Download - PONTES, Walace Tarcisio. Armas Não Letais
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CAEPE 2015
MONOGRAFIA (CAEPE)
ARMAS NÃO LETAIS:
OPÇÃO LEGAL OU DESRESPEITO AO DIREITO A UMA SEGURANÇA
CIDADÃ
Código do Tema: 07
Delegado de Polícia Federal Walace Tarcisio Pontes
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
WALACE TARCISIO PONTES
ARMAS NÃO LETAIS: Opção legal ou negligência ao direito a uma segurança cidadã
Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos em Política e Estratégia. Orientador: Cel./R1 Luiz Cláudio de Souza Gomes
Rio de Janeiro 2015
C2015 ESG
Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitido a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencioná-los, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG _________________________________ WALACE TARCISIO PONTES
Biblioteca General Cordeiro de Farias
Pontes, Walace Tarcisio. Armas Não Letais: Opção legal ou negligência ao direito a uma segurança cidadã. Delegado de Polícia Federal Walace Tarcisio Pontes. Rio de Janeiro. ESG, 2015.
71 f.
Orientador: Cel. R/1 Luiz Claudio de Souza Gomes Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentada ao
Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2015.
1. Armas Não Letais. 2. Segurança cidadã. 3. Direitos Humanos.
4. Direito Internacional Humanitário. 5. Lei Federal n.º 13.060/2014. I. Título.
Ao Grande Arquiteto Do Universo, por me
permitir uma vida prazerosa e abundante;
Aos valorosos amigos com os quais tive a
felicidade de conviver durante o período em
que cursei a Escola Superior de Guerra, e,
especialmente, aos meus familiares,
incansáveis e anônimos colaboradores de
minha jornada.
AGRADECIMENTOS
Aos estagiários da melhor turma do CAEPE pelo convívio fraterno e
proveitoso sob todos os aspectos.
Ao Corpo Permanente da ESG pelo tempo dispendido em prol dos
estagiários, tendo cumprido da melhor maneira a sua missão de ensinar e servir.
Ao estimado Cel. Luiz Cláudio de Souza Gomes, orientador deste trabalho
acadêmico e amigo que tive o prazer de conhecer logo nos primeiros dias naquele
centro de ensino, pela atenção que sempre me dispensou, pela gentil cessão do
material didático sobre o qual me debrucei, e pelo grande apoio na confecção e
revisão destas pesquisas.
"O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons" Martin Luther King
RESUMO
Esta monografia tem por objetivo conhecer o universo das principais armas não
letais em uso pelas forças de segurança no Brasil e no mundo, discorrendo sobre
suas peculiaridades e efeitos provocados quando utilizadas contra pessoas e
instalações. Apurar as fundamentações legais e os princípios jurídicos que justificam
o seu emprego pelo Estado em ações de segurança pública. Comentar sobre a
razoabilidade e a proporcionalidade que devem pautar a ação estatal, bem como a
necessidade do emprego progressivo da força como forma de graduar o poder
legítimo do Estado no controle social. Ao final, discorrer sobre o moderno
entendimento da comunidade internacional e sobre a legislação brasileira, em
especial a lei federal n.º 13.060/2014 e sua adequação Às orientações emanadas
das Nações Unidas em face do tema, verificando em que medida o emprego de
artefatos de baixa letalidade por forças de segurança pode afetar a promoção da
cidadania ao comprometer o pleno exercício dos Direitos Humanos e do Direito
Internacional Humanitário.
Palavras chaves: Armas não letais. Segurança Cidadã. Direitos Humanos. Direito
Internacional Humanitário. Lei Federal n.º 13.060/2014.
ABSTRACT
The purpose of this monograph is to describe the main non-lethal weapons used by
police and other security forces in Brazil and the world, describing their peculiarities
and effects when used against people and installations. The text also covers the
legal grounds and principles that justify their employment by the State in public
security actions and comments on the reasonableness and proportionality of this
action, as well as the need to use progressive force levels to graduate the legitimate
power of the State in social control. At the end, it discusses the modern interpretation
by the international community of Brazilian legislation, in particular Federal Law
13.060/2014 and its adequacy. The orientations issued by the United Nations on the
theme are also examined, to verify to what extent the use of these devices by
security forces can affect the promotion of citizenship and the full exercise of human
rights and international humanitarian law.
Keywords: Non Lethal Guns. Citizen Public Safety. International Humanitarian Law.
Human Rights. Federal Law n.º 13.060/2014.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 8
2 UM PANORAMA SOBRE ARMAS NÃO LETAIS: PRINCIPAIS CRÍTICAS ... 12
2.1 CONCEITUANDO E HISTORIANDO AS ARMAS NÃO LETAIS ...................... 16
2.2 O MONOPÓLIO DO USO DA VIOLÊNCIA PELO ESTADO ............................ 21
2.3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NAS AÇÕES DO ESTADO ......... 23
2.4 RAZÕES QUE PODEM RECOMENDAR O USO DE ARMAS NÃO LETAIS ... 25
2.5 USO PROGRESSIVO DA FORÇA ................................................................... 27
3 ARMAS NÃO LETAIS: CARACTERÍSTICAS DAS PRINCIPAIS
TECNOLOGIAS DISPONÍVEIS ....................................................................... 30
3.1 ARMAS DE BAIXA ENERGIA CINÉTICA ......................................................... 31
3.1.1 Canhões D'Água ............................................................................................. 31
3.1.2 Armas Contundentes, Cassetetes, Tonfas e Similares ............................... 32
3.1.2 Projéteis de Baixo Impacto (ou de Impacto Controlado) ............................ 34
3.1.3 Granadas Explosivas ..................................................................................... 37
3.2 ARMAS NÃO CINÉTICAS ................................................................................ 38
3.2.1 Armas Químicas ............................................................................................. 38
3.2.2 Armas de Eletrochoque ................................................................................. 41
4 A ATUAÇÃO DO ESTADO NA SEGURANÇA PÚBLICA E O AMPARO
LEGAL PARA O EMPREGO DE ARMAS NÃO LETAIS ................................. 45
4.1 O DIREITO INTERNACIONAL APLICÁVEL ..................................................... 45
4.2 A LEGISLAÇÃO NACIONAL E AS DIRETRIZES SOBRE O USO DA FORÇA
PELOS AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA .............................................. 49
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 53
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 56
ANEXO A – PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 4.226 ................................. 59
ANEXO B - RESOLUÇÃO Nº. 34/169 ............................................................. 65
ANEXO C - PRINCÍPIOS BÁSICOS SOBRE A UTILIZAÇÃO DA FORÇA E
DE ARMAS DE FOGO PELOS FUNCIONÁRIOS RESPONSÁVEIS PELA
APLICAÇÃO DA LEI ........................................................................................ 66
ANEXO D - LEI 13.060/2014, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2014 ..................... 70
ANEXO E - PORTARIA Nº. 20 - D LOG DE 27 DE DEZEMBRO DE 2006 ..... 71
8
1 INTRODUÇÃO
Trataremos neste trabalho acadêmico de conhecer o universo das principais
armas não letais em uso pelas forças de segurança no Brasil e no mundo. Uma nova
concepção de armamentos desenvolvidos para atuarem com baixa letalidade, os
quais vêm sendo utilizados como forma de graduar o poder legítimo do Estado no
controle social, ou seja no combate à criminalidade e na contenção de distúrbios
sociais.
O uso da força pelo Estado deve ser dosado a um limite que assegure a
execução de sua vontade legítima sem, igualmente, descurar-se da necessidade de
reduzir ou eliminar danos humanos e materiais. A comunidade internacional, cada
vez mais, preconiza que instituições voltadas à segurança pública devem sempre
pautar suas ações operacionais pela utilização da força mínima necessária ao
domínio dos “infratores” - ou daqueles que ponham em risco sua própria integridade
física ou a de terceiros. Fomenta-se assim o desenvolvimento e a utilização de
dispositivos e armamentos especialmente projetados para conter, debilitar ou
incapacitar temporariamente, com o menor dano possível.
Tais artefatos – cuja denominação técnica segue imprecisa e controversa –
vem sendo adquiridos no Brasil por órgãos públicos civis e militares envolvidos em
ações de segurança pública, a despeito da insuficiência de pesquisas e estudos
científicos sobre o tema. Poucos também têm sido os debates envolvendo a
sociedade nas questões relacionadas ao desenvolvimento e utilização dessas novas
tecnologias, inicialmente concebidas para uso militar, mas modernamente
destinadas tanto ao combate à criminalidade quanto à manutenção da ordem e no
controle dos distúrbios sociais.
Recentemente, foi sancionada a Lei Federal n. 13060/2014 determinando
aos órgãos de segurança pública que priorizem o uso de instrumentos de menor
potencial ofensivo em suas ações operacionais. Contudo, não faltam críticas e
dúvidas quanto ao emprego regular dessa nova categoria de armamentos, então
rotulados como de “baixa letalidade”.
As opiniões contrárias se sustentam principalmente em face dos incessantes
casos de mal-uso e abusos, bem como nas recentes notícias de desmandos na
utilização desses dispositivos na violenta repressão policial contra os manifestantes
que protestavam contra os aumentos das passagens de ônibus em SP, em junho de
9
2013. Na oportunidade os policiais foram acusados de usar indevidamente bombas
e sprays de gás lacrimogênio, ferindo dezenas de pessoas dentre manifestantes e
jornalistas, como registrou em seu sítio virtual a Organização Não Governamental
Human Rights Watch 1.
Poderíamos ainda citar dezenas de outros casos, tanto no Brasil quanto no
exterior, nos quais as evidências lançam sérias dúvidas sobre a legitimidade do uso
da força, bem como sobre a proporcionalidade dos meios empregados,
especialmente em face de abusos no uso de artifícios não letais contra
manifestantes e jornalistas.
As críticas decorreram ainda da falta de regulamentação da Lei n.º
13060/2014 – sem a qual, o texto legislativo aprovado repousa quase inerte - e da
pouca transparência nas aquisições e no uso daqueles dispositivos por órgãos das
três esferas federativas. Restou evidenciado que a introdução dos novos dispositivos
nas forças de segurança vem ocorrendo de forma maciça e abrangente, mesmo
quando ainda não estão regulamentados métodos eficazes e seguros para seu
emprego, sendo também insuficientemente conhecidas pela sociedade as
circunstâncias que justificariam o seu emprego.
Assim, buscaremos no primeiro capítulo comentar os conceitos das novas
tecnologias – os quais ainda apresentam interpretações controversas e variadas –
para em seguida abordarmos as implicações relacionadas à fabricação,
comercialização e utilização desses novos dispositivos por forças de segurança –
pública e privada – ao redor do mundo. Arguiremos desde aspectos práticos
decorrentes do uso da moderna tecnologia à compreensão das razões e motivos
que têm levado governos de várias partes do mundo a uma verdadeira corrida em
busca da aquisição de tais equipamentos2, o fazendo a despeito de enfrentarem
problemas financeiros ou mesmo em meio à adoção de políticas austeridade.
Veremos também no primeiro capítulo que as armas não letais foram
inicialmente idealizadas e concebidas para o uso exclusivo em ações militares, mas 1 “Em diversos incidentes, policiais aparentemente usaram força excessiva, agredindo pessoas que
não resistiam à prisão, e utilizando spray de pimenta e gás lacrimogênio”. Disponível em <http://www.hrw.org/pt/news/2014/06/25/brasil-investigue-resposta-policial-protestos-durante-copa> em 21 abr. 2015.
2 “Protestos impulsionam indústria do gás lacrimogênio” em meio aos protestos de junho de 2013, a empresa jornalística BBC destacava que a despeito das medidas de austeridade adotadas por vários governos ocidentais, o setor industrial responsável pela defesa interna (fabricação de gás lacrimogênio e outros) apresentava um aumento de vendas na ordem de 18%. <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/06/130619_gas_lacrimogeneo_mj_cc> Pesquisado em 23.05.2015
10
têm sido cada vez mais empregadas em ações de segurança interna, conferindo
uma dose de militarização dos costumes e práticas policiais.
Percebendo o enorme campo que se abriu ao uso daqueles dispositivos em
ações de segurança pública, a indústria bélica mundial, atenta às mudanças dos
paradigmas de controle social, não tardou a conferir um uso dual para aquelas
novas tecnologias, aperfeiçoando conceitos e tecnologias tipicamente militares para
introduzi-los, com retumbante sucesso comercial, em armas e dispositivos para uso
em ações de natureza policial e de segurança privada.
Ainda dentro do capítulo inicial veremos que a baixa letalidade implícita na
concepção dos novos dispositivos não pode nos levar a confundir a utilização
daquela tecnologia com ideais humanistas ou movimentos pacifistas em busca de
sociedades plácidas e ordeiras, mas, por outro lado, compreenderemos tratar-se de
uma aplicação pragmática do poder impositivo do Estado, decorrente do monopólio
legítimo do uso da força, para o qual dedicamos um tópico em particular.
Abordaremos o uso das prerrogativas do poder estatal, analisando o
emprego de armamentos de baixa letalidade não como aumento de sua capacidade
legítima de punir - inerente aos governos legítimos -, mas sim como mais uma opção
racional colocada à disposição das forças de segurança, que nas últimas décadas
passaram a contar com novas tecnologias tanto para o controle social das massas,
como para o combate direto à criminalidade. Aumentaram-se com elas o leque de
graduação do qual dispõe o Estado para fazer uso coerente e progressivo de sua
força, a qual deve sempre estar pautada no princípio constitucional da
proporcionalidade dos meios empregados.
Após conhecermos as razões legais que tutelam o uso e a aplicação da
força pelo Estado, bem como os princípios constitucionais que os limitam, trataremos
no capítulo seguinte das principais armas de baixa letalidade em uso (ou disponíveis
para aplicação) na sociedade 3.
Trata-se assim de uma pesquisa acadêmica que não pretende esgotar os
estudos acerca dos arsenais disponíveis para controle social, mas sim fazer uso
exemplificativo dos principais dispositivos de baixa letalidade existentes no mercado
para, a partir do conhecimento dos respectivos funcionamentos e das críticas
3 Ressalvamos que por serem dezenas os artefatos já existentes, e inúmeros os que ainda se
encontram em desenvolvimento, não esgotaremos o extenso rol disponível no mercado. Logo, a fim de conferir certo grau de concisão e objetividade às pesquisas, optamos por limitar o foco dos estudos aos principais dispositivos em uso pelas forças de segurança pública brasileiras.
11
registradas, tecer comentários sobre seus efeitos contra instalações e pessoas, bem
como da potencial fragilização de direitos e das consequências do emprego contra a
população civil. Entendemos assim que a limitação dos estudos aos dispositivos
mais comumente utilizados nos tempos atuais permitirá uma compreensão mais
ampla de suas respectivas concepções técnicas, bem como uma análise pontual da
extensão dos danos humanos e materiais que cada um deles pode provocar.
Chegando ao ponto central de nossas pesquisas, discutiremos ainda dentro
do segundo capítulo – par e passo com cada dispositivo analisado – aspectos do
direito humanitário atingidos pelo uso de cada um daqueles dispositivos,
discorrendo sobre as principais implicações físicas e psicológicas que a sua
utilização pode produzir nas pessoas contra as quais são aplicadas, ilustrando com
exemplos reais colhidos em matérias jornalísticas veiculadas pela mídia local e
mundial, de forma a abrir espaço para discorrermos, no terceiro e último capítulo,
sobre os aspectos do direito humanitário que entendemos fragilizados em sua
concepção primária pelas ações de força do Estado em face do uso de tecnologias
bélicas de baixa letalidade. Conheceremos o arcabouço jurídico nacional e as
respectivas teorias e razões de direito que se sustentam a regulação da
comercialização e do uso desses dispositivos em território nacional.
Ao término do trabalho, externaremos nossas impressões conclusivas,
avaliando se os textos legais e as providências normativas adotadas por órgãos de
segurança pública conferem a necessária regulação ao uso daquelas novas
tecnologias, esclarecendo igualmente quando e em que medida seu uso podem
potencialmente ofender direitos globalmente reconhecidos, para ao final concluir se
os benefícios de seu uso comprometem ou não o direito a uma segurança pública
com cidadania.
12
2 UM PANORAMA SOBRE ARMAS NÃO LETAIS: PRINCIPAIS CRÍTICAS
A partir da década de 1960, governos de várias nações começaram a
despender enormes esforços a fim de pesquisar e desenvolver modernas
tecnologias voltadas à criação de uma nova classe de armamentos, idealizados não
para matar ou para destruir, mas para incapacitar o adversário, limitando ou
impedindo sua reação. Trata-se de dispositivos que buscam aumentar e aprimorar a
capacidade do Estado para o enfrentamento das questões de segurança pública,
incluído não apenas o combate à criminalidade, mas também para a contenção de
conflitos e convulsões sociais.
Inicialmente as armas de baixa letalidade foram concebidas para serem
usadas em situação de combates militares, visando limitar ou conter conflitos nos
quais o emprego de armas convencionais não era desejado, ou onde razões
políticas proibissem sua utilização4. Contudo, essa tecnologia vem também sendo
paulatinamente assimilada – e introduzida – por órgãos de segurança pública em
todo o país, os quais, vendo na “baixa letalidade” uma opção de controle social
menos traumático, não tardaram para levar às ruas e logradouros públicos os novos
artefatos.
Para o coronel John B. Alexander5, autor da obra “Armas não letais”, os
agentes da lei passaram a se interessar por tecnologia não letal há algum tempo.
Alexander cita a reunião convocada em 1986 pelo Procurador Geral Edwin Meese,
com o apoio do Diretor do FBI Willian Webster, para tratar de tecnologia não letal. A
reunião ocorrida na academia do FBI, em Quântico, na Virginia/USA, foi conduzida
pelo diretor do Instituto Nacional de Justiça norte-americano e “desde então, tem
havido um grande interesse nesse campo”. (ALEXANDER, 2003, fl. 76).
Embora aquele autor tenha citado a década de 70 do século passado como
importante momento para os debates sobre o uso da nova tecnologia em ações de
4 Segundo Edward P. O Connell, militar da Força Aérea dos EUA e pesquisador da Rand Corporation,
localizada na Califórnia-USA, “tecnologias emergentes que apoiem o desenvolvimento de armamento não letal estão espalhadas em diversas áreas, com muitos usuários em potencial. ” (Conceitos Não letais: implicações para a inteligência na Força Aérea. Artigo publicado na edição brasileira da Airpower Journal. 4º trimestre. 1995)
5 O Cel. John B. Alexander possui vasta experiência na área de pesquisas e desenvolvimento de armas de alta tecnologia. Desenvolveu o conceito de Defesa Não Letal no Laboratório Nacional de Los Alamos, nos EUA, onde foi pesquisador. É Diretor de Ciências para uma organização privada de pesquisas em Las Vegas e consultor do CIN, Centro de Operações Especiais e membro do Comitê Nacional de Pesquisas para o desenvolvimento de Tecnologias Não letais, ambos nos EUA. É autor das vários artigos científicos e obras.
13
natureza civil, ele próprio faz, ao longo de sua obra, menção a inúmeras passagens
anteriores, nas quais as armas não letais foram utilizadas em ações diversas das
tipicamente militares, como, por exemplo, a utilização de bombas de gás
lacrimogênio para contenção de tumultos na Irlanda do Norte, dentre outros.
Em uma análise superficial, um observador pouco informado poderia ser
levado a crer que a nova tecnologia traz implícita uma abordagem mais humanística
do uso da força pelo Estado, visto que não foi concebida com intento destrutivo e
letal, ao contrário, busca provocar o menor dano possível, tanto no ambiente físico
onde é utilizado quanto nas pessoas contra as quais é empregada. Porém, não
foram exatamente valores altruísticos que levaram à criação de tais dispositivos,
ainda que, ao contrário das armas de fogo (concebidas com propósitos
inegavelmente letais), esses novos dispositivos não sejam projetados para matar,
mas sim para produzir o menor dano possível, seja material ou pessoal, suficiente
apenas para incapacitar o opositor, reduzindo-lhe ou eliminando as possibilidades de
insurgência, de forma a submetê-lo à vontade do Estado.
O que se busca em um enfrentamento físico é o enfraquecimento da força
adversária (venha ela de um soldado ou de um civil em descumprimento da lei), e
para tanto o Estado deve adequar o uso de sua força coercitiva, selecionando de
forma apropriada e proporcional, dentre todas as opções de que dispõe, qual a mais
apropriada, escalonando os níveis de seu aparato bélico conforme a gravidade do
delito e o grau de resistência ou reação do transgressor, sob pena de, não o
fazendo, violar direitos fundamentais da pessoa humana.
A importância do tema no seio social é de tal relevância que demanda
estudos aprofundados e debates abertos com a sociedade. Para entidades
científicas dedicadas a pesquisas sobre o uso de equipamentos de baixa letalidade
contra a população civil, como a britânica Britsh Society for Social Responsability in
Science, os governos já não mais se utilizam de metralhadoras quando ameaçados
dentro de sua própria casa. Eles agora dispõem de balas de plástico que matam
apenas ocasionalmente (WRIGHT, 1998).
No Brasil, apenas recentemente, após a maciça introdução dos novos
artefatos nas diversas forças de segurança pública, com a ocorrência de inúmeros
casos de mal-uso e abusos na sua utilização, os políticos e especialistas (e os
próprios cidadãos) perceberam a necessidade de regular, com urgência, o uso
daqueles dispositivos, dando início a discussões e debates parlamentares nos três
14
níveis de governo, demonstrando a preocupação em disciplinar a fabricação,
comercialização e o uso desse armamento 6.
O principal objetivo do desenvolvimento dessa tecnologia é permitir - ao
agente encarregado da aplicação da lei - ter níveis de resposta adequados à
situação que se deseja resolver, fornecendo-lhe novas opções ao lidar com as
transgressões e tumultos sociais. Porém, ainda que desenvolvidas para provocar
menor dano potencial, não são incomuns queixas de cidadãos e ocorrências
policiais noticiando ocorrências trágicas em face do emprego (ou do mal-uso e
abuso) de armamentos tidos como não letais.
Tanto no Brasil 7 quanto no exterior avolumam-se casos de incidentes de
lesão grave ou morte envolvendo forças de segurança e cidadãos atingidos por
dispositivos pretensamente não letais. Por vezes, em apurações posteriores,
evidencia-se que as vítimas de tais dispositivos não chegaram a atentar contra a
segurança pública, conquanto tenham sido alvejadas pelo Estado.
No Brasil, recentemente a imprensa noticiou o caso de um fotógrafo que
perdeu a visão de um dos olhos após ser atingido por balas de borracha quando
cobria manifestações na cidade de São Paulo 8. Parece ficar evidente que mesmo
sendo denominados “não letais”, tais dispositivos estão causando mortes ou lesões
em inúmeras ações policiais.
6 - No Estado de São Paulo, um projeto de lei (PL 871/2009) proposto pelo deputado Samuel Moreira
dispondo sobre o uso preferencial de arma não letal por agentes das policias civil e militar, tem gerado acaloradas discussões, especialmente após a violenta repressão policial às manifestações ocorridas em meados de 2013 sobre o aumento das tarifas de ônibus. Disponível em <http://www.ibccrim.org.br/noticia/13844-Uso-de-armas-no-letais-por-policiais>. Em 28 abr. 2015. - Desde 2012 tramita na Câmara Municipal do Rio de Janeiro o Projeto de Lei n.º 1373/2012, que tem por finalidade regulamentar a utilização pela Guarda Municipal “de armas e munições não letais [...] em consonância com os Direitos Humanos”. Disponível em <http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1316.nsf/b63581b044c6fb760325775900523a41/03257ad1004cc81c032579eb0067c17d?OpenDocument>. Acesso em 21 ago. 2015. - Em março deste ano, o prefeito de Juiz de Fora/MG vetou o projeto de lei n.º 191 da Câmara municipal, o qual autorizava a guarda municipal a utilizar armas não letais. Disponível em <www.g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2015/03/guarda-municipal-e-proibida-de-usar-armas-não letais-em-juiz-de-fora.html>. Acesso em 25 abr. 2015.
7 Em junho de 2013, durante a tramitação de um projeto de lei estadual (PL 871/2009) que dispunha sobre o uso preferencial de armas não letais por agentes do Estado, a Comissão de Defesa de Direitos da Assembleia Legislativa de São Paulo promoveu audiência pública na qual representantes de movimentos sociais deram depoimentos sobre suas experiências pessoais em que teriam sofrido ferimentos graves provenientes de armas não letais. Para eles os movimentos sociais seriam discriminados no Brasil “como na época da repressão militar”. Disponível em <http://www.ibccrim.org.br/noticia/13844-Uso-de-armas-no-letais-por-policiais> em 03 mai. 2015.
8 Disponível em <http://www.camara.sp.gov.br/blog/fotografo-que-ficou-cego-quer-homenagem-para-vitimas-da-policia/>. Acesso em 03 mai. 2015.
15
São vários os exemplos que ilustram o mal uso dessa nova tecnologia no
Brasil e em nações com baixo índice de desenvolvimento humano. O extenso rol de
abusos das forças do estado na utilização de dispositivos de baixa letalidade
também abrange países com elevado grau de desenvolvimento social, como pode
ser observado no incidente envolvendo a morte do estudante brasileiro Roberto
Lausidio Curti, em março de 2012. O caso ganhou as manchetes dos jornais no
Brasil e no exterior. Roberto foi confundido com um suspeito que havia acabado de
furtar um biscoito em uma loja de conveniência e morto por policiais da cidade de
Sidney, na Austrália 9.
O estudante, com apenas 21 anos de idade, foi brutalmente dominado e
abatido com vários disparos de arma de choque, embora não estivesse armado e
tão pouco houvesse atentado contra a vida dos policiais ou de terceiros. Sua morte
causou grandes debates sobre a alegada não letalidade dos modernos dispositivos
que estavam sendo utilizados para conter agressores. Teria sido uma fatalidade, um
fato superveniente ao qual ninguém deu causa, ou a suposta não letalidade
informada pelos fabricantes – e alardeada pela polícia – estaria contribuindo para
um uso desmedido dos dispositivos “não letais”?
Ante a repetição de incidentes semelhantes envolvendo forças de segurança
em todo o país, e até no exterior, parece existir inegáveis razões para considerarmos
o risco potencial de perda das liberdades civis ante aos avanços tecnológicos
desses novos dispositivos, mormente quando esses “progressos” visam conferir ao
Estado um maior controle do social e político da população.
Segundo especialistas no assunto, a comunidade internacional, melhor
compreendida pela atuação da ONU - Organização das Nações Unidas, tem cada
vez mais firmado entendimento de que armas não podem provocar sofrimento
desnecessário, e tão pouco acarretar efeitos indiscriminados (COOK III; FIELY, J.
David e MCGOWAN, Maura T. 1995), podendo, contudo, ser empregadas tão
somente quando estritamente necessário, e na medida exigida para a satisfação da
legítima vontade do Estado, devendo os responsáveis pela aplicação da lei respeitar
e proteger os direitos de todos os cidadãos, zelando pela dignidade da pessoa
9 Brasileiro morto na Austrália não roubou pacote de biscoitos, diz rádio. Disponível em
<http://veja.abril.com.br/noticia/mundo/brasileiro-morto-na-australia-nao-roubou-biscoitos-diz-radio/> em 08 de mai. 2015.
16
humana (Código de Conduta para Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei.
Adotado em 17/12/1979 pela Assembleia da ONU, através da resolução nº 34/169).
Mesmo subscrevendo as orientações as quais chegaram das Nações Unidas
– formuladas no 8º Congresso sobre a prevenção do crime, realizado em Havana no
ano de 1999 – a reação efetiva do governo brasileiro aos inúmeros registros
jornalísticos que noticiavam ocorrências de abusos policiais no Brasil, só teve início
em dezembro de 2010. Isso ocorreu com a edição da Portaria Interministerial nº
4226 fixando diretrizes sobre o uso da força pelos agentes de segurança pública,
alçando ao status de política pública nacional as orientações da ONU acerca do
tema. Mais recentemente, em dezembro de 2014, o governo brasileiro editou a Lei
nº 13.060, reforçando o princípio constitucional de um direito à segurança pública
com cidadania. Para que seus dispositivos comecem a valer, essa lei ainda precisa
ser regulamentada por decreto do governo federal.
2.1 CONCEITUANDO E HISTORIANDO AS ARMAS NÃO LETAIS
Para um adequado entendimento do tema é relevante que abordemos
inicialmente a conceituação dos dispositivos técnicos sobre os quais essa pesquisa
acadêmica se debruçará, esclarecendo ao leitor as principais características e
qualidades que os definem, possibilitando assim entender sua eficiência e
dimensionar os efeitos potenciais que pode acarretar, facilitando tecer juízos de valor
sobre sua aplicabilidade, em especial, o uso em situações de comprometimento da
ordem e da segurança pública.
A preocupação com a redução do potencial de destruição e da capacidade
letal de armas, de uma forma geral, não é fato novo em nossa história. Elas quase
sempre estiveram presentes, às vezes até mesmo em momentos de guerra.
Diferentemente da crença popular majoritária, a guerra sempre representou o uso
controlado da força. Via de regra, emprega-se a força, ou ameaça-se fazê-lo,
quando as divergências não podem ser solucionadas pela via pacífica da
diplomacia. Tenta-se inicialmente dissuadir o oponente ao enfrentamento bélico,
seja para não envidar esforços e custos desnecessários, seja por conta do interesse
do eventual vencedor em não inutilizar o espaço que deseja conquistar, destruindo
ou danificando bens materiais dos quais poderá se apropriar.
17
Há dois mil anos, o famoso militar chinês Sun Tzu já alertava que a guerra
deveria ser vencida antes mesmo de desembainharem-se as espadas. Na visão
daquele grande estrategista, o inimigo deveria preferencialmente ser vencido
quando seus domínios ainda estivessem intatos, evitando-se perdas
desnecessárias: “Deves almejar como aquilo que há de mais perfeito, conservar
intatos os domínios dos inimigos. Só deves destruí-las em caso de extrema
necessidade [...] a melhor política guerreira é tomar um Estado intato; uma política
inferior consiste em arruiná-lo”. (TZU, Sun. A arte da Guerra, 2000, fls. 19).
Em 1868, o governo Russo, preocupado com a utilização contra pessoas de
alguns explosivos e projéteis inflamáveis, convidou a Comissão Militar Internacional
para “examinar a viabilidade de se proibir o uso de certos projéteis em tempo de
guerra entre nações civilizadas”. É que quando utilizados contra seres humanos,
aqueles tipos de projéteis alcançavam efeitos semelhantes ao de uma bala de fuzil,
porém causavam ferimentos maiores que agravavam o padecimento da vítima.
Daquela iniciativa resultou a Declaração de São Petersburgo, primeiro tratado
internacional impondo restrições à guerra e proibindo o uso de projéteis explosivos
cujo peso superasse 400 gramas.
Aquelas abstrações humanitárias não tiveram início na Rússia do século
XIX, eis que foram antes observadas também nos tempos da civilização Romana,
com a proibição de flechas envenenadas, ou nas Leis de Manu, da índia antiga, que
igualmente proibiam o uso de flechas com rebarbas para que não aumentassem os
ferimentos ao serem removidas dos corpos das vítimas. (COOK III, FIELY e
MCGOWAN, 1995)
Há registros também que durante a idade média o Papa proibiu o uso de
bestas em decorrência dos horríveis ferimentos por elas causados, contudo a
importância da Declaração de São Petersburgo é bastante significativa, eis que
reavivou na civilização recente uma linha de raciocínio e debates na comunidade
internacional que levou grupos e governos de distintas partes do globo a começar a
questionar a legalidade do uso de determinadas armas e tecnologias de guerra,
surgindo daí parte dos argumentos e princípios que hoje fornecem fundamentações
para a fabricação e o uso de armas com menor potencial lesivo 10.
10 “Considerando que o progresso da civilização deve ter o efeito de aliviar tanto quanto possível as
calamidades da guerra o único objeto legítimo que os estados devem diligenciar em obter durante a guerra é o enfraquecimento das forças militares do inimigo. É suficiente incapacitar o maior número possível de homens, e esse objetivo seria sobrexcedido pelo emprego de armas que agravassem
18
À Declaração de São Petersburgo se seguiram a Convenção de Haia de
1899 e os regulamentos a ela posteriormente anexados – que codificaram as “leis e
costumes da guerra terrestre” –, como o Protocolo de Genebra de 1925, que proibiu
do uso de gases asfixiantes e/ou venenosos e de métodos bacteriológicos de
guerra, bem como as convenções de Genebra de 1929 e 1949, que trataram das
melhorias das condições de civis, prisioneiros de guerra, doentes e feridos, e alguns
outros tratados versando sobre a legitimidade de utilização de algumas armas em
específico. (COOK III, FIELY e MCGOWAN. 1995)
A despeito do lapso temporal centenário transcorrido desde aquelas
medidas iniciais externando o desejo comum da comunidade internacional em limitar
o uso da força e não contrariar as leis da humanidade, a conceituação de um termo
específico para definir este tipo de armamento ainda continua controversa, pois
várias expressões têm sido usadas para designá-lo.
Parte dos estudiosos preferem se referir a esses armamentos pelo termo
“não letal”, outros porém usam expressões do tipo “menos-letais” ou “sub-letais”, ou
ainda “menos-que-letal”. Tem-se também denominações do tipo “baixo dano
colateral”, “incapacitante”, “perturbador” dentre outros.
Para John B. Alexander, estudioso do assunto que durante algum tempo
chegou a utilizar a expressão “destruição suave” em artigos sobre as técnicas e
armamentos de baixa letalidade11, a discussão é de extrema importância ao debate.
Aquele especialista logo percebeu o contrassenso de utilizar a expressão
“destruição suave”, afinal “as coisas são destruídas com violência, e não com
suavidade”, contudo não deixou de alertar para a necessidade de forjar um termo
adequado para a descrição dos novos armamentos, pacificando o quanto antes a
celeuma, eis que tem permitido, aos que não são favoráveis à idéia, criticar o uso de
armas de baixa letalidade mascarando suas verdadeiras intenções. (ALEXANDER.
2003. Pag. 32/33)
A cada evento com mortes ou danos físicos consideráveis provocados por
armas não letais, os críticos se apressam em guiar sua ira e tecer críticas à
inutilmente os sofrimentos dos homens neutralizados, ou que tornassem inevitável sua morte. O uso de tais armas seria contrário, portanto, às leis da humanidade”. Preâmbulo da Declaração de São Petersburgo.
11 Lembrando que aquele termo ainda pode ser encontrado em diversos livros e artigos populares (citou dois artigos: “matando-os suavemente”; “Bang – você está vivo”), Alexander informa que o próprio presidente George Bush combinou aquela expressão com referências sociais, levando algumas pessoas a falar em guerra “mais suave e piedosa”.
19
expressão semântica que define o novo armamento, afastando-se das premissas
centrais que recomendam a não utilização de armamento convencional e o uso
ponderado da força, desvirtuando e tumultuando os debates.
Para Alexander, o uso de expressões como “menos-letal” ou “menos-que-
letal” exige o reconhecimento de que certa dose de ação letal irá ocorrer, ainda que
danos colaterais possam ser minimizados, porém elas não têm a mesma conotação
restritiva que o termo “não letal”, que nos traz uma ideia de que nada será destruído.
Essa é de fato a intenção, embora dificilmente se possa garantir que esse efeito
jamais venha a ocorrer. Aquele autor nos lembra, ainda, que os primeiros
debatedores do assunto advogavam que, em alguns casos, a melhor expressão
deveria ser “piores-que-letais”, dado à possibilidade que apresentam de cegar ou
causar danos terríveis e irreversíveis. Por vezes os argumentos de parte da crítica
parecem carregar mais emoção do que razão.
Reconhecendo a extensão dos debates semânticos e a procedência de
parte das controvérsias, ALEXANDER confirma que a expressão “não letal”
apresenta desvantagens, pois sempre que se faz uso da força é possível ocorrerem
mortes ou lesões. Esses efeitos indesejados vêm aumentando sua probabilidade de
ocorrência à medida que os novos dispositivos passaram a ser usados largamente
em todo o país.
Quando afetadas por armas não letais, partes diferentes do corpo humano
estão sujeitas a vulnerabilidades igualmente diferentes, estando, portanto, passíveis
de sofrerem lesões diversas provocadas pela mesma arma ou objeto. Essa
diversidade de efeitos sofre ainda alterações em face das variações de peso e
complexão física.
Sob esta ótica, qualquer arma poderosa o suficiente para incapacitar pode,
em determinadas circunstâncias, matar ou ferir gravemente. Um golpe de cacete no
tórax não tem o mesmo efeito que na região craniana. Uma pessoa adulta pode
suportar uma descarga elétrica maior do que uma criança, ou uma pessoa com
problemas cardíacos. Nesse contexto, até o uso da força não letal oferece certo
risco de morte, e nesse contexto, não letal significa apenas “sem a intenção de
matar”.
Em 1996, o Departamento de Defesa norte-americano passou a designar
oficialmente tais sistemas de armas pelo termo “não letal”, baixando a diretriz nº
3000.3, que assim os definiu: "Armas Não Letais. São aquelas armas
20
especificamente projetadas e empregadas para incapacitar pessoas ou materiais, ao
mesmo tempo em que minimizam fatalidades, ferimentos graves em pessoas e
danos indesejados a propriedades e ao meio ambiente." (EUA. Departamento de
Defesa. Diretriz 3000.3, tradução nossa 12).
Embora não exista consenso acerca da melhor definição daqueles
dispositivos, a OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte assim as define;
“armas que são especificamente projetadas e desenvolvidas para repelir ou
incapacitar pessoas, com baixa probabilidade de ferimentos graves ou fatais, ou
para desativar equipamentos com um mínimo de danos físicos e impactos ao meio
ambiente." (Casey-Maslen, 2010, tradução nossa 13).
Sem fugir das controvérsias relacionadas à designação mais adequada dos
novos dispositivos, ALEXANDER entende embora o termo “não letal” não seja o
ideal, ele é capaz de proporcionar uma ideia satisfatória ao nos referimos aos
assuntos relacionados à redução dos danos colaterais, razão pela qual passou a
adotá-lo, alertando, contudo, para a necessidade de nos atentarmos para diferenças
importantes entre esses novos dispositivos e as armas convencionais.
As armas não letais são projetadas para apresentar efeitos relativamente
reversíveis sobre pessoas e materiais, bem como para afetar de forma diferenciada
os objetos que estiverem em seu raio de ação. Para aquele autor basta a ocorrência
de ao menos um dos efeitos, ou ambos, para que classifiquemos o armamento como
“não letal”.
É também importante destacar, dentro do contexto histórico relacionado ao
surgimento das armas não letais, o “Código de conduta para os funcionários
responsáveis pela aplicação da lei”, publicado em dezembro de 1979 através da
resolução nº 34/169-ONU, que passou a impor àquela categoria de servidores
públicos a necessidade de respeitar a proteger a dignidade da pessoa humana,
somente empregando a força quando estritamente necessária e na medida exigida
para o cumprimento do dever.
12 “Non-Lethal Weapons. Weapons that are explicitly designed and primarily employed so as to
incapacitate personal or materiel, while minimizing fatalities, permanent injury to personel, and undesired damage to property and the environment”. (USA. Departament Of Defense. Diretriz nº 3000.3)
13 "Weapons which are explicitly designed and develooped to incapacitate or repel personnel, with a low probability of fatlity or permanente injury, or to disable equipment, with minimal undesired damage or impacto on the envirenment.” (Casey-Maslen, 2010)
21
Àquela resolução seguiram-se as diretrizes emanadas do 7º Congresso da
ONU sobre prevenção do Crime, ocorrido na Itália em novembro de 1985, no qual
restaram pontuados elementos sobre o uso da força que deveriam ser considerados
no Congresso seguinte.
No ano de 1990, por ocasião do 8º Congresso das Nações Unidas sobre
prevenção do crime e tratamento dos delinquentes, forjaram-se os princípios básicos
sobre o uso da força e armas de fogo pelos funcionários responsáveis pela
aplicação da lei, que passou a recomendar aos Estados membros que adotassem
uma série de providências, de forma a equipar os servidores com uma variedade de
tipos de armas e munições que permitissem o uso diferenciado da força. Tais
providências incluíam o aperfeiçoamento e uso de armas não letais, definidas
naquele evento como armas incapacitantes para uso em situações apropriadas, com
o propósito de gradualmente aumentar a restrição de aplicações capazes de causar
morte ou ferimentos aos indivíduos. Comentários mais detalhados sobre aqueles
princípios internacionais serão apresentados no capítulo 3 deste trabalho.
Recentemente, seguindo o caminho pautado pelos princípios orientadores
internacionais destacados pela ONU, o governo brasileiro editou, em dezembro do
ano passado, uma legislação que disciplina em todo o território nacional o uso dos
dispositivos aqui estudados. Para os efeitos daquela lei são considerados
“instrumentos de menor potencial ofensivo, aqueles projetados especificamente
para, com baixa probabilidade de causar mortes ou lesões permanentes, conter,
debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas”. É essa a definição dada pelo
artigo 4º da Lei nº 13.060/2014.
Em busca de uma apresentação mais didática do tema, no capítulo 3º serão
comentados os principais aspectos legislativos que regulam o tema.
2.2 O MONOPÓLIO DO USO DA VIOLÊNCIA PELO ESTADO
Nas precisas palavras de Carlos Ari SUNDFELD: (SUNDFELD, 1992, p. 19)
“a vida humana é, essencialmente, uma experiência compartilhada”, impondo a
formação dos grupos sociais e a convivência dos indivíduos no interior desses
grupos (ou de cada grupo com os demais), a qual depende da existência de regras
22
que estabeleçam como devem ser a relação entre todos . E para existir tais regras
alguma força há de produzi-las. Essa força chama-se Poder.
A história demonstra que até mesmo no interior dos primitivos Clãs, onde
não existia nem o direito e nem a justiça, prevalecia um “governo doméstico”
tendente a regular as relações interpessoais.
Dessas mesmas relações convêm, neste trabalho de pesquisa, destacar
apenas aqueles comportamentos que ofendem sentimentos e valores comuns
arraigados em dada sociedade, pois é desta consciência coletiva que se originou o
Direito Penal (e, gerindo sua efetivação, o Processual Penal). E para que o penal
realmente apareça, o político deverá adquirir estabilidade e autonomia suficientes –
é o que se chama de Estado – para tratar das controvérsias privadas que atentam
contra a governabilidade do grupo14.
O Estado, entendido além dos limites da Tribo, do Clã, da reunião de alguns
grupos, mas, aqui considerado do ponto de vista puramente jurídico, ou seja, como
uma comunidade criada por uma ordem jurídica nacional – aparece como um poder
de mando, como governo e dominação. As normas por ele editadas possuem um
poder coativo geral, obrigando a todos que habitam o seu território.
Elevado à categoria de depositário da identidade social e suporte
permanente de poder, passa a ter, como principal característica, a possibilidade do
uso da força material, da “violência física”, contra aqueles que não se adequem às
regras por ele impostas, encarnando o princípio de ordem e de coerência sobre o
qual repousa a própria existência da sociedade15.
É assim, um dos elementos fundamentais do Estado, o seu poder de
coerção, para o exercício do qual se vale da existência de órgãos especializados,
investidos da capacidade de comando e dotados do privilégio do recurso da força.
Este poder coercitivo se destina a manutenção da própria ordem social e é refletido
principalmente na prerrogativa do Estado de elaborar as normas jurídicas e impô-las
a seus cidadãos, zelando ainda pelo seu cumprimento através do estabelecimento
de sanções, previamente organizadas.
14 ALLDRIDGE, Peter et al. “Dicionário Enciclopédico de Teoria e Sociologia do Direito”. Renovar.
Edição Brasileira. 1999. Tradução dirigida por BARRETO, Vicente de Paula (pág. 176, 177). Na expressão de Darcy AZAMBUJA, a obrigatoriedade dos laços que envolvem o indivíduo caracteriza a sociedade política, o Estado. Teoria Geral do Estado. Ed. Globo. 37ª edição (pág. 01 e 02).
15 ALLDRIDGGE, Peter et al. Obra citada (pág. 312).
23
A norma jurídica se faz cumprir sob a eminência e certeza da sanção,
aplicada por monopólio exclusivo da coerção. Ocorre que o uso da força apenas
pode se dar nas circunstâncias e limites fixados pela própria ordem jurídica, o que
lhe confere um caráter de excepcionalidade.
Impõe-se assim ao próprio Estado o dever de certificar se os meios por si
empregados (ainda que no legítimo exercício do poder) amoldam-se aos contornos
jurídicos, não contrariando normas ou princípios do direito vigente. É a vinculação
indissolúvel do uso da força à norma jurídica, princípio de observação imperiosa e ao
qual todos devem se submeter, especialmente aqueles que defendem o uso de
armamentos - de natureza letal ou não - contra a população civil.
O Direito vincula certas condições para o uso da força nas relações entre os
homens, autorizando o emprego da força apenas por certos indivíduos e sob certas
circunstâncias”. KELSEN, ressaltando à aparente antinomia do Direito conclui: “o
Direito autoriza certas condutas que, sob todas as outras circunstancias, deve ser
considerada ”proibida”; ser considerada proibida significa ser a própria condição que
tal ato coercitivo atue como sanção. [...] E, precisamente por fazê-lo, o Direito
pacifica a comunidade”. (KELSEN, 1998, p. 29-30).
2.3 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NAS AÇÕES DO ESTADO
As raízes do princípio da proporcionalidade encontram-se intrinsecamente
ligadas à evolução dos direitos e garantias individuais da pessoa humana. Nasceu
no âmbito do direito administrativo como princípio geral do poder de polícia e se
desenvolveu como evolução do princípio da legalidade, criando mecanismos
capazes de controlar o Estado no exercício de suas funções, de modo a evitar o
arbítrio e o abuso de poder, limitando a atuação do monarca face aos súditos.
Assim, durante a passagem do Estado Absolutista – no qual o governante tinha
poderes plenos – para o Estado de Direito, que pela primeira vez emprega-se o
princípio da proporcionalidade. (CANOTILHO, 2000, p. 256)
No século XVII, durante o período iluminista, as tentativas burguesas de
limitar o poder Estatal tomaram corpo. A doutrina iluminista apegava-se à crença da
intangibilidade do homem e da necessidade incondicionada de respeito a sua
dignidade, firmando-se a idéia de que a limitação da liberdade individual só se
24
justificaria se atuasse no sentido de buscar a concretização de interesses coletivos
superiores. Quanto ao exercício do poder de polícia, já no plano do direito
administrativo, esse somente estaria legitimado caso não fosse empregado com
excesso de restrição aos direitos individuais. (FERNANDES, 2005, p. 54)
Foi após a 2ª Guerra Mundial, na Alemanha - onde também é conhecido
com princípio da proibição do excesso - que o princípio da proporcionalidade passou
a ser aceito por um Tribunal Constitucional. Em seguida também o Tribunal Europeu
de Direitos Humanos passou a destacá-lo em sua jurisprudência. Seria um princípio
que obrigaria o operador jurídico a tratar de alcançar o justo equilíbrio entre os
interesses em conflito, e em sentido mais estrito, tratar-se-ia de princípio de garantia
do indivíduo contra os abusos no exercício do poder. (FERNANDES, 2005, p. 55)
Na Constituição brasileira não houve previsão expressa ao princípio da
proporcionalidade, entretanto, a presença de seus comandos pode ser detectada,
ainda que implicitamente, em várias normas contidas na carta maior. Está inserido
no contexto normativo dos direitos fundamentais e de seus mecanismos de
proteção16, o que não subtrai do princípio sua característica de garantia especial, a
qual exige que toda e qualquer intervenção na esfera dos direitos fundamentais se
dê por necessidade, de forma adequada e na justa medida.
O princípio da proporcionalidade busca tornar claro o ajuste necessário entre
o fim de uma norma e os meios que esta prevê para atingi-lo, ou ainda, entre a
norma elaborada e o uso que dela foi feito (ou será) pelo Estado, e é exatamente
esta adequação que deve pautar o uso de dispositivos de controle e armamentos
pelas forças de segurança, especialmente pela possibilidade de virem a ser
empregados contra cidadãos em geral.
Assim, ao se cogitar a utilização de novas opções de armamentos
destinados ao controle social, mesmo aqueles tecnicamente de baixa letalidade, há
que se fazer um juízo de ponderação entre a adoção da medida e as eventuais
lesões que a utilização daquela opção poderá trazer aos direitos constitucionalmente
protegidos. Mormente, na área da segurança pública, há de se fazer uma criteriosa
avaliação entre os bens juridicamente tutelados que serão postos em questão com a
16 Nossa Corte Suprema tem adotado a denominação clássica de princípio da proporcionalidade, a
qual vem sendo reiteradamente utilizada desde o primeiro acórdão proferido em sede de controle da constitucionalidade.
25
adoção da medida e os benefícios que serão obtidos, de modo a adequar essa
medida ao dano efetivamente causado a sociedade.
2.4 RAZÕES QUE PODEM RECOMENDAR O USO DE ARMAS NÃO LETAIS
Ainda que o uso de dispositivos não letais siga controverso para alguns, a
capacidade de se valer com exclusividade do uso da força legítima, aliado ao
princípio da proporcionalidade – cuja observação o Estado está constitucionalmente
obrigado – por si só, já nos forneceria alguns elementos teóricos adequados a
propor o uso daquela tecnologia em ações de controle da ordem e da segurança
urbana.
A necessidade de mais opções ao Estado para lidar com questões
relacionadas ao combate à criminalidade e ao controle de distúrbios civis, aliado ao
anseio de reduzir o uso da força ao mínimo necessário sem expor a riscos os
próprios agentes do Estado, têm sido as principais razões a impulsionarem a
utilização dessas novas tecnologias, na visão de Mark R. Thomas, militar da força
aérea norte-americana e estudioso dos armamentos não letais (THOMAS, Mark R.
1998).
Em um trabalho acadêmico apresentado ao Air Command and Staff College,
dos Estados Unidos da América, intitulado “Armamento Não Letal. Um panorama
para a futura integração"17, aquele estudioso faz uma oportuna abordagem acerca
daquelas razões, destacando questões importantes relativas ao uso de armamentos
não letais, como o histórico de eventos de não letalidade, os motivos que os
conduzem, os cenários em que são empregados e os critérios de avaliação para a
adequação daquele armamento.
Embora aquele autor tenha como base instrumental de suas pesquisas os
conflitos militares, as ideias por ele levantadas, especialmente os motivos que levam
à utilização de armas não letais em determinadas batalhas, emprestam-nos
subsídios para o entendimento das razões que conduzem distintos governos a
empregar dispositivos concebidos para fins militares também em confrontos na
17 "Non-Lethal Weaponry: A framework for future integration”. THOMAS, Mark. Air Comand and Staff College. 1998
26
segurança pública. E na visão daquele autor a redução de danos e de incidentes
indesejáveis, como lesões graves ou mortes, constitui o motivo mais assinalado a
recomendar o uso pelo Estado de armas com menor potencial lesivo.
Neste aspecto, trazendo um exemplo pertinente e bem próximo de nós,
lembramos o evento ocorrido no município paraense de Eldorado dos Carajás, fato
que despertou no Brasil o interesse pelo uso adequado e proporcional de armas não
letais em distúrbios civis. Em 17 de abril de 1996, 19 sem-terra foram mortos pela
Polícia Militar e 50 saíram feridos. Naquela oportunidade, uma força policial foi
deslocada para a região rural de Eldorado dos Carajás na tentativa de desobstruir a
rodovia BR-155 que liga a capital paraense ao município, ocupada por centenas de
trabalhadores sem-terra que protestavam contra a demora na desapropriação de
terras para reforma agrária.
A PM havia sido autorizada pelo Secretário de Segurança Pública a “usar a
força necessária, inclusive atirar”. Foi o que ocorreu. Após o uso inicial de algumas
bombas de gás lacrimogênio, ante a violenta reação da turba, a polícia logo fez uso
de armas de fogo, e embora imagens gravadas mostrassem o uso de paus, pedras e
até de armas de fogo por parte dos sem-terra, um morticínio se concretizou sem que
houvessem feridos do lado policial. Mais tarde, chamou a atenção de especialistas, a
desproporção de armas utilizadas pela Polícia Militar: 02 escopetas, 04
metralhadoras e 50 fuzis e revólveres. (“Sangue em Eldorado”. Publicado na revista
VEJA, edição n.º 1141. Ano 29. Nº 17. 24/04/1996).
Embora os policiais contassem com bombas de gás lacrimogênio, essas
foram usadas inadequadamente, acirrando os ânimos dos sem-terra e levando a
polícia militar a lançar mão de armas letais. As cenas da carnificina, mostradas ao
vivo pela TV, contribuíram para jogar a opinião pública contra o Governador,
principal responsável pela ordem. O despreparo dos policiais e o uso inapropriado
dos meios disponíveis restaram evidentes, dando azo a críticas de inegável
procedência. Nem a comprovação de uso de armas de fogo pelos sem-terra
minimizou as críticas contra a atuação da polícia paraense.
A minimização dos danos em instalações e infraestruturas também
recomenda o uso de armas não letais. Não se deseja em uma ação do Estado a
destruição de coisas, sejam elas pertencentes ao patrimônio público ou privado. De
um lado cabe ao governo promover um estado de paz, e uma ação destrutiva
27
mostra-se incoerente. Por outro, caberá ao Estado o custo da reconstrução daquilo
que danificou.
2.5 USO PROGRESSIVO DA FORÇA
Vimos no item 2.3 que cabe ao Estado o monopólio do uso da força, o qual é
exercido no âmbito interno pelas forças de segurança pública. Porém, temos que
destacar que embora legítima em sua sustentação ideológica, reconhecida em
textos e princípios legais, até mesmo aquela violência quando posta em prática pode
resultar em lesões e mortes de cidadãos.
Para minimizar os riscos da ocorrência de eventos indesejáveis que resultem
em destruição desnecessária ou lesões graves e mortes, o Estado, através dos
agentes legalmente capacitados, pode e deve se valer do uso de sua força, contudo
o fazendo de forma progressiva, ou seja, com crescimento paulatino e gradual, indo
de um nível mais baixo, caracterizado pela simples presença física, até o uso de
dispositivos letais, os quais agora passam a ser utilizados tão somente após o uso
das armas não letais, em um encadeamento lógico e progressivo dos meios
disponíveis de dissuasão. Trata-se de uma rotina de procedimentos derivados regras
de engajamento militares, metodologia que recentemente tem inspirado técnicas das
forças de segurança pública.18
Para Tania Pinc, policial militar do Estado de São Paulo e doutora em
Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo, o foco demasiado na ideia de
violência legal contribui para formar uma percepção distorcida do trabalho policial,
levando alguns a crer que a polícia saia às ruas usando apenas a força física e letal,
e desta forma a ação policial tende a ser percebida como violadora dos direitos da
18 O próprio “disparo” de advertência, muito utilizado pelas sentinelas militares, é uma forma menos
gravosa de advertência que antecede o disparo contra o invasor. Mas Alexander nos apresenta um exemplo melhor de uso progressivo da força relembrando que desde o atentado terrorista ao destroier norte-americano USS COLE no Porto de Aden, no dia 12/12/2000, o Departamento de Defesa recomendou procedimentos de segurança de todas as embarcações ancoradas em portos estrangeiros que envolvem o uso de armas letais e não letais. A arquitetura dessa defesa contempla camadas ou zonas relacionadas com a natureza de uma ameaça potencial. Qualquer embarcação que se aproxime caracteriza a ameaça ao chegar a uma determinada distância, ou seja, se penetrar na zona 1, ou bolha externa de defesa, composta de três dimensões. Ao invadir a zona 2, as regras de engajamento especificam que o comandante tem o direito de defender o navio usando meios letais se necessário, porém antecedendo-os está programado “um conjunto claramente definido de ações relacionadas ao nível crescente de letalidade: (1) avaliar, (2) alertar, (3) ameaçar, (4) intimidar, (5) incapacitar (pessoal ou material) (6) desconjuntar, (7) infligir dano material e, finalmente, (8) destruir.” ALEXANDER. 2005. P. 135 e 136.
28
pessoa humana. PINC traz uma importante contribuição acadêmica ao debate
acerca do uso de armas não letais ao discorrer sobre o uso escalonado da força,
recorrendo a autores de renome que se destacaram no estudo daquela parcela da
atuação das forças públicas no controle social. Relembra que o uso da força pelo
Estado pressupõe a existência de graus diferentes daquela ação. De forma
semelhante, a violência da qual pode lançar mão o agente do Estado implica numa
legalidade apenas relativa da ação, ou seja, o policial não poderá exceder os limites
do uso da força (PINC, 2007).
Ora, não se afiguraria razoável que dispondo de armamentos não letais
como opção de uso, uma equipe policial sacasse suas armas de fogo para conter,
por exemplo, um deficiente mental que estive ameaçando transeuntes com uma
pedra, deixando intocados em seus coldres armas de eletrochoque ou cassetetes
que estivessem portando. Ou ainda que essa mesma equipe, em superioridade
numérica, utilizasse demasiadamente a força física e a violência contra o deficiente
sem ao menos tentar dialogar com o pretenso agressor. (PINC, Tania. 2007.
“Abordagem policial: um encontro (des)concertante entre a polícia e o público”. Em
Revista Brasileira de Segurança Pública. Ano 1. Edição 2)
A fim de ilustrar a demonstração de uso contínuo da força, PINC recorta os
ensinamentos de Alpert e Dunham (2000) apresentando um quadro de escala de
força contínua que tem sido incorporada por várias instituições policiais:
Quadro I Uso de força contínua pela polícia
1. Nenhuma força;
2. Ação da presença do policial uniformizado;
3. Comunicação verbal;
4. Condução de preso (uso de algemas e outras técnicas de imobilização);
5. Uso de agentes químicos;
6. Táticas físicas e uso de armas diferentes de substâncias químicas e de
arma de fogo;
7. Uso de arma de fogo e da força letal.
Fonte: Alpert e Dunham (2000). Apud PINC, Tania. 2007.
Analisando o quadro acima é possível perceber que a estruturação
metodológica do uso controlado da força recomenda que a ação tenha início sem
29
uso de qualquer constrangimento, ou seja, parte-se da não utilização de qualquer
ato de força iniciando a ação coercitiva com a simples presença do policial
uniformizado e atingindo-se o ponto máximo com o uso da arma de fogo, não sem
antes passar pela comunicação verbal seguida do uso de armas não letais, cuja
aplicação também há de observar não apenas a proporcionalidade da ação, mas
também um escalonamento dos dispositivos não letais disponíveis, a depender de
suas características (itens 4, 5 e 6).
PINC faz ainda uma outra observação muito interessante acerca da
inexistência de textos legais específicos definindo em que momento e conjunturas os
agentes do estado deveriam ou poderiam fazer uso da força, creditando a ausência
dessas normas à incapacidade dos legisladores de preverem tais circunstâncias.
Para aquela autora, o grau da força a ser utilizado é determinado pelo agente policial
no momento do evento, devendo ele agir com regular discricionariedade. Ressalva,
contudo, que a discricionariedade da qual dispõe o policial deve estar pautada por
procedimentos operacionais estabelecedores de parâmetros que proporcionem uma
decisão adequada pelo policial, por vezes escolhida em curto espaço de tempo
dentre um conjunto de alternativas legais disponíveis. (PINC, 2007)
Em um cenário onde as tensões estão em alta e o estado psicológico do
policial encontra-se presumivelmente alterado pelo estresse da ação, não é
improvável que venham a ocorrer casos de uso inadequado da força, em
intensidade superior à necessária, dos quais resultem lesões graves ou mortes
indesejadas. As armas não letais apresentam-se como formas alternativas,
fornecendo aos policiais a opção para uma abordagem adequada e proporcional ao
perigo enfrentado.
30
3 ARMAS NÃO LETAIS: CARACTERÍSTICAS DAS PRINCIPAIS TECNOLOGIAS
DISPONÍVEIS
Para a Anistia Internacional, organização não governamental com
expressiva atuação em quase todo o planeta, desde a veiculação pela ONU dos
“Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários
Responsáveis pela aplicação da Lei”, em setembro de 1990, os Estados vêm se
sentindo encorajados a desenvolverem e permitirem que seus agentes façam uso de
armas não letais (designadas por aquela ONG pela expressão “menos-letal”) como
forma de resposta gradual no uso da força, fomentando ao redor do mundo o
surgimento e crescimento de um grande número de empresas e equipamentos, mas
nem tudo o que se tem produzido nesse campo é positivo.
Certos tipos de equipamentos são inerentemente mais prejudiciais que
outros, aumentando os riscos ao invés de diminuí-los. Alguns podem até permitir que
os agentes da lei alcancem determinados objetivos com o uso reduzido de força,
mas também podem causar mortes e lesões graves quando utilizados de maneira
inadequada ou abusiva, referindo-se, em particular, aos equipamentos usualmente
classificados como “dispositivos de controle de distúrbios” como canhões de água,
cassetetes, armas de impacto cinético (uso de balas de plástico ou borracha) e
irritantes químicos como spray de pimenta e bombas de gás lacrimogêneo 19.
Às críticas elaboradas por aquela ONG acerca da utilização de armas não
letais parecem cristalizar as principais reclamações populares em desfavor dessas
novas tecnologias de controle social. São inúmeras as tecnologias disponíveis,
porém, por questões didáticas, abordaremos nesse trabalho apenas os dispositivos
mais comumente utilizados pelas forças de segurança pública no Brasil, deixando de
comentar um extenso rol de equipamentos não letais por não serem eles
habitualmente empregados em ações daquela natureza. Para tanto, pesquisamos e
identificamos as principais tecnologias em uso (ressalvadas algumas exceções
apontadas em caráter didático) tanto nas matérias jornalísticas com as quais
trabalhamos como nas informações colhidas em questionamentos previamente
enviados às Secretarias de Segurança Pública dos Estados do Rio de Janeiro,
Espírito Santo, Minas Gerais, Mato Grosso e Amapá, não havendo, portanto,
19 The Human Rights Impact of less lethal weapon and other Law enforcement equipament. Anistia
Internacional 2015.
31
nenhuma praticidade técnica para a classificação que abaixo projetada, que atende
tão somente os interesses deste trabalho acadêmico.
3.1 ARMAS DE BAIXA ENERGIA CINÉTICA
Nesse tópico serão explorados os principais dispositivos de impacto cinético,
incluindo aqueles considerados os precursores das armas não letais para uso em
ações de segurança pública, os conhecidos cassetetes de uso policial (e suas
variações), abordando ainda os projéteis de lançamento, como as munições
marcadoras e as "balas de borracha" e suas variações em materiais semi-rígidos
como o plástico ou polietileno.
3.1.1 Canhões D'Água
Canhões d'água consistem basicamente de um sistema de bombeamento
de água em alta pressão geralmente montados sobre caminhões com a finalidade
de disparar jatos de água contra pessoas e multidões. Inspirados em dispositivos
utilizados em embarcações e viaturas de Corpos de Bombeiros, foram adaptados
pelas forças de segurança pública para emprego em ações de controle de distúrbios.
Os canhões d'água são considerados artefatos de baixo potencial lesivo e governos,
de várias partes do mundo, os vem utilizando para equipar seus aparatos
repressivos.
Os mecanismos modernos dispõem de controles de pressão que permitem
dimensionar a força dos jatos da água lançados, sendo capaz de empurrar uma
pessoa para trás, lançá-la ao chão. Os canhões d'água, contudo, são alvo de fortes
críticas em face dos traumas que podem causar a pessoas, às vezes de natureza
grave20, especialmente quando usados indiscriminadamente contra aglomerações.
Teme-se ainda que a pressão da água possa lançar objetos soltos ou empurrar uma
20 O uso de canhões de água em contextos antimotim pode levar a ferimentos ou morte, com registros
de vítimas mortais na Indonésia (em 1996, quando a carga útil do canhão continha amônia); no Zimbabwe, em 2007, quando o uso de canhões em uma multidão pacífica pânico causado; Em 2013 estavam presentes em quase todos os protestos na Turquia; na Ucrânia, em 2014, com a morte do ativista e empresário Bogdan Kalynyak, supostamente pegando pneumonia depois de ter sido pulverizada por canhões de água em temperaturas de congelamento. Tradução nossa. Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Water_cannon#cite_note-1> em 15 jul. 2015.
32
pessoa contra outros que possam feri-la. A alta pressão dos jatos torna, os olhos,
áreas do corpo vulneráveis ao impacto direto21.
Para a organização não governamental Anistia Internacional, que
recentemente produziu e veiculou um artigo sobre os efeitos provocados em seres
humanos por uma seleção de armas não letais utilizados pelas forças policiais22,
especialistas médicos, cientistas e órgãos independentes deveriam estudar e
debater os efeitos do emprego dos canhões d'água contra pessoas, ainda que se
admita seu uso quando legalmente autorizado, proporcional ao perigo representado
pelo evento, e aplicado com o empenho mínimo e estritamente necessário para
conter ou dispersar indivíduos ou grupos que representem ameaça social. Somente
devendo ser usado quando o grau de violência atingir um nível em que os agentes
da lei não mais consigam conter a ameaça pela adoção de artefatos e rotinas
operacionais menos gravosas. (Anistia Internacional. 2015. Pág. 26)
3.1.2 Armas Contundentes, Cassetetes, Tonfas e Similares
Instrumento portátil, de características contundentes, muito utilizado por
forças de segurança pública e privada em várias partes do mundo. Quando
operados por profissionais mediante a aplicação de técnicas e procedimentos
especiais, e por profissionais capacitados, apresentam-se como uma opção prática
para a intimidação de suspeitos, ou mesmo para defesa pessoal e imobilização de
eventuais agressores.
A palavra "cassetete" é de origem francesa - "casse-tete"23 - que,
literalmente, significa "quebra-cabeça". São habitualmente fabricados em madeira ou
em borracha. Algumas variações do mesmo dispositivo também são observadas,
como os longos e intimidatórios bastões de madeira, que chegam a alcançar um
21 Em 30 de setembro de 2010, durante uma manifestação de protesto contra o projeto Stuttgart 21
na Alemanha, um manifestante foi atingido no rosto por um canhão de água, sofrendo com os danos a suas pálpebras, uma fratura de uma parte do osso da retina e danos às retinas. As lesões oculares assim infligidas resultou na perda quase completa da visão. O evento provocou um debate nacional sobre a brutalidade da polícia e a proporcionalidade no uso da força estatal. Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Water_cannon#cite_note-1> em 15 jul. 2015.
22 The human rights impact of less lethal weapons and other law enforcement equipament. Anistia Internacional. 2015.
23 Disponível em <http://www.portuguesnarede.com/2009/02/cacetete-ou-cassetete.html> em 25 mai. 2015.
33
metro de comprimento e são utilizados por várias instituições policiais militares, tanto
em ações de manutenção da ordem pública quanto por guarnições montadas a
cavalo (quando a distância entre o policial e o provável agressor é maior, tornando-
se necessário uma arma mais longa).
Ainda nesse mesmo grupo de dispositivos portáteis podemos incluir os
"bastões retráteis" - rígidos ou flexíveis - bem como a "tonfa", artefato de origem
asiática, inicialmente idealizado como instrumento agrícola para a colheita e
moagem do arroz e posteriormente utilizado como arma de defesa e ataque em lutas
marciais. A tonfa constitui-se de uma vara com uma alça perpendicular anexada a
cerca de um terço de seu comprimento, normalmente entre 25 e 40 cm. Difundiu-se
inicialmente entre as polícias norte-americanas, após o que migrou para vários
países, dentre eles o Brasil, onde algumas corporações policiais passaram a utilizá-
la em substituição ao tradicional cassetete. Por sua ação igualmente contundente, a
tonfa é concebida para causar dores e lesões físicas – que podem incluir contusões
e lacerações. Sua utilização abusiva pode ocasionar lesões graves, como ossos
quebrados ou até eventos letais, quando, por exemplo, utilizado contra a região
craniana.
Para a Anistia Internacional, tais dispositivos estariam sendo amplamente
utilizados de maneira abusiva por agentes da lei, não raramente contra áreas
sensíveis do corpo, causando lesões físicas injustificadas, o que levou aquela ONG
a recomendar, como formas de mitigar o risco de uso excessivo da força, um
controle efetivo do uso daquelas armas, e treinamentos rigorosos para os agentes
da lei em disciplinas de Direitos Humanos, tornando-se não apenas necessário
controlar rigorosamente o uso de armas contundentes, mas também prover uma
rigorosa formação dos agentes em Direitos Humanos, a fim a mitigar
adequadamente o risco do uso excessivo e desnecessário da força. (Anistia
Internacional, 2015. Pág. 16).
A formação dos agentes responsáveis pela aplicação da lei é, sem dúvidas,
um elemento óbvio nos esforços para incutir boas práticas no uso de armas não
letais, e o treinamento inadequado ajuda a explicar a razão da ocorrência de lesões
desnecessárias. Nesse sentido também a ONU – Organização das Nações Unidas
apregoa a necessidade de treinamentos específicos para aqueles profissionais,
devendo os governos e as respectivas instituições responsáveis pela aplicação da
34
lei dar atenção especial às questões de ética policial e de direitos humanos24, tendo
o governo brasileiro passado a adotar aquela providência, da qual falaremos no
capítulo seguinte, ao abordarmos o direito internacional e a legislação interna.
3.1.2 Projéteis de Baixo Impacto (ou de Impacto Controlado)
Semelhantes às munições convencionais são também chamados projéteis
de baixa energia cinética, de impacto controlado, ou mais popularmente “balas de
borracha”. Tratam-se de uma família de munições não letais concebidas para
provocar impactos não penetrantes, constituindo-se em uma alternativa ao uso de
munições tradicionais. Ao lado dos cassetetes, bastões e tonfas, vem sendo
largamente utilizados por forças policias do mundo inteiro. Podem ser disparados a
partir de uma vasta gama de lançadores, não raramente, a partir das próprias armas
convencionais utilizadas pelas forças de segurança.
Produzidos em plástico, borracha ou espuma de alta densidade, são
fabricadas em diversos calibres sendo de 12, 38.1 e 40 milímetros os mais comuns.
São de extrema importância nas operações de controle de distúrbios e no combate à
criminalidade, equipando as tropas de choque e de operações especiais com
recursos eficazes, resultantes da ação explosiva associada aos efeitos
complementares dos diversos tipos de munições desta linha. Podem ser lançados a
distâncias médias de 100m quando disparadas a partir de um lançador especial,
evitando que seu usuário seja atingido por objetos atirados por manifestantes.
Em suas pesquisas sobre as armas não letais, ALEXANDER destacou que
as primeiras munições dessa espécie eram projetis feitos de bastonetes de madeira
de teca, utilizados na década de 1960 contra grevistas e manifestantes antibritânicos
na então colônia inglesa de Hong Kong, tornando-se um modelo para as futuras
armas cinéticas com capacidade dissuasória suficiente para dispersar multidões.
Naqueles anos as armas concebidas para disparar projéteis de baixa
energia cinética eram apontadas para o chão, visando assim atingir apenas as
pernas dos manifestantes, evitando ferimentos graves. Por essa razão, os primeiros
projetis de madeira ficaram conhecidos como knee-knockers, denominação que em
24 Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela
Aplicação da Lei. Oitavo Congresso das Nações Unidas para Prevenção do Crime e Tratamento dos Delinquentes, realizado em Havana, Cuba, em 27/08/1999.
35
tradução livre poderíamos chamar de “espancadores de joelhos”. Mesmo em tempos
atuais, especialistas advertem para o forte impacto provocado por projetis daquela
natureza, que deixam o cano da arma a velocidades que superam 300 km/h,
mostrando-se seguras apenas quando disparadas a uma distância mínima de 23
metros do alvo, e direcionadas à parte inferior do corpo ou aos membros.
(ALEXANDER, 2003, fls. 128/129).
Nos Estados Unidos, as munições de baixo-impacto foram utilizadas pela
primeira vez contra agitadores estudantis na Universidade de Berkeley, em 1971,
com projetis ainda confeccionados em madeira. Foi apenas em meados daquela
década que os ingleses começaram a desenvolver munições com projetis de plástico
ou borracha, atualmente empregados em várias partes do mundo. Mesmo após o
desenvolvimento de uma versão “mais segura” na Irlanda do Norte, a utilização de
munições de baixo-impacto no Reino Unido só ocorreu em 1985 (WRITE, 1998, fl.
22).
Apontando para o perigo do uso daqueles dispositivos, um relatório
produzido por cirurgiões que trabalhavam no Victoria Hospital, em Belfast, à época
das sangrentas manifestações ocorridas nos finais dos anos 60 e início dos anos 70,
aponta que 90 pacientes deram entrada nas enfermarias após serem atingidos por
balas de borracha. Dentre aqueles feridos, 41 precisaram de tratamentos médicos
especiais. As enfermidades contabilizavam 32 fraturas de ossos da face (nariz,
mandíbula, bochecha e etc.) – 08 com rompimento de globos oculares que
resultaram em cegueira e 03 casos de danos cerebrais graves – 07 casos de lesão
pulmonar e um caso de danos graves ao fígado, baço e intestino (WRITE, fl. 31).
Em 1998, um estudo desenvolvido em 1998 pela Omega Foundation para o
Parlamento Europeu destacou o perigo da utilização daquelas munições contra
multidões. Mas a despeito das críticas e das preocupações despertadas desde o
início de sua utilização contra a população civil, o sucesso das munições de baixo-
impacto foi tão grande que no final do século passado existiam 856 companhias em
47 países produzindo aqueles dispositivos.
Diante das evidências sobre os efeitos indesejados provocados por aquelas
armas não letais, o estudo desenvolvido para o Parlamento europeu criticou ainda a
forma indevida como cientistas, militares e chefes de polícia abordavam o assunto
sobre o uso de munições de baixo-impacto na Irlanda do Norte, levando o público a
acreditar que aqueles dispositivos eram inofensivos e haviam sido projetados por
36
razões humanitárias. A percepção equivocada dos efeitos nocivos daqueles
armamentos estava sendo reforçada por relatos de laboratórios e fabricantes, que
defendiam o seu uso e asseguravam a não letalidade, ainda que não houvesse
estudos científicos suficientes sobre seus efeitos.
O próprio Secretário de Estado de Defesa, seis anos após o encerramento
daquelas manifestações, ainda não sabia esclarecer absolutamente nada quando
questionado sobre as investigações e conclusões relacionadas às mortes e
ferimentos apontados no relatório elaborado pelos cirurgiões irlandeses.
Propugnando pela necessidade de um aprofundamento nos estudos sobre os efeitos
da nova tecnologia, uma comissão internacional de investigação patrocinada pela
Association of Legal Justice havia constatado em 1981 que as autoridades da
Irlanda do Norte teriam conscientemente permitido a utilização generalizada e
indiscriminada de uma arma cujo potencial letal era bem conhecido. (WRITE, fl. 32).
Também em Israel, há estudos demonstrando que 152 pessoas foram
admitidas em hospitais, no início de outubro de 2000, com ferimentos de balas de
borracha. 19% foram considerados como "ferimentos graves", e três pessoas
ficaram permanentemente cegas, levando os pesquisadores a afirmarem que
aquelas armas podem até ser menos letais, mas são extremamente prejudiciais,
podendo levar a eventos letais especialmente quando o ferimento for a à queima
roupa, ou atingir o pescoço ou o rosto. Relatórios de autópsias de mortes de civis
palestinos entre 1987 e 1993 concluiu que as balas de borracha mataram ao menos
20 pessoas 25.
Para Alexander todas as munições daquela natureza devem trazer gravadas
advertências sobre os riscos decorrentes da utilização inadequada. Ao recordar as
vítimas fatais dos eventos em Belfast, o especialista destacou que “em nenhum lugar
esse aviso [advertências] foi mais justificável do que na Irlanda do Norte, onde 17
pessoas foram mortas acidentalmente por balas de plástico ou de borracha”. Cabe
aqui destacar que embora aquele especialista reconheça a possibilidade de
munições de baixo-impacto causarem ferimentos graves – e até morte – também
defende, com ênfase, o seu uso sob a alegação de que os eventos graves seriam
proporcionalmente raros e passíveis de serem reduzidos mediante o uso adequado.
25 What the Police's 'Non Lethal Weapons' can do to human bodies. Disponível em
<http://thinkprogress.org/health/2014/08/18/3472348/non-lethal-weapons-health-effects/> em 23 abr. 2015.
37
Reforça ainda seu entendimento ao afirmar que se necessário e autorizado o uso da
força, “essas injúrias podem ser aceitáveis, se comparadas com o dano causado por
um projétil padrão”. (ALEXANDER, 2003, fls. 132/134)
Na interpretação da ONG Anistia Internacional, mesmo quando utilizados de
acordo com as instruções do fabricante, os projetis de baixo impacto podem causar
traumatismos graves e até fatais, sendo elevado o risco de lesões especialmente na
região dos olhos. Tais riscos se agravam quando utilizados a curta distância,
podendo impactar o corpo com energia excessiva, ou em manifestações, quando
disparos indiscriminados contra aglomerações de pessoas tendem a atingir inclusive
espectadores alheios aos riscos. (Anistia Internacional, 2015, fl. 17)
A preocupação com o uso de munições de baixo impacto também encontra
eco aqui no Brasil. Atualmente tramita no Senado Federal um projeto de lei, de
autoria do senador Lindbergh Farias, objetivando limitar o uso da força em
operações policiais durante manifestações públicas. Entre as medidas propostas
está a proibição da “utilização de armas equipadas com balas de borracha, festim e
afins”. (PL n.º 300/20113).
3.1.3 Granadas Explosivas
Embora propelidos de forma diversa das balas de borracha, também
assemelham-se às munições de baixo impacto aquelas propelidas por granadas de
mão ou lançadas através de artefatos especiais. Tratam-se de granadas de explosão
múltiplas ou de múltiplos impactos, concebidas para serem utilizadas no combate à
criminalidade ou em operações de controle de distúrbios civis graves, quando
infratores ou manifestantes encontrem-se protegidos por edificações ou barricadas.
Apresentam efeito atordoante provocado pela detonação de carga explosiva
associada ao impacto de múltiplos projéteis de borracha (ou de agentes
lacrimogêneos ou de pimenta, como veremos mais adiante). Ante às características
dos objetos propelidos pela explosão das granadas, e por sua própria fragmentação,
seus efeitos assemelham-se àqueles provocados pelas balas de borracha, podendo
provocar lesões e traumas, com o agravante de seus projéteis serem lançados
aleatoriamente em diversas direções, aumentando-se a possibilidade de atingirem
38
partes sensíveis das pessoas contra as quais forem lançadas, ou até inocentes que
se encontrem nas proximidades.
Podem também ser utilizadas em ambientes fechados ("granadas explosivas
indoor"), provocando surpresa e atordoamento, criando condições favoráveis para
uma rápida intervenção policial, especialmente quando associados a efeitos sonoros
e/ou luminosos intensos, bem como à formação de nuvens de fumaça (essas
inócuas). Habitualmente equipam as tropas de choque e de operações especiais,
que nelas reconhecem grande eficácia, a despeito dos riscos dos quais falamos.
3.2 ARMAS NÃO CINÉTICAS
A definição de armas não letais tem seu ponto focal mais no objetivo do que
na descrição do sistema. Elas incorporam uma extensa variedade de tecnologias,
que vão desde aquelas destinadas a provocar impactos contra o corpo humano,
vistas nos tópicos antecedentes, como outras que, por efeitos diversos, também
buscam provocar desconfortos e dores.
Passamos agora a analisar as tecnologias químicas, acústicas e
eletromagnéticas utilizadas na concepção de algumas das armas não letais em uso
por forças de segurança no Brasil e no mundo, bem como suas principais
características e os efeitos provocados sobre o corpo humano.
3.2.1 Armas Químicas
Como nos pontua o pesquisador John Alexander, existe atualmente uma
grande variedade de opções químicas não letais para emprego militar e policial, mas
a simples menção do termo "químicas" provoca uma resposta emocional, não
importa se os seres humanos sejam afetados ou não. Para além dos temores
subjetivos, tem-se como certo que as reações do corpo a este ou aquele agente
químico decorrem de fatores complexos, como idade, peso corporal, condições
físicas, problemas de saúde pré-existentes etc., sendo, portanto, necessário termos
em mente a dimensão dessa relatividade ao abordarmos os efeitos das armas
químicas não letais utilizadas pelas forças de segurança. "A dose necessária para
39
um homem normal pode matar uma criança. Uma dose menor pode falhar".
(ALEXANDER, 2003, fl. 111)
Entre as principais armas químicas utilizadas pelas forças policiais podemos
destacar os gás lacrimogêneo e o spray de pimenta, ambos com alta capacidade
irritante e cada vez mais utilizados tanto por forças especiais em combate à
criminalidade quanto em ações de controles de distúrbios civis.
Os compostos irritantes contidos naqueles gases podem ser liberados por
meio de granadas ou em forma de aerossóis, afetando especialmente os olhos, nariz
e garganta, causando lacrimação, náuseas, vômitos e sensação de queimação na
pele. O gás ativa os receptores de dor do organismo, e em resposta à agressão do
organismo, as vítimas engasgam e tossem compulsivamente, seus olhos lacrimejam
em excesso numa tentativa do organismo de expulsar o produto químico. Há tantos
receptores de dor na córnea que geralmente é impossível manter os olhos abertos,
chegando alguns a relatarem cegueira temporária. Pessoas que sofrem de asma ou
foram atingidas pelo gás em espaços confinados têm muita dificuldade de respirar. O
efeito é persistente e devido a sua dipersão em micropartículas sua remoção é difícil
Até a década de noventa apenas quatro agentes químicos foram utilizados
para esses fins, ou seja o CS (Ortoclorobenzalmalonitrilo, mais comum entre as
forças de segurança, onde também é conhecido como gás lacrimogêneo), o CN
(Cloroacetophenone), o CR (Dibenzoxazepine) e, recentemente, o OC (Oleoresin
Capsicum, ou gás de pimenta, também muito utilizado aqui no Brasil). Isso se deve à
dificuldade de se conciliar um agente de baixa toxidade, mas alta eficácia. O CN e o
CS foram muito utilizados na Guerra do Vietnam para desalojar vietnamitas dos
túneis, e centenas de mortes foram a eles atribuídas.
A polêmica acerca do uso de tais produtos químicos é acentuada.
Especialistas que defendem seu uso, como John Alexander, alegam que "embora
[os gases] sejam tóxicos, não se acredita que possam causar riscos a saúde em
limitadas aplicações de pouca persistência. Os sintomas normalmente desaparecem
dentro de 24 horas da exposição" (ALEXANDER, 2003, fl. 112). Porém há várias
opiniões contrárias não desprezáveis, o que nos alerta para a necessidade de
atenção aos distintos pontos de vista defendidos.
Um gás semelhante aos que acima mencionamos foi empregado em 2002,
na Rússia, contra rebeldes chechenos que haviam invadido um teatro e feito quase
800 reféns. Durante a reação das forças especiais foi empregado um gás derivado
40
de Fentanil - opiáceo utilizado como anestésico - causando a morte de mais de cem
pessoas, muitos devido aos efeitos do gás. Não se conhece os efeitos, a longo
prazo, na saúde dos sobreviventes do teatro. Embora os produtos químicos
sintéticos, tais quais os derivados de fentanil, em tese devam ser classificados como
produtos tóxicos, e portanto abrangidos pela Convenção de Armas Químicas de
1993, os limites imprecisos entre as categorias existentes (especialmente os
análogos químicos sintéticos, ou seja, medicamentos) acabam abrindo brechas para
interpretações conflitantes, viabilizando a utilização de tais produtos em destinações
diversas, que incluem a fabricação de armas de baixa letalidade (CASEY-MASLEN,
2010, fls. 39-45)
Estudos desenvolvidos pela Omega Foundation para o Parlamento Europeu
destacam os malefícios do gás CS. Trata-se de um agente químico sintético que, em
doses relativamente baixas, pode provocar danos pulmonares permanentes, ainda
que não letais, além de queimaduras de segundo grau com formação de fístulas e
dermatites graves. Para aquele centro de pesquisas, a exposição a altas doses de
CS pode levar à insuficiência cardíaca e danos nas células do fígado, já tendo sido
registrado casos de morte.
Verificou-se que a simples exposição a elevados níveis de irritantes
respiratórios, semelhantes ao CS, levou ao desenvolvimento de doenças
respiratórias, caracterizadas por falta de ar e tosses prolongadas. Vendo perigo nos
modernos procedimentos de atuação policial, a entidade destaca o alerta de alguns
estudiosos para quem as "novas táticas de imobilização aliadas ao uso de sprays de
gás são uma receita potencial para fatalidades" (WRITE, 1998, fl. 34).
Reforçando o tom de alerta, o estudo ilustra a preocupação, trazendo
exemplos práticos ao citar a visão de dirigentes da força policial Gendarmerie, da
França, que embora sequer mantenham registros e estatísticas sobre o uso do CS,
sugerem que seu uso seja plenamente seguro. Esse ponto de vista "oficial", embora
possa parecer tranquilizador, é na verdade contestado por aqueles que lidam
corriqueiramente com as consequências do uso de tais artefatos, como o professor
Jean Claud Roujeau, do Hospital Henri Mondor, de Paris: "Eu tenho que discordar
porque temos visto, nos últimos anos, vários casos de pacientes que sofrem reações
cutâneas graves com esses sprays". (WRITE, 1998, fl. 35).
O CS é um agente químico sintético de ação lacrimogênea cujos efeitos se
iniciam de 3 a 10 segundos após o contato inicial, causando lacrimejamento intenso,
41
espirros e irritações na pele e mucosas do sistema respiratório, e embora seja
inócuo para a maioria dos animais, sua ação contra seres humanos perdura por
cerca de 10 minutos, sendo potencializada quando em contato com pele molhada ou
em ambientes úmidos, quando os efeitos perduram por tempo maior. (CEARÁ, 2013,
fl. 24)
No Brasil, ao lado do CS observa-se também um grande uso do gás OC,
produzido a partir de uma substância natural extraída de pimentas do gênero
capsicum, razão pela qual é também conhecido como gás pimenta. É igualmente
irritante e causa grande desconforto e enormes dificuldades para respirar,
impossibilitando ainda a abertura dos olhos e causando uma forte ardência nas
áreas afetadas. Seus efeitos perduram por cerca de 40 minutos, sendo também
eficaz quando utilizado contra animais. (CEARÁ, 2013, fl. 25)
Os opositores desses agentes químicos salientam que não há estudos
conclusivos e suficientes sobre os efeitos potenciais na saúde a longo prazo. A
Anistia Internacional mantém uma postura contrária à utilização desses esses
equipamentos em manifestações públicas, sob a argumentação de que podem ser
utilizados de forma arbitrária e indiscriminada, espalhando o pânico e provocando
lesões em decorrência dos tumultos. Para aquela ONG, a utilização daqueles gases
deve ser rigorosamente controlada e os responsáveis pelo seu uso, adequadamente
treinados, a fim de mitigar riscos. Propugna, ainda, que essa só deve ocorrer em
áreas abertas e quando o nível de violência alcança um patamar no qual os
responsáveis pela segurança não puderem contê-la apenas pela segmentação das
pessoas violentas. (Anistia Internacional, 2015, fl. 18)
3.2.2 Armas de Eletrochoque
Como o próprio nome sugere, as armas elétricas usam a aplicação de
eletricidade para afetar as funções sensoriais e motoras do sistema nervoso central,
causando dor e incapacitando seus alvos. Para uso por forças de segurança, essas
armas são normalmente projetadas em forma de pistolas lançadoras de dardos
eletrificados ou, para aplicações mais limitadas, as armas de choque de contato,
fabricada em pequenas dimensões para caberem os bolsos, ou em formato de
42
bastões, sendo ambos igualmente eletrificados, devendo ser encostados aos corpos
que irão receber a descarga elétrica.
Entre nós, a mais conhecida e utilizada arma elétrica é a TASER, produzida
pela TASER International Inc.,26 sediada nos EUA, país onde, na maioria dos
estados, as pistolas de eletrochoque estão disponíveis para o público em geral, tal
qual em 22 outros países dos distintos continentes27. Trata-se de um
aperfeiçoamento de uma versão de ar comprimido que disparava dardos elétricos.
Alexander lembra que a TASER foi inicialmente projetada em 1960, não sendo
inicialmente aceita pelo Departamento de Polícia de Los Angeles, o que só ocorreu
em 1980. É uma arma de alta voltagem e baixa amperagem, alimentada por bateria
própria produz um choque de cerca de 25.000 volts, provocando perda do controle
neuromuscular. Para garantir que o sujeito continue subjugado, novos choques
podem ser aplicados de forma contínua e prolongada. Alguns especialistas vêm
grandes vantagens em seu uso, alegando que "com ela, um policial pode,
rapidamente e com segurança, incapacitar um indivíduo agressivo (ALEXANDER.
2003. Pág. 97/98).
Porém, já se avoluma o número de eventos letais causados após o uso de
armas elétricas em distintas partes do mundo. Muito lembrado pelo próprio John B.
Alexander, o caso Rodney King foi emblemático nos EUA. Sua morte por policiais de
Los Angeles em 1991, vitimado após disparos de arma taser, é sempre lembrada
quando o assunto são armas de eletrochoque. Destaca-se também entre as mortes
por uso de armas taser o estudante brasileiro Roberto Lausidio, em março de 2012,
na Austrália, conforme mencionamos no 2.º capítulo deste trabalho.
E não é por menos que para a Anistia Internacional há riscos à integridade
física das pessoas quando utilizadas de forma repetitiva e prolongada. A ONG
acredita que aquelas armas são inerentemente suscetíveis a usos abusivos, por
serem fácil de transportar e de usar, provocando dor extrema sem deixar marcas
substanciais, podendo ainda serem usadas como "touch stun", transmitindo choques
por contato direto com o corpo, opinião que encontra eco dentro de integrantes da
26 Recentemente a empresa brasileira especializada na produção de armas não letais CONDOR-
WELSER começou a comercializar aqui no Brasil a spark,. Porém, por se tratar de armamento bastante similar às tasers, ainda pouco disponível nas forças de segurança, restando parcas as informações acerca de sua operacionalidade, nossos comentários tomaram por base apenas as tasers.
27 Até junho de 2010, a TASER International Inc. havia vendido aproximadamente 499.000 pistolas para mais de 15.500 forças policiais e militares em mais de 45 países. Somem-se a essas as mais de 221.000 pistolas vendidas a particulares para autoproteção. (CASEY-MASLEN. 2010. Pág. 50)
43
própria Organização das Nações Unidas, que acusa denúncias de uso de armas de
eletrochoque para torturar e matar pessoas nas prisões, centros de detenção ou em
Departamentos de polícia.
A Anistia Internacional levanta ainda preocupações com as lesões
secundárias decorrentes do descontrole provocado pelo colapso nervoso gerado -
como quedas que podem ser fatais-, e com a intensidade dos choques e seus
efeitos, que variam a depender da potência do dispositivo, das condições físicas e
de saúde da pessoa-alvo - uma criança ou uma pessoa cardíaca - e até de fatores
ambientais, como umidade, por exemplo. Seus dardos podem ainda causar lesões
na pele, inclusive graves, caso atinjam os olhos. (Anistia Internacional. 2015. Pág.
21)
O fabricante das famosas pistolas tasers contrapõe parte das críticas
argumentando ser um mito dizer que a alta voltagem é perigosa. Sustenta que a
taser não é considerada arma de fogo segundo critérios do órgão responsável pela
fiscalização da produção e comercialização de armas e explosivos norte-americano,
o U.S. Bureau of Alcohol, Tobaco, Firearms anda Explosives, embora essa
interpretação possa ser diferente em outros países. Estima ainda que as tasers já
foram usadas mais de dois milhões de vezes, tanto em campo quanto em
treinamento ou com voluntários, citando ainda resultados de estudos favoráveis
divulgados em junho de 2008 pelo National Institute of Justice, dos EUA, utilizando
esses dados para sustentar sua opinião acerca da segurança do seu uso. (CASSEY-
MASLEN. 2010. Pág. 51/54)
Embora persistam infindáveis queixas de uso indevido daquelas armas28, a
própria Anistia Internacional, por intermédio de seus membros na Inglaterra, já
assegurou não se opor à implantação de pistolas de eletrochoque como uma
alternativa ao uso da força letal, nem buscar a proibição total do dispositivo,
assegurando ser em tese evidente que a utilização de armas de eletrochoque é
28 Embora as pesquisas realizadas por Stuart Casey-Maslen sobre as implicações da legislação
humanitária internacional e dos direitos humanos em face das armas não letais não tragam estatísticas de abusos ou de mal uso de armas taser , inúmeros exemplos são citados naquele trabalho, como um estudo de 2004 sobre o uso de tasers em um condado do Colorado, apontando que um terço das 112 vítimas daquela arma haviam alegado estarem algemadas quando foram atingidas; Em Junho de 2009, uma bisavó de 72 anos no Texas ameaçou processar o oficial que a alvejou com um taser após ter sido parada por excesso de velocidade em Austin e resistir a prisão; Em 2010 um homem de 85 anos de idade foi alvejado por uma taser em sua casa. Ele sofria de demência e não foi violento. (Non-kinetic-energy weaons termed 'non-lethal'. A Preliminary Assessment under International Humanitarian Law and International Human Rights Law. Geneva academy of international humanitarian and human rights. Outubro 2010. Stuart Casey-Maslen)
44
preferível à implantação de uma arma de fogo como uma alternativa para o uso da
força. (CASSEY-MASLEN. 2010. Pág. 60)
Diversas outras tecnologias estão sendo incorporadas às armas não letais,
como as espumas pegajosas, feitas em polímero e de alta aderência, literalmente
colando as pessoas ao que estiver próximo; os marcadores, compostos químicos
usados para marcar e identificar suspeitos em meio à multidão; luzes de alta
intensidade, ou bombas sinalizadoras unidirecional, lasers de baixa energia usados
para cegar pessoas ou sensores eletrônicos; a acústica, com sons de alta
intensidade, provocando desconforto e desequilíbrio, e diversas outras que ainda
não ganharam maciçamente as ruas, ou seja, ainda não têm sido utilizadas em larga
escala por instituições de segurança, em especial no Brasil.
45
4 A ATUAÇÃO DO ESTADO NA SEGURANÇA PÚBLICA E O AMPARO LEGAL
PARA O EMPREGO DE ARMAS NÃO LETAIS
Conforme visto acima, as armas não letais não se enquadram dentre as
categorias de armas convencionais, ou seja, aquelas concebidas com finalidades de
destruição, o que confere certa complexidade quando seu emprego é analisado à luz
do Direito internacional, ramo das ciências jurídicas da qual o Direito brasileiro
extraiu os principais fundamentos que legitimam a utilização destas novas
tecnologias em ações de segurança pública em nosso país.
Como princípio geral tem-se que o desenvolvimento, a fabricação e o
emprego de armas não letais - tais quais as convencionais - devem respeitar não
apenas o direito internacional, mas em especial a legislação interna, devendo essa,
contudo, manter estrita coerência com os Tratados e Convenções aos quais o país
houver aderido, bem como assim com os princípios internacionais do direito. É
nesse contexto que estão sendo editadas as leis e normas que regem o tema no
Brasil, conforme a seguir se expõe.
4.1 O DIREITO INTERNACIONAL APLICÁVEL
As regras do direito internacional não proíbem especificamente o uso de
nenhum tipo de arma, porém, atualmente esse se encontra condicionado pelos
princípios relacionados aos Direitos Humanos e às regras do direito internacional
humanitário, também conhecido como direito internacional dos conflitos armados, o
qual abrange, dentre outros, o uso de armas tanto pelos Estados quanto por atores
não estatais (a depender do nível de organização interna). As regras gerais que
veremos a seguir são, portanto, aplicáveis ao uso de qualquer tipo de armas.
O instrumento primordial por meio do qual delimitamos os contornos do que
vem a ser a expressão "Direitos Humanos" é, sem dúvida, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, elaborada por representantes de diferentes origens jurídicas
e culturais de todas as regiões do mundo e proclamada pela Assembléia Geral da
ONU - Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, como uma
norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Aquela declaração, em
conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e o Pacto Internacional dos
Direitos econômicos, Sociais e Culturais formam a chamada Carta Internacional dos
46
Direitos Humanos.29 Porém, uma série de tratados internacionais relacionados aos
direitos humanos foram adotados desde então, expandindo o corpo do Direito
Internacional e dos Direitos Humanos
A Declaração Universal dos Direitos Humanos veda, em seu artigo 5º, a
submissão de qualquer pessoa a tortura ou a tratamento cruel, desumano ou
degradante e desde sua adoção pela ONU não há um só instrumento de direitos
humanos que tenha sido elaborado sem que estivesse baseado em suas
disposições (ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos .1948), e foi nesse
sentido que, em 1984, as Nações Unidas definiram que "o termo 'tortura' designa
qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são
infligidos intencionalmente a uma pessoa com o fim de obter, dela ou de uma
terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por um ato cometido; de
intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer outro motivo
baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimento
são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções
públicas" (grifei) 30. Tal mandamento deixa evidente que a nenhuma Nação, ainda
que imbuída de soberania plena, é defeso causar dor ou sofrimento desnecessário
ao ser humano, não sendo igualmente permitido que nenhum de seus cidadãos
assim o façam. E nesse contexto, por óbvio, também se inserem as armas não
letais.
Com o advento daquelas normas evidencia-se a indisfarçável intenção da
comunidade internacional de conter eventuais abusos de poder por parte dos
agentes Estatais, ficando esse anseio humanitário patente quando analisamos os
diplomas legais que se seguiram.
Ainda em 1979, em sua 106ª sessão plenária, a Assembléia Geral da ONU
reuniu-se para debater e aprovar o "Código de Conduta para os Funcionários
Responsáveis pela Aplicação da Lei" (vide ANEXO B), o qual, em seu artigo 2º,
estabeleceu que todos os funcionários responsáveis pela aplicação da lei, sejam
eles nomeados ou eleitos, devem respeitar e proteger a dignidade humana no
exercício de suas funções, mantendo e apoiando os direitos humanos. Estabeleceu
ainda, no artigo 3º, que aqueles somente podem empregar a força quando
29 Disponível em <www.dudh.org.br/declaração> em 28 jun. 2015. 30 Artigo 1º da Convenção Contra Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Resolução nº. 39/46. ONU. 1984.
47
estritamente necessário, e na medida exigida para o cumprimento do dever. (ONU.
1979. Resolução 34/169).
Verifica-se, pois, que embora aquele diploma legal admita que agentes
responsáveis pela aplicação da lei, de acordo com as circunstâncias, possam fazer
uso legítimo da força, também deixou claro que de nenhuma maneira esse poder
estatal poderá ser empregado de maneira desproporcional ou desarrazoada.
Como salvaguarda de direitos civis internacionalmente consagrados, a
comunidade internacional fez ainda constar dentre os princípios básicos a garantia
ao direito de participação em reuniões lícitas e pacíficas, de acordo com os
princípios enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e no Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, compelindo os Governos e as
organizações policiais a reconhecerem que a força e as armas de fogo só podem ser
utilizadas quando não for possível recorrer a meios menos perigosos, mesmo assim
somente no limite necessário.
A preocupação da comunidade internacional com a desigualdade na reação
do Estado a eventuais problemas de segurança pública e do uso da força foi
novamente tratada em 1985 por ocasião do "Sétimo Congresso das Nações Unidas
para a Prevenção ao Crime e Tratamento de Infratores", ocorrido na cidade de
Milão, oportunidade em que restou enfatizado que o uso da força por agentes
responsáveis pela aplicação da lei deveria ser empregado de forma proporcional,
respeitando-se os Direitos Humanos. E nesse sentido, ante a indispensabilidade da
proporcionalidade da ação, o uso de armas de fogo passa a ser considerado medida
extrema, o que obriga as forças estatais a se valerem de meios e procedimentos
operacionais que reduzam o risco de lesões físicas e danos materiais indesejados.
Passa a ser imperiosa e imprescindível a mitigação do risco de letalidade em todas
as ações do Estado.
Acerca da vedação para que o agente do Estado não aplique, instigue ou
tolere atos cruéis e desumanos, cabe também destacar que não se lhe facultou
sequer invocar ordens superiores ou quaisquer circunstâncias excepcionais como
escusa ao cumprimento da norma proibitiva, devendo, ao contrário, "opor-se com
rigor a quaisquer violações da lei", nos termos do artigo 8º do Código de Conduta
dos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. (ONU . 1979. Resolução n.º
34/169)
48
Ante os avanços do entendimento internacional acerca do uso da força e da
inevitabilidade de regular o seu exercício por parte dos agentes do Estado, em
setembro de 1990, as Nações Unidas adotaram, por consenso, os "Princípios
Básicos sobre o uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis
pela aplicação da Lei" (vide ANEXO C). Aquele documento, portador de vários
apelos e recomendações aos países membros, elencou medidas visando tornar
mais efetivo o já citado Código de Conduta.
Os Princípios Básicos foram formulados a fim de assistir os Estados
membros na tarefa de assegurar e promover a adequada missão de seus agentes.
Desde então, por força de recomendações internacionais discutidas e
unanimemente aceitas, aqueles princípios começaram a ser considerados e
respeitados pelos governos no âmbito de suas respectivas legislações e práticas
nacionais, os quais incumbiram-se ainda de transmiti-los às autoridades
responsáveis pela aplicação da lei, como policiais, juízes, agentes do Ministério
Público, advogados, membros do Executivo e do Legislativo, bem como do público
em geral.
As disposições gerais dos princípios enunciados pelas Nações Unidas
passaram a compelir os distintos governos a equipar seus agentes com meios que
permitissem "o uso diferenciado da força e de armas de fogo". As providências
estatais passaram também a incluir "o aperfeiçoamento de armas incapacitantes não
letais, para uso nas situações adequadas, com o propósito de limitar cada vez mais
a aplicação de meios capazes de causar morte ou ferimentos às pessoas"
(Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários
Responsáveis pela Aplicação da Lei. Disposições gerais, item 2)
Passaram ainda a balizar a conduta dos agentes do Estado, compelindo-os
a aplicar, na medida do possível, meios não violentos antes de lançar mão de suas
armas de fogo, conduta que tornou-se tolerável apenas quando todos os outros
meios disponíveis se mostrassem ineficazes. E ainda assim, utilizados com
"moderação e sempre "na proporção da gravidade da infração e do objetivo legítimo
a ser alcançado". (Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos
Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei. Disposições gerais)
Quase duas décadas após, aqueles e outros princípios que regulam o uso
da força legítima não apenas foram recepcionados pelo Estado Brasileiro, mas
também positivados em textos legais, como veremos no tópico a seguir.
49
4.2 A LEGISLAÇÃO NACIONAL E AS DIRETRIZES SOBRE O USO DA FORÇA
PELOS AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA
Em consonância com as diretrizes emanadas das Nações Unidas, o Brasil
editou no início de 2011 a Portaria Interministerial n.º 4.226 disciplinando o emprego
da força pelos efetivos policiais de todo o pais, particularmente no que diz respeito
ao uso de armas de fogo e dos dispositivos de baixa letalidade (ANEXO A). A
norma, que teve por referência o Código de Conduta, os Princípios Básicos sobre o
Uso da Força e a Convenção Contra a Tortura (abordados no tópico anterior) foi
redigida buscando evitar lesões ou mortes desnecessárias, perpetrados por
funcionários responsáveis pela aplicação da lei.
Com aquela medida interministerial, o governo federal incorporou à
legislação pátria as já citadas orientações internacionais, introduzindo legalmente o
uso de artefatos de menor potencial ofensivo nas forças policiais e dando início à
sedimentação de uma política pública de segurança pautada pelo respeito aos
direitos humanos. Buscou assim, o governo brasileiro, alcançar o que ele próprio
denominou ser uma política de "segurança pública com cidadania", a qual prevê a
necessidade de orientação aos seus agentes de segurança e a padronização dos
procedimentos de atuação ao nível dos princípios adotados internacionalmente.
Ao enumerar, em seu anexo I, as diretrizes para o uso da força, a Portaria
Interministerial determinou critérios para o recrutamento e treinamento dos
profissionais de segurança pública, vedando o uso das recém-introduzidas armas
não letais por agentes que não estiverem devidamente habilitados. Impôs também a
necessidade de treinamento específico, toda vez que um novo dispositivo de menor
potencial ofensivo for introduzido na respectiva instituição, estimulando e priorizando
o uso de técnicas apropriadas. O conjunto daquelas diretrizes reflete o anseio da
sociedade por uma atuação policial devidamente adequada aos princípios legais e
humanitários.
Embora demorasse a dar efetividade aos princípios internacionais que
passaram a dispor sobre o uso moderado e proporcional da força estatal nas ações
de segurança pública, a aparente confiança do governo federal no acerto das novas
posturas fez com que também determinasse, no texto anexado à Portaria, que todo
50
agente passasse a portar no mínimo dois instrumentos de menor potencial
ofensivo31.
Contudo, em que pese ter sido a primeira providência legal a disciplinar o
uso da força e de instrumentos de menor potencial ofensivo pelos funcionários
responsáveis pela aplicação da lei, sua aplicabilidade não abrangia a totalidade das
forças de segurança pública do país, tendo em vista tratar-se de uma Portaria de
cunho Federal, sem o condão de impor observância aos demais entes federados,
ficando fora do seu alcance as polícias estaduais e as guardas municipais.
Mais recentemente, em dezembro de 2014, objetivando atingir a totalidade
dos agentes de segurança pública no território nacional e implementar ações para a
efetivação das diretrizes traçadas pela Portaria Interministerial, o governo federal
sancionou a Lei n.º 13.060/14, disciplinando pela primeira vez no Brasil o uso dos
"instrumentos de menor potencial ofensivo" (vide ANEXO D).
Com o advento daquele diploma legal, o uso de armas não letais passou a
ter prioridade na ação policial em todo o país, configurando uma alternativa à
utilização das armas convencionais, as quais, por óbvio, deixariam de ser
empregadas apenas quando tal procedimento não colocasse em risco a vida dos
próprios agentes da lei. Proibiu-se o uso de armas de fogo nos casos de abordagens
de pessoas desarmadas ou em fuga, ou contra veículo que desobedecesse bloqueio
policial.
Debatida por nove anos no Congresso Nacional, no dia de sua aprovação
vários parlamentares destacaram a importância daquela lei, levando em conta os
altos índices de lesões e mortes, muitos deles decorrentes de ações policiais
legítimas. A proibição do excesso, princípio constitucional básico, passou a
prevalecer, impondo aos profissionais de segurança uma reação cautelosa e
proporcional à ameaça efetivamente enfrentada. Restou textualmente vedado o
abuso da prerrogativa de utilização de armas de fogo por parte dos agentes
responsáveis pela aplicação da lei, alguns dos quais, equivocadamente, parecem 31 Tal postura desagradou alguns setores da segurança afetados pela medida, que nela observaram
certa dose de exagero e de distanciamento das particularidades da atividade policial. Tendo em mente o policiamento ostensivo, passaremos a ter policiais necessariamente (e não por opção técnica- operacional) incumbidos de portar não apenas suas armas convencionais e demais acessórios - tais quais municiadores, algemas, rádios de comunicação e outros -, mas também dois outros dispositivos não letais, o que pode constituir um problema operacional. Esse transtorno pode se agravar ainda mais nas ações de polícia investigativa, cuja natureza operacional impõe posturas profissionais veladas, com roupas e adereços que não permitam a identificação funcional do agente, que por conta dessa característica terá que dissimular o porte de sua arma convencional e, agora, também daqueles artefatos.
51
crer que um descumprimento de qualquer espécie de comando legal, por si só,
legitima o enfrentamento armado e a detenção do infrator a todo custo.
Art. 2º Os órgãos de segurança pública deverão priorizar a utilização dos instrumentos de menor potencial ofensivo, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos seguintes princípios:
I - legalidade; II - necessidade; III - razoabilidade e proporcionalidade. Parágrafo único. Não é legítimo o uso de arma de
fogo: I - contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou
que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros; e
II - contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros. (Lei Federal n.º 13.060/2014. Grifos inexistentes no original)
O legislador pátrio, ao redigir o texto da lei n.º 13.060/2014, silenciou-se
quanto ao uso de armas não letais por particulares, não abordando a possibilidade
do cidadão comum delas fazer uso em defesa de seu patrimônio, nem mesmo de
sua proteção pessoal ou de terceiros. Trata-se de lamentável omissão de nossos
legisladores. Em tempos onde a falta de segurança provoca grande insatisfação na
sociedade, a discussão e regulamentação do tema no bojo daquela legislação teria
sido oportuna. Diante da falta de previsão que regulamente a comercialização do
produto - e de uma fiscalização eficiente - florescem nas grandes cidades a venda
clandestina à particulares de dispositivos e armas não letais cujas características e
padrões de qualidade não são sequer ser conhecidas.
Por outro lado, preenchendo lacunas da lei 13.060/2014 e buscando
alcançar uma parcela de atores não governamentais também envolvida na
segurança pública (ainda que indiretamente), o Exército Brasileiro, instituição
encarregada de controlar a fabricação, importação e comercialização de "produtos
controlados", dentre os quais se incluem as armas convencionais e as não letais -
autorizou em dezembro de 2006, através da Portaria n.º 20 - D Log (vide ANEXO
E), a aquisição, por empresas que atuam na segurança privada, de armamento e
munição não letal para uso exclusivamente naquelas atividades. Para tanto listou o
rol de artefatos não letais passíveis de serem adquiridos (gás de pimenta, armas de
choque elétrico, granadas lacrimogêneas e fumígenas, dentre outros), esclarecendo
permanecer ao encargo do Departamento de Polícia Federal a atribuição de definir
52
os quantitativos a serem adquiridos por cada empresa, bem como de estabelecer
normas de utilização, armazenamento e destruição - quando vencidos os prazos de
validade. (Portaria n.º 20 - D Log, de dezembro de 2006)
A inovação no sistema de segurança privada brasileiro trouxe também às
empresas a obrigatoriedade de treinar seus funcionários e incluir no currículo de
formação e capacitação dos profissionais de vigilância privada matérias sobre o uso
progressivo da força e de equipamentos não letais, estando tal comando previsto no
artigo 3º da Lei 13.060/2014.
Em que pese o avanço na tratativa da questão, dando início à normatização
do uso de armas não letais no Brasil, os dispositivos da Lei n.º 13.060/2014 ainda
não possuem pleno vigor, fazendo-se necessário a edição de decreto
regulamentador para que se lhes dê a eficácia necessária. É o que prevê o artigo 7º
da Lei n.º 13.060/2014 quando dispõe que "o Poder Executivo editará regulamento
classificando e disciplinando a utilização dos instrumentos não letais". Ou seja, resta
ainda ao Poder Executivo conceber uma classificação das armas não letais,
dividindo e ordenando-as em categorias que melhor facilitem a compreensão de
suas principais características e, especialmente, dos efeitos que podem provocar.
Tal providência, de iniciativa do próprio governo federal, não pode tardar, sob pena
de retardar a implementação - ou tornar inócuo - de princípios humanitários
internacionais aos quais o Brasil se faz seguidor.
Cabe aqui também destacar que apesar da intenção do governo brasileiro
em regular o emprego de armas não letais, ainda persistem severas críticas32 aos
dispositivos da Lei 13.060/2014, visando sempre impedir ou limitar sua utilização.
Logo após a lei haver sido sancionada, o Partido Social Liberal (PSL) ajuizou no
Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 5243.
Sem atacar diretamente o mérito daquela norma, mas usando um argumento
procedimental da técnica legislativa, o PSL argüiu invasão de competência,
alegando que a iniciativa da lei não foi da Presidência da República - ainda que
aquela a tenha sancionado. A legenda requer uma liminar para suspender os efeitos
da lei. (Supremo Tribunal Federal, ADI 5243)
32 Nesse sentido também os comentários que lançamos no item 3.2.1 acerca do projeto de Lei n.º
300/2013 visando proibir o uso de balas de borracha em manifestações.
53
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Paralelamente ao expressivo desenvolvimento da indústria de armamentos
de baixa letalidade nos últimos anos, decorrência de uma demanda crescente pelo
uso de tais artefatos, a imprensa vem registrando seguidos eventos de uso
inadequado ou abusivo de armas não letais, o que tem provocado críticas contra o
emprego daquelas novas tecnologias contra os cidadãos.
Esse quadro pode ser constatado até mesmo em nações de maior
desenvolvimento tecnológico e de elaborada organização social. A despeito dos
diversos registros de ocorrência de eventos indesejados, e das críticas que os
acompanham, a contínua evolução tecnológica tem levado à produção de artefatos
cada vez mais inovadores e potentes. Tal paradoxo justifica a preocupação em se
dispensar uma atenção especial ao desenvolvimento das tecnologias ditas de menor
potencial ofensivo.
Os críticos argumentam que muitos dos artefatos de menor potencial
ofensivo estão, na realidade, longe de poder ser rotulados como não letais,
consistindo seu uso em considerável perigo para a população. Eles não apenas
podem como estão de fato mutilando, cegando e matando pessoas, algumas delas
espectadores inocentes.
Reforça igualmente o coro dos críticos, a possibilidade do uso das armas de
menor potencial ofensivo não atingir o objetivo dissuasório pretendido, até mesmo
por conta da alegada não letalidade, e contribuir para aumentar a escalada da
violência, enfurecendo multidões e retro impulsionando sua agressividade.
Teme-se que os conflitos possam se tornar mais letais à medida que se
aumente o uso da força, especialmente em situações de graves distúrbios civis,
onde ações policiais não raramente transcorrem de forma generalizada e difusa,
aumentando a possibilidade de atingirem transeuntes apanhados pelo desenrolar
dos fatos. Esses, diante da injusta agressão pela ação atabalhoada do Estado,
poderiam se postar contra as forças legais e reforçar as críticas de manifestantes,
independentemente de estarem contra ou a favor de seus pleitos.
As poucas pesquisas acadêmicas desenvolvidas nesse campo
(especialmente no Brasil) e as insuficientes informações levadas ao conhecimento
público contribuem para aumentar as desconfianças e o preconceito contra a
utilização de tais artefatos.
54
Preocupam-se também os críticos com o risco de governos autoritários, ou
instituições policiais mal preparadas, sentirem-se tentados a lançar mão de tais
artefatos com o argumento de conter supostos excessos ou ilegalidades em
manifestações que, em verdade, não lhes agradem.
Mas os desafios da criminalidade moderna e o aumento da complexidade
dinâmica das grandes conturbações urbanas estão forçando as autoridades a
buscarem formas de controle social que respeitem os limites impostos pelas normas
reconhecidas internacionalmente, em especial a salvaguarda dos Direitos Humanos.
Surge assim a necessidade de dispositivos que incapacitem agressores de forma
temporária, mas que não necessariamente os lesionem inutilmente, ou até
provoquem mortes dispensáveis. O custo político do uso de armas letais contra civis
desarmados justifica o desenvolvimento de novas opções de uso da força legítima, e
os sistemas não letais podem se adaptar ao controle de diferentes cenários de
conturbações urbanas.
Apesar dos registros de mal-uso dos equipamentos de baixa letalidade e de
lesões indesejadas provocadas pelos agentes de segurança, não se pode deixar de
considerar que as armas não letais têm sido comumente empregadas em grandes
conturbações sociais, e nessas circunstâncias contra expressivo número de
manifestantes (às vezes contados aos milhares), o que relativiza substancialmente a
proporção das lesões que têm sido registradas.
Cremos que a ocorrência de eventos graves e letais em face do uso desses
artefatos não se mostra tão expressiva quando se tem em conta seu largo emprego
em distintas partes do globo. As armas não letais são concebidas para conter e
incapacitar temporariamente, e não para ocasionar lesões graves ou mortes. Essas,
a depender das circunstâncias, podem decorrer inclusive por intermédio de uma
substância inócua ou de um objeto inofensivo, como um coco seco que chacoalhado
pelo vento despenque do pé atingindo mortalmente um distraído transeunte. O
evento letal não há que ser atribuído ao vento. E nem ao coco.
Convém destacar que até mesmo a Anistia Internacional, organismo com
atuação global de reconhecida eficiência na vigilância e defesa dos Direitos
Humanos, não se posiciona indistintamente de forma contrária à fabricação e uso de
armas não letais, conquanto faça limitações para o emprego de algumas espécie, e
teça recomendações para o uso de outras.
55
Reforçando o coro dos defensores das armas não letais, há ainda um
argumento derradeiro que nos parece imbatível, até mesmo por sua simplicidade e
obviedade: o uso das armas não letais, quando possível o seu emprego, é sempre
preferível ao uso das armas convencionais, especialmente quando por profissionais
em rotinas de uso preparados.
Diante da imperiosa necessidade de combate a criminalidade e de
manutenção da ordem e do controle social, não se afigura apropriada a utilização de
armamentos convencionais quando dispositivos outros podem ser empregados de
forma a atingir os mesmos objetivos, porém com riscos mínimos de lesões ou mortes
indesejadas.
O cenário tangível com o qual a sociedade se depara, impõe, contudo, ao
Estado, o dever de também regular e fiscalizar todo o processo de desenvolvimento
de armas não letais, certificando-se de que a concepção de novas tecnologias não
venha a anular direitos internacionalmente aceitos e que a humanidade a séculos
tenta consolidar.
Não é por outra razão que a Organização das Nações Unidas tem
recomendado aos Estados membros que equipem suas forças de segurança com
uma variedade de dispositivos que lhes permita o uso diferenciado e gradual da
força, defendendo ainda a necessidade de um contínuo aperfeiçoamento dos
artefatos de baixa letalidade e das rotinas de atuação policial, visando dessa forma
limitar cada vez mais a aplicação de meios capazes de causar lesões ou mortes
desnecessárias.
Percebe-se, portanto, que as armas não letais trouxeram consideráveis
promessas, mas também tremendos desafios, incumbindo ao Estado não apenas
regular seu uso, mas também seu desenvolvimento, fabricação e comercialização,
impondo-lhes limites legais e éticos.
No horizonte nacional sobressaem-se as recentes medidas adotadas pelo
Brasil, ainda que não suficientemente abrangentes, à medida que não contempla
integralmente o rol de orientações internacionais, que deu importante passo no
regramento do uso da força estatal ao editar a Lei 13.060/2014, disciplinando o uso
de instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes públicos. À toda prova,
configura uma indispensável medida rumo à almejada segurança com cidadania.
Mas o exercício daquele direito social ainda se vê distante, especialmente diante da
lentidão do próprio governo federal na regulamentação daquele diploma legal.
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REFERÊNCIAS
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ANEXO A - PORTARIA INTERMINISTERIAL nº 4.226
PORTARIA INTERMINISTERIAL Nº 4.226, DE 31 DE DEZEMBRO DE 2010
Estabelece Diretrizes sobre o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública.
O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA E O MINISTRO DE ESTADO CHEFE DA SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhes conferem os incisos I e II, do parágrafo único, do art. 87, da Constituição Federal e, considerando que a concepção do direito à segurança pública com cidadania demanda a sedimentação de políticas públicas de segurança pautadas no respeito aos direitos humanos;
Considerando o disposto no Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979, nos Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1999, nos Princípios orientadores para a Aplicação Efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na sua Resolução 1.989/61, de 24 de maio de 1989 e na Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua XL Sessão, realizada em Nova York em 10 de dezembro de 1984 e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991 (1);
Considerando a necessidade de orientação e padronização dos procedimentos da atuação dos agentes de segurança pública aos princípios internacionais sobre o uso da força;
Considerando o objetivo de reduzir paulatinamente os índices de letalidade resultantes de ações envolvendo agentes de segurança pública; e,
Considerando as conclusões do Grupo de Trabalho, criado para elaborar proposta de Diretrizes sobre Uso da Força, composto por representantes das Polícias Federais, Estaduais e Guardas Municipais, bem como com representantes da sociedade civil, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e do Ministério da Justiça, resolvem:
Art. 1º - Ficam estabelecidas Diretrizes sobre o Uso da Força pelos Agentes de Segurança Pública, na forma do Anexo I desta Portaria.
Parágrafo único - Aplicam-se às Diretrizes estabelecidas no Anexo I, as definições constantes no Anexo II desta Portaria.
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Art. 2º - A observância das diretrizes mencionadas no artigo anterior passa a ser obrigatória pelo Departamento de Polícia Federal, pelo Departamento de Polícia Rodoviária Federal, pelo Departamento Penitenciário Nacional e pela Força Nacional de Segurança Pública.
§ 1º - As unidades citadas no caput deste artigo terão 90 dias, contados a partir da publicação desta Portaria, para adequar seus procedimentos operacionais e seu processo de formação e treinamento às diretrizes supramencionadas.
§ 2º - As unidades citadas no caput deste artigo terão 60 dias, contados a partir da publicação desta Portaria, para fixar a normatização mencionada na diretriz nº 9 e para criar a comissão mencionada na diretriz nº 23.
§ 3º - As unidades citadas no caput deste artigo terão 60 dias, contados a partir da publicação desta Portaria, para instituir Comissão responsável por avaliar sua situação interna em relação às diretrizes não mencionadas nos parágrafos anteriores e propor medidas para assegurar as adequações necessárias.
Art. 3º - A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e o Ministério da Justiça estabelecerão mecanismos para estimular e monitorar iniciativas que visem à implementação de ações para efetivação das diretrizes tratadas nesta Portaria pelos entes federados, respeitada a repartição de competências prevista no art. 144 da Constituição Federal.
Art. 4º - A Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça levará em consideração a observância das diretrizes tratadas nesta Portaria no repasse de recursos aos entes federados.
Art. 5º - Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
LUIZ PAULO BARRETO - Ministro de Estado da Justiça PAULO DE TARSO VANNUCHI - Ministro de Estado Chefe da
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
(Anexo II da Portaria Interministerial n.º 4226)
DIRETRIZES SOBRE O USO DA FORÇA E ARMAS DE FOGO PELOS AGENTES DE SEGURANÇA PÚBLICA
1. O uso da força pelos agentes de segurança pública deverá se pautar nos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos e deverá considerar, primordialmente:
a) ao Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 34/169, de 17 de dezembro de 1979;
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b) os Princípios orientadores para a Aplicação Efetiva do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas na sua Resolução 1.989/61, de 24 de maio de 1989;
c) os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Havana, Cuba, de 27 de agosto a 7 de setembro de 1999;
d) a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em sua XL Sessão, realizada em Nova York em 10 de dezembro de 1984 e promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991.
2. O uso da força por agentes de segurança pública deverá obedecer aos princípios da legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e conveniência.
3. Os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro contra perigo iminente de morte ou lesão grave.
4. Não é legítimo o uso de armas de fogo contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de algum tipo de arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.
5. Não é legítimo o uso de armas de fogo contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, a não ser que o ato represente um risco imediato de morte ou lesão grave aos agentes de segurança pública ou terceiros.
6. Os chamados "disparos de advertência" não são considerados prática aceitável, por não atenderem aos princípios elencados na Diretriz nº 2 e em razão da imprevisibilidade de seus efeitos.
7. O ato de apontar arma de fogo contra pessoas durante os procedimentos de abordagem não deverá ser uma prática rotineira e indiscriminada.
8. Todo agente de segurança pública que, em razão da sua função, possa vir a se envolver em situações de uso da força, deverá portar no mínimo 2 (dois) instrumentos de menor potencial ofensivo e equipamentos de proteção necessários à atuação específica, independentemente de portar ou não arma de fogo.
9. Os órgãos de segurança pública deverão editar atos normativos disciplinando o uso da força por seus agentes, definindo objetivamente:
a) os tipos de instrumentos e técnicas autorizadas;
b) as circunstâncias técnicas adequadas à sua utilização, ao ambiente/entorno e ao risco potencial a terceiros não envolvidos no evento;
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c) o conteúdo e a carga horária mínima para habilitação e atualização periódica ao uso de cada tipo de instrumento;
d) a proibição de uso de armas de fogo e munições que provoquem lesões desnecessárias e risco injustificado; e
e) o controle sobre a guarda e utilização de armas e munições pelo agente de segurança pública.
10. Quando o uso da força causar lesão ou morte de pessoa(s), o agente de segurança pública envolvido deverá realizar as seguintes ações:
a) facilitar a prestação de socorro ou assistência médica aos feridos;
b) promover a correta preservação do local da ocorrência;
c) comunicar o fato ao seu superior imediato e à autoridade competente; e
d) preencher o relatório individual correspondente sobre o uso da força, disciplinado na Diretriz nº 22.
11. Quando o uso da força causar lesão ou morte de pessoa(s), o órgão de segurança pública deverá realizar as seguintes ações:
a) facilitar a assistência e/ou auxílio médico dos feridos;
b) recolher e identificar as armas e munições de todos os envolvidos, vinculando-as aos seus respectivos portadores no momento da ocorrência;
c) solicitar perícia criminalística para o exame de local e objetos bem como exames médico-legais;
d) comunicar os fatos aos familiares ou amigos da(s) pessoa(s) ferida(s) ou morta(s);
e) iniciar, por meio da Corregedoria da instituição, ou órgão equivalente, investigação imediata dos fatos e circunstâncias do emprego da força;
f) promover a assistência médica às pessoas feridas em decorrência da intervenção, incluindo atenção às possíveis seqüelas;
g) promover o devido acompanhamento psicológico aos agentes de segurança pública envolvidos, permitindo-lhes superar ou minimizar os efeitos decorrentes do fato ocorrido; e
h) afastar temporariamente do serviço operacional, para avaliação psicológica e redução do estresse, os agentes de segurança pública envolvidos diretamente em ocorrências com resultado letal.
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12. Os critérios de recrutamento e seleção para os agentes de segurança pública deverão levar em consideração o perfil psicológico necessário para lidar com situações de estresse e uso da força e arma de fogo.
13. Os processos seletivos para ingresso nas instituições de segurança pública e os cursos de formação e especialização dos agentes de segurança pública devem incluir conteúdos relativos a direitos humanos.
14. As atividades de treinamento fazem parte do trabalho rotineiro do agente de segurança pública e não deverão ser realizadas em seu horário de folga, de maneira a serem preservados os períodos de descanso, lazer e convivência sócio-familiar.
15. A seleção de instrutores para ministrarem aula em qualquer assunto que englobe o uso da força deverá levar em conta análise rigorosa de seu currículo formal e tempo de serviço, áreas de atuação, experiências anteriores em atividades fim, registros funcionais, formação em direitos humanos e nivelamento em ensino. Os instrutores deverão ser submetidos à aferição de conhecimentos teóricos e práticos e sua atuação deve ser avaliada.
16. Deverão ser elaborados procedimentos de habilitação para o uso de cada tipo de arma de fogo e instrumento de menor potencial ofensivo que incluam avaliação técnica, psicológica, física e treinamento específico, com previsão de revisão periódica mínima.
17. Nenhum agente de segurança pública deverá portar armas de fogo ou instrumento de menor potencial ofensivo para o qual não esteja devidamente habilitado e sempre que um novo tipo de arma ou instrumento de menor potencial ofensivo for introduzido na instituição deverá ser estabelecido um módulo de treinamento específico com vistas à habilitação do agente.
18. A renovação da habilitação para uso de armas de fogo em serviço deve ser feita com periodicidade mínima de 1 (um) ano.
19. Deverá ser estimulado e priorizado, sempre que possível, o uso de técnicas e instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes de segurança pública, de acordo com a especificidade da função operacional e sem se restringir às unidades especializadas. 20. Deverão ser incluídos nos currículos dos cursos de formação e programas de educação continuada conteúdos sobre técnicas e instrumentos de menor potencial ofensivo. 21. As armas de menor potencial ofensivo deverão ser separadas e identificadas de forma diferenciada, conforme a necessidade operacional.
22. O uso de técnicas de menor potencial ofensivo deve ser constantemente avaliado.
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23. Os órgãos de segurança pública deverão criar comissões internas de controle e acompanhamento da letalidade, com o objetivo de monitorar o uso efetivo da força pelos seus agentes.
24. Os agentes de segurança pública deverão preencher um relatório individual todas as vezes que dispararem arma de fogo e/ou fizerem uso de instrumentos de menor potencial ofensivo, ocasionando lesões ou mortes. O relatório deverá ser encaminhado à comissão interna mencionada na Diretriz nº 23 e deverá conter no mínimo as seguintes informações:
a) circunstâncias e justificativa que levaram o uso da força ou de arma de fogo por parte do agente de segurança pública;
b) medidas adotadas antes de efetuar os disparos/usar instrumentos de menor potencial ofensivo, ou as razões pelas quais elas não puderam ser contempladas;
c) tipo de arma e de munição, quantidade de disparos efetuados, distância e pessoa contra a qual foi disparada a arma;
d) instrumento(s) de menor potencial ofensivo utilizado(s), especificando a freqüência, a distância e a pessoa contra a qual foi utilizado o instrumento;
e) quantidade de agentes de segurança pública feridos ou mortos na ocorrência, meio e natureza da lesão;
f) quantidade de feridos e/ou mortos atingidos pelos disparos efetuados pelo(s) agente(s) de segurança pública;
g) número de feridos e/ou mortos atingidos pelos instrumentos de menor potencial ofensivo utilizados pelo(s) agente(s) de segurança pública;
h) número total de feridos e/ou mortos durante a missão;
i) quantidade de projéteis disparados que atingiram pessoas e as respectivas regiões corporais atingidas;
j) quantidade de pessoas atingidas pelos instrumentos de menor potencial ofensivo e as respectivas regiões corporais atingidas;
k) ações realizadas para facilitar a assistência e/ou auxílio médico, quando for o caso; e
l) se houve preservação do local e, em caso negativo, apresentar justificativa.
25. Os órgãos de segurança pública deverão, observada a legislação pertinente, oferecer possibilidades de reabilitação e reintegração ao trabalho aos agentes de segurança pública que adquirirem deficiência física em decorrência do desempenho de suas atividades.
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ANEXO B - RESOLUÇÃO Nº. 34/169
Resolução n.º 34/169 ONU, de 17/12/1979
CÓDIGO DE CONDUTA PARA OS FUNCIONÁRIOS RESPONSÁVEIS PELA APLICAÇÃO DA LEI.
ARTIGO 1.º Os policiais devem cumprir, a todo o momento, o dever que a lei lhes impõe, servindo a comunidade e protegendo todas as pessoas contra atos ilegais, em conformidade com o elevado grau de responsabilidade que a sua profissão requer.
ARTIGO 2.º No cumprimento do seu dever, os policiais devem respeitar e proteger a dignidade humana, manter e apoiar os direitos fundamentais de todas as pessoas.
ARTIGO 3.º Os policiais só podem empregar a força quando tal se apresente estritamente necessário, e na medida exigida para o cumprimento do seu dever.
ARTIGO 4.º As informações de natureza confidencial em poder dos policiais devem ser mantidas em segredo, a não ser que o cumprimento do dever ou as necessidades da justiça estritamente exijam outro comportamento.
ARTIGO 5.º Nenhum funcionário responsável pela aplicação da lei pode infligir, instigar ou tolerar qualquer ato de tortura ou qualquer outra pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante, nem invocar ordens superiores ou circunstâncias excepcionais, tais como o estado de guerra ou uma ameaça à segurança nacional, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública como justificação para torturas ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
ARTIGO 6.º Os policiais devem assegurar a proteção da saúde das pessoas à sua guarda e, em especial, devem tomar medidas imediatas para assegurar a prestação de cuidados médicos sempre que tal seja necessário.
ARTIGO 7.º Os policiais não devem cometer qualquer ato de corrupção. Devem, igualmente, opor-se rigorosamente a eles, e combater todos os atos desta índole.
ARTIGO 8.º Os policiais devem respeitar a lei e o presente Código. Devem, também, na medida das suas possibilidades, evitar e opor-se vigorosamente a quaisquer violações da lei ou do Código. Os policiais que tiverem motivos para acreditar que se produziu ou irá produzir uma violação deste Código, devem comunicar o fato aos seus superiores e, se necessário, a outras autoridades com poderes de controle ou de reparação competentes.
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ANEXO C - PRINCÍPIOS BÁSICOS SOBRE A UTILIZAÇÃO DA FORÇA E DE
ARMAS DE FOGO PELOS FUNCIONÁRIOS RESPONSÁVEIS PELA APLICAÇÃO
DA LEI
1. Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem adotar e aplicar regras sobre a utilização da força e de armas de fogo contra as pessoas, por parte dos policiais. Ao elaborarem essas regras, os Governos e os organismos de aplicação da lei devem manter sob permanente avaliação as questões éticas ligadas à utilização da força e de armas de fogo.
2. Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem desenvolver um leque de meios tão amplo quanto possível e habilitar os policiais com diversos tipos de armas e de munições, que permitam uma utilização diferenciada da força e das armas de fogo. Para o efeito, deveriam ser desenvolvidas armas neutralizadoras não letais, para uso nas situações apropriadas, tendo em vista limitar de modo crescente o recurso a meios que possam causar a morte ou lesões corporais. Para o mesmo efeito, deveria também ser possível dotar os policiais de equipamentos defensivos, tais como escudos, viseiras, coletes anti-balísticos e veículos blindados, a fim de se reduzir a necessidade de utilização de qualquer tipo de armas.
3. O desenvolvimento e utilização de armas neutralizadoras não letais deveria ser objeto de uma avaliação cuidadosa, a fim de reduzir ao mínimo os riscos com relação a terceiros, e a utilização dessas armas deveria ser submetida a um controlo estrito.
4. Os policiais, no exercício das suas funções, devem, na medida do possível, recorrer a meios não violentos antes de utilizarem a força ou armas de fogo. Só poderão recorrer à força ou a armas de fogo se outros meios se mostrarem ineficazes ou não permitirem alcançar o resultado desejado.
5. Sempre que o uso legítimo da força ou de armas de fogo seja indispensável, os policiais devem:
a) Utilizá-las com moderação e a sua ação deve ser proporcional à gravidade da infração e ao objetivo legítimo a alcançar;
b) Esforçar-se por reduzirem ao mínimo os danos e lesões e respeitarem e preservarem a vida humana;
c) Assegurar a prestação de assistência e socorros médicos às pessoas feridas ou afetadas, tão rapidamente quanto possível;
d) Assegurar a comunicação da ocorrência à família ou pessoas próximas da pessoa ferida ou afetada, tão rapidamente quanto possível.
6. Sempre que da utilização da força ou de armas de fogo pelos policiais resultem lesões ou a morte, os responsáveis farão um relatório da ocorrência aos seus superiores, de acordo com o princípio 22.
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7. Os Governos devem garantir que a utilização arbitrária ou abusiva da força ou de armas de fogo pelos policiais seja punida como infração penal, nos termos da legislação nacional.
8. Nenhuma circunstância excepcional, tal como a instabilidade política interna ou o estado de emergência, pode ser invocada para justificar uma derrogação dos presentes Princípios Básicos.
9. Policiais não devem usar armas contra pessoas, exceto para se defender ou defender terceiros contra iminente ameaça de morte ou lesão grave, para evitar a perpetração de um crime envolvendo grave ameaça à vida, para prender pessoa que represente tal perigo e que resista à autoridade, ou para evitar sua fuga, e apenas quando meios menos extremos forem insuficientes para atingir tais objetivos. Nesses casos, o uso intencionalmente letal de arma só poderá ser feito quando estritamente necessário para proteger a vida.
10. Nas circunstâncias referidas no princípio 9, os policiais devem identificar-se como tal e fazer uma advertência clara da sua intenção de utilizarem armas de fogo, deixando um prazo suficiente para que o aviso possa ser respeitado, exceto se esse modo de proceder colocar indevidamente em risco a segurança daqueles responsáveis, implicar um perigo de morte ou lesão grave para outras pessoas ou se se mostrar manifestamente inadequado ou inútil, tendo em conta as circunstâncias do caso.
11. As normas e regulamentações relativas à utilização de armas de fogo pelos policiais devem incluir diretrizes que:
a) Especifiquem as circunstâncias nas quais os policiais sejam autorizados a transportar armas de fogo e prescrevam os tipos de armas de fogo e munições autorizados;
b) Garantam que as armas de fogo sejam utilizadas apenas nas circunstâncias adequadas e de modo a reduzir ao mínimo o risco de danos inúteis;
c) Proíbam a utilização de armas de fogo e de munições que provoquem lesões desnecessárias ou representem um risco injustificado;
d) Regulamentem o controle, armazenamento e distribuição de armas de fogo e prevejam procedimentos de acordo com os quais os policiais devam prestar contas de todas as armas e munições que lhes sejam distribuídas;
e) Prevejam as advertências a serem efetuadas, se for o caso, quando armas de fogo forem utilizadas;
f) Prevejam um sistema de relatórios de ocorrência, sempre que os policiais utilizem armas de fogo no exercício das suas funções.
12. Sendo a todos garantido o direito de participação em reuniões lícitas e pacíficas, de acordo com os princípios enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, os Governos e
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as organizações policiais devem reconhecer que a força e as armas de fogo só podem ser utilizadas de acordo com os princípios 13 e 14.
13. Os policiais devem esforçar-se por dispersar as reuniões ilegais mas não violentas sem recorrer à força e, quando isso não for possível, devem limitar a utilização da força ao estritamente necessário.
14. Os policiais só podem utilizar armas de fogo para dispersar reuniões violentas se não for possível recorrer a meios menos perigosos, e somente nos limites do estritamente necessário. Os policiais não devem utilizar armas de fogo nesses casos, salvo nas condições estipuladas no princípio 9.
15. Os policiais não devem utilizar a força na relação com pessoas detidas ou presas, exceto se isso for indispensável para a manutenção da segurança e da ordem dentro dos estabelecimentos prisionais, ou quando a segurança das pessoas esteja ameaçada.
16. Os policiais, em suas relações com pessoas detidas ou presas, não deverão utilizar armas de fogo, exceto em caso de defesa própria ou para defesa de terceiros contra perigo iminente de morte ou lesão grave, ou quando essa utilização for indispensável para impedir a evasão de pessoa detida ou presa representando o risco referido no princípio 9.
17. Os princípios precedentes não prejudicam os direitos, deveres e responsabilidades dos funcionários dos estabelecimentos penitenciários, estabelecidos nas Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, particularmente as regras 33, 34 e 54.
18. Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem garantir que todos os policiais sejam selecionados de acordo com procedimentos adequados, possuam as qualidades morais e aptidões psicológicas e físicas exigidas para o bom desempenho das suas funções e recebam uma formação profissional contínua e completa. Deve ser submetida a reapreciação periódica a sua capacidade para continuarem a desempenhar essas funções.
19. Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem garantir que todos os policiais recebam formação e sejam submetidos a testes de acordo com normas de avaliação adequadas sobre a utilização da força. O porte de armas de fogo por policiais só deveria ser autorizado após completada formação especial para a sua utilização.
20. Na formação dos policiais, os Governos e os organismos de aplicação da lei devem conceder uma atenção particular às questões de ética policial e de direitos do homem, em particular no âmbito da investigação, às alternativas para o uso da força ou de armas de fogo, incluindo a resolução pacífica de conflitos, ao conhecimento do comportamento de multidões e aos métodos de persuasão, de negociação e mediação, bem como aos meios técnicos, visando limitar a utilização da força ou de armas de fogo. Os organismos de aplicação da lei deveriam rever o seu programa de formação e procedimentos operacionais à luz de casos concretos.
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21. Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem disponibilizar aconselhamento psicológico aos policiais envolvidos em situações em que tenham sido utilizadas a força e armas de fogo.
22. Os Governos e os organismos de aplicação da lei devem estabelecer procedimentos adequados de comunicação hierárquica e de inquérito para os incidentes referidos nos princípios 6 e 11-f. Para os incidentes que sejam objeto de relatório por força dos presentes Princípios, os Governos e os organismos de aplicação da lei devem garantir a possibilidade de um efetivo procedimento de controle, e que autoridades independentes (administrativas ou do Ministério Público), possam exercer a sua jurisdição nas condições adequadas. Em caso de morte, lesão grave, ou outra conseqüência grave, deve ser enviado de imediato um relatório detalhado às autoridades competentes encarregadas do inquérito administrativo ou do controle judiciário.
23. As pessoas contra as quais sejam utilizadas a força ou armas de fogo ou os seus representantes autorizados devem ter acesso a um processo independente, incluindo um processo judicial. Em caso de morte dessas pessoas, a presente disposição aplica-se aos seus dependentes.
24. Os Governos e organismos de aplicação da lei devem garantir que os funcionários superiores sejam responsabilizados se, sabendo ou devendo saber que os funcionários sob as suas ordens utilizam ou utilizaram ilicitamente a força ou armas de fogo, não tomaram as medidas ao seu alcance para impedir, fazer cessar ou comunicar este abuso.
25. Os Governos e organismos responsáveis pela aplicação da lei devem garantir que nenhuma sanção penal ou disciplinar seja tomada contra policiais que, de acordo como o Código de Conduta para os Policiais e com os presentes Princípios Básicos, se recusem a cumprir uma ordem de utilização da força ou armas de fogo ou denunciem essa utilização por outros policiais.
26. A obediência a ordens superiores não pode ser invocada como meio de defesa se os policiais sabiam que a ordem de utilização da força ou de armas de fogo de que resultaram a morte ou lesões graves era manifestamente ilegal e se tinham uma possibilidade razoável de recusar-se a cumpri-la. Em qualquer caso, também será responsabilizado o superior que proferiu a ordem ilegal.
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ANEXO D - LEI 13.060/2014, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2014
Disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos agentes
de segurança pública, em todo o território nacional.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional
decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º Esta Lei disciplina o uso dos instrumentos de menor potencial
ofensivo pelos agentes de segurança pública em todo o território nacional. Art. 2º Os órgãos de segurança pública deverão priorizar a utilização dos
instrumentos de menor potencial ofensivo, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos seguintes princípios:
I - legalidade; II - necessidade; III - razoabilidade e proporcionalidade. Parágrafo único. Não é legítimo o uso de arma de fogo: I - contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente
risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros; e
II - contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros.
Art. 3º Os cursos de formação e capacitação dos agentes de segurança pública deverão incluir conteúdo programático que os habilite ao uso dos instrumentos não letais.
Art. 4º Para os efeitos desta Lei, consideram-se instrumentos de menor potencial ofensivo aqueles projetados especificamente para, com baixa probabilidade de causar mortes ou lesões permanentes, conter, debilitar ou incapacitar temporariamente pessoas.
Art. 5º O poder público tem o dever de fornecer a todo agente de segurança pública instrumentos de menor potencial ofensivo para o uso racional da força.
Art. 6º Sempre que do uso da força praticada pelos agentes de segurança pública decorrerem ferimentos em pessoas, deverá ser assegurada a imediata prestação de assistência e socorro médico aos feridos, bem como a comunicação do ocorrido à família ou à pessoa por eles indicada.
Art. 7º O Poder Executivo editará regulamento classificando e disciplinando a utilização dos instrumentos não letais.
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 22 de dezembro de 2014; 193º da Independência e 126º da República.
Dilma Rousseff José Eduardo Cardozo Claudinei do Nascimento
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ANEXO E - PORTARIA Nº. 20 - D LOG DE 27 DE DEZEMBRO DE 2006
PORTARIA Nº 20 - D Log, DE 27 DE DEZEMBRO 2006.
Autoriza a aquisição diretamente no fabricante de armamento e munição não letais, classificadas como de uso restrito, para as atividades de segurança privada, praticada por empresas especializadas ou por aquelas que possuem serviço orgânico de segurança.
O CHEFE DO DEPARTAMENTO LOGÍSTICO, no uso das atribuições
constantes do inciso IX do art. 11 do Regulamento do Departamento Logístico (R-128) aprovado pela Portaria n° 201, de 2 de maio de 2001, de acordo com o inciso I do art. 50 do Decreto n° 5.123, de 1° de julho de 2004 e por proposta da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), resolve:
Art. 1° Autorizar a aquisição, diretamente no fabricante, do armamento e
munição não letais, a seguir listados, classificados como de uso restrito, para uso nas atividades de segurança privada, praticada por empresas especializadas ou por aquelas que possuem serviço orgânico de segurança:
I - borrifador (“spray”) de gás pimenta; II - arma de choque elétrico (“air taser”); III - granadas lacrimogêneas (OC ou CS) e fumígenas; IV - munições lacrimogêneas (OC ou CS) e fumígenas; V - munições calibre 12 com balins de borracha ou plástico; VI - cartucho calibre 12 para lançamento de munição não letal; VII - lançador de munição não letal no calibre 12; e VIII - máscara contra gases lacrimogêneos (OC ou CS) e fumígenos. Art. 2° Compete ao Departamento de Polícia Federal definir as dotações
em armamento e munição não letais, classificadas como de uso restrito, para cada empresa, e estabelecer as normas de utilização, armazenamento e destruição das munições com prazos de validade vencidos.
Art. 3° Determinar que esta Portaria entre em vigor na data de sua
publicação. Gen. Ex. Francisco José da Silva Fernandes Chefe do Departamento Logístico