PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
PUC-SP
Pedro Augusto Ciola de Almeida
As reformas graduais da sociedade aberta de Popper
Mestrado em Filosofía
São Paulo
2017
Pedro Augusto Ciola de Almeida
As reformas graduais da sociedade aberta de Popper
Mestrado em Filosofia
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de MESTRE em filosofia, sob a
orientação do Prof. Dr. Antônio José Romera
Valverde
São Paulo
2017
Resumo
Os filósofos são perspicazes em captar mudanças nas principais atividades humanas:
economia, política, ciência, religião e a ética que não apenas mudam o mundo em que vivemos,
mas também a própria compreensão de homem e o espaço que ocupa no universo. Isso não
significa que o filósofo elaborará uma reflexão bem sucedida aos problemas que os interpela,
na verdade ocorre o contrário: nós mais erramos do que acertamos, por essa razão segundo
Popper devemos ser críticos e autocríticos. Com efeito, Popper percebeu a revolução cientifica
que viria com o advento da ciência de Einstein e elaborou um novo critério de demarcação de
ciência e não ciência com o falsificacionismo, bem como reinterpretou o valor do conhecimento
cientifico e da filosofia a partir de uma epistemologia não otimista. Na filosofia política, Popper
inspirou-se nos países escandinavos e no Reino Unido para construir o que chamou de
sociedade aberta, isto é, uma sociedade tolerante, que não está pronta e acabada, mas que
constantemente e gradualmente se reforma. Identificar as reformas graduais e lentas da
sociedade aberta é a tese desta dissertação.
Palavras-chave: reforma, sociedade aberta, ética, liberdade, democracia
Abstract
The philosophers are insightful in capturing the great changes in mainly of human
activities such as economy, policy, science, religion and ethic. It doesn't only change the world
we live but also man comprehension about themselves and the place ourselves occupy in
universe. It doesn't mean the philosopher will make a well-succeeded reflection about the
problems which cross his way. In fact, it happens the opposite: we commit more mistakes than
right perceptions. Because of this according to Popper we must be criticals including about
ourselves. In addition, Popper realized the scientifical revolution that would be with the coming
of Einstein's science and he produced a new pattern of limit between science and non-science
with the falsificacionism as well as he reinterpreted the value of scientifical and philosofical
knowledge from a non-optimistic epistemology. On political philosophy, Popper inspired
himself on Scandinavian counries and United Kingdom to build what he called openned society
which means a tolerable society, not ready and over but under reformation on gradually and
full time. Identifying the gradual and slow reformations of the open society is the thesis of this
dissertation.
Keywords: reform, open society, ethic, freedom, democracy
Sumário
Introdução...................................................................................................................................7
I – Ambiente de A sociedade aberta e seus inimigos.................................................................9
I.1 – Até A sociedade aberta e seus inimigos...................................................................9
I.1.1 – II Guerra Mundial e publicação de A sociedade aberta e seus inimigos...10
I.2 – Epistemologia popperiana......................................................................................11
I.2.1 – Círculo de Viena........................................................................................11
I.2.2 – Falsificacionismo.......................................................................................13
I.2.3 – Racionalidade da metafísica......................................................................14
I.2.4 – A superação do neopositivismo.................................................................15
I.2.5 – Binômio cientifico-filosófico: Newton-Kant, Einstein-Popper.................16
I.3 – Necessidade de reformas graduais..........................................................................20
II – Amigos e inimigos da sociedade aberta.............................................................................22
II.1 – Inimigos da sociedade aberta na antiguidade.........................................................22
II.1.1 – A primeira ideia historicista da mudança e do destino...............................23
II.1.2 – O estado de Platão.....................................................................................24
II.1.2.1 – Uma introdução a dura crítica de Popper a Platão..........................24
II.1.2.2 – Estado totalitário..........................................................................25
II.1.2.3 – Como não ter luta de “classes” no estado justo.............................28
II.1.2.4 – Racismo, eugenia e escravidão no estado justo.............................29
II.1.2.5 – A pergunta venenosa: “Quem deve governar?”............................30
II.1.3 – “Igualdade para os iguais”.........................................................................32
II.2 - Inimigos da sociedade aberta na modernidade........................................................33
II.2.1 – Idealismo absoluto....................................................................................35
II.2.1.1 – Criador do historicismo e da dialética moderna............................37
II.2.1.2 - Panlogismo absolutista.................................................................38
II.2.1.3 - Filósofo oficial do prussianismo...................................................39
II.2.2 – Materialismo histórico-dialético...............................................................43
II.2.2.1 – Libertador da cruel exploração humana........................................43
II.2.2.2 – Determinismo social....................................................................45
II.2.2.3 – Repensando a tríade historicismo-dialética-episteme...................47
II.2.2.4 – Impotência da politica..................................................................49
II.2.2.5 – O caminho para a ditadura............................................................51
II.2.2.6 – Assimilação dos dez pontos da revolução comunista...................54
II.3 - Amigos da sociedade aberta....................................................................................56
II.3.1 - “Eu preferiria encontrar uma só lei causal a ser o rei da Pérsia!”................57
II.3.2 – Sócrates, mestre eminente da sociedade aberta.........................................57
II.3.2.1 – Despertar do sono dogmático: “Quão pouco sei!”........................59
II.3.3 – “Princípio de igualdade perante a lei”........................................................60
II.3.4 – “Jesus ensinou ama teu próximo e não ama a tua tribo”.............................62
III – Engenharia social gradual da sociedade aberta..................................................................65
III.1 – Antropologia popperiana: ser racional, social e espiritual.....................................66
III.2 – Sua teoria democrática..........................................................................................71
III.2.1 - A sociedade aberta é somente fechada aos intolerantes.............................75
III.2.2 – Ameaça da televisão a sociedade aberta...................................................77
III.2.3 – A ameaça do colapso ambiental a sociedade aberta..................................79
III.3 - Estado intervencionista com política de proteção aos mais fracos.........................80
III.3.1 - Escola austríaca de economia...................................................................81
III.3.2 - O liberalismo de Hayek............................................................................82
III.3.3 - O intervencionismo de Keynes e o liberalismo da Escola de Chicago.......83
III.3.4 - Racionalidade, economia e democracia de Popper e Hayek......................86
III.4 – Agenda da Fundação Sociedade Aberta................................................................92
III.4.1 – Queda da União Soviética e carta de Popper ao povo russo......................92
III.4.2 – Fracassos da Fundação Sociedade Aberta na Europa Oriental.................94
Considerações finais..................................................................................................................97
Referencias bibliográficas.........................................................................................................99
Introdução
Karl Popper viveu no tumultuado século XX marcado pelas duas guerras mundiais, com
o agravante para ele por ser judeu residente na Europa, muitos de sua família foram mortos nos
campos de concentração, teve que migrar para alguns países até se estabelecer definitivamente
no Reino Unido onde viveu a maior parte de sua vida e naturalizou-se.
Amplamente conhecido como filósofo da ciência sua teoria do conhecimento ganhou
admiradores no mundo inteiro e gerou uma nova forma de se pensar a ciência, que será
analisada nessa dissertação no primeiro capítulo, por ele próprio ter afirmado em sua
autobiografia, que sua filosofia política é decorrente de sua teoria do conhecimento.
Uma das chaves de leitura de A sociedade aberta e seus inimigos é que Popper
reinterpretou a história: não a entendeu como guerra das nações como a maior parte dos
historiadores e nem como guerra de classes, mas como uma batalha entre a sociedade aberta e
a sociedade fechada, que teve início com os gregos críticos aos tabus e práticas mágicas.
Popper escreveu que Sócrates e Einstein o fizeram um falibilista, o primeiro pela sua
modéstia intelectual, o segundo por considerar normal que uma teoria física pode ter uma
aproximação melhor a realidade do que outra e se refutada pela experiência é descartada, aí
encontra-se o estatuto do método cientifico (POPPER, 2002, p. 37-39).
No segundo capítulo será trabalhado o que a sociedade aberta não é, a partir de três
elementos citados por Popper: coletivismo, historicismo e irracionalismo. A sociedade fechada
é caracterizada por esses elementos que segundo sua análise estão principalmente presentes em
dois filósofos: Platão e Hegel. O historicismo é determinista, enquanto a sociedade aberta não
possui um sistema social definido.
No terceiro capítulo será apresentado a tese desta dissertação: elucidar as reformas da
sociedade aberta de Popper. Tentarei mostrar que as reformas não são uma apologia ao
liberalismo, inclusive o considerou tão ingênuo quanto o socialismo (utópico). Popper defendeu
o que chamou de engenharia social gradual: política intervencionista com proteção aos mais
fracos.
Popper escreveu no prefácio de A Sociedade aberta e seus inimigos que suas palavras
ásperas com relação a alguns dos grandes pensadores da humanidade, não foram com a intenção
de depreciá-los, mas que a filosofia deveria romper com a deferência aos grandes homens,
porque podem “os grandes homens cometer grandes enganos” (POPPER, 1998a, p. 7).
Como os homens e as mulheres estão muito mais errando do que acertando, é necessário
ter consciência que suas teses e propostas tem mais chances de estarem erradas do que certas,
mesmo as que estão certas não é possível afirmar que em todos os casos e sempre estarão certas,
por isso é preciso valorizar a opinião e a análise do outro. A pesquisa e as soluções avançam e
melhoram com a participação de muitas pessoas, isso vale para a filosofia, a ciência e também
para a política, por isso as reformas graduais da sociedade aberta permitem ajustar erros sem
demasiado dano ao ser-humano.
I - Ambiente de A sociedade aberta e seus inimigos
“Ambos [A pobreza do historicismo e A
sociedade aberta e seus inimigos]
cresceram da teoria do conhecimento da
Lógica da descoberta cientifica”
(POPPER, 2002, p. 131)
I.1 - Até A sociedade aberta e seus inimigos
Karl Raimund Popper nasceu em Viena no ano de 1902, estudou matemática, física e
filosofia, com físicos como Wirtinger, Furtwangler e o matemático Hans Hahn. Sua tese de
doutoramento em filosofia é de 1928 com o tema sobre a questão do método da psicologia do
pensamento, com aprovação do psicólogo Karl Buhler.
Em 1935, publicou uma de suas obras fundamentais a Lógica da descoberta cientifica,
ganhando considerável notoriedade na pesquisa da teoria do conhecimento, junto com sua
publicação de 1963, Conjecturas e Refutações, tornaram “talvez o maior filósofo da ciência do
século XX” (REALE, 2006, p. 138).
Na juventude aderiu ao marxismo e, por pouco tempo, foi membro do partido socialista
da Áustria. A morte de alguns colegas, deixou-o horrorizado pela brutalidade da polícia, mas
também ficou frustrado com a explicação marxista de que as mortes fazem parte do processo
para a inevitável vinda do comunismo.
Ficou pensativo sobre a responsabilidade do partido socialista em ter estimulado jovens
a luta de classes e foi o início do despertar de consciência sobre o método marxista e a melhor
forma de empreender reformas, que beneficiem os trabalhadores. Apesar de ter se desvinculado
do partido, continuou socialista até os trinta anos, pois combinava com seu estilo de vida livre,
modesto e a busca por uma sociedade igualitária.
Sendo Popper de origem judaica, a ascensão do nazismo, o fez emigrar em 1937 para a
Nova Zelândia, onde foi professor de filosofia na universidade de Canterbury, em Christchurch.
Dezesseis parentes seus não tiveram a mesma sorte e foram levados para os campos de
extermínio. Nesse país escreveu A miséria do historicismo e trabalhou durante cinco anos na
elaboração de A sociedade aberta e seus inimigos, publicada em 1945.
Esse livro objeto desta dissertação é fundamentalmente a defesa da tolerância, seu
esforço de guerra por ver a liberdade ameaçada por ditaduras e totalitarismos. A sociedade
aberta, isto é, a sociedade tolerante tem seu fundamento no que Popper chamou de a grande
geração: Péricles, Sócrates e Demócrito1, seus ensinamentos sobre modéstia intelectual, ser
crítico e autocritico, dignidade da pessoa humana, valorização da educação, da democracia e a
isonomia formam o chão seguro para a construção da sociedade aberta, nunca terminada, mas
sempre gradualmente em construção.
I.1.1 - II Guerra Mundial e publicação de A sociedade aberta e seus inimigos
Terminada a I Guerra Mundial as potências vitoriosas Estados Unidos, Reino Unido,
França e Itália buscaram um acordo de paz que tornasse impossível acontecer outra guerra, mas
infelizmente falharam enormemente vinte anos depois a guerra voltou a assolar o mundo, já em
meados de 1930 pouco se restava do Tratado de Versalhes.
Qualquer chance de se alcançar a paz, mesmo que pequena, foi perdida em parte pelas
potências vitoriosas se negarem a integrar as derrotadas. Não era possível excluir a Alemanha
e a Rússia do palco mundial, quando fosse possível voltar a cena os acordos que as
desagradavam teriam que ser revistos.
Em todo caso, “a pergunta sobre quem ou o que causou a Segunda Guerra Mundial pode
ser respondida em duas palavras: Adolf Hitler” (HOBSBAWM, 2015, p. 43). A guerra começou
em 1939 num conflito europeu depois que a Alemanha entrou na Polônia, no ano seguinte com
facilidade Noruega, Dinamarca, Países Baixos, Bélgica e França caíam sob Hitler. Restou o
Reino Unido, nesse momento a Itália fascista saiu da neutralidade para o lado alemão, em 1941
o Japão entrou também na guerra.
O erro estratégico fatal de Hitler foi de ter invadido a União Soviética fazendo com que
a Alemanha estivesse em guerra em dois flancos: do lado ocidental os países liderados pelos
Estados Unidos e do lado oriental o exército soviético.
No mesmo ano da publicação de A sociedade aberta e seus inimigos, em 1945, Hitler
foi derrotado a custo de milhões de vidas e cerca de quarenta milhões de refugiados. O século
XX foi o mais assassino da história da humanidade, anteriormente guerras matavam geralmente
centenas de pessoas, se muito milhares, mas nunca havia acontecido de morrer milhões de
pessoas.
Seria muito restrito dizer que o século XX foi apenas violência e mortes em massa. Vale
ressaltar o altíssimo desenvolvimento tecnológico, em que pela primeira vez pessoas em lugares
diferentes do globo comunicavam-se através de botões, a valorização das mulheres e a
1 Ver o item do segundo capítulo II.3 - Amigos da sociedade aberta.
conquista de muitos direitos civis, talvez pela primeira vez a maioria das pessoas estão
alfabetizadas, uma explosão populacional com um número muitas vezes maior que jamais antes
na história são alguns exemplos significativos desse século.
A intenção foi somente de maneira breve apresentar o horror que gerou em Popper tanta
violência e o motivo de encontrar em A sociedade aberta e seus inimigos um pacifista defensor
dos direitos humanos, com muita desconfiança do êxito de utopias2.
I.2 - Epistemologia popperina
A tese desta dissertação são as reformas graduais e lentas da sociedade aberta e não de
refletir sobre a teoria do conhecimento popperiana, mas como a filosofia política de Popper
cresceu de sua epistemologia (POPPER, 2002, p. 131) fez necessário abordar os pontos mais
importantes dela, o que será feito neste capítulo.
I.2.1 - Círculo de Viena
Entre as duas grandes guerras Viena foi a capital de um dos centros mais importantes
do método cientifico: desenvolvendo as ideias neopositivistas. Uma vez que, em Viena, o
liberalismo foi o modelo econômico predominante3 e diverso da maioria das universidades
alemãs, devido a influência católica, a universidade de Viena se manteve longe do idealismo.
Com efeito, segundo um de seus membros, Otto Neurath, a mentalidade escolástica semeou a
base de uma abordagem lógica das questões filosóficas.
Quando o físico e filósofo Moritz Schlick veio para a universidade de Viena, para ocupar
a cátedra que outrora foi de Ernst Mach, o Círculo de Viena teve oficialmente seu início em
1922, quatro anos depois chegou Rudolf Carnap uniu-se ao matemático Hans Hahn e ao
sociólogo e economista Otto Neurath. Foi o matemático Kurt Reidemeister que propôs a leitura
e debate do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein.
2 Nicola Abbagnano ressaltou que a partir da I Guerra Mundial foram progressivamente desaparecendo as utopias
tradicionais, depois do fim da II Guerra Mundial a mentalidade utopista foi objeto de fortes contestações
filosóficas, dando destaque a Popper e a Hans Jonas, mesmo para os estudiosos do fim do século XX a utopia não
gozou de boa reputação. Não impedindo alguns filósofos como Cassirer de que a utopia tem função permanente
de criar espaço para o possível, contra o consentimento passivo do estado presente (ABBAGNANO, 2007, p.
1174).
3 Ver no terceiro capítulo o item III.3.1 - Escola austríaca de economia.
Em 1929, foi publicado pelo Círculo de Viena A concepção cientifica do mundo, que
pode ser resumido pela busca de uma ciência unificada, para atingir essa grande pretensão, o
meio consiste no método lógico de Peano, Frege, Whitehead e Russell. Isso resultaria na
eliminação da metafísica, uma contribuição para se entender melhor os conceitos, as teorias da
ciência empírica e os fundamentos da matemática.
Do Círculo de Viena surgiu o princípio de verificação para separar as asserções sensatas
das ciências empíricas das asserções insensatas da metafísica. Só valem as proposições que
podem ser verificadas empiricamente ou factuais, de modo que a matemática e a lógica são
convenções estipuladas e não podem dizer nada sobre o mundo. A metafísica, a ética e a religião
utilizando de conceitos que não podem ser factualmente verificáveis não passam de
pseudoconceitos.
Tal compreensão da ciência levantou alguns problemas:
- Muitas verificações empíricas não bastam para fundamentar logicamente leis
universais.
- A necessidade de um enunciado ser reduzível a um enunciado particular de
verificação empírica para ser cientifico acabou com a metafísica, mas os neopositivistas na
ânsia de acabar com a metafísica, aniquilaram com ela a ciência natural, pois “as leis
cientificas também não podem ser logicamente reduzidas a enunciados elementares de
experiência” (POPPER, 2007, p. 37).
Esses motivos fizeram com que, o critério de verificação, passasse a encontrar
resistência entre alguns membros do próprio Círculo de Viena. Nos Estados Unidos, Carnap,
deixou de falar verificabilidade para usar controlabilidade e Wittgenstein utilizou jogos de
linguagem.
Para Popper, o verificacionismo não pode servir de critério de demarcação entre ciência
e metafísica, é preciso encontrar uma nova demarcação, apesar de por vezes a metafísica ter
colaborado com o desenvolvimento cientifico4.
Popper não demarcou ciência e não ciência através de linguagem sensata e linguagem
insensata, mas sim através do critério de falsificabilidade.
4 Ver o item I.2.3 - Racionalidade da metafísica
I.2.2 – Falsificacionismo
Popper viu na falseabilidade a principal característica das teorias cientificas. Importante
para esta dissertação é destacar que o falsificacionismo, Popper transformou “na plataforma
teórica da sua concepção falibilista do saber” (ABBAGNANO, 2007, p. 496).
Basta aplicar a falibilidade do saber para a filosofia política que se entende porque A
sociedade aberta e seus inimigos derivou da Lógica da descoberta cientifica. Se mais erramos
do que acertamos, Popper se viu “obrigado” a defender reformas cuidadosas e graduais e não
reformas bruscas (revolucionárias).
Popper não foi o primeiro a trabalhar o termo falibilismo: “pelo que eu saiba, encontra-
se pela primeira vez em Charles Sanders Peirce” (POPPER Apud REALE, 2006a, p. 83). Peirce
não apenas usou o falibilismo, mas também o conceito falsificação. O conhecimento para Peirce
jamais é absoluto e uma hipótese bem verificada não é segura para sempre.
Popper adotou o falibilismo entendendo-o como o procedimento que permite elaborar
conjecturas e submeter a refutações empíricas, negando a pretensão de certeza absoluta na teria
do conhecimento.
Para Popper, a “ciência parte, pois, de problemas e não de observações” (POPPER,
2006, p. 302), as teorias são criadas para resolver os problemas e é necessário submetê-las ao
controle dos fatos. A prova ocorre extraindo consequências das teorias, se corroboram ou não.
Em caso de corroboração, por momento, as teorias estão corroboradas, caso contrário a teoria
é falseada, ou seja, das teorias é preciso extrair consequências que possam refutá-la pelos fatos.
Um sistema pode ser considerado cientifico se é controlado pela experiência, mas o
critério de demarcação não é através de verificação e sim de falsificação, isto é, um sistema
empírico precisa poder ser refutado pela experiência.
A asserção “chove ou não chove” não pode ser falsificada, mas a proposição “hoje à
tarde choverá aqui” pode ser desmentida pelo sol nesse período, dessa forma uma teoria para
ser cientifica precisa poder ser falsificada pelos fatos. O fato de achar dois cisnes pretos ou mil
cisnes pretos não permite afirmar uma teoria de que todos os cisnes são pretos, basta achar um
cisne branco para falsear a teoria.
Com isso Popper quer mostrar que o que se pode aprender da experiência não é a
episteme de uma teoria, mas sim a falsidade de uma hipótese. A ciência não é o saber das
verdades definitivamente verificadas, mas das conjecturas no momento corroboradas.
Popper foi confrontado com teorias, como as de Thomas Kuhn e Lakatos, demonstrando
que pode acontecer de os cientistas demorarem muito tempo para abandonar uma teoria refutada
pela experiência, e inventam alguma hipótese de salvação; só abandonam uma teoria quando
encontram outra melhor.
Popper empreendeu um desenvolvimento da sua concepção: partiu de uma compreensão
de confrontação teoria-experiência para o confronto entre teorias rivais e a experiência. Além
disso, Popper teve que “suavizar” o falsificacionismo para evitar que uma teoria seja
abandonada rápido demais em uma eventual refutação empírica, pode ser necessário manter
duas teorias falsificadas, mas que num momento representam as únicas disponíveis.
Em todo caso, o falsificacionismo mantém-se como um convite critico a considerar, não
apenas as teorias cientificas, mas também teorias políticas, históricas e éticas passíveis de
revisão. Com efeito, cai o determinismo físico (o universo relógio de Newton), assim como
qualquer teoria filosófica determinista:
se o determinismo kantiano é fruto da ciência da época (o mundo-relógio de
Newton), e se a ciência posterior transforma o mundo-relógio em um mundo-nuvem,
então cai por terra aquele saber de fundo sobre o qual se erguia o determinismo de
Kant5, e essa derrocada carrega consigo também a teoria filosófica do determinismo
(REALE, 2006b, p. 148).
O determinismo que mais preocupou Popper no mundo moderno é o historicismo de
Hegel que repercutiu no historicismo de Marx, no capitulo seguinte esse tema será amplamente
tratado, já que o determinismo é um obstáculo ou atrapalha muito as reformas graduais da
sociedade aberta.
I.2.3 - Racionalidade da metafísica
Popper rompeu com o dogma positivista de que a metafísica deva ser descartada, pois
reconheceu que houveram teorias metafísicas que atrapalharam a ciência, mas também
houveram outras que contribuíram para o seu desenvolvimento:
É um fato que as ideias puramente metafísicas – e, portanto, as ideias
filosóficas – tem-se revelado da maior importância para a Cosmologia. De Tales a
Einstein, do atomismo antigo às especulações de Descartes acerca da matéria, das
considerações de Gilbert, Newton, Leibniz e Boscovic, a propósito das forças, às de
5 Ver o item deste capitulo I.2.5 - Binômio cientifico-filosófico: Newton-Kant, Einstein-Popper
Faraday e Einstein, a respeito de campos de forças – a metafísica sempre indicou
rumos (POPPER, 2007, p. 540).
Deve-se notar que “uma hipótese metafísica de hoje pode se tornar cientifica amanhã
(como foi o caso da antiga teoria atomista, metafísica nos tempos de Demócrito e cientifica na
época de Fermi)” (REALE, 2006, p. 145). Além da possibilidade de teorias metafísicas
tornarem ciência, Popper acrescentou a necessidade psicológica da metafísica para a ciência:
Inclino-me a pensar que as descobertas cientificas não poderiam ser feitas
sem fé em ideias de cunho puramente especulativo e, por vezes, assaz nebulosas, fé
que sob o ponto de vista cientifico, é completamente destituída de base e, em tal
medida, é “metafísica”(POPPER, 2007, p. 40).
Exemplos disso poderiam ser a causalidade, a ordem, o universo ser quantificável. Essa
nova forma de interpretação mudou drasticamente na filosofia da ciência como a metafísica é
vista pelos epistemólogos pós-popperianos.
Até o término desta dissertação uma das questões mais debatidas pela física atual: a
matéria escura, é uma metafísica. Pode vir a ser corroborada ou não, mas é inegável quanto
alimentou debates e estimulou o conhecimento.
Portanto, uma teoria ser metafísica não significa desprezá-la, mas sim que é
empiricamente incontrolável (metafísica) e pode ser de grande utilidade para a ciência e o
conhecimento humano.
I.2.4 – A superação do neopositivismo
Diversos autores e na literatura filosófica por muitos anos identificavam Popper com o
neopositivismo, inclusive em alguns debates com membros da Escola de Frankfurt várias
críticas foram feitas como se Popper fosse neopositivista, mas isso é falso.
Um dos membros do Círculo de Viena, Otto Neurath, considerou Popper a oposição
oficial do Círculo de Viena (POPPER, 2008, p. 29), pelo exposto acima e muito ainda poderia
ser colocado, fica evidente as enormes diferenças de pensamento.
Em sua autobiografia Unended Quest, Popper assumiu a responsabilidade pela morte
do neopositivismo:
Todos sabem hoje em dia que o positivismo lógico está morto. Mas ninguém
parece suspeitar que pode haver uma questão a ser feita: quem é o responsável? Ou
melhor quem fez isso? Temo que devo admitir a responsabilidade (POPPER, 2002,
p. 99).
Vale ressaltar que a ascensão do nazismo fez com que os membros do Círculo de Viena
tivessem que fugir para diferentes países atrapalhando muito a continuação dos trabalhos. Além
disso, filósofos como Peirce e Dewey contribuíram para o fim do neopositivismo, a obra Dois
dogmas do empirismo de Quine é considerada fundamental da filosofia pós-neopositivista.
Popper deu significativa contribuição para a teoria do conhecimento tomar novos rumos,
epistemólogos pós-popperianos, como Lakatos, Paul Feyerabend, Larry Laudan, Thomas
Kuhn, não deixam dúvida da profunda mudança.
I.2.5 - Binômio cientifico-filosófico: Newton-Kant, Einstein-Popper
No mesmo ano de falecimento de Galileu Galilei nasceu, no dia de Natal, Isaac Newton,
o cientista que levou a física moderna ao seu cume. O livro mais famoso de Newton é
Philosophiae naturalis principia mathematica, de 1687, uma publicação que marcou
profundamente a filosofia.
O alcance de seu pensamento influenciou muito o empirismo inglês e o iluminismo
(especialmente o francês): a razão limitada e verificada pela experiência, bem como o deísmo
foram duas heranças principais que o iluminismo herdou de Newton. Não versa sobre a essência
dos fenômenos, mas volta-se para os fenômenos procurando provar as leis de seu
funcionamento, para Newton todas as causas são mecânicas, exceto a Primeira, de modo que
todos os fenômenos podem ser explicados pela sua mecânica.
Sem a “compreensão da imagem da ciência newtoniana, é verdadeiramente impossível
compreender a Crítica da razão pura de Kant” (REALE, 2005a, p. 233). Kant publicou um livro,
em 1755, chamado A teoria dos céus tem um subtítulo interessante com o nome de Um ensaio
sobre a constituição e a origem mecânica do universo, tratadas de acordo com os princípios
de Newton. Quando “Kant fala de ciência natural, estava quase invariavelmente a pensar na
mecânica celeste de Isaac Newton” (POPPER, 2006, p. 253), a famosa emoção relatada na
Crítica da razão prática pelo céu estrelado acima de mim de Kant é a comoção pelo universo
relógio de Newton (Ibidem, p. 137).
O modo como Kant pôs a física de Newton em sua filosofia foi engenhosa: assim como
Copérnico afirmou que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas o contrário, Kant introduziu
o que chamou de Revolução Copernicana na teoria do conhecimento, não é o objeto que se
impõe ao sujeito como essência, mas sim o sujeito que impõe suas leis aos objetos. Que leis são
essas? Leis inerentes ao sujeito humano presentes no intelecto e na sensibilidade, em outras
palavras, as leis de Newton (Ibidem, p. 75 e 262-263).
O conhecimento, episteme, para Kant é possível já que o sujeito é ativo os dados que se
apresentam aos nossos sentidos são submetidos às leis matemáticas que são inerentes ao sujeito.
Para Kant a ciência newtoniana era absolutamente verdadeira e essa crença manteve-se
inabalável até o final do século XIX (POPPER, 2006, p. 134).
A crítica de David Hume de que não é possível ter conhecimento seguro a partir de leis
universais ficou esquecida pelo sucesso da ciência de Newton e articulação filosófica de Kant.
Disse Kant no final da Critica da razão prática:
uma visão tão clara da estrutura do universo, que se manterá inalterada
para todo o sempre. E, embora haja esperança de que a nossa visão se expanda ainda
mais por uma contínua observação, não haverá que temer nunca qualquer retrocesso
(KANT apud POPPER, 2006, p. 134)
Popper nunca escondeu a profunda admiração que tinha por Albert Einstein, as vezes
que teve oportunidade de conversar com ele foram sempre motivo de honra e alegria, inclusive
“tornou-se uma influência dominante sobre meu pensamento” (POPPER, 2002, p. 37).
Popper o admirava não apenas pela sua genialidade, mas também pela sua postura diante
de uma teoria cientifica. Assistindo uma palestra de Einstein em Viena, no ano de 1919, Popper
ficou muito impressionado, porque Einstein proclamou a sua teoria gravitacional insustentável,
se não resistisse a alguns testes.
Trata-se de sua abertura à refutação experimental, aí residia o estatuto da cientificidade
de uma teoria. Einstein considerava natural que uma teoria física pudesse apontar para outra
teoria mais bem sucedida, e se uma teoria cientifica falhasse em certos testes não é sustentável
(Ibidem, p. 38-39).
Uma teoria não falsificável pela experiência não é uma teoria cientifica, a
“irrefutabilidade não é uma virtude da teoria (como as pessoas muitas vezes julgam), mas sim
um defeito” (POPPER, 2006, p. 59). A busca por uma teoria capaz de explicar tudo ou de dar
um conhecimento imutável já é um sinal para Popper de que há algo errado.
Importante ressaltar que o próprio Popper reconheceu em seu tempo a dificuldade de
entender as repercussões da teoria da Relatividade para a mecânica newtoniana, por momento
não teve muita clareza: “É sempre difícil interpretar as teorias mais recentes” (Ibidem, p. 161).
Em todo caso, pode-se resumir nestes termos as consequências da teoria da Relatividade
e da mecânica quântica a mecânica clássica (Galileu-Newton), os desenvolvimentos da física
no século XX admitem a física clássica nos limites de nossa experiência cotidiana, mas em
outros ambientes a física de Newton mostrou não ser aplicável: em vários níveis microscópicos
como em fenômenos atômicos, nucleares ou subnucleares. Também, a relatividade para
velocidades muito grandes (como a escala astronômica) (REALE, 2006, p. 102).
Contrastes entre as teorias de Newton e Maxwell despertavam interesse entre alguns
físicos. Foi em 1905 que Albert Einstein publicou a teoria da Relatividade estrita, sobre a
eletrodinâmica dos corpos em movimento, reformulando os conceitos tradicionais de espaço e
tempo da física clássica.
Sobretudo, surgiu a famosa lei que está na base de tantos fenômenos nucleares: E=mc².
Onze anos depois, Einstein publicou a teoria da Relatividade geral superando e generalizando
a anterior.
Outro campo de pesquisa que colocou a mecânica newtoniana em cheque foi o estudo
sobre os fenômenos de interação entre a matéria e as radiações (REALE, 2006, p. 102-103).
Max Planck cunhou o termo “Quantum” para o problema do “corpo negro” (um objeto que
absorve toda energia radiante transformando em calor) a emissão de energia de um corpo negro
na variação da temperatura é “incompatível com a termodinâmica e, portanto, com a mecânica
clássica” (Ibidem, p. 104).
Não é o caso de narrar o desenvolvimento da física nos dois campos de pesquisa acima,
mas importa para esta dissertação chegar em Heisenberg com o princípio de indeterminação de
1927: a “causalidade rigorosa dos fenômenos físicos era negada pela primeira vez, em virtude
da impossibilidade de prever com exatidão o comportamento das partículas atômicas”
(ABBAGNANO, 2007, p. 538).
Desse modo, segundo Werner Heisenberg, teórico da física quântica e Nobel de física
em 1933, a física não nos fornece mais “uma imagem da natureza, mas uma imagem das nossas
relações com a natureza” (HEISENBRG apud ABBAGNANO, 2007, p. 539).
A respeito do exposto acima, a ciência de Newton ainda que confirmada pelas
observações, não era resultado delas, mas sim do nosso próprio modo de pensar, das nossas
tentativas de ordenar o que chega pelos sentidos (POPPER, 2006, p. 247-248). Uma vez que, a
física de Newton precisou ser corrigida em muitos ambientes 6 , Popper lembrou de seu
articulador na filosofia e também o corrigiu.
6 Vai além das intenções desta dissertação tratar das questões mais atuais da física como a matéria escura e a
energia escura que compõem noventa e cinco por cento do universo, mostrando como a física de Newton versa de
modo admirável para um ambiente muito restrito.
A fé de Kant na sua teoria do espaço e do tempo como um quadro de
referência intuitivo foi confirmada quando encontrou nela a chave para a solução de
um segundo problema. Este era o problema da validade newtoniana, em cuja absoluta
e inquestionável verdade Kant acreditava, à semelhança, aliás, de todos os físicos
seus contemporâneos (POPPER, 2006, p. 247).
É preciso reconhecer a genialidade de Kant em colocar o sujeito ativo no processo do
conhecimento, mas não significa sucesso ao impor leis a natureza, pois a maioria de nossas
ideias é um fracasso e são falsificadas pela experiência (Ibidem, p. 136).
A Revolução Copernicana de Kant é um “estranho misto de absurdo e verdade” (Ibidem,
p. 135). Por isso, Popper, preferiu colocar nesses termos a Revolução Copernicana: “O nosso
intelecto não extrai as suas leis da Natureza, mas tenta – com graus variáveis de sucesso – impor
à Natureza leis que livremente inventa” (Ibidem, p. 262).
Como agora sabemos, ou acreditamos saber, a teoria de Newton não
passava de uma maravilhosa conjectura, de uma aproximação espantosamente bem
conseguida. Única, na verdade, mas não como verdade divina: apenas uma invenção
única do gênio humano, que não é episteme, mas pertence ao reino da doxa (Ibidem,
p. 135).
Como “a ciência é falível, porque a ciência é humana” (POPPER, 1998b, p. 395), precisa
constantemente ser colocada à prova e testada. Todos os enunciados científicos permanecem
provisórios ou conjecturais para sempre, o ser-humano é incapaz de produzir um conhecimento
no grau de episteme (POPPER, 2007, p. 308).
Quando Popper queria explicar o seu método cientifico e sua racionalidade de forma
bem simples para seu alunos escrevia na lousa um esquema que chamou de esquema tetrádico:
P1 → TT → EE → P2
- P1: é o problema que queremos resolver.
- TT: é uma teoria para tentar resolver.
- EE: é uma tentativa para eliminar erros através da crítica.
- P2: é um novo problema que resulta de nossa critica
Com esse simples esquema Popper quis ensinar que a ciência é falível por ser ciência
humana, a tentativa crítica de solução de um problema tem mais chance de ser malsucedida,
uma teoria cientifica que passe no teste de refutações não significa que passará em ulteriores
experimentos e permanentemente luta pela sobrevivência, a busca do conhecimento é sem fim
(NOTTURNO, 2014, p. 47).
Como classificar a epistemologia popperiana? Os comentadores entenderam que sua
teoria de conhecimento foi evolucionista. Porém, talvez, como Popper considerou a
racionalidade humana de forma mais ampla do que o iluminismo-positivismo, mas por ter
entendido que a ciência se faça unicamente em ambiente empiricamente controlável: Popper
tenha sido um kantiano-evolucionista.
I.3 - Necessidade de reformas graduais
Embora, Popper tenha aparecido no cenário filosófico como um filósofo da ciência, ao
publicar em 1934, Lógica da descoberta cientifica, seus escritos posteriores de natureza sócio-
política não destoam das bases inicias de sua filosofia.
O racionalismo crítico de Popper não é apenas teórico é uma atitude de considerar que
“eu posso estar errado e vós podeis estar certos” (POPPER, 1998b, p. 232), é possível através
de argumentos críticos aprender da experiência aproximar da verdade, é uma atitude de
razoabilidade diante de problemas e dúvidas.
A crença da busca da verdade precisa de cooperação para atingir algo como a
objetividade. Deve-se considerar que todas as pessoas são uma fonte potencial de argumentação
e de informação, a modéstia intelectual permite ver no outro que ele tem possibilidade de
contribuir para o conhecimento e que as soluções para os problemas frequentemente estão
erradas.
O racionalismo crítico é uma “fé na razão” (Ibidem, p. 239), tem que haver sempre
abertura de criticar o próprio método, é possível submeter o racionalismo crítico a discussão,
mas não demonstrar o racionalismo crítico pela argumentação racional e pela experiência.
Ter fé na razão, é inclusive ter fé na razão dos outros, apesar das limitações, significa
respeito, tolerância e o rechaço ao autoritarismo. É preciso ter a “consciência das próprias
limitações, a modéstia intelectual dos que sabem quantas vezes erram e quanto dependem dos
outros” (Ibidem, p. 235). A razão é a unidade racional humana e os problemas devem ser
resolvidos com uma razão crítica e autocritica, valorizando as opiniões dos outros, com
objetividade.
O racionalismo critico não ficou limitado a teoria do conhecimento, é uma atitude diante
de problemas, ele é comportamental: um modo próprio de se posicionar frente à ciência, à
filosofia, à sociedade e à vida. Se podemos desenvolver o conhecimento cientifico, também
podemos avançar e reformar um modelo econômico para melhorar a qualidade de vida das
pessoas.
A mudança metodológica popperiana refletiu uma atitude ética impregnada de
humanidade: teoria do conhecimento, política e ética estão entrelaçados na sociedade aberta,
na busca de um novo humanismo, a educação de valores e de atitudes no ambiente individual
e social.
O exposto permite refletir sobre A sociedade aberta e seus inimigos, foi apresentado de
forma breve o contexto histórico de produção da obra e foi desenvolvido a epistemologia que
a permeia, no próximo capítulo será tratado o que a sociedade aberta não é: devido a influência
do historicismo, do coletivismo e do irracionalismo. No final do segundo capítulo será
apresentado os valores que permeiam a sociedade aberta de Popper com Demócrito, Péricles,
Protágoras, Jesus, eminentemente Sócrates.
II – Amigos e inimigos da sociedade aberta
“Nós somos todos falíveis, nós somos
todos propensos ao erro; de fato nós
estamos cometendo erros a todo o
momento” (POPPER, 2008, p. 333).
II.1 - Inimigos da sociedade aberta na antiguidade
A sociedade fechada é a sociedade tribal com sua submissão às forças mágicas,
deixando presa a faculdade crítica do homem. Sociedade aberta e sociedade fechada indicam
uma distinção racionalista crítica:
A sociedade fechada se acha caracterizada pela crença nos tabus mágicos,
enquanto a sociedade aberta é aquela em que os homens aprenderam, até certa
extensão, a ser críticos com relação a esses tabus, baseando suas decisões na
autoridade de sua própria inteligência (depois da devida análise) (POPPER, 1998a,
p. 219 e 220).
Além do despertar da crítica, outro aspecto fundamental da distinção das duas
sociedades foram as tentativas de entender as leis do desenvolvimento histórico para ser capaz
de predizer o futuro, proporcionando uma suposta base sólida para a política e traçando quais
ações políticas terão êxito e quais não: é o que Popper chamou de historicismo. Desde a
antiguidade até os seus dias, tem sido o grande inimigo da sociedade aberta.
O problema dessa concepção é submeter o destino do homem a um fim inevitável: povo
escolhido por Deus7, lei de desenvolvimento econômico, a raça triunfante, a classe escolhida.
Tais teorias são deterministas, levando a um desfecho bem sucedido, que não passam de
pretenciosas profecias históricas (Ibidem, p. 22-24).
Popper identificou três filósofos: Heráclito, Platão e Aristóteles, cujo pensamento
considerou expoentes da sociedade fechada na antiguidade. Não foi intenção de Popper
apresentar toda a filosofia desses pensadores, muito menos será desta dissertação, mas de
7 Popper afirmou que não se trata de uma crítica a todas as religiões (POPPER, 1998a, p. 23), pois o historicismo
(otimista) conduz ao triunfo, enquanto o sucesso mundano da Igreja não é um argumento em favor do Cristianismo
e sim falta de fé (POPPER, 1998b, p. 282).
sublinhar o historicismo, o coletivismo e o irracionalismo com suas repercussões na filosofia
daqueles que preconizaram a sociedade fechada na modernidade, que ao longo deste capítulo
serão abordados por impedirem as reformas da sociedade aberta.
II.1.1 – A primeira ideia historicista da mudança e do destino
Heráclito foi o filósofo que descobriu a ideia de mudança, tudo está em fluxo e nada
está em repouso, rompendo com a estabilidade ou equilíbrio de uma estrutura
fundamentalmente estática. Os problemas éticos-políticos de seu tempo, uma época de
revolução social em que as aristocracias tribais gregas começaram a ceder espaço a força da
nova democracia, contribuiu para o seu pensamento de um mundo em mutação (POPPER,
1998a, p. 26).
A filosofia grega posterior: Parmênides, Demócrito, Platão e Aristóteles tiveram que
resolver as interpelações do mundo em mutação de Heráclito. Ele compreendeu o mundo em
devir, não linear, através da guerra de todas as coisas: o devir é pautado pela luta entre os
contrários. O cosmo nasce do fogo e pelo fogo será consumido, sucessivamente em períodos
determinados.
A crítica que Popper fez a Heráclito foi de combinar mudança com o historicismo da lei
do destino (Ibidem, p. 27), todas as coisas materiais são processos do fogo transformado e
desenvolvem-se a partir de uma lei definida (sua medida), uma lei inexorável, bem como as leis
históricas ou evolucionárias dos historicistas modernos: é “surpreendente encontrar nesses
antigos fragmentos, que datam de cerca do ano 500 antes de Cristo, tanto do que é característico
das modernas tendências historicistas” (Ibidem, p. 31).
A história para Heráclito é cíclica, para Hegel e Marx é dialética e para Augusto Comte
é linear, enquanto para Popper a história não vai para lugar algum, dizer que a história possui
uma direção ou terá um desfecho é um dado de fé.
Heráclito desenvolveu a “primeira ideologia antidemocrática e a primeira filosofia
historicista da mudança e do destino (...) foi o primeiro inimigo consciente da sociedade aberta”
(Ibidem, p. 204), exerceu influência sobre Platão: “o estado melhor, depende amplamente de
seu historicismo” (Ibidem, p. 39).
Na antiguidade sobre Platão e na modernidade sobre Hegel, Popper elaborou as críticas
mais duras, não com a intenção de depreciá-los, mas por ter interpretado que suas filosofias
foram as grandes difusoras do profetismo histórico como método cientifico e da ética tribal (o
bem é o bem do meu grupo), impedindo de abordar os problemas com razoabilidade e
objetividade8.
II.1.2 – O estado de Platão
Platão viveu num período de guerra e de luta política mais instável do que o de Heráclito,
Atenas passou por um período de tirania e mais tarde por uma democracia, Atenas envolveu-se
em uma guerra dura contra Esparta. Platão nasceu ao início dessa guerra e quando ela terminou
tinha por volta de vinte e cinco anos.
A queda da cidade de Atenas culminou com guerra civil, fome e um regime de terror
conhecido como o governo dos Trinta Tiranos, dois deles eram tios de Platão, que perderam a
vida na tentativa falha de manter seu regime contra os democratas.
O sistema democrático não significou paz para Platão, pois seu amado mestre, Sócrates,
foi julgado e condenado, o que pode explicar sua desconfiança com a democracia (liberdade
levada ao excesso) e com a política praticada em Atenas. O próprio Platão correu riscos e junto
com outros companheiros de Sócrates fugiu de Atenas.
II.1.2.1 – Uma introdução a dura crítica de Popper a Platão
Em sua última obra chamada as Leis, Platão mais maduro, elaborou algumas mudanças
de sua visão de estado em comparação com A República, dando prioridade as leis e a busca pela
autoridade exercida com justa medida, refletindo sobre como os homens realmente são e não
como deveriam ser.
Popper leu as duas obras citadas e concordou que as Leis em geral Platão foi menos
hostil a democracia, mas como os funcionários políticos deviam ser escolhidos pelos membros
da “classe” governante e as mudanças importantes das leis do estado foram proibidas, em sua
opinião não significou muita diferença, identificando a tendência política platônica de ser pró-
espartana (POPPER, 1998a, p. 239).
No estado justo de Platão não existiu a tensão se a soberania compete à lei ou ao homem
de estado, porque ele pensou que a lei é o modo pelo qual o homem de estado perfeito realiza
no estado justo o Bem contemplado, porém no estado real seria muito difícil encontrar tais
homens, logo a soberania cabe à lei, tornando-se necessário a elaboração de constituição.
8 A partir do item deste capítulo, II.2.1 – Idealismo absoluto, ficará mais claro as relações que Popper traçou entre
Heráclito e Hegel.
Apesar da soberania das leis em sua última obra ter contribuído para o estado de direito, Platão
não retratou o projeto A República, pois representava um ideal.
Talvez, ajude a compreender a interpretação de Popper ao fazer não apenas uma crítica,
mas um “ataque” a Platão a uma de suas tradições. Ao contrário, do Cristianismo de confissão
católica, apesar de ter visto e excluído diversas incongruências de Platão e Aristóteles com a fé
cristã, o esforço, com exceções, foi de síntese; a patrística e a escolástica atestam isso.
O início do protestantismo, durante o Renascimento, focou o conhecimento derivado da
Sagrada Escritura e rechaçou a escolástica (consequentemente ao menos parte da filosofia
grega), na modernidade foi mais aberto a física moderna e na contemporaneidade interessou-se
muito pelas técnicas modernas de interpretação de textos aplicando a Bíblia.
Mesmo, que, a partir do século XIX a patrística tenha levado diversas interpelações a
doutrina protestante, a filosofia grega nunca teve muita força para influenciar a teologia
protestante, de modo que Popper aproximando-se do protestantismo não teve em sua herança o
esforço de fazer sínteses com Platão e Aristóteles, sentindo-se “livre” para criticá-los, inclusive
de considerar esses textos anticristãos.
É verdade que Popper não rechaçou toda a filosofia grega, mas ao acentuar as diferenças
entre Platão e Sócrates correu o risco de criar uma dicotomia não existente e ao buscar
elementos da democracia moderna nos textos platônicos correu o risco de uma crítica
anacrônica, mesmo considerando a rudimentar democracia ateniense. Popper admitiu exageros,
porque escreveu um livro de guerra, mas nos aspectos fundamentais rechaçou essas críticas e
procurou demonstrar suas supostas inconsistências.
II.1.2.2 – Estado totalitário
Platão e Heráclito sofreram muito com a instabilidade política e a insegurança de suas
épocas, ambos eram de sangue real e no caso de Platão interessado pelos negócios políticos.
Assim como Heráclito, Platão fez uma síntese de sua experiência social, formulando uma lei
de desenvolvimento histórico: “toda mudança social é corrupção, ou decadência, ou
degeneração” (POPPER, 1998a, p. 33), apesar de que é possível ao ser-humano romper a
inclinação histórica de decadência através da moral e do conhecimento.
Platão acreditou que cada espécie de coisa ordinária ou decadente corresponde uma
coisa perfeita, que não decai. Criar a crença nas coisas perfeitas e imutáveis ficou conhecido
como Teoria das Ideias. Como cópia de uma ideia existe no mundo sensível as mudanças do
mundo em fluxo, imperfeito, sujeito a corrupção.
Sua filosofia política é criada para eliminar qualquer germe de desunião e decadência
(com diversas semelhanças do estado espartano). Popper elencou quatro características
principais do programa político de Platão: a estrita divisão de “classes”, o destino do estado
identifica-se com o da “classe” dirigente, há censura de todas as atividades intelectuais, o estado
deve ser autossuficiente (POPPER, 1998a, p. 100 e 101).
Segundo Popper, a descrição que Platão fez da democracia em A República é hostil e
injusta a vida política de Atenas e do credo democrático que Péricles havia formulado: os
democratas são descritos como libertinos e miseráveis, como insolentes, sem lei e sem
vergonha, como implacáveis e terríveis bestas-feras, satisfazendo cada capricho, vivendo só
para o prazer e para os desejos desnecessários e imundos (Ibidem, p. 56).
Popper sabendo que iria ser interrogado: se Platão deu ênfase as virtudes como a justiça,
a sabedoria, a alegria, a bondade, a beleza não indica que sua filosofia política está distante do
autoritarismo e superou o historicismo? Popper refletiu sobre o que significam essas virtudes
para Platão: o “critério de moralidade é o interesse do estado” (Ibidem, p. 122), isto é, a moral
de Platão é utilitária a manutenção do poder da “classe” dirigente.
Os deficientes físicos e mentais não são uteis para o estado: aqueles “cuja saúde física
for má, deixareis que morram. E os que tenham natureza degenerada e alma incurável,
realmente matareis” (PLATÃO Apud POPPER, 1998b, p. 376), proceder dessa forma é melhor
“tanto para eles como para o estado” (Idem). Trata-se de uma moral tribal é “bom o que é do
interesse de meu grupo, ou de minha tribo, ou de meu estado” (POPPER, 1998a, p. 122).
A educação platônica possui a finalidade política da estabilização do estado através da
ginástica (torna os homens mais violentos) e da música (amplo sentido incluindo todos os
estudos literários tornando os homens mais suaves), ao proporcionar a mescla de um elemento
violento e um gentil para a alta “classe”, para evitar alguns excessos ocorridos em Esparta.
No estado de Platão, a educação é um monopólio de classe. É verdade que
na República a posse de dinheiro não é uma chave para a educação superior. Mas
isso não tem a menor importância. O ponto importante é que só os membros da classe
dirigente são educados (Ibidem, p. 292).
Para Popper, o que Platão entendeu por justo é o que é bom para o estado, o que é justo
a “classe” dirigente na manutenção de seu poder e de sua dominação, muito “semelhante à
moderna definição totalitária: direito é tudo quanto for útil ao poder de minha nação, de minha
classe ou de meu partido.” (POPPER, 1998a, p. 135).
Temos três classes na cidade; não devo considerar que qualquer dessas
conspirações ou mudanças de uma classe para outra seja um grande crime contra a
cidade, devendo com razão ser denunciado com a extrema vileza? Então, isto é
injustiça. E, inversamente, diremos que, quando cada classe na cidade se limita a
suas próprias funções, tanto a dos negociantes como a dos auxiliares e dos guardiães,
então teremos justiça (PLATÃO Apud POPPER, 1998a, p. 121).
De acordo com Popper, Platão “louva a lei dórica que proíbe a qualquer jovem indagar
se leis tais são justas e leis quais são injustas, proclamando todas unanimemente justas”.
(POPPER, 1998a, p. 292). Só os anciãos podem criticar as leis, mas só quando não estiver
presente um jovem.
O controle estatal é extremamente rígido e as artes não ficam de fora: deve-se ficar
prevenido contra mudanças para novas formas de música9; isso põe tudo em perigo, porque
“qualquer mudança no estilo de música sempre leva a uma mudança nas mais importantes
instituições de todo o estado” (PLATÃO Apud POPPER, 1998a, p. 250). Platão “tentou
apresentar como ‘justo’ seu totalitário regime de classe” (POPPER, 1998a, p. 106).
Apesar das numerosas críticas que Popper fez a proposta de estado platônico, ele
ressaltou que nos diálogos de Platão há muitos sentimentos humanitários especialmente nos
escritos anteriores A República, como a doutrina de Sócrates, no Górgias, de que é pior praticar
a injustiça do que sofrê-la.
Popper interpretou esse momento mais “humano” de Platão por ainda estar sob a
influência de Sócrates (Ibidem, p. 119 e 120). Porém, mesmo com “tais argumentos, acredito
que o programa político de Platão, longe de ser superiormente moral ao totalitarismo, identifica-
se fundamentalmente com ele” (Ibidem, p. 101).
Popper deu, basicamente, três motivos para o silêncio dos filósofos e educadores diante
do estado totalitário de Platão: o próprio título A República trouxe a mente que o autor fosse
um liberal, mas “é simplesmente a forma de traduzir a versão latina de uma palavra grega
(politeia) que não tem associações desse tipo e cuja tradução adequada seria ‘A constituição’
ou ‘A cidade-estado’ ou ‘O estado’” (Ibidem, p. 102), contribuindo para a “convicção geral de
que Platão não podia ter sido um reacionário” (Ibidem, p. 103); a vaidade gerada pela cidade
melhor ser governada por um filósofo e por Platão ser visto como um cristão anterior a Cristo
(pela síntese feita na patrística) (POPPER, 1998b, p. 33).
9 Em Esparta, Timóteo teve sua lira confiscada por ter acrescentado quatro cordas.
II.1.2.3 – Como não ter luta de “classes” no estado justo
Popper interpretou que o estado de Platão possui muitas características semelhantes a
do estado espartano, “o estado melhor se baseia nas mais rígidas distinções de ‘classe’. É um
estado de castas.” (POPPER, 1998a, p. 60). Platão evitou a luta de “classes” dando à “classe”
governante uma superioridade que não podia ser desafiada. Assim, como em Esparta só a
“classe” governante possui armas, só ela teve direitos políticos, só ela recebeu educação.
Vale ressaltar que Platão temia que os trabalhadores fossem muito maltratadas pela
“classe” dominante, por isso deve-se evitar a exploração econômica excessiva dos governados,
bem como a demasiada violência (Idem).
Em seu estado justo Platão distinguiu três “classes”: os guardiães, os guerreiros e os
trabalhadores. Platão fez uma pergunta que mostra o que ele pensava dos trabalhadores: “Não
há criados que não possuem uma fagulha de inteligência e são indignos de admissão na
comunidade, mas que têm corpos fortes para o trabalho duro?” (PLATÃO Apud POPPER,
1998a, p. 61). Os “trabalhadores, comerciantes, etc. não lhe interessam absolutamente; não
passam de gado humano cuja única função é prover às necessidades materiais da classe
dirigente” (POPPER, 1998a, p. 61).
A “classe” governante em A República é a única a ter poder político, o único controle
dos governantes é o autocontrole, o problema de preservar o estado “reduz-se ao de preservar
a unidade interna da classe dirigente” (Ibidem, p. 62), isso é feito através da eliminação dos
interesses econômicos que poderiam causar desunião aos governantes, essa “abstinência
econômica é conseguida e controlada pela introdução do ‘comunismo’, isto é, pela abolição da
propriedade privada, especialmente a dos metais preciosos (a posse de metais preciosos era
proibida em Esparta)” (Idem).
Como a propriedade é comum “deve também haver uma posse comum de mulheres e
filhos. Nenhum membro da classe dirigente deve ser capaz de identificar seus filhos10, ou seus
pais. A família deve ser destruída, ou antes, estendida para cobrir toda a casta guerreira” (Idem).
Fidelidade entre as famílias poderiam causar desunião e brigas11.
O “comunismo” da “classe” dirigente do estado justo deriva da lei sociológica de
mudança, Platão viu ser condição necessária a estabilidade política. Porém, para que a “classe”
10 Em A República Platão afirma que as crianças de ambos os sexos, com segurança, devem ser levadas ao campo
de batalha “para provar o gosto de sangue” (PLATÃO Apud POPPER, 1998a, p. 68).
11 Em Esparta também havia restrições a vida privada das famílias.
governante possa realmente se sentir unida é preciso acentuar o abismo entre governantes e
governados: os governados são uma raça diferente e inferior.
II.1.2.4 – Racismo, eugenia e escravidão no estado justo
Platão criou um mito para segregar as “classes” no estado justo: Deus colocou ouro
naqueles que são capazes de governar, prata nos auxiliares, ferro e cobre no camponês e nas
outras “classes” produtoras. Esses metais são hereditários, são características raciais.
Com hesitação Platão afirmou em A República que não pode haver mistura entre as
“classes”, na primeira vez que introduziu o tema tratou como se fosse possível a ascensão das
camadas inferiores às superiores12, mas “em 434b/d e ainda mais explicitamente em 547a é
desprezada esta possibilidade, declarando-se impura, e mesmo fatal para o estado, qualquer
mescla de metais” (POPPER, 1998a, p. 245). Qualquer mistura ou mudança de “classe” é um
grave crime contra a cidade.
A “raça dos guardiães deve ser mantida pura, diz Platão (em defesa do infanticídio)”
(Ibidem, p. 65), concordando com a prática em Esparta por motivos eugênicos, ao contrário do
que sucedia na Atenas de Péricles. Como as raças dos animais são criadas deve-se aplicar os
mesmos princípios ao ser-humano.
A verdadeira felicidade realiza-se por meio da justiça: conservando cada qual o seu
lugar, o “governante deve encontrar felicidade em governar, o guerreiro em guerrear e,
podemos inferir, o escravo em ser escravizado” (Ibidem, p. 184).
Popper lembrou que Platão evitou chamar os escravos com esse nome preferindo
sustentadores, empregados, para Popper trata-se de motivos propagandísticos e em nenhuma
parte de sua obra encontra-se a sugestão que a escravidão seja mitigada ou abolida (Ibidem, p.
61). Pelo contrário, “Platão só tem desprezo para com aqueles democratas atenienses ‘de
coração terno’, que sustentavam o movimento abolicionista” (Idem).
Os governantes naturais governam os escravos naturais, é parte da ideia historicista de
que o estado é cópia de uma Ideia ou de sua verdadeira natureza. Nesses termos, Platão
justificou que todos os bárbaros eram inimigos por natureza e que o justo era fazer-lhes guerra
para subjuga-los e convertê-los em escravos (Ibidem, p. 258).
É provável que as ideias raciais de Platão baseiem-se em antigas tradições,
especialmente em vista do fato de terem desempenhado tal papel em Esparta (Ibidem, p. 252).
12 Desde que nas classes baixas “os filhos nasçam com mescla de ouro e prata” (PLATÃO Apud POPPER, 1998a,
p. 245), isto significa, com o sangue e a virtude de uma classe superior.
Porém, Popper não concordou com a afirmação de que Platão não teve escolha, pois em seu
tempo pensava-se assim, já que “Platão atacou violentamente o movimento ateniense contra a
escravidão, insistindo nos direitos legais da propriedade, quando essa propriedade era um
escravo” (POPPER, 1998a, p. 245).
Uma das grandes vitórias da democracia ateniense foi a de ter tratado o escravo com
humanidade, apesar da desumana propaganda de Platão e de Aristóteles, como o próprio Platão
testemunhou a democracia ateniense chegou perto de abolir a escravidão (Ibidem, p. 57).
II.1.2.5 – A pergunta venenosa: “Quem deve governar?”
No centro de sua teoria política, Platão fez a pergunta: quem deve governar? Vale
lembrar que segundo sua ideia historicista os governantes naturais governam e os escravos
naturais são escravizados.
A resposta dessa pergunta é: “os sábios deverão dirigir e governar, e os ignorantes
deverão segui-los” (PLATÃO Apud Popper, 1998a, p. 135), quem deve governar são aqueles
que conhecem a verdade e que sabem o que é o bem, isto é, os filósofos.
Na opinião de Popper, Platão envenenou toda a filosofia política com esta pergunta,
porque sucessivamente ao longo da história ela foi sendo respondida de acordo com uma ética
tribal: quem deve governar? Os aristocratas, a realeza, os religiosos, os militares, uma raça, um
partido, os socialistas, os capitalistas, os conservadores, os liberais.
Uma vez feita a pergunta “quem deve governar?” é difícil evitar as respostas tais como
“o melhor”, “o mais sábio”, “o governante nato”, “aquele que conhece a arte de governar”, “o
povo”, “os trabalhadores industriais”, pois quem irá advogar o governo “do pior”, “do mais
estúpido” ou “do escravo nato”? (Popper, 1998a, p. 136).
A pergunta platônica é irracional, pois ela estimulou a procurar o que não existe: um
indivíduo, um grupo ou uma “classe” que tenha vindo ao mundo com o atributo da soberania
sobre os demais (Ibidem, p. 141). Pelo contrário, racional é:
Substituir a pergunta “Quem deve governar?” por esta nova: Como
poderemos organizar as instituições políticas de modo tal que maus ou incompetentes
governantes sejam impedidos de causar demasiado dano? Os que acreditam que a
primeira indagação é fundamental tacitamente admitem que o poder político é
‘essencialmente’ livre de controle. Admitem que alguém deve assumir o poder, seja
um indivíduo, ou um corpo coletivo, tal como uma classe. E admitem que aquele que
detém o poder pode, quase inteiramente, fazer o que lhe apraz; pode, especialmente,
reforçar seu poder, aproximando-o mais, portanto, de um poder político ilimitado e
incontrolado (Popper, 1998a, p. 136 e 137).
Desse modo, na filosofia política de Popper a pergunta fundamental do democrata é
“como controlar quem governa?”. Ainda é necessário que as instituições políticas estejam
amadurecidas e fortalecidas para que seja possível tirar uma mau governo sem derramamento
de sangue (Ibidem, p. 140).
Por isso, a democracia é melhor do que as outras formas de governo, pois ela permite
que na infelicidade de um governo mau o mesmo possa ser retirado ou ao menos esse governo
possui um tempo determinado com a possibilidade de escolher outro em seu lugar na próxima
eleição:
O que se pode dizer, entretanto, é que a adoção do princípio democrático traz
implícita a convicção de que mesmo a aceitação de uma política má numa democracia
(desde que perdure a possibilidade de efetuar pacificamente a mudança do governo)
é preferível à subjugação por uma tirania, por sábia ou benévola que esta seja.
Encarada de tal ângulo, a teoria da democracia não se baseia no princípio de que a
maioria deve governar, mas, antes, no de que diversos métodos igualitários para o
controle democrático, tais como o sufrágio universal e o governo representativo,
devem ser considerados como simplesmente salvaguardas institucionais, de eficácia
comprovada pela experiência, contra a tirania, repudiada de modo geral como forma
de governo. E estas instituições devem ser susceptíveis de aperfeiçoamento. Quem
aceita o princípio da democracia neste sentido não se vê, consequentemente, forçado
a encarar o resultado de um voto democrático como uma expressão autorizada do
que é justo. Embora aceite uma decisão da maioria, a fim de que possam funcionar
as instituições democráticas, estará livre para combatê-la por meios democráticos e
para trabalhar por sua revisão. (Ibidem, p. 140-141).
Popper colocou a pergunta de ter que viver um dia em que o voto da maioria destrua as
instituições democráticas? Sua resposta é que esta triste experiência nos mostra que não existe
método perfeito para evitar a tirania, mas não deve enfraquecer a decisão de combater a tirania
e demonstrar como inconsistente sua teoria (Ibidem, p. 141).
Não é necessário dizer que a crítica de Popper a Platão levantou muitas polêmicas e não
será esta dissertação que a esgotará. Trata-se de uma crítica anacrônica? Dentro das limitações
da democracia grega de acordo com Popper: Sólon, Clístenes, Demócrito, Péricles, entre outros,
mostram que não.
Talvez, a interpretação de Bertrand Russell, sobre as questões levantadas acima possa
contribuir para o debate: Popper fez um “ataque a Platão, embora não seja ortodoxo, está
inteiramente justificado em minha opinião” (RUSSELL Apud POPPER, 1998a, p. 01). Para
outros Popper deveria ter valorizado mais o Platão das Leis, enquanto para diversos
especialistas de Platão a crítica de Popper foi anacrônica.
II.1.3 – “Igualdade para os iguais”
Com menos intensidade Aristóteles respaldou diversas ideias platônicas sobre a
sociedade, por isso para Popper, apesar de reconhecer os méritos de Aristóteles, como fundador
da lógica e de estar na origem das lógicas posteriores que tem grande importância para o
desenvolvimento da ciência (POPPER, 1998a, p. 313), o colocou como expoente da sociedade
fechada, pois não é possível afirmar que haja um real desenvolvimento pelo crescimento
cientifico em detrimento dos direitos humanos.
Aristóteles não só admirava os ricos, mas como Platão foi racista: “Os de nobre
nascimento são cidadãos em sentido mais verdadeiro que os de baixa extração... Aqueles que
provêm de melhores ancestrais são capazes de tornar-se melhores homens, pois a nobreza é a
excelência da raça” (ARISTÓTELES Apud POPPER, 1998b, p. 296).
Da mesma forma como Platão, nas Leis, sintetizou sua réplica ao igualitarismo na
fórmula: o tratamento igual dos desiguais engendra a iniquidade, isto foi desenvolvido por
Aristóteles na fórmula: igualdade para os iguais, desigualdade para os desiguais (POPPER,
1998a, p. 111).
Segundo Popper, Aristóteles foi outro adversário do igualitarismo, sob a influência do
naturalismo de Platão, elaborou, entre outras coisas, a teoria de que certos homens por natureza
nasceram para ser escravos e são desprovidos da faculdade do raciocínio, enquanto as mulheres
livres possuem em grau limitadíssimo:
Alguns homens são livres por natureza e, outros, escravos, e para estes últimos
a escravidão é tão oportuna quanto justa... Um homem que por natureza não se
pertence a si mesmo, mas a outro, é, por natureza, escravo... Aos helenos não agrada
chamarem-se escravos, mas limitam esse termo aos bárbaros... O escravo é
totalmente desprovido de qualquer faculdade de raciocínio, ao passo que as mulheres
livres apenas a têm em pequeníssimo grau (POPPER, 1998b, p. 8-9).
II.2 - Inimigos da sociedade aberta na modernidade
Para Popper o historicismo despontou como uma resposta em tempos de grandes
mudanças sociais e de exploração que um grupo social tenha sofrido: na antiguidade lembrou
o exílio imposto pela Babilônia aos judeus e a mudança da sociedade tribal grega, na
modernidade as ideias historicistas nasceram do tsunami provocado pela revolução industrial e
pelas revoluções políticas dos Estados Unidos e da França para o resto do mundo.
Popper identificou Hegel como o elo entre o historicismo, o coletivismo e o
irracionalismo antigo e moderno:
Na moderna Europa, as ideias historicistas foram revividas durante a
revolução industrial, e especialmente pelo impacto das revoluções políticas na
América e na França. Parece mais do que simples coincidência o fato de Hegel, que
adotou tanto do pensamento de Heráclito e o transmitiu a todos os modernos
movimentos historicistas, ter sido um porta-voz da reação contra a Revolução
Francesa (POPPER, 1998a, p. 31).
Hegel, junto com Schelling e Holderlin, participou da cerimônia que celebrou os ideias
da Revolução Francesa plantando a árvore da liberdade, mas o fervoroso espírito revolucionário
mudou, não devido a violência, mas pelo prussianismo.
O país que definitivamente acolheu Popper, o Reino Unido, se libertou do absolutismo
monárquico, em 1689 com a Revolução Gloriosa, também chamada de revolução sem sangue,
seu procedimento foi muito diferente do que no século posterior aconteceu na França, mas foi
muito bem sucedida em livrar os britânicos (incluindo os irlandeses) do despotismo
monárquico, lançando as bases dos princípios liberais e com o Parlamento fortalecido13.
O Reino Unido também foi sacudido pela fase do terror da revolução na França e teve
no filósofo e político Edmund Burke (1729 – 1797), através de sua obra Reflexões sobre a
Revolução na França, repensar a Revolução Francesa salientando a falibilidade humana e por
isso a importância do saber acumulado das tradições e instituições: deve-se construir e melhorar
o imperfeito que existe e não o ideal que não existe.
Sua defesa da constituição inglesa em detrimento do método revolucionário dos
jacobinos foi uma barreira a realização dessa revolução no Reino Unido, seu pensamento é a
gênese da política moderna gradualmente reformadora, do estado de direito, da compreensão
13 O Parlamento inglês remonta ao século XIII, marcado por tantas disputas com a coroa, até a Revolução Gloriosa
que consolidou a soberania do parlamento.
da violência latente do homem em detrimento ao mito do bom selvagem (Rousseau), da
liberdade na ordem.
A formação de Popper na Áustria e depois no Reino Unido permite entender os
instrumentais que possibilitaram ele não seguir na esteira do idealismo germânico e do
materialismo histórico-dialético, salientando a importância do saber falível e provisório,
elaborando novos pensamentos que influenciaram a epistemologia e a filosofia política.
Passando do campo político-econômico para a filosofia moderna, o iluminismo-
positivismo consolidou a Revolução Industrial e o primado da ciência de Newton sustentando
ideologicamente a estabilidade política na Europa em detrimento de revoluções: “Comte, que
desenvolveu na França uma filosofia historicista não muito diferente da versão prussiana de
Hegel, tratou, como este, de conter a maré revolucionária” (POPPER, 1998a, p. 226).
A famosa lei historicista dos três estágios de Comte: teologia (infância), metafísica e
filosofia (juventude), ciência de Newton (maturidade). Ao contrário, para Popper, a ciência de
Newton não significou o homem maduro, pois em posse da ciência de Newton a humanidade
padeceu as maiores barbáries com as duas grandes guerras mundiais do século XX, de modo
que a ciência de Newton e a ciência de Einstein, apesar de serem grandes conquistas da
humanidade, não são o critério fundamental que determina a maturidade humana; mas sim o
humanitarismo e a razoabilidade, a igualdade e a liberdade, de modo que em sua avaliação o
homem do século XX “está ainda em sua infância” (POPPER Apud JARVIE, 1999, p. 65).
A origem do historicismo de Comte, em considerar a ciência de Newton o ápice da
humanidade, encontra-se nos filósofos ilustrados quando entenderam a racionalidade com
aquilo que é limitado e controlado pela experiência, o que Popper considerou uma interpretação
que na verdade estreitou a racionalidade humana.
A maçonaria foi um dos veículos mais eficazes de propagação dessa racionalidade,
fundada em 1717 na Inglaterra, palco da revolução industrial, seus expoentes como Voltaire e
Diderot (pela franco-maçonaria) através das lojas, enciclopédias e academias estabilizaram
ideologicamente a Europa moderna ao mesmo tempo que expulsaram, ao menos do Ocidente a
maré revolucionária sob a filosofia de Marx14.
14 Reale apresentou alguns expoentes da maçonaria e sua grande força para propagar o iluminismo e o primado de
Newton (REALE, 2005b, p. 219 e 228), fundamentou o positivismo através de dois alicerces: a revolução industrial
e o primado da ciência (Newton), citando o marxismo como contraponto a revolução industrial e seus males
(REALE, 2007, p. 287-289). Elaborei esse adendo, pois Popper viu em Hegel uma filosofia serva do prussianismo,
mas quanto ao iluminismo-positivismo Popper não viu interesse institucional (apenas no cruel capitalismo
irrestrito do séc. XIX), a interpretação da literatura marxista põe toda a conta na burguesia e estranhamente não vê
a maçonaria (ao menos a inglesa, a franco e norte-americana) na moldagem do mundo liberal.
De acordo com Popper, o misticismo-metafísico da dialética hegeliana (Popper, 1998b,
p. 69) não forneceu uma argumentação racional para a epistemologia e para a filosofia política,
como será apresentado abaixo foi suporte ideológico de ditaduras e inimiga da sociedade aberta,
inimiga de reformas graduais.
Na modernidade, Popper identificou Hegel como um germe das ditaduras modernas
(POPPER, 1998b, p. 29) e como Marx bebeu dessa água, apesar de suas boas intenções em
combater o “cruel” capitalismo irrestrito, elaborou também uma filosofia historicista,
coletivista e determinista.
II.2.1 – Idealismo absoluto
Na interpretação de Popper não se pode compreender parte importante da filosofia
moderna sem Hegel, nas páginas seguintes será mostrado a crítica de Popper a sua racionalidade
totalitária (panlogismo absolutista).
Quando Hegel interpretou a totalidade dos fatos e da história através da identidade
panlogística: real é racional, qualquer coisa que exista não está fora do absoluto, mas sim é um
movimento dele, identificou a razão com o real, consequentemente segundo Popper o real com
o poder, abrindo caminho ao historicismo e à ideologia totalitária.
Desses conceitos, entre outros, o totalitarismo político buscou armas para sua
autolegitimação. Sem dúvida, houve inúmeros debates, sobre a tensão do abuso do estado
totalitário em extrair esses recursos de Hegel e o amplo material que se presta a tal abuso. Esta
dissertação não tem a pretensão de esgotar o debate, mas sim de apresentar a interpretação feita
por Popper que contém uma dura crítica da influência de Hegel na modernidade, como inimigo
da sociedade aberta e de reformas graduais.
Popper foi muito crítico dos regimes totalitários nazistas e comunistas, outros governos
citados como inimigos da sociedade aberta foram o fascista e o absolutismo prussiano. Ele
refletiu sobre as influências de Hegel e Haeckel no fascismo, rapidamente tratou de Haeckel e
extensivamente de Hegel, pois a influência do filósofo alemão, segundo sua análise, contribuiu
para o totalitarismo político.
Nas páginas seguintes será mostrada a crítica a dialética e ao historicismo de Hegel,
depois a filosofia da identidade a relacionando com o prussianismo e os estados totalitários. De
acordo com Popper, a “fórmula da fermentação fascista é em todos os países a mesma: Hegel,
mais uma pitada de materialismo do século 19 (especialmente do darwinismo na forma algo
crua que lhe foi dada por Haeckel)” (POPPER, 1998b, p. 68).
O elemento “cientifico” do racismo moderno, Popper rastreou em Haeckel: com a leitura
de A origem das espécies traduzida para o alemão em 1860, Ernst Haeckel tornou-se um dos
grandes difusores do darwinismo na Alemanha, sob sua interpretação da superioridade racial
do branco europeu, não só para os intelectuais nas universidades, mas também para o
trabalhador através de livros populares.
Haeckel promoveu um concurso em 1900 sobre o que podemos aprender com o
darwinismo a respeito do desenvolvimento de um estado, o primeiro prêmio foi dado a obra
racista de W. Schallmeyer. Popper viu relação entre esse racismo materialista, apesar da origem
muito diferente, com o naturalismo de Platão: como salvar as classes superiores da
degeneração? Através da segregação racial e da eugenia.
Entretanto, para Popper “a fórmula do racismo moderno não é Hegel + Platão e sim
Hegel + Haeckel” (Ibidem, p. 69).
A fama de Hegel foi elaborada por aqueles que preferem rápida iniciação nos mais
profundos segredos deste mundo, a exigente laboriosidade da ciência decepciona a sua falta de
capacidade de desvendar todos os mistérios: a lógica de Hegel teve a pretensão de compreender
o todo, inclusive Deus antes da criação, nada daria tão espetacular aspecto cientifico do que a
dialética de Hegel, o misterioso raciocínio15 que substituiu a “estéril” lógica formal.
Segundo Schopenhauer o sucesso de Hegel marcou a “era da desonestidade” (idealismo
germânico), de acordo com o historiador Konrad Heiden a “era da irresponsabilidade” em
caracterização ao totalitarismo moderno, primeiro uma irresponsabilidade intelectual e depois
a irresponsabilidade moral (Ibidem, p. 34).
No sistema de Hegel, como no de Heráclito, tudo está em fluxo, mas esse movimento
não é decadência, o historicismo de Hegel é otimista, suas essências ou Espirito, como as Almas
de Platão, movem-se por si mesmas, desenvolvem-se por si mesmas, impelem-se na direção de
uma “causa final” aristotélica, como prefere Hegel, na direção de uma causa final autorealizante
e autorealizada em si mesma.
É o que Hegel chamou de Ideia Absoluta ou a Ideia (encerrando o Belo, a Cognição, o
Bem, o universo cientificamente contemplado). A lei geral do desenvolvimento não é de um
progresso simples e direto, mas de um progresso dialético.
Para Hegel, como um essencialista o conhecimento ou a compreensão do estado
significou o conhecimento de sua essência ou Espirito, pode-se conhecer a essência e suas
“potencialidades” somente por meio de sua história, trata-se da posição fundamental do método
15 O próprio Hegel, na Enciclopédia, chega ao ponto de comparar o especulativo (terceiro momento da dialética)
com a mística (capta o absoluto indo além dos limites do intelecto que raciocina).
historicista, segundo o qual o modo de conhecer as instituições sociais, como o estado, é
estudar-lhe a história ou a história de seu Espirito.
Consequentemente, o Espirito da nação determina seu destino histórico oculto e cada
nação que deseje afirmar sua individualidade ou alma penetrando no palco da história, isto é,
combatendo as outras nações.
Da mesma forma que Heráclito, Hegel acreditou na unidade dos opostos
desempenhando papel muito importante na evolução: no progresso dialético. As duas ideias de
Heráclito: a guerra dos opostos e sua unidade ou identidade são as principais ideias da dialética
de Hegel.
Vale acrescentar a reflexão popperiana que existem pontos comuns entre a dialética
clássica e a hegeliana, mas há uma diferença fundamental: as ideias platônicas e os conceitos
aristotélicos ficaram quase que bloqueados ou solidificados, enquanto a dialética hegeliana vê
a realidade como devir, movimento e dinamismo, por isso segundo Hegel a dialética precisava
ser reformulada impondo movimento e dinamismo as essências.
II.2.1.1 – Criador do historicismo e da dialética moderna
Apesar de Popper criticar a autoridade que Kant atribuiu a Newton, concordou com
Kant em muitos aspectos, inclusive com relação a dialética que Kant considerou como lógica
de aparência, como a conceituou na introdução da Crítica da razão pura, por se fundamentar
em princípios subjetivos, enquanto o operador da dialética pensa que está tratando com dados
objetivos. O sujeito pensa que está trabalhando com nexos necessários e não se dá conta de que
o que ele põe na tese, na antítese e na síntese são suas criações.
Hegel apresentou seu raciocínio dialético tendo em vista Kant, ao afirmar na Crítica da
Razão Pura, que a razão ao se aventurar em um campo não empiricamente controlável envolve-
se em contradições e antinomias. O que fez Hegel? Segundo Popper, não refutou Kant, Hegel
afirmou que Kant estava certo ao apontar as antinomias, mas estava errado em preocupar-se
com elas, é da própria natureza da razão que ela se contradiga e não se trata de fraqueza das
faculdades humanas, mas sim é a essência da racionalidade: a razão deve trabalhar com
contradições e antinomias, pois é justamente desse modo que a razão desenvolve-se (POPPER,
1998b, p. 45).
De acordo com Popper, o método cientifico justamente opera ao inverso da dialética: na
eliminação de contradições onde sejam encontradas, as contradições forçam os cientistas fazer
todos os esforços para eliminá-la, admitir a contradição é o colapso da ciência16 (Ibidem, p.
46).
Sua intenção é ir muito além, não havendo problemas com raciocínios contraditórios,
ele está “livre” de operar com todas as contradições: “Todas as coisas são em si mesmas
contraditórias” (HEGEL Apud POPPER, 1998b, p. 46), tornando sua filosofa acima de
qualquer crítica cientifica.
Para Hegel, a filosofia identifica-se com a história da filosofia e desdobra-se
dialeticamente em três momentos: antiguidade grega, cristandade medieval, modernidade
germânica. Com efeito, ao que parece a filosofia atingiu seu cume com ele próprio (REALE,
2007, p. 129): uma posição megalomaníaca sendo um obstáculo a racionalidade falibilista
popperiana.
II.2.1.2 - Panlogismo absolutista
A dialética de Hegel e sua filosofia da identidade tem seu elo na doutrina de Heráclito
acerca da unidade dos opostos: “O caminho que sobe e o caminho que desce são idênticos”, e
Hegel repete: “O caminho do leste e o caminho do oeste são os mesmos” (HEGEL Apud
POPPER, 1998b, p. 47).
Na aparente confusão entre os opostos e em seu panlogismo absolutista a razão é real,
o real é necessário, sustentando a ordem daquilo que existe. Em sua filosofia do espírito destaca-
se o estado, exacerbando o estado da República platônica, Hegel entendeu o estado como
manifestação da própria ideia no mundo: o estado é o ingresso de Deus no mundo.
A filosofia da identidade serve para justificar a ordem de coisas existentes.
Seu principal rebento é um positivismo ético e jurídico, a doutrina de que o existe é
bom, visto não poder haver padrões fora dos padrões existentes; a doutrina de que a
força é o direito (POPPPER, 1998b, p. 47).
Sendo real igual a razão, segundo o mote de Hegel, permitiu assegurar que tudo quanto
é racional deve ser real e tudo quanto é real deve ser racional, sendo o desenvolvimento da
realidade o mesmo da razão, tudo o que existe é precisamente momento da ideia e do seu
desenvolver-se, assim como bom, assim como é bom o estado prussiano efetivamente existente.
16 Popper afirmou que a dialética não é ciência, o que não significa que não tenha valor cognoscitivo. Pela dialética
ter sido repensada e redimensionada no desenrolar do século XX foi necessário elaborar um adendo (ver o final
do item II.2.2.3 - Repensando a tríade historicismo-dialética-episteme deste capítulo).
Uma justificativa de Hegel é que ele estava dizendo de forma filosófica o mesmo que a
religião ao afirmar que existe um governo divino do mundo e aquilo que acontece é querido por
Deus, como a afirmação dos antigos o Nous (Inteligência) governa o mundo. O problema da
concepção é justificar o “status quo” na permissão de Deus ignorando a liberdade humana. Na
compreensão de estado de Hegel: não é o estado que existe para as pessoas, mas as pessoas que
existem para o estado.
II.2.1.3 - Filósofo oficial do prussianismo
Em 1815, o partido reacionário começou a retomar o poder na Prússia, achando-se na
extrema necessidade de uma ideologia:
Hegel foi indicado para suprir essa necessidade e ele o fez revivendo as
ideias dos primeiros grandes inimigos da sociedade aberta: Heráclito, Platão e
Aristóteles. Assim como a Revolução Francesa tornara a descobrir as ideias perenes
da Grande Geração e do Cristianismo, a liberdade, a igualdade e a fraternidade de
todos os homens, assim também Hegel redescobriu as ideias platônicas que jazem
por trás da perene revolta contra a liberdade e a razão (POPPPER, 1998b, p. 37).
A filosofia de Hegel recebeu respaldo e sustentação do governo prussiano (as
universidades alemãs foram e são controladas pelo estado), inclusive no financiamento de seus
discípulos, tornou-se o primeiro filósofo oficial do prussianismo, sua dominação filosófica foi
ampla das universidades, indiretamente as escolas secundárias, as exceções foram as
universidades de idioma alemão e as da Áustria católica17 permaneceram ilesas como ilhas num
dilúvio.
Com menos sucesso no Reino Unido, pequena parte se sentiu atraído, pelo idealismo
“mais elevado” de Hegel, a ala esquerda marxista (substituindo guerra de nações por guerra de
classes) e a extrema direita fascista (substituindo guerra de nações por guerra de raças) baseiam
suas filosofias políticas em Hegel (Ibidem, p. 36).
Dessa forma renasceu o tribalismo, o coletivismo e o irracionalismo na modernidade
com Hegel, ele é o “elo perdido”, por assim dizer, entre Platão e a forma moderna de
totalitarismo. Poucos modernos totalitários perceberam sua dívida com Platão, mas muitos
17 Apesar de Popper não ter sido cristão de confissão católica, valorizou a influência da Igreja Católica em sua
terra natal, o preservou do idealismo.
sabem de sua dívida com Hegel, eles foram “ensinados a adorar o estado, a história e a nação”
(POPPPER, 1998b, p. 37).
A filosofia historicista de Hegel mostrou que seu radical coletivismo tribal dependeu de
Platão e de Frederico Guilherme II, rei da Prússia, no período crítico durante e após a Revolução
Francesa. Sua doutrina afirmou que o estado é tudo e o indivíduo nada é, pois deve tudo ao
estado, tanto sua existência física como espiritual:
O Estado é a Ideia Divina tal como existe na terra... Devemos, portanto,
adorar o Estado como a manifestação do Divino sobre a terra, e considerar que, se
é difícil compreender a natureza, infinitamente mais árduo será apreender a essência
do Estado... O Estado é a marcha de Deus pelo mundo... O Estado deve ser
compreendido como um organismo... Ao Estado completo pertencem, essencialmente,
a consciência e o pensamento. O Estado sabe o que quer... O Estado é real (...). O
Estado é o que efetivamente existe, a vida moral realizada (HEGEL Apud POPPER,
1998b, p. 38).
Segundo Popper, a compilação de afirmações do platonismo hegeliano mostrou a
absoluta autoridade moral do estado, que predomina acima da consciência das pessoas.
Schopenhauer conheceu Hegel pessoalmente, ele próprio um idealista platônico, afirmou da
filosofia de Hegel: “Os Governos fazem da filosofia um meio de servir a seus interesses de
estado e os estudiosos fazem dela um comércio” (SCHOPENHAUER Apud POPPER, 1998b,
p. 40).
Hegel extraiu a moralidade coletivista e tribal, bom é o que for de interesse do meu
estado defendendo o niilismo moral18 nas relações internacionais (POPPER, 1998a, p. 122).
Na Filosofia da Lei, Hegel começou alimentando boas expectativas ao dizer que a Igreja
Católica forçou Galileu a se retratar, por isso a ciência deve ser protegida pelo estado, mas
Hegel apresentou seu real objetivo de levar seus leitores ao oposto das primeiras impressões,
num ataque simulado a Igreja Católica:
Tal conhecimento, porém, como é fora de dúvida, nem sempre se conforma
com os padrões da ciência, pode degenerar em mera opinião... E para essas opiniões
ela (a ciência) pode levantar as mesmas exigências pretenciosas que a Igreja – as
exigências de ser livre em suas opiniões e convicções (HEGEL Apud POPPER,
1998b, p. 49)
18 A crítica de Popper ao niilismo (intelectual ou moral) é de ser suporte ideológico do mais forte.
Desse modo, a demanda por liberdade de pensamento, a exigência da ciência julgar por
si mesma são descritas como pretenciosas, quem julga o que é a verdade objetiva: “O estado,
em geral, deve formar sua própria decisão sobre o que deve ser considerado como verdade
objetiva” (HEGEL Apud POPPER, 1998b, p. 49).
Hegel teve que tratar de um tema espinhoso para a monarquia: a constituição política,
setores da sociedade pleiteavam cada vez com mais força, lembrando que o absolutismo
prussiano não reconhecia lei constitucional alguma, exceto alguns princípios como a soberania
do rei. Pressionado o rei prometeu uma constituição, mas jamais cumpriu. Funcionários do rei
foram demitidos por concordar com a necessidade da constituição, o que colocou Hegel em
situação delicada.
Como espírito vivente, escreveu Hegel, o estado é um todo organizado, articulado em
diversas agências, a constituição é essa articulação ou organização do poder estatal, a
constituição é a justiça existente, a liberdade e a igualdade são os objetivos e resultados últimos
da constituição (POPPER, 1998b, p. 50), depois Hegel torceu igualdade em desigualdade: os
cidadãos são iguais perante a lei, mas “são iguais perante a lei apenas naqueles pontos em que
também são iguais fora da lei. Apenas essa igualdade que possuem em propriedade, idade etc.
pode merecer tratamento igual em face da lei” (HEGEL Apud POPPER, 1998b, p. 50).
Para negar a realização de uma constituição política, Hegel adotou um misticismo
confuso: “É pelo ingênito Espírito e pela história da Nação – que é apenas a história desse
Espirito – que as constituições tem sido e são feitas” (Ibidem, p. 52). De forma mais explicita
Hegel escreveu:
A totalidade realmente viva que preserva e continuamente produz o Estado e
sua constituição é o Governo, considerado como uma totalidade orgânica, o Poder
soberano, ou principado. É a vontade do Estado que tudo sustenta e tudo decreta, seu
mais alto Cume e sua onipenetrante unidade. Na forma perfeita do Estado, em que
todos e cada um dos elementos encontraram sua existência livre, essa vontade é a do
indivíduo que efetivamente decreta (não simplesmente de uma maioria em que a
unidade da vontade que decreta não tem existência efetiva); é a monarquia. A
constituição monárquica é, portanto, a constituição da razão desenvolvida; e todas
as outras constituições pertencem aos graus mais baixos do desenvolvimento e da
autorrealização da razão (Idem)
Para não restar dúvida acerca do que Hegel pensava da constituição política: “a decisão
final, a autodeterminação absoluta constitui o poder do príncipe como tal” e “o elemento
absolutamente decisivo no todo, é um só indivíduo, o monarca” (HEGEL Apud POPPER,
1998b, p. 52).
A “filosofia da identidade de Hegel, contribuindo para o historicismo e para uma
identificação da força com o direito, encorajou os modos totalitários de pensamento” (POPPER,
1998b, p. 415). Hegel “provou” dialeticamente que a Prússia é o mais elevado cume e a própria
cidadela da liberdade, seu governo preservou e guardou o mais puro espirito da liberdade: se a
filosofia de Platão proclamava ser Senhora do estado, com Hegel a filosofia é serva do estado
prussiano.
O silêncio dos filósofos quanto a Hegel deve-se ao fato dele ser admirado em ambientes
de esquerda passando “despercebido” seu autoritarismo (Ibidem, p. 86). Popper questionou os
marxistas sempre prontos a indicar quanto a teoria de um opositor é afetada pelos seus interesses
de classe geralmente ficam em silêncio quanto a Hegel? Por que não o denunciam como
apologista do absolutismo prussiano? Pelo contrário, lastimam que sua obra não seja mais lida
no Reino Unido, como aconteceu na Rússia (Ibidem, p. 41).
Quanto a argumentação de que Hegel abriu novos caminhos a filosofia, que Kant fechou
por seu otimismo com Newton, Popper concordou que é estreito limitar a razão ao
empiricamente controlável, existem elementos que Popper e Hegel concordam em resgatar: a
metafísica, a religião cristã e a arte. Porém, o caminho escolhido por Hegel de uma filosofia
historicista através de um misticismo dialético servindo de ideologia ao prussianismo e farto
material para as ditaduras seguintes, Popper veemente discordou.
Reale ponderou as críticas feitas por diversos filósofos, especialmente Popper,
Kierkegaard e Schopenhauer, a Hegel nesses termos:
É sabido que, em larga medida, foi em Hegel que o totalitarismo político foi
buscar as armas conceituais para sua própria autolegitimação. E, embora seja
verdade que isso foi abuso, também é verdade que Hegel efetivamente fornece amplo
material que se presta a tal abuso. A estatolatria, a teorização do povo-guia eleito
pelo espírito para celebrar sua própria concretização, a concepção dos homens
cósmico-históricos de cujo lado está o direito absoluto, têm em Hegel o seu teórico
máximo (REALE, 2007, p. 130).
Como apresentado, a crítica popperiana é ferrenha a Hegel, quando as objeções a ela
chegaram, respondeu que A sociedade aberta e seus inimigos é um livro de guerra para
combater quem combate a tolerância e a democracia de direito, sendo um falibilista sua crítica
contém erros e contém exageros, mas os pontos principais dela se mantém, até que seja
mostrado o contrário (POPPER, 1998b, p. 413-416).
II.2.2 – Materialismo histórico-dialético
De acordo com Popper, Marx fez uma tentativa honesta para aplicar métodos racionais
aos graves problemas sociais de sua época, se o resultado não foi alcançado, o valor da tentativa
não deve ser diminuído: é experimentando e errando que a ciência progride.
Por mais que ele tenha errado em boa parte de seus conceitos, não tentou em vão, já que
uma volta à ciência social, anterior a Marx no momento é inconcebível e os escritores modernos
tem algo a dever a ele, mesmo os que discordam em muitos aspectos, como Popper.
Marx foi um dos grandes lutadores contra a hipocrisia e o farisaísmo: tinha o real
interesse de ajudar os oprimidos não apenas com palavras, mas também com ações. Formulou
um conjunto de armas que considerava cientificas para melhorar a vida das pessoas. Sua
sinceridade na busca da verdade e honestidade intelectual o diferencia de muitos de seus
seguidores.
Para sua infelicidade não conseguiu escapar da enorme influência da dialética hegeliana,
descrita por Schopenhauer como destruidora de toda inteligência (Ibidem, p. 89).
II.2.2.1 – Libertador da cruel exploração humana
Popper considerou justo ressaltar que ao contrário de Hegel, Marx não elaborou uma
filosofia para ser suporte do absolutismo, não era essa sua intenção, o que aconteceu na União
Soviética não foi conscientemente desejado por Marx. Ele não se deu conta que sua
antropologia expressada no materialismo histórico, unido à concentração de poder político, tem
grandes chances de conduzir a ditadura19.
Popper escreveu, como hipocritamente, a liberdade era instrumentalizada para uma
exploração brutal do capitalismo irrestrito:
Marx, de fato, viveu, especialmente na juventude, num período da mais
desavergonhada e cruel exploração. E essa vergonhosa exploração era cinicamente
defendida por apologistas hipócritas, que apelavam para o princípio de liberdade
humana, para o direito do homem a determinar seu próprio destino e entrar livremente
em qualquer contrato que considere favorável a seus interesses. Usando o lema
‘competição livre e igual para todos’, o capitalismo irrestrito desse período resistiu
com sucesso a toda legislação do trabalho até o ano de 1833, e à sua execução prática
por muitos anos mais. A consequência foi uma vida de desolação e miséria que em
19 Ver os itens deste capítulo: II.2.2.4 – Impotência da política e II.2.2.5 – O caminho para a ditadura.
nossos dias mal pode ser imaginada. Especialmente a exploração de mulheres e
crianças produziu incrível sofrimento (POPPER, 1998b, p. 128-129).
Marx se levantou, corajosamente, contra a afronta a dignidade humana, em O Capital
conta a tragédia humanitária de sua época: “William Wood, de 9 anos, tinha 7 anos e 10 meses
quando começou a trabalhar... Ia para o trabalho todos os dias da semana, às 6 horas da manhã,
e saía às 9 da noite” (MARX Apud POPPER, 1998b, p. 129), quinze horas de trabalho para
uma criança de sete anos de idade!
Outro cruel exemplo “Mary Anne Walkley trabalhou sem descanso 26 horas e meia,
juntamente com sessenta outras meninas, trinta delas num só aposento” (Idem). Mary Walkley,
como tantas outras, veio a morrer ainda na infância pela brutal exploração.
O “dr. Lee, médico oficial da saúde, declarou, não faz muito, ‘que a idade média de
morte da alta classe média de Manchester era de 38 anos, ao passo que a idade média de morte
da classe trabalhadora era de 17; ao passo que em Liverpool esses números eram representados
por 35 contra 15’.” (Ibidem, p. 193).
Esses são alguns exemplos que mostram o gravíssimo contraste social.
Tais eram as condições da classe trabalhadora em 1863, quando Marx estava
escrevendo O Capital; seu ardente protesto contra esses crimes, que então eram
tolerados e muitas vezes até defendidos, não só por economistas profissionais, mas
mesmo por clérigos, assegurar-lhe-á para sempre um lugar entre os libertadores da
humanidade. Em vista de tais experiências, não é mister admirar-nos de que Marx
não tivesse muito elevada opinião do liberalismo e que visse na democracia
parlamentar nada mais que uma velada ditadura da burguesia. (POPPER, 1998b, p.
129).
A atitude de Marx com a religião conceituando-a ópio do povo e dentro do contexto
europeu, especialmente referiu-se ao Cristianismo, liga-se ao cenário retratado acima com
hipocrisias, inclusive de presbíteros, alegando que haveria liberdade para trabalhar em outro
lugar. Porém, os trabalhadores sendo pobres só podiam vender seu trabalho de forma desumana
e seu valor como tinham músculos para trabalhar.
A “defesa hipócrita da exploração capitalista era, em seu tempo, característica da
Cristandade oficial.” (Ibidem, p. 206). Popper comparou a influência de Marx sobre a Igreja
Anglicana, com Lutero sobre a Igreja Católica: ambas as Igrejas foram desafiadas e compelidas
a profundas revisões e reavaliações (POPPER, 1998b, p. 207).
Para Marx, mudanças no estado e no Cristianismo seriam impossíveis no sistema
capitalista, só a mudança econômica resultaria no fim da exploração e no fim da religião. Marx
concordou com Feuerbach: o homem cria Deus. Feuerbach parou no principal: por quê? A
resposta de Marx é que a religião é o suspiro da criatura oprimida, a ilusão da religião
desaparece com o fim da opressão econômica.
Porém, ao contrário do que preconizou o materialismo histórico, baseado nas críticas
especialmente de Max Weber, Popper e Eduard Bernstein, não é verdade que “a mudança da
estrutura econômica envolve necessariamente também a mudança do mundo das ideias: uma
religião como a cristã atravessou as mais diversas estruturas econômicas; e o mesmo vale para
a arte” (REALE, 2007, p. 188).
No século XX, as reformas ocorreram tanto para o estado que se tornou aberto aos
trabalhadores, bem como ao Cristianismo com a sua doutrina social. Depois da II Guerra
Mundial, neomarxistas como Horkheimer e Bloch buscaram uma nova compreensão da religião
considerando-a um “elemento ativo e dinâmico da emancipação da humanidade”
(ABBAGNANO, 2007, p. 1005), Adorno no final de sua vida aproximou-se da fé judaica.
II.2.2.2 – Determinismo social
A sociedade aberta distingue-se pela tolerância e o humanitarismo, Popper reconheceu
em Marx um autêntico defensor da liberdade humana ante as atrocidades brevemente relatadas
acima. Porém, no volume dois de A Sociedade aberta e seus inimigos após destrinchar o
impacto da filosofia hegeliana na modernidade, o próprio Popper se perguntou: tendo Marx
realmente preocupado-se com o ser-humano, com honestidade intelectual que buscou elaborar
uma filosofia para melhorar a vida das pessoas durante o “cruel” capitalismo irrestrito do século
XIX, por que criticá-lo?
Por que, então, atacar Marx? Apesar de seus méritos, creio que Marx foi um
falso profeta. Foi um profeta do decurso da história e suas profecias não se tornaram
verdadeiras. Esta, porém, não é minha acusação principal. Muito mais importante é
haver ele desviado dezenas e dezenas de pessoas inteligentes fazendo-as crer que a
profecia histórica é o modo cientifico de abordar os problemas sociais. Marx é
responsável pela devastadora influência do método historicista de pensamento nas
fileiras dos que desejam impulsionar a causa da sociedade democrática (POPPER,
1998b, p. 90).
Criticar a filosofia marxiana não deveria causar estranheza, nem ser uma heresia, porque
o próprio Marx escreveu no Prefácio à primeira edição de O Capital: “Saúdo a crítica cientifica,
por dura que seja” (MARX Apud POPPER, 1998b, p. 348), os marxistas deveriam tratar suas
obras como o que realmente são: economia e filosofia, não tratar como textos de uma seita
religiosa que devem ser defendidos a todo custo.
O que aconteceu de fato é que os marxistas (utópicos) não aprenderam com as críticas20
e as coisas pioraram drasticamente quando Lenin chegou ao poder foi questão de tempo para
punir os hereges21.
Os intelectuais marxistas, com sua história dialética, realmente conseguiram dotar seus
seguidores de uma fé entusiástica em sua missão de libertar a humanidade (POPPER, 1998b,
p. 353). Apesar de seu dogma antimetafísico: as duas filosofias hegemônicas do século XIX
(positivismo e marxismo) com o historicismo ultilizaram da metafísica, uma para preservar
(Comte) e a outra para revolucionar (Marx).
Porém, o que realmente aconteceu foi o contrário: “de acordo com o marxismo, a
revolução proletária deveria ter sido o resultado final da industrialização, e não o contrário; e
deveria ter surgido primeiro nos países altamente industrializados e só muito mais tarde na
Rússia” (Ibidem, p. 151). De acordo com o historicismo dialético, o primeiro país a aderir a
Marx seria o Reino Unido e, subsequentemente, os demais países industrializados, pois a
exploração burguesa sempre iria aumentar levando a revolução.
Engels ao ver a melhora das condições de vida no Reino Unido, ao invés de se alegrar
pelos trabalhadores, ficou irado pelo diagnóstico marxista ter falhado, o que seria perfeitamente
normal em ambiente cientifico por aprender com os erros, para um falibilista significa uma
oportunidade de crescimento. O que fez Engels? Acusou o proletariado inglês de se tornar um
proletariado burguês!
O “dogmatismo e o autoritarismo da maioria dos marxistas é um fenômeno realmente
espantoso. Apenas mostra que usam o marxismo irracionalmente, como um sistema metafísico”
(Ibidem, p. 348). Marx e Engels vendo que suas predições sobre o capitalismo não se
cumpriram e preocupados em mostrar que não podiam errar, elaboraram uma hipótese auxiliar:
a exploração colonial, uma exploração do proletariado colonial (Ibidem, p. 194-195).
20 Ao contrário de Hayek, Popper considerou que o socialismo poderia mudar, ver o item do capítulo terceiro III.4
- Racionalidade, economia e democracia de Popper e Hayek
21 Engels chamou O Capital de a Bíblia da classe trabalhadora, isto é, uma seita religiosa que defenderá O Capital
a todo custo, perdendo o espírito crítico “que um dia inspirou Engels, assim como Marx” (POPPER, 1998b, p.
342).
Ninguém dúvida que a colonização foi uma exploração, um capítulo brutal da
humanidade, mas, novamente, não ocorreu que a exploração nas colônias foi piorando cada vez
mais e sim houve melhoras na renda de seus habitantes.
Ressalta-se que as democracias escandinavas, as da Dinamarca, Suécia, Noruega e
Finlândia; assim como a Austrália, Nova Zelândia e Canadá são exemplos de um capitalismo
intervencionista, que ofereceu altos padrões de vida para os trabalhadores, sem exploração
colonial (POPPER, 1998b, p. 353).
Com isso, Popper refutou a ideia de que a melhora das condições de vida dos
trabalhadores em uma democracia com política intervencionista precise de exploração colonial,
sem negar de que ela de fato cruelmente existiu (feita por algumas nações imperialistas).
Rapidamente a teoria marxista da história entrou em contradição com a prática histórica.
O fato de observar no passado ou hoje o que pareça ser uma tendência ou linha histórica não
significa que amanhã terá a mesma aparência, eis a pobreza do historicismo! (Ibidem, p. 199).
II.2.2.3 – Repensando a tríade historicismo-dialética-episteme
Para Marx e Engels, a verdadeira ciência é a ciência da história, como apresentaram em
A ideologia alemã, seguindo Hegel, eles entenderam que a dialética é o meio para compreender
o movimento real da história e o estado existente das coisas, mantendo a tríade:
historicismo-dialética-episteme.
Com a diferença de que Marx e Engels extraíram o idealismo, isto é, de operar a dialética
sem nunca chegar na realidade, a filosofia de Hegel interpretou o mundo de cabeça para baixo
igual a ideologia, Marx inverteu a dialética hegeliana: das ideias para a história, da mente para
os fatos, do estado prussiano livre e feliz para a revolução.
Enquanto, os historiadores, geralmente entendem a história pela guerra entre as nações,
como Hegel, Marx interpretou a história de todas as sociedades até hoje existentes como história
de luta de classes. A tendência dessa afirmação implica que a história é impulsionada e o destino
do homem determinado pela guerra de classes.
O interesse da classe é, simplesmente, tudo quanto promova seus direitos e sua
prosperidade, inclusive sua existência social pelo lugar que o homem ocupa na sociedade
determina sua consciência. Desse modo, a burguesia é livre à custa da escravidão do
proletariado.
Com relação a possibilidade de interpretar a história como luta de classes, revelar a
exploração que diversas vezes aconteceram na história e a instrumentalização da política para
interesses de grupo, Popper considerou uma valiosa sugestão (Ibidem, p. 123), mas o
historicismo do materialismo dialético apreende as relações sociais em uma rede de classes,
impedindo a mecânica social gradual, impedindo enfrentar o problema ou fazer qualquer plano
para melhorar a situação, a única solução defendida por Marx foi a mudança brusca, isto é, a
revolução.
Um dos perigos da fórmula de Marx é que, se assimilada rigidamente, induz
erroneamente os marxistas a interpretarem todos os conflitos políticos como lutas entre
exploradores e explorados ou tentativas de encobrir o “verdadeiro problema”.
Em consequência, houve marxistas, especialmente na Alemanha, que interpretaram uma
guerra como foi a I Guerra Mundial como um conflito entre as Potências Centrais “sem posses”
ou revolucionárias e uma aliança de países conservadores ou “possuidores”, espécie de
interpretação, que poderia ser usada para desculpar qualquer agressão. (POPPER, 1998b, p.
124). Porém, Popper, fez questão de ressaltar, que sem exageros e sem historicismo, a lógica
da situação de classe para explicar o funcionamento das instituições do sistema social parece-
lhe admirável (Idem).
Popper, seguindo Kant, considerou que “a dialética é suficientemente vaga e adaptável
para explicar qualquer coisa” (Ibidem, p. 145). É necessário um adendo: Popper debruçou-se
especialmente sobre as dialéticas hegelianas e marxistas, com o desenvolvimento da pesquisa
no século XX pode-se afirmar que existem dialéticas geradoras de conhecimento a partir de
contradições: como as dialéticas paraconsistente, da relevância e intuicionista, não sendo
possível simplesmente repetir a crítica de Kant a dialética privando-a de valor cognoscitivo.
Ressaltando que, a crítica de Popper permanece sobre essas ultimas dialéticas, quanto a
impossibilidade delas gerem conhecimento cientifico (ABBAGNANO, 2007, p. 322).
Importante recordar que o conhecimento não cientifico tem grande importância na filosofia
popperiana: como mostrado no capítulo anterior, Popper não foi um positivista.
Logo, os exageros da dialética moderna sob a tríade historicismo-dialética-episteme (de
Hegel a Marx) fizeram com que o valor cognoscitivo da dialética fosse desprezado. Reale
ponderou a forte crítica feita a dialética realizada especialmente por Schopenhauer,
Kierkegaard, Eduard Bernstein e Popper:
A própria dialética, que desde a antiguidade emergira como o único método
especifico da filosofia (o único método que a filosofia possui como próprio), que não
a compartilha com as outras ciências, teve de ser repensada e redimensionada a
fundo, acabando por ser parcialmente envolvida e arrastada por aquela “destruição”
(REALE, 2007, p. 130).
Porém, no desenrolar do século XX a dialética foi redimensionada nas pesquisas citadas
acima mostrando seu valor cognoscitivo, permanece a espera do despertar de consciência de
neomarxistas, como Lukács e Marcuse, de que não é possível chegar a episteme com a dialética
e voltá-la para o reino da philo-sophia.
II.2.2.4 – Impotência da politica
Popper considerou sua análise acerca da interpretação de Marx do estado, a parte mais
importante de sua crítica para a filosofia política. A teoria do estado de Marx deve ser
compreendida como uma das superestruturas erigidas sobre as efetivas forças produtivas do
sistema econômico (Popper, 1998b, p. 124), juntamente com o sistema moral, não dado pelo
estado, mas por uma ideologia criada e controlada pela classe dirigente (Ibidem, p. 125).
A teoria do estado de Marx deve ser circunscrita ao seu momento histórico, mostrando
de forma muito bem sucedida como o estado de sua época blindava qualquer reforma que
pudesse ajudar a situação desumana dos trabalhadores (Ibidem, p. 128). Dá para entender o
apelo de Marx para o estado controlar os meios de produção pelo fato da mudança nos meios
de produção ter favorecido a realização da revolução industrial:
A teoria do estado de Marx, apesar de seu caráter abstrato e filosófico, sem
dúvida fornece uma esclarecedora interpretação de seu próprio período histórico. É,
pelo menos, uma concepção sustentável de que a chamada ‘revolução industrial’ se
desenvolveu principalmente, no início, como uma revolução dos ‘meios materiais de
produção’, isto é, da maquinaria; de que isto levou, a seguir, a uma transformação
da estrutura de classe da sociedade e, assim, a um novo sistema social; e de que as
revoluções políticas e outras transformações do sistema legal apenas podem ser um
terceiro passo. (Ibidem, p. 127-128).
Foi válida uma primeira tentativa de explicação e aproximação da influência dos
interesses econômicos sobre a legislação e a função das medidas legislativas como armas da
luta de classe, especialmente como meios para a criação de uma “população excedente” e, com
ela, do proletariado industrial, diante disso:
É claro, de muitos trechos de Marx, que essas observações o confirmaram na
crença de que o sistema jurídico-político é mera ‘superestrutura’ do social, isto é, do
sistema econômico, teoria que, embora sem dúvida refutada pela experiência
subsequente, não só permanece interessante, mas também, sugiro, contém um grão
de verdade (Ibidem, p. 128).
O problema da teoria é considerar impotente toda a política, bem como a instituição
legal colocando-as como marionetes do poder econômico:
Quais são as consequências dessa teoria do estado? A consequência mais
importante é que toda a política, todas as instituições legais e políticas assim como
todas as lutas políticas, nunca podem ser de importância primordial. A política é
impotente. Nunca pode alterar decisivamente a realidade econômica (POPPER,
1998b, p. 125 e 126).
Dessa forma, colocou-se o postulado que todo governo, mesmo o governo democrático,
é uma ditadura da classe governante sobre os governados: “O executivo do estado moderno –
diz o Manifesto – é apenas um comité para gerir os negócios econômicos de toda a burguesia”.”
(Ibidem, p. 127). O estado é o poder organizado para uma classe oprimir a outra afirmou o
Manifesto Comunista (Ibidem, p. 125), Marx “nem sugere que reformas institucionais serão
necessárias a fim de fazer o estado servir aos fins que ele próprio pode considerar desejáveis”
(Idem).
Suas táticas revolucionárias ensinavam:
Se os democratas propuserem uma taxação proporcional, os operários
devem exigir a tributação progressiva. E se os democratas se declararem a favor de
uma tributação progressiva moderada, os trabalhadores deverão insistir num
imposto progressivo elevado, tão elevadamente progressivo que cause o colapso do
grande capital (MARX Apud POPPER, 1998b, p. 352).
O fim do discurso terminou com o grito de batalha: “Revolução permanente!”. Como a
história iria consagrar suas ideias Marx rejeitou qualquer tipo de negociação e reforma, a
solução dada é “todo o proletariado seja imediatamente armado com rifles, fuzis e munições”
(Ibidem, p. 360). O objetivo é que o “governo democrático burguês não só perca imediatamente
todo apoio da parte dos trabalhadores, mas desde o princípio se encontre sob a supervisão e
ameaça das autoridades por trás das quais se coloca a massa inteira da classe operária” (Idem).
A revolução social é uma tentativa do proletariado, amplamente unido, conquistar o
completo poder político, empreendida com a firme resolução de não hesitar ante a violência, se
a violência for necessária para alcançar esse alvo, considerando-se dessa forma, a revolução
social proposta tornou-se um levante violento, pois a questão de ser ou não efetivamente usada
a violência é menos significativa do que a intenção (alcançar os alvos do movimento)
(POPPER, 1998b, p. 157), posicionando-se dessa forma o resultado é “claro que esta política
visa a arruinar a democracia22” (Ibidem, p. 360).
Popper pensou que um Marx mais maduro passou a afirmar frases mais ambíguas sem
fazer tanta apologia ao uso da violência, do mesmo modo a ala mais moderada do marxismo23.
Seguidores de Platão, Hegel e Marx “nunca verão que a velha pergunta: ‘Quem serão os
governantes?’ deve ser superada pela mais real: ‘Como poderemos domá-los?’.” (Ibidem, p.
140).
A teoria de Marx sobre o estado, sem desprestigiar sua perspicácia em desvelar a
instrumentalização do estado em sua época, pode ser mortal para a democracia de direito, o
século XX mostrou que a democracia é o verdadeiro palco das mudanças, realizadas através de
pressão e organização popular, o que fez Popper concluir: “Sua teoria da impotência de toda
política, mais particularmente, e sua concepção da democracia, parecem-me não só enganos,
mas enganos fatais” (Ibidem, p. 127).
Nessa concepção do estado a porta está aberta para a ditadura, onde o marxismo for
implantado a chance é perigosamente real, ao risco da impotência política acrescenta-se a
antropologia do materialismo histórico não vendo na concentração de poder político do partido
comunista o caminho para a ditadura e o totalitarismo; o poder político é tão perigoso quanto o
poder econômico e não apenas nas mãos dos burgueses.
II.2.2.5 – O caminho para a ditadura
Marx amava a liberdade concreta: a vida material e social e especialmente seu aspecto
econômico, o da produção e do consumo, pensando o trabalho com o mínimo esforço nas
condições mais adequadas e dignas para a natureza humana. Como foi apresentado considerava
22 De acordo com Lenin a “democracia é de grande importância para a classe trabalhadora em sua luta pela
liberdade e contra os capitalistas. Mas a democracia não é, de modo algum, um limite que não se possa ultrapassar;
é apenas uma das etapas no decurso do desenvolvimento do feudalismo para o capitalismo e do capitalismo para
o comunismo” (LENIN Apud POPPER, 1998b, p. 358).
23 Engels afirmou que a violação da constituição iniciará pelos cavalheiros da burguesia, eles serão os primeiros a
atirar, o que se sucederá em tom de ameaça não será revelado! Uma concepção bem diferente do marxismo
original, que predizia que a revolução viria como desfecho da crescente exploração burguesa sobre os
trabalhadores e não como resultado da crescente pressão de um bem sucedido movimento da classe operária sobre
os capitalistas (POPPER, 1998b, p. 166).
inútil esperar por qualquer mudança importante pelos meios legais ou políticos, só com “a
mudança nos fundamentos econômicos, toda a vasta superestrutura é mais ou menos
rapidamente transformada” (POPPER, 1998b, p. 117).
Um dos elementos que mais atraem no marxismo é o sonho de que o comunismo
eliminaria as classes, as pessoas se tornariam esclarecidas e livres. Porém, a mudança do
modelo econômico não elevará o homem, não tornará o homem um anjo, não trará o céu a terra,
os instintos e desejos humanos continuarão e não serão apagados pela mudança de um modelo
econômico: o materialismo histórico é um pensamento “romântico, irracional e mesmo místico”
(Ibidem, p. 350).
Na filosofia política é necessário “pé no chão” e modéstia para tratar as mazelas
humanas, não é possível concentrar todo o mal no capitalismo e destruir problemas complexos,
sociais, psicológicos, culturais, tribais e espirituais24 com o fim do capitalismo:
No fundo de tudo isso, está a esperança de expulsar de nosso mundo o
demônio. Platão julgou que o podia fazer banindo-o para as classes inferiores e
governando sobre ele. Os anarquistas sonharam que, uma vez destruído o estado,
derrubado o sistema político, tudo passaria a correr bem. E Marx sonhou um sonho
semelhante de exilar o demônio pela destruição do sistema econômico (Idem).
Segundo Popper a necessidade da superação do capitalismo para a libertação da
humanidade não passa de um dogma marxista, na verdade a ameaça a sociedade é o poder
econômico não controlado pelo poder político:
O dogma de que o poder econômico está na raiz de todo mal deve ser repelido.
Seu lugar deve ser ocupado por uma compreensão dos perigos de qualquer forma de
poder não controlado. O dinheiro, como tal, não é particularmente perigoso. Torna-
se perigoso somente quando pode comprar o poder, ou diretamente, ou pela
escravização dos economicamente fracos, que precisem de vender-se a fim de viver.
(Ibidem, p. 135).
Um dos principais filósofos neomarxistas do século XX, Ernst Bloch, expressou bem
como interpretam o socialismo de forma metafísica ao acreditar que superado o capitalismo não
haverá mais contradições antagônicas no ser-humano: superado o mal (o capitalismo)
acontecerá uma elevação da natureza humana, não precavendo-se de que em outro modelo
24 Ver o item do próximo capítulo III.1 – Antropologia popperiana: ser racional, social e espiritual
econômico as pessoas continuarão ambiciosas, desejando poder, domínio, prestigio unindo a
concentração do poder político está pronto o caminho para a ditadura:
Como consequência, nunca se aperceberam do perigo inerente numa política
de aumentar o poder do estado. Embora abandonassem mais ou menos
inconscientemente a doutrina da impotência política, conservaram a opinião de que
o poder do estado não representa problema importante e que só é mau quando está
nas mãos da burguesia. Não compreenderam que todo poder é perigoso, e o poder
político pelo menos tanto quanto o poder econômico. Assim, mantiveram sua fórmula
da ditadura do proletariado. (POPPER, 1998b, p. 136).
Qualquer homem e grupo social que concentre poder político é uma ameaça a sociedade,
no caso do marxismo o partido comunista é a instituição que liderará a revolução concentrando
poder com grande possibilidade de lançar a sociedade na ditadura. É mais provável que a nova
classe dirigente da nova sociedade torne-se uma espécie de aristocracia e é provável que vão
tentar ocultar este fato: “Desse modo, a ideologia revolucionária servir-lhes-á para fins
apologéticos, como uma reivindicação do uso que fazem de seu poder e como um meio de
estabilizá-lo; em suma, como um novo ‘ópio para o povo’.” (Ibidem, p. 145).
A argumentação de que o marxismo nunca foi aplicado em uma sociedade, Popper não
aceitou, pois Marx, sem ter consciência, criou um sistema com tendência ditatorial. O caminho
mais eficaz para preservar uma sociedade da ditadura é se precaver das ambições humanas
através do fortalecimento das instituições democráticas, partilhar o poder, controlando quem
governa, o poder político faz intervenções planejadas e limitadas, por isso a solução do
capitalismo irrestrito da época de Marx é político.
Ao contrário do que pensou Marx, o que chamou de superestrutura, por exemplo, uma
grande religião pode influir de modo determinante sobre a economia como mostrou Max
Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo: os calvinistas viram no sucesso
mundano o sinal da salvação. O crente é impelido a trabalhar para superar a “dúvida” da
salvação, acrescentando que o crente deve desconfiar dos bens mundanos usando-os
comedidamente (ascese), isto é, trabalhar em função do lucro e não gastá-lo, mas reinvesti-lo
continuamente, comportamento necessário para o espírito do capitalismo.
Utilizando da própria nomenclatura marxista, a admissão mais razoável é a
reciprocidade de influência entre estrutura (economia) e superestrutura (politica, jurídica, ética,
religião) compreendendo dessa forma, deixa de ser uma teoria marxista para se tornar
weberiana25. Popper enfatizou que a política (uma superestrutura) pode controlar o poder
econômico (POPPER, 1998b, p. 132).
II.2.2.6 – Assimilação dos dez pontos da revolução comunista
Marx investigou um capitalismo irrestrito e nunca pesquisou a possibilidade de uma
interferência sistemática no ciclo de negócios e muito menos apresentou uma prova de sua
impossibilidade (Ibidem, p. 189). Sua lei de que a miséria deve crescer juntamente com a
acumulação não se sustentou:
Os meios de produção se têm acumulado e a produtividade do trabalho têm
aumentado desde seus dias, a uma extensão que mesmo ele dificilmente teria
considerado possível. Mas o trabalho infantil, as horas de tarefa, a agonia da fadiga
e a precariedade da existência do trabalhador não aumentaram; tudo isso declinou
(Ibidem, p. 193).
Marx escreveu: “O reino da liberdade, só começa efetivamente onde terminam as
penúrias do trabalho imposto pelos agentes e necessidade externos; encontra-se, pois,
naturalmente, além da esfera da produção material propriamente dita” - muito interessante é a
conclusão prática - “a redução da jornada de trabalho é o pré-requisito fundamental” (MARX
Apud POPPER, 1998b, p.111).
Dá para entender o pensamento de Marx levando em conta as longas e intermináveis
jornadas de trabalhos que homens, mulheres e crianças eram subjugados a fazer, mas o dogma
de que o reino da liberdade é oposto ao reino da necessidade coloca-se fora da vida humana: no
mundo biológico homens e mulheres sempre estão no reino da necessidade, o que não dá direito
de exploração brutal dos mais fortes pelos mais fracos. Popper viu nessa concepção um
dualismo da vida prática de Marx, como Hegel, ele pensou a liberdade como desenvolvimento
histórico na perspectiva historicista, por isso foi necessário libertar-se do reino da necessidade
(POPPER, 1998b, p. 111).
O que importou para Marx é a libertação real, isto é, econômica ou material, isso só
pode ser conseguido por meio de uma emancipação igual da servidão, para essa emancipação,
“o encurtamento da jornada de trabalho é o pré-requisito fundamental”. (Ibidem, p. 130). Não
25 Vale lembrar que Engels procurou “suavizar” o determinismo da economia sobre as superestruturas, quando
explicou que acentuou a influencia da economia para criticar áqueles que a ignoravam (REALE, 2007, p. 189).
apenas a reforma do capitalismo ocorrida no século XX incorporou a pauta de fazer grande
redução da jornada de trabalho para oito horas, bem como as principais demandas dos dez
pontos da revolução comunista:
Se omitirmos os pontos mais insignificantes desse programa (por exemplo: ‘4
– confisco dos bens de todos os emigrados e rebeldes’), pode-se dizer que nas
democracias a maior parte desses pontos já foi posta em prática, ou completamente,
ou em grau considerável. E, com eles, muitos outros passos mais importantes, em que
Marx nem sequer pensou, foram dados no rumo da segurança social. Mencionarei
apenas os seguintes pontos de seu programa: 2 - Pesado imposto sobre a renda,
progressivo ou graduado (realizado). 3 – Abolição de todos os direitos de herança
(amplamente realizado, por meio de pesada taxação de heranças. É pelo menos
duvidoso que fosse desejável mais do que isso.). 6 – Controle central pelo estado dos
meios de comunicação e transporte (por motivos militares, isso se fez na Europa
Central antes da guerra de 1914, sem resultados muito benéficos. Também tem sido
realizado por muitas democracias menores). 7 – Aumento do número e tamanho das
fábricas e instrumentos de produção possuídos pelo estado (realizado nas
democracias menores, embora seja pelo menos duvidoso que isto seja sempre muito
benéfico). 10 – Livre educação para todas crianças em escolas públicas. Abolição do
trabalho de crianças em indústrias (a primeira exigência está cumprida nas
democracias menores e, em certa expansão, praticamente em toda parte. A segunda
foi ultrapassada.) (POPPER, 1998b, p. 147-148).
Em todo o mundo o poder político organizado começou a desempenhar funções
econômicas de largo alcance, seja uma ingerência brusca e perigosa ou uma ingerência gradual:
O intervencionismo adquiriu diversas formas; temos a variedade russa, a
forma fascista do totalitarismo, e o intervencionismo democrático da Inglaterra, dos
Estados Unidos e das chamadas ‘democracias menores’, com a Suécia à frente, onde
a tecnologia da intervenção democrática alcançou até agora seu nível mais elevado.
A evolução que levou a esse intervencionismo iniciou-se na época de Marx, com a
legislação britânica para as fábricas. Seus primeiros passos decisivos se verificaram
com a introdução da semana de 48 horas e, mais tarde, com a introdução do seguro
contra o desemprego e outras formas de seguro social. (Ibidem, p. 147).
Vale ressaltar que as mudanças ocorreram pela organização dos trabalhadores,
sindicatos e a pressão através de greves, protestos que Popper considerou necessários (Ibidem,
p. 185) para a conquista de direitos:
As reformas sociais são levadas a efeito, na maior parte, sob a pressão dos
oprimidos, ou, (se preferir o termo) sob a pressão da luta de classe; vale dizer, que a
emancipação dos oprimidos deve ser, em grande parte, obra dos oprimidos.
(POPPER, 1998b, p. 163).
É necessário muito mais a “tributação e os direitos sobre herança podem ser usados com
a maior eficiência para combater a centralização e assim têm sido utilizado. E também pode ser
usada a legislação contra trustes” (Ibidem, p. 176). O estado precisa adotar políticas de
redistribuição de riqueza para não deixar haver a concentração de renda nas mãos de poucos
(Ibidem, p. 183).
II.3 - Amigos da sociedade aberta
A sociedade tribal, ou seja, a sociedade fechada possui uma ética tribal: o bem é o que
for do interesse do meu grupo, da minha tribo, do meu estado sustentando ideologicamente o
domínio e a exploração do mais forte sobre os mais fracos. Nas relações internacionais tal ética
implica que o estado mais forte estará sempre certo desde que suas ações ganhem mais poder
para si.
O tribalismo encontra um enorme obstáculo na antiguidade26, Popper chamou de a
grande geração: Sócrates, Péricles e Demócrito (POPPER, 1998a, p. 29). Eles formularam “a
ética humanitária que requer uma interpretação individualista27 e igualitária da justiça” (Ibidem,
p. 121).
A grande geração soma-se, sem menor importância, Protágoras e Jesus, significa que o
homem realizado e verdadeiramente livre não é aquele protagonizado pelo materialismo
histórico: está por vir, mas este homem já veio ou melhor estes homens já vieram e os seus
valores como construtores da sociedade aberta, isto é, tolerante, fraterna, democrática de direito,
valorizando a dignidade da pessoa humana, aberta aos imigrantes, crítica e autocritica,
resolvendo seus problemas através do diálogo e da política e não da violência, reformadora,
não morreram.
26
“Nossa civilização ocidental teve origem com os Gregos. Foram eles, parece, os primeiros a dar o passo do
tribalismo para o humanitarismo.” (POPPER, 1998a, p. 187).
27 Não se trata de apologia ao individualismo, mas de valorização do indivíduo ante o coletivismo tribal (POPPER,
1998a, p. 119).
Desses homens, Popper extraiu o espirito da sociedade aberta e a possibilidade de um
novo humanismo, a partir desses homens, apesar das ditaduras e totalitarismos, das duas
grandes guerras mundiais e do “cruel” capitalismo irrestrito há um feixe de luz para a
humanidade.
II.3.1 - “Eu preferiria encontrar uma só lei causal a ser o rei da Pérsia!”
Demócrito foi um expoente da sociedade aberta por possuir um pensamento com
enfoque democrático, humanitário, universalista e cientista:
Não por temor, mas pelo sentimento do que é reto, devemos abster-nos de
praticar o mal... A virtude se baseia, acima de tudo, nos respeitos aos demais... Cada
homem é um pequeno mundo próprio... Devemos fazer o máximo para auxiliar os que
sofrem injustiças... Ser bom não significa não fazer o mal, nem também não desejar
fazer o mal... As boas ações, e não as palavras, é que valem... A pobreza de uma
democracia é melhor do que uma prosperidade que se proclama marchar ao lado da
aristocracia ou da monarquia, assim como a liberdade é melhor do que a
escravidão... O sábio pertence a todos os países, pois o lar de uma grande alma é o
mundo inteiro (DEMÓCRITO Apud POPPER, 1998a, p. 201).
Seu enfoque cientista e de uma vida não pautada pela vontade de poder encontrou eco
nesta frase: “Eu preferiria encontrar uma só lei causal a ser o Rei da Pérsia!” (Idem). Popper
rapidamente realçou algumas virtudes de Demócrito, sem dúvida, seu enfoque na antiguidade
como campeão da sociedade aberta é Sócrates (POPPER, 1998a, p. 206): a epistemologia e o
pensamento político popperiano possuem inspiração socrática.
II.3.2 – Sócrates, mestre eminente da sociedade aberta
Sócrates não foi um líder da democracia Ateniense, como Péricles, nem como
Protágoras um teórico da sociedade democrática, Sócrates foi um mestre eminente da sociedade
aberta e um amigo da democracia (Idem). A verdadeira arma do homem é a sua razão: fonte de
inspiração ao racionalismo crítico popperiano, a razão é a unidade racional humana.
Segundo Sócrates a excelência da psychê (razão humana) manifesta-se no autodomínio
(enkráteia): domínio da racionalidade sobre a animalidade (a psychê senhora do corpo e dos
instintos ligados ao corpo). Neste conceito de felicidade não pode vir das coisas exteriores, mas
somente da psychê virtuosa, de modo que o homem virtuoso não pode sofrer nenhum mal, nem
na vida, nem na morte, porque males exteriores não podem prejudicar a harmonia interior e a
ordem da psychê. O homem é o verdadeiro artífice de sua felicidade.
A antropologia socrática influencia a antropologia popperiana, mas Popper não
acentuou a compreensão de Sócrates sobre a ordem interior por querer realçar a necessidade do
estado garantir a liberdade (exterior) do homem, mas sua compreensão da psychê permite
compreender melhor sua vida e morte. Caso o homem não consiga atingir seus objetivos com
a persuasão, como o próprio foi condenado a morte em 399 a.C., deve conformar-se, porque a
violência é coisa ímpia, Sócrates ensinou a revolução da não violência28.
Sócrates foi crítico de Atenas e de suas instituições democráticas, mas uma pessoa que
critica a democracia e as instituições democráticas não significa que seja inimigo da
democracia, como foi rotulado pelos democratas que ele criticou e os totalitários que queriam
tirar proveito.
Há “fundamental diferença entre uma crítica democrática e uma crítica totalitária da
democracia” (POPPER, 1998a, p. 205). Os democratas que não tem presente essa diferença, na
verdade estão imbuídos de espirito totalitário. Passou a maior parte de sua vida sob uma forma
democrática de governo e como bom democrata, considerou “seu dever expor a incompetência
e a charlatanaria de alguns líderes democráticos de sua época” (Ibidem, p. 144).
A relação de Sócrates com antidemocratas não se deu por ser um totalitário, mas sim
devido a um real interesse de exercer influência sobre eles, especialmente quando
demonstravam real interesse de crescimento:
Embora um dos espíritos dirigentes da sociedade aberta, Sócrates não era
homem de partido. Trabalharia em qualquer círculo em que sua obra pudesse
beneficiar sua cidade. Se tivesse interesse por um jovem promissor, não o afastariam
as ligações oligárquicas de família. Mas essas ligações deveriam causar-lhe a morte.
Quando a grande guerra foi perdida, viu-se Sócrates acusado de haver educado os
homens que trairiam a democracia e de haver conspirado com o inimigo para
produzir a queda de Atenas. (Ibidem, p. 207).
O intelectualismo socrático é igualitário e antiautoritário, acreditava que todas as
pessoas podiam ser ensinadas, no Menon, o vemos ensinar um jovem escravo um problema
28 Vale fazer menção que o líder negro norte-americano Martin Luther King da revolução não violenta inspirava-
se em Jesus e em princípios socráticos. Gandhi, não pertencendo as tradições judaica e grega, também liderou uma
revolução não violenta, nutriu admiração por Jesus ao ler na juventude o Sermão da Montanha (Mateus 5-7), a
nível social ao contrário de Gandhi, Jesus não foi político e muito menos nacionalista (POPPER, 1998b, p. 281).
geométrico, a fim de tentar provar que qualquer escravo não educado tem a capacidade de
aprender até assuntos abstratos (POPPER, 1998a, p. 144). Ao contrário de Platão, Sócrates de
forma agradável, respeitosa e bondosa ouvia as críticas dos jovens (Ibidem, p. 241).
A grande ideia igualitária e libertadora de Sócrates de que é possível
raciocinar com um escravo, de que há um elo intelectual mútuo entre os homens, um
meio de compreensão universal, a saber, a ‘razão’, essa ideia é substituída pela
exigência de um monopólio educacional da classe dirigente, acrescido da mais estrita
censura até mesmo dos debates orais. Sócrates acentuara que não era sábio; que não
estava de posse da verdade, mas era antes um pesquisador, um inquiridor, um amante
da verdade. Isso, explicou ele, expressa-se pela palavra ‘filósofo’, isto é, o amante da
sabedoria, o que a procura (Ibidem, p. 147-148).
II.3.2.1 – Despertar do sono dogmático: “Quão pouco sei!”
Se Sócrates afirmou que os estadistas devem ser os filósofos é devido suas grandes
responsabilidades precisam lançar-se à busca da verdade, com a consciência de suas próprias
limitações. A primeira vista pode parecer que Platão simplesmente repetiu o ensinamento de
Sócrates com o rei-filósofo, mas a mudança de acordo com Popper foi enorme:
Seu amante da verdade não é mais o modesto buscador e, sim, o orgulhoso
possuidor dela. Traquejado em dialética, é ele capaz de intuição intelectual, isto é,
de ver as eternas e celestiais Formas ou Ideias e de comunicar-se com elas. Colocado
bem acima de todos os homens comuns, ele é ‘semelhante a um deus, se não... divino’,
tanto por sua sabedoria quanto por seu poder. O filósofo ideal de Platão aproxima-
se tanto da onisciência quanto da onipotência. É o Filósofo-Rei (Ibidem, p. 148).
Para Popper a ideia de filósofo de Platão e Sócrates é o contraste entre dois mundos: “de
um individualista racional e modesto e o de um semi-deus totalitário.” (Idem). É notório como
de Platão, passando por Hegel até chegar a literatura marxista, a dialética criou a pretensão de
seus operadores deterem a autêntica ciência, de serem os possuidores da episteme, cujo método
como mostrado acima29 possui elevadíssimo grau de subjetividade.
A consciência do quão pouco sei de Sócrates inspirou a epistemologia popperiana: “me
fez um falibilista” (POPPER, 2002, p. 37), ser critico e autocrítico favorece as reformas
29 Ver os itens II.2.1 – Criador do historicismo e da dialética moderna e II.2.2.3 – Repensando a tríade historicismo-
dialética-episteme.
graduais, condição necessária para a sociedade aberta realizar-se. O “que chamo ‘verdadeiro
racionalismo’ é o racionalismo de Sócrates. É a consciência das próprias limitações, a modéstia
intelectual dos que sabem quantas vezes erram e quanto dependem dos outros, até para esse
conhecimento.” (POPPER, 1998b, p. 234 e 235).
Popper reconheceu que o intelectualismo de Sócrates pode conter certo elemento de
autoritarismo, mas foi reduzido ao mínimo pela sua modéstia intelectual (POPPER, 1998a, p.
147), uma missão que para ele era educacional e política: aperfeiçoar a vida política da cidade
era educar os cidadãos na autocritica (Ibidem, p. 145-146).
A teoria de Sócrates igualitária da razão humana como meio universal de comunicação,
sua insistência na honestidade intelectual e na autocrítica, sua doutrina de que é melhor sofrer
a injustiça do que infligí-la a outros30, mostram que o indivíduo tem muito valor. Com efeito,
seu pensamento é mortal para “a sociedade fechada, e com ela seu credo de que a tribo é tudo
e o indivíduo nada é” (Ibidem, p. 205).
II.3.3 – “Princípio de igualdade perante a lei”
Popper teve a preocupação de afirmar ter consciência sobre as limitações e mazelas
atenienses na edificação de seu império: possíveis atos de violência e brutalidade, bem como o
fato de que a democracia ateniense baseava-se ainda na escravatura (Ibidem, p. 196) e o direito
à cidadania limitada a uma pequena parte da população.
Porém, é preciso ressaltar e valorizar que Péricles, poucos anos antes do nascimento de
Platão, admiravelmente “formulou o princípio da igualdade perante a lei e do individualismo
político” (Ibidem, p. 200), isto é, a exigência de que os cidadãos do estado sejam tratados
imparcialmente31. O nascimento, as ligações de família e a riqueza não devem influenciar
aqueles que administram a lei para os cidadãos. (Ibidem, p. 109).
O texto de Péricles, Oração fúnebre, proferida por volta de meio século antes de ser
escrito A República, soa como se tivesse sido escrito contra Platão:
Nosso sistema político não compete com instituições que vigoram em qualquer
outra parte. Não copiamos nossos vizinhos, mas tentamos ser um exemplo. Nossa
30
“O ensinamento de Sócrates quanto a ser melhor sofrer tais atos do que praticá-los é realmente muito semelhante
ao ensinamento cristão e sua doutrina de justiça adapta-se excelentemente ao espirito de Péricles.” (POPPER,
1998a, p. 120).
31 Muitos outros na geração de Péricles representavam esse movimento (POPPER, 1998a, p. 110).
administração favorece a maioria em vez da minoria: por isso é chamada
democracia. As leis concedem justiça, igual, para todos igualmente, em suas disputas
privadas, mas não ignoramos as reivindicações do mérito. Quando um cidadão se
distingue, então será ele chamado a servir ao Estado, de preferência a outros, não
como questão de privilegio, mas como recompensa ao merecimento; e a pobreza não
é um obstáculo... A liberdade de que gozamos estende-se também à vida comum; não
temos suspeitas uns dos outros nem importunamos o próximo se ele prefere agir como
lhe apraz... Mas esta liberdade não nos priva de lei. Somos ensinados a respeitar os
magistrados e as leis e a nunca esquecer que devemos proteger os ofendidos. E somos
também ensinados a observar aquelas leis não escritas cuja sanção repousa apenas
no consenso universal do que é justo... (PÉRICLES Apud POPPER, 1998a, p. 201-
202).
Com mais ênfase do que Demócrito, Péricles afirmou a igualdade, a liberdade e a
acolhida aos imigrantes:
Nossa cidade tem as portas abertas ao mundo; nunca expulsamos um
estrangeiro... Somos livres para viver exatamente como nos apraz, e contudo sempre
estamos dispostos a enfrentar qualquer perigo... Amamos a beleza sem comprazer-
nos em fantasias e embora tentemos aprimorar nossa inteligência isso não nos
enfraquece a vontade... Não consiste para nós uma desgraça admitir que alguém é
pobre; mas consideramos desgraçado não fazer esforços para evitar isso. Um
cidadão ateniense não deve negligenciar as coisas públicas quando atende a seus
negócios privados... Consideramos o homem que não toma interesse pelo Estado não
como inofensivo, mas como inútil; e embora apenas pouco possam dar origem a uma
política, somos todos capazes de julgá-la. Não encaramos a discussão como uma
pedra de tropeço no caminho da ação política, mas como uma preliminar
indispensável para agir sabiamente... Acreditamos que a felicidade é o fruto da
liberdade, e a liberdade o do valor, e não recuamos ante os perigos da guerra... Em
resumo, proclamo que Atenas é a Escola da Hélade e que o Ateniense,
individualmente, cresce desenvolvendo-se em feliz versatilidade, em presteza para
enfrentar emergências e em confiança em si mesmo (Ibidem, 1998a, p. 202).
São palavras que expressam o verdadeiro espírito da grande geração, um “programa
político de um grande individualista igualitário, de um democrata que bem compreendia não
poder a democracia exaurir-se no insignificante princípio de que ‘o povo deve governar’, mas
deve basear-se sobre a fé na razão e no humanitarismo” (POPPER, 1998a, p. 202).
Trata-se da defesa de uma política com ataques ao tribalismo de Esparta, “sua
importância foi sentida por Platão, que caracterizou a oração de Péricles, meio século depois,
nos trechos de A República em que ataca a democracia, assim como naquela indisfarçada
paródia, o diálogo chamado Menexeno32” (POPPER, 1998a, p. 203).
II.3.4 – “Jesus ensinou ama teu próximo e não ama a tua tribo”
A família de Popper é de fé judaica, mas migrando para um país de forte presença cristã
decidiram-se batizar para serem “o menos ofensivo possível” (POPPER, 2002, p. 119). Com o
passar do tempo, no contexto conturbado de sua época: guerra, xenofobia, holocausto,
preconceito, violência brutal ressaltou-lhe os olhos os ensinamentos de Jesus, não por uma
assimilação cultural, mas pelo seu humanismo: Jesus ensinou a amar a pessoa e não o grupo
das pessoas (POPPER, 1998a, p. 117).
O que aconteceu de errado com o legado humanitário de Jesus? Popper viu em Platão o
artífice de muitas ditaduras e os cristãos também deixaram se seduzir por suas ideias, que em
sua interpretação são anticristãs:
Levando-os a exaltar a reputação de Platão como mestre de moral e a
anunciar ao mundo que sua ética é a mais estreita aproximação do Cristianismo
surgida antes de Cristo, estão preparando o caminho para o totalitarismo e para uma
interpretação totalitária e anticristã do Cristianismo (Ibidem, p. 119).
A Grande Geração (Demócrito, Sócrates e Péricles) teve continuidade histórica em pró
da sociedade aberta com o Cristianismo (POPPER, 1998b, p. 30), interrompido por um
autoritarismo medieval iniciado em Constantinopla com o imperador Justiniano, seguindo na
esteira do totalitarismo platônico-aristotélico culminou com a inquisição (Ibidem, p. 31),
voltando aos ideais humanitários de seu fundador no ambiente da república moderna.
Popper polemicamente interpretou que a fé cristã é incompatível com Platão e
Aristóteles, algumas tentativas medievais de punir desvios da sociedade de acordo com Popper
encontraram sustentação teórica nos dois filósofos gregos (POPPER, 1998a, p. 321).
Porém, vale considerar que nos padres apologistas do II século, os primeiros a
defenderem a síntese da fé cristã com a filosofia grega não há proposta de usar da violência em
nome da fé. Naquele momento os perseguidos foram eles mesmos, consequentemente levando
32 Popper tinha consciência sobre a polêmica do Menexeno ter sido elaborado por Platão (POPPER, 1998a, p.
328).
a pensar que a violência em nome da fé cristã está muito mais ligada ao poder: a Igreja fazer a
função do estado, do que a influência de Platão e Aristóteles.
Jesus deu forte contribuição para a emancipação do indivíduo:
Esse individualismo, unido ao altruísmo, tornou-se a base de nossa civilização
ocidental. É a doutrina central do Cristianismo (‘Ama a teu próximo’, dizem as
Escrituras, e não ‘ama a tua tribo’); e forma o âmago de todas as doutrinas éticas
que surgiram de nossa civilização e a estimularam. É também, por exemplo, a
doutrina prática central de Kant (‘reconhecei sempre que os indivíduos humanos são
fins e não os utilizeis como simples meios para vossos fins’). Não há outro
pensamento que tenha sido tão poderoso para o desenvolvimento moral do homem
(POPPER, 1998a, p. 117).
O “humanitarismo da nova seita dos cristãos, que abrangia os bárbaros (ou gentios)
assim como os escravos. Vemos pelos Atos dos Apóstolos quão urgentes eram esses problemas,
o social assim como o nacional” (POPPER, 1998b, p. 30). O problema do nacionalismo e a
superação do tribalismo regional judeu pelo internacionalismo desempenham parte importante
na história primitiva do Cristianismo (Ibidem, p. 313-314).
Jesus se opôs ao petulante idealismo platonizante e ao intelectualismo dos escribas e
eruditos (Mt 11,25), criticou o tribalismo judeu com os seus rígidos e vazios tabus tribais33, que
se expressava, por exemplo, na doutrina do povo escolhido, isto é, numa interpretação da
divindade como um deus tribal (POPPER, 1998b, p. 29).
Jesus ensinou seus discípulos a serem altruístas, de modo que o sucesso histórico através
da riqueza e do poder “parece incompatível com o espírito do cristianismo.” (Ibidem, p. 281).
Sócrates ensinando que é possível raciocinar com um escravo mostrou o elo racional
que envolve a humanidade e Jesus ensinando a fraternidade universal mostrou como conviver
na sociedade aberta:
Nossa civilização ocidental deve seu racionalismo, sua fé na unidade racional
do homem e na sociedade aberta, e especialmente sua feição cientifica, à antiga
crença socrática e cristã na fraternidade de todos os homens e na honestidade e
responsabilidade intelectual. (Ibidem, p. 252).
33
“Não desejo ser mal interpretado. Não tenho hostilidade para com o misticismo religioso (só para com um
intelectualismo anti-racionalista militante) e seria o primeiro a combater contra qualquer tentativa de oprimi-lo”
(POPPER, 1998b, p. 266).
Para Popper um estado, partido, Igreja não pode impor uma ética aos cidadãos, pois isso
seria o fim da responsabilidade moral do indivíduo. Com isso não deseja combater a religião,
mas algumas formas de religiões, em sua opinião o Cristianismo é a religião que possui uma
parcela importante na construção da sociedade aberta.
No mundo contemporâneo a ética cristã traz consigo a igualdade, a tolerância e a
liberdade de consciência, mas tais valores não podem ser aceitos somente pela reivindicação da
autoridade divina, pois também há interpretação sobre Deus desejar que os homens sejam
intolerantes com os infiéis e pedir a desigualdade de dignidade entre as pessoas. A sociedade
aberta pode aceitar a ética cristã não porque isso foi ordenado e sim por ser nossa convicção de
que essa é a reta decisão a tomar, então a decisão é nossa (POPPER, 1998a, p. 80).
O fundador do Cristianismo foi interrogado por certo ‘doutor da lei’ sobre um
critério para distinguir entre uma verdadeira e uma falsa interpretação de suas
palavras. A isto ele respondeu contando a parábola do sacerdote e do levita que,
ambos, vendo um homem ferido, em grande aflição, ‘passaram ao largo’, enquanto o
samaritano lhe ligou as feridas e cuidou de suas necessidades materiais (POPPER,
1998b, p. 31).
O rei Salomão foi responsável por uma das maiores tragédias de Israel: ao aumentar os
impostos em grande quantidade do norte de seu reino (região mais rica), houve uma sublevação
e a divisão de Israel: o reino do Norte erigiu uma nova capital a Samaria, um novo templo e um
novo rei, depois vieram as guerras fratricidas entre o reino do Sul cuja capital era Judá e o reino
do Norte cuja capital era a Samaria. Dessa conjuntura econômica e política surgiu o ódio dos
judeus pelos samaritanos.
Nessa parábola o sacerdote personalidade reconhecida pela sociedade foi colocado
como não fazedor da vontade de Deus, em contrapartida Jesus propositalmente colocou o
inimigo samaritano fiel a Deus por ser misericordioso (materialmente) cuidando do próximo,
superando a ética basilar da sociedade fechada: o bem é o bem da minha tribo.
III – Engenharia social gradual da sociedade aberta
“Por sociedade aberta eu não quero dizer
um sistema social definido, mas
fundamentalmente, uma sociedade
tolerante” (POPPER, 2008, p. 136).
Em 1946, Popper chegou ao Reino Unido, três anos depois tornou-se professor na
London School of Economics and Political Science. Tendo conseguido escapar das mãos de
Hitler e lecionando em uma academia renomada teve estabilidade para seguir com suas
pesquisas, proferir palestras e debates com filósofos consagrados como Carnap, Otto Neurath,
Ludwig Wittgenstein, Hayek, Adorno e o cientista Albert Einstein. Em 1976, foi eleito para a
prestigiada The Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge, cujo
objetivo é à promoção do conhecimento científico.
Com o fim da II Guerra Mundial a Europa Ocidental estava destruída, pela segunda vez
o território dos Estados Unidos passou imune pela grande guerra, desde o início do século XX
os norte-americanos já eram a maior economia do mundo e com a queda de Hitler passaram a
disputar a hegemonia mundial com a União Soviética.
É claro de qual lado Popper ficou no mundo bipolar, apesar de querer que o debate saísse
da polarização capitalistas contra comunistas, por isso evitava ao máximo usar essas duas
palavras, chamando filósofos e economistas para debater ideias na construção de uma sociedade
melhor para as pessoas.
Por Popper ter criticado o positivismo e por sua política protecionista aos pobres, Hayek
escreveu-lhe uma carta perguntando se era socialista (POPPER, 2008, p. 117), Popper
respondeu anexando uma carta que escrevera a Carnap que o havia perguntado sobre o mesmo
tema, em 1947 (Ibidem, p. 103-105). A resposta de Popper foi “eu prefiro não usar tais termos
como ‘socialismo’ ou ‘capitalismo’ ou qualquer coisa do tipo para caracterizar uma séria e
responsável posição política” (Ibidem, p. 103).
No ano de 1950, Popper advertiu os leitores de seu livro A Sociedade aberta e seus
inimigos pelo momento vivido no mundo bipolar de não exagerar a critica que fez a Marx:
Visto na escuridão da presente situação do mundo, a critica de Marx é
suscetível de se destacar como o ponto principal do livro. Essa visão não é
inteiramente errada e talvez inevitável, embora os objetivos do livro são muito mais
amplos. Marxismo é somente um episódio - um de muitos erros que nós temos feitos
no esforço perene e perigoso por construir um mundo melhor e mais livre (POPPER,
2008, p. 180).
Popper tentou fazer uma espécie de síntese entre capitalismo e socialismo, de modo que
há semelhanças entre o pensamento de Hayek e Popper, mas também há diferenças
consideráveis entre os dois sobre racionalidade, economia e democracia.
Será refletido sobre como Popper compreendeu o ser-humano o que permitirá entender
seu pensamento e as propostas apresentadas por ele na resolução dos problemas que afligem a
humanidade, aprofundar sua teoria democrática, buscar traçar as semelhanças e diferenças do
liberalismo de Hayek e as reformas graduais da sociedade aberta, bem como algumas
divergencias com o neoliberalismo da Fundação Sociedade Aberta de George Soros. Para
alcançar a tese desta dissertação em tentar discernir e identificar onde Popper quis chegar com
suas reformas graduais.
III.1 – Antropologia popperiana: ser racional, social e espiritual
A interpretação que Popper fez do ser-humano teve como consequencia uma critica a
visão de homem moderna cuja matriz está na racionalidade cartesiana: o otimismo de produzir
um método que chegue a episteme.
Popper entendeu o ser-humano limitado com uma relativa ignorância diante de um
mundo complexo, fazendo com que seja impossivel compreendê-lo na sua totalidade. O homem
não foi bom no estado selvagem e nem hoje o é, o homem com ou sem capitalismo muito mais
erra do que acerta e o método revolucionário é a vazão para explosão da violencia latente no
ser-humano, que tem como resultado a barbárie.
Criar um método que chegue a episteme é um mito, por isso é necessário a postura
humilde do reconhecimento da ignorância, um cientista não deveria ser dogmático: sua reposta
a um problema jamais deveria ser considerado definitiva, pois amanhã uma revolução cientifica
pode conduzir a uma solução diferente (Ibidem, p. 42).
Segundo Popper é um flagelo da sociedade atual o relativismo e sua aceitação significa
a destruição da sociedade aberta (MILLER, 1999, p. 50). A importância da pluralidade de ideias
e a impossibilidade do homem produzir conhecimento a nível da episteme não significa
relativismo, mas sim saudável competição pelas melhores teorias: na física aquelas que refutam
a tese, na ética aquelas que promovem o humanitarismo e a razoabilidade, a igualdade e a
liberdade.
Logo, Popper entendeu que na ética há cláusulas pétreas que caso a sociedade mude
levaria a destruição da sociedade aberta e a escuridão.
O novo humanismo popperiano uniu a dignidade da pessoa, modéstia intelectual e
altruísmo, para respaldar o grande valor que cada ser-humano possui, é necessário uma moral
que externe uma política sobre a dignidade de cada um e a isonomia.
Popper considerou que a ideia de que o ser-humano é imagem e semelhança de Deus
pode favorecer o diálogo e o respeito, em sua opinião os cristãos deveriam ser os grandes
promotores do humanitarismo, uma vez que compreendem a redenção não a um grupo humano
(tribo), mas sim entendem que “a pessoa humana criada por Deus e redimida por Cristo é de
valor primordial” (POPPER, 2008, p. 66).
Ele foi cada vez mais estreitando sua antropologia a antropologia cristã, ressaltando o
grau de comunhão entre seu humanismo e algumas ideias religiosas, na sociedade aberta os
“cristãos terão obviamente de cooperar com não cristãos. Essa sentença é fundamental”
(Ibidem, p. 62).
Popper teve a preocupação de afirmar que somente os homens e mulheres são
responsáveis pela adoção ou rejeição de certas leis morais, foi crítico a religião de autoridade
cega, mas favorável “a uma religião construída sobre a ideia de responsabilidade pessoal e da
liberdade de consciência. Tenho em mente, sem dúvida, especialmente o Cristianismo, pelo
menos como ele é interpretado nos países democráticos” (POPPER, 1998a, p. 79).
Popper não considerou que a progressiva intelectualização e racionalização do mundo
moderno significou o desencantamento do mundo, uma vez que a razão com a ciência pode
dominar tudo, como a interpretação weberiana assinalou, de modo que a fé religiosa signifique
o sacrifício do intelecto, levando a uma tensão sem fim entre valores da ciência e a religião.
Disse que não há muito tempo atrás existiu grande tensão entre ciência e religião,
tornando-se mais candente no século XIX (momento da hegemonia positivista e marxista) com
a controvérsia de Darwin e a teoria da evolução, porém no século XX não há mais motivo para
choque entre ciência e religião, “na minha opinião é agora obsoleto” (POPPER, 2008, p. 45).
Tanto os cientistas como os religiosos tem culpa pelo choque: os cientistas foram
encorajados pelo enorme desenvolvimento cientifico a pensar que não existe nada que não
possa ser enquadrado no método cientifico, os religiosos por não perceberem completamente
que a fé está em um âmbito diferente do método cientifico (Ibidem, p. 41).
Questões como o objetivo da vida não podem ser respondidas pela ciência, há pessoas
que dogmaticamente afirmam que não há nada além do scopo cientifico, mas também a forma
como nos comportamos e como nos relacionamos com as pessoas “formam um reino que está
de certa forma fora da ciência” (Ibidem, p. 44-45).
Assim como Popper criticou o otimismo com os métodos criados na filosofia e na física,
também o fez no comportamento humano. Seu grande interesse pela psicologia e a psicanálise
levou a estudar o tema, foi aluno e admirador de Karl Buhler, trabalhou com Alfred Adler numa
clínica infantil. Popper entendeu que o complexo de Édipo e a vontade de poder foram
ultilizados como universais por Freud e Adler (especialmente por seus seguidores), procedendo
dessa forma uma teoria anula a outra:
O exemplo de um homem que empurra uma criança para a água com a
intenção de a afogar; e o exemplo de um homem que sacrifica a sua vida numa
tentativa de salvar a criança. Qualquer um destes dois casos pode ser explicado, com
idêntica facilidade, em termos freudianos e em termos adlerianos. De acordo com
Freud, o primeiro homem sofria de repressão (digamos, de uma componente do seu
complexo de Édipo), enquanto o segundo teria atingido a sublimação. De acordo com
Adler, o primeiro homem sofria de sentimentos de inferioridade (que teriam
produzido, talvez, a necessidade de provar perante si próprio que tinha coragem de
cometer um crime); e o mesmo se passaria com o segundo homem (cuja necessidade
seria a de provar a si próprio que tinha coragem para salvar a criança). Não me
consegui lembrar de nenhum comportamento humano que não pudesse ser
interpretado nos termos de qualquer uma destas duas teorias (POPPER, 2006, p. 58).
Se absolutizar Freud explicando o homem a partir do passado anula Adler, se absolutizar
Adler explicando o homem a partir do futuro anula Freud. Porém, não significa dizer que “Freud
e Adler não tivessem razão em determinadas coisas” (Ibidem, p. 61). Logo, Popper entedeu a
necessidade de redimensionar as descobertas de Freud e Adler e acrescentou:
Nossos alvos naturais não são necessariamente alvos tais como a saúde, o
prazer, o alimento, o abrigo ou a propagação da espécie. A natureza humana é tal
que o homem, ou pelo menos alguns homens, não desejam viver apenas por pão,
buscando alvos mais elevados, alvos espirituais. Podemos, assim, deduzir os
verdadeiros alvos naturais do homem de sua verdadeira natureza, que é espiritual e
social (POPPER, 1998a, p. 87).
Adler explicou o ser-humano a partir do futuro que ambiciona (influência de Nietzsche),
vale notar que para o psicólogo austríaco mesmo a energia sexual é um componente da vontade
de poder (vontade de dominar). Popper não negou que o desejo de superioridade exista e é forte,
mas o homem não busca apenas e unicamente o poder, por isso há algo a mais na natureza
humana, os próprios amigos da sociedade aberta elencados por ele mostraram que tinham
também outras aspirações e inclusive se sacrificaram por elas34.
Nesse sentido Popper trouxe para o pensamento racionalista duas dimensões do ser-
humano que ficavam de “lado” ou mesmo foram negligenciadas: a racionalidade social e a
racionalidade espiritual.
Por que Popper pensou que a psicanálise precisava ser reinterpretada pela filosofia?
Devido a cisão a psicanálise de Freud liderada por Jung e Adler, não podendo seguir o otimismo
dos neomarxistas com a psicanálise de Freud.
A influência de Freud na Escola de Frankfurt foi enorme, mas foi gradativamente
perdendo força entre os socialistas por nos últimos anos ter ganhado influencia a interpretação
do utilitarismo britânico, especialmente a filosofia de John Stuart Mill, na psicanálise de Freud,
significa dizer que um dos elementos da gênese da psicanálise de Freud é o mesmo de um dos
elementos importantes da gênese do liberalismo: o utilitarismo.
Vai além das intenções desta dissertação explorar esse tema interessante, brevemente
vale lembrar que Freud traduziu uma obra de John Stuart Mill e fez uma citação dele em sua
obra, a etologia de ambos (entendida como ciência da formação do caráter), o “eu” entendido
como objeto natural, soma-se o estilo empirico de Freud, bem como é fundamental ressaltar o
fator de regulação do psíquico: o conhecido princípio do prazer freudiano.
Mais recentemente em ambiente socialista ou de bastante critica ao capitalismo o
psiquiatra em voga é Jacques Lacan, porque ele se opôs a tendência, especialmente norte-
americana, de readaptar os indivíduos a ordem social existente.
O retorno a Freud por Lacan foi devido ao pai da psicanálise ter mostrado que há
doenças que falam, é o inconsciente que quanto mais sofre mais fala, sendo um erro ao
psicanalista readaptar o indivíduo a sociedade, mas sim deve ajudar o sujeito a compreender a
verdadade do inconsciente. Ficando evidente o interesse dos socialistas na psicanálise de Lacan
a vendo como um instrumento de mudança (revolução).
Popper criticou diversos aspectos do neoliberalismo com a finalidade de levar mais
qualidade de vida para as pessoas, mas não entendeu que o capitalismo restrito pelo poder
político impeça a liberdade e a felicidade das pessoas. Vale acrescentar que na psicanálise de
34 Foram os fracassados historicamente: Jesus e Sócrates que deram os parâmetros para a ética da sociedade aberta
(POPPER, 2008, p. 75). Nessa citação Popper concordou com o teólogo luterano Karl Barth: na Profissão de Fé
“Jesus padeceu sob Pôncio Pilatos”, significa historicamente não triunfou e não dominou.
Lacan, o mal estar do real continua mesmo em outro modelo econômico, porque com ou sem
capitalismo a psicanálise não gera sentido.
Lacan proferiu conferências na universidade Católica de Louvain intituladas O triunfo
da religião, em sua origem foi uma entrevista que Lacan concedeu a jornalistas italianos e
franceses por ocasião de um congresso da Escola Psicanalítica de Paris ocorrido em Roma, em
1974.
Ele estava idoso e sem esperança, ao mesmo tempo que perfeitamente lúcido,
reconheceu o erro de pensar que a psicanálise acabaria com a religião, porque a psicanálise com
a descoberta do inconsciente mostrou a dispersão do sentido e as dilacerações não conciliáveis
do eu consciente (ego), enquanto a estabilidade da religião vem do fato de que o sentido é
sempre religioso, apesar de ter considerado que esse sentido camufla o que não vai bem.
Popper compreendeu que a natureza espiritual do ser-humano decorre dos alvos, fins
espirituais que busca, que para ele são legitimos, Lacan entendeu que não se trata de apenas
“objetivos” espirituais que o homem busca, mas que a religião dá sentido aos problemas e
especialmente dá sentido a vida.
A verdadeira religião35, segundo Lacan, triunfará sobre o inimigo comum da psicanálise
e da religião: o mal estar do real36, porque a religião dá sentido e a psicanálise não, ainda
acrescentou que triunfará sobre muito mais (ciência, filosofia estado, educação), já que a
religião é muito mais poderosa do que se pensa.
O sentido da vida, incipiente na interpretação de Popper da psique, explicita-se em
Lacan quando estava idoso e especialmente no psiquiatra Viktor Frankl, ao perceber que seus
pacientes não sofriam exclusivamente de repressões do desejo sexual (Freud) ou de sentimentos
de inferioridade (Adler), mas também de vazio existencial.
A mente humana possui desejo de sentido, sem ignorar os trabalhos de Freud e Adler,
Frankl encontrou na ausencia de sentido da vida a maior fonte de neuroses, as pessoas tem cada
vez mais meios para viver, mas não tem sentido pelo qual viver.
Sobre o entendimento da psique humana, Popper tomou um “pouco” de Freud, um
“pouco” de Adler e acrescentou os objetivos espirituais que o ser-humano busca como
decorrência de sua natureza espiritual.
35 Quando perguntado pelos jornalistas sobre o significado da verdadeira religião respondeu que a verdadeira
religião é a católica. Há uma verdadeira religião, é a religião cristã.
36 Lacan retomou O mal-estar na civilização de Freud e constatou que o homem “liberado”, livre de interditos,
não tornou-se feliz, mas revelou o mais profundo de sua pavorosa fissura e dilaceração.
Apesar de Popper não ter trabalhado a psicanálise de Lacan e de Frankl, elas se tornam
interessantes a sua epistemologia e antropologia, porque mesmo Lacan que quis voltar a Freud,
interpretou o inconsciente estruturado como linguagem. A multiplicidade de teorias para
explicar a psique humana exercendo grande influencia sobre a antrpologia, brevemente
apresentadas acima, permitiu defender a limitação dos raciocinios e métodos criados pelo
homem, o que explica porque a escola austriaca de economia e Popper, ao contrário da escola
de Frankfurt, não foram otimistas com a psicanálise de Freud.
III.2 – Sua teoria democrática
A teoria do estado de Platão, Aristóteles e Hegel é a doutrina de que o estado é a
encarnação da moralidade e o mesmo pode punir seus cidadãos por desvios éticos, o estado e
seus representantes são a única autoridade moral e como tais devem ser adorados, porém o
Cristianismo nascente recusou aceitar que o estado é maior autoridade moral do que suas
próprias consciências, o mesmo fez Sócrates (POPPER, 2008, p. 63 e 64).
Apesar da sociedade aberta não se identificar com um sistema social definido e isso
vale, inclusive a democracia, mas sim com a tolerância. Popper considerou que no momento
em que viveu a democracia de direito com reformas graduais possui o sistema que gera melhor
qualidade de vida para as pessoas. O que entendeu por democracia não se trata de simplesmente
“governo do povo”:
Por democracia não entendo algo tão vago como o “governo do povo” ou o
“governo da maioria”, mas um conjunto de instituições (entre elas, especialmente,
eleições gerais, isto é, o direito do povo de mudar o governo), que permitam o
controle público dos governantes e sua mudança pelos governados, e que torne
possível para os governados obter reformas sem usar da violência, mesmo contra a
vontade dos governantes (POPPER, 1998b, p. 158).
Os poderes executivo e legislativo legitimamente eleitos pelo povo não recebem um
“cheque em branco” para fazerem o que quiserem no período de seu mandato, deve haver uma
saudável desconfiança do poder político. Trata-se de ingenuidade acreditar que o governo será
bom pela simples pertença a um determinado partido: os socialistas, os liberais, os
conservadores, entre tantas ideologias partidárias, em si não significa uma boa gestão a
população.
Não existe um grupo social que tenha vindo a este mundo com o dom da soberania sobre
os demais. Fazendo necessário meios e instituições que garantam a transparência da gestão,
eleições gerais e a possibilidade de mudar um governo por motivos graves, sem que seja
necessário o uso da violência, mesmo antes do término de seu mandato.
Assim como Popper criticou o otimismo dos filósofos com seus métodos, também
criticou o otimismo de uma sociedade com um partido político ou com uma pessoa pública. O
poder político é tão perigoso quanto o poder econômico, por isso é necessário limitar o poder
dos governantes.
Democracia não se trata apenas de “governo do povo” e nem simplesmente de “governo
da maioria”:
A democracia não pode ser plenamente caracterizada como o governo da
maioria, embora a instituição das eleições gerais seja da maior importância, pois
uma maioria pode governar de modo tirânico (a maioria dos que têm menos de 1
metro e 80 de altura pode decidir que a minoria dos que tem altura superior a 1 metro
e 80 deverá pagar todos os tributos). Numa democracia os poderes dos governantes
devem ser limitados; e o critério de uma democracia é este: numa democracia, os
dirigentes – isto é, o governo – podem ser mudados pelos dirigidos sem
derramamento de sangue. (POPPER, 1998b, p.167).
A maioria pode elaborar decisões esdruxulas e até mesmo perigosas, de modo que a
teoria democrática popperiana incita os cidadãos a uma saudável desconfiança de seus
representantes, permeada pelos valores da igualdade e da tolerancia, com a consciencia de que
não existe método infalível:
exigimos um governo que governe de acordo com os princípios do
igualitarismo e do protecionismo; que tolere todos os que se disponham a agir do
mesmo modo, isto é, que sejam tolerantes; que seja controlado pelo voto majoritário,
juntamente com instituições para manter o público bem informado, são o melhor,
embora não infalível, meio de controlar tal governo (não há meios infalíveis).
(POPPER, 1998a, p. 290).
Não são as pessoas que existem para o estado como os fascistas demandaram, mas sim
o estado é que existe para as pessoas. A sociedade aberta defende a liberdade, mas a liberdade
ilimitada significa que um forte é livre de agredir um fraco e roubar a liberdade deste. É o que
Popper chamou de paradoxo da liberdade: ilimitada se destrói, por isso viver em sociedade
significa aceitar que a liberdade seja um pouco limitada:
O que eu demando do estado é proteção, não somente para mim, mas para
outros, também. Eu demando proteção para minha própria liberdade e para a
liberdade de outras pessoas. Eu não desejo viver a misericórdia de alguém que tem
punhos maiores ou armas maiores. Em outras palavras, eu desejo ser protegido
contra agressão de outros homens. Eu quero que a diferença entre agressão e defesa
seja reconhecida, e defesa ser apoiada pelo poder organizado do estado. Eu estou
perfeitamente pronto ver minha própria liberdade de ação de alguma maneira
cerceada pelo estado se eu posso obter proteção do que permanece, desde que eu sei
que algumas limitações da minha liberdade são necessárias (POPPER, 2008, p. 67).
Para Popper a pretensão de apresentar a democracia como o governo da maioria ou da
soberania popular é um mito. As pessoas podem influenciar em uma democracia as ações de
seus governantes, mas as próprias pessoas nunca governam. Democracia é “acima de tudo
instituições equipadas para defender-se da ditadura” (NOTTURNO, 2014, p. 77), as instituições
democráticas não permitem acumulação de poder ilimitado ao poder do estado, o governo não
limitado da maioria poderia conduzir a tirania.
Popper concordou com Platão que a democracia tem uma tendência a transformar-se em
ditadura é o paradoxo da democracia: o voto da maioria pode eleger um tirano. Não existe
sistema sem falhas, o “papel do povo em uma democracia não é governar ou mesmo fazer
escolhas políticas, ao contrário, é julgar como seus representantes eleitos estão fazendo seu
trabalho e votar pela sua saída caso não estejam fazendo bem seu trabalho (Idem).
A pergunta do democrata é como controlar quem governa? São as instituições
democráticas que previnem a ascensão de ditadores, democracia para Popper é “um sistema de
governo com controle institucional para prevenir a tirania” (Ibidem, p. 79).
Popper considerou importante refletir sobre a relação dos candidatos e o povo. Em um
sistema de representação proporcional o governo do povo realiza-se através de seus
representantes e por maioria de votos, deveria ser o mais próximo possível a real fonte de
legitimidade do poder: o povo.
O problema é que a pessoa não pode escolher seu representante, mas somente um partido
e o candidato escolhido pelo partido. As opiniões do partido são tipicamente de projeção pessoal
e de busca pelo poder com todas as intrigas que isso implica não identificadas com as opiniões
das pessoas, tornando-se tanta vezes ideologias (POPPER, 2008, p. 365).
Em uma constituição que não prevê a representação proporcional os partidos não
precisam ser mencionados em tudo, nem precisam ser oficializados, o eleitorado de cada distrito
envia seu representante pessoal a câmara, é decisão do representante atuar sozinho ou formar
um partido e ele pode tratar disso com o seu eleitorado.
Seu dever é representar os interesses das pessoas que ele representa, atuar em conjunto
em um partido ou ir para outro partido ou agir sem partido, o faz de acordo com o que é melhor
para representar o distrito que o pôs na câmara. Em sua teoria deve-se criar mecanismos para
romper com a lógica de que o candidato busque a eleição somente como representante de um
partido, deve lealdade ao partido e suas ideologias, não as pessoas. Se vota contra a decisão do
partido está sujeito a punições (POPPER, 2008, p. 366).
Em todo caso, os partidos existindo da forma como estão, Popper colocou a questão:
aumentar o numero de partidos significaria mais escolhas e mais oportunidades? Seria a solução
para sistema de representação? Respondeu que pode parecer melhor, mas tal sistema também
significa maior distribuição de influência e de poder, o que tornaria necessário que um governo
formasse uma coalizão significando maiores dificuldades na formação de um governo e a
dificuldade de conseguir sustentá-lo durante seu mandato.
Pequenos partidos podem ter uma influencia desproporcionalmente grande,
impossibilitando a formação de um governo e inclusive na resignação de um já estabelecido
(Ibidem, p. 367). A existência de partidos politicos na interpretação de Popper também deve ter
limitação pelo poder politico, porque muitos pequenos partidos podem ter uma grande força
politica, inclusive impedindo a formação ou o desempenho de um governo.
Exemplos recentes do que Popper disse são: a Espanha no ano de 2016 ficou quase que
todo esse período sem primeiro ministro, porque os partidos não se entendiam para alcançar a
maioria necessária, diversas eleições foram feitas deixando o país estagnado e o povo furioso.
O caso da Itália é ainda mais significativo, em setenta anos teve sessenta e sete governantes
tornando difícil a realização de qualquer projeto de governo, desde que adotou o
parlamentarismo seu chefe de governo dura em média mísero um ano, novos acordos, novos
ministros, convencimento do senado demora muito tempo bloqueando as atividades
governamentais por um longo período, não por acaso é o país da União Europeia que mais
demora para aprovar uma lei.
No Brasil por estar num regime presidencialista a grande quantidade de partidos não
impede a eleição de um governo, mas pode criar dificuldades para aprovação de leis e ser um
obstáculo para um governo conseguir se sustentar, acrescenta-se que no Brasil tornou-se um
bom negócio ter um partido pelo acesso ao fundo partidário: um partido minúsculo como o da
Causa Operária (PCO), recebeu o menor valor em 2015, uma verba de um milhão e trezentos
mil reais.
Popper considerou a forma inglesa e norte-americana de dois partidos ou algo próximo
disso a forma mais eficaz para a configuração de um governo e conseguir sustentação no
período de seu mandato, tendo maior possibilidade de aprovar leis que julgue necessárias para
o desenvolvimento do país, é necessário como característica do racionalismo critico a sociedade
instigar os dois partidos ao processo contínuo de autocrítica buscando reformas para melhorar
a sociedade.
Quando foi questionado com o argumento de que a teoria de dois partidos não está de
acordo com a sociedade aberta, pois a mesma precisa de novas ideias e do pluralismo, Popper
respondeu:
Reino Unido e Estados Unidos são muito abertos a novas ideias. Completa
abertura seria, é claro, a autodestruição, como seria a liberdade completa. Também
abertura cultural e abertura política são duas coisas diferentes. E mais importante
ainda do que maior abertura e maior debate politico pode ser uma adequada atitude
para o Dia politico do Julgamento (POPPER, 2008, p. 369).
Dessa forma fica assegurada a possibilidade de reformas graduais que poderiam ficar
estagnadas na pluralidade partidária. Sua teoria democrática é republicana com uma saudável
desconfiança dos politicos, com a finalidade de delimitar seu poder, constituindo um estado que
maus governos possam ser retirados sem violencia e sem derramamento de sangue.
Platão, como vimos, esteve próximo de descobrir os paradoxos da liberdade e
da democracia. Mas o que Platão e seus seguidores esqueceram é que todas as outras
formas da teoria da soberania dão nascimento a inconsistências análogas. Todas as
teorias de soberania são paradoxais. (POPPER, 1998a, p. 139).
A liberdade e todas as teorias de soberania existem paradoxos, a liberdade não limitada
destrói-se, diante dessa tensão não há uma fórmula para descrever quanto a liberdade deve ser
limitada e só no desenrolar da socieade é que o poder politico sem exageros faz os ajustes
necessários.
III.2.1 - A sociedade aberta é somente fechada aos intolerantes
Nos países desenvolvidos, na década de oitenta, Popper considerou que a tolerância,
fundamento da sociedade aberta, tinha avançado muito, mas deve-se aprender com a história: a
ascensão de ditadores como Stálin, Hitler, Mussolini mostraram como é preciso estar sempre
atento, por isso a sociedade aberta não é aberta a tudo. O próprio Popper colocou-se a pergunta:
devemos tolerar os intolerantes? A “resposta é não” (POPPER, 2008, p. 315).
A tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância, se as pessoas não
estiverem preparadas para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes,
o resultado será a destruição dos tolerantes e, com eles, da tolerância.
Com isso, Popper não quis defender que deve-se sempre suprimir a manifestação de
ideias intolerantes, enquanto pode-se contrapor a elas a argumentação racional e mantê-las
controladas pela opinião pública, a supressão seria pouquíssimo sábia.
Porém, a sociedade aberta deve proclamar o direito de suprimi-las, se necessário mesmo
pela força, pode acontecer que os intolerantes não queiram se opor no terreno dos argumentos
racionais e sim, ao contrário, comecem por denunciar qualquer argumentação, podem proibir
seus adeptos de dar ouvidos aos argumentos racionais por serem enganosos, ensinando-os a
responder aos argumentos através de punhos e armas.
Então, deve-se reclamar em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes.
É necessário exigir que todo movimento que pregue a intolerância fique à margem da lei e que
se considere criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição.
Eu “tenho insistido que nós devemos ser tolerantes. Mas eu também acredito que essa
tolerância tem seu limite. Nós não devemos tolerar aquelas religiões anti-humanitárias que não
somente pregam a destruição, mas agem” (POPPER, 2008, p. 48).
Para a realização das reformas graduais da sociedade aberta, Popper viu uma dificuldade
com agressivas ideologias religiosas, principalmente com o Islã. Assim como, apesar de sua
origem judaica, com o sionismo, somando os países ainda sob o marxismo como Cuba, China
(economia capitalista com governo totalitário), Coreia do Norte (Ibidem, p. 389).
Popper de maneira bem restrita não apenas admitiu o uso da violência, mas também
admitiu a possibilidade de revolução violenta para matar o tirano:
Não sou contra uma revolução em todos os casos e sob todas as
circunstancias. Acredito, com alguns pensadores medievais e cristãos da Renascença
que ensinaram a admissibilidade do tiranicídio, que realmente, sob uma tirania, pode
não haver outra possibilidade e que uma revolução violenta pode ser justificada. Mas
também acredito que tal revolução somente poderá ter como objetivo o
estabelecimento da democracia (...), que permita o controle público dos governantes
e sua mudança pelos governados, e que torne possível para os governados obter
reformas sem usar da violência, mesmo contra a vontade dos governantes. Em outras
palavras, o uso da violência só é justificado sob uma tirania que torne impossíveis as
reformas sem violência, e deve ter um só alvo, isto é, alcançar um estado de coisas
que torne possíveis as reformas sem violência (POPPER, 1998b, p. 158).
A admissão do tiranicídio está totalmente restringida a imediata implementação do
estado de direito e a possibilidade de realizar reformas graduais, é rechaçada por Popper o
oportunismo de matar um tirano para estabelecer outra tirania como aconteceu em Cuba. Popper
admitiu apenas mais um uso da violência na sociedade aberta:
Há apenas mais um uso de violência nas disputas políticas que eu consideraria
justificado. Refiro-me à resistência, uma vez alcançada a democracia, a qualquer
ataque (de dentro ou de fora do estado) contra a constituição democrática e o uso de
métodos democráticos. Qualquer ataque desses, especialmente se provier do governo
que está no poder, ou se for tolerado por ele, deve encontrar a resistência de todos
os cidadãos leais, mesmo com uso da violência. De fato, o funcionamento da
democracia depende, em grande medida, da compreensão do fato de que um governo
que intente abusar de seu poder para estabelecer-se sob a forma de uma tirania (ou
que tolera seu estabelecimento por parte de um terceiro) se coloca à margem da lei
(...). Sustento, porém, ainda, que essa resistência violenta contra qualquer tentativa
de derrubar a democracia deve ser inequivocamente defensiva. Não permanecer nem
sombra de dúvida de que o único fim da resistência é salvar a democracia (POPPER,
1998b, p. 158-159).
Ficando claro que Popper sendo um promotor da tolerancia e do humanismo não foi
absolutamente contrário ao uso da violencia, mas delimitou seu uso contra os intolerantes, a
morte do tirano e ao ataque ao estado de direito.
III.2.2 – Ameaça da televisão a sociedade aberta
O tema do poder politico delimitar os meios de comunicação sem dúvida é “espinhoso”,
talvez cause certa admiração que um filósofo promotor da liberdade se debruce sobre isso, vale
notar o paradoxo da liberdade que aqui também está envolvido, a limitação dos meios de
comunicação segue o cuidado que Popper sempre teve para que a restrição a liberdade seja
prudente e não leve ao seu esmagamento. Ainda é importante notar que a menção somente a
televisão deve-se ao fato de que outros meios de comunicação e a popularização da internet
Popper não viu.
Pelas redes sociais terem possibilitado ao indivíduo e não apenas ao magnata da
comunicação falar ao grande público, não é dificil imaginar que a reflexão de Popper teria
caracteristicas diferentes, mas continua atual já que a televisão continua tendo grande poder.
Em 1994, Popper produziu uma reflexão sobre o poder da televisão na vida das pessoas
e da sociedade, constatou com amargura o baixíssimo nível educacional que os canais de
televisão se afundaram, criticando o material sensacionalista da televisão no desespero por
audiência, os canais não competem para produzir conteúdo educacional, não preocupam-se em
colocar bons programas, nem educar as crianças de forma ética, sua finalidade é ter
telespectadores (POPPER, 2008, p. 417).
Se um canal produz tendo em vista apenas o que as pessoas demandam vamos para um
caminho mal, se um canal oferece violência e sexo “está educando-lhes a demandar mais
violência e sexo” (POPPER, 2008, p. 418), são produções fáceis de fazer e de fácil assimilação
do publico, não exige reflexão, não exige pensar, apenas há estimulação instintiva, renunciando
ao caráter educacional da televisão, de ser promotora de conhecimento e debates.
A ideia de democracia sempre impeliu ao crescimento do nível educacional e não serviu
como pretexto para exibição de programas com baixíssimo nível intelectual e moral, com a
meta de aumentar o número de expectadores gerando mais receita. Popper externou sua
preocupação com o baixissimo nível educacional da televisão e especialmente o que está sendo
ensinado as crianças já com tenra idade são educadas na violência (Ibidem, p. 419).
Da forma como a televisão está organizada é uma força terrível para o mal, apesar de
que poderia ser organizada para o bem, mas Popper pensou que seria muito improvável (Ibidem,
p. 416). Esse reconhecimento de Popper é muito impactante, porque sempre advogou que o
poder politico pode controlar o poder econômico, mas é muito improvável que consiga regular
adequadamente os meios de comunicação? Interessante observar traços desse pensamento com
o poder descomunal da indústria cultural de Adorno37.
A solução apresentada por Popper não é a censura, mas adotar regras e supervisão
constante (Ibidem, p. 421), para receber a licença a emissora deveria passar por um curso,
incluindo os funcionários, com a finalidade de criar consciência da responsabilidade
educacional que uma emissora tem e se não cumprir com as regras a emissora perde a licença
(Ibidem, p. 422-423).
A democracia consiste no controle do poder politico, em uma democracia nada deveria
ser incontrolado, a televisão adquiriu um poder colossal, se mal usado torna-se um perigo para
a democracia como aconteceu na União Soviética, na Alemanha de Hitler (mau uso da
propaganda), isso “mostra que uma democracia não pode existir sem o controle da televisão”
(Ibidem, p. 423).
37 Popper e Adorno travaram um debate de “surdos”: Adorno pensou que Popper fosse um neopositivista e Popper
pensou que Adorno fosse uma marxista que só fica repetindo os dogmas do século XIX.
Popper contou que pediu a um canal do Reino Unido para fazer um programa a respeito
do enorme poder politico da televisão e a melhor forma da sociedade democrática lhe dar com
ela, mas não foi atendido em um tema extremamente importante: “eles censuraram-me; eles
podem censurar qualquer um” (Ibidem, p. 424), mas eles mesmos não aceitam ser controlados.
III.2.3 – A ameaça do colapso ambiental a sociedade aberta
No início da década de setenta, Popper viu um problema fundamental não apenas a
sociedade aberta, mas a humanidade: “a poluição de terras e mares por produtos da industria”
(POPPER, 2008, p. 273), diante do tamanho do desafio só uma ampla cooperação de cientistas,
engenheiros e políticos para esclarecer a população dos enormes riscos a vida na Terra da
poluição ambiental, o mundo está se degradando e em breve pode-se não ter mais um bom lugar
para viver e respirar.
Popper manifestou sua grande preocupação sobre o enorme crescimento populacional
das ultimas décadas e entendeu que há necessidade da população parar de crescer, com o
cuidado de manter a liberdade das pessoas. Popper tinha percebido a existências de forças que
tentavam minimizar o deterioramento do meio ambiente causado pelo homem (Ibidem, p. 274).
Passou a entender que a poluição tronou-se o mais grave de todos os demais desafios: o
“problema da explosão populacional e poluição de nossa linda Terra é mais importante do que
todos os outros problemas sociais e políticos” (Idem). A solução popperiana enfocou a técnica
e a reprodução da espécie, lamentavelmente não questionou o modelo econômico vigente e o
estilo de vida que dele deriva.
Ressalta aos olhos que Popper não analisou se o problema da destruição da vida na Terra
é o modo de vida da menor parte da população mundial e não tanto a quantidade das pessoas
que vivem no mundo. Quando elaborou essa reflexão a China tinha por volta de oitocentos
milhões de habitantes, na India residiam cerca de meio bilhão de pessoas e os Estados Unidos
contavam com duzentos milhões de habitantes. A questão antes, bem como hoje é: o que
acontece ao mundo se cada chinês tiver um carro? Se cada indiano tiver um ou dois celulares?
Se cada país crescer a uma taxa de dez por cento ao ano?
São apenas alguns exemplos das nações mais populosas do mundo que num estilo de
vida norte-americano pode ser desastroso ao nosso planeta. Sem dúvida, a tecnologia em busca
de energias limpas é uma importante contribuição, como substituir a queima de combustiveis
fósseis por um carro elétrico, mas há algum tempo está provado que só a tecnologia não é capaz
de refrear o aquecimento global e é necessário um amplo esforço politico envolvendo os países
mais industrializados do mundo com metas corajosas da redução das emissões de gases de
efeito estufa.
Vale ressaltar a máxima importancia que Popper deu ao tema em um momento que era
marginalizado, com exceções de filósofos como Hans Jonas, mas apenas a solução técnica e
um prudente controle populacional deixou muito a desejar, isto é, não foi suficiente de garantir
as reformas graduais e lentas, já que a própria sociedade corre sérios riscos de sobrevivência.
III.3 - Estado intervencionista com política de proteção aos mais fracos
Adam Smith (1723-1790) foi o maior representante da economia política clássica, uma
das teses principais de Smith é que o estado deve deixar cada indivíduo livre para alcançar o
máximo bem-estar pessoal, o que resultará o máximo bem-estar a todos os indivíduos, isto é,
as ações motivadas por interesse próprio beneficiam a sociedade: interesses divergentes tornam-
se convergentes (não é pela benevolência do padeiro ou do açougueiro que almoçamos).
Ele acreditou que existe uma ordem natural, uma harmonia natural: a consequência
indireta não intencional do interesse egoísta de cada um é o bem-estar de todos. Enquanto, para
Popper, Smith estava certo ao ligar a liberdade e a criatividade ao conhecimento e a
prosperidade econômica, mas errou em acreditar na harmonia natural, como a calamidade social
do capitalismo irrestrito do século XIX provou: apenas o interesse de cada um não levará ao
bem-estar de todos! Popper considerou a ideia de ordem natural do mercado de Adam Smith,
que terá forte influência sobre o liberalismo, de fé irracional (NOTTURNO, 2014, p. 36).
Popper não propôs apenas um estado intervencionista (POPPER, 1998b, p. 246), isso já
o tinha feito John Keynes como será mostrado abaixo, o intervencionismo estatal foi um passo
fundamental para a reforma do capitalismo, mas não apenas Popper advogou por mais
distribuição de renda, bem como percebeu que só o intervencionismo não foi suficiente para
proteger o mais forte economicamente do mais fraco, por isso defendeu uma real política de
proteção dos mais fracos:
um remédio político, um remédio semelhante ao que usamos contra a
violência física. Devemos construir instituições sociais, asseguradas pelo poder do
estado, para proteção dos economicamente fracos contra os economicamente fortes
(Ibidem, p. 131).
Ao traçar as similaridades e as diferenças sobre economia, racionalidade e democracia
especialmente entre Popper e Hayek ficará mais fácil entender o caminho e até onde Popper
quis chegar com as reformas graduais. Para tanto, primeiro será abordado o programa da Escola
Austríaca de Economia até chegar ao liberalismo de Hayek, com o capitalismo a beira do
abismo surgiu a reforma elaborada por Keynes, até chegar ao pensamento da Escola de Chicago
de economia.
A partir desses elementos tem-se os instrumentais para tratar da relação política,
economia e ética em Popper e como ela possui não apenas semelhanças, mas também
divergências importantes com o pensamento liberal e neoliberal.
III.3.1 - Escola austríaca de economia
A famosa escola de economia articulou seu pensamento em defesa da soberania dos
consumidores, insistindo na ligação inseparável entre economia de mercado e o estado de
direito: o direito à propriedade privada, direito a propriedade privada dos meios de produção,
liberdade religiosa, liberdade de crítica, liberdade de imprensa.
Segundo essa escola de pensamento, se o estado controla os meios de produção, como
o fascista e o comunista, todas as liberdades ficam censuradas: se o estado controla as gráficas
uma pessoa pode não conseguir comprar um livro censurando a liberdade de pensamento, se
todos os edifícios (incluindo as igrejas) pertencem ao estado não haverá liberdade de reunião e
religiosa, se o estado controla as tipografias não haverá liberdade de imprensa.
Para a Escola austríaca de economia o controle dos meios de produção, tolhe toda a
liberdade e deixa o indivíduo apenas com o direito de obedecer. Na perspectiva dos economistas
austríacos o estado de direito fundamenta-se na economia de mercado.
A Escola austríaca de economia foi bem sucedida ao refletir sobre um fundamento da
teoria econômica de Marx: o valor trabalho, que teve um forte impacto sobre os economistas
europeus (ocidentais) perceberem que O capital não foi capaz de explicar o essencial para a
economia o comportamento dos preços.
O valor trabalho ocupou o centro da teoria da economia clássica de Adam Smith: o valor
de uma mercadoria depende do trabalho necessário para produzi-la, se três operários
demoraram cinco horas na produção de uma cadeira, o trabalho poderá ser trocado no mercado
por qualquer outra mercadoria produzida por três operários em cinco horas de trabalho. Karl
Marx assumiu essa interpretação.
Quatro anos após a publicação de O capital de Marx, Carl Menger (1840-1921),
fundador da Escola austríaca de economia, crítico do historicismo e da economia centralizada,
publicou em Viena os Princípios de economia política, junto com as obras de William Stanley
e Léon Walras deu-se início a economia neoclássica que rejeitou a teoria do valor trabalho em
pró da lei da utilidade marginal decrescente, isto é, para quem está com muita sede comprar e
tomar um copo com água é muito útil e proporciona grande prazer, comprar e tomar um segundo
copo com água pode ser útil, pensar num terceiro copo torna-se inútil, um quarto ou quinto
causará enjôo.
Para a mesma pessoa uma mercadoria pode ter mais ou menos utilidade, de acordo com
a quantidade que ela está disponível, explicando porque quantidades abundantes de uma
mercadoria tem preços baixos.
Carl Menger iniciou a Escola austríaca de economia, outros expoentes foram Eugen
Bawerk e Friedrich von Wieser, Ludwig von Mises, Fritz Machlup, sem dúvida, o mais
conhecido foi Friedrich Hayek (1889-1992).
III.3.2 - O liberalismo de Hayek
Grande admirador de Ludwig von Mises, primo de Wittgenstein e amigo de Popper,
Hayek publicou em 1944 um dos seus livros mais conhecidos Rumo à escravidão, ele não
apenas foi o pensador mais ilustre da Escola austríaca de economia, mas também o maior
expoente do liberalismo, em 1974 foi premiado com o Nobel de economia.
Seguindo a Escola austríaca de economia, Hayek nesse livro escreveu que o controle da
economia (os meios), deixou o indivíduo numa situação de escravidão e dependência em
relação ao governo comunista, o qual procurou traçar semelhanças com o modelo nazista e
fascista, justamente porque a compra de um produto depende da liberdade dos meios de
produção fazerem este produto, em um regime totalitário significa que o consumidor só pode
adquirir o que o governo central deixou produzir.
Importante ressaltar sua consideração de que os eventos e as instituições sociais são
sempre fruto da ação humana, mas nem sempre resultado de projetos intencionais. Isso é um
dado fundamental do pensamento de Hayek, pois foi através dessa compreensão que ele
discordou do construtivismo: o homem criou as instituições da sociedade e deve alterá-las da
forma como quiser. Os racionalistas, os iluministas, os positivistas, os socialistas não se deram
conta de que não é possível criar e moldar as instituições totalmente consciente de todos os
processos.
Consequentemente, os marxistas acreditando que poderiam construir a sociedade como
bem entenderem viram como resultado a ditadura e a miséria, os construtivistas não usaram da
razão, mas sim abusaram dela (abusaram da sua capacidade).
O motivo pelo qual a planificação econômica centralizada não pode ter êxito em suas
finalidades, porque não pode utilizar-se da enorme quantidade de conhecimentos teóricos e
práticos particulares. Os conhecimentos particulares sobre uma máquina ou o conhecimento de
como melhorar a venda de imóveis pertence as pessoas, por isso o conhecimento delas e suas
experiências nas decisões é melhor do que a planificação centralizada.
Resolver os problemas precisa do melhor uso dos conhecimentos, de modo que as
decisões devem ser descentradas, sendo mais eficientes e favorecendo o experimento de grande
variedade de fazer as coisas de forma diferente para depois escolher as melhores: um sistema
competitivo é o mecanismo mais eficaz de descobrir o novo. A liberdade das pessoas criticarem
e usarem seus conhecimentos, permite a criatividade resultando na inovação e na eficiência.
No terceiro volume de Lei, legislação e liberdade, Hayek após ter feito suas
considerações sobre a lógica do mercado e sobre justiça social, teve a preocupação sobre as
funções do estado com relação aos mais fracos, é indispensável que uma sociedade avançada
tome os impostos para oferecer uma série de serviços que não são servidos pelo mercado. Há
pessoas que por diversas razões não conseguem ganhar para viver em uma economia de
mercado: como os doentes, os idosos, os deficientes físicos ou mentais, viúvas e órfãos que
devem ser ajudados pela sociedade.
Sendo ela rica pode ter ações humanitárias, é uma proteção absolutamente legitima
assegurar uma renda mínima a todos para que tenham condições de viver bem. Posto isso,
mostrou-se o erro de algumas interpretações “apressadas” sobre o liberalismo de Hayek, de que
ele não se importou com os males sociais da economia de mercado.
Porém, foi oportuno levantar questões como: uma atuação mais vigorosa do estado não
seria mais eficaz em ajudar os miseráveis e os pobres? A crise de 1929 não mostrou que a
economia “livre” não conduz para o bem-estar de todos? Com efeito, foram interpelações como
essas que conduziram ao pensamento antagonista de John Keynes.
III.3.3 - O intervencionismo de Keynes e o liberalismo da Escola de Chicago
John Keynes (1883 – 1946) junto com Hayek foram os economistas mais influentes do
século XX, não há obra em economia mais citada do que a Teoria geral da ocupação, interesse
e moeda de 1936 de Keynes, o grande desemprego que se espalhou a partir do final da década
de vinte mostrou que as previsões do liberalismo estavam erradas: um sistema econômico
deixado livre para funcionar segundo a lei do mercado não conduz necessariamente ao bem-
estar de todos e ao pleno emprego.
A crise de 1929, originou-se de uma imprudente expansão do crédito feita pelo Banco
Central americano, iniciada em 1924, após um significativo declínio da atividade econômica.
Os bancos americanos criaram, repentinamente, bilhões de dólares em crédito, fazendo
empréstimos ou investimentos em valor muito superior ao valor dos depósitos sob sua guarda
(reservas fracionárias), isso levou a uma ampliação do crédito total em pouco tempo.
No curto prazo teve bons resultados, a “bolha” inflou emitindo diversos sinais falsos ao
mercado ocasionando investimentos não sustentáveis, depois a “bolha estourou” levando a uma
situação calamitosa, uma crise de superprodução (semelhantemente os Estados Unidos
passaram por isso em 2007, mas com estragos bem inferiores a economia).
Ao constatar as falhas do liberalismo não significou para Keynes a possibilidade de
abraçar o marxismo, pois a Escola austríaca de economia e a maior parte dos economistas
ocidentais já haviam considerado a teoria econômica de Marx “como instrumento quase inútil”
(REALE, 2007, p. 190): a miséria e a desigualdade não aumentaram na economia de mercado;
as dialéticas são muito subjetivas; o autoritarismo do estado produtor e distribuidor de todos os
bens e serviços tira a liberdade de escolha do cidadão e é gerador de pobreza, porque o
conhecimento e as melhores decisões não provém de um sistema centralizador; o valor de uma
mercadoria não é tanto fruto da quantidade de trabalho exigida para produzi-la, mas muito mais
com relação a demanda, isto é, o valor não se cria nas quatro paredes de uma fábrica, mas se
estabelece no mercado, a demanda nasce das necessidades, dos gostos individualmente
moldados pela cultura.
Não querendo trilhar o caminho marxista, Keynes resolveu a maior crise do capitalismo
do século XX influindo diretamente sobre a política de seu país: o estado não pode ser simples
espectador deve intervir, não para tomar a propriedade privada, deve intervir para favorecer a
circulação de dinheiro, deve incentivar o investimento, o consumo, fazer parcerias com o setor
privado.
Keynes deu-se conta de que o capitalismo precisava ser reformado: com intervenção
estatal e atribuir a si certos controles estatais que antes foram deixados ao privado, não abolir a
iniciativa privada, mas que diante da iniciativa privada não deve ser abolido o estado.
Quando Keynes propôs a reforma os conservadores não aceitaram, mas a nova esquerda
de Roosevelt e os homens do Novo Acordo (New Deal) elaboraram uma série de programas
implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do presidente Roosevelt,
com a finalidade de recuperar e reformar a economia norte-americana superando a Grande
Depressão de 1929.
Vale ressaltar que o intervencionismo de Keynes não suplantou o liberalismo de Hayek,
ainda hoje muito influente nos Estados Unidos. A isso se soma o sucesso da Escola de Chicago
de economia que defendeu o livre mercado com intervenção mínima, seus expoentes foram
George Stigler e Milton Friedman, ambos premiados com o Nobel de economia,
respectivamente em 1982 e 1976. Suas ideias são associadas à teoria neoclássica da formação
de preços e ao liberalismo econômico.
As teorias de Friedman (1912 – 2006) sobre a análise do consumo, a teoria monetária e
sua demonstração da complexidade da política de estabilização o fizeram um dos economistas
mais influentes da segunda metade do século XX. A partir da década de sessenta seu
pensamento passou a tomar vigor em detrimento das políticas governamentais keynesianas.
Uma abordagem empírica para o neoliberalismo que ficou conhecido como
monetarismo: a política fiscal baseada na tributação e nos gastos governamentais seguindo o
modelo keynesiano estimula a demanda por produtos, de acordo com a lei da oferta e da
procura, gerando inflação. A solução é adotar o controle monetário (controlando sua oferta)
para evitar a inflação e a recessão.
Enquanto para Keynes, a crise de 1929 significou que o mercado livre havia falhado,
Friedman interpretou, em vez disso, que a política da Reserva Federal (Federal Reserve System
(FED)) falhou devido a contração monetária.
Na verdade, Friedman foi contrário à existência do Sistema de Reserva Federal, mas
como ele existe, sua política deveria ser de uma pequena expansão estável da oferta monetária.
As teorias econômicas da Escola de Chicago influenciaram bastante as políticas do Banco
Mundial e de outras instituições financeiras, como o Departamento do Tesouro americano e o
Fundo Monetário Internacional.
A racionalidade de Popper de que não é possível captar o todo, nossas possibilidades de
conhecer o mundo e o desenvolvimento das instituições sociais são limitadas, implicando sérias
restrições às possibilidades de criação e organização da vida social, influenciaram a
racionalidade de Hayek e Friedman, sem dúvida com variações importantes sobre a relação do
estado, a economia e a ética.
Popper aproveitou o bem sucedido programa intervencionista de estado keynesiano e
acrescentou com política de proteção aos mais fracos. Nesse aspecto, Popper fez uma
interpretação mais próxima de Keynes do que a de Hayek e a da Escola de Chicago de
economia.
Podemos, por exemplo, desenvolver um programa político nacional para
proteção dos economicamente fracos. Podemos elaborar leis para limitar a
exploração. Podemos limitar a jornada de trabalho; mas podemos fazer muito mais.
Pela lei, podemos segurar os trabalhadores (ou melhor ainda, todos os cidadãos)
contra a invalidez, o desemprego e a velhice. Desse modo, poderemos tornar
impossíveis as formas de exploração que se baseiam na posição econômica de
abandono de um trabalhador, que deve ceder a tudo a fim de não morrer de fome
(POPPER, 1998b, p. 133).
Popper afirmou que os países escandinavos são os que estão mais avançados na
intervenção política na economia. Por exemplo, a Dinamarca é o país menos corrupto do
mundo; a sociedade controla e desconfia dos políticos, mas os dinamarqueses confiam nos
compatriotas; o filho do primeiro ministro pode estudar na mesma escola de um operário; não
existe lei que regula o salário mínimo, mas é de cerca de sete mil reais e um parlamentar recebe
por volta de vinte e três mil reais, uma diferença salarial de cerca de trezentos por cento; os
políticos dinamarqueses não tem carro a disposição e sim bilhete para andar de transporte
público; recebem apenas dois mil e oitocentos reais por mês de verba de gabinete; a população
“exige” que os políticos usem transporte e saúde pública para entenderem melhor o que o povo
passa; a Dinamarca incentiva o empreendedorismo em cerca de seis dias é possível abrir uma
empresa.
A título de comparação, no Brasil, cada parlamentar tem a disposição noventa e sete mil
reais por mês para contratar até vinte e cinco funcionários; recebe auxílio moradia, auxilio
alimentação, reembolsos com passagens aéreas, telefone e correio, serviços de segurança,
combustível e muitas outras mordomias; o salário de um deputado federal é de vinte e seis mil
reais, enquanto o salário mínimo é de novecentos e trinta e sete reais, uma escandalosa diferença
de quase três mil por cento; o Brasil “pune” o empreendedor precisa-se de cerca de cento e dez
dias para abrir uma empresa, uma enorme burocracia e complexidade de impostos.
A manutenção do poder judiciário no Brasil é o segundo mais caro do mundo em relação
ao Produto Interno Bruto (PIB), só perdendo para El Salvador, cerca de setenta bilhões de reais
ao ano o que equivale a aproximadamente 1,3 por cento do PIB, enquanto na Inglaterra a
despesa com o judiciário é de 0,14 por cento do PIB.
Na Suécia um juiz e um deputado tem os salários parecidos cerca de vinte e três mil
reais, não há salário mínimo regulado, mas é de cerca de nove mil reais, uma diferença de mais
ou menos duzentos e cinquenta por cento. Nos países fino-escandinavos os impostos são altos,
mas retornam com altos benefícios a população, os países fino-escandinavos são bons exemplos
de como devem ser as reformas graduais e lentas da sociedade aberta de Popper.
III.3.4 - Racionalidade, economia e democracia de Popper e Hayek
Hayek e Popper foram grandes amigos e tinham diversas semelhanças de pensamento,
mas diferem em caminhos fundamentais sobre racionalidade, economia e democracia. Em
1944, pouco antes da publicação de A sociedade aberta e seus inimigos, Popper escreveu uma
carta a Hayek salientando que tinha muitos pontos em comum com Rumo à escravidão, mas há
diferenças de ênfases, que Popper considerou importantes, fazendo com que não pudesse segui-
lo em todos os caminhos.
No mesmo ano Popper escreveu a Hayek, defendendo o intervencionismo e criticando
o liberalismo (NOTTURNO, 2014, p. 36), não um intervencionismo coletivista, mas uma forma
que permita a liberdade e a criatividade das pessoas, é o intervencionismo da sociedade aberta
que Popper advogou, pois Marx “estava certo em dizer que o laissez faire destrói a si mesmo
através da luta de classes” (POPPER Apud NOTTURNO, 2014, p. 36), é preciso uma vigorosa
política de proteção dos fracos da sociedade.
Hayek e Popper concordaram que a racionalidade tem seus limites, que filosofias
autoritárias distorceram seu significado e que a crença de que a ciência social pode predizer o
curso da história é uma má compreensão do método cientifico, que a economia de mercado é
mais produtivo e eficiente do que o planejamento central socialista, que as intervenções bruscas
(revolucionárias) tem boas intenções: acabar com o desemprego, a miséria, mas resulta no
contrário aumento da pobreza e a perca da liberdade; o resultado é uma tragédia.
Os dois concordaram que o historicismo e o coletivismo envolto por um método seja
ele dialético, linear, eterno retorno, eterno devir, cíclico não é um método cientifico, porque a
história não vai para lugar algum e nenhum grupo social está destinado a vitória.
Popper e Hayek diferem sobre a intervenção do estado na economia, a relação liberdade
e prosperidade, se as instituições ajudam a escolher os melhores líderes ou se as instituições
nos protegem dos líderes que escolhemos. São questões que conduzem a uma forma
democrática e econômica bastante diferentes.
Para Hayek nem sempre o resultado de projetos intencionais determinam as instituições,
a intervenção do estado pode facilmente causar retrocesso. Popper entendeu que nossas ações
frequentemente tem consequências não pretendidas e não planejadas, difícil prever os
resultados de uma intervenção, sendo essa a preocupação fundamental do cientista social. Em
que medida a difícil previsão de quais serão os resultados de uma ação deve evitar tentativas de
intervenção do governo em questões econômicas e sociais? A resposta dessa questão é um
ponto importante de discordância entre Hayek e Popper.
Hayek desconsiderou o intervencionismo para o capitalismo:
É impossível no escopo da discussão do socialismo entrar neste problema
separado do estado de intervenção em uma sociedade capitalista. Isso é mencionado
aqui somente para dizer explicitamente que isso é excluído de nossas considerações.
Em nossa opinião bem aceita por análises mostram que o intervencionismo não
fornece uma alternativa que pode ser racionalmente escolhida para fornecer um
estável ou uma solução satisfatória de qualquer dos problemas ao qual é aplicado
(HAYEK Apud NOTTURNO, 2014, p. 36).
Fica difícil nessa frase não interpretar que Hayek recusou qualquer tipo de intervenção
do estado e é uma apologia ao liberalismo, em todo caso vale lembrar que Hayek também disse
que não significa “que a única forma de capitalismo que pode ser racionalmente advogada é
aquela do completo laissez faire” (HAYEK Apud NOTTURNO, 2014, p. 36), isso deu
esperança a Popper em dialogar com Hayek.
Porém, a ênfase de Hayek é o liberalismo e acrescentou “admitir a possibilidade de
mudanças no sistema jurídico não é admitir a possibilidade de uma forma de planejamento além
no sentido que nós temos usado a palavra até agora” (Idem). Em Rumo à escravidão, Hayek
enfatizou que a questão não é se devemos planejar, mas como e por quem deveria ser planejado,
trazendo semelhanças com a distinção que Popper traçou de engenharia utópica e engenharia
gradual.
Hayek admitiu que nossas instituições legais podem ser racionalmente mudadas, mas a
diferença entre os dois: é que Popper acentuou a necessidade de mudança gradual de acordo
com os desafios e problemas de época, enquanto Hayek é muito menos flexível e preferiu
refrear mudanças.
Nos anos posteriores a publicação de Rumo à escravidão, Hayek estava tão seguro
quanto ao progresso que chegou a considerar as regras morais, especialmente as relacionadas a
propriedade privada, a família não como um projeto racional, mas como um processo evolutivo
que pode muito bem escapar ao nosso entendimento, assim como interpretando com cada vez
mais ênfase o papel “não planejado” e “historicamente crescido” das tradições e das instituições
em uma sociedade livre, associando frequentemente as tentativas de projetar as instituições
sociais com o totalitarismo (NOTTURNO, 2014, p. 36).
Epistemologicamente segundo Hayek, o racionalismo está errado, porque a estrutura do
conhecimento inclui elementos irracionais, o que mina as tentativas de racionalmente ter êxito
na regulação da economia, enquanto Popper pensou que é nossa tarefa racionalizar, nossas
tentativas na maior parte das vezes estão erradas, mas não devemos parar de buscar e refletir
sobre as decisões políticas.
Popper concordou com Hayek que não é possível planejar inteiramente uma civilização,
nem o crescimento da razão e que a linguagem e o mercado não foram conscientemente
inventados, mas Popper não interpretou de maneira nenhuma que essas instituições são
sacrossantas ou imunes a mudança (Ibidem, p. 25).
Hayek optou por deixar o mercado seguir seu caminho supondo que os erros gerariam
perdas financeiras e por sua vez seriam corrigidos. O problema é que erros graves podem fazer
o mercado quebrar, mas nenhum governo pode deixar isso acontecer, porque quem paga a conta
é o contribuinte.
Popper e Hayek trocaram muitas cartas e a influência de Popper sobre Hayek após
algumas décadas sobre racionalidade começou a se notar, Hayek passou a suavizar sua crítica
ao racionalismo, em maio de 1964 ele escreveu a Popper: “Eu tenho escrito e dado umas
conferências sobre tipos de racionalismos no qual eu tenho aceito o seu racionalismo critico
como título para as minhas próprias opiniões” (HAYEK Apud NOTTURNO, 2014, p. 40).
Três anos mais tarde Hayek escreveu no prefácio Filosofia, Política e Economia que os
métodos atuais de ciências naturais são diferentes dos ensinados anteriormente; em 1973
escreveu em Lei, legislação e liberdade que sua crítica ao racionalismo nos primeiros trabalhos
tinha sido muito ampla, facilmente mal entendida e que seria melhor distingui-la em
construtivista e evolucionária ou nos termos de Karl Popper (Idem).
Apesar dos diálogos e acertos entre Hayek e Popper, enquanto a epistemologia
popperiana é evolucionária, cresce com a crítica e a autocrítica, Hayek nunca abandonou a ideia
do crescimento espontâneo das instituições sendo pessimista sobre a capacidade de
conscientemente e deliberadamente melhorá-las. Popper sempre considerou possível, apesar de
mais erros do que acertos, através da razão melhorar tradições, instituições e teorias.
Como visto no capítulo anterior a crítica de Popper a Marx, versou sobre o determinismo
histórico e econômico, mostrou que o socialismo não é inevitável e que Marx estava errado ao
considerar que o capitalismo não poderia mudar baseando-se no próprio Reino Unido, o suposto
primeiro país a aderir ao comunismo, os trabalhadores possuem alta qualidade de vida e é um
dos países mais procurados pelos imigrantes (como ele próprio).
Por outro lado, a crítica de Hayek ao marxismo, é contra o planejamento centralizado,
não tentou mostrar que o socialismo não é necessário, mas que o socialismo não é possível, os
objetivos do socialismo são incompatíveis com os meios de alcançá-lo, pois não é possível
planejar e controlar uma economia inteira, o conhecimento para isso é tão complexo e disperso
que não é possível fazer através de um planejamento central.
Por impossibilidade do socialismo, Hayek não considerava sua experimentação, mas
sim que fosse bem sucedido. Portanto, Popper considerou o socialismo não necessário e Hayek
o considerou falho. São posições que possuem elementos compatíveis, mas o socialismo pode
ser possível e não necessário, segundo a compreensão popperiana. A crítica de Hayek ao
socialismo por ser mais ampla é mais fácil de ser contestada.
Hayek escreveu em seu último livro Fatal conceit que estaria preparado para aceitar o
socialismo, se ele pudesse ser mostrado ao menos eficiente e produtivo como o capitalismo
(Ibidem, p. 52). Vale considerar que a suposta porta aberta ao socialismo, por parte de Hayek,
está condicionada ao fato de que o mesmo jamais pensou que o socialismo pudesse ser mais
eficiente do que o capitalismo.
Popper discordou que a aceitação do socialismo seja apenas uma questão de eficiência,
mas sim sua aceitação pressupõe que o socialismo possa ser combinado com a liberdade
humana:
Eu acredito que a economia de mercado livre é mais eficiente do que uma
economia centralmente panejada. Ainda eu sustento que é errado basear a rejeição
a tirania sobre argumentos econômicos. Mesmo se fosse verdadeiro que a economia
centralmente planejada é superior ao mercado livre, eu deveria opor a economia
centralmente planejada. Eu deveria opor por causa da probabilidade dela aumentar
o poder do estado ao ponto da tirania. Não é só a ineficiência do comunismo contra
o que nós deveríamos lutar, mas pela sua desumanidade e sua hostilidade inerente a
liberdade. Nós não deveríamos vender nossa liberdade por um engodo, nem mesmo
se nós pudéssemos estar certos que possamos adquirir eficiência ao preço da
liberdade (POPPER Apud NOTTURNO, 2014, p. 54).
O socialismo ser uma ameaça à democracia Hayek não tinha dúvidas, o socialismo
necessariamente conduz ao totalitarismo, enquanto Popper considerou que o socialismo pode
muito bem conduzir a ditadura, mas não necessariamente, certamente não por definição. Para
Popper, os socialistas precisam refrear a tentação de aumentar o poder do estado,
consequentemente não esmagando a liberdade.
Popper concordou com os socialistas que há necessidade muito maior de equalização
das rendas, que não há razão para parar experimentos graduais nas esferas política, legislativa
e econômica em busca de uma sociedade menos desigual, porém discordou que exista algo que
possa curar “tudo” em economia e política e que há intervenções que poderiam deixar a situação
do trabalhador muito pior.
A socialização da sociedade poderia trazer benefícios, mas também pode trazer mais
pobreza e miséria, ou seja, tudo depende do que mudar e como mudar e geralmente os
socialistas não percebem os riscos envolvidos, na sua crença em um elemento salvador,
messiânico, que fará a sociedade boa e livre é o principal perigo do socialismo e conduz
facilmente ao totalitarismo (NOTTURNO, 2014, p. 43).
Nesses termos Popper escreveu a Rudolf Carnap:
Eu sinto que é nossa tarefa tornar menos danosas essas questões sérias,
menos religiosas e mais sóbrias. Socialismo como existe hoje é amplamente um
movimento religioso e messiânico, o sonho do céu sobre a terra, uma consequência
da tensão de civilização e do paraíso perdido do tribalismo. Mas há coisas boas nisso:
eu quero dizer a crença que as coisas devem ser melhoradas e que elas podem ser
melhoradas, a vontade para a experimentação e a ciência, embora a prontidão
científica para desistir de crenças estimadas é dificilmente entendidas pelos
socialistas (sua crença na ciência é, como uma regra, nada mais de um ingênuo
progressivismo ou evolucionismo darwinista-vulgar) (POPPER Apud NOTTURNO,
2014, p. 43).
Popper entendeu que a utopia socialista é messiânica e é o principal perigo do socialismo
que facilmente conduz a ditadura, mas em nenhum momento Popper considerou que a utopia é
um elemento necessário ao socialismo. Pelo contrário, em uma carta dirigida a Carnap escreveu
sobre a ingenuidade do liberalismo clássico e do socialismo utópico, defendendo a necessidade
de refletir sobre ambos modelos econômicos elaborando uma teoria que concilie liberdade,
produtividade e maior equalização da renda.
As filosofias políticas do socialismo e do liberalismo que nós herdamos do
século XIX são ambas tão simples e ingênuas (...), nós devemos desistir de suas
crenças dogmáticas e semirreligiosas nesse campo e devemos tentar alcançar uma
atitude mais racional (...), partilhada pelos liberais e pelos socialistas (Ibidem, p. 45).
Popper disse a seu amigo e um dos principais pesquisadores de sua obra, Mark Notturno,
que sua filosofia inteira e especialmente seu racionalismo critico pode ser resumido na frase
que está no final do seu livro A sociedade aberta e seus inimigos: eu posso estar errado e você
pode estar certo, por um esforço, nós podemos aproximar-nos da verdade, para Notturno
tornou-se a marca da filosofia popperiana (NOTTURNO, 2014, p. 45). Popper considerou
admitir o socialismo, se o socialismo pudesse ser combinado com a liberdade humana (Ibidem,
p. 54).
Se o maior erro de Marx foi de pensar que o capitalismo nunca poderia mudar, então o
maior erro de Hayek foi essencialmente o mesmo com o socialismo. Hayek argumentou que
não pode haver reconciliação entre capitalismo e socialismo: os dois são essencialmente
diferentes e incompatíveis, não pode haver um caminho do meio entre os dois, e nenhum
terceiro caminho (Ibidem, p. 72). Hayek pensou que tentar combinar capitalismo e socialismo
o resultado seria uma economia socialista.
Notturno interpretou a reforma no capitalismo ocorrida no século XX de uma economia
híbrida, aconteceu o que seria impossível para Hayek: “Europa e Estados Unidos com um
híbrido capitalismo e socialismo” (Idem), mas especialmente os Estados Unidos precisam de
maior distribuição de renda e talvez uma familiarização dos textos de Popper poderiam
favorecer reformas nesse sentido (Ibidem, p. 106).
Pela maior equidade de renda nos países fino-escandinavos fica mais evidente a
economia hibrida advogada. Por exemplo, na Finlândia não existe lei de salário mínimo, mas é
de cerca de sete mil reais, o salário médio de um professor do ensino médio é de cerca de treze
mil reais, um juiz de primeira instância recebe em média vinte mil reais, o diretor-executivo de
uma empresa tem um salário médio de vinte e dois mil reais. Uma característica dos países fino-
escandinavos é que não há muita discrepância salarial, além de elevar a qualidade de vida das
pessoas evita convulsões sociais.
III.4 – Agenda da Fundação Sociedade Aberta
O bilionário George Soros tornou-se um admirador da obra popperiana e viu nos seus
escritos uma força para trazer o neoliberalismo ao leste europeu pós-soviético (JARVIE, 1999,
p. 34), sob uma interpretação mais liberal na economia, especialmente mais liberal na ética.
Nesse intento criou a Fundação Sociedade Aberta, em 1979, espalhando escritórios pelo
mundo e divulgando seus livros. Em 1984 estabeleceu o primeiro escritório da fundação na
Húngria, depois na Ucrânia, diversos países da África, nos Estados Unidos, no Reino Unido,
Espanha, Turquia, Bélgica e Indonesia. Com uma intensa agenda politica contando com um
orçamento bilionário destinado a parceiros da fundação em pró da democracia de direito, de um
neoliberalismo econômico um pouco mais regrado do que nos Estados Unidos, sendo um dos
grandes financiadores do Partido Democrata norte-americano e a promoção do liberalismo
ético.
A Fundação Sociedade Aberta iniciou seus trabalhos no Brasil no ano passado, com um
escritório no Rio de Janeiro, investindo mais de cem milhões de reais em pró de sua agenda.
III.4.1 – Queda da União Soviética e carta de Popper ao povo russo
O sucessor de Stálin, Nikita Kruschev, secretário-geral do partido Comunista da União
Soviética de 1953 a 1964, empreendeu uma política de desestalinização denunciando os abusos
do seu antecessor, o que lhe custou o poder. Porém, esteve longe de apaziguar a insatisfação
com o regime: a Revolução Húngara de 1956 iniciou como uma manifestação estudantil que
atraiu milhares de pessoas marchando pelo centro de Budapeste até o parlamento e se espalhou
pela Hungria fazendo cair o governo, diversos presos políticos foram libertados, incluindo o
líder da Igreja Católica no país o cardeal József Mindszenty condenado a prisão perpétua por
“traição”, mas um grande exército soviético de forma implacável invadiu Budapeste e outras
regiões do país e suprimiu a revolta, matando por volta de vinte mil pessoas, milhares presos e
dezenas de milhares de húngaros fugiram do país.
Também, em 1956, a Polônia realizou sua primeira resistência quando trabalhadores
protestaram em Poznán com cartazes: “nós queremos pão”, com ataques a sede do partido
Comunista e a sede da polícia secreta, em resposta os soviéticos mataram ao menos sessenta e
sete trabalhadores, um monumento as vítimas foi erigido em 1981.
A Polônia resistiu “teimosamente” por quase cinquenta anos ao governo comunista,
ampliando tempo a tempo sua liberdade, em 1968 foi a vez do protesto dos estudantes; em 1970
o aumento do preço da comida e outros itens conduziu a um ataque geral deixando quarenta e
dois mortos, mil pessoas feridas e três mil presos; em 1976 ataques em Ursus e Radom com
forte repressão do governo; o movimento da solidariedade de 1980 foi marginalizando o
controle do partido Comunista e finalmente a queda do comunismo em 1989.
Em 1992, numa carta escrita aos russos, Popper afirmou que decidiu escrever A
sociedade aberta e seus inimigos quando ficou sabendo que Hitler invadiu sua terra natal a
Áustria, a obra foi impressa em Londres, em 1945, ano da queda de Hitler. Tratava-se de sua
contribuição como um esforço de guerra “contra o nazismo e o comunismo; contra Hitler e
Stalin, uma vez aliados do pacto Hitler-Stálin de 1939” (POPPER, 2008, p. 394-395). Sua
intenção nesta carta é “oferecer aos meus leitores russos poucas palavras sobre a principal ideia
de uma sociedade aberta: o estado de direito” (Ibidem, p. 395).
De acordo com Popper, dos tempos romanos a civilização aprendeu a necessidade da
sociedade ter um sistema legal para garantir o direito e frear a violência, mas o comunismo
destruiu a herança de Roma, bem como o mercado livre no estado de direito.
A Rússia precisa de comida e só uma economia de mercado seria eficiente para matar a
fome dos russos, foi a economia de mercado que fez a Europa Ocidental rica, por isso é urgente
a Rússia estar sob a soberania da lei: é preciso focar e investir em educação, talvez a tarefa mais
difícil seja estabelecer uma sociedade aberta, nova e flexível, com viva tradição (Ibidem, p.
396-397).
O sentido de capitalismo dado por Marx nunca existiu, é uma crença que os marxistas
acreditam, como continua a ser ensinado na China (adotou a economia liberal num regime
totalitário) e na Coreia do Norte (Ibidem, p. 398), é um historicismo, uma etapa da evolução da
humanidade; no capitalismo de Marx a miséria dos trabalhadores só aumentaria e a única
solução seria a revolução social (Ibidem, p. 399).
O que ocorreu no século XX foi que a pobreza diminuiu e a qualidade de vida aumentou,
não foi preciso o ocidente acreditar em promessas ilusórias de ditaduras comunistas que nos
libertariam do mal (POPPER, 2008, p. 400). A melhora da qualidade de vida foi feito na Europa
Ocidental e pode ser feito na Rússia.
Incrivelmente, a melhora da qualidade de vida dos trabalhadores foi vista pelos
marxistas como algo ruim, esquecendo-se que o capitalismo foi considerado mau na juventude
de Marx por gerar miséria e não riqueza (Ibidem, p. 399).
Popper escreveu uma carta breve aos russos salientando ações basilares que em sua
opinião seriam necessárias para a reconstrução de seu grande país: o estado de direito, a
economia de mercado, a educação, uma tradição viva.
A queda da União Soviética foi a certeza da conquista ocidental do oriente, diversas
forças ocidentais, incluindo a Fundação Sociedade Aberta, passaram a querer expandir o
avassalador poder liberal, cultural e midiático na Europa Oriental, especialmente na Rússia, a
conquista parecia fácil, até a chegada ao poder do estadista Vladimir Putin.
III.4.2 – Fracassos da Fundação Sociedade Aberta na Europa Oriental
O primeiro presidente da Rússia, Boris Iéltsin, logo no início do seu mandato anunciou
profundas reformas rumo a economia de mercado. Não é dificil ver que a Rússia teria muito a
ganhar estando na economia de mercado, como Popper indicou, com seu enorme potencial
energético, metais, madeira, agricultura, ciência e tecnologia.
Porém, ocorreu uma mudança abrupta e malsucedida de uma economia planificada para
uma economia de mercado, em meio ao colapso político da União Soviética, culminando na
grave crise econômica de 1998, nesse contexto ascendeu ao poder o hábil politico Vladimir
Putin, no ano 2000.
Ele empreendeu importantes reformas fiscais; aumentou o fluxo de capitais; o alto preço
do petróleo e do gás contribuíram para o fim da crise; Putin logo no início do seu mandato
delimitou o poder dos oligarcas russos, alguns saíram do país, os demais reuniram-se ao seu
redor; outra marca importante de seu governo foi a regulação dos meios de comunicação,
inclusive em detrimento de alguns magnatas; como presidente da Rússia de 2000 a 2008 o PIB
do país cresceu em média 6,5 % ao ano, o que lhe deu grande popularidade.
Desde a queda da União Soviética a Igreja Ortodoxa Russa construiu ou reformou vinte
e oito mil igrejas, uma média de mil igrejas por ano, a chegada de Putin ao poder fortaleceu e
incentivou o renascimento do Cristianismo na Europa Oriental, no país que possui a maior
extensão territorial do mundo a Igreja Russa tornou-se fonte de identidade nacional preservando
a harmonia e a coesão social.
O próprio historiador, Eric Hobsbawm, pensou que pela Igreja Ortodoxa Russa ter
estado no epicentro das profundas mudanças econômicas e politicas do século passado muito
provavelmente iria acabar, assim como seria muito difícil a volta do catolicismo em países pós-
soviéticos (HOBSBAWM, 2015, p. 544). Também, Karl Popper, em uma entrevista pouco
antes de sua morte, mostrou-se atônito pelo ressurgimento da Igreja Católica na Polônia, entre
outros países do leste europeu como na Hungria, um pouco avesso a Igrejas nacionais, sua
preocupação foi que uma grande religião respeite a liberdade de consciência.
O trabalho da Fundação Sociedade Aberta não é o de apenas expandir a economia
neoliberal, já vigente no mundo, ou a democracia de direito, mas também de patrocinar grupos,
entidades civis e politicos para implementação do aborto livre, da eutanásia livre, da ideologia
de gênero, fazer com que os meios de comunicação sejam privados com o mínimo de regulação
do estado, legalização da prostituição, descriminalizar o uso de algumas drogas, um sistema
educacional que forme as crianças e os jovens no ethos liberal.
Essa agenda entrou em choque com a Europa Oriental, George Soros tornou-se “persona
non grata” em alguns desses países. Em sua terra natal, a Hungria, ao longo dos anos bilhões
de reais foram investidos para tranformá-la em um país liberal (econômico e ético), gerando
enormes conflitos entre ele e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, pelo mesmo estar
eliminando toda iniciativa da fundação nos meios de comunicação, na educação, na politica, já
que a Fundação Sociedade Aberta financia universidades para expansão dos valores liberais na
Húngria, como a Universidade da Europa Central (CEU) de Budapeste38.
O capitalismo possui no momento presença global, mas não conseguiu uniformizar um
ethos liberal global, além da Europa Oriental soma-se o continente africano, mas por ser
economicamente pobre não tomou o centro das atenções, a fundação de Soros é uma das forças
ocidentais nesse propósito. Cada vez mais o ethos da Europa Oriental destoa do ethos da Europa
Ocidental, segundo a Fundação Sociedade Aberta a culpa disso é de Vladimir Putin, da Igreja
Ortodoxa e da Igreja Católica; nos países de maioria muçulmana a maior inimiga da fundação
é o Islã.
Finalmente, importante para esta dissertação é ressaltar que a Fundação Sociedade
Aberta é mais ligada ao pensamento do partido Democrata norte-americano, do que com a
sociedade aberta de Popper, não permitindo como esta tese tentou demonstrar fazer uma
simples identificação do liberalismo, do neoliberalismo, do programa econômico e ético da
Fundação Sociedade Aberta com as reformas graduais e lentas da sociedade aberta de Popper,
que estão entrelaçadas com a ética, a modéstia intelectual e maior equalização de rendas; apesar
de que como o próprio Popper ter reconhecido haver diversas semelhanças, especialmente com
o estado keynesiano.
38 É provável que se multiplique medidas da União Europeia em detrimento dos países do leste europeu pela
divergência de ethos.
Considerações finais
Em uma palestra na universidade de Princeton, em 1963, Popper reafirmou que em sua
interpretação a teoria do conhecimento está no núcleo da filosofia, assim como a ética e a
política. Sempre que alguém quer justificar uma asserção, apresenta teorias, hipótese, crenças,
isto é, epistemologia.
Na teoria do conhecimento a escola dos céticos está refutada pelo próprio
desenvolvimento científico, esse argumento foi dado por Kant há duzentos anos pelo sucesso
da física de Newton, seu sucesso foi tão grande que chacoalhou mesmo os céticos. Depois de
Newton, Maxwell, Einstein não há dúvida de que os céticos estejam errados (POPPER, 2008,
p. 4).
Não se trata de Newton ter chegado a verdade (episteme), mas de ser uma aproximação
melhor do que Kepler, mesmo Einstein não reivindicou a verdade, mas que sua teoria foi uma
melhora a teoria de Newton.
Com Kant aprendemos que a justificação de uma teoria é possível, mas ao contrário de
seu otimismo com Newton, deve ser a todo momento criticada e testada e o fato de não ser
refutada hoje não significa que não será amanhã.
Importante ressaltar que a física do Einstein não anulou a física do Newton nas nossas
experiências cotidianas. O fato de “podermos errar e de não existir um critério de verdade que
nos possa salvar do erro, não se segue que a escolha entre teorias seja arbitrária ou não-racional,
que não podemos aprender ou chegar mais perto da verdade, que nosso conhecimento não possa
crescer” (POPPER, 1998b, p. 395). A teoria do conhecimento deve buscar a verdade, tentar
aproximar-se da verdade, mas nunca reivindicar tê-la alcançado (POPPER, 2008, p. 6-7).
Popper junto com outros filósofos não apenas pode ser considerado “culpado” pela
morte do neopositivismo, mas também não é exagero atribuir as suas criticas a dialética ao fato
da mesma ter sido repensada e redimensionada no século XX: a dialética passou de episteme
para se tornar um método com enorme grau de subjetividade.
Muito mais do que isso, Popper pode ser responsabilizado pela morte do historicismo
como método de filosofia, os filósofos historicistas fizeram muitas pessoas inteligentes crer que
a profecia histórica é o modo cientifico de abordar os problemas filosóficos, antropológicos e
sociais. Porém, neste mundo não há céus na terra, não há reinos para filósofos anunciarem,
neste mundo somente há possibilidade de melhoras lentas e árduas.
Popper tentou elaborar uma síntese entre liberalismo e socialismo, propôs a sociedade
aberta alicerçada na tolerância. Considerou que os países fino-escandinavos estavam mais
próximos de sua proposta. No momento em que viveu esta dissertação entendeu que as reformas
graduais foram expressadas e favorecidas pela liberdade, a democracia de direito, igualdade de
todos diante da lei, fraternidade, cuidadosa regulação dos meios de comunicação, um sistema
presidencialista com a existência de dois partidos, economia de mercado com desenvolvimento
sustentável, educação para todos, vigorosa intervenção política em defesa dos mais pobres e
maior equalização das rendas, a presença das religiões (especialmente a cristã).
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