1
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC - SP
Jos Assuno Fernandes Leite
A Repblica de Plato: relao entre os livros I, II, III, IV e VIII
DOUTORADO EM FILOSOFIA
So Paulo 2009
2
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC - SP
Jos Assuno Fernandes Leite
A Repblica de Plato: relao entre os livros I, II, III, IV e VIII
Teses apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia sob a orientao da Profa. Doutora Rachel Gazolla de Andrade.
So Paulo 2009
3
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________ _________________________________________________
4
Aos meus Mestres pela confiana, respeito e dedicao.
5
AGRADECIMENTO
Quando atingimos a finalizao de uma tese, chega o momento de
pensarmos sobre tudo o que nos foi possibilitado para sua concluso. Isso
me faz lembrar da conversa entre Cfalo e Scrates em que o ancio
reclama da falta do amigo, que no o procurou devido s suas condies
fsicas e pede para Scrates que no deixe de ficar, tambm, com os mais
velhos, pois nessa idade o prazer da conversa aflora. Scrates, ento,
responde ao ancio (328 d e) que para ele um prazer conversar com
pessoas de idade avanada para que possa se informar, junto deles, como
pessoas que foram frente num caminho que, talvez, tenhamos de
percorrer, sobre as suas caractersticas, se spero e difcil, ou fcil e
transitvel.
Essa uma forma de olhar para todo o processo da elaborao de
uma tese e pensar que o caminho no muito fcil de ser trilhado, mas, se
olharmos para as coisas positivas e ouvirmos os mais velhos e os amigos, o
caminho torna-se prazeroso.
Depois do caminho trilhado, tenho de agradecer a Deus por ter sido o
meu porto seguro nos momentos difceis. professora Dra. Rachel Gazolla
pela segurana e determinao quanto forma de orientar, e por deixar
reviver o orculo nos momentos necessrios. Meu muito obrigado sempre.
valiosa contribuio da Profa. Dra. Gilda Nacia e o Prof. Dr.
Henrique Murachco durante o exame de qualificao.
A CAPES, via programa PQI, sem a qual no teria condio
econmica para realizar os estudos.
UFMA pelo incentivo aos seus professores do DEFIL em suas
qualificaes, em especial Dona Batista pelo carinho e ateno.
A minha famlia, Carlos, Carlos William e Mauricio, pela aceitao de
minha ausncia durante o percurso da elaborao da tese.
famlia Leal, em especial ao Sr. Roque Leal e Dona Rachel Leal,
por me terem acolhido como um filho, minha eterna gratido.
Nildinha e Aline pelos momentos de alegria com os coraes
sempre acolhedores, o meu eterno respeito a vocs. A minha querida irm
6
Elizete Gavazzone e ao Prof. Adelino da Rosa, meu respeito sempre. A
meus dois anjos da guarda, Ivanete Pereira e Marcos, meus irmos, amigos,
porto seguro de amor e de acolhimento, vocs fizeram com que eu
fortalecesse a minha f que o bem e a bondade valem a pena ser vividos. Ao
meu amado Mestre Rolland e Ana Paula Garrido, pelos coraes sempre
abertos para me acolherem e por me terem dado uma boa e grande famlia
NEFRU, fonte de minha fora e do meu caminho. Aos meus amigos e irmos
da UFMA: Zilmara, Hamilton, Luciano Faanha, pela eterna alegria na
convivncia e por acreditarmos que podemos ser cada dia melhores. A
Snia Rangel (PUC-SP) e a Profa. Mrcia Manir (UFMA) pela ateno e
cuidado na correo do texto. Aos meus amigos de estudos platnicos da
PUC-SP, pelas conversas e apoio. E a todos os meus amigos que torceram
por mim, mas, l no fundo do corao, respeitaram minha ausncia,
esperando o retorno. Por tudo o que tenho de agradecer, volto fala de
Scrates para dizer que o percurso foi longo, mas com certeza sinto-me um
homem melhor. Meu muito obrigado sempre a todos vocs.
7
Resumo
Uma das crticas feitas ao Livro I de A Repblica o fato de ele ser
um livro desvinculado do restante da obra por apresentar uma aporia no
final, caracterstica dos dilogos considerados da juventude de Plato,
conhecidos tambm como socrticos por lidarem com questes
compreendidas como ticas. Esse modelo de dilogo produzido por Plato
na juventude e suas semelhanas com o Livro I eferido levam alguns
comentadores a acreditarem que ele seja anterior aos demais e at
descontextualizado da obra. Sabemos da complexidade dessa obra e, por
isso, fomos verificar se realmente esse primeiro livro ou no desvinculado
do restante. Para tanto, tivemos que escolher um caminho, j que,
dependendo do objetivo, A Repblica se pode trilhar por percursos distintos.
Nesse caso, recolhemos as teses dos personagens do Livro I e II para
verificarmos se Plato abandona ou no o que apresentado por Cfalo,
Polemarco, Trasmaco, Glauco e Adimanto. Dadas essas teses,
constatamos, logo ao incio, as diferenas metodolgicas nos dilogos
entre os personagens. Em seguida, detectamos uma relao entre as trs
primeiras teses do Livro I com os estamentos, as trs potncias da alma e o
mito das raas. Por fim, dada a cidade justa e seus fundamentos, fomos
verificar a relao das teses dos primeiros personagens com os modelos de
constituies consideradas decadentes no Livro VIII, se esto ou no
presentes quer na totalidade, quer parcialmente. Nesse processo de
observao das constituies, verificamos a educao adotada em cada um
dos modelos das poleis. Nossa reflexo, no presente trabalho, foi a de
demonstrar que o Livro I de A Repblica se encontra vinculado ao restante
8
dos outros livros, tanto que as primeiras teses reaparecem de algum modo
no Livro VIII.
9
Abstract
One of the criticisms that have been made to the Book I of the Republic is
the fact that it is disconnected from the remaining of the work, since there is
an aporia at the end of the dialogue, a characteristic of dialogues from Platos
youth, also known as Socratic for dealing with questions deemed as ethical.
The model of dialogue written by Plato in his youth, and its similarities with
the Book I have lead some commentators to believe that this book may
precede the others, and even be out of the context of the work. Being aware
of the complexity of this piece of work from Plato, we proceeded to verify
whether in fact this first book does not belong with the others. To this end it
was necessary to choose a proper approach, since depending on ones
purpose different paths can be followed in the Republic. We collected the
theses of the characters from Book I and II to check whether or not the
aforementioned philosopher will abandon the ideas presented by Cephalus,
Polemarchus, Thrasymachus, Glaucus and Adeimantus. Given their theses,
we noticed firstly the methodological differences in the dialogues between
the characters. Secondly, we detected a relationship between the three
theses and the three sectors, and between the three powers of the soul and
the myth of the races in the Book III. Finally, given the just city and its
fundaments, we studied the relationship between the characters theses and
the constitution models regarded as decadent in the Book VIII, analysing
whether such theses are present or not, partially or integrally. In this process
of analysing the constitutions, we also paid attention to the education
adopted in each one of the plis models. Our reflection in the present work
consisted in demonstrating that the Book I of the Republic is not
10
disconnected from the remaining of the work, since the earlier theses
reappear in some form in the Book VIII.
11
SUMRIO Introduo........................................................................................ 12
Cap. I - Os livros I e II da Repblica e a questo dos personagens....................................................................................
18
1 - As vertentes de uma interpretao dos dilogos................ 19 2 - Os personagens do livro I e II ............................................. 28 3 - Livro I: quem Cfalo?....................................................... 31 4 - A lgica do discurso de Cfalo............................................ 45 5 - Quem Polemarco.............................................................. 46 6 - O discurso de Polemarco e sua arete................................. 50 7 - Quem Trasmaco ............................................................. 57 8 - A tese de Trasmaco........................................................... 60 9 - A lgica do discurso de Trasmaco: os dissoi logoi............. 64
10 - Glauco e Adimanto............................................................ 72
Cap. II A relao do Livro I com os trs estamentos, as trs potncias da alma e o Mito das Raas..........................................
78
1 - A cidade justa primria................................................... 79 2 - A introduo do estamento dos guardies e a educao (Livros II, III ao IV)....................................................................
85
3 - As trs potncias da alma................................................... 87 4 - A educao dos trs estamentos........................................ 94 5 - As teses do Livro I acomodadas na cidade justa................ 99 6 - A justia e o modelo educativo............................................ 113
Cap. III O Livro VIII e as teses sobre a justia dos livros I e II: relaes ...........................................................................................
124
1 - A decadncia das formas de governo................................. 125 2 - As mudanas educacionais nas formas de governo........... 136 3 - Democracia e Liberdade..................................................... 142
IV - Consideraes finais................................................................ 155
V Referncia Bibliogrfica........................................................... 158
12
INTRODUO
Princpio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado... Pois donde a gerao para os seres, para onde tambm a corrupo se gera segundo o necessrio; pois concedem eles mesmos justia e deferncia uns aos outros pela injustia, segundo a ordenao do tempo. (Anaximando de Mileto. Frag. 1, recolhimento por Diels-Kranz)1
Plato tem algo de fascinante nos seus dilogos: ao expor suas reflexes,
apresenta personagens que tm um simbolismo muito especfico para a poca e
para o prprio dilogo e que o leitor moderno deve investigar. Tais personagens
so figuras significantes para a cultura grega de ento, quer por suas funes,
quer por seu modo de vida ou pelos acontecimentos que viveram. Ao dialogarem
com Scrates, deixam-nos um campo rico que une a filosofia platnica e a histria
da poca, fato que no podemos marginalizar.
A obra A Repblica2 , entre tantos escritos de Plato, uma das que mais
chamam a ateno pela diversidade de problemas apresentados nos seus dez
livros. Trata do que a justia e de como seria uma cidade justa a ser pensada
mantendo-se a relao corpo-alma, de modo a estabelecer os modos de a alma
ser e as formas de governo possveis, bem como o valor do conhecimento e seus
graus, levando em conta o tipo de alma que se tem. A partir disso, como se sabe,
Plato pensa na educao dessa cidade justa e na educao do filsofo, seu 1 Fragmentos. Simplcio, Fsica, 24,31.Trad. J. Cavalcante de Souza, Abril Cultural. Essa concepo de ordem e desordem existente no cosmos enquanto movimento, possibilita a justia para as coisas serem e a injustia para deixarem de ser no eterno ciclo de gerao e corrupo; essa idia de Anaximandro nos parece muito prxima da idia de justia de Plato em A Repblic, ao tratar das formas polticas, como veremos. 2 Para nosso trabalho, tomaremos como referncia as seguintes tradues de A Repblica: a edio bilnge da Belles Lettres; a traduo da Fundao Calouste Gulbenkian, de Maria Helena da Rocha Pereira; a traduo da EDUFPA, de Carlos Alberto Nunes; a publicao da Editora Martins Fontes, traduo de Anna Lia Amaral de Almeida Prado; a traduo mexicana de Antonio Gmez Robledo, da Universidad Nacional Autnoma de Mxico. Algumas pequenas mudanas de traduo devem-se a sugestes da Prof. Dr. Rachel Gazolla, orientadora.
13
governante principal o filsofo-rei -, bem como na injustia e seu reflexo na
alma, aes e na organizao poltica. Dos dez livros, os que mais nos
interessam, primeiramente, so os trs primeiros sobre os quais nos deteremos.
Aps o seu estudo, investigaremos o Livro IV em parte e as relaes com o livro
VIII, quanto s formas de governo, educao dos cidados, alma e educao
de cada um e destruio dessas sociedades elencadas por Plato.
Uma vez que o Livro I, segundo comentrios de I. M. Crombie, estaria
descontextualizado dos restantes por apresentar caractersticas prprias dos
primeiros dilogos, ditos socrticos, nossa pretenso consistir em demonstrar o
contrrio, ou seja, que o Livro I, longe de encontrar-se destacado dos demais,
constitui nosso ponto de ligao com os outros livros, pois nele est contida a
matria-prima cuja moldagem dar-se- em tal grau de sutileza, que muitos
leitores deixaro de reconhec-la no restante da obra.
Inicialmente, no Livro I, a nossa ateno se volta para os personagens e
suas teses quanto noo de justia. Primeiro, perguntamos por que Plato
escolhe esses personagens especficos para refletir sobre o que a justia? Com
certeza, no so eles aleatrios; no coloca nas suas falas algo insignificante
para sua reflexo filosfica posterior. Nas leituras dos intrpretes, registramos que
diversos comentrios so tecidos sobre os dez livros, mas, em geral, o primeiro
livro lido como somente propedutico, sem grande importncia, o que nos deixa
intrigados, j que no o que vemos. Plato sempre tem um porqu ao colocar,
em suas obras, certos personagens, certa cenografia ao dilogo, possveis
alegorias, metforas, e mitos, como se sabe. Este comeo de A Repblica
sustenta, a nosso ver, trs importantes teses sobre o que a justia poca e
14
que Plato, por algum motivo que tentaremos explicitar, quer recolh-las para
melhor pens-las.
Em certo momento da orientao, foi chamada nossa ateno para os
enunciados do Livro I relacionados s teses apresentadas pelos personagens
Cfalo, Polemarco e Trasmaco, que poderiam ser resgatadas por Plato para a
sua cidade criada em lgos em livros posteriores. Essas teses, aps receberem a
devida investigao, mostram que, realmente, suportam a ordem e a forma de
ao de cada estamento da cidade justa e ajudam a compreender melhor o
estudo do Livro VIII. O problema maior, para ns, foi o de perceber que essa
perspectiva no tem significativa contribuio dos intrpretes, isto , a relao
entre o Livro I e os Livros II, III e IV, bem como o Livro VIII no costuma ser
estudada. Essa dificuldade refere-se ao fato de essa tradio afirmar que o Livro I
um texto anterior aos outros nove e, ademais, no costuma ligar os primeiros
livros aos ltimos, como foi dito, e mostraremos que possvel faze-lo e se deve
faz-lo.
Demonstraremos que as teses de Cfalo, Polemarco e Trasmaco e os
valores da tradio poltica grega que elas carregam, tm aspectos que sero
necessrios a Plato e ele os aglutinar em suas reflexes sobre a cidade. A
nosso ver, no Livro I, preciso expor a forma como Plato se utiliza de uma
estratgia metodolgica entre os personagens e sua evolutiva superao destes.
Inicia com a maieutica socrtica - utilizada para com os dois primeiros
personagens, Cfalo e Polemarco -, vai eristica no dilogo com o sofista
Trasmaco e, com Glauco e Adimanto, introduz a sua dialtica propriamente, e a
pontuao da questo a ser desenvolvida no restante da obra: a origem da justia
15
e da injustia solicitada pelos dois dialogadores. Isso fica bem delimitado quando
analisamos a estrutura lgica das falas entre Scrates e seus debatedores.
Nessa perspectiva, entendemos que o Livro I esteja bem contextualizado no
restante da obra, mas falta perceber a relao existente entre os significados da
dikaiosyne, exposta no Livro I, e a ordem dos estamentos da cidade justa. Quanto
diferena do Livro I para o Livro II, a nosso ver, apenas metodolgica. Plato,
num primeiro momento, utiliza-se da maieutica para dialogar com personagens
aparentemente mais elementares em suas colocaes, e quando dizemos isso
significa que esto menos acostumados com a filosofia; em seguida, usa da
eristica para enfrentar um sofista e, por fim, pensa poder usar a dialtica com
Glauco e Adimanto por serem mais afoitos s perguntas, o que o conduzir ao
logos que pretende, mais complexo, para explicitar o que a justia nos Livros II,
III, IV. Ele sabe que o caminho utilizado no Livro I no d o fundamento da
dikaiosyne, uma vez que recolhia as opinies vigentes e debatia maieuticamente
com os personagens. Mostrava apenas a fora do questionamento do prprio
logos, sem expor totalmente sua fora argumentativa e investigativa at onde se
pudesse levar.
Assim, num primeiro momento, mostraremos as teses do Livro I e suas
implicaes mais diretas. Num segundo momento, faremos uma relao entre as
trs teses, com os estamentos, apresentados por Scrates na sua cidade justa e
a relao com o que ele chamar de as trs potncias da alma, aps o que nos
deteremos no nomeado Mito das Raas.
Com a cidade criada, encontramos a justia enquanto virtude e, na alma,
enquanto o equilbrio das trs potncias que sustentam as diferenas, entre os
homens e o modo de diviso da cidade em estamentos, servindo de base para o
16
exerccio das funes de cada estamento da cidade. Para que os cidados
aceitem exercitar-se nas suas respectivas funes, Plato critica o contedo
pedaggico da educao grega e censura, em parte, os poetas tradicionais,
Homero e Hesodo, base da paidia, como ser apontado. Resgata, ainda, da
tradio mtica potica o Mito das Raas que, em suas mos, modifica-se para
ser um instrumento educativo, diferenciado, uma nobre mentira capaz de criar,
entre os habitantes dessa cidade, o sentimento de philia e a aceitao das
diferenas, sem o que nada se sustentar.
Num terceiro e ltimo momento, dado o modelo da cidade justa e do homem
justo e virtuoso dessa cidade, necessrio verificar o Livro VIII e suas formas de
governo, discuti-las e entender por que Plato cria esse livro. Apontaremos alguns
caminhos possveis para um estudo do referido livro. Dos caminhos indicados
acolhemos a tese de Jaeger que afirma ser, esse livro uma parte que trata da
stasis na alma humana. Com essa suposio acreditamos que o que Plato faz
uma experincia investigativa sobre o ser humano, observando o reflexo da
educao na alma de cada um, fazendo corresponder cada potncia anmica a
uma forma de governo. Seguindo seus passos, estudaremos outras formas de
governo apresentadas no Livro VIII: Timocracia, Oligarquia e Democracia que se
modificaro ou em virtude da ao da prpria physis, ou em funo do tipo de
educao que as crianas recebem, quer no lar, quer na cidade. o caso da
passagem da Aristocracia para a Timocracia, desta para a Oligarquia, depois para
a Democracia, obtendo uma srie de paradigmas educativos que nos parecem
fundamentais para esta investigao. Por fim, procuraremos entender a ideia de
liberdade presente na obra. Deixaremos margem de nosso estudo a tirania
exposta no Livro IX.
17
Neste processo, da decadncia das formas de governo, a desintegrao
pela via da gerao e educao adotada pela cidade e de sua necessria
corrupo ser estudada com cuidado, pois nisso est, tambm, a disposio da
alma de cada um. A Mimesis como forma de educao transforma os homens na
medida do possvel, logo transforma tambm os governos. Com isto,
concluiremos nosso estudo.
18
Capitulo I Os Livros I e II da Repblica e a questo dos personagens
19
1. As vertentes de uma interpretao dos dilogos
O acervo de Plato, organizado ao longo dos sculos, deixa entrever, muita
discusso quanto ordem dos dilogos. Segundo Robin,3 essa organizao a
seguinte: primeiros escritos ou escritos de juventude, intermedirios ou escritos
de maturidade e os tardios ou da velhice. Alm dos dilogos, existem tambm as
cartas e os dilogos suspeitos e os considerados apcrifos. A discusso vasta e
sempre so apresentadas novas observaes com relao. H outra corrente que
considera a questo cronolgica secundria. Entre os interpretes que seguem
essa via est Szlezk4 e Vegetti,5 que usam, a elaem parte, o pensamento de
Friedrich Schleiermacher que considera a questo cronolgica dos dilogos
desprovida de significao profunda, e o que mais importa para esses intrpretes
a questo orgnica de cada dilogo.
Quanto questo interna dos dilogos, Szlezak6, ao fazer sua anlise das
questes orgnicas das obras de Plato, afirma que elas se aproximam das
convices do prprio filsofo, e que os dilogos retratam sempre uma
conversao e, muitas vezes, longos discursos monolgicos. Essas conversas se
do sempre em certertos lugares e com certas pessoas de caractersticas muito
prximas s do cotidiano grego. Plato elege os participantes da conversa, sendo
esta conduzida por um mestre. Expe o comentador que:
O lder da conversa pode responder a todas as objees. Em
conversao de carter agonstico, pode refutar todos os
participantes; ele mesmo nunca refutado. Todos os elementos da
conversao que realmente a fazem avanar so introduzidos por
3 ROBIN, Lon. Platon. Paris : Presses Universitaire de France, 1968.p.29-35. 4 SZLEZAK, Thomas A. Ler Plato. trad. Milton Camargo Mota. So Paulo: Edies Loyola, 2005. 5 VEGETTI, Mario. La Repubblica. Vol. I. Pavia: Bibliopolis, 1998. 6 Idem. Ib. p. 37 a39.
20
ele (s vezes, de fato, de maneira maieutica: trazendo luz
pensamentos alheios).7
Alm disso, considera que as conversas no progridem de maneira linear,
mas vo sofrendo impulsos para degraus qualitativamente superiores, de acordo
com a forma como se desenvolve. Quando chega o final da obra, o lder da
conversa no encerra de forma orgnica o dilogo, mas aponta para questes
futuras. Esse um dos modos como podemos nos aproximar de Plato, levando
em conta essas caractersticas, mas pode-se levar em conta tambm a questo
cronolgica, sem ignorar a forma como est constitudo inteiramente o dilogo.
Isso exposto, voltemos classificao dos primeiros dilogos pelo estilo de
dialogar, os que so chamados de socrticos ou aporticos por apresentarem
uma proposta de definio de uma virtude e, como ocorre na maieutica, Scrates
demonstra a insuficincia dos seus dialogadores em responderem, sendo que, se
conclui sem a definio pretendida. Goldschmidt, 8 ao tratar dos dilogos
aporticos, comenta que Scrates quer despertar a reflexo do ouvinte, e essa
a funo de um dilogo aportico, pois a discusso no traz nenhuma clareza
finalizadora, e no se preocupa com tal pretenso.
Vejamos o dilogo Lisis, como exemplo de obra considerada de juventude e
aportico. Plato apresenta um local determinado: Scrates faz um caminho ao
lado da muralha de Atenas, quando encontra o primeiro personagem, Hiptales,
que direciona o condutor do dilogo at o recinto prximo muralha, onde se
renem belos jovens para aulas de formao, que so enviados pelas famlias
para os pedagogos. Percebendo que o jovem Hiptales se encontra apaixonado,
7 Idem. Ib. 8 GOLDSCHMIDT, Victor. Os dilogos de Plato: estrutura e mtodo dialtico. Trad. Dion Davi Macedo. So Paulo: Edies Loyola, 2002. pp. 23 a 30.
21
Scrates quer conversar sobre Eros e como ele se reflete no comportamento do
apaixonado diante do seu escolhido (205b). A conversa ocorre entre todos os
jovens que ali se encontram e, entre eles, esto Menexeno e Lisis.
Primeiro Scrates (207c) afirma que os amigos em nada so desiguais, mas
a pergunta feita por Scrates a Menexeno (212 a - b) como algum que se torna
amigo de outrem (ama), e quando algum ama outro qual o que se torna amigo
qual o que ama e qual o amado ou o que se ama no amado. Para sabermos h
que haver essa relao entre iguais, entre homens bons, e at a passagem 215c,
lembrado que, para Hesodo, o igual maior inimigo do igual. Assim o oleiro
tem dio do outro oleiro e o aedo do outro, semelhante tem inveja de semelhante.
Essa posio Plato no pode aceitar. Quando chegam a certo ponto da conversa
(221d), Scrates descobre que a causa da amizade o desejo, mas daquilo que
no se tem, como tambm dito no Banquete. Scrates levado a concluir, ao
final, (223 b), que no foram capazes de descobrir no dilogo o que era a
amizade e no a procuraram por ela mesma.
O que vemos neste texto e em outros do mesmo tipo, ditos aporticos ou
socrticos exatamente essa organicidade sem uma definio ao final. No
entanto, se lembrarmos do Banquete, h uma finalizao e o assunto o mesmo,
alm de dizer-se que este um dilogo, quem sabe, de juventude ou
intermedirio. De qualquer modo, do ponto de vista temtico, um dilogo
complexo, tanto o Lisis quanto o Banquete e mesmo a Repblica que necessitam
da noo de Eros em diversos de seus aspectos.
Quanto aos dilogos do perodo intermedirio, estaria A Repblica, por
apresentar um predomnio da tica e pela Metafsica, o que nos parece tambm
discutvel. Os dilogos intermedirios so considerados portadores da maieutica,
22
mas apresentam caractersticas prprias: a elaborao do caminho dialtico (isto
, do complexo desenvolvimento platnico dos argumentos).
A Repblica, no primeiro livro, seria desse tipo. Plato apresenta um local
determinado, o porto do Pireu, uma situao especfica, o festejo para a deusa
Bndis. Scrates foi ao festejo com Glauco e por l convidado por um amigo,
Polemarco, para se juntar a outros amigos em sua casa, para o final do festejo
que se prolongaria pela noite. Scrates aceita o convite e se encontra por l com
vrios convidados e com o anfitrio da casa: Cfalo, pai de Polemarco, e entre os
amigos esto mais dois que sero importantes para o dilogo: Trasmaco e
Adimanto.
Scrates trava uma conversa primeiramente com o ancio Cfalo, que
expe o que ele, com o tempo e forma de vida que levou, acredita ser a justia
(331 c): dizer a verdade e restituir o que se toma de algum. Havendo
necessidade de continuar as libaes ao deus protetor da casa, Cfalo se afasta
do dilogo e deixa seu filho Polemarco como herdeiro da conversa. Veremos que,
num primeiro momento, o herdeiro segue a afirmao da justia deixada pelo pai,
mas Scrates vai estimul-lo, segundo o dito do poeta Simnides (332a), quanto
compreenso do ser justo restituir o que se deve, at que ele diga ser a justia
(332d) dar ajuda aos amigos e prejuzo aos inimigos. Polemarco no consegue
diferenciar amigos de inimigos para que possa agir da forma como ele prope,
pois est habituado, conforme vai expondo, com a aparncia do significado ser
amigo e inimigo. Isso dificulta, segundo Scrates, uma ao justa, j que no se
sabe quem verdadeiramente amigo e inimigo em certas situaes. De forma
impetuosa, adentra depois na conversa Trasmaco e quer dar sua definio de
justia: (338c): no outra coisa seno a convenincia do mais forte, uma
23
afirmao a ser provada, pois o restante do Livro I procura saber se realmente
essa a noo de justia. Por fim, e aps muitos embates entre Scrates e o
sofista, este chega seguinte concluso:
(...) tambm eu, antes de descobrir o que procurvamos primeiro o
que a justia largando esse assunto, precipitei-me para
examinar, a esse propsito, se ela era um vcio e ignorncia, ou
sabedoria e virtude; depois, como surgisse novo argumento que
mais vantajosa a injustia do que a justia no me abstive de
passar daquele assunto para este; de tal maneira que da resultou
agora para mim que nada fiquei a saber com esta discusso. Desde
que no sei o que a justia, menos ainda saberei se se d o caso
de ela ser uma virtude ou no, e se quem a possui ou no feliz.
(354b-c)9
Scrates fecha o Livro I em aporia, tal como ocorre no Lisis. Ora, a
exposio classificatria dos dilogos serve de base para que alguns intrpretes
os comparem e indiquem possveis problemas ou semelhanas existentes entre
os textos de Plato. M. H. da R. Pereira10, na sua introduo traduo de A
Repblica, pergunta se o Livro I seria independente dos outros, e que talvez, s
mais tarde, teria sido retocado para servir de promio da Repblica. A tradutora
tem como suporte a classificao cronolgica dos dilogos e observa a diferena
de estilo e de vocabulrio do Livro I em comparao com os demais livros. Nos
seus recolhimentos, aponta alguns pesquisadores, entre eles, Dmmler que notou
a relao do Livro I com os primeiros dilogos e, por isso, denominou-o
9 , , o , , , , , , | , , . (354 b c) 10 PEREIRA. M. H. da Rocha. Introduo. In Repblica. 8 Ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1972, p.18.
24
Trasmaco, por ser o principal dialogador de Scrates no desenvolvimento. Se
tomado em separado, pode ser considerado um livro socrtico, mas, se for
analisado no conjunto, perde o sentido a separao, pois ali se encontra a matria
necessria para a reflexo do restante da obra, tese que demonstraremos. No
mais concordamos com o Szlezk11 quando afirma que:
Se nos dilogos aporticos, depois de uma ampla investigao que
resulta v, tambm no se alcana uma soluo na ltima tentativa,
o leitor, a quem permanece oculto o sentido da singular
perambulao, fica facilmente com a impresso de que o conjunto
trabalho perdido ou, em todo caso, um promio demasiadamente
extenso para o filosofar fecundo que, todavia, ainda fica por vir.
Essa a impresso que nos deixam alguns interpretes quando se trata de A
Repblica. I. M. Crombie,12 por seu lado, deixa de observar que Plato apresenta
recolhimentos histricos do que seja a justia para, depois, retom-los na sua
reflexo. Para ns, o Livro I abre para um leque de questes que sero ampliadas
nos outros livros que seguem.
Os personagens que expem sobre o que a justia, no incio, so
representativos dos valores da cidade de Atenas, e o investigador tem que
consider-los por esse vis, e devemos atentar para o que expe Vidal-Naquet13
ao analisar as formas de pensamento na Grcia. Ele afirma que se deve atentar
para o conjunto que compe a sociedade grega, suas representaes
institucionais, polticas e sociais recolhidas nos textos literrios, histricos,
filosficos, bem como nos relatos mticos e nas anlises descritivas, se se quiser
11 Ob. Cit. pp.25-26. 12 CROMBIE, I. M. Anlisis de ls doctrinas de Platn: el hombre y la sociedad. Trad. Espaola de Ana Torn y Julio Csar Armero. Madrid: Alianza Editorial, 1990, pp. 85 a 97. 13 NAQUET-VIDAL, Pierre. Formas de pensamiento y formas de sociedad en el mundo griego. Trad. Marco-Aurelio Galmarini. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1983, p. 12.
25
compreender melhor o pensamento dessa poca. Esse ngulo metodolgico
acolhido na nossa investigao ao lermos o Livro I e ao apreciarmos seus
personagens. Afirma o intrprete:
Dificilmente escapa histria da civilizao um duplo problema.
Uma primeira concepo faz dela uma sorte de anexos que
compreenderiam, por sua vez, a arte, os costumes, os usos
funerrios, a cozinha, em uma palavra, tudo o que no pertence
histria poltica nem histria econmica e social, nem histria
das idias. Uma segunda concepo deriva de uma tentativa
inversa, ao postular que todos os feitos religiosos, artsticos, sociais,
econmicos e mentais que se situam em uma mesma poca, em um
mesmo grupo humano, tm entre eles vnculos especiais para
construir um conjunto dotado de unidade e estrutura prprias, mais
ou menos similares a um organismo vivo14.
O autor cr que a primeira concepo dificulta a leitura e a interpretao de
um texto quando recortado da poca e neutro interferncia dos acontecimentos
que o rodeiam. Alm disso, se olharmos para os escritos como resultado de
vrios fatores de uma poca - artstico, econmico, poltico e ideolgico -, eles
tero uma riqueza de informaes quanto ao iderio no qual est mergulhado.
Nesse sentido, a afirmao de Naquet considera que Plato, tendo vivido em uma
poca politicamente conflituosa, quando Atenas se encontrava envolvida na
guerra do Peloponeso e com problemas no s polticos, mas ticos e
econmicos, registrados por loggrafos, poetas e cronistas de ento -, foi
fortemente influenciado por ela ao criar personagens em situaes diferentes das
que realmente viveram, conforme faz nos primeiros livros de A Repblica. Ele
fara teatro nos dilogos, com algumas intenes que cabem a ns descobrir,
14 Ibid., p.19.
26
ligando, na medida do possvel, a pergunta que feita a cada personagem e o
que este responde, com o que de fato ocorreu historicamente.
Devemos, pois, pensar Plato contextualizado, representante de sua poca
e herdeiro de toda tradio cultural de Atenas dos sculos anteriores. No por
acaso que seu modo de pensar e de escrever dialgico: como poeta trgico
conheceu o teatro do sculo V a. C., quer as comdias, quer as tragdias que
inauguraram um modo de escrita dialgica que, de algum modo, o inspirarou. Os
textos de Sfocles ou Aristfanes,15 por exemplo, e a forma como apresentam
seus personagens, que so figuras importantes para a cultura grega arcaica,
demonstram um modo de expor semelhante ao usado por Plato: os poetas
trgicos recolhem e discutem o ethos dos heris em dilogo usando a prpria
narrao dos poetas, o filsofo faz o mesmo com a Atenas de seu tempo, ao
dialogar com Scrates e outros personagens. Estes no so os conselheiros e
coreutas do teatro trgico, mas algo deles h quando expem seus valores nas
falas, e podemos dizer que fazem a intermediao necessria para o
desenvolvimento do fio condutor que o filsofo pretende elaborar sobre uma
pergunta inicial. Essa observao meramente exterior e formal, pois a forma
dialgica platnica pretende algo bem diferente do que aconselhar, por isso
to complexa.
No texto trgico, por exemplo, um Agammnon ou uma Media personificam
conflitos humanos enquanto heris e mantm suas identidades mticas. Ora,
Plato recolhe, na histria de sua poca, figuras importantes que guardam
relao com o que desenvolve no tema de um dilogo, como se quisesse revolver
15 Plato aproxima-se tambm de caractersticas da comdia de Aristfanes, que se utiliza de figuras ainda vivas no contexto social de Atenas para expor suas ideias. Por exemplo, em As Nuvens, quando Aristfanes se utiliza da imagem de Scrates, que era seu contemporneo, para critic-lo.
27
o que se pensa na poca, maneira da tragdia. esse o argumento de
Nettleship,16 para quem o filsofo escolhe vrios personagens reais, alguns
contemporneos, outros no, e alguns homens pblicos ou amigos, e faz deles
expositores de opinies sobre o contexto grego e as idias filosficas que se
sustentam na cultura grega. Esses personagens realmente expem certos
valores, que Plato precisa ressaltar e aprofundar ou modificar. Esse aspecto
apontado por Scolnicov17, quando liga o personagem quilo que ele fala, ou seja,
quem fala e como fala algo a ser apreciado com cuidado:
Portanto, Scrates nunca examinaria proposies em si ss,
desligadas de quem as props. Deixemos Grgias de lado, ele diz
a Mnon, pois que no est aqui; diz-me, em vez, o que pensas tu
que a virtude. Assim tambm, no Eutidemo, Scrates no
responder antes que entenda qual seja o sentido que seu
interlocutor d pergunta que faz. Nisso ele concorda, pelo menos
primeira vista, com os dois sofistas, que palavras em si no tm
sentido. So pessoas que do sentido s palavras, por meio de suas
almas.
A exposio de Scolnicov obriga-nos a alguns cuidados na leitura dos
dilogos, ricos em personagens envolvidos na histria ateniense e, cada um, ao
tentar definir para Scrates algo do tema proposto, mostra valores que constituem
formas de viver ou percepes de mundo em acordo com a educao grega
recebida desde o nascimento. desse modo que nos aproximaremos do texto
platnico e seus personagens: com a determinao de verificar o que foi dito, por
quem, em que local.
16 NETTLESHIP, Richard Lewis. Lectures on the Republic of plato. New York: University Press of the Pacific, 1961, p.7. 17 SCOLNICOV, Samuel. Como ler um dilogo platnico. Hypnos, So Paulo: Edies Loyola, vol. 11, 2003, p 51.
28
2. Os personagens do livro I e II
No Livro I, Cfalo, o primeiro personagem a ser apresentado, apresenta uma
forma de vida baseada nos valores religiosos (ritos e mitos vigentes) e sua
definio de justia segue a dos poetas aceitos por Atenas como educadores;
Polemarco, o segundo, ao definir a justia como fazer bem aos amigos e mal aos
inimigos, tambm apresenta uma tese da poca, proveniente da cultura grega
mais prxima ao sculo IV a. C. e suas guerras; e Trasmaco que, segundo
Plato, representante dos sofistas, defende a justia como a convenincia do
mais forte e indica a prtica usada nos debates cvicos, caracterstica das
assemblias pblicas e dos tribunais, em que o poder de persuaso prevalece
para a vitria. J no Livro II, Glauco e Adimanto, co-irmos de Plato, questionam
sobre a melhor forma de vida para o homem, se a do homem justo ou do
injusto, em funo das discusses anteriores, pois ser injusto parece mais
interessante do que ser justo.
O que teriam de to importante esses personagens e suas definies de
justia para o corpo terico de A Repblica? Cremos que eles servem como
inspirao e suporte para Plato desenvolver sua cidade justa e pensar sua
Paideia margem da vida histrica de ento, bem como para pensar que tipo de
cidade tem potencial para educar de modo justo seus cidados. e no , para
ele, Atenas. Cada uma das teses apresentadas traz consigo certo modelo de
sociedade e educao que Plato resgata, em parte, para a sua cidade em logos,
para auxili-lo em alguns aspectos.
Se estivermos certos em nossas expectativas, consideramos que no
mero acaso o local onde se d o incio do dilogo e a apresentao dos primeiros
29
personagens e seus pontos de vista: o Porto do Pireu que, alm de sua
simbologia poltica que quer evidenciar Plato como lugar de conflitos
enfrentados pela cidade de Atenas em vrias ocasies , o local em que
habitam diversas etnias formadoras dos nomeados metecos, isto , estrangeiros
que fazem parte da sociedade ateniense quanto aos deveres e no quanto aos
direitos, como se sabe. Plato no poderia ter escolhido melhor lugar para pensar
a justia, uma vez que, no Pireu, encontram-se homens diferentes que a se
fixaram e aceitaram as leis gregas, havendo uma mistura de raas. Mais ainda,
um porto de ida e vinda de gregos e no-gregos, de miscigenao de culturas e
valores. No se trata, aqui, da amizade entre iguais, mas entre diferentes, ponto
ao qual voltaremos mais adiante.
Para Jaeger18, Plato pode, de um lado, dispensar o histrico ao edificar sua
A Repblica; de outro lado, quer expandir sua cidade a todos os homens,
negando as fronteiras em que vive. No entanto, se a cidade platnica no nasce
de uma construo dada historicamente, o filsofo precisa das experincias
histricas de governo para melhor desenvolver a sua plis, mesmo que esta se
afaste muito de outras j conhecidas. Ento, Plato no parte de um povo
histrico existente, como Atenas ou Esparta. Ainda quando se refere
conscientemente s condies vigentes na Grcia, no se sente vinculado a um
determinado torro nem a uma cidade determinada.19
Os personagens do dilogo representam, portanto, ideais de vida e de
justia que Plato no pode desprezar totalmente, mas que sero confrontados
em nova estrutura aps debater com eles sobre a justia. No sem razo que
Scrates afirma para seu companheiro de dilogo, Adimanto (377b), que, ao
18 JAEGER, Werner. Paidia: a formao do homem grego. Trad. Arthur M. Parreira. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1994. 19 Op. Cit. p. 750.
30
investigar sobre o que a justia e o que uma cidade justa, preciso saber
como educar, pois a Grcia tem o governo conforme educou seus cidados:
Ento no sabes que, em todo o trabalho, o mais importante o
comeo, principalmente quando se trata de jovens e de crianas de
tenra idade? , sobretudo nesse momento que, na cidade, se
modelado e se enterra (na alma) a marca (typos) que algum queira
assinalar em cada um deles?20
Assim, educao e justia esto juntas, no se educa nem se governa sem
saber sobre o justo. Cada homem tem em si o registro de um modelo poltico e a
concepo de justia que aprendeu durante a vida, desde cedo. A alma fica
marcada pelo que lhe ensinado de modo que (367a):
Se, portanto, todos vs falsseis assim desde o comeo, e nos
persuadissem desde novos, no andaramos a guardar-nos uns aos
outros para no praticarmos injustias, mas cada um seria o melhor
guardio de si mesmo, com receio de coabitar com o maior dos
males, se praticasse a injustia.21
Lembremos que o filsofo, no Crton, demonstra a fora que as leis tm na
formao dos homens. A preocupao a mesma. Descreve Scrates seguidor
das normas da cidade e, nem por isso, internalizadas como sua prpria verdade e
virtude, porque nele h o que Plato quer evidenciar e que no h nos cidados
atenienses: o cuidado de si como conhecimento de sua alma. Quando ele se
nega a fugir da sentena de morte do tribunal de Atenas, aceitando a lei externa
como bom cidado, ressalta a tenso entre o que se entende como arete exterior
e a sua prpria interior, a de seu daimon, no caso. A arete interna fica bem
20 , / ; , . (377b) 21 || , , , . (367a)
31
marcada na Apologia, e, aps os juzes terem votado, lembremos que Scrates
chama aqueles que votaram a seu favor e expe o momento vivido por ele no
tribunal. Diz a eles:
Passou-se hoje comigo, juzes o nome de juzes pertence-vos de
pleno direito, uma coisa bem extraordinria. A minha voz proftica
habitual, a voz da divindade, tem sido muito freqente em mim at
ao presente, marcando a sua oposio, mesmo em pequenas
coisas, sempre que me dispus a fazer o que no era bem. Agora,
porm, que como vedes, me acontece o que se poder considerar e
normalmente se considerar o maior dos males, nem ao sair de casa
pela manh, nem quando subi a este tribunal, nem enquanto estive
no uso da palavra, a voz divina me deteve. E no entanto, em muitas
circunstncias, muitas vezes me interrompeu no meio dos meus
discursos. Mas hoje, no decurso deste processo, no esboou a
mnima oposio s minhas aes ou s minhas palavras. (40 b)
Mesmo seguindo as leis, e as tradies que aprendeu em sua vida, como
cidado grego educado, fica claro que algo h de novo em Scrates e que h
regras novas para Plato refletir quanto s aes.
3. Livro I: quem Cfalo?
Quem Cfalo, quem esse ancio? Para responder a esta pergunta, h
dois problemas: a existncia de dois Cfalos, um histrico e outro personagem de
Plato. O que sabemos de Cfalo histrico que nasceu em Siracusa e viveu no
Pireu como estrangeiro; morreu provavelmente em torno dos anos 420 a 415 a.C.
32
Esses so informes do famoso orador de Atenas em seus discursos, Lsias22, seu
filho e irmo de Polemarco, conforme as historiadoras C. Moss23e Nails. 24
Segundo C. Moss, 25 com a expanso comercial de Atenas e a construo
do porto do Pireu, 26 Pricles, na segunda metade do sculo V a.C., d abertura
aos comerciantes que ali se instalaram como metecos, recebendo em troca a
proteo da cidade, e Cfalo teria chegado nessa poca. Complementando esses
informes, Rocha Pereira27 comenta que ele foi convidado por Pricles para viver
no porto e, pelas datas apontadas e comparando-as com a fase do governo de
Pricles (460 a. C a 428 a.C.), Cfalo deve ter vivido de 30 a 35 anos no referido
porto. Vivenciou parte da Guerra do Peloponeso (431 a.C. - 404 a.C.) e a morte
de Pricles (428 a.C.). Com base no suposto ano de sua morte, no viveu at o
final dessa guerra e, consequentemente, no presenciou a instalao do governo
dos Trinta Tiranos,28 que marcou sua famlia pela morte do seu filho Polemarco e
pelo exlio de seu outro filho, Lsias, o orador. Esses fatos so importantes, uma
vez que Plato escolheu o pai e um dos filhos (Polemarco) como personagens do
Livro I, exatamente para falarem sobre o que a justia.
22 LYSIAS. Discours XII. Trad. Louis Genet, Paris : Belles Lettres,1955. 23 MOSS, Claude. Atenas: a histria de uma democracia. Trad. Joo Batista da Costa. Braslia: UnB, 1982. 24 NAILS, Debra. The people of Plato: a prosopography of plat and other Socratics, Cambrige: Ed. Hackett lpublishing Company.2002. 25 Op. cit., pp. 38 39. 26 Conforme Tucdides (sc. V. a.C.), na Histria da Guerra do Peloponeso, Livro I, 90, Temstocles foi o idealizador e autor do porto do Pireu. Complementando esse informe, Yvon Garlan, Guerra e economia na Grcia antiga, p. 122, comenta que o Porto do Pireu foi um dos primeiros trabalhos de fortificao na tica, decidido no momento das Guerras Mdicas, instigado por Temstocles, seu autor. Com a construo do porto, Atenas, em 482-481, desenvolve um vasto programa de construo naval que devia garantir o domnio dos mares no Mediterrneo oriental. 27 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Introduo. In: Repblica. 8 ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1972, p.12. 28 Segundo o nosso recolhimento, Cfalo morre entre 420 a 415 a.C. Sobre a sua famlia, logo aps a sua morte, ocorre a execuo do seu filho Polemarco, em 404 a.C, no governo dos Trinta Tiranos, assim como o exlio do seu filho Lsias.
33
Homens ricos existiam muitos no Pireu, mas Cfalo foi um meteco
perseguido politicamente, perdeu toda a fortuna que ali fez e teve famlia
execrada, vindo a refazer-se mais tarde, com dificuldade. Foi, portanto, um
homem seguidor das leis gregas, trabalhador, dono de fbrica de escudos que
chegou a possuir cem escravos em sua propriedade instalada no porto do Pireu.
Foi um bem sucedido meteco, portanto, e estes so dados teis para
compreendermos o pensamento de Cfalo sobre o que a justia.
Se Plato nasce em Atenas por volta de 427 a.C., e comparando sua data
de nascimento com o tempo vivido por Cfalo no Pireu, o filsofo teria
provavelmente entre 7 a 12 anos quando o meteco j era ancio em Atenas e,
claro, no se encontrou com ele para dialogar. Essa uma caracterstica de
Plato: usar personagens que julga importantes quanto a certos valores, levar em
conta suas virtudes e aes e acrescentar o que necessita para o
desenvolvimento da temtica proposta, teatralizando, como nas tragdias e
comdias, independente de o personagem estar ou no vivo, ter existido ou no.
Quanto ao incio do dilogo, sabemos que Scrates e Glauco esto nas
comemoraes da deusa Bndis e vo at a casa de Cfalo a convite de
Polemarco, como j adiantamos inicialmente. O prprio Cfalo l est, e Scrates
o considera muito envelhecido (328c). Acabara ele de fazer um ritual de sacrifcio
e estava com uma coroa de louros na cabea. Ora, o Cfalo de A Repblica, pai
de Lsias, de Polemarco e de Eutidemo (330b), neto do primeiro Cfalo e filho
de Lisnias. No Pireu, o ancio recebe Scrates como um velho amigo (328d) e
ntimo da famlia, o que leva os comentadores a no separarem o personagem
platnico do Cfalo histrico. Vegetti,29 quando descreve esse Cfalo enquanto
29 VEGETTI, Mario. In: Platone. La Republica. Napolis: Bibliopolis, Vol. I, Livro I. 1998, p.134.
34
personagem, o expe como um rico meteco que teve os bens confiscados por
Eraststenes:
Cfalo tambm rico e dono de uma fbrica de escudos e tais so
seus herdeiros, como mostra Lsias, fazendo um amargo relato dos
bens subtrados a ele e Polemarco pelos emissrios dos Trinta
Tiranos. Estes tinham de fato lhe confiscado setecentos escudos,
prata e ouro em abundncia, cobre, jias, utenslios, vestes
femininas muita mais de quanto esperariam um dia possuir e,
sobretudo cento e vinte escravos, dos quais tinham ficado para si os
melhores, deixando o restante para o tesouro.
O que observamos a no preocupao em distinguir o ancio personagem
do histrico em nenhum momento da interpretao do Livro I, mas seria bom
faz-lo porque o importante saber o contexto em que o filsofo o coloca para
que responda o que a justia. E a resposta de Cfalo, espantosamente, no
deixa de ser, logo no incio de A Repblica, uma primeira mentira nobre do
filsofo, pois o prprio Plato quem coloca na boca do Cfalo-personagem o
que ele talvez jamais tenha dito em vida, ou seja:
[...] na medida em que vo definhando para mim os prazeres do
corpo, nessa mesma medida aumentam os desejos e os prazeres da
conversa. No deixes de estar na companhia destes jovens, mas
vem tambm aqui nossa casa, como a casa de amigos, e de
amigos muito ntimos (328 d). 30
Essa fala ter ressonncia na colocao platnica sobre a justia no
decorrer da obra. Ele marcar, nitidamente, a importncia da amizade (philia) na
vida dos homens, noo que o fundamento para uma cidade justa. 30 , . , , , . (328d)
35
Na sequncia da conversa, Cfalo trata de situaes aparentemente
corriqueiras do dia-a-dia e, no seu caso especfico, da velhice e do carter que
cada um apresenta durante sua vida. Ao expressar algo sobre a velhice e a
amizade, que diz ser importante a todas as pessoas, aponta duas questes: a dos
desejos fsicos que tomam conta, na juventude, e a do desejo de conversas, mais
presente conforme o homem vai envelhecendo. Como um homem vivido, sabe
bem disso. Nesta colocao de Plato pela voz de Cfalo, temos uma tese em
nada desprezvel, que ser retomada em livros posteriores de A Repblica,
principalmente no Livro VIII. Sabe-se, ainda, que Scrates procura estar sempre
junto aos jovens para dialogar, sinal de que h algo prazeroso para a filosofia
nesse contato com os poucos experientes na vida, porm a conversa entre os
mais velhos, quando os desejos imediatos j esto arrefecidos, interessa a Plato
principalmente tambm no Livro IX, ao tratar da tirania e da fora dos prazeres
para o transtorno da alma, o que, em Cfalo, no ocorre. Desejos exacerbados e
tirania esto prximos, de modo que o fato de Cfalo ter prazer nas conversas e
tranquilidade nos desejos um valor de suma importncia. Scrates afirma na
conversa que:
Eu tambm me comprazo bastante, Cfalo, respondi, em dialogar
com pessoas de idade avanada. Sempre achei que me podem
dizer como o caminho por eles percorrido e que ns tambm talvez
tenhamos de vencer; irregular e penoso, ou fcil e de boa sada para
partilhar? (328e). 31
Por tal condio, cremos no ser ingnua a colocao de Cfalo e sua tese,
que costuma ser apontada como excessivamente simplria (talvez porque no
31 , , , | , , , , . (328e)
36
seja argumentativa), e no entanto, no de forma alguma idesprezvel. N.
Pappas,32 ao analis-la, e apesar de consider-la muito ampla, diz que no se
deve esperar um discernimento apurado de Cfalo sobre a justia, pois ele
apenas apresenta o que absorveu do contexto social como forma de agir
corretamente, mas incapaz de responder ao porqu da sua ao. No nos
parece pouco o que diz Cfalo, e achamos esse dizer do ancio uma boa forma
de viver a partir de toda a tradio educadora mtico-potica, que fundamenta os
valores da aristocracia arcaica ainda vigente no ethos grego e que no desgosta a
Plato. Considerar irrelevante a fala de Cfalo no inseri-lo no conjunto de A
Repblica, pois a vivncia da diferena entre os desejos e o carter (ethos) j
seria um bom motivo para no tom-lo por simplrio.
Vrias caractersticas de Cfalo so apontadas nesse primeiro momento:
sua debilidade fsica, sua impossibilidade de locomoo para lugares que exijam
grande esforo, o arrefecimento dos prazeres fsicos e o aumento do prazer de
conversar, como foi dito. Tudo isso uma imposio da prpria natureza aos
homens ou, melhor dizendo, de forma mtico-potica, o que a Moira d aos
homens. Lembremo-nos da narrao de Hesodo,33 de que a velhice seria mais
uma das mazelas da Raa de ferro. No entanto, a velhice que recolhe a
sabedoria acumulada com o passar do tempo, e se, de um lado, a juventude tem
a fora fsica e os desejos abundantes, a velhice pode ter a sabedoria que o
tempo lhe d e a tranquilidade do mpeto, algo que interessa filosofia e regra
do nada em excesso.
interessante apontar que esse despreendimento dos prazeres do corpo,
que so naturais na velhice, um dos requisitos da ascese filosfica platnica,
32 PAPPAS, Nickolas. A Repblica de Plato. Trad. Ablio Queiroz. Lisboa: Edies 70, 1995. 33 HESODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. So Paulo: Iluminuras, 1996, vv170- 200.
37
como revela o prprio filsofo, no Fdon, ao tratar da imagem da alma e sua
queda na nsia para vislumbrar as verdades (248b-c): A causa que atrai as
almas para a contemplao da Verdade consiste em que s ali encontram o
alimento que as pode satisfazer inteiramente, desenvolver as asas, esse alimento
que, enfim, liberta as almas das terrenas paixes.
No entanto, e quanto idade avanada dos homens e suas possibilidades
de virtude dentro da perspectiva filosfica, a tradio homrica no pensa assim e
se abre para duas leituras possveis dos intrpretes: uma positiva, quando aponta
para a velhice como um momento em que os homens j acumularam sabedoria
com o tempo; e outra negativa, quando se refere perda da arete guerreira.
Comenta Moss34:
Com efeito, os ancios, queles que, por fora da idade, j no
participam no combate, tm um outro papel a desempenhar. Tendo
escapado morte gloriosa, eles passam a colocar a sua sabedoria a
servio da comunidade. No obstante, mesmo entre os guerreiros,
d-se tambm o caso de haver alguns que se destacam mais pelo
sua clarividncia que pelo valor no campo de batalha.
Ao superarem as vrias batalhas, muitos passavam a fazer parte dos
conselhos estabelecidos nas cidades e muitos eram grandes lderes nos
combates. No campo de batalha, o exemplo de Nestor, rei de Pilos, que serve de
grande conselheiro, apresentado como velho sbio, participante de vrios
combates, por isso pode aconselhar os novos guerreiros que esto contra Tria.
Ao conversar com Agamenon, no canto IV (Ilada. VV. 310 a 321), este canta
sobre a valentia e a sabedoria adquirida com o tempo de Nestor, mas reconhece
o peso da velhice:
34 MOSS, Claude. A Grcia arcaica de Homero Esquilo. Lisboa : Edies 70, 1987, p.49.
38
Tira (Nestor) da antiga experincia o saber com que inflama os seus
homens. Vendo-o, exultante se mostra Agamenon, rei poderoso, e,
aproximando-se dele, lhe diz as palavras aladas: Se conservasses,
velho, nos membros a antiga energia e agilidade dos joelhos, tal
como a coragem conserva! Mas a velhice, que a todos oprime, em ti
pesa. Quem dera que passasses para outro, deixando-te moo de
novo! Disse-lhe, ento, o gernio Nestor, condutor de cavalos: Eu
prprio, filho de Atreu, desejara de novo encontrar-me com o vigor
daquela poca, quando privei da existncia Ereutalio. Mas os
deuses nem tudo aos humanos concedem. Era, ento moo; mas
ora a velhice nos ombros me pesa.
Nem tudo os deuses permitem aos homens e, quando possibilitam a fora
para a guerra, retiram a experincia que vem com a idade. Essa uma
notoriedade da velhice, ter o poder para evocar o passado, tal como faz Nestor,
para legitimar um pouco o ser velho. Alm dos sbios com estirpe guerreira,
existem outros velhos sbios que no se utilizam desse tipo de sabedoria blica,
mas, por terem uma linhagem divina, sabem falar de fatos presentes, passados e
futuros. o caso dos adivinhos Tirsias e Calcas, cuja velhice lhes deu respeito
e reverncias que s a idade d. Alm dessas duas funes, os conselhos das
cidades eram formados por ancios ouvidos nos momentos mais difceis, quando
da deliberao sobre problemas que envolvessem a segurana da cidade. Ainda
mais, cabiam aos ancios os rituais familiares e pblicos. Essa idia de que a
idade d certas capacidades importantes no abandonada por Plato. Tanto
que ele cria uma escola crescente para a formao dos homens na cidade justa
de acordo com a idade, e seu processo pedaggico, quando da formao
estamentos da sua A Repblica, levar em conta o amadurecimento de cada um.
Somente lembramos, por agora, que um filsofo no poder ser jovem, questo
que abordada nos livros VI e VII que no analizaremos.
39
Perseguindo um pouco mais a questo da velhice do ngulo dos valores
arcaicos, vemos que o ncleo est no desgaste do corpo, algo muito negativo
para quem tem arete guerreira. As interpretaes sugerem35 que, na poesia de
Homero - cujos valores educam o cidado grego e estruturam a memria de sua
raa , o modelo de virtude est nos deuses, e a relao mundo humano e
mortal com o mundo divino e imortal inalcanvel. A velhice aparece, segundo
Vernant, 36 de modo negativo, porque o corpo velho no tem vitalidade, no tem
aret guerreira. Na Ilada (XXII v. 60, 65), quando Pramo, rei de Tria, sente-se
sem fora fsica para defender o filho Heitor -que trava combate com Aquiles, e
sabendo o rei que o Pelida desejava vingar a morte do seu melhor amigo,
Ptroclo (executado em batalha pelo prncipe troiano -, v-se sem o impulso da
juventude, s lhe restando o desespero. H a ira e o vigor guerreiro do filho de
Ttis, que se abate sobre Heitor, e h o corpo envelhecido do rei e pai, sem fora
fsica para agir a favor do filho. Virilidade de um lado; decrepitude, de outro.
Diante de tal situao, lamenta-se Pramo a Zeus:
Na extrema velhice quer Zeus que eu morra de uma sorte
amarga, aps ter visto muitssimas maldades: filhos trucidados,
filhas raptadas, tlamos vilipendiados, crianas, na turbamulta,
esmagadas na terra; noras, por mos aquias, funestas
seqestradas. (XXII v. 60, 65) 37
Pramo expe a dor da perda dos filhos em consequncia da idade, pois no
mais portador da arete guerreira e do vigor para gerar filhos, seu lamento vai
dirigido a Zeus como pai de tantas divindades. O poeta tambm faz referncia
35 Ver : VERNANT, Jean-Pierre. Mortal and Immortals. LORAUX, Nicole. Linvention dAthnes: Histoire de loraison fnebre dans la cit classique. Paris : Civilisations et Socits 65, 1981. GAZOLLA, Rachel. Bela morte, boa morte. I Curso livre de humanidades. Abril, DvD, 2002. 36 Op. Cit. 37 , , , , ,
40
velhice na Ilada (Canto XXIV), logo aps a morte de Heitor. Morto o prncipe
troiano, Aquiles, tomado pela clera, arrasta seu corpo e nega-se a entregar o
cadver para a execuo dos ritos fnebres. Essa atitude causa problemas entre
as divindades, sendo necessrio a Zeus solicitar a presena de Ttis, me do
semidivino Pelida, para aconselh-lo a devolver o cadver a Pramo e para que se
realize o ritual de passagem ao Hades. Ao entrar na tenda do semidivino, Pramo
causa espanto a todos que l se encontram ao fazer sua lamentao ao filho da
divina Ttis. Suplica Pramo a Aquiles:
Lembra-te, Aquiles, igual a um dos deuses, teu pai venervel da
mesma idade que a minha e, portanto, como eu, assim, velho.
bem possvel que estejas cercado por fortes vizinhos, cheios de
angstia, sem ter quem lhe sirva de amparo e defesa; mas, s de
ouvir que ests vivo alegria indizvel lhe invade o corao, dia a dia
esperando poder ante os olhos ter a figura do filho glorioso, de volta
de Tria. (XXIV - vv. 486 a 495) 38
Com a idade, perde-se a fora fsica e, junto com isso, chegam o medo e a
insegurana, de modo que os inimigos se tornam mais fortes e, de alguma forma,
os ancios necessitaro de proteo. Isso o que se passa com o rei de Tria
com a perda do filho: fica vulnervel. Para uma sociedade guerreira, a velhice
problemtica por isso.
Ora, a mudana de postura apresentada com o personagem Cfalo digna
de nota e por isso interessa a leitura do Livro I para o restante da obra. Plato
est longe dessa sociedade homrica, mas esses valores arcaicos impregnam os
habitantes de Atenas, provenientes que so dos poetas educadores, so
paradigmas da formao grega. O filsofo recolhe esses valores tradicionais, quer 38 , , , . ,
41
lhes dando sentido positivo, quer o negativo, para us-los em sua nova polis justa
de outro modo que, como veremos, ter parcialmente fundamento em valores
guerreiros no seu segundo estamento, porm remodelado.
A guerra pode dar-se em palavras ou em efetivo campo de batalha, sabe
bem Plato, e Cfalo a amostra da necessidade do prazer da conversa entre
outros prazeres a manter, sem stasis. Quanto figura do guardio-guerreiro
(phylakos), a reestruturao do ideal dos guerreiros arcaicos. Como se sabe,
Esparta, por ser uma cidade guerreira, organizada militarmente, com certeza, o
modelo de organizao inspirou Plato para sua cidade justa, o segundo
estamento como veremos. Entre as caractersticas da sociedade espartana,
estava a de formar um Conselho de ancios, conhecido como Gersia. Esses
conselheiros resultavam de um processo de vida militar, e com a idade, adquiriam
experincias necessrias para deliberarem sobre assuntos internos e externos da
comunidade. Esse era um conhecimento construdo com o tempo. Seus
membros, por sua vez, eram os dois reis e mais vinte e oito cidados com mais
de sessenta anos, liberados das obrigaes militares. Eram vitalcios e eleitos de
forma a preencherem as qualidades determinadas pelo conselho: seriam os
melhores e os mais sbios entre os seus compatriotas militares. Essa era a
exigncia para que pudessem exercer a funo de conselheiros, na preparao
dos projetos de lei a serem votados pela assemblia, que funcionava como
tribunal para a justia criminal. Esse modelo no se afasta muito daquele pensado
por Plato, o que muda o fundamento de cada cidade quanto ao que se define
como justia.
Plato, ao nos colocar diante de um ancio, quer nos lembrar que devemos
ouvi-los. Com a idade a fora tomada do homem pelos deuses, mas, para no
42
deix-los desamparados, deixam com eles a sabedoria. Esse mesmo percurso o
filsofo faz ao formar as classes do governo justo. Antes, os governantes servem
na classe dos guerreiros e depois, ao demonstrarem sua sabedoria atravs da
sua formao especfica, j estabelecidos no processo pedaggico da cidade
justa e mais envelhecidos, podero exercer a funo de governantes se educados
como filsofos. Quanto a educao mais antiga dos gregos, parece unanimidade
entre os comentadores que Cfalo seu o herdeiro na afirmao de pagar o que
se deve e ter tranquilidade ao final da vida com receios quanto ao Hades.
Para Strauss, 39 Cfalo aponta o problema da velhice e, ao mesmo tempo,
um modelo de decncia ao seguir as regras da cidade. Quando Scrates (328e) o
questiona quanto ao que sente no limiar da velhice, se o percurso foi custoso e o
que ele teria a dizer a seus iguais (329a-c), Cfalo afirma (329d) que no a
idade que faz a pessoa infeliz, mas a disposio do carter de cada um, tanto na
juventude quanto na velhice. Ora, a disposio do carter ser nuclear em uma
sociedade organizada de acordo com as potencialidades da alma de cada um,
como quer Plato: educar pessoas com desejos diferentes e tendncias diversas
que tm que viver de forma harmnica numa cidade, apesar de as condies
fsico-psquicas serem to diversas.
Na viso de Crombie,40 Cfalo feliz. De tempos em tempos, surgem
homens de temperamento feliz como ele, que so sbrios, poucos e livres da
tentao de tratar injustamente os demais. Esse o momento em que Plato,
segundo o intrprete, usa o personagem para apontar a satisfao e o domnio
dos desejos, uma vez que na busca dos prazeres sem limites que se encontra a
causa das rivalidades e da injustia. Considera Crombie que os escrpulos morais
39 STRAUSS, Leo et alli. History of Political Philosophy. 3 ed. London: The University Chicago Press,1987. 40 CROMBIE, I. M. Anlisis de las doctrinas de Platn. Madrid: Alianza editorial, 1999, p.86.
43
no so suficientes para impedir os homens de buscarem a realizao dos seus
interesses, sem se submeterem disciplina necessria, e as leis devem servir
para isso. Ademais, uma das possibilidades para se pensar o bom governante
que s homens maduros, que percorreram a vida aprendendo firmemente certas
regras, podem fazer bons governos, modelo que de algum modo est sinalizado,
em parte, em Cfalo: uma espcie de oligarquia por idade e sabedoria, como
pretende ser o Conselho dos Ancios arcaicamente, conforme explicitamos
acima.
Ademais, Cfalo propicia a pergunta sobre o que estimula tanto os homens a
desejarem coisas oferecidas na cidade, e sabe-se que o primeiro modelo da
cidade platnica dispensa as riquezas (369 a 372 d), o que abordaremos
adiante. Os cidados no devero produzir apenas para o gasto, mas tudo ser
em quantidade e variedade suficientes para atender aqueles a quem se deve
suprir as necessidades (371 a). 41
Em 329 e, Cfalo diz que seus haveres ajudam a suportar a velhice, j que
um homem rico, mas no so s os bens a causa, mas sim, e principalmente, o
carter (ethos). O que ele possui dependeu de sua atitude diante da herana
deixada por seu pai, que a tinha herdado tambm do pai. O pai de Cfalo perdeu
sua herana em boa parte, mas a atitude do filho provocou novamente o seu
crescimento, possibilitando tranqilidade ao seguir o valor familiar e atingir o que
a famlia necessita para o sustento e velhice confortvel. O fio que Plato semeia
nessa fala reaparecer no Livro VIII, como j apontamos, quando mostrada a
marca originria que os pais deixam nos filhos ao educarem e as consequncias
para o futuro da prpria cidade.
41 , . (371 a)
44
Sabendo que, para o homem grego, grande honra conservar ou ampliar o
que herdado, os bens acumulados no s refletem o bem-estar da famlia, mas
o da prpria cidade e Cfalo excelente nesse aspecto. Lembremos que
Tucdides,42 ao recolher o discurso de Pricles aos mortos quando do combate do
Peloponeso, conta que o general recordou os antepassados e suas honras,
corroborando a importncia da famlia e do passado na educao grega de ento.
Diz Tucdides:
Se eles (os antepassados) so dignos de elogios, nossos pais o so
ainda mais, pois aumentaram a herana recebida, construram o
imprio que agora possumos e a duras penas nos deixaram este
legado, a ns que estamos aqui e temos.
No entanto, J. Annas,43 em seus comentrios sobre A Repblica, olha de
forma desprezvel a figura de Cfalo, pelo fato de ser ele um homem rico que
dedicou a vida ao ganho de dinheiro no porto do Pireu. Afirma a intrprete:
Cfalo um homem que escolheu consagrar sua vida ao ganho do
dinheiro vivendo em uma cidade estrangeira, renunciando a todos os
direitos, deveres e atividades de um cidado, coisas de importncia
vital aos olhos dos gregos e para o respeito de si mesmo.
necessrio reavaliar tal colocao, talvez ideolgica e projetiva quanto ao
desprezo dos bens crematsticos, pois, mesmo sendo um homem rico, o que no
negativo em si, Cfalo tem valor importante como pretendido por Plato ao
coloc-lo no incio do livro I. Afinal, ele parte do suporte da cidade para a
realizao de desejos bsicos como a alimentao, a habitao e vestimentas,
quando necessrio a moeda, e seguindo as exigncias do Livro II quando de
uma cidade mais complexa, a pedido de Glauco, o ethos de Cfalo pode ser bem
42 TUCDIDES. Histria da guerra do peloponeso. Trad. Mrio da Gama Curi. 3 ed. Braslia: UnB, 1999, Livro II. 36. 43 ANNAS, Julia. Introduction la Republique de Platon. Paris: PUF. 1981. p. 28.
45
recebido. Talvez Annas esteja em ngulo anacrnico para tal afirmao. Se, para
Cfalo, a qualidade da justia consiste (331 c) na verdade e em restituir aquilo
que recebemos,44 isso no em nada desprezvel, e notemos que essa fala de
um meteco, mas poderia ser de um grego. A riqueza secundria nesse
contexto; o carter primrio; a sophrosyne subjaz como seu modelo.
4. A lgica do discurso de Cfalo
Com mais detalhe o dilogo entre Scrates e Cfalo, ele se organiza da
seguinte forma: num primeiro momento, descrito o espao onde vai se dar o
dilogo, no porto do Pireu, mais precisamente na casa de Cfalo; para, em
seguida, notar que Scrates v o anfitrio envelhecido, libando ao deus protetor
da casa e, finalmente, apresenta-se o gosto da conversa entre amigos. Em 329 a-
d, Cfalo coloca o que alguns ancios pensam das vantagens e desvantagens da
velhice e, desejoso de ouvi-lo, Scrates sutilmente pergunta: (329e) receio que a
maioria dos homens no concorde com o que acabaste de dizer (quanto ao uso
da riqueza, que no to vantajoso quanto se pensa). Para o ancio, no
importam ricos ou pobres, pois todos se lamentam, ao final, por terem levado uma
vida desregrada, e ele, no caso, homem moderado, fez desse final um fardo
suportvel. Se muitos forem os homens com carter no excessivo, podemos
imaginar uma cidade organizada do mesmo modo. Seria uma cidade justa?
possvel, numa resposta margem dos argumentos, pois a moderao que
impulsiona tal cidade.
Scrates quer, ainda, saber como os indivduos se relacionam com a riqueza
de acordo com a forma como a adquiriram, uns por esforo prprio e outros por 44 , (331 c)
46
doaes, o que muda o modo de atuar. Cfalo , ao mesmo tempo, herdeiro e
trabalhador, recebeu com facilidade, perdeu e trabalhou para obter. Para
Scrates, de acordo com a aquisio dos bens, os que tm de construir fortuna
so duplamente afeioados riqueza, fato que leva a perguntar (330d): ...No teu
modo de pensar, qual foi a maior vantagem que te proporcionou a riqueza?
Cfalo responde que alguns homens, quando chegam idade avanada, pensam
na vida que levaram e a conscincia os atormenta pelos atos cometidos, por
medo do Hades. Para ele, a vantagem deixar a vida sem receio de ter mentido,
mesmo involuntariamente, e por no dever sacrifcios aos deuses nem dinheiro a
ningum. Essa a forma de ser justo (331d): falar a verdade e restituir o que se
recebe, como foi dito. Alongando as perguntas, Scrates quer saber de alguma
circunstncia em que se pode restituir algo devido a algum de acordo com
situaes especficas, pois isso pode ser um ato justo ou injusto, por exemplo, se
devemos dinheiro a uma pessoa que quer us-lo para matar algum. Cfalo se
afasta sem prolongar a conversa, para terminar seu ritual a Zeus, e seu herdeiro,
Polemarco, segue na conversa.
5. Quem Polemarco?
Scrates parteiro conduz, agora, Polemarco reflexo sobre o que a
justia, no como seu pai lhe ensinou, mas o que ele mesmo pensa a respeito.
Polemarco carrega a duplicidade de ser um modelo dramtico e uma figura
histrica: filho de Cfalo e irmo de Lsias, 45 como foi dito. No temos a data de
45 LYSIAS. Discours XII. Trad. Louis Gernet et Marcel Bizos. Paris : Les Belles Lettres.
47
seu nascimento, e, segundo levantamento de Nails,46 provavelmente nasceu em
Siracusa. Como filho mais velho, era o guardio temporrio dos seus irmos,
Lsias e Eutidemo. O problema central que o envolve narrado por seu irmo
Lsias,47 considerado excelente loggrafo ateniense: Polemarco foi morto logo
aps a guerra do Peloponeso, quando da derrota de Atenas em 404 a.C, e sua
submisso ao poderio espartano pelo governo composto de trinta dirigentes
escolhidos entre representantes da oligarquia grega, a nomeada Tirania dos
Trinta. Crombie48 expe que esse momento poltico marca profundamente a vida
de Plato, que teve nele dois parentes envolvidos: Crmides e Crtias, ambos
discpulos de Scrates. Nessa poca, Plato, provavelmente, teria vinte anos e,
apesar de convidado a participar desse governo, no aceitou, por no concordar
com a forma utilizada pela aristocracia dirigente, a qual usava do poder para
perseguir os dissidentes.
Moss49 indica que o Governo dos Trinta, que exilou Lisias e confiscou os
bens de Cfalo, foi responsvel pela instalao do terror em Atenas. Seus
participantes no tinham escrpulos: matavam cidados atenienses para adquirir
seus bens e, at mesmo, para eliminar os que tivessem algum prestgio perante a
populao. Entre os cidados perseguidos e mortos est exatamente Polemarco.
A ocorrncia de sua morte encontra-se no discurso XII, de Lsias, intitulado
Contra Eraststenes, em que ele apresenta o processo de perseguio e aponta
Eraststenes como aquele que prendeu seu irmo. Plato coloca tal cenografia e
46 NAILS, Debra. The people of Plato. A prosopography of plato and other Socratics. Cambridge: Hackett lpublishing Company. 47 LYSIAS. Discours XII. 48 CROMBIE, I. M. Anlise de ls doctrinas de Platn: el hombre y la sociedad. Madrid, Alianza Universidad, 1990, pp. 13 a 20. 49 MOSS, Claude. Atenas: a histria de uma democracia. Trad. Joo B. da Costa, Braslia: UnB, 1982, p. 54.
48
inserie Polemarco como personagem no sem razo num dilogo que estrutura
uma cidade justa e pergunta sobre a justia.
Polemarco aparece no passo 327b do Livro I, apresentado como herdeiro
familiar (kleronomos), primognito, tambm para seguir com as perguntas e
respostas a Scrates (331 d). Herdeiro de fato de Cfalo, das riquezas materiais e
dos valores educacionais que recebeu de seu pai, agora, herdeiro na
coversao. Algumas colocaes destas passagens sero reapresentadas no
livro IV, quando Scrates faz referncia aos filhos gerados pelos governantes,
guardies ou artesos e indica que eles no sero herdeiros por gerao, mas
sero filhos da cidade, o que comentaremos. Pela via das potncias anmicas o
ngulo se modifica do Livro I ao IV, de modo que a paternidade e a herana
paterna no esto em jogo pelo sangue, ou leis civis, mas pela alma. Em (423 c -
d):
Menos importante, ainda, lhe disse, a de que falamos h pouco, ao
afirmar que seria preciso transferir para outras classes os filhos dos
guardas que por ventura se revelassem inferiores, e o inverso
passar para a classe dos guardas os filhos bem gerados das outras
duas. Com isso tinha em mira demonstrar que tambm com
referncia aos demais cidados ser preciso que cada um exera
uma nica atividade, aquela para que for naturalmente indicado; s
dessa maneira que o cidado pertence nico, no mltiplo, com o
que lucra a prpria cidade, que no se multiplica, porm, se mantm
indivisa.50
50 , , , , , , / , . , , , , , , . (423c-d)
49
Plato afasta-se, assim, dos problemas histricos pelos quais Atenas passou
durante o conflito com Esparta - quando houve a peste que matou muitos
atenienses, entre eles Pricles -, para focalizar outro solo, o propriamente
reflexivo, no Livro IV. Lembremos que, naquele perodo da peste, alguns dormiam
pobres e amanheciam ricos devido s mortes pela doena, o que levou a
populao a um estado desenfreado de desejos de realizao dos prazeres
imediatos, pois no se sabia at quando uma pessoa continuaria viva. Ora, como
abordaremos, na cidade criada em logos, os bens so da prpria cidade e devem
ser utilizados em benefcio de todos, e para que isso ocorra, necessrio que
cada um exera uma s funo, de acordo com a potncia existente na alma que
mais lhe respeite por natureza (423d) e que foi aperfeioada por educao. de
se estranhar, portanto, que os comentadores tenham dificuldades em apresentar
as relaes entre o Livro I e o restante de A Repblica. Como a colocao de
Cfalo, tambm de Polemarco ser retornada de modo sutil por Plato nos livros
que se seguiro.
Plato vivenciou esses conflitos histricos e tinha em mente que a riqueza e
a pobreza so causas de grandes males (421d 422a), tanto para os homens
quanto para a cidade, de modo que buscar a soluo desse tipo de conflito ao
estruturar a cidade justa, dispondo dos bens produzidos para que todos deles
usufruam e no se deixem arrastar para o desejo de acumulao pessoal. Se
Cfalo serve como bom modelo num primeiro momento, por ser portador da
virtude produtiva e familiar, qual ser o valor da tese de Polemarco?
Ao expor a sua tese (332d), de que a justia fazer bem aos amigos e mal
aos inimigos,51 Polemarco apresenta exatamente a viso e funo do guardio da
cidade justa, do segundo estamento da cidade justa, como veremos no segundo 51 ; (332d)
50
captulo da nossa investigao. De forma bem mais elaborada, essa funo exige
do guardio o saber sobre a distino entre opostos: amigos e inimigos e, para
isso, Plato acrescenta s qualidades psquicas desse segundo estamento
tambm a disposio filosfica. Assim, poder o guardio atuar tanto dentro da
cidade quanto fora dela. Desse modo, a cidade justa acolhe a tese de Polemarco,
como veremos no momento em que demonstrarmos seu o resgate um pouco
mais frente.
6. O discurso de Polemarco e sua arete
Ao assumir a conversa, Polemarco defender o que foi ensinado por
Simnides (331e), que justo restituir a cada um o que se deve.52 Scrates
questiona-o se sua colocao realmente a mesma do poeta, e ressalva que os
poetas se expressam de forma enigmtica (332c):
Por conseguinte, disse eu, Simnides falou ao que nos parece,
enigmaticamente, maneira dos poetas, ao dizer o que era a justia.
O pensamento dele era, aparentemente, que a justia consistia em
restituir a cada um o que lhe convm, e a isso chamou ele restituir o
que devido.53
O problema da afirmao de Polemarco, respaldado no ensinamento do
poeta, com relao restituio (apodidonai) se a justia o ato de restituir o
que devido, deve ser feita no momento em que, aquele ressarcido, goze de
harmonia racional, caso contrrio no se deve fazer tal ao, pois o ato de ser
ressarcido tem implicaes ticas que devem ser levadas em conta. Ser justo no
52 , , , (331e) 53 , , , , / , , , . (332c)
51
um ato aleatrio, ou mecnico, mas um ato educativo para o correto, na medida
que leve a ao a ser a mais bela possvel. Nessa lgica de dar o que devido
numa justa medida e da forma correta, Scrates conduz o dilogo com o filho de
Cfalo para o uso da tcnica, para demonstrar que o ato de restituir deve ser
sempre visando ao bem.
Poderamos continuar a expor a lgica, da conversa, a maieutica socrtica,
entre esses dois personagens, mas Plato aponta para um problema que, a
nosso ver, retomar no Livro VIII: qual o homem que age no governo privado da
prpria razo, ou que a tenha em desarmonia? Pelo que exposto, parece-nos
que essa a marca psquica da decadncia da cidadadnia e a construo da
figura dodo tirano: por estar privado do uso da razo principalmente o democrata
e o tirano quer tudo em tudo para a realizao de seus desejos desmedidos. Aqui,
s apontamos para o problema que desenvolveremos no ltimo captulo, quando
falarmos da Democracia. Retornamos tese de Polemarco, que necessitar de
explicao sobre a quem se deve restituir e como.
Segundo o uso das tcnicas, Scrates (33e c) cria um dilogo imaginrio
com Simnides para perguntar ao poeta se o ato da medicina, enquanto uma
techne (de dar o que devido e conveniente ao doente) no seria dar os
remdios, a comida e a bebida devida a cada corpo, do mesmo modo para a
culinria, dar aos alimentos os temperos necessrios. Isto aceito, fica difcil para
Polemarco, ao tratar da justia e da injustia enquanto tcnica, de dbito e
crdito, pois ser justo no pode ser fazer bem aos amigos e mal aos inimigos,
pois toda tcnica d o que devido a quem devido, e a justia no comportaria
essa dualidade sem a explicao do que ser amigo e inimigo. Tudo isso serve
para Scrates mostrar que o ato de devolver o que devido (das technai nelas
52
mesmas), sempre o bem de quem delas necessita: o bom sapato do sapateiro
ao que compra o sapato, por exemplo. Essa deve ser a tica de quem portador
desse saber: visar ao bem do outro.
J que esto em busca do que seja a justia, em 335c, Scrates faz
Polemarco entender que ela enquanto exteriorizao na ao, visa perfeio
dos homens, tal qual a medicina que busca a sade do corpo, a culinria para o
alimento. Dessa forma, um homem justo jamais seria mal para quem quer que
seja, pois um ato contrrio ao bem, levaria construo de um homem defeituoso
e, portanto, injusto. Esse o motivo que leva Scrates a refletir sobre o ato de
restituir e restituir para quem, quando e como.
O que Scrates percebe que Polemarco se encontra inserido nos valores
mais bvios da cidade. O ideal de fazer bem aos amigos e mal aos inimigos
algo ouvido com frequncia nos tribunais gregos da poca. Os oradores
buscavam como suporte de seus discursos uma figura, Slon. Esse legislador do
sculo VI a. C. escreveu poemas e, no fragmento 13, um dos mais longos que
nos restaram, denominado Sobre a Justia, 54 expe:
Filhas esplendorosas de Mnemsine e de Zeus Olmpico,
Musas Pirides, atendei a minha prece.
Bens da parte dos deuses bem-aventurados me dai e que junto de
todos
os homens de boa fama sempre goze;
ser, assim, doce aos amigos e aos inimigos amargo, (5)
queles respeitvel e a estes temvel parecer.
Riquezas desejo possuir, mas adquiri-las injustamente
no pretendo: sempre, a seguir, vem a justia.
A fortuna que os deuses do fica ao lado do homem,
firme, desde os alicerces cumeeira. (10)