na sala. Então eu tenho que
colocar aquele diferenciado com um que saiba um pouquinho mais, que saiu um poço daquele
nível, que esteja no quantitativo, por exemplo. Porque o diferenciado ele coloca varias letras
para escrever a palavra, e o quantitativo ele vai pensar na quantidade, e aí junto com o outro
ele vai dizer: “vamos ver, você colocou aqui...” BA TA TI NHA, vamos dizer que ele colocou
seis, ele vai pensar em quantas vezes ele abre a boca BA TA TI NHA, quatro vezes, então ele
182
vai colocar só quatro. Ao o outro já vai perceber que precisa de tantas letras, já vai pensar na
quantidade junto com ele. Então esse outro, em duas ou três atividades, a depender da
intervenção que eu venha a fazer, ele já vai mudar de nível também. Pode ir para o
quantitativo ou até alem, para o qualitativo por exemplo. Então é isso, eles explicam um para
o outro. Agora a gente também tem que pensar nessas intervenções, o que eles devem fazer,
porque as vezes um quer fazer tudo pelo colega. Tem uma menina... tenho varias, mas eu vou
falar de um caso assim, que eu priorizei em certa época, de duas meninas assim, uma silábica
alfabética, pensava silábica mas ainda não estava alfabética, e a outra alfabética, e aí a silábica
alfabética ia ditando e a que estava alfabética ia escrevendo... Ai ela falava assim ”coloca
agora tal letra” e não era ainda aquela letra, tinha aquela letra, mas era depois.... Tipo BALA,
a outra já tinha escrito o BA e ela falava para colocar o A, pulando o L, aí a colega falava
“não, peraí, esta faltando o L”, por exemplo. Aí elas escreveram o texto completo, sendo que
uma ajudou a outra, não ficou nenhuma parada, uma foi ditando e outra escrevendo, mas ela
iam se ajudando. Então é isso, na hora de escolher as duplas eu coloca crianças de níveis
diferentes, mas próximos. Níveis próximos.
P: E funciona bem:
C: Aí funciona bem. Só que assim, às vezes é muito trabalhoso porque você tem que dar
assistência a todas as duplas ou todos os trios, e vem aquela questão de priorizar os que tem
mais necessidade. E aí quem termina primeiro vem atrás, vem a atrapalha, você esta
explicando para uma dupla e eles vem e tiram a atenção daquele que estava ali... Mas tem
ajudado. No inicio do ano mesmo todos os alunos eram diferenciados, eles sabiam que se
escrevia com letras, menos Daniel, Thiago e Marcos. Agora, depois desses agrupamentos eles
avançaram muito, eu tenho uma boa maioria que já esta alfabético mesmo e tenho vários no
silábico alfabético, não tem mais nenhum diferenciado. Tinha Marcos e Thiago, já não estão
mais, estão qualitativos, só que eu fico preocupada porque já esta em agosto e eles estão no
qualitativo e não sei se vão chegar a alfabéticos até o fim do ano.
P: Em relação a esse episodio que a gente assistiu, da lição de matemática, tem mais alguma
coisa que você percebeu alem dessa questão do material, que você disse que teria facilitado?
Alguma coisa que você poderia ter feito diferente, que você deixou de fazer...
C: É aquela questão que eu falei, do material concreto...
P: Você chegou a perguntar para o aluno se ele queria material ou queria o giz...
C: Ahh é, eu perguntei... Dei a opção, mas se eu estivesse com o material já ali também,
talvez ele tivesse escolhido o material... E envolveria as outras crianças...
183
Episódio 3:
Enquanto assistimos o episódio, Cássia faz algumas observações: “olha o Marquinho,
nem aí para a explicação...“; “Juliana ainda não conhece as letras...” ; “Ana Clara é muito
atenta, ela é bem centrada para a idade dela”
P: Cássia, novamente eu gostaria que você descrevesse para mim o que você está fazendo,
qual é a atividade...
C: Assim, como eles... Foi no coletivo, para... Eu queria realmente que todos ajudassem... Só
que naquele momento eu tinha intenção com essas crianças, Thiago, Marcos, Edilene
também... Aí para que eles percebessem também que as palavras tem uma quantidade exata
de letras, então a cruzadinha possibilita isso, porque eles já sabem qual é a palavra, e eles
tinham que pensar não só com qual letra começa a palavra mas também quais letras devem
colocar, e a quantidade de letras. E aí eu acredito que eles pensaram sobre, porque a gente fez
a cruzadinha com ajuda, eles foram percebendo qual letra vem, “e agora, deu para ler”,
porque o mais importante também é esse momento de “agora leiam como ficou”, porque é o
momento que eles se impactam mais, principalmente quem está começando agora... Porque...
PULEM, por exemplo, tem cinco letras. Se eles leem PULE e para no LE, porque sentem
mais o som do E, aí é o caso de perguntar assim: “se vai até aí, que letra vem aqui, se a gente
viu que tem cinco letras?” Aí alguém vai dizer assim: “não, pro, pulem vai até o M”. E aí ele
vai ficar pensando, vai pronunciar algumas vezes e vai perceber que tem alguma coisa
estranha no que ele leu, vai perceber que precisa realmente de mais letras. Então essa
cruzadinha foi isso, para ver se eles estavam realmente pensando nessa questão de quantidade
de letras, e quais letras. Depois dessa atividade também eu fiz uma outra com eles no caderno,
também em duplas, para ver isso também...
P: Eu observei que nessa atividade você de novo chamou para ajudar na lousa alguns alunos
que estão mais atrasados...
C: É porque se não os outros chegariam lá e colocariam rapidinho as respostas... Aí com eles
foi também porque eles são inquietos, não prestam muita atenção, então eles indo na frente
também tem essa coisa de que eles estando lá, ficam mais centrados lá... Se eu deixasse cá
num canto, eles nem iriam ligar, porque para eles não tem tanto significado como para os
outros, eles ainda não sabem ler nem escrever direito, eles iriam pensar “ah, deixa lá para
quem já sabe, vamos ficar brincando aqui”... Por isso eu chamo eles para ir, para eles
perceberem, e os outros ajudam.
184
P: No começo da atividade, quando você está explicando que vai chamar só alguns na lousa,
outros reclamam que são sempre eles, que você deveria chamar todos... Todos querem
participar...
C: Eles adoram participar! É uma turma assim enérgica mas bem participativa. Questionam...
Tudo eles questionam. E as vezes eu não consigo dar a explicação e digo que vou dar depois,
peço para eles me lembrarem, para eu não esquecer de explicar, para eles perceberem que eu
não estou enrolando, porque eu também esqueço, e se eles me lembrarem eu posso dar a
devolutiva depois...
P: E esses que não são chamados na lousa com tanta frequência, você explicou que é porque
eles terminam rapidinho a não da tempo de todos acompanharem... Então eles acabam indo
muito menos para a frente...
C: É porque no inicio eles já foram muito, e conseguiram avançar, então agora é o momento
desses outros...
P: E você acha que eles entendem isso?
C: Talvez não tanto... Porque você vê que alguns ficam chateados, ou começam a brincar...
Mas... Esse também é um problema, né?! Eu também fico pensando as vezes... Mas... Por isso
que as vezes eles também vão, e eles vão e explicam. Mas assim, depende da atividade, tem
atividade que eles vão, falam “eu fiz assim e assim, porque esse é assim e assim”, eles vão e
explicam. Mas nesse momento aí, não. Não precisaria deles. Agora, realmente eu tenho que
pensar em outras atividades que eles poderiam ir mais... Para chamar a atenção desses outros
também... Porque eles estão indo menos, mesmo. Tem uma justificativa, tem essas questões
de ter que ajudar mais quem precisa mais, mas eles acabam ficando chateados... É um
problema. Não é um problemão, mas é um problema. Porque assim, se a gente tem uma meta
de alfabetizar, a gente colocou 100% das crianças, a gente eu digo a rede, o município todo, e
estou percebendo que isso está difícil... Assim, eu já consegui bastante, mas essa minoria que
está aí vai fazer o diferencial na hora de olhar para essa porcentagem, então eu quero investir
mais neles... Porque a meta é alfabetizar todos, com qualidade, sem discriminação, essas
coisas... Não quero ficar só silabando, aí quem silaba vai e quem não silaba não vai... Então a
gente tem que ver tudo isso, porque se a gente pensar, se eu quiser fazer além agora, eu não
vou dar conta, eu tenho que pensar nesses que ainda não sabem, nessa porcentagem.
P: E de onde você acha que vem essa diferença tão grande entre eles? De alguns já estarem
bem alfabetizados e outros ainda não conseguirem nem identificar as palavras simples como
“pé”?
185
C: Tem essa questão que eu já falei, que eles vieram da creche, alguns vieram sem varias
habilidades... Tem a questão dos pais, alguns pais não tem nenhuma formação também, não
estudaram, ou estudaram muito pouco, trabalham muito, outros que acham que o papel da
escola é que deve ensinar e acabou, então não fazem o dever de casa, não ajudam, tem
meninos que chegam com o material incompleto, então isso são fatores que vão contribuindo
para que esses alunos não avancem... E outros chegam na escola assim... talvez porque assim
eles cobram muito o livro didático, eu sei que o livro didático só não é uma condição, mas
ajuda muito, a questão das imagens e tal... Só de falar assim: “eu tenho meu livrinho”... Eles
tem um aí que eu consegui, mas não é todo mundo que tem, eu consegui alguns na secretaria
de educação, mas não é todo mundo que tem, e esse ano não chegou o livro didático... Então
isso é uma condição que desfavorece mais ainda aqueles que já não tem praticamente nada.
Outra coisa também é a questão da concentração na sala de aula, eu sou uma pessoa só... E
fico pensando, será que a atividade não está lúdica, não esta chamando a atenção deles...
Então pode ser também isso que contribui. Mas eu acho que na maioria é essa questão do
acompanhamento em casa... na sala tem também a questão do pedagógico, talvez não é de
qualidade assim, como eles gostariam que fosse, mas também essa questão de em casa, o
desinteresse, aí chega na escola, presta atenção em alguma coisinha mas não acha assim tão
interessante, chega em casa, leva a atividade e o pai não da a devolutiva, tem sempre alguém
que fala assim: “ah, meu pai estava cansado, minha mãe estava cansada, não fez a atividade
porque disse que pode fazer na sala com a senhora, que essa questão aí a senhora que tem que
fazer”... Então isso deixa muito a escola sobrecarregada, eles tiram o corpo fora e a gente não
da conta. Até porque as salas são muito cheias. Alfabetização é primordial, não é? Agora
coloca um professor só para um monte de alunos, vários fatores de vida e tudo, aí a gente não
da conta. Você vê que quando uns avançam demais, outros menos, aqueles que avançam
demais correm o risco até de regredir, porque já sabem tanto e não tem tanto desafio, fica
monótono, então tudo é um problema. Então trabalhar essa diferença é muito complicado.
Mesmo trabalhando com grupo produtivo e tudo, é muito complicado. Então eu acho assim, a
questão das salas superlotadas, a falta de material, as condições de trabalho, e essa questão
dos pais, que jogam tudo para a escola...
P: Eu assisti muitas aulas suas, e percebi que você tem uma dedicação com todos os alunos,
sempre tentando gerar um interesse em todos, mas sempre também tendo em vista aqueles
que precisam mais da sua ajuda e direcionando bastante ajuda para eles...
186
C: Isso mesmo. E agora já tem outro encaminhamento em vista, com a professora Regina, que
ela dá aula de educação física em varias turmas, conversar com ela para ver se prioriza mais a
minha turma, não que deixe de dar para as outras turmas também, mas que priorize depois do
intervalo a minha, para que eu fique 40 minutos só com aqueles que precisam mais. Porque se
eu trago todos para a sala não dá certo. Então talvez se der certo isso, porque as outras
professoras também podem ter outros interesses, talvez não queiram liberar, porque é um
momento onde o professor fica mais à vontade ou para ver outras atividades ou para ir no
computador ver alguma coisa, então eles podem dizer “ah não, porque eu preciso fazer tal
coisa” porque enquanto a pro Regina está com a turma o professor também está fazendo
alguma outra coisa lá, aí eu tenho que ver isso...
P: Aí nesses momentos você chamaria esses alunos, que são poucos..
C: Acho q são 6 ou 8... Deixe eu ver... Edilson, Edilene, Amanda, Carlos, Marcos e Thiago.
São 6.
P: E a Jaqueline?
C: Jaqueline!! Jaqueline também! Então são 7... Então eu tenho que ficar com esses 7, e ver o
que eu posso fazer com eles, para ver se eles avançam.... Ela é muito dispersa, demais, e agora
a avó dela faleceu, hoje mesmo ela não veio... Ta triste, chora... Aí fica mais dispersa ainda...
E a minha preocupação é tem isso aí, mas ninguém investiga... Sabe que a criança está com
problemas, e que isso pode estar impactando no aprendizado, mas no final do ano você é
cobrado pelo que eu determinei junto com a rede na meta. Então digamos que ela não avance
tanto, não vou alcançar 100% por causa dela, aí a gente não vai conseguir.... Mas não é só por
conta disso, porque é interesse realmente da escola fazer com que a criança avance, então a
gente tem que trabalhar em cima disso. Se a gente não fez nada para que avançasse, aí fica
ruim. Mas nesse meio tempo tem muita coisa que acontece...
P: Mesmo entre esses alunos que tem mais dificuldade você percebe do começo do ano para
cá...
C: Um avanço!! Teve muito avanço! A coordenadora tem isso lá, ela tem um documento que
a gente fez, uma planilha, tudo direitinho, de cada aluno, como iniciou, como pensava, e
como está agora no mês de agosto. Eles estão avançando bastante. Era para ter avançado
mais, por exemplo a gente já deveria estar produzindo mais textos , com escrita alfabética... A
gente produz textos, mas é mais coletivo.. Eu tenho realmente investir mais na questão da
leitura e escrita para partir para a questão da produção individual, porque... Não que eles
deixem de fazer, eles fazem, mas a ideia é que eles façam alfabético...
187
P: Em relação a esse episodio da palavra cruzada, que a gente assistiu agora, tem alguma
coisa que você faria diferente, ou deixou de fazer, ou gostaria de fazer de outra forma?
C: Tem. É que eu teria que ter colocado um banco de dados para favorecer eles... Um banco e
dados... Porque na hora de colocar ali “pulem”, eu poderia ter colocado lá “pulem”, uma outra
palavra que não começasse com P, e uma outra que começasse mas a segunda letra fosse
diferente, uma outra que começasse e a ultima letra fosse diferente, para eles ficarem na
duvida e começarem a pensar a partir daquelas palavras também. Aí eles iriam descobrir
“pulem” com facilidade mas com qualidade. “Ah, ta, é essa daqui porque começa com P e
depois vem o U, e tem também o LE”.... Eles iriam descobrir as letras mesmo. Poderia pedir
que eles silabassem mesmo a palavra, para sentir, perceber o som... É, acho que eu poderia ter
feito assim...
P: Você acha que assim conseguiria um resultado melhor?
C: É, eu conseguiria melhor. Mas foi interessante também... Para Juliana, por exemplo,
porque Juliana não conhece as letras, ela percebeu... O colega que queria que começasse com
U, porque está nesse nível, que sente o som da vogal, e Juliana não sente o som, ma quando
eu coloquei lá que começa com PU, ela percebeu “ahh, a letra é essa!” apesar de não conhecer
a letra, aí alguém já falou “letra P” e eu perguntei: “como é mesmo, Juliana, o nome da letra?”
e ela respondeu “P”, ela aprendeu que era P... Então foi bom, mas o banco de dados iria
favorecer mais... Mas eu acho que foi legal, foi legal...
P: E assim, pensando em todos esses episódios que você assistiu, tem alguma outra coisa que
você gostaria de colocar, acrescentar, comentar, explicar, justificar... ?
C: As atividades poderiam ter sido feitas... Porque eu fiz, não é? Fiz bastante em grupos, mas
poderia ter feito mais... Poderia ter mexido mais nos grupos... Apesar de ser trabalhoso,
porque tem sempre alguém que atrapalha, mas mesmo com tudo isso ajuda, ajuda bastante.
Aquela cruzadinha, por exemplo, depois dali eu poderia ter feito o que eu não fiz, ter voltado
para o grupo em outro dia, porque se não ia ficar cansativo, e fazer a mesma cruzadinha só
para esses meninos, nos grupos, pedir aos outros que fizessem uma outra atividade, e pedir
para eles montarem, dar a quantidade de letras exatas e pedir para eles montarem porque o
desafio seria maior, e ficaria com esses no grupo com uma cruzadinha cada um, mas eles
iriam fazem em grupo. Aí eu nesse caso sairia perguntando questões para cada um “e aí,
fulano, você concorda? Por que?” aí eles iriam aprender mais... Eu sinto dificuldade porque
eu quero fazer muito nos grupos, mas tem os outros também que vem... Se eu pudesse estar só
com esses aí, investindo, eu sei que eles estariam alem, mas tem essas questões de briga, de
188
sair, o tempo todo... Mas o grupo ajuda, ainda mais nessa turma que já tem muitos alunos
alfabéticos... Ajuda porque um vai de encontro ao outro, e explica, aí o outro começa a
pensar, e vê, e percebe que realmente é daquela forma, e avança de nível. Eu quero fazer, eu
estava falando essa semana, quero fazer mais atividades em grupos... E para o grupão
também, agora quero fazer mais atividades de texto para eles seguirem, e vou investir nessas
atividades com alfabeto móvel, que é muito bom para eles, para ir montando as palavras... É
ótimo, porque aí eles vão selecionando, vão vendo como ficou, sabe? Tem a chance de brincar
com as letras... Nessa turma eu não tenho muito problema com alunos assim hiperativos, mas
na turma da tarde eu tenho... Tem um menino que quando ele não vem a sala fica uma benção,
mas quando ele vem é um furdunço... Porque a mãe não sabe se ele é, se ele tem algum.... sei
lá, alguma necessidade especial... Só se sabe que ele não consegue se concentrar e bate em
todos os alunos, sabe? Nessa turma, em relação a hiperatividade não, é mais essa questão....
Tem alunos que a gente está explicando, está explicando e ele não consegue entender, e nem
ele pergunta... Ele se esforça mais não consegue aprender, a gente fica preocupado.... Ou ele
aprende de um outro jeito, em outro ritmo, e a gente fica angustiado querendo que ele aprenda
logo... Porque cada um tem seu ritmo, mas eu fico preocupada: “ai meu deus, só avançou até
aqui, tem chegar até aqui”. A minha preocupação é essa. Não quer dizer que ele não avançou,
mas avança em outro ritmo, mais devagar. Esses seis mesmo estão assim. E apesar de estarem
menos avançados, eles avançaram mas cada um dentro de um nível, ou estão no mesmo nível
mas pensam diferente. Por exemplo, Edilson pensa só qualitativamente, mas não em todas as
letras, ele pensa que para escrever “boi” só basta do O e do I. Já Douglas e a irmã dele,
Edilene, percebem que para fazer “boi” preciso do B, do O e do I, então essa dupla por
exemplo já é interessante de trabalhar, porque já traz outros elementos. Aí essa questão das
intervenções, porque eu acho muito importante em qualquer processo é essa questão das
intervenções, o que você pretende. Porque hoje você fala: “ah, hoje eu vou dar a família do
B”, e você planejou o que você vai dar, mas você não planejou como vai dar, aí estraga tudo.
Antes eu tinha intenção de ajudar os alunos, quando eu trabalhava na zona rural, mas eu não
tinha esse conhecimento ainda. Então os meninos silabavam que era uma beleza, mas os que
não conseguiam logo, coitados, acabavam perdendo. Tinha lá uns 12 ou 13 reprovados, dois
anos seguidos, por conta dessa coisa. E tinham uma ótima compreensão. E isso por causa da
falta desse planejamento do como ensinar, do que você quer fazer com cada um, ou com cada
dupla. Tem que intencionar mesmo! Porque se você não intenciona fica aquela coisa, você lá
na frente pá pá pá pá, você achando que está dando tudo na aula, os meninos repetindo que
189
nem uns papagainhos, e a gente achando que está fazendo e acontecendo e não está, está
discriminando, está deixando para lá, e nem está pensando. A gente nem pensava, a gente por
exemplo, quando os meninos estavam escrevendo a silaba CA, eles pensam que é o C e o A, e
se eles escrevessem CADEIRA de outro jeito que não fosse com o C e o A, ali já estaria
errado, e agora a gente sabe que não é assim, que poderia ser com K ou Q, quer dizer, eles vão
formulando hipóteses. Aí cabe à você intencionar, explicar “ta, pode ser K, mas tal palavra se
escreve assim, elas começam do mesmo jeito”.
P: E essa mudança toda, desde esse tempo anterior, quando você não tinha ainda essa
intencionalidade em cada atividade, até agora, o que você acha que trouxe essa mudança?
C: Foi depois que eu comecei.... Depois da faculdade. Depois que comecei a faculdade. Eu
sempre gostei muito de estudar, e tudo que iam falando lá eu comecei a botar na prática. Aí eu
fui vendo isso, os níveis de aprendizagem, como fazia. Aí eu comecei a ver isso mesmo como
uma coisa da minha prática, e trouxe para a sala de aula. E funcionou bem, muita coisa já
mudou. Muita coisa mesmo. E agora assim, eu posso até não conseguir os 100% alfabéticos,
mas muitos desses que ainda não estão, tem condição plena de ir para uma outra série. Agora
cabe ao professor ver o relatório individual dele, ver o que ele já sabe, o que ele já garante,
para a partir daí seguir. E às vezes aqui não acontece isso, porque tem professores novos
chegando, não estão sabendo ainda desse processo, dizem “não ta sabendo tal coisa, tem que
saber” e nem olham relatório nem nada, não olham nada, e começam do zero, e ai muitos
repetem, muitos começam a repetir. Eu, tem dois anos, passei alunos silábicos qualitativos
para uma oura serie, no caso segundo ano, porque agora alfabetiza no primeiro ano. Aí passei,
coloquei no relatório, aí os professores que já estavam aqui, que já sabiam até as atividades,
“Cássia, você tem uma atividade assim assim, que possa ajudar fulano”, eu elaborava as
atividades junto, passava, o professor fazia, me pedia até ajuda, os meninos avançaram. São
ótimos alunos. Já desse ano, eu não passei silábico qualitativo, passei silábicos alfabéticos,
um pouco a mais ainda, e o menino está lá do mesmo jeito, correndo o risco de voltar. Tem
que ver isso, porque se não ele vai regredir. Porque todo dia essa outra pro me fala: “fulano
não ta fazendo nada, ele não sabe nada”. Aí nas atividades nada para favorecer para ele
seguir. Não tem nada disso, é tipo “leia o texto e responda”, ele vai conseguir o que ali? E aí
falar as vezes é ruim, porque você acaba conseguindo inimizade. O grupo é bom, é legal, mas
assim, quando parte para a sala de aula, quando você quer falar alguma coisa para ajudar –
muitos aqui não, porque já sabem estão estudando o processo – mas quem está chegando
agora, essas novas que estão chegando agora, se sentem ofendidas de ouvir alguma coisa.
190
Você vai com jeitinho, arrumando as palavras certas para poder não magoar, mas mesmo
assim no final acaba magoando, porque a pessoa não fala na hora mas depois acaba falando
para outros, fica um clima ruim. Aí é a criança que perde. Os pais não entendem também, não
estão nesse processo, aí as crianças perdem. Mas não é maioria não, a escola já mudou muito.
P: Então você considera importante esse trabalho coletivo dentro da escola?
C: Muito! E também essa questão de qualificar.... Se qualificar também. Porque esses
professores que estão chegando agora tem muito tempo fora da sala de aula, eles estavam
desempregados e o prefeito foi e empregou. Aí coloca na sala de aula. Aí eles vão querer
ensinar como eles aprenderam.
P: Então você percebe nos outros professores, que também estão passando pelo processo de
formação, no mesmo curso que você faz, você percebe neles também essa mudança na forma
de ensinar, assim como está acontecendo com você?
C: Sinto. Está fazendo um efeito grande, porque todo mundo aqui incorporou e está trazendo
isso para a sala de aula. A gente fica buscando, sabe? Se preocupa, sai daqui e vai para a outra
escola, quem vai pegar a turma, a gente vai na secretaria de educação, conversa... A secretária
de educação do município também tem essa visão... Mas tem coisas que passam por cima
dela...
P: Você considera então que essa faculdade é boa, já que os professores que tem passado por
ela estão melhorando muito?
C: Na realidade é assim, é a FTC (Faculdade de Tecnologia e Ciências) . A gente só tem uma
aula, um dia de aula. Mas tem vários trabalhos, é uma trabalheira.... Como antes dessa
faculdade a gente já tinha iniciado, a gente fez antes seis meses de UEFES, e eram todos os
dias, agente já estava bem, a gente tinha ótimos professores, e aí a gente seguiu essa linha.
Porque a FTC na realidade ela tem material, tem tudo para ajudar, mas é um só dia de aula, e
é aula virtual, então tem gente que vai e não liga muito para a aula, porque é virtual, o
professor não está ali ao vivo, ele está só no vídeo, a gente assiste aula pelo vídeo. Mas a
gente tem material disponível. Como a gente já vinha naquela linha, com aquela vontade de
estudar e tal, porque a gente fazia UEFES antes, a gente seguiu. A UEFES era ótima, menina!
É a faculdade de Feira de Santana. Mas aí teve um problema na prefeitura, que não estava
pagando a UEFES, aí eles fecharam a unidade daqui.... Era naquele prédio branco na praça,
sabe? Era ótimo! Mas aí acabou porque a prefeitura não pagou. Agora nesse curso a gente
está fazendo assim, a gente paga e a prefeitura dá a metade. Mas não é tão boa não, como a
anterior. E está uma confusão, tem um monte de problemas lá, parece que a prefeitura
191
também não está pagando direito a parte dela... Mas a gente não quer desistir! A gente já
estava naquela linha da UEFES, então a gente está pegando o melhor dessa, pegou o melhor
da UEFES e está trazendo para cá, estamos estudando, então isso está melhorando. A gente
sabe que tem muita coisa que precisa mudar, mas a gente evoluiu bastante já.
P: Então essa mudança, essa evolução que está ocorrendo na atividade dos professores, você
atribui mais ao empenho e a dedicação dos próprios professores do que à qualidade na
formação?
C: Sim, atribuo mais aos professores. Até porque a FTC não da tantas condições para a gente.
Até o espaço físico, a gente ficou 20 dias sem aula por conta do espaço físico. A prefeitura
também não pagou o aluguel do prédio, não pagou a FTC, aí a FTC ficou sem espaço, e a
gente sem aula. Mas estudando em casa.
P: E tem outras coisas que você viu na faculdade, que você aprendeu dessa parte teórica, que
você gostaria de implementar mas que ainda não conseguiu? Você me contou que tudo que
você foi aprendendo, foi colocando em prática... Tem alguma coisa que ainda não deu para
colocar?
C: Tem essa questão.... Trabalhar com crianças hiperativas ou especiais, surdos.... A gente
tem que mudar muito, mudar as atividades.... Ano passado eu tive uma menina na minha sala,
e aí eu não conseguia fazer nenhuma atividade assim com ela. Ela não ouvia. Não ouve nem
fala, mas era tão participativa, prestava atenção em tudo! E ela ia na minha mesa, aí eu fiz
poucas coisas com ela assim, sabe? Eu não tive tempo.... 40 horas, aí eu não tive tempo. Mas
ela era tão esforçada! Então talvez isso, dar mais atenção às crianças com necessidades
especiais, mas não sei como. Porque de qualquer forma, na sala aí eu trabalho com crianças
especiais, todos são especiais.... Mas no caso dela, especifico, eu ainda não planejei, elaborei
atividades específicas para ela, tanto quanto eu deveria. Eu fiz algumas, mas não todas que
deveria. Mas mesmo assim eu busquei, eu fui, busquei o alfabeto em libras, cores, animais,
fui na internet buscar isso... Agora ela está com outra professora, não é mais minha aluna, e a
outra professora também esta buscando, mas eu mesma não fiz muita coisa... Mas procurei!
Mas aí tem isso aí.... Tem mais o que? (Pensa durante alguns minutos) Acho que é isso,
porque no mais tudo que eu aprendo eu procuro colocar na sala de aula...
P: E tem alguma coisa que você aprendeu que você pensa: “ah, isso é bobagem, não vou
colocar isso em prática, não acredito nisso...”?
C: Tem a questão da gestão escolar que a gente vê.... A relação com os pais, as merendeiras....
A gente já tentou, mas é difícil lidar com isso. Tem coisas que eu acho melhor não falar,
192
porque aí vai gerar os problemas, aí tem coisas que eu vi que acho melhor não falar, não é
porque eu acho bobagem, mas porque eu acho que vai criar muita confusão...
P: tem mais alguma coisa que você queira falar sobre sua atividade, Cássia?
C: Que eu me lembre agora não tem não....
P: Eu queria que você me contasse como você se sentiu de assistir aos episódios, de se assistir
em atividade, o que você achou desse processo, disso que a gente fez agora... Como foi para
você?
C: Foi muito bom! Foi importante, porque às vezes a gente vai fazendo as coisas, achando que
está tudo muito bom, e não para nem para refletir tanto.... E assim, agora foi muito bom,
porque eu comecei a perceber por exemplo nas aulas o que poderia ter sido diferente, o que
poderia ter feito.... Me fez refletir mais sobre, pensar ainda mais neles, nos alunos. E eu não vi
nenhum problema em você ficar aí não, achei tranquilo, você não incomodou, ficou tranquila
lá, com os meninos. E me deixou à vontade, porque se eu me sentisse nervosa, envergonhada,
aí seria ruim. Mas não, eu me senti à vontade, continuei do mesmo jeito. Fez só favorecer,
porque me fez perceber “ah, naquele momento poderia ter feito tal coisa, poderia ter sido feito
assim”. Então foi muito bom!
193
ANEXO 4
Transcrição da ACC
Episódio 1:
Renata: Eu só fiquei na dúvida sobre o seguinte: qual o objetivo principal? Você pegou um
menino, o que te levou a pegar essa criança? Deu para perceber um pouco, mas qual era seu
objetivo mesmo com essa criança?
Cássia: Assim, considerando os níveis da turma e levando em consideração que todos
deveriam trabalhar o mesmo texto, esse texto foi trabalhado numa sequencia. Nesse momento
eu chamei exatamente esse aluno para que ele percebesse que para escrever usava-se letras, e
determinadas letras, letras selecionadas através de alguma estratégia. Ele não reconhece ainda
totalmente o alfabeto, mas ele sabia a palavra que ia encontrar, só precisava de apoio, de
condições para encontrar, só que nesse momento ele não encontrou, porque ele está num nível
diferenciado onde ele não consegue ver quantidade nem qualidade. Ele sabe que se escreve
com letras, mas não sabe quais e nem quantas. Aí você viu que eu intervi de uma maneira que
ele percebesse que PÉ começava com P, fui lá, grifei, mas isso para ele não foi tão
significativo naquele momento. A partir daí, como ele não conseguiu, a gente foi e ajudou ele
no coletivo. Aí ele começou a pensar sobre. Porque se eu chamasse logo de imediato os
meninos que já sabem, eles já saberiam de imediato e a gente não teria assim esse momento
para ele. Por isso que depois eu levei para o grupo “agora, gente, vamos ajudar, como se
escreve PÉ?”
R: E ele é um aluno frequente?
C: Ele já foi infrequente, agora é frequente, não falta tanto não...
R: E ele não consegue acompanhar?
C: Não. Ele e mais 6
R: Essa musica já tinha sido trabalhada com eles?
C: Já. É aquela parlenda “um homem bateu em minha porta e eu abri....” Nós já trabalhamos
em aula, e a professora de educação física também já trabalhou com eles, então eles
conhecem de cor. Essa atividade foi uma sequencia, e ele participou de todas, e ainda não
conseguiu naquele momento encontrar PÉ.
R: E nas outras?
C: Em outras atividades a partir daí, eu já sabia que ele ia precisar de ajuda, aí fui até ele e ele
já conseguiu encontrar outras palavras também que a gente foi trabalhando. Mas sempre
assim com ajuda. Se colocar “fulano, procure aí PÉ” ele não acha não.
194
A professora Cássia pede para seguir para o próximo episódio.
Episódio 2:
Renata: Vou repetir a pergunta anterior... Porque você escolheu aquelas crianças para
responder as questões de cálculo?
Cássia: Na realidade eu nem escolhi. Foi uma atividade de correção da lição de casa, eu
queria saber se todos tinham feito a atividade e como resolveram. Aí como esse aluno não
havia feito a atividade, eu encontrei um momento para que ele pudesse fazer lá na frente, para
depois a gente confrontar se alguém tinha feito diferente, mas pelo que eu vi as respostas
estavam todas iguais. Agora eu não sei qual estratégia eles tinham usado, mas o resultado foi
encontrado. E também eu deveria ter.... Na realidade, eu queria saber como eles resolveram,
mas eu tive que focar e uma outra coisa, porque como esse aluno não tinha feito, eu parti para
ele, para que ele fizesse e mostrasse como. E foi até legal porque na hora que ele estava
contando, ele contava tão rápido que ele pulou um, aí eu fui, interferi e pedi ajuda dos
meninos. Só que como os meninos já tinham feito essa atividade, não era tão desafiador ficar
ali, só prestando atenção... Aí começaram a sair do lugar, ficar agoniados, já queriam logo
fazer...
R: E durante as aulas, esses alunos participam direitinho? Principalmente aulas assim de
matemática?
C: Participam bastante! É uma turma muito participativa. Só que assim, eles participam no
coletivo, quando é individual eles ficam perdidos. Quando coloca em grupos, favorece porque
eu coloco sempre uma questão para ter discussão, porque eu percebo que um já sabe o
número, mas o outro ainda não conhece aquele número, aí o que já tem um conhecimento a
mais já ajuda o outro.
R: Eu te conheço a bastante tempo, conheço seu trabalho, sempre com alfabetização... No
caso dessas crianças, elas tem assim um acompanhamento?
C: Não, isso é que dificulta, essa questão do acompanhamento... Nesse dia, só esse aluno
disse que não tinha feito. Na verdade, tinha mais dois ou três que também não tinham feito,
mas como eles não se manifestaram eu não quis chamá-los logo na frente, mas eu sei que
aquela explicação poderia servir para eles também. Mas eles não tem apoio em casa, nas
atividades... Eles teriam que ter sempre alguém ali observando, apoiando... Todos os dias tem
alguém que fala “ah, eu não fiz por isso, não fiz por aquilo, minha mãe ta doente, minha mãe
viajou”e essas coisas assim. Então eles não tem esse acompanhamento, e isso dificulta porque
195
a gente precisa dessa parceria. Você sabe, né?! A gente precisa dessa parceria. Se não tem,
fica só o professor lá, se desmiolando, e às vezes o resultado não vem como a gente quer...
A professora Cássia pede para seguir para o próximo episódio.
Episódio 3:
R: Num determinado momento, o que a gente pode perceber é que as crianças que tem mais
facilidade assim para aprender não tem paciência de esperar aqueles que tem menos
habilidade... O que eu vi é que essa cruzadinha é com a mesma parlenda da outra atividade, e
aí no caso também tinha seis alunos...
C: Eu chamei seis, mas depois os outros começaram a levantar... Porque assim, nessa
atividade eles teriam que pensar sobre quais letras e a quantidade de letras também, e para
fazer isso eles teriam que ir ajustando, por partes, encaixando as letras. Eu queria chamar
esses meninos aí para que eles percebessem realmente a questão. Os outros que já estavam
mais avançados ficaram impacientes, e a gente também tem que pensar em atividades que
favoreçam esses... Porque geralmente quando eu vou pensando, planejando, penso que tem
pouco tempo para os outros avançarem também, esses que ainda não avançaram tanto. E os
outros que já estão mais adiante, eles querem ajudar logo, porque eles precisam também fazer
a parte deles, seguir... Aí naquele momento eu peço para eles ficarem ali só observando
porque vai chegar o momento também deles ajudarem. Não é da forma que eles querem,
porque eles não tem ainda esse conhecimento... Então se eu que tenho esse conhecimento e
preciso ajudar os alunos, preciso pensar primeiro, agora, nesse momento, mais neles que estão
mais atrasados e precisam de mais investimento, e preciso elaborar também atividades para os
outros. Infelizmente nessa atividade aí não foi pensada de maneira que eles ficassem lá
centrados. Eu queria que eles ficassem lá prestando atenção para depois vir auxiliar os
colegas.
R: A gente sabe que é muito difícil fazer atividades diferenciadas para contemplar alunos que
estão mais avançados e aqueles que estão mais atrás é complicado, porque é uma professora
só para dar conta de uma turma de quase 30
C: Até porque a questão – todas as series eu acredito que precisaria – mas eu penso que não
alfabetização, que é uma base para depois, deveria ter uma professora ajudando, para estar
dando esse suporte, ajudar com as atividades... Porque se você está ali, para dar conta de tudo
é difícil. Você viu, eu nem tinha percebido isso, mas eu estava lá explicando e toda hora
interrompendo: “fulano, senta e presta atenção”, aí chega alguém na porta, toda hora tem que
parar e voltar de novo. Ter esse controle é um pouco complicado.
196
R: Essas interferências às vezes atrapalham, como no caso daquela menina, ela não reconhece
as letras ainda e a gente já está no mês de agosto...
C: Mas já tem uma grande maioria, graças à deus, que já está lendo, mas tem aquelas crianças
ali, que são seis, que ainda não reconhecem nem as letras. Então a gente tem que primeiro
pensar nelas
R: Mas só tem esses seis?
C: Que não reconheça letras só. Mas tem uns que reconhecem mais ainda não saíram do nível
diferenciado, ou que saíram do diferenciado mas ainda estão no quantitativo... Mas o mais
sério são esses seis. Tem também alunos que estão em outros níveis mais ainda não estão
alfabéticos. Tem silábicos, pré-alfabeticos, que ficam oscilando... E aí minha intenção é
assim, eu já tinha até comentado que você sabe que a gente tem uma meta ao final de cada
série, e aí uma das metas foi alfabetizar 100% dos alunos. A gente ousou, 100%. Então eu
tenho que conseguir, e esses seis alunos aí vão ser uma porcentagem altíssima e vai
implicar.... E aí a minha intenção é fazer com que eles aprendam, mas aprendam mesmo, com
qualidade! Eu não quero só cumprir por cumprir, eu quero porque eu sei que eles precisam
disso para seguir para a próxima série.
Prof.1: Então é isso, pesquisadora! Acabamos por aqui?!
197
ANEXO 5
Quadro de Pré Indicadores da Entrevista.
Eu sempre estudei em escola publica, e tive uma professora muito boa...
E assim, naquela época, existia muita discriminação, né? Quando a pessoa era negra... E essa
professora só tinha 3 alunos que tinham uma cor mais clara, e todo mundo era negro mesmo.
E ela era de uma cor misturada, ela tinha a pele mais clara, mas tinha também os
descendentes dela que eram negros, então ela valorizava muito isso.
E aí ela tinha muito carinho por todos, e fazia questão que todos aprendessem. Ela
trabalhava no método tradicional, mas que a gente aprendia principalmente a decodificar e
também a valorizar o outro.
Ela sempre fazia uma redação que perguntava: “o que vocês querem ser quando crescer?”, aí
eu falava: “eu quero ser professora igual a senhora”
E aí também que Lençóis não tem muitas oportunidades, aí quando eu cresci realmente
segui essa carreira, não tinha também outras oportunidades...
Mas antes de ser professora eu fui cozinheira, atendente de hotel, recepcionista da
Secretaria de Educação aqui de Lençóis, depois professora.
Porque eu antes passei por essas outras experiências porque eu não tinha oportunidade
para ensinar, aí quando surgiu...
Aí um professor meu veio a minha procura e me perguntou se eu queria ser professora da
zona rural, aí eu aceitei e fui para a zona rural e trabalhei lá 4 anos.
Eu não tinha formação especifica, inclusive ainda não tenho... Estou na área de
pedagogia, mas ainda não me formei. Estou cursando pedagogia aqui em Lençóis mesmo.
Estou no sétimo semestre, aí o ano que vem eu concluo.
Desde 1997. Faz uns 15 anos
Eu sempre trabalhei com multisseriado, educação de jovens e adultos, e eu tenho
preferência em trabalhar com as séries iniciais, na faixa etária de 5 até 7 anos.
Porque eu trabalho com alfabetização, e eu gosto porque eu acho que é a base...
Eu gosto de trabalhar com criança também, adolescente eu já acho que eles são muito
agitados demais... As crianças são agitadas, mas elas compreendem mais, elas respeitam
mais... aí eu gosto mais dessas séries.
Nessa escola eu trabalho há 6 anos. Mas assim, esse prédio é do estado e esta emprestado
ao município, e aí eu trabalhava em outro prédio, mas é a mesma escola, José Senna. Aí
nessa escola eu já tenho 8 anos.
198
Eu fico 40 horas na escola, e a gente na sexta feira a gente planeja aqui, mas eu dou
continuidade em casa, porque é muita coisa, a gente tem que pesquisar, ver material, e aí
na escola não dá
Aqui eu só faço listar com colegas, com a coordenação pedagógica, ver algumas coisas,
algumas questões especificas de sala de aula, e aí eu levo para casa para poder estar
planejando diariamente as atividades da segunda, terça, quarta, de acordo com o que a
gente discutiu no grupo.
Porque eu tento organizar bem o tempo... Porque eu também sou mãe, dona de casa,
mulher... Aí tem que organizar o tempo.
Eu gosto. Eu gosto de trabalhar com crianças...
Eu sei que é desvalorizado, é muito desvalorizada nossa classe, mas eu gosto de
trabalhar, eu me sinto muito satisfeita ao ver que as crianças estão aprendendo... Estão
aprendendo de uma maneira diferente, mas estão aprendendo... E de valorizar isso também,
a sala de aula como um todo...
Porque antigamente a gente trabalhava de outra maneira, trabalhava com a cartilha... E
hoje em dia a gente pode trabalhar o mesmo conteúdo sem precisar da cartilha, e sem
precisar também dizer: “fulano sabe mais do que sicrano”... Eu gosto.
Olha, desde que eu trabalhava na zona rural eu já via por esse lado, só que eu não tinha
nenhum embasamento teórico, eu fazia porque eu acreditava que assim que tinha que ser...
Até porque essa coisa de ver todo mundo aprendendo...
Mas aí depois que eu entrei na faculdade, muita coisa melhorou... E aí eu pude investir
mais nisso, com embasamento teórico, né? Fui percebendo que eu estou indo na linha certa.
Às vezes eu fico assim com alguma dúvida, porque eu queria que todo mundo aprendesse
da mesma maneira, no mesmo momento, né?
Quando a gente tem uma sala... por exemplo, na manhã são 25 alunos, mas tem uns poucos
que já leem convencionalmente, outros não... Por trás disso tem outros fatores também que
estão impactando alguma coisa... mas eu sei que apesar de ainda não estar decodificando,
eles também estão aprendendo...
Eu gosto de ser professora, mas eu queria ser mais valorizada, financeiramente. E eu
penso também nos meus filhos, porque com o salário que eu ganho eu não posso mantê-los
em uma faculdade boa
E assim, eu escolheria ser enfermeira, porque é uma profissão que eu acho muito valiosa
também, além de ser professora, porque você vai ajudar alguém, eu acho tão importante
199
essa questão do cuidar da vida e tudo... Enfermeira. Não sei também se o salário
compensaria, mas eu escolheria enfermeira.
Eu vejo meus alunos como seres pensantes, que já trazem muito conhecimento... Eles
trazem muitos conhecimentos, mas alguns conhecimentos precisam ser aprimorados e
compartilhados, eu diria...
Assim, como é uma classe de alfabetização, eu tracei desde o final do ano passado, que eu
queria que essa turma desse ano saísse todo mundo, 100% da classe, alfabetizado. A gente
sempre pensa alto, é, porque quer o melhor...
Estamos no mês de julho, e eu percebo que eu não vou conseguir alcançar totalmente
essa meta. Mas 80% eu creio que sim.
Mas nem por isso eles serão reprovados, porque a gente vê também muita coisa da parte
qualitativa deles... E aí a gente vai analisar, vai ver a questão das competências que eles
devem garantir ao final dessa série, e em cima disso é que a gente vai ver se eles serão
aprovados ou não...
Agora essa meta de 100% alfabetizados, eu creio que não vou conseguir... Mas assim,
pode ser que eu tenha uma surpresa, né?
E assim, o que eu vou fazer para alcançar essa meta é... eu fiz alguns encaminhamentos,
eu separei por grupos, cada nível em que eles se encontram, então...
Eu trabalho bastante com essa coisa de um ajudando o outro, essa parceria... São grupos
produtivos, eu trabalho com isso.
E para aqueles que já estão mais avançados também tem atividades de produção e revisão
textual, já pensando nas questões ortográficas.
Agora, com o mesmo texto, entendeu? Todo mundo trabalhando com o mesmo texto. É
assim, todo mundo participa, todo mundo tem conhecimento do mesmo texto, a atividade
é que é diferenciada, pensando no que cada um já trás, e no que pode avançar.
No caso dessa turma é porque a maioria esta saindo da creche, é eles estão chegando
aqui já com um déficit... Eles chegam assim, com alguns conteúdos que eles deveriam ter
trabalhado lá e que não foram trabalhados, eu não sei por quais motivos, e aí chega aqui eu
tenho que dar conta disso...
Outros porque faltam muito, outros não tem acompanhamento em casa, chega na sala
sem material, a gente tem que estar providenciando, improvisando no momento da aula, e
alguns que tem outros fatores, assim... pessoais... chegam e não querem fazer nada, estão
tristes, alguns que até questionam que não tem comida em casa, essas coisas...
200
Tem dificuldades de aprendizagem... Tenho aqui nessa turma da manhã 5 alunos, à tarde
tem uns 8.... Que eles não conseguem avançar, por mais diferente que seja a atividade,
eles não conseguem avançar...
Agora assim, tem horas que a gente tem que dar muita assistência para esses alunos que
tem mais dificuldades, e como as salas são lotadas, as vezes a gente não consegue dar
conta... Até porque enquanto você esta dando aula, um começa a bater no outro, xingar, e
alguém entra na sala, uma pessoa quer falar com você.... Então muita coisa acontecendo,
você quer dar uma atenção especial para aquela criança e não tem como...
Se a gente tivesse pelo menos uma pessoa para estar ajudando, sabe? Isso ajudaria mais...
Porque tem momentos em que aquela criança não quer fazer nada, mas no momento que ela
quer fazer, se você chegar perto, aí consegue dar uma avançada... E as vezes naquele
momento você não tem como chegar perto dele, porque tem que dar conta de outros, ou
de outras coisas na própria sala, tipo violência, agressões, ou alguém que não trouxe
material, ou outro que está cutucando o coleguinha...
Como eu te falei, eu invisto muito no trabalho em grupo, porque no grupo tem sempre
alguém que esta um pouco a mais na frente, então eu tento investir nesses grupos para um
ajudar o outro, e estar me ajudando também... Agora, eu fico auxiliando todos os grupos.
Assim, a gente trabalha em cima do Projeto Político e Pedagógico, e aqui e gente tem...
A gente trabalha numa concepção sócio-construtivista, a gente avalia...
A avaliação, na realidade, a gente faz através de diagnósticos, através da observação na
própria sala de aula, diante das atividades. É uma coisa constante, a gente está sempre
registrando
E isso eu não fazia antes, quando eu estava lá na zona rural, eu não tinha esse
conhecimento. Eu sabia que tinha isso, mas eu não fazia. Hoje eu já acho necessário que se
faça mesmo um registro..
A gente esta sempre registrando para ver o que avançou, porque se você vai avaliar a
sala como um todo, aí você vai pecar, mas se você avaliar diante do que apresenta cada
aluno, aí você vai ter como avaliar, comparando cada um consigo mesmo, e investindo
individualmente.
No final do ano, eu faço tipo uma prova, mas na verdade ela não é o único instrumento
para avaliação. Tem essa prova, tem o registro individual da cada aluno, tem apresentação
de resultados de cada um... A gente tem portfólios, e a gente vai guardando as atividades
escritas, os registros que a gente fez diariamente, o prazer de casa, tudo isso. Aí a gente vai
201
avaliar, quantitativamente e qualitativamente. Agora, o que conta mais aí é
qualitativamente, principalmente nessa turma. Aí a gente avalia em cima disso, dessa ficha, e
essa ficha é elaborada em cima dos PCNs, que trazem ali as habilidades e competências de
cada série, aí a gente avalia em cima daquilo, agora não desconsiderando todo o registro
anual.
Trocamos. A gente tem o momento de AC
A gente tem esse momento para planejar aqui... Sentar discutir, ver o um pode ajudar
o outro, conselhos e registros, e assim, apresentar resultados e também indicar algum livro,
alguma atividade, ou até construir atividades...
Ajudam bastante. A gente tem uma relação boa, de troca de experiências, um ajuda o
outro sempre
Ele só pensava no poder, e não tinha conhecimento do que é educação, aí ele não dava
oportunidade de encontros dos professores, e aí ele teve que sair, a gente deu graças a
deus
Chegou Mirtes agora, que tem uma nova visão. Ela também é professora, ela está na mesma
área que a gente, então muita coisa já mudou.
A diretora se reuniu com a gente, pediu opinião e todo mundo decidiu. Foi uma decisão
coletiva
Eu tenho vários obstáculos... A gente no momento está sem livro didático, não que ele
seja uma ferramenta única, mas ajuda muito, porque a gente tem uma sequencia de
atividades, mas às vezes a gente precisa de um apoio do livro didático, porque ele vem
mais colorido, tem mais imagens.... é tipo um apoio para sistematizar o que está sendo
trabalhado... A gente não tem... O que a gente tem é folha de ofício
Temos computadores na escola, mas nem todo mundo sabe lidar com esse instrumento,
eu mesma sei muito pouco. Quem digita meus trabalhos é ou a secretária ou meu filho... Eu
estou aprendendo agora porque estou com essa necessidade urgente de aprender a fazer.
E também tem isso, a gente tem computador agora, mas antes só tinha um, então ficava a
fila, para poder digitar as atividades... Então agora chegaram outros computadores aí, e a
gente está se empenhando mais em aprender e aí acho que vai ajudar bastante.
Mas assim, tem a questão do livro didático, tem a questão do material, folha de oficio,
costuma faltar sempre... Agora nesse momento a gente está com um pacote para duas
turmas e tem que durar uns 3 ou 4 meses, e não vai dar certo... Porque se a gente não tem o
livro didático, caderno a gente tem que usar, mas nessa faixa etária não dá para ficar o tempo
202
todo usando caderno porque vai cansar a criança, né? Então tem que ter atividades digitadas,
construídas mesmo, e isso também vem impactando o trabalho
E fora isso, tem a questão dos pais que não ajudam muito... Não ajudam mesmo. É
minoria os pais que chegam aqui para poder saber sobre o filho, só vem quando é chamado
nas reuniões...
E as reuniões da gente eram bem chatas antigamente, agora já mudamos tanta coisa...
Mas eles já estão habituados com aquele outro tipo de reuniões, já chegam perguntando: “O
que foi que eles aprontaram dessa vez? O que meu filho fez? Eu já falei com ele, ele vai
apanhar” e a gente chega para eles com essa nova visão, eles já dão uma respirada, mas
ainda ficam insistindo no que o filho aprontou...
Eles não se colocam também como pessoa que faz parte da aprendizagem do filho....
Parece que a escola é só a escola e em casa é outra coisa, eles não querem dar continuidade
em casa não...
A gente apresenta resultados, a gente coloca a coordenação para falar sobre o trabalho,
como é feito, a respeito das atividades, que eles questionam muito...
Então agora a gente está explicando como é feito o trabalho, baseado em que, o que a
gente está aprendendo, o que os meninos estão trazendo, e colocamos também temas da
atualidade, para eles perceberem que a escola não trabalha isolado da sociedade, que a escola
trabalha em parceria, quer trabalhar em parceria... A gente coloca várias coisas, vários temas,
faz recreação com eles, dinâmicas para descontração, tem chá....
Não é mais aquela reunião fechada, até o espaço aberto, onde um vê o outro, se sente mais
livre...
A nova direção... A gente já vinha com essa ideia antes, só que a gente era podado, e se a
gente tentasse fazer, era assim: “quer tomar a frente do diretor”.... E como a gente estava
brigando muito com ele, e a gente acabava se acomodando também... Com a nova diretora
não, tudo mudou.
Assim, a gente faz algumas atividades na sala de aula, mas a gente gostaria de fazer outras
atividades fora da sala de aula... Visita a biblioteca pública... A gente está trabalhando
sobre a natureza, e a natureza de Lençóis é tão rica, a gente mostra figuras, mostra fotos, mas
a gente não visita... Então tem esse tipo de passeio que a gente... que eu gostaria de fazer,
mas não faço, porque tenho medo de ir sozinha com a turma... Tenho medo de acontecer
algum acidente, alguma coisa com eles, e depois eu ter que responder por isso...
Pontos positivos? Hmm... A questão de valorizar tudo que a criança já traz consigo, e
203
tentar ajudar da melhor maneira a lidar com isso, a socializar, a fazer enxergar..
Eu acho que esse lado de sempre colocar a criança para cima, valorizar cada um, é um
ponto positivo em mim, sabe? E também de valorizar tudo que ele traz...
Eu fico às vezes preocupada porque eu queria que eles avançassem mais rápido, e eu
acho que esta faltando alguma coisa para poder ajudar... Mas eu não sei o que é... Não sei se
são as atividades, a forma... Eu não sei, porque assim, a gente trabalha mais com texto,
papel, quadro, essas coisas...
E aí, eu fiz um alfabeto móvel, e a gente coletou garrafa pet para fazer um boliche, e isso
ajudou bastante, foi bem interessante, mas eu queria estar fazendo coisas a mais, coisas
mais lúdicas.. Porque essa fase, né, exige isso, então às vezes eu acho que fica algo muito
pobre para eles...
É um ponto negativo, para mim, não dar essa condição para o aluno trabalhar
diretamente com o útil, todos os dias, e eu não tenho essa condição, de fazer essas
atividades, e nem tenho quem me ajude a fazer.
Essa importância assim, de que a gente não trabalha aleatoriamente, você tem um
embasamento para trabalhar, e você tem o conhecimento para estar entendendo melhor o
aluno... Essa vinculação da teoria com a prática... Tudo que eu aprendo lá eu tento
colocar em prática.
E outra coisa é, antigamente, quando eu trabalhava na zona rural, não tinha essa
formação, eu pensava assim: tinha que trabalhar com silabação, né?! Então hoje em dia eu
não penso mais assim
Então hoje em dia eu não penso mais assim, e quando chega uma mãe já falando
justamente isso: “ah, eu olhei o caderno de sicrano, ele já esta escrevendo bonitinho, até letra
cursiva já usa, e o meu filho não, descaramento, vou bater!” eu já tenho uma nova visão,
uma nova explicação, e material que comprove aquilo que estou dizendo. Ajuda
bastante na minha prática.
Por isso que eu escolhi pedagogia, porque é a minha área mesmo, uma coisa que eu
quero entender, e vou fazer psicopedagogia também, depois que eu concluir a faculdade.
A gente ajuda a elaborar. Foi construído em 2006, aí tem o apoio e mundo, a gente que
ajudou. Inclusive agora a gente vai sentar, na próxima semana, acho que na sexta feira, para
a gente rever, pensar se tem alguma coisa que a gente pode acrescentar, ou tirar.... A gente
vai rever.
Essa escola é considerada uma escola boa.
204
Aqui na escola, todo mundo era concursado, e ninguém tinha formação. Hoje já temos
duas pedagogas, uma psicopedagoga, e temos nós que estamos concluindo no ano que vem.
Nós, eu digo, tem seis professoras.
Só que aí tem professores novos, que entraram agora, ainda não tem essa formação,
ainda estão até na silabação e não gostam de ouvir muita opinião, tal... Estão chegando
agora e ainda estão assim um pouco confusos... Então a escola vai andando numa linha, aí
de repente, por questões políticas, chegam novas pessoas, entendeu? E aí quebra um
pouco... Porque tem vários professores trabalhando numa linha, aí chegam outras pessoas,
elas sabem da linha, mas trabalham do jeito que acham que deve ser... Então eu não
poderia dizer que a escola toda trabalha nessa linha.
Tem as formações, embora essas professoras novas que estão chegando, eles não fazem
ainda faculdade, mas eles participam da formação, e essa formação é justamente para
isso
São professores especializados que vão trabalhar tudo que a gente trabalha na faculdade, e
vai trazendo para eles de uma maneira, sabe... e traz a prática da sala de aula para estar
analisando...
Mas tem gente que tem medo, que já tem segurança no que faz, então não quer mudar
de imediato assim porque tem medo, para ele é mais cômodo segurar o que ele já sabe do
que arriscar alguma coisa. Então eu não sei até que ponto seria uma coisa boa para a
escola, entendeu? Sem menosprezar os colegas, porque eles estão tentando, estão dando o
melhor. Mas é complicado, é complicado.
Porque isso que eu te falei antes do aluno que escreve de uma maneira que a gente antes
achava que era insignificante, a gente já tem uma nova visão sobre isso, quem está
chegando agora não tem, e trabalha da mesma forma, do jeito que essa pessoa acredita que
é...
A gente trabalha em cima desse erro, que não é nem tanto erro... É a maneira que ele
esta pensando, inicialmente, porque não conhece ainda outra maneira. Aí a gente trabalha
em cima dessa situação que ele esta trazendo, e aí vai fazer comparações, mostrar
exemplos para ele mesmo perceber que existe uma maneira única de fazer tal coisa, de
escrever tal coisa... Para ele perceber, em cima do que ele fez... Nunca desvaloriza o que
ele já traz.
Foi quando eu trabalhava na Ponte, lá na zona rural... E aí eu trabalhava com três turmas, de
manha, à tarde e à noite, e aí, assim que eu cheguei, tinha uma moça lá, uma colega, que não
205
gostava de mim e achava que não iria dar conta... E eu consegui alfabetizar a turma
todinha, a turma da manhã todinha, a turma da alfabetização... Na época ganhei até um
prêmio aqui de melhor professora alfabetizadora! Nessa linha, né, tradicional mesmo...
Mas aí eu consegui. Os meninos também já estavam preparados para... Aí eu consegui, eu
me senti muito realizada.
Agora eu me sinto realizada assim, porque eu estou trabalhando com a turma que eu
gosto, que é de alfabetização, mas eu estou triste um pouco porque a essa altura ainda não
tem nem metade de sala alfabetizada...
Essa escola? Eu daria 8 para ela. Mesmo apesar dessas mudanças aí... Eu daria 8. Eu sei
que ela precisa melhorar muito, muito, muito mesmo, mas muita coisa já se mudou,
muita coisa.
Porque mesmo a maioria trabalhando numa linha, essa minoria que chegou está
atrapalhando um pouco, trabalhando de um jeito diferente, mas está trabalhando dentro do
que acredita, e está dando seu melhor também...
É a respeito das merendeiras da escola. Elas estavam seguindo a linha do antigo gestor, e
aí era muita indireta na escola, muito arrelio, sabe? Criticavam as crianças, criticavam
professores, a maneira de vestir, a maneira de falar, tudo.... Num momento desse a gente
estaria aqui conversando, elas estariam lá fora sorrindo... E aí, porque isso, porque elas não
cumpriam o horário, e a gente ia questionar e elas não gostavam...
Com a mudança do gestor, a diretora nova foi mostrar... Fez uma reunião, e fez uma
abordagem assim tão transparente do que ela queria e tal, pediu a opinião das meninas
e elas não queriam participar de nada... Não secavam talheres, não secavam pratos, não
faziam nada na cozinha, era tudo uma coisa assim mal apanhada...
A gente se reuniu e achou melhor que elas fossem para uma outra escola, fossem
remanejadas. E a gente conseguiu isso
Hoje o pessoal que está aqui é ótimo com a gente, prepara almoço, pergunta o que
queremos que prepare, se quiser trazer alguma coisa elas preparam e a gente almoça junto,
tratam as crianças realmente bem, como criança mesmo, ajudam...
Elas ajudam a gente em tudo, apóiam os meninos, então o trabalho agora está até mais leve,
mais alegre... Todo mundo aqui já chega alegre na escola... A gente fez agora uma
caixinha do anjo, onde cada um protege o outro, para não ter essa coisa de discriminação...
As meninas estão envolvidas... Então a escola está mais leve, mais gostosa de trabalhar...
206
Quadro de Indicadores e Pré Indicadores da Entrevista.
Indicadores Pré Indicadores
E aí também que Lençóis não tem
muitas oportunidades, aí quando eu
cresci realmente segui essa carreira, não
tinha também outras oportunidades...
Mas antes de ser professora eu fui
cozinheira, atendente de hotel,
recepcionista da Secretaria de Educação
aqui de Lençóis, depois professora
Antes passei por essas outras
experiências porque eu não tinha
oportunidade para ensinar, aí quando
surgiu...
E assim, eu escolheria ser enfermeira,
porque é uma profissão que eu acho
muito valiosa também, além de ser
professora, porque você vai ajudar
alguém, eu acho tão importante essa
questão do cuidar da vida e tudo...
Enfermeira. Não sei também se o salário
compensaria, mas eu escolheria
enfermeira.
Escolha profissional
Por isso que eu escolhi pedagogia,
porque é a minha área mesmo, uma
coisa que eu quero entender, e vou
fazer psicopedagogia também, depois que
eu concluir a faculdade.
Eu sempre estudei em escola pública, e
tive uma professora muito boa..
Admiração por uma professora como forte
fator de influência na escolha profissional E aí ela tinha muito carinho por todos, e
fazia questão que todos aprendessem.
Ela trabalhava no método tradicional,
207
mas que a gente aprendia principalmente
a decodificar e também a valorizar o
outro
Ela sempre fazia uma redação que
perguntava: “o que vocês querem ser
quando crescer?”, aí eu falava: “eu quero
ser professora igual a senhora”
E assim, naquela época, existia muita
discriminação, né? Quando a pessoa era
negra... E essa professora só tinha 3
alunos que tinham uma cor mais clara, e
todo mundo era negro mesmo. E ela era
de uma cor misturada, ela tinha a pele
mais clara, mas tinha também os
descendentes dela que eram negros, então
ela valorizava muito isso.
Falta de formação docente: estou cursando
pedagogia
Eu não tinha formação específica,
inclusive ainda não tenho... Estou na
área de pedagogia, mas ainda não me
formei. Estou cursando Pedagogia aqui
em Lençóis mesmo. Estou no sétimo
semestre, aí o ano que vem eu concluo.
Desde 1997. Faz uns 15 anos (que dou
aulas)
Eu sempre trabalhei com
multisseriado, educação de jovens e
adultos, e eu tenho preferência em
trabalhar com as séries iniciais, na faixa
etária de 5 até 7 anos.
Trajetória na profissão docente
Nessa escola eu trabalho há 6 anos.
Mas assim, esse prédio é do estado e esta
emprestado ao município, e aí eu
trabalhava em outro prédio, mas é a
208
mesma escola, José Senna. Aí nessa
escola eu já tenho 8 anos.
Aí um professor meveio a minha procura
e me perguntou se eu queria ser
professora da zona rural, aí eu aceitei e
fui para a zona rural e trabalhei lá 4
anos.
Porque eu trabalho com alfabetização, e
eu gosto porque eu acho que é a base...
Eu gosto de trabalhar com criança
também, adolescente eu já acho que eles
são muito agitados demais... As crianças
são agitadas, mas elas compreendem
mais, elas respeitam mais... aí eu gosto
mais dessas séries.
Preferência por séries iniciais
Eu sempre trabalhei com multisseriado,
educação de jovens e adultos, e eu tenho
preferência em trabalhar com as séries
iniciais, na faixa etária de 5 até 7 anos.
Eu fico 40 horas na escola, e a gente na
sexta feira a gente planeja aqui, mas eu
dou continuidade em casa, porque é
muita coisa, a gente tem que pesquisar,
ver material, e aí na escola não dá
Aqui eu só faço listar com colegas, com
a coordenação pedagógica, ver algumas
coisas, algumas questões especificas de
sala de aula, e aí eu levo para casa para
poder estar planejando diariamente as
atividades da segunda, terça, quarta, de
acordo com o que a gente discutiu no
grupo.
Organização do tempo
Porque eu tento organizar bem o
209
tempo... Porque eu também sou mãe,
dona de casa, mulher... Aí tem que
organizar o tempo.
Eu gosto. Eu gosto de trabalhar com
crianças...
Eu sei que é desvalorizado, é muito
desvalorizada nossa classe, mas eu
gosto de trabalhar, eu me sinto muito
satisfeita ao ver que as crianças estão
aprendendo... Estão aprendendo de uma
maneira diferente, mas estão
aprendendo... E de valorizar isso também,
a sala de aula como um todo.
Foi quando eu trabalhava na Ponte, lá na
zona rural... E aí eu trabalhava com três
turmas, de manha, à tarde e à noite, e aí,
assim que eu cheguei, tinha uma moça lá,
uma colega, que não gostava de mim e
achava que não iria dar conta... E eu
consegui alfabetizar a turma todinha, a
turma da manhã todinha, a turma da
alfabetização... Na época ganhei até um
prêmio aqui de melhor professora
alfabetizadora! Nessa linha, né,
tradicional mesmo... Mas aí eu consegui.
Os meninos também já estavam
preparados para... Aí eu consegui, eu me
senti muito realizada.
Realização profissional: se sente satisfeita ao
ver que as crianças estão aprendendo
Agora eu me sinto realizada assim,
porque eu estou trabalhando com a
turma que eu gosto, que é de
alfabetização, mas eu estou triste um
pouco porque a essa altura ainda não tem
210
nem metade de sala alfabetizada...
E aí, eu fiz um alfabeto móvel, e a gente
coletou garrafa pet para fazer um boliche,
e isso ajudou bastante, foi bem
interessante, mas eu queria estar
fazendo coisas a mais, coisas mais
lúdicas.. Porque essa fase, né, exige isso,
então às vezes eu acho que fica algo
muito pobre para eles...
Assim, a gente trabalha em cima do
Projeto Político e Pedagógico, e aqui e
gente tem... A gente trabalha numa
concepção sócio-construtivista, a gente
avalia...
Prática pedagógica: formas de trabalhar em
sala de aula
A gente trabalha em cima desse erro,
que não é nem tanto erro... É a maneira
que ele esta pensando, inicialmente,
porque não conhece ainda outra maneira.
Aí a gente trabalha em cima dessa
situação que ele esta trazendo, e aí vai
fazer comparações, mostrar exemplos
para ele mesmo perceber que existe uma
maneira única de fazer tal coisa, de
escrever tal coisa... Para ele perceber,
em cima do que ele fez... Nunca
desvaloriza o que ele já traz.
Transformações na prática pedagógica pela
formação docente: a vinculação teoria e
prática
Porque antigamente a gente trabalhava
de outra maneira, trabalhava com a
cartilha... E hoje em dia a gente pode
trabalhar o mesmo conteúdo sem
precisar da cartilha, e sem precisar
também dizer: “fulano sabe mais do que
sicrano”... Eu gosto.
211
Mas aí depois que eu entrei na
faculdade, muita coisa melhorou... E aí
eu pude investir mais nisso, com
embasamento teórico, né? Fui
percebendo que eu estou indo na linha
certa.
Olha, desde que eu trabalhava na zona
rural eu já via por esse lado, só que eu
não tinha nenhum embasamento
teórico, eu fazia porque eu acreditava
que assim que tinha que ser... Até porque
essa coisa de ver todo mundo
aprendendo...
E isso eu não fazia antes, quando eu
estava lá na zona rural, eu não tinha
esse conhecimento. Eu sabia que tinha
isso, mas eu não fazia. Hoje eu já acho
necessário que se faça mesmo um
registro..
Essa importância assim, de que a gente
não trabalha aleatoriamente, você tem
um embasamento para trabalhar, e
você tem o conhecimento para estar
entendendo melhor o aluno... Essa
vinculação da teoria com a prática...
Tudo que eu aprendo lá eu tento
colocar em prática.
E outra coisa é, antigamente, quando eu
trabalhava na zona rural, não tinha
essa formação, eu pensava assim: tinha
que trabalhar com silabação, né?! Então
hoje em dia eu não penso mais assim
Então hoje em dia eu não penso mais
212
assim, e quando chega uma mãe já
falando justamente isso: “ah, eu olhei o
caderno de sicrano, ele já esta escrevendo
bonitinho, até letra cursiva já usa, e o
meu filho não, descaramento, vou bater!”
eu já tenho uma nova visão, uma nova
explicação, e material que comprove
aquilo que estou dizendo. Ajuda
bastante na minha prática.
Tem as formações, embora essas
professoras novas que estão chegando,
elas não fazem ainda faculdade, mas
eles participam da formação, e essa
formação é justamente para isso
Aqui na escola, todo mundo era
concursado, e ninguém tinha formação.
Hoje já temos duas pedagogas, uma
psicopedagoga, e temos nós que estamos
concluindo no ano que vem. Nós, eu
digo, tem seis professoras
São professores especializados que vão
trabalhar tudo que a gente trabalha na
faculdade, e vai trazendo para eles de
uma maneira, sabe... e traz a prática da
sala de aula para estar analisando...
Importância da formação continuada no
trabalho do corpo docente da escola
Porque isso que eu te falei antes do aluno
que escreve de uma maneira que a
gente antes achava que era
insignificante, a gente já tem uma nova
visão sobre isso, quem está chegando
agora não tem, e trabalha da mesma
forma, do jeito que essa pessoa acredita
que é...
213
Eu sei que é desvalorizado, é muito
desvalorizada nossa classe, mas eu
gosto de trabalhar, eu me sinto muito
satisfeita ao ver que as crianças estão
aprendendo... Estão aprendendo de uma
maneira diferente, mas estão
aprendendo... E de valorizar isso também,
a sala de aula como um todo...
Valorização da profissão: “é muito
desvalorizada a nossa classe”
Eu gosto de ser professora, mas eu
queria ser mais valorizada,
financeiramente... E eu penso também
nos meus filhos, porque com o salário
que eu ganho eu não posso mantê-los em
uma faculdade boa...
Assim, como é uma classe de
alfabetização, eu tracei desde o final do
ano passado, que eu queria que essa
turma desse ano saísse todo mundo,
100% da classe, alfabetizado. A gente
sempre pensa alto, é, porque quer o
melhor...
Estamos no mês de julho, e eu percebo
que eu não vou conseguir alcançar
totalmente essa meta. Mas 80% eu
creio que sim
Agora essa meta de 100%
alfabetizados, eu creio que não vou
conseguir... Mas assim, pode ser que eu
tenha uma surpresa, né?
Meta: alfabetizar todos os alunos
E assim, o que eu vou fazer para
alcançar essa meta é... eu fiz alguns
encaminhamentos, eu separei por grupos,
cada nível em que eles se encontram,
214
então...
Eu trabalho bastante com essa coisa de
um ajudando o outro, essa parceria...
São grupos produtivos, eu trabalho
com isso.
Importância de atividades em grupo
Como eu te falei, eu invisto muito no
trabalho em grupo, porque no grupo
tem sempre alguém que esta um pouco
a mais na frente, então eu tento investir
nesses grupos para um ajudar o outro, e
estar me ajudando também... Agora, eu
fico auxiliando todos os grupos.
E para aqueles que já estão mais
avançados também tem atividades de
produção e revisão textual, já pensando
nas questões ortográficas
Agora, com o mesmo texto, entendeu?
Todo mundo trabalhando com o mesmo
texto. É assim, todo mundo participa,
todo mundo tem conhecimento do
mesmo texto, a atividade é que é
diferenciada, pensando no que cada um
já trás, e no que pode avançar.
Eu fico às vezes preocupada porque eu
queria que eles avançassem mais
rápido, e eu acho que esta faltando
alguma coisa para poder ajudar... Mas eu
não sei o que é... Não sei se são as
atividades, a forma... Eu não sei, porque
assim, a gente trabalha mais com texto,
papel, quadro, essas coisas...
Atividades diferenciadas para alunos em
diferentes níveis de aprendizagem
Às vezes eu fico assim com alguma
duvida, porque eu queria que todo
215
mundo aprendesse da mesma maneira,
no mesmo momento, né?
Quando a gente tem uma sala... por
exemplo, na manhã são 25 alunos, mas
tem uns poucos que já leem
convencionalmente, outros não... Por trás
disso tem outros fatores também que
estão impactando alguma coisa... mas eu
sei que apesar de ainda não estar
decodificando, eles também estão
aprendendo...
Mas nem por isso eles serão reprovados,
porque a gente vê também muita coisa
da parte qualitativa deles... E aí a gente
vai analisar, vai ver a questão das
competências que eles devem garantir ao
final dessa série, e em cima disso é que a
gente vai ver se eles serão aprovados ou
não...
A avaliação, na realidade, a gente faz
através de diagnósticos, através da
observação na própria sala de aula, diante
das atividades. É uma coisa constante, a
gente está sempre registrando
A gente esta sempre registrando para
ver o que avançou, porque se você vai
avaliar a sala como um todo, aí você vai
pecar, mas se você avaliar diante do que
apresenta cada aluno, aí você vai ter
como avaliar, comparando cada um
consigo mesmo, e investindo
individualmente.
Sobre avaliação
No final do ano, eu faço tipo uma prova,
216
mas na verdade ela não é o único
instrumento para avaliação. Tem essa
prova, tem o registro individual da cada
aluno, tem apresentação de resultados de
cada um... A gente tem portfólios, e a
gente vai guardando as atividades
escritas, os registros que a gente fez
diariamente, o prazer de casa, tudo isso.
Aí a gente vai avaliar,
quantitativamente e qualitativamente.
Agora, o que conta mais aí é
qualitativamente, principalmente nessa
turma. Aí a gente avalia em cima disso,
dessa ficha, e essa ficha é elaborada em
cima dos PCNs, que trazem ali as
habilidades e competências de cada série,
aí a gente avalia em cima daquilo, agora
não desconsiderando todo o registro
anual.
No caso dessa turma é porque a maioria
esta saindo da creche, é eles estão
chegando aqui já com um déficit... Eles
chegam assim, com alguns conteúdos que
eles deveriam ter trabalhado lá e que não
foram trabalhados, eu não sei por quais
motivos, e aí chega aqui eu tenho que
dar conta disso...
Quem são os alunos com “dificuldades de
aprendizagem”
Outros porque faltam muito, outros não
tem acompanhamento em casa, chega
na sala sem material, a gente tem que
estar providenciando, improvisando no
momento da aula, e alguns que tem
outros fatores, assim... pessoais...
217
chegam e não querem fazer nada, estão
tristes, alguns que até questionam que
não tem comida em casa, essas coisas...
Tem dificuldades de aprendizagem...
Tenho aqui nessa turma da manhã 5
alunos, à tarde tem uns 8.... Que eles não
conseguem avançar, por mais diferente
que seja a atividade, eles não
conseguem avançar...
Trocamos. A gente tem o momento de
AC
A gente tem esse momento para
planejar aqui... Sentar discutir, ver o
um pode ajudar o outro, conselhos e
registros, e assim, apresentar resultados e
também indicar algum livro, alguma
atividade, ou até construir atividades...
Ajudam bastante. A gente tem uma
relação boa, de troca de experiências,
um ajuda o outro sempre
A diretora se reuniu com a gente, pediu
opinião e todo mundo decidiu. Foi uma
decisão coletiva
A gente ajuda a elaborar. Foi
construído em 2006, aí tem o apoio e
mundo, a gente que ajudou. Inclusive
agora a gente vai sentar, na próxima
semana, acho que na sexta feira, para a
gente rever, pensar se tem alguma coisa
que a gente pode acrescentar, ou tirar....
A gente vai rever.
Trabalho coletivo na escola ajuda bastante na
prática pedagógica
A gente se reuniu e achou melhor que
elas fossem para uma outra escola,
218
fossem remanejadas. E a gente
conseguiu isso
Aqui eu só faço listar com colegas, com
a coordenação pedagógica, ver
algumas coisas, algumas questões
especificas de sala de aula, e aí eu levo
para casa para poder estar planejando
diariamente as atividades da segunda,
terça, quarta, de acordo com o que a
gente discutiu no grupo.
Ele só pensava no poder, e não tinha
conhecimento do que é educação, aí ele
não dava oportunidade de encontros
dos professores, e aí ele teve que sair, a
gente deu graças a deus.
Chegou Mirtes agora, que tem uma nova
visão. Ela também é professora, ela está
na mesma área que a gente, então muita
coisa já mudou.
E as reuniões da gente eram bem chatas
antigamente, agora já mudamos tanta
coisa...
Não é mais aquela reunião fechada, até
o espaço aberto, onde um vê o outro, se
sente mais livre...
Mudanças na equipe gestora: “muita coisa já
mudou”
A nova direção... A gente já vinha com
essa ideia antes, só que a gente era
podado, e se a gente tentasse fazer, era
assim: “quer tomar a frente do diretor”....
E como a gente estava brigando muito
com ele, e a gente acabava se
acomodando também... Com a nova
diretora não, tudo mudou
219
É a respeito das merendeiras da escola.
Elas estavam seguindo a linha do
antigo gestor, e aí era muita indireta na
escola, muito arrelio, sabe? Criticavam as
crianças, criticavam professores, a
maneira de vestir, a maneira de falar,
tudo.... Num momento desse a gente
estaria aqui conversando, elas estariam lá
fora sorrindo... E aí, porque isso, porque
elas não cumpriam o horário, e a gente ia
questionar e elas não gostavam...
Com a mudança do gestor, a diretora
nova foi mostrar... Fez uma reunião, e
fez uma abordagem assim tão
transparente do que ela queria e tal,
pediu a opinião das meninas e elas não
queriam participar de nada... Não
secavam talheres, não secavam pratos,
não faziam nada na cozinha, era tudo uma
coisa assim mal apanhada...
A gente se reuniu e achou melhor que
elas fossem para uma outra escola,
fossem remanejadas. E a gente conseguiu
isso
Hoje o pessoal que está aqui é ótimo
com a gente, prepara almoço, pergunta o
que queremos que prepare, se quiser
trazer alguma coisa elas preparam e a
gente almoça junto, tratam as crianças
realmente bem, como criança mesmo,
ajudam...
Mudanças na equipe de funcionários decididas
coletivamente após a mudança da equipe
gestora
Elas ajudam a gente em tudo, apóiam os
meninos, então o trabalho agora está até
220
mais leve, mais alegre... Todo mundo
aqui já chega alegre na escola... A gente
fez agora uma caixinha do anjo, onde
cada um protege o outro, para não ter
essa coisa de discriminação... As meninas
estão envolvidas... Então a escola está
mais leve, mais gostosa de trabalhar...
Só que aí tem professores novos, que
entraram agora, ainda não tem essa
formação, ainda estão até na silabação
e não gostam de ouvir muita opinião,
tal... Estão chegando agora e ainda estão
assim um pouco confusos... Então a
escola vai andando numa linha, aí de
repente, por questões políticas, chegam
novas pessoas, entendeu? E aí quebra um
pouco... Porque tem vários professores
trabalhando numa linha, aí chegam outras
pessoas, elas sabem da linha, mas
trabalham do jeito que acham que deve
ser... Então eu não poderia dizer que a
escola toda trabalha nessa linha.
Porque mesmo a maioria trabalhando
numa linha, essa minoria que chegou
está atrapalhando um pouco,
trabalhando de um jeito diferente, mas
está trabalhando dentro do que acredita, e
está dando seu melhor também...
Relações com as novas professoras: “tem
gente que tem medo, então não quer mudar”
Mas tem gente que tem medo, que já
tem segurança no que faz, então não
quer mudar de imediato assim porque
tem medo, para ele é mais cômodo
segurar o que ele já sabe do que
221
arriscar alguma coisa. Então eu não sei
até que ponto seria uma coisa boa para a
escola, entendeu? Sem menosprezar os
colegas, porque eles estão tentando, estão
dando o melhor. Mas é complicado, é
complicado.
Porque isso que eu te falei antes do aluno
que escreve de uma maneira que a gente
antes achava que era insignificante, a
gente já tem uma nova visão sobre isso,
quem está chegando agora não tem, e
trabalha da mesma forma, do jeito que
essa pessoa acredita que é...
E fora isso, tem a questão dos pais que
não ajudam muito... Não ajudam
mesmo. É minoria os pais que chegam
aqui para poder saber sobre o filho, só
vem quando é chamado nas reuniões...
Mas eles já estão habituados com aquele
outro tipo de reuniões, já chegam
perguntando: “O que foi que eles
aprontaram dessa vez? O que meu filho
fez? Eu já falei com ele, ele vai apanhar”
e a gente chega para eles com essa nova
visão, eles já dão uma respirada, mas
ainda ficam insistindo no que o filho
aprontou...
Eles não se colocam também como
pessoa que faz parte da aprendizagem
do filho.... Parece que a escola é só a
escola e em casa é outra coisa, eles não
querem dar continuidade em casa não...
Sobre a relação dos pais com a aprendizagem
dos alunos
A gente apresenta resultados, a gente
222
coloca a coordenação para falar sobre o
trabalho, como é feito, a respeito das
atividades, que eles questionam muito...
Então agora a gente está explicando
como é feito o trabalho, baseado em
que, o que a gente está aprendendo, o que
os meninos estão trazendo, e colocamos
também temas da atualidade, para eles
perceberem que a escola não trabalha
isolado da sociedade, que a escola
trabalha em parceria, quer trabalhar em
parceria... A gente coloca várias coisas,
vários temas, faz recreação com eles,
dinâmicas para descontração, tem chá....
Quem é o aluno
Eu vejo meus alunos como seres
pensantes, que já trazem muito
conhecimento... Eles trazem muitos
conhecimentos, mas alguns
conhecimentos precisam ser aprimorados
e compartilhados, eu diria...
Eu tenho vários obstáculos... A gente
no momento está sem livro didático,
não que ele seja uma ferramenta única,
mas ajuda muito, porque a gente tem uma
sequencia de atividades, mas às vezes a
gente precisa de um apoio do livro
didático, porque ele vem mais colorido,
tem mais imagens.... é tipo um apoio para
sistematizar o que está sendo trabalhado...
A gente não tem... O que a gente tem é
folha de ofício
Dificuldades na prática pedagógica geradas
por falta de material didático
Mas assim, tem a questão do livro
didático, tem a questão do material,
223
folha de oficio, costuma faltar sempre...
Agora nesse momento a gente está com
um pacote para duas turmas e tem que
durar uns 3 ou 4 meses, e não vai dar
certo... Porque se a gente não tem o livro
didático, caderno a gente tem que usar,
mas nessa faixa etária não dá para ficar o
tempo todo usando caderno porque vai
cansar a criança, né? Então tem que ter
atividades digitadas, construídas mesmo,
e isso também vem impactando o
trabalho
Temos computadores na escola, mas
nem todo mundo sabe lidar com esse
instrumento, eu mesma sei muito pouco.
Quem digita meus trabalhos é ou a
secretária ou meu filho... Eu estou
aprendendo agora porque estou com essa
necessidade urgente de aprender a
fazer.
E também tem isso, a gente tem
computador agora, mas antes só tinha um,
então ficava a fila, para poder digitar as
atividades... Então agora chegaram
outros computadores aí, e a gente está
se empenhando mais em aprender e aí
acho que vai ajudar bastante.
Problemas enfrentados para lidar com alunos
que tem dificuldades
Agora assim, tem horas que a gente tem
que dar muita assistência para esses
alunos que tem mais dificuldades, e
como as salas são lotadas, as vezes a
gente não consegue dar conta... Até
porque enquanto você esta dando aula,
224
um começa a bater no outro, xingar, e
alguém entra na sala, uma pessoa quer
falar com você.... Então muita coisa
acontecendo, você quer dar uma
atenção especial para aquela criança e
não tem como...
Porque tem momentos em que aquela
criança não quer fazer nada, mas no
momento que ela quer fazer, se você
chegar perto, aí consegue dar uma
avançada... E as vezes naquele
momento você não tem como chegar
perto dele, porque tem que dar conta
de outros, ou de outras coisas na própria
sala, tipo violência, agressões, ou alguém
que não trouxe material, ou outro que está
cutucando o coleguinha...
Assim, a gente faz algumas atividades na
sala de aula, mas a gente gostaria de
fazer outras atividades fora da sala de
aula... Visita a biblioteca pública... A
gente está trabalhando sobre a natureza, e
a natureza de Lençóis é tão rica, a gente
mostra figuras, mostra fotos, mas a gente
não visita... Então tem esse tipo de
passeio que a gente... que eu gostaria de
fazer, mas não faço, porque tenho
medo de ir sozinha com a turma...
Tenho medo de acontecer algum
acidente, alguma coisa com eles, e depois
eu ter que responder por isso...
Dificuldades na prática pedagógica: “gostaria
de fazer outras atividades”
Se a gente tivesse pelo menos uma
pessoa para estar ajudando, sabe? Isso
225
ajudaria mais...
Essa escola é considerada uma escola
boa.
Avaliação sobre a escola
Essa escola? Eu daria 8 para ela. Mesmo
apesar dessas mudanças aí... Eu daria 8.
Eu sei que ela precisa melhorar muito,
muito, muito mesmo, mas muita coisa já
se mudou, muita coisa.
Pontos positivos? Hmm... A questão de
valorizar tudo que a criança já traz
consigo, e tentar ajudar da melhor
maneira a lidar com isso, a socializar, a
fazer enxergar..
Auto avaliação - pontos positivos da prática
docente: sempre valorizar o que a criança já
traz
Eu acho que esse lado de sempre colocar
a criança para cima, valorizar cada
um, é um ponto positivo em mim, sabe?
E também de valorizar tudo que ele traz...
Auto avaliação - pontos negativos da prática
docente
É um ponto negativo, para mim, não dar
essa condição para o aluno trabalhar
diretamente com o útil, todos os dias, e
eu não tenho essa condição, de fazer
essas atividades, e nem tenho quem me
ajude a fazer.
226
ANEXO 6
Quadro de Pré Indicadores da ACS – episódio 1
E assim, teria que ser um texto conhecido, o texto facilitaria essa leitura, a gente não poderia
pegar um texto do nada, teria que ser um texto de memória, porque seria uma condição
muito boa, seria não, é uma condição muito boa para que o aluno comece a despertar esse
interesse em ler.
Então eu já tinha feito uma sequencia, eles já tinham brincado com essa musica, também na
aula de educação física, pulando corda, então percebi que eles já sabiam esse texto de
memória, então apresentei esse texto de memória escrito, para que eles percebessem esse
paralelo entre como se fala e se escreve.
A partir daí eu trabalhei no coletivo, fiz a leitura, cantei com eles, fiz a leitura junto com
eles, e depois chamei para eles identificarem algumas palavras, mas antes disso a gente já
tinha trabalhado também a sequencia de perceber com que letra começa, com que letra
termina, quais letras que devem ter tal palavra...
E aí nesse momento eu chamei esses dois alunos porque eles e mais uns 6 aí tem muita
dificuldade de aprendizagem. Então como eles já sabiam o texto de memória, eu pedi que
eles fossem à lousa procurar certas palavras.
Naquele momento não atingiu, né, porque é um processo...
Mas ele percebeu que “pé” não começa como ele pensava, com qualquer letra. Porque ele
já sabe que se escreve com letras. No inicio, esses alunos representavam qualquer palavra com
desenhos só, e aí agora eles já usam letras, mas eles ainda não conseguem selecionar quais
letras, e o que eu queria fazer com que ele percebesse, mesmo que não tenha caído a ficha de
imediato, é que a palavra começa com uma determinada letra, e não qualquer letra.
Eu faria diferente talvez não ter chamado ele na frente aquele dia, talvez não seria o
momento... Eu faria aquele atividade com os que já conseguem, e ele eu faria primeiro no
individual... Talvez no individual... Porque ele foi na frente, quem sabe se ele não ficou meio
perdido porque viu que todos já estavam além dele.. Tem isso também... ele não gostou...
Tenho, porque assim, é um ajudando o outro.
Então quando vai na frente, ele se sente importante, e ao mesmo tempo que pode se sentir
vulnerável, se sente também protegido, porque sabe que alguém vai ajudar, porque eu
sempre peço “gente, agora vocês podem ajudar fulano”.... Então eu acho isso interessante
também
Talvez naquele dia não era o momento de ter chamado logo ele, porque ele é um dos que tem
227
mais dificuldade... Talvez se eu chamasse, porque minha intenção era que ele percebesse,
talvez se eu deixasse ele no lugar dele, e só chamasse atenção para que ele percebesse
outra criança fazendo na frente seria mais interessante naquele dia.
Assim, eu percebi que eu fico muito nervosa, né, tenho muita ansiedade que eles aprendam
logo...
Aí teve um momento no “pulem de um pé só” que ele leu “pé” e “só” junto, como uma
palavra só, e aí ao invés de pedir que ele lesse de novo e perguntar: “e aí, você sente o som de
alguma letra?” eu nem perguntei para ver se ele iria associar.... “tem o É, pro, termina com
é”... Então ele iria logo na hora perceber, eu imagino que ele iria perceber que “pé” tem esse
som e não precisaria do “só”... Então eu ignorei isso e já fui direto, aqui tem “pulem” e “pé”,
tem essa e essa, qual dos dois pode ser... Eu não fui até aquela que ele achou que podia ser
“pé”... Acho que isso aí também foi um erro, porque se ele disse que foi aquela outra, eu
tinha que continuar intervindo lá, e não na anterior...
Quadro de Pré Indicadores da ACS – episódio 2
Situação problema, né... Foi uma atividade de casa, para eles encontrarem... utilizarem
uma estratégia própria para encontrar o resultado. E aí eu fui fazer a verificação da
atividade de casa, quem fez, como fez... Só isso...
O objetivo era de que eles resolvessem o problema mesmo...
Porque a gente tinha, aliás, às vezes a gente ainda tem muito esse hábito, de fazer
continhas a partir do nada, e ali tinha um problema a ser resolvido.
Agora, eu poderia ter colocado ali alguns materiais para eles resolverem utilizando
aquele material, e não mandar logo no quadro.
Poderia. E os outros também poderiam estar fazendo naquele momento, porque aí poderia
haver esse confronto, “fulano achou tanto, você achou tanto, como você fez”... Com o
material... Acho que teria sido bem mais interessante, e eles aprenderiam mais... No caso
desse aluno, ele foi contar, contou um a mais, com o material isso não aconteceria.
E também eu fiquei prestando atenção lá e cá, lá e cá... Eu teria que estar mais centrada em
quem eu queria que, que...
Por exemplo, esse aluno não fez a atividade de casa, então nesse caso eu colocaria todos
novamente em roda para fazer com o material, “faça aí como você fez em casa”, e ficaria
com ele, que não fez... E ele já poderia também fazer com a atividade, eu levei ele ao quadro
mas ele não fez a atividade...
228
Isso é um problema... Um problemão, sabia?
Aí você dá a mesma atividade, e não é a mesma atividade. Às vezes pode até ser a mesma,
mas a forma de conduzir é diferente...
Porque tem pais que vem às vezes falar, “ah, fulano ta atrasado, fulano ta adiantado”...
No caso dessa aula de matemática, ou nas aulas de português, eu sempre coloco a mesma
atividade, o mesmo texto, mas aí um vai escrever por conta o texto, de memória, outros vão
montar, outros encontrar palavras, outros vão selecionar as letras que formam tais palavras... É
a mesma atividade assim, mas não é a mesma forma.
Eu tento montar uma atividade que caiba para vários graus de aprendizagem. Agora, é
difícil, né?!
Porque é um pouco complicado. Tem uns que terminam mais rápido, mesmo se você da
um livro para ler, uma pintura, alguma coisa, eles terminam mais rápido, e já querem
fazer logo outra coisa, e eu tenho que ficar de olho também naqueles que estão menos
adiantados. Aí eu começo a ficar preocupada porque a sala começa a ficar muito bagunçada,
eu fico preocupada em dar conta daquela multidão que esta bagunçando, e acabo até
inervando o trabalho, porque eu quero terminar logo, “bora, fulano”, e fulano esta pensando
ainda e tal, quando é a hora dele resolver realmente a questão eu tenho que parar porque
alguém brigou, porque aconteceu alguma coisa, aí já vai, fecha o caderno, e fulano fica para
trás do mesmo jeito.
Aí a gente colocou como encaminhamento no conselho de classe, que tem alguns alunos
bem adiantados e outros bem menos, a gente colocou assim, 15 minutos ou 20 antes de ir
para casa, ficar com o professor, enquanto os outros brincam ou fazem alguma atividade
e tal. Mas não esta funcionando, porque eu tento fazer isso, mas quando eu vejo o tempo já
passou, os outros brincam e brigam, fazem barulho, aí eu não dou conta, atrapalha. E a criança
que esta lá também, ela fica perdida, fica agoniada, aquele barulho, todo mundo brincando e
ela lá...
Se o município tivesse condições de colocar dois professores em uma sala, aí a gente
poderia pensar diferente em relação a isso. Mas não tem! Aí eu não tenho em vista nada que
possa ajudar, a não ser um reforço no turno oposto...
Mas teria que ser também um reforço de alguém que já esta também nessa área e que entenda.
Porque tem alguns reforços por aí que não adiantam, que fazem a atividade para a criança,
copia... E tem reforços também que os professores só silabam, eles não querem saber
como a criança aprende, não querem saber nada.
229
Aí acontece que alguns conseguem silabar, outros não, aí para. Aí não consegue seguir
mesmo, aí para tudo, trava
Assim, apesar de colocar nas duplas, tem critérios... A gente tem que ver. Eu não posso
também colocar um aluno que sabe, que esta num nível diferenciado, ou seja, que só conhece
as letras, mas ainda não conhece som nenhum, junto com um aluno que já esta alfabético, que
já sabe tudo, porque ele vai e faz para ele. Isso já aconteceu aqui na sala. Então eu tenho que
colocar aquele diferenciado com um que saiba um pouquinho mais, que saiu um poço
daquele nível, que esteja no quantitativo, por exemplo.
Então é isso, eles explicam um para o outro. Agora a gente também tem que pensar
nessas intervenções, o que eles devem fazer, porque as vezes um quer fazer tudo pelo
colega.
Aí elas escreveram o texto completo, sendo que uma ajudou a outra, não ficou nenhuma
parada, uma foi ditando e outra escrevendo, mas ela iam se ajudando.
Então é isso, na hora de escolher as duplas eu coloca crianças de níveis diferentes, mas
próximos. Níveis próximos. Aí funciona bem
Só que assim, às vezes é muito trabalhoso porque você tem que dar assistência a todas as
duplas ou todos os trios, e vem aquela questão de priorizar os que tem mais necessidade.
E aí quem termina primeiro vem atrás, vem a atrapalha, você esta explicando para uma dupla e
eles vem e tiram a atenção daquele que estava ali...
Mas tem ajudado.
Agora, depois desses agrupamentos eles avançaram muito.
Só que eu fico preocupada porque já esta em agosto e eles estão no qualitativo e não sei se
vão chegar a alfabéticos até o fim do ano.
É aquela questão que eu falei, do material concreto... Ahh é, eu perguntei... Dei a opção, mas
se eu estivesse com o material já ali também, talvez ele tivesse escolhido o material... E
envolveria as outras crianças...
Quadro de Pré Indicadores da ACS – episódio 3
Foi no coletivo, para... Eu queria realmente que todos ajudassem... Só que naquele momento
eu tinha intenção com essas crianças específicas...
E aí eu acredito que eles pensaram sobre, porque a gente fez a cruzadinha com ajuda, eles
foram percebendo qual letra vem, “e agora, deu para ler”, porque o mais importante também é
esse momento de “agora leiam como ficou”, porque é o momento que eles se impactam
230
mais, principalmente quem está começando agora...
É porque se não os outros chegariam lá e colocariam rapidinho as respostas...
Aí com eles foi também porque eles são inquietos, não prestam muita atenção, então eles indo
na frente também tem essa coisa de que eles estando lá, ficam mais centrados lá...
Se eu deixasse cá num canto, eles nem iriam ligar, porque para eles não tem tanto
significado como para os outros, eles ainda não sabem ler nem escrever direito, eles iriam
pensar “ah, deixa lá para quem já sabe, vamos ficar brincando aqui”... Por isso eu chamo eles
para ir, para eles perceberem, e os outros ajudam.
Eles adoram participar! É uma turma assim enérgica mas bem participativa. Questionam...
Tudo eles questionam
É porque no inicio eles já foram muito, e conseguiram avançar, então agora é o momento
desses outros...
Porque você vê que alguns ficam chateados, ou começam a brincar... Mas... Esse também é
um problema, né?!
Agora, realmente eu tenho que pensar em outras atividades que eles poderiam ir mais... Para
chamar a atenção desses outros também... Porque eles estão indo menos, mesmo. Tem uma
justificativa, tem essas questões de ter que ajudar mais quem precisa mais, mas eles
acabam ficando chateados... É um problema. Não é um problemão, mas é um problema.
Porque assim, se a gente tem uma meta de alfabetizar, a gente colocou 100% das crianças,
a gente eu digo a rede, o município todo, e estou percebendo que isso está difícil... Assim, eu
já consegui bastante, mas essa minoria que está aí vai fazer o diferencial na hora de
olhar para essa porcentagem, então eu quero investir mais neles... Porque a meta é
alfabetizar todos, com qualidade, sem discriminação, essas coisas...
Não quero ficar só silabando, aí quem silaba vai e quem não silaba não vai...
Então a gente tem que ver tudo isso, porque se a gente pensar, se eu quiser fazer além agora,
eu não vou dar conta, eu tenho que pensar nesses que ainda não sabem, nessa
porcentagem.
Tem essa questão que eu já falei, que eles vieram da creche, alguns vieram sem varias
habilidades...
Tem a questão dos pais, alguns pais não tem nenhuma formação também, não estudaram,
ou estudaram muito pouco, trabalham muito, outros que acham que o papel da escola é
que deve ensinar e acabou, então não fazem o dever de casa, não ajudam, tem meninos que
chegam com o material incompleto, então isso são fatores que vão contribuindo para que
231
esses alunos não avancem...
E outros chegam na escola assim... talvez porque assim eles cobram muito o livro didático, eu
sei que o livro didático só não é uma condição, mas ajuda muito, a questão das imagens e
tal... Só de falar assim: “eu tenho meu livrinho”...
Eles tem um aí que eu consegui, mas não é todo mundo que tem, eu consegui alguns na
secretaria de educação, mas não é todo mundo que tem, e esse ano não chegou o livro
didático... Então isso é uma condição que desfavorece mais ainda aqueles que já não tem
praticamente nada.
Outra coisa também é a questão da concentração na sala de aula, eu sou uma pessoa só... E
fico pensando, será que a atividade não está lúdica, não esta chamando a atenção deles...
Então pode ser também isso que contribui.
Mas eu acho que na maioria é essa questão do acompanhamento em casa... na sala tem
também a questão do pedagógico, talvez não é de qualidade assim, como eles gostariam
que fosse, mas também essa questão de em casa, o desinteresse, aí chega na escola, presta
atenção em alguma coisinha mas não acha assim tão interessante, chega em casa, leva a
atividade e o pai não da a devolutiva, tem sempre alguém que fala assim: “ah, meu pai estava
cansado, minha mãe estava cansada, não fez a atividade porque disse que pode fazer na sala
com a senhora, que essa questão aí a senhora que tem que fazer”... Então isso deixa muito a
escola sobrecarregada, eles tiram o corpo fora e a gente não da conta.
Até porque as salas são muito cheias. Alfabetização é primordial, não é? Agora coloca um
professor só para um monte de alunos, vários fatores de vida e tudo, aí a gente não dá conta.
Você vê que quando uns avançam demais, outros menos, aqueles que avançam demais
correm o risco até de regredir, porque já sabem tanto e não tem tanto desafio, fica
monótono, então tudo é um problema. Então trabalhar essa diferença é muito
complicado.
Mesmo trabalhando com grupo produtivo e tudo, é muito complicado.
Então eu acho assim, a questão das salas superlotadas, a falta de material, as condições de
trabalho, e essa questão dos pais, que jogam tudo para a escola...
E agora já tem outro encaminhamento em vista, com a professora Regina, que ela dá aula de
educação física em varias turmas, conversar com ela para ver se prioriza mais a minha
turma, não que deixe de dar para as outras turmas também, mas que priorize depois do
intervalo a minha, para que eu fique 40 minutos só com aqueles que precisam mais.
Porque se eu trago todos para a sala não dá certo.
232
Acho q são 6 ou 8... Deixe eu ver... São 6. Não, são 7... Então eu tenho que ficar com esses
7, e ver o que eu posso fazer com eles, para ver se eles avançam....
Sabe que a criança está com problemas, e que isso pode estar impactando no aprendizado, mas
no final do ano você é cobrado pelo que eu determinei junto com a rede na meta.
Mas não é só por conta disso, porque é interesse realmente da escola fazer com que a
criança avance, então a gente tem que trabalhar em cima disso. Se a gente não fez nada para
que avançasse, aí fica ruim. Mas nesse meio tempo tem muita coisa que acontece...
Teve muito avanço! A coordenadora tem isso lá, ela tem um documento que a gente fez, uma
planilha, tudo direitinho, de cada aluno, como iniciou, como pensava, e como está agora no
mês de agosto. Eles estão avançando bastante.
Era para ter avançado mais, por exemplo a gente já deveria estar produzindo mais textos ,
com escrita alfabética...
A gente produz textos, mas é mais coletivo.. Eu tenho realmente investir mais na questão
da leitura e escrita para partir para a questão da produção individual. Não que eles
deixem de fazer, eles fazem, mas a ideia é que eles façam alfabético...
Tem. É que eu teria que ter colocado um banco de dados para favorecer eles... (...) Poderia
pedir que eles silabassem mesmo a palavra, para sentir, perceber o som... É, acho que eu
poderia ter feito assim...
É, eu conseguiria melhor. Mas foi interessante também...
Então foi bom, mas o banco de dados iria favorecer mais... Mas eu acho que foi legal, foi
legal..
As atividades poderiam ter sido feitas... Porque eu fiz, não é? Fiz bastante em grupos, mas
poderia ter feito mais... Poderia ter mexido mais nos grupos... Apesar de ser trabalhoso,
porque tem sempre alguém que atrapalha, mas mesmo com tudo isso ajuda, ajuda bastante.
Aquela cruzadinha, por exemplo, depois dali eu poderia ter feito o que eu não fiz, ter
voltado para o grupo em outro dia, porque se não ia ficar cansativo, e fazer a mesma
cruzadinha só para esses meninos, nos grupos, pedir aos outros que fizessem uma outra
atividade, e pedir para eles montarem, dar a quantidade de letras exatas e pedir para eles
montarem porque o desafio seria maior, e ficaria com esses no grupo com uma cruzadinha
cada um, mas eles iriam fazem em grupo. Aí eu nesse caso sairia perguntando questões para
cada um “e aí, fulano, você concorda? Por que?” Aí eles iriam aprender mais...
Eu sinto dificuldade porque eu quero fazer muito nos grupos, mas tem os outros também
que vem... Se eu pudesse estar só com esses aí, investindo, eu sei que eles estariam alem, mas
233
tem essas questões de briga, de sair, o tempo todo...
Mas o grupo ajuda, ainda mais nessa turma que já tem muitos alunos alfabéticos... Ajuda
porque um vai de encontro ao outro, e explica, aí o outro começa a pensar, e vê, e
percebe que realmente é daquela forma, e avança de nível.
Eu quero fazer, eu estava falando essa semana, quero fazer mais atividades em grupos...
Nessa turma eu não tenho muito problema com alunos assim hiperativos, mas na turma da
tarde eu tenho...
Tem um menino que quando ele não vem a sala fica uma benção, mas quando ele vem é
um furdunço... Porque a mãe não sabe se ele é, se ele tem algum.... sei lá, alguma necessidade
especial... Só se sabe que ele não consegue se concentrar e bate em todos os alunos, sabe?
Tem alunos que a gente está explicando, está explicando e ele não consegue entender, e nem
ele pergunta... Ele se esforça mais não consegue aprender, a gente fica preocupado....
Ou ele aprende de um outro jeito, em outro ritmo, e a gente fica angustiado querendo
que ele aprenda logo... Porque cada um tem seu ritmo, mas eu fico preocupada: “ai meu
deus, só avançou até aqui, tem chegar até aqui”. A minha preocupação é essa. Não quer dizer
que ele não avançou, mas avança em outro ritmo, mais devagar. Esses seis mesmo estão
assim. E apesar de estarem menos avançados, eles avançaram mas cada um dentro de
um nível, ou estão no mesmo nível mas pensam diferente.
Aí essa questão das intervenções, porque eu acho muito importante em qualquer processo é
essa questão das intervenções, o que você pretende.
Antes eu tinha intenção de ajudar os alunos, quando eu trabalhava na zona rural, mas eu
não tinha esse conhecimento ainda. Então os meninos silabavam que era uma beleza,
mas os que não conseguiam logo, coitados, acabavam perdendo.
E isso por causa da falta desse planejamento do como ensinar, do que você quer fazer
com cada um, ou com cada dupla. Tem que intencionar mesmo! Porque se você não
intenciona fica aquela coisa, você lá na frente pá pá pá pá, você achando que está dando tudo
na aula, os meninos repetindo que nem uns papagainhos, e a gente achando que está fazendo e
acontecendo e não está, está discriminando, está deixando para lá, e nem está pensando.
Foi depois que eu comecei.... Depois da faculdade. Depois que comecei a faculdade. Eu
sempre gostei muito de estudar, e tudo que iam falando lá eu comecei a botar na prática.
Aí eu fui vendo isso, os níveis de aprendizagem, como fazia. Aí eu comecei a ver isso mesmo
como uma coisa da minha prática, e trouxe para a sala de aula. E funcionou bem, muita
coisa já mudou. Muita coisa mesmo.
234
E agora assim, eu posso até não conseguir os 100% alfabéticos, mas muitos desses que
ainda não estão, tem condição plena de ir para uma outra série.
Agora, cabe ao professor ver o relatório individual dele, ver o que ele já sabe, o que ele já
garante, para a partir daí seguir. E às vezes aqui não acontece isso, porque tem professores
novos chegando, não estão sabendo ainda desse processo, dizem “não ta sabendo tal coisa,
tem que saber” e nem olham relatório nem nada, não olham nada, e começam do zero, e ai
muitos repetem, muitos começam a repetir.
Aí passei, coloquei no relatório, aí os professores que já estavam aqui, que já sabiam até as
atividades (...) eu elaborava as atividades junto, passava, o professor fazia, me pedia até
ajuda, os meninos avançaram (...) Já desse ano, eu não passei silábico qualitativo, passei
silábicos alfabéticos, um pouco a mais ainda, e o menino está lá do mesmo jeito, correndo o
risco de voltar. Tem que ver isso, porque se não ele vai regredir. Porque todo dia essa outra
pro me fala: “fulano não ta fazendo nada, ele não sabe nada”. Aí nas atividades nada para
favorecer para ele seguir.
E aí falar as vezes é ruim, porque você acaba conseguindo inimizade. O grupo é bom, é legal,
mas assim, quando parte para a sala de aula, quando você quer falar alguma coisa para
ajudar – muitos aqui não, porque já sabem estão estudando o processo – mas quem está
chegando agora, essas novas que estão chegando agora, se sentem ofendidas de ouvir
alguma coisa (...)Aí é a criança que perde. Mas não é maioria não, a escola já mudou muito.
E também essa questão de qualificar.... Se qualificar também. Porque esses professores que
estão chegando agora tem muito tempo fora da sala de aula, eles estavam desempregados
e o prefeito foi e empregou. Aí coloca na sala de aula. Aí eles vão querer ensinar como eles
aprenderam.
Sinto. Está fazendo um efeito grande, porque todo mundo aqui incorporou e está
trazendo isso para a sala de aula. A gente fica buscando, sabe? Se preocupa, sai daqui e vai
para a outra escola, quem vai pegar a turma, a gente vai na secretaria de educação, conversa...
Na realidade é assim, é a FTC (Faculdade de Tecnologia e Ciências). A gente só tem uma
aula, um dia de aula. Mas tem vários trabalhos, é uma trabalheira....
Porque a FTC na realidade ela tem material, tem tudo para ajudar, mas é um só dia de
aula, e é aula virtual, então tem gente que vai e não liga muito para a aula, porque é virtual, o
professor não está ali ao vivo, ele está só no vídeo, a gente assiste aula pelo vídeo. Mas a gente
tem material disponível.
Como antes dessa faculdade a gente já tinha iniciado, a gente fez antes seis meses de
235
UEFES, e eram todos os dias, agente já estava bem, a gente tinha ótimos professores, e
aí a gente seguiu essa linha.
Como a gente já vinha naquela linha, com aquela vontade de estudar e tal, porque a
gente fazia UEFES antes, a gente seguiu.
A UEFES era ótima, menina! É a faculdade de Feira de Santana. Mas aí teve um problema
na prefeitura, que não estava pagando a UEFES, aí eles fecharam a unidade daqui.... Era
naquele prédio branco na praça, sabe? Era ótimo! Mas aí acabou porque a prefeitura não
pagou.
Agora nesse curso a gente está fazendo assim, a gente paga e a prefeitura dá a metade. Mas
não é tão boa não, como a anterior. E está uma confusão, tem um monte de problemas lá,
parece que a prefeitura também não está pagando direito a parte dela... Mas a gente não quer
desistir!
A gente já estava naquela linha da UEFES, então a gente está pegando o melhor dessa,
pegou o melhor da UEFES e está trazendo para cá, estamos estudando, então isso está
melhorando. A gente sabe que tem muita coisa que precisa mudar, mas a gente evoluiu
bastante já.
Até porque a FTC não da tantas condições para a gente. Até o espaço físico, a gente ficou
20 dias sem aula por conta do espaço físico. A prefeitura também não pagou o aluguel do
prédio, não pagou a FTC, aí a FTC ficou sem espaço, e a gente sem aula. Mas estudando em
casa.
Tem essa questão.... Trabalhar com crianças hiperativas ou especiais, surdos.... A gente tem
que mudar muito, mudar as atividades (...)Então talvez isso, dar mais atenção às crianças com
necessidades especiais, mas não sei como. Porque de qualquer forma, na sala aí eu
trabalho com crianças especiais, todos são especiais....
Mas no caso dela, especifico, eu ainda não planejei, elaborei atividades específicas para
ela, tanto quanto eu deveria. Eu fiz algumas, mas não todas que deveria. Mas mesmo
assim eu busquei, eu fui, busquei o alfabeto em libras, cores, animais, fui na internet buscar
isso...
Acho que é isso, porque no mais tudo que eu aprendo eu procuro colocar na sala de aula...
Foi muito bom! Foi importante, porque às vezes a gente vai fazendo as coisas, achando
que está tudo muito bom, e não para nem para refletir tanto.... E assim, agora foi muito
bom, porque eu comecei a perceber por exemplo nas aulas o que poderia ter sido
diferente, o que poderia ter feito.... Me fez refletir mais sobre, pensar ainda mais neles, nos
236
alunos.
Fez só favorecer, porque me fez perceber “ah, naquele momento poderia ter feito tal coisa,
poderia ter sido feito assim”. Então foi muito bom!
Quadro de Indicadores e Pré Indicadores da ACS
Indicadores Pré Indicadores
E assim, teria que ser um texto conhecido, o texto
facilitaria essa leitura, a gente não poderia pegar
um texto do nada, teria que ser um texto de
memória, porque seria uma condição muito boa,
seria não, é uma condição muito boa para que o
aluno comece a despertar esse interesse em ler.
A partir daí eu trabalhei no coletivo, fiz a leitura,
cantei com eles, fiz a leitura junto com eles, e
depois chamei para eles identificarem algumas
palavras, mas antes disso a gente já tinha
trabalhado também a sequencia de perceber com
que letra começa, com que letra termina, quais
letras que devem ter tal palavra...
Atividade de leitura com parlenda:
textos conhecidos pelos alunos
facilitam a aprendizagem
Então eu já tinha feito uma sequencia, eles já
tinham brincado com essa musica, também na
aula de educação física, pulando corda, então
percebi que eles já sabiam esse texto de memória,
então apresentei esse texto de memória escrito,
para que eles percebessem esse paralelo entre
como se fala e se escreve.
Naquele momento não atingiu, né, porque é um
processo...
Reflexões críticas sobre a atividade da
parlenda Mas ele percebeu que “pé” não começa como
ele pensava, com qualquer letra. Porque ele já
sabe que se escreve com letras. No inicio eles
representavam qualquer palavra com desenhos só,
e aí agora eles já usam letras, mas eles ainda não
237
conseguem selecionar quais letras, e o que eu
queria fazer com que ele percebesse, mesmo que
não tenha caído a ficha de imediato, é que a
palavra começa com uma determinada letra, e não
qualquer letra.
Aí teve um momento no “pulem de um pé só” que
ele leu “pé” e “só” junto, como uma palavra só, e
aí ao invés de pedir que ele lesse de novo e
perguntar: “e aí, você sente o som de alguma
letra?” eu nem perguntei para ver se ele iria
associar.... “tem o É, pro, termina com é”... Então
ele iria logo na hora perceber, eu imagino que ele
iria perceber que “pé” tem esse som e não
precisaria do “só”... Então eu ignorei isso e já fui
direto, aqui tem “pulem” e “pé”, tem essa e essa,
qual dos dois pode ser... Eu não fui até aquela que
ele achou que podia ser “pé”... Acho que isso aí
também foi um erro, porque se ele disse que foi
aquela outra, eu tinha que continuar
intervindo lá, e não na anterior...
E aí nesse momento eu chamei esses dois alunos
porque eles e mais uns 6 aí tem muita
dificuldade de aprendizagem. Então como eles
já sabiam o texto de memória, eu pedi que eles
fossem à lousa procurar certas palavras.
Estratégias para lidar com alunos com
dificuldades
Aí a gente colocou como encaminhamento no
conselho de classe, que tem alguns alunos bem
adiantados e outros bem menos, a gente
colocou assim, 15 minutos ou 20 antes de ir
para casa, ficar com o professor, enquanto os
outros brincam ou fazem alguma atividade e
tal. Mas não esta funcionando, porque eu tento
fazer isso, mas quando eu vejo o tempo já passou,
238
os outros brincam e brigam, fazem barulho, aí eu
não dou conta, atrapalha. E a criança que esta lá
também, ela fica perdida, fica agoniada, aquele
barulho, todo mundo brincando e ela lá...
E agora já tem outro encaminhamento em vista,
com a professora Regina, que ela dá aula de
educação física em varias turmas, conversar com
ela para ver se prioriza mais a minha turma,
não que deixe de dar para as outras turmas
também, mas que priorize depois do intervalo a
minha, para que eu fique 40 minutos só com
aqueles que precisam mais. Porque se eu trago
todos para a sala não dá certo.
Tenho, porque assim, é um ajudando o outro.
Mas o grupo ajuda, ainda mais nessa turma que
já tem muitos alunos alfabéticos... Ajuda porque
um vai de encontro ao outro, e explica, aí o
outro começa a pensar, e vê, e percebe que
realmente é daquela forma, e avança de nível.
Eu quero fazer, eu estava falando essa semana,
quero fazer mais atividades em grupos...
Atividades em grupo: vantagens e
desafios
Eu sinto dificuldade porque eu quero fazer
muito nos grupos, mas tem os outros também
que vem... Se eu pudesse estar só com esses aí,
investindo, eu sei que eles estariam alem, mas tem
essas questões de briga, de sair, o tempo todo...
Repensando a prática docente: chamar
alunos com dificuldade para responder
questões na lousa
Eu faria diferente talvez não ter chamado ele
na frente aquele dia, talvez não seria o
momento... Eu faria aquele atividade com os que
já conseguem, e ele eu faria primeiro no
individual... Talvez no individual... Porque ele foi
na frente, quem sabe se ele não ficou meio
perdido porque viu que todos já estavam além
239
dele.. Tem isso também... ele não gostou...
Talvez naquele dia não era o momento de ter
chamado logo esse aluno, porque ele é um dos
que tem mais dificuldade... Talvez se eu
chamasse, porque minha intenção era que ele
percebesse, talvez se eu deixasse ele no lugar
dele, e só chamasse atenção para que ele
percebesse outra criança fazendo na frente
seria mais interessante naquele dia.
Então quando vai na frente, ele se sente
importante, e ao mesmo tempo que pode se
sentir vulnerável, se sente também protegido,
porque sabe que alguém vai ajudar, porque eu
sempre peço “gente, agora vocês podem ajudar
fulano”.... Então eu acho isso interessante também
Aí com eles foi também porque eles são inquietos,
não prestam muita atenção, então eles indo na
frente também tem essa coisa de que eles
estando lá, ficam mais centrados lá...
É porque se não os outros chegariam lá e
colocariam rapidinho as respostas...
Se eu deixasse cá num canto, eles nem iriam
ligar, porque para eles não tem tanto
significado como para os outros, eles ainda não
sabem ler nem escrever direito, eles iriam pensar
“ah, deixa lá para quem já sabe, vamos ficar
brincando aqui”... Por isso eu chamo eles para
ir, para eles perceberem, e os outros ajudam.
É porque no inicio eles já foram muito, e
conseguiram avançar, então agora é o momento
desses outros...
Justificativas para a estratégia de
chamar alunos com dificuldade na
lousa
Porque você vê que alguns ficam chateados, ou
começam a brincar... Mas... Esse também é um
240
problema, né?!
Agora, realmente eu tenho que pensar em outras
atividades que eles poderiam ir mais... Para
chamar a atenção desses outros também... Porque
eles estão indo menos, mesmo. Tem uma
justificativa, tem essas questões de ter que
ajudar mais quem precisa mais, mas eles
acabam ficando chateados... É um problema.
Não é um problemão, mas é um problema.
Foi no coletivo, para... Eu queria realmente que
todos ajudassem... Só que naquele momento eu
tinha intenção com essas crianças específicas...
Agora, eu poderia ter colocado ali alguns
materiais para eles resolverem utilizando
aquele material, e não mandar logo no quadro.
Poderia. E os outros também poderiam estar
fazendo naquele momento, porque aí poderia
haver esse confronto, “fulano achou tanto, você
achou tanto, como você fez”... Com o material...
Acho que teria sido bem mais interessante, e
eles aprenderiam mais... No caso desse aluno,
ele foi contar, contou um a mais, com o material
isso não aconteceria.
E também eu fiquei prestando atenção lá e cá, lá e
cá... Eu teria que estar mais centrada em quem
eu queria que, que...
Reflexão sobre a prática da correção
coletiva do dever de casa: poderia ter
disponibilizado material concreto que
ajudasse na apresentação dos
problemas resolvidos
Por exemplo, esse aluno não fez a atividade de
casa, então nesse caso eu colocaria todos
novamente em roda para fazer com o material,
“faça aí como você fez em casa”, e ficaria com
ele, que não fez... E ele já poderia também fazer
com a atividade, eu levei ele ao quadro mas ele
não fez a atividade...
241
É aquela questão que eu falei, do material
concreto... Ahh é, eu perguntei... Dei a opção,
mas se eu estivesse com o material já ali
também, talvez ele tivesse escolhido o
material... E envolveria as outras crianças...
No caso dessa aula de matemática, ou nas aulas
de português, eu sempre coloco a mesma
atividade, o mesmo texto, mas aí um vai escrever
por conta o texto, de memória, outros vão montar,
outros encontrar palavras, outros vão selecionar as
letras que formam tais palavras... É a mesma
atividade assim, mas não é a mesma forma
Aí você dá a mesma atividade, e não é a mesma
atividade. Às vezes pode até ser a mesma, mas a
forma de conduzir é diferente...
Eu tento montar uma atividade que caiba para
vários graus de aprendizagem. Agora, é difícil,
né?!
Isso é um problema... Um problemão, sabia?
Você vê que quando uns avançam demais,
outros menos, aqueles que avançam demais
correm o risco até de regredir, porque já
sabem tanto e não tem tanto desafio, fica
monótono, então tudo é um problema. Então
trabalhar essa diferença é muito complicado.
Mesmo trabalhando com grupo produtivo e tudo,
é muito complicado.
Atividades diferenciadas para alunos
com diferentes ritmos de aprendizagem
Ou ele aprende de um outro jeito, em outro
ritmo, e a gente fica angustiado querendo que
ele aprenda logo... Porque cada um tem seu
ritmo, mas eu fico preocupada: “ai meu deus, só
avançou até aqui, tem chegar até aqui”. A minha
preocupação é essa. Não quer dizer que ele não
242
avançou, mas avança em outro ritmo, mais
devagar. Esses seis mesmo estão assim. E apesar
de estarem menos avançados, eles avançaram
mas cada um dentro de um nível, ou estão no
mesmo nível mas pensam diferente.
Porque é um pouco complicado. Tem uns que
terminam mais rápido, mesmo se você da um
livro para ler, uma pintura, alguma coisa, eles
terminam mais rápido, e já querem fazer logo
outra coisa, e eu tenho que ficar de olho
também naqueles que estão menos adiantados.
Aí eu começo a ficar preocupada porque a sala
começa a ficar muito bagunçada, eu fico
preocupada em dar conta daquela multidão que
esta bagunçando, e acabo até inervando o
trabalho, porque eu quero terminar logo, “bora,
fulano”, e fulano esta pensando ainda e tal,
quando é a hora dele resolver realmente a questão
eu tenho que parar porque alguém brigou, porque
aconteceu alguma coisa, aí já vai, fecha o
caderno, e fulano fica para trás do mesmo jeito.
Assim, apesar de colocar nas duplas, tem
critérios... A gente tem que ver. Eu não posso
também colocar um aluno que sabe, que esta num
nível diferenciado, ou seja, que só conhece as
letras, mas ainda não conhece som nenhum, junto
com um aluno que já esta alfabético, que já sabe
tudo, porque ele vai e faz para ele. Isso já
aconteceu aqui na sala. Então eu tenho que
colocar aquele diferenciado com um que saiba
um pouquinho mais, que saiu um poço daquele
nível, que esteja no quantitativo, por exemplo.
Critérios para formação de duplas de
trabalho
Então é isso, eles explicam um para o outro.
243
Agora a gente também tem que pensar nessas
intervenções, o que eles devem fazer, porque as
vezes um quer fazer tudo pelo colega.
Então é isso, na hora de escolher as duplas eu
coloca crianças de níveis diferentes, mas
próximos. Níveis próximos. Aí funciona bem
Só que assim, às vezes é muito trabalhoso
porque você tem que dar assistência a todas as
duplas ou todos os trios, e vem aquela questão
de priorizar os que tem mais necessidade. E aí
quem termina primeiro vem atrás, vem a
atrapalha, você esta explicando para uma dupla e
eles vem e tiram a atenção daquele que estava
ali...
Mas tem ajudado.
Agora, depois desses agrupamentos eles
avançaram muito.
Benefícios e dificuldades das atividades
em duplas
Aí elas escreveram o texto completo, sendo que
uma ajudou a outra, não ficou nenhuma
parada, uma foi ditando e outra escrevendo, mas
ela iam se ajudando
Só que eu fico preocupada porque já esta em
agosto e eles estão no qualitativo e não sei se
vão chegar a alfabéticos até o fim do ano.
Meta de alfabetizar todos os alunos:
ideal x realidade
Porque assim, se a gente tem uma meta de
alfabetizar, a gente colocou 100% das crianças,
a gente eu digo a rede, o município todo, e estou
percebendo que isso está difícil... Assim, eu já
consegui bastante, mas essa minoria que está aí
vai fazer o diferencial na hora de olhar para
essa porcentagem, então eu quero investir mais
neles... Porque a meta é alfabetizar todos, com
qualidade, sem discriminação, essas coisas...
244
E agora assim, eu posso até não conseguir os
100% alfabéticos, mas muitos desses que ainda
não estão, tem condição plena de ir para uma
outra série.
Então a gente tem que ver tudo isso, porque se a
gente pensar, se eu quiser fazer além agora, eu
não vou dar conta, eu tenho que pensar nesses
que ainda não sabem, nessa porcentagem.
Sabe que a criança está com problemas, e que isso
pode estar impactando no aprendizado, mas no
final do ano você é cobrado pelo que eu
determinei junto com a rede na meta.
Tem a questão dos pais, alguns pais não tem
nenhuma formação também, não estudaram,
ou estudaram muito pouco, trabalham muito,
outros que acham que o papel da escola é que
deve ensinar e acabou, então não fazem o dever
de casa, não ajudam, tem meninos que chegam
com o material incompleto, então isso são fatores
que vão contribuindo para que esses alunos
não avancem...
Sobre o papel dos pais na
aprendizagem dos alunos
Mas eu acho que na maioria é essa questão do
acompanhamento em casa... na sala tem
também a questão do pedagógico, talvez não é
de qualidade assim, como eles gostariam que
fosse, mas também essa questão de em casa, o
desinteresse, aí chega na escola, presta atenção
em alguma coisinha mas não acha assim tão
interessante, chega em casa, leva a atividade e o
pai não da a devolutiva, tem sempre alguém que
fala assim: “ah, meu pai estava cansado, minha
mãe estava cansada, não fez a atividade porque
disse que pode fazer na sala com a senhora, que
245
essa questão aí a senhora que tem que fazer”...
Então isso deixa muito a escola sobrecarregada,
eles tiram o corpo fora e a gente não da conta
E outros chegam na escola assim... talvez porque
assim eles cobram muito o livro didático, eu sei
que o livro didático só não é uma condição, mas
ajuda muito, a questão das imagens e tal... Só de
falar assim: “eu tenho meu livrinho”...
Falta de material didático
Eles tem um aí que eu consegui, mas não é todo
mundo que tem, eu consegui alguns na
secretaria de educação, mas não é todo mundo
que tem, e esse ano não chegou o livro didático...
Então isso é uma condição que desfavorece
mais ainda aqueles que já não tem
praticamente nada.
Até porque as salas são muito cheias.
Alfabetização é primordial, não é? Agora coloca
um professor só para um monte de alunos, vários
fatores de vida e tudo, aí a gente não dá conta.
Então eu acho assim, a questão das salas
superlotadas, a falta de material, as condições
de trabalho, e essa questão dos pais, que jogam
tudo para a escola...
Dificuldades na prática pedagógica
Se o município tivesse condições de colocar
dois professores em uma sala, aí a gente poderia
pensar diferente em relação a isso. Mas não tem!
Aí eu não tenho em vista nada que possa ajudar, a
não ser um reforço no turno oposto...
Acho q são 6 ou 8... Deixe eu ver... São 6. Não,
são 7... Então eu tenho que ficar com esses 7, e
ver o que eu posso fazer com eles, para ver se
eles avançam....
Alunos com “dificuldades de
aprendizagem”
Nessa turma eu não tenho muito problema com
246
alunos assim hiperativos, mas na turma da tarde
eu tenho...
Tem um menino que quando ele não vem a sala
fica uma benção, mas quando ele vem é um
furdunço... Porque a mãe não sabe se ele é, se ele
tem algum.... sei lá, alguma necessidade
especial... Só se sabe que ele não consegue se
concentrar e bate em todos os alunos, sabe?
Tem alunos que a gente está explicando, está
explicando e ele não consegue entender, e nem ele
pergunta... Ele se esforça mais não consegue
aprender, a gente fica preocupado....
Tem essa questão.... Trabalhar com crianças
hiperativas ou especiais, surdos.... A gente tem
que mudar muito, mudar as atividades (...) Então
talvez isso, dar mais atenção às crianças com
necessidades especiais, mas não sei como.
Porque de qualquer forma, na sala aí eu
trabalho com crianças especiais, todos são
especiais....
Tem essa questão que eu já falei, que eles vieram
da creche, alguns vieram sem varias
habilidades...
Tem. É que eu teria que ter colocado um banco
de dados para favorecer eles... (...) Poderia pedir
que eles silabassem mesmo a palavra, para sentir,
perceber o som... É, acho que eu poderia ter
feito assim...
É, eu conseguiria melhor. Mas foi interessante
também...
Reflexões sobre a atividade da
cruzadinha: poderia ter
disponibilizado um banco de dados
Então foi bom, mas o banco de dados iria
favorecer mais... Mas eu acho que foi legal, foi
legal..
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As atividades poderiam ter sido feitas... Porque eu
fiz, não é? Fiz bastante em grupos, mas poderia
ter feito mais... Poderia ter mexido mais nos
grupos... Apesar de ser trabalhoso, porque tem
sempre alguém que atrapalha, mas mesmo com
tudo isso ajuda, ajuda bastante.
Aquela cruzadinha, por exemplo, depois dali eu
poderia ter feito o que eu não fiz, ter voltado
para o grupo em outro dia, porque se não ia
ficar cansativo, e fazer a mesma cruzadinha só
para esses meninos, nos grupos, pedir aos
outros que fizessem uma outra atividade, e
pedir para eles montarem, dar a quantidade de
letras exatas e pedir para eles montarem porque o
desafio seria maior, e ficaria com esses no grupo
com uma cruzadinha cada um, mas eles iriam
fazem em grupo. Aí eu nesse caso sairia
perguntando questões para cada um “e aí, fulano,
você concorda? Por que?” Aí eles iriam
aprender mais...
Aí essa questão das intervenções, porque eu acho
muito importante em qualquer processo é essa
questão das intervenções, o que você pretende.
Importância da intencionalidade na
prática docente
E isso por causa da falta desse planejamento do
como ensinar, do que você quer fazer com cada
um, ou com cada dupla. Tem que intencionar
mesmo! Porque se você não intenciona fica
aquela coisa, você lá na frente pá pá pá pá, você
achando que está dando tudo na aula, os meninos
repetindo que nem uns papagainhos, e a gente
achando que está fazendo e acontecendo e não
está, está discriminando, está deixando para lá, e
nem está pensando.
248
Aí acontece que alguns conseguem silabar, outros
não, aí para. Aí não consegue seguir mesmo, aí
para tudo, trava
Antes eu tinha intenção de ajudar os alunos,
quando eu trabalhava na zona rural, mas eu não
tinha esse conhecimento ainda. Então os meninos
silabavam que era uma beleza, mas os que não
conseguiam logo, coitados, acabavam
perdendo.
Não quero ficar só silabando, aí quem silaba vai
e quem não silaba não vai...
Sobre silabação
Mas teria que ser também um reforço de alguém
que já esta também nessa área e que entenda.
Porque tem alguns reforços por aí que não
adiantam, que fazem a atividade para a criança,
copia... E tem reforços também que os
professores só silabam, eles não querem saber
como a criança aprende, não querem saber
nada.
Antes eu tinha intenção de ajudar os alunos,
quando eu trabalhava na zona rural, mas eu
não tinha esse conhecimento ainda. Então os
meninos silabavam que era uma beleza, mas os
que não conseguiam logo, coitados, acabavam
perdendo.
Foi depois que eu comecei.... Depois da
faculdade. Depois que comecei a faculdade. Eu
sempre gostei muito de estudar, e tudo que iam
falando lá eu comecei a botar na prática.
Transformações na atividade da
professora após o inicio da formação
docente: a importância da teoria como
suporte à prática em sala de aula
Aí eu fui vendo isso, os níveis de aprendizagem,
como fazia. Aí eu comecei a ver isso mesmo
como uma coisa da minha prática, e trouxe
para a sala de aula. E funcionou bem, muita
249
coisa já mudou. Muita coisa mesmo.
Acho que é isso, porque no mais tudo que eu
aprendo eu procuro colocar na sala de aula...
Aí passei, coloquei no relatório, aí os professores
que já estavam aqui, que já sabiam até as
atividades (...) eu elaborava as atividades
junto, passava, o professor fazia, me pedia até
ajuda, os meninos avançaram (...) Já desse ano,
eu não passei silábico qualitativo, passei silábicos
alfabéticos, um pouco a mais ainda, e o menino
está lá do mesmo jeito, correndo o risco de voltar.
Tem que ver isso, porque se não ele vai regredir.
Porque todo dia essa outra pro me fala: “fulano
não ta fazendo nada, ele não sabe nada”. Aí nas
atividades nada para favorecer para ele seguir.
E aí falar as vezes é ruim, porque você acaba
conseguindo inimizade. O grupo é bom, é legal,
mas assim, quando parte para a sala de aula,
quando você quer falar alguma coisa para
ajudar – muitos aqui não, porque já sabem estão
estudando o processo – mas quem está chegando
agora, essas novas que estão chegando agora, se
sentem ofendidas de ouvir alguma coisa (...)Aí
é a criança que perde. Mas não é maioria não, a
escola já mudou muito.
Importância da continuidade entre o
trabalho de professoras de diferentes
séries
Agora, cabe ao professor ver o relatório
individual dele, ver o que ele já sabe, o que ele já
garante, para a partir daí seguir. E às vezes aqui
não acontece isso, porque tem professores novos
chegando, não estão sabendo ainda desse
processo, dizem “não ta sabendo tal coisa, tem
que saber” e nem olham relatório nem nada,
não olham nada, e começam do zero, e ai
250
muitos repetem, muitos começam a repetir.
Assim, eu percebi que eu fico muito nervosa, né,
tenho muita ansiedade que eles aprendam
logo...
Outra coisa também é a questão da concentração
na sala de aula, eu sou uma pessoa só... E fico
pensando, será que a atividade não está lúdica,
não esta chamando a atenção deles... Então
pode ser também isso que contribui.
Era para ter avançado mais, por exemplo a
gente já deveria estar produzindo mais textos ,
com escrita alfabética...
A gente produz textos, mas é mais coletivo.. Eu
tenho realmente investir mais na questão da
leitura e escrita para partir para a questão da
produção individual. Não que eles deixem de
fazer, eles fazem, mas a ideia é que eles façam
alfabético...
Auto avaliação da prática em sala de
aula: deveria ter avançado mais
Mas no caso dela, especifico, eu ainda não
planejei, elaborei atividades específicas para
ela, tanto quanto eu deveria. Eu fiz algumas,
mas não todas que deveria. Mas mesmo assim
eu busquei, eu fui, busquei o alfabeto em libras,
cores, animais, fui na internet buscar isso...
E também essa questão de qualificar.... Se
qualificar também. Porque esses professores
que estão chegando agora tem muito tempo
fora da sala de aula, eles estavam
desempregados e o prefeito foi e empregou. Aí
coloca na sala de aula. Aí eles vão querer ensinar
como eles aprenderam.
A importância da formação
profissional no trabalho da equipe
escolar
Sinto. Está fazendo um efeito grande, porque
todo mundo aqui incorporou e está trazendo
251
isso para a sala de aula. A gente fica buscando,
sabe? Se preocupa, sai daqui e vai para a outra
escola, quem vai pegar a turma, a gente vai na
secretaria de educação, conversa...
A gente já estava naquela linha da UEFES, então
a gente está pegando o melhor dessa, pegou o
melhor da UEFES e está trazendo para cá,
estamos estudando, então isso está
melhorando. A gente sabe que tem muita coisa
que precisa mudar, mas a gente evoluiu bastante
já.
Na realidade é assim, é a FTC (Faculdade de
Tecnologia e Ciências). A gente só tem uma
aula, um dia de aula. Mas tem vários
trabalhos, é uma trabalheira....
Porque a FTC na realidade ela tem material,
tem tudo para ajudar, mas é um só dia de aula,
e é aula virtual, então tem gente que vai e não
liga muito para a aula, porque é virtual, o
professor não está ali ao vivo, ele está só no
vídeo, a gente assiste aula pelo vídeo. Mas a gente
tem material disponível.
Como antes dessa faculdade a gente já tinha
iniciado, a gente fez antes seis meses de UEFES,
e eram todos os dias, a gente já estava bem, a
gente tinha ótimos professores, e aí a gente
seguiu essa linha.
Como a gente já vinha naquela linha, com
aquela vontade de estudar e tal, porque a gente
fazia UEFES antes, a gente seguiu.
Considerações sobre a formação inicial
e continuada disponibilizada no
município
A UEFES era ótima, menina! É a faculdade de
Feira de Santana. Mas aí teve um problema na
prefeitura, que não estava pagando a UEFES,
252
aí eles fecharam a unidade daqui.... Era naquele
prédio branco na praça, sabe? Era ótimo! Mas aí
acabou porque a prefeitura não pagou.
Agora nesse curso a gente está fazendo assim, a
gente paga e a prefeitura dá a metade. Mas não é
tão boa não, como a anterior. E está uma
confusão, tem um monte de problemas lá, parece
que a prefeitura também não está pagando direito
a parte dela... Mas a gente não quer desistir!
Até porque a FTC não dá tantas condições para
a gente. Até o espaço físico, a gente ficou 20 dias
sem aula por conta do espaço físico. A prefeitura
também não pagou o aluguel do prédio, não
pagou a FTC, aí a FTC ficou sem espaço, e a
gente sem aula. Mas estudando em casa.
Foi muito bom! Foi importante, porque às vezes
a gente vai fazendo as coisas, achando que está
tudo muito bom, e não para nem para refletir
tanto.... E assim, agora foi muito bom, porque eu
comecei a perceber por exemplo nas aulas o
que poderia ter sido diferente, o que poderia
ter feito.... Me fez refletir mais sobre, pensar
ainda mais neles, nos alunos
Reflexões sobre o processo de
autoconfrontação simples
Fez só favorecer, porque me fez perceber “ah,
naquele momento poderia ter feito tal coisa,
poderia ter sido feito assim”. Então foi muito
bom!
253
ANEXO 7
Quadro de Pré Indicadores da ACC - episódio 1
Nesse momento eu chamei exatamente esse aluno para que ele percebesse que para
escrever usava-se letras, e determinadas letras, letras selecionadas através de alguma
estratégia. Ele não reconhece ainda totalmente o alfabeto, mas ele sabia a palavra que ia
encontrar, só precisava de apoio, de condições para encontrar, só que nesse momento ele não
encontrou, porque ele está num nível diferenciado onde ele não consegue ver quantidade nem
qualidade. Ele sabe que se escreve com letras, mas não sabe quais e nem quantas.
Aí você viu que eu intervi de uma maneira que ele percebesse que PÉ começava com P, fui lá,
grifei, mas isso para ele não foi tão significativo naquele momento. A partir daí, como ele não
conseguiu, a gente foi e ajudou ele no coletivo.
Porque se eu chamasse logo de imediato os meninos que já sabem, eles já saberiam de
imediato e a gente não teria assim esse momento para ele.
É aquela parlenda “um homem bateu em minha porta e eu abri....” Nós já trabalhamos em
aula, e a professora de educação física também já trabalhou com eles, então eles conhecem de
cor. Essa atividade foi uma sequencia, e ele participou de todas, e ainda não conseguiu
naquele momento encontrar PÉ.
Em outras atividades a partir daí, eu já sabia que ele ia precisar de ajuda, aí fui até ele e ele
já conseguiu encontrar outras palavras também que a gente foi trabalhando. Mas sempre
assim com ajuda.
Quadro de Pré Indicadores da ACC - episódio 2
Na realidade eu nem escolhi. Foi uma atividade de correção da lição de casa, eu queria saber
se todos tinham feito a atividade e como resolveram. Aí como esse aluno não havia feito a
atividade, eu encontrei um momento para que ele pudesse fazer lá na frente, para depois
a gente confrontar se alguém tinha feito diferente
Só que como os meninos já tinham feito essa atividade, não era tão desafiador ficar ali, só
prestando atenção... Aí começaram a sair do lugar, ficar agoniados, já queriam logo fazer...
Participam bastante! É uma turma muito participativa. Só que assim, eles participam no
coletivo, quando é individual eles ficam perdidos.
Quando coloca em grupos, favorece porque eu coloco sempre uma questão para ter
discussão, porque eu percebo que um já sabe o número, mas o outro ainda não conhece aquele
número, aí o que já tem um conhecimento a mais já ajuda o outro.
254
Nesse dia, só esse aluno disse que não tinha feito. Na verdade, tinha mais dois ou três que
também não tinham feito, mas como eles não se manifestaram eu não quis chamá-los logo
na frente, mas eu sei que aquela explicação poderia servir para eles também.
Não, isso é que dificulta, essa questão do acompanhamento (dos pais)...
Mas eles não tem apoio em casa, nas atividades... Eles teriam que ter sempre alguém ali
observando, apoiando...
Todos os dias tem alguém que fala “ah, eu não fiz por isso, não fiz por aquilo, minha mãe
ta doente, minha mãe viajou” e essas coisas assim.
Então eles não tem esse acompanhamento, e isso dificulta porque a gente precisa dessa
parceria. Você sabe, né?! A gente precisa dessa parceria. Se não tem, fica só o professor lá, se
desmiolando, e às vezes o resultado não vem como a gente quer...
Quadro de Pré Indicadores da ACC - episódio 3
Eu chamei seis, mas depois os outros começaram a levantar...
Porque assim, nessa atividade eles teriam que pensar sobre quais letras e a quantidade de
letras também, e para fazer isso eles teriam que ir ajustando, por partes, encaixando as letras.
Eu queria chamar esses meninos aí para que eles percebessem realmente a questão.
Os outros que já estavam mais avançados ficaram impacientes, e a gente também tem
que pensar em atividades que favoreçam esses... Porque geralmente quando eu vou
pensando, planejando, penso que tem pouco tempo para os outros avançarem também, esses
que ainda não avançaram tanto. E os outros que já estão mais adiante, eles querem ajudar
logo, porque eles precisam também fazer a parte deles, seguir...
Aí naquele momento eu peço para eles ficarem ali só observando porque vai chegar o
momento também deles ajudarem.
Então se eu que tenho esse conhecimento e preciso ajudar os alunos, preciso pensar
primeiro, agora, nesse momento, mais neles que estão mais atrasados e precisam de mais
investimento, e preciso elaborar também atividades para os outros.
Infelizmente essa atividade aí não foi pensada de maneira que eles ficassem lá centrados.
Eu queria que eles ficassem lá prestando atenção para depois vir auxiliar os colegas.
Até porque a questão – todas as séries eu acredito que precisaria – mas eu penso que na
alfabetização, que é uma base para depois, deveria ter uma professora ajudando, para
estar dando esse suporte, ajudar com as atividades... Porque se você está ali, para dar conta de
tudo é difícil. Você viu, eu nem tinha percebido isso, mas eu estava lá explicando e toda hora
255
interrompendo: “fulano, senta e presta atenção”, aí chega alguém na porta, toda hora tem que
parar e voltar de novo. Ter esse controle é um pouco complicado.
Mas já tem uma grande maioria, graças à deus, que já está lendo, mas tem aquelas crianças ali,
que são seis, que ainda não reconhecem nem as letras. Então a gente tem que primeiro
pensar nelas
Mas tem uns que reconhecem mais ainda não saíram do nível diferenciado, ou que saíram do
diferenciado mas ainda estão no quantitativo... Mas o mais sério são esses seis.
E aí minha intenção é assim, eu já tinha até comentado que você sabe que a gente tem uma
meta ao final de cada série, e aí uma das metas foi alfabetizar 100% dos alunos. A gente
ousou, 100%. Então eu tenho que conseguir, e esses seis alunos aí vão ser uma
porcentagem altíssima e vai implicar.... E aí a minha intenção é fazer com que eles
aprendam, mas aprendam mesmo, com qualidade! Eu não quero só cumprir por cumprir,
eu quero porque eu sei que eles precisam disso para seguir para a próxima série.
Quadro de Indicadores e Pré Indicadores da ACC
Indicadores Pré Indicadores
Nesse momento eu chamei exatamente esse
aluno para que ele percebesse que para
escrever usava-se letras, e determinadas letras,
letras selecionadas através de alguma estratégia.
Ele não reconhece ainda totalmente o alfabeto,
mas ele sabia a palavra que ia encontrar, só
precisava de apoio, de condições para encontrar,
só que nesse momento ele não encontrou, porque
ele está num nível diferenciado onde ele não
consegue ver quantidade nem qualidade. Ele sabe
que se escreve com letras, mas não sabe quais e
nem quantas.
Porque se eu chamasse logo de imediato os
meninos que já sabem, eles já saberiam de
imediato e a gente não teria assim esse
momento para ele.
Justificativa da escolha de certos
alunos para ir à lousa
Na realidade eu nem escolhi. Foi uma atividade
256
de correção da lição de casa, eu queria saber se
todos tinham feito a atividade e como resolveram.
Aí como esse aluno não havia feito a atividade,
eu encontrei um momento para que ele pudesse
fazer lá na frente, para depois a gente confrontar
se alguém tinha feito diferente
Nesse dia, só esse aluno disse que não tinha feito.
Na verdade, tinha mais dois ou três que também
não tinham feito, mas como eles não se
manifestaram eu não quis chamá-los logo na
frente, mas eu sei que aquela explicação
poderia servir para eles também.
Eu queria chamar esses meninos aí para que
eles percebessem realmente a questão.
Aí naquele momento eu peço para eles ficarem ali
só observando porque vai chegar o momento
também deles ajudarem.
Aí você viu que eu intervi de uma maneira que ele
percebesse que PÉ começava com P, fui lá, grifei,
mas isso para ele não foi tão significativo naquele
momento. A partir daí, como ele não conseguiu,
a gente foi e ajudou ele no coletivo.
Intervenções da professora ajudam as
crianças a conseguir desenvolver a
atividade
Em outras atividades a partir daí, eu já sabia que
ele ia precisar de ajuda, aí fui até ele e ele já
conseguiu encontrar outras palavras também que
a gente foi trabalhando. Mas sempre assim com
ajuda.
Só que como os meninos já tinham feito essa
atividade, não era tão desafiador ficar ali, só
prestando atenção... Aí começaram a sair do
lugar, ficar agoniados, já queriam logo fazer...
Os alunos mais adiantados ficam
impacientes por ter que esperar os
mais atrasados
Eu chamei seis, mas depois os outros
começaram a levantar...
257
Os outros que já estavam mais avançados
ficaram impacientes, e a gente também tem
que pensar em atividades que favoreçam
esses... Porque geralmente quando eu vou
pensando, planejando, penso que tem pouco
tempo para os outros avançarem também, esses
que ainda não avançaram tanto. E os outros que já
estão mais adiante, eles querem ajudar logo,
porque eles precisam também fazer a parte
deles, seguir...
Infelizmente essa atividade aí não foi pensada
de maneira que eles ficassem lá centrados. Eu
queria que eles ficassem lá prestando atenção para
depois vir auxiliar os colegas.
Atividades em grupos: os alunos se
ajudam
Quando coloca em grupos, favorece porque eu
coloco sempre uma questão para ter discussão,
porque eu percebo que um já sabe o número, mas
o outro ainda não conhece aquele número, aí o
que já tem um conhecimento a mais já ajuda o
outro.
Não, isso é que dificulta, essa questão do
acompanhamento (dos pais)...
Mas eles não tem apoio em casa, nas
atividades... Eles teriam que ter sempre alguém
ali observando, apoiando...
Todos os dias tem alguém que fala “ah, eu não
fiz por isso, não fiz por aquilo, minha mãe ta
doente, minha mãe viajou” e essas coisas assim.
Dificuldades geradas por falta de
acompanhamento dos pais
Então eles não tem esse acompanhamento, e
isso dificulta porque a gente precisa dessa
parceria. Você sabe, né?! A gente precisa dessa
parceria. Se não tem, fica só o professor lá, se
desmiolando, e às vezes o resultado não vem
258
como a gente quer...
Então se eu que tenho esse conhecimento e
preciso ajudar os alunos, preciso pensar
primeiro, agora, nesse momento, mais neles
que estão mais atrasados e precisam de mais
investimento, e preciso elaborar também
atividades para os outros.
“Preciso pensar primeiro nos que tem
mais dificuldade”
Mas já tem uma grande maioria, graças à deus,
que já está lendo, mas tem aquelas crianças ali,
que são seis, que ainda não reconhecem nem as
letras. Então a gente tem que primeiro pensar
nelas
Necessidade de ajuda: gostaria de ter
mais uma professora auxiliando na
atividades durante as aulas.
Até porque a questão – todas as séries eu acredito
que precisaria – mas eu penso que na
alfabetização, que é uma base para depois,
deveria ter uma professora ajudando, para estar
dando esse suporte, ajudar com as atividades...
Porque se você está ali, para dar conta de tudo é
difícil. Você viu, eu nem tinha percebido isso,
mas eu estava lá explicando e toda hora
interrompendo: “fulano, senta e presta atenção”,
aí chega alguém na porta, toda hora tem que parar
e voltar de novo. Ter esse controle é um pouco
complicado.
Meta de alfabetizar todos os alunos:
“não quero cumprir só por cumprir,
mas porque sei que eles precisam”
E aí minha intenção é assim, eu já tinha até
comentado que você sabe que a gente tem uma
meta ao final de cada série, e aí uma das metas
foi alfabetizar 100% dos alunos. A gente ousou,
100%. Então eu tenho que conseguir, e esses
seis alunos aí vão ser uma porcentagem
altíssima e vai implicar.... E aí a minha intenção é
fazer com que eles aprendam, mas aprendam
mesmo, com qualidade! Eu não quero só
259
cumprir por cumprir, eu quero porque eu sei
que eles precisam disso para seguir para a
próxima série.