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  • Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 1

    Nobilitao dos homens de negcio no Ultramar portugus: Pombal e os

    contratadores dos diamantes

    Jnia Ferreira FURTADO*

    Departamento de Histria

    Universidade Federal de Minas Gerais

    Este texto pretende discutir as possibilidades de ascenso dos homens de negcio no

    ultramar portugus a partir do estudo de caso dos dois contratadores dos diamantes, o

    sargento-mor Joo Fernandes de Oliveira e seu filho homnimo, o desembargador.1 A

    biografia dos dois permitir discutir as formas de nobilitao abertas aos homens de negcio a

    partir da insero deles nos negcios coloniais, especialmente aps a descoberta das Minas de

    ouro e diamantes na capitania de Minas Gerais no sculo XVIII. Era constante na poltica

    portuguesa, especialmente durante a poca pombalina, entregar negcios estratgicos do reino

    aos grandes homens comerciantes do imprio. Esses negcios, arrendados nas mos dos

    particulares, eram de interesse vital para a Coroa, mas os que os arrematavam tambm se

    enriqueciam e depois demandavam habilitao para adquirir nobreza. No caso dos Joo

    Fernandes, o enriquecimento do pai foi porta de acesso para a nobilitao do filho. Em torno

    de Pombal essa elite de homens de negcio se enobrecia e conduzia os negcios da Coroa,

    especialmente no ultramar. Como se ver, a trajetria individual destes dois homens foi,

    tambm em parte, reflexo da ascenso e do ocaso deste poderoso ministro.2

    Elites, mercancia e laos familiares

    Em 1778, quando o sargento-mor Joo Fernandes de Oliveira, contratador dos

    diamantes, redigiu seu testamento, deixou cinqenta mil ris a dez rapazes que provassem que

    fossem seus parentes at o terceiro grau e que estivessem dispostos a deixar o terro natal e

    * Professora Titular de Histria Moderna, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Este artigo

    dedicado a Vitorino de Magalhes Godinho. 1 Ver: FURTADO, Jnia F. Contratadores de diamantes. In: Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o

    outro lado do mito. So Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.73-102. 2 FURTADO, Jnia F. Disputas. In: Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito, p.225-

    243.

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    assim poder prosperar e passar para o Brasil.3 Essa disposio final do sargento-mor

    exemplifica um sem nmero de casos de imigrantes do norte de Portugal que se dirigiram em

    massa para a regio das minas de ouro na primeira metade do sculo XVIII e ali encontraram

    inmeros caminhos para a ascenso social, especialmente por meio da mercncia. Era

    culminncia de um processo que o sargento-mor dera incio to logo e medida que seus

    negcios progrediram: ao longo de sua estada em Minas ajudou na vinda e protegeu vrios

    parentes seus, permitindo que estes tambm trilhassem o mesmo caminho que construa para

    si na capitania. O primeiro a chegar foi o primo Ventura Fernandes de Oliveira, que lhe

    prestou diversos servios. Este arrematou a cobrana dos dzimos na Vila do Carmo e, j

    prspero, recebeu a patente de tenente-coronel da Cavalaria de Mariana. Vieram tambm

    outros trs primos seus, um deles chamado Miguel Fernandes de Oliveira, que foi trabalhar

    numa fazenda de gado de sua propriedade, em Formiga. Outro foi Manuel Fernandes de

    Oliveira, a quem fazia emprstimos ou adiantamentos. Em retribuio aos favores prestados,

    Manuel batizou o prprio filho com o nome de Joo e ainda chamou o bem-sucedido primo

    para apadrinh-lo4 e o sargento-mor, em retribuio sua fidelidade e servio, em testamento,

    perdoou todas as dvidas contradas.

    A proteo que Joo Fernandes de Oliveira dispensou a familiares seus aponta para o

    fato de que as relaes mercantis muito frequentemente se assentavam em conexes

    familiares que misturavam os negcios com os laos de sangue. Afinal, no havia maior

    relao de amizade do que a que unia as pessoas de uma mesma famlia, por esta razo, era

    comum que as redes familiares e de negcio se intercruzassem, fazendo com que os laos de

    sangue e de amizade, estabelecidos na esfera privada, se reproduzissem na esfera mercantil.5

    Tambm aponta para a importncia do estabelecimento de redes,6 cadeias,

    7 bandos

    8 ou teias

    hierrquicas, como formas fundantes da sociabilidade da poca, e que se configuravam como

    mecanismo de identificao das elites, inclusive os comerciantes. Estas cadeias clientelares

    eram importantes mecanismos de identificao e de sociabilidade e se estendiam para alm-

    3 Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Cartrios Notariais. Testamentos. Livro 300, f.30.

    4 FURTADO, Jnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes, p.76.

    5 FURTADO, Jnia F. A interiorizao da metrpole. In: Homens de Negcio: a interiorizao da metrpole e do

    comrcio nas Minas setecentistas. So Paulo: Hucitec, 1999, p.57-72. (2. edio: 2006). 6 HESPANHA, Antnio M. e XAVIER, ngela. As redes clientelares. In: MATTOSO, Jos (Org). Histria de

    Portugal; o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, v.4, p.381-393. 7 FURTADO, Jnia Ferreira. Fidalgos e lacaios. In: Homens de Negcio, p.29-86.

    8 FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda e GOUVA, Maria de Ftima. (orgs.) O Antigo Regime nos

    trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001.

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    mar, sendo fundamental na estruturao das corporaes de comerciantes que, a partir do

    reino, se espalhavam por todo o imprio portugus.9

    Sintoma da prosperidade que estes portugueses alcanaram no Novo Mundo, em

    particular nas Minas do Ouro, foi a composio da lista dos homens mais ricos da capitania,

    arrolada em 1756, a pedido do Conselho Ultramarino e que vem sendo estudada por Carla

    Almeida.10

    Neste particular, a autora salienta que os portugueses e ilhus compunham 90,7%

    do universo de 118 homens listados nas comarcas de Vila Rica e Rio das Mortes. Destes,

    77,9% eram oriundos do norte de Portugal, particularmente da provncia do Minho. Repetiam

    a saga de inmeros conterrneos que na mesma poca, deixavam aquela regio.11

    O sculo

    XVIII assistiu emigrao em direo as Minas Gerais de significativa parcela de homens do

    norte de Portugal, especialmente das provncias do Minho e do Douro. Vinham quase sempre

    solteiros, sendo que alguns poucos deixavam para trs a esposa, partindo em busca do sonho

    do Eldorado. Como salienta a autora, aqueles que se enriqueciam logo se casavam,

    estabelecendo a partir do matrimnio, muito freqentemente, conexes com as famlias da

    terra. Assim, enquanto a maioria dos homens ricos listados se casava tardiamente, a partir

    dos 30 anos, as esposas eram muito jovens, estando em geral entre 13 e 19 anos. A situao

    de enriquecimento e ascenso da classe mercantil no foi muito diferente na regio

    diamantina e os exemplos dos dois Joo Fernandes de Oliveira so paradigmticos das

    trajetrias de muitos que, como eles, oriundos de um ambiente rural no norte de Portugal, sem

    muitas perspectivas de vida, encontraram na regio mineradora as fontes e os mecanismos

    para a sua prosperidade. Em 1732, o secretrio do governo atestou a importncia das

    oportunidades abertas por este setor comercial, ao afirmar que o pas das Minas , e foi

    sempre, a capitania de todos os negcios.12

    Os contratadores dos diamantes

    A descoberta oficial dos diamantes data de 172913

    e, inicialmente, a mesma foi

    arrendada a particulares mediante a cobrana de altas taxas de capitao. No entanto, devido

    9 FURTADO, Jnia F. A interiorizao da metrpole. In: Homens de Negcio, , p.57-72.

    10 Arquivo Histrico Ultramarino (AHU). Manuscritos Avulsos de Minas Gerais (MAMG). Caixa 70, doc.41.

    11 ALMEIDA, Carla Maria Carvalho. Ricos e pobres em Minas Gerais: produo e hierarquizao social no

    mundo colonial, 1750-1822. Belo Horizonte: Argumentum, 2011. 12

    Arquivo Pblico Mineiro (APM). Seo Colonial (SC).35. Representao do secretrio das Minas ao rei,

    1732. 13

    H uma distncia de cerca de dez anos entre o incio da explorao sistemtica das pedras e o comunicado

    oficial da descoberta feito pelo governador em 1729. Ver: FURTADO, Jnia Ferreira. Saberes e Negcios: os

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    ao decrscimo acentuado do valor do quilate no mercado mundial, a Coroa decidiu por proibir

    a produo de diamantes a partir de 1734. Quando, em 1739, as lavras foram reabertas, optou-

    se pelo sistema de contrato, a ser monopolizado por um nico arrematante ou por um

    consrcio de arrematantes.14

    A partir de 1740, foram celebrados seis contratos, tendo sido

    alguns deles renovados, estendendo-se assim o perodo de quatro anos originalmente

    estabelecido para cada um. O sargento-mor Joo Fernandes de Oliveira foi o primeiro

    contratador, em sociedade com Francisco Ferreira da Silva. Em 1744, arremataram

    novamente o negcio, mas o contrato enfrentou vrios revezes financeiros e desistiram de

    renov-lo quando este findou em 1747. No ano seguinte, o terceiro contrato foi celebrado com

    Felisberto Caldeira Brant, em sociedade com seus irmos, Alberto Lus Pereira e Conrado

    Caldeira Brant.15

    Mergulhado em dvidas e acusado de contrabando de diamantes, Felisberto

    deixou o Tejuco, em 1753, seguindo preso para o reino. O quarto contrato, entre 1753 e 1758,

    e o quinto, de 1759 a 1761, foram estabelecidos novamente pelo sargento-mor Joo Fernandes

    de Oliveira, em sociedade com Antnio dos Santos Pinto e Domingos de Basto Viana.

    Residente em Lisboa, o contratador enviou seu filho homnimo, o desembargador Joo

    Fernandes de Oliveira, para administrar o negcio no Tejuco. O sexto contrato foi o mais

    longo de todos, estendendo-se de 1762 a 1771, e o sargento-mor e o seu filho, desembargador

    Joo Fernandes de Oliveira, tornaram-se scios no empreendimento.16

    As figuras dos

    contratadores Joo Fernandes de Oliveira, pai e filho sintetizaram a trajetria, os impasses

    e as contradies do sistema escolhido para, durante 38 anos, efetivar a explorao dos

    diamantes.

    Segundo Charles Boxer, o segundo Joo Fernandes de Oliveira conseguiu obter o

    melhor de ambos os mundos,17

    isto , desfrutou da riqueza que o mundo colonial

    diamantes e o artfice da memria Caetano Costa Matoso. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 21, p.297-300,

    jul.2000. 14

    Sobre as formas de explorao e organizao administrativa da regio diamantina ver: FURTADO, Jnia

    Ferreira. O Distrito dos Diamantes: uma terra de estrelas. In: RESENDE, Maria Efignia e VILLALTA, Lus

    Carlos. (orgs.) Histria de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autntica, 2007, v.1, p.303-

    320. 15

    Apesar do quarto contrato ter sido arrematado em dezembro de 1751 por 240 milhes para o perodo de seis

    anos seguintes, Joo Fernandes s passou a ter o controle sobre a explorao em meados de 1753, retrocedendo

    as contas at o incio desse ano. Lisboa. AHU. MAMG. Caixa 60. Doc.7. Na Carta de Quitao do contrato dos

    diamantes nos anos de 1756, 1757, 1758 e 1760 l-se: o quarto contrato que principiou em janeiro de 1753 e

    terminou em dezembro de 1759. ANTT. Ministrio do Reino. Livro 208, f.227 e 227v. 16

    Sobre as trajetrias contratantes e os destinos de Felisberto Caldeira Brant e os dois Joo Fernandes de

    Oliveira, ver: FURTADO, Jnia Ferreira. Terra de estrelas: o distrito dos diamantes e a fortuna dos

    contratadores. In: SCHWARTZ, Stuart e MYRUP, Eric. (orgs.) O Brasil no imprio martimo portugus. Bauru:

    Edusc, 2009, p.217-262. 17

    BOXER, Charles. A idade do ouro do Brasil, dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio de Janeiro:

    Nova Fronteira, 2000, p.241.

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    proporcionou a ele e seu pai e, que lhe abriu as portas para sua ascenso social no Reino.

    Augusto de Lima, por sua vez, atribui aos dois Joo Fernandes de Oliveira a culpa pelo

    encerramento do sistema de contratos, pois inundavam o mercado europeu com as melhores

    pedras do Brasil, tornando difceis ou inteis os esforos, alis inteligentes e enrgicos, que

    fazia a Coroa portuguesa para obter uma regularidade no negcio dos diamantes.18

    Segundo

    ele, a contnua prorrogao dos contratos por Joo Fernandes, amparado por foras ocultas

    junto corte, demonstrou que esse regime de contratos foi o mais ruinoso possvel,

    arruinou as terras diamantinas e estes contratadores abriam a regio ao danosa dos

    contrabandistas de pedras.19

    Quem seriam as foras ocultas a que se refere Augusto de Lima Jr.? Efetivamente, a

    segunda metade do sculo XVIII assistiu mudanas na poltica do reino, que repercutiram

    significativamente na regio diamantina. Aps o terremoto de Lisboa em 1755, Sebastio Jos

    de Carvalho e Mello, conde de Oeiras e depois marqus de Pombal, se tornou o brao direito

    de dom Jos I, coordenando e centralizando toda a poltica de seu reinado.20

    A poltica

    econmica orquestrada por este ministro de Estado foi caracterizada pela ascenso de uma

    classe mercantil fortemente associada aos interesses do Estado,21

    cujos dois Joo Fernandes

    de Oliveira foram exemplos clssicos. Foram os grandes homens de negcio cuja riqueza era

    oriunda do ultramar que capitalizaram Portugal aps a destruio causada pelo terremoto e,

    como poderosos financistas, emprestaram dinheiro a juros para a Coroa e a nobreza em

    dificuldades, se aliando ao estado na reconstruo da cidade.

    A trajetria destes dois ltimos contratadores dos diamantes, especialmente a do filho,

    o jovem desembargador, foi smbolo evidente de toda essa era. Esteve no centro das aes

    pombalinas o desenvolvimento de uma mercncia, que ascendeu econmica e socialmente,

    misturando-se nobreza de sangue por meio de concesses da Ordem de Cristo e postos na

    administrao. No caso do Brasil, Pombal utilizou o sistema de contratos para concentrar a

    riqueza nas mos de uma nova classe mercantil portuguesa,22

    como retrata a meterica

    ascenso dos Fernandes de Oliveira. Neste caso, pelo menos primeira vista, os interesses

    18

    LIMA JR., Augusto de. Histria dos diamantes nas Minas Gerais (sculo XVIII). Rio de Janeiro: Livros de

    Portugal, 1945, p.130. 19

    LIMA JR., Augusto de. Histria dos diamantes nas Minas Gerais, p.87. 20

    Pombal foi nomeado inicialmente Secretrio da Guerra e de Assuntos Estrangeiros, depois acumulou os cargos

    de Secretrio da Marinha e Ultramar e Secretrio do Interior, tornando-se o mais poderoso Ministro de Estado

    em Portugal. 21

    PEDREIRA, Jorge Miguel Viana. Os homens de negcio da praa de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-

    1822). Diferenciao, reproduo e identificao de um grupo social. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1995.

    (Tese, Doutorado em Histria) 22

    MAXWELL, Kenneth. Colaboradores e conspiradores. In: Marqus de Pombal, paradoxo do Iluminismo. Rio

    de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p.69-94.

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    pblicos e privados pareceram se aproximar, ou pelo menos foi o que pretendeu o poderoso

    ministro.

    O sistema de contratos, ao delegar funes e poderes a indivduos a partir da venda de

    direitos que por origem pertenciam ao rei, trazia de forma mais acentuada interesses privados

    para o interior da esfera pblica. Os diamantes que brotavam dos ribeires da demarcao

    aguavam a cobia humana, tornavam os contratadores senhores de sedutora riqueza e de

    crescente poder. A isto se aliavam a distncia e o relativo isolamento da rea que facilitavam

    os desmandos e promoviam as iniqidades. Ali, era a sombra dos contratadores se alongava e,

    os funcionrios rgios, uma vez distantes do rei, cooptavam e eram cooptados por estes

    rgulos seguindo a lgica das redes clientelares,23

    onde favores, mercs, honras e privilgios

    eram intercambiados, convergindo, como veremos a seguir, os interesses pblicos aos privado

    e permitindo a ascenso e notabilizao destes enriquecidos homens de negcio,

    aproximando-os das elites nobilirquicas do reino.

    O velho sargento-mor

    Joo Fernandes de Oliveira, o pai, apesar da fortuna que acumulou com a arrematao

    de seguidos contratos de diamantes, alcanou apenas o ttulo de sargento-mor, sempre

    mencionado junto ao seu nome para diferenci-lo do filho homnimo. Portugus natural de

    Santa Maria de Oliveira, arraial que pertencia Vila de Barcelos, arcebispado de Braga, na

    provncia do Minho, localizada no Norte de Portugal, foi na primeira dcada do sculo XVIII,

    j maior de idade, que deixou o pequeno arraial e partiu para o Brasil.24

    Repetia a saga de

    inmeros conterrneos que na mesma poca deixavam aquela regio, cuja economia, baseada

    principalmente na agricultura, encontrava-se em crise e partiam em busca do sonho do

    Eldorado. Assim que chegou ao Brasil, passou pelo Rio de Janeiro, e de l seguiu para as

    Minas Gerais, atrado pelas riquezas aurferas que a regio prometia. Estabeleceu-se primeiro

    em Vila Rica (atual Ouro Preto), mas no ficou muito tempo, mudando-se em seguida para a

    Vila do Ribeiro do Carmo (atual Mariana), onde inicialmente se dedicou minerao.25

    23

    FURTADO, Jnia F. Fidalgos e lacaios. In: Homens de negcio, p.29-86. 24

    Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana (AEAM). Processo matrimonial de Joo Fernandes de

    Oliveira e Maria de So Jos, n 3608, 1726, f.4 e 10v. 25

    AEAM. Depoimento do reverendo doutor Melquior dos Reis, vigrio da Vila do Carmo. Processo matrimonial

    no 3608, 1726, f.5v.

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    Durante sua permanncia em Minas Gerais, Joo Fernandes de Oliveira investiu em

    vrios setores, e essa diversificao permitiu que acumulasse riquezas e que em meados do

    sculo fosse considerado um importante homem de negcio. No incio, sem dispor de muito

    dinheiro, tratou de associar-se a renomados negociantes do reino e passou a represent-los em

    seus negcios na capitania. Primeiro, organizou uma sociedade para arrendar a cobrana do

    imposto do dzimo no termo de Mariana, imposto que incidia em Minas sobre qualquer

    gnero produzido internamente, com exceo do ouro, e que constitua uma das principais

    fontes de renda da Coroa.26

    A primeira sociedade foi estabelecida com Manuel Mateus

    Tinoco, que arrematou o contrato em Lisboa, Manuel de Bastos Viana e Francisco Xavier

    Braga; a Joo Fernandes coube a funo de representante e caixa em Minas Gerais.27

    O

    negcio deve ter sido lucrativo, pois, ao trmino do prazo institudo, passou a representar o

    novo arrematante em Lisboa, Jorge Pinto de Azevedo, com quem firmou nova sociedade.28

    Quando a fortuna comeou a lhe acenar, adquiriu a fazenda da Vargem, prximo ao

    pico do Itacolomi. Perdida numa regio montanhosa e inspita, perto do arraial da Passagem,

    do outro lado do macio do Itacolomi, era um misto de propriedade rural e mineral. Na regio

    de Mariana e arredores, aliou-se a indivduos importantes, compondo cadeias de amizade e

    clientelismo e no perdeu as oportunidades que se apresentaram para, ao introduzir indivduos

    na esfera de sua proteo, aumentar seu poder. Tornou-se testamenteiro de vrios homens

    com os quais mantinha negcios, o que no s se mostrara lucrativo, como ampliava para

    alm da morte os vnculos estabelecidos em vida. Tal foi o caso de seu vizinho, Domingos

    Pinto Machado, de quem foi testamenteiro e tutor de sua filha Rita, tida com sua escrava

    Joana Pinta. Outro que usufruiu de sua amizade, entendida aqui em sua acepo ampla,29

    foi

    Joo Gonalves, seu vizinho, de quem se tornou compadre ao apadrinhar um de seus filhos,

    Cludio Manuel da Costa, que viria ser famoso poeta.30

    As missas de domingo realizadas na

    capela de Nossa Senhora da Conceio, que construiu na fazenda da Vargem, eram ocasies

    de convvio social e de criao de laos com os vizinhos mais importantes, constantemente

    convidados para as celebraes.

    26

    Arquivo da Casa Setecentista (ACS). Justificaes. Cdice 300. Auto 6118. Primeiro Ofcio, f.18v. 27

    ANTT. Cartrios notariais. Testamentos. Livro 300, f.30v-31. 28

    ANTT. Cartrios notariais. Testamentos. Livro 300, f.31; Ministrio do Reino. Livro 208, f.74v-75v. 29

    Era evidente a amplitude do horizonte semntico do conceito de amizade, abrangendo desde as relaes entre

    o rei e os vassalos reciprocamente ligados por laos de amor/amizade (desigual), at s relaes filiais (os

    familiares so simultaneamente os mais amigos) ou de pura amizade (que, quando mais intensa, se assemelharia

    s relaes de famlia). HESPANHA e XAVIER, As redes clientelares, p.385. 30

    SOUZA, Laura de Mello e. Cludio Manuel da Costa. So Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Coleo

    Perfis Brasileiros) A autora destaca que as trajetrias de vida de Joo Gonalves e Joo Fernandes de Oliveira

    tiveram vrias proximidades e que, ao se enriquecer, Joo Fernandes protegeu o amigo e sua descendncia. Ver

    especialmente, p.36-46

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    Prspero e com os negcios estabilizados, e ao dar-se conta de que sua estada nas

    Minas Gerais iria se prolongar, Joo Fernandes de Oliveira resolveu que chegara a hora de

    assentar razes. Aos 29 anos, em agosto de 1726, casou-se com Maria de So Jos, filha de

    comerciantes que viviam no Rio de Janeiro e com os quais provavelmente fazia negcios.31

    O

    casamento foi estratgia fundamental para o estabelecimento de relaes vantajosas e

    estratgicas no interior das redes clientelares que uniam os homens de negcio. O amor no

    era condio necessria ao casamento e dele estava totalmente dissociado, por no constituir o

    espao para a realizao das paixes.32

    Os matrimnios eram assuntos de famlia e visavam

    construo de alianas que promovessem social e economicamente os envolvidos, levando em

    conta motivos outros que os interesses pessoais dos participantes33

    da serem

    denominados casamentos de razo.34

    Os sentimentos que deveriam unir os cnjuges eram

    principalmente a amizade e o respeito, valores do amor conjugal.35

    Os comerciantes

    portugueses recm-chegados, como foi o caso de Joo Fernandes de Oliveira, utilizavam as

    alianas matrimoniais para estabelecerem as relaes necessrias com a elite mercantil da

    terra.

    No ano seguinte ao casamento, em meados de 1727, nasceu o primeiro filho do casal,

    que, como o pai e o av, recebeu o nome de Joo Fernandes de Oliveira. Seu batizado deu-se

    em 9 de junho na capela de Nossa Senhora da Conceio da Fazenda da Vargem. Como

    padrinhos, foram escolhidos Francisco da Cunha Macedo e Josefa Rodrigues da Silva, esposa

    do tambm sargento-mor Domingos Pinto Machado, seus vizinhos.36

    Seguiram-lhe cinco

    filhas, todas recolhidas, mais tarde, no convento de Madre de Deus de Monchique, na cidade

    do Porto, onde professaram os votos e se tornaram freiras.37

    Em 1739, Joo Fernandes de Oliveira habilitou-se a um negcio mais arriscado, que

    envolvia muito dinheiro e fez parte da sociedade que arrematou o primeiro contrato dos

    diamantes. Como sua presena era requerida no Tejuco, em virtude dos termos contratuais

    firmados, em 1740, ele subarrendou o contrato de cobrana de dzimos a Jorge Pinto,38

    que

    31

    AEAM. Processo matrimonial no 3608. 1726, f.5v.

    32 BRGGER, Silvia Maria Jardim. Valores e vivncias matrimoniais: o triunfo do discurso amoroso. Rio de

    Janeiro: UFF, 1995. (Dissertao, mestrado em Histria), p.38. 33

    HUNT, Morton. The natural history of love. Londres: Hutchinson and Co., 1960. 34

    FLANDRIN, Jean-Louis. Famlias: parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga. Lisboa: Editorial

    Estampa, 1992. Ver tambm: BRANDEN, Nathaniel. A psicologia do amor. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,

    1998, p.38-39. 35

    PRIORE, Mary Del. Ao sul do corpo. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1993. 36

    AEAM. Auto de genere de Joo Fernandes de Oliveira. Armrio 5, pasta 806. 37

    ANTT. Cartrios notariais. Testamentos. Livro 300, f.29-30; Desembargo do Pao. Minho e Trs-os-Montes.

    Mao 41, doc.16; Cartrios notariais. 5B. Livro 75, caixa 15. Notas. Atual 12, f.77. 38

    ANTT. Cartrios notariais. Testamentos. Livro 300, f.31.

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    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 9

    assumiu as funes de caixa e representante desse negcio,39

    e deixou a Vila do Carmo,

    mudando-se ento para o Distrito Diamantino. Em 1743, quando participou da nova sociedade

    que arrendou o segundo contrato dos diamantes, exigiu condies mais favorveis para si e

    recebeu como pagamento 4% do montante arrecadado pelos servios que prestaria,40

    e dessa

    forma acumulava riqueza formidvel que, em parte, utilizou para notabilizar sua descendncia

    masculina. A fortuna tornava-se assim moeda de troca na concesso de honras, mercs e

    ttulos que conferiam prestgio aos grandes homens de negcio e os inseririam positivamente

    nas cadeias hierrquicas que se teciam desde o reino.

    Em abril de 1746, sua esposa Maria de So Jos, muito doente desde o ano anterior,

    faleceu.41

    No ano seguinte, sob a proteo do governador Gomes Freire, casou-se com Isabel

    Pires Monteiro, rica viva do capito-mor Lus Siqueira Brando.42

    Era um novo casamento

    de interesses que aumentou mais ainda seu capital. Em 1748, na tentativa de usufruir das

    propriedades da segunda esposa, ainda pendentes no inventrio do marido, Joo Fernandes

    estabeleceu com ela um pacto que incorporava os bens de ambos.43

    Isabel nominalmente

    vendeu seu vasto patrimnio ao marido e, em troca, aps a morte dele, caso no houvesse

    filhos do novo matrimnio, ela retiraria da herana o montante correspondente s seis

    fazendas que possua, aos 36 escravos, a cerca de 5,5 mil cabeas de gado e 610 cavalos e

    guas. Aps a avaliao, todos esses bens passaram para as mos do sargento-mor. 44

    Joo Fernandes no se interessou em administrar diretamente o novo contrato que

    estava em negociao em 1748 e dois anos depois decidiu voltar para o Reino e l usufruir da

    riqueza que acumulara nas Minas. Partiu em 31 de maio de 1751, na frota do Rio de Janeiro, e

    chegou a Lisboa em 24 de agosto.45

    No se tratava mais do jovem que dcadas antes chegara

    ao Brasil com uma mo na frente e outra atrs: Joo Fernandes de Oliveira ia embora gozando

    de uma condio privilegiada, com uma nova esposa, possuidor de extenso patrimnio,

    composto de vrias fazendas - alm das propriedades rurais de Isabel Pires Monteiro, que

    39

    ANTT. Ministrio do Reino. Livro 208, f.74v-75v. 40

    ANTT. Cartrios notariais. Testamentos. Livro 300, f.31v. 41

    AHU. MAMG. Caixa 45, doc.8. Requerimento de Joo Fernandes de Oliveira, solicitando licena para passar ao

    Reino com sua mulher. L-se no documento: para que possa curar de algumas molstias que padece sua

    mulher cujas no pode curar naquele pas. 20 de maro de 1745. 42

    Pedro Taques, grande amigo de Joo Fernandes e Isabel Pires Monteiro, e que habitou durante dois anos na

    residncia do casal em Lisboa, aps o terremoto de 1755, contou que Gomes Freire, que protegia a Joo

    Fernandes, foi empenhado neste casamento. PAES LEME, Pedro Taques de A. Nobiliarquia paulistana. Revista

    do Instituto Histrico Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, p.209, 1871. 43

    Enquanto o filho afirma que o pacto fora celebrado antes do casamento, Isabel insiste em que se deu um ano

    aps a unio. ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342, doc.7. 44

    ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342, doc.7. As fazendas foram posteriormente herdadas pelo filho

    dele, o desembargador Joo Fernandes de Oliveira. 45

    PAES LEME, Pedro Taques de A. Nobiliarquia paulistana, p.208.

  • Jnia Ferreira Furtado

    10 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    incorporara s suas, era dono da fazenda da Vargem, em Itacolomi, de uma sesmaria

    concedida por Gomes Freire, em 1744,46

    e de A Canastra, que comprara s margens do rio

    Araua -, sete casas em Vila Rica e outra no Rio de Janeiro, para viver folgadamente na

    Corte e desfrutar do crculo social que comeara a tecer nas Minas Gerais, particularmente por

    intermdio da amizade com o governador Gomes Freire deAndrade, e assim promover a

    notabilizao de sua prole masculina.

    O jovem desembargador

    Por volta dos treze anos, o jovem Joo Fernandes de Oliveira deixou a casa paterna, os

    cuidados da me, a quem no iria mais rever, e as irms mais jovens e partiu das Minas Gerais

    para o Rio de Janeiro, e dali para Portugal.47

    quase certo que se separou da famlia quando

    seu pai seguiu para o Tejuco a fim de cuidar dos negcios diamantinos. Nas classes mais

    abastadas, era nessa idade que tinha incio a educao formal. O sargento-mor optou por

    proporcionar ao nico filho homem a melhor educao possvel, requisito necessrio

    ascenso social que, medida que enriquecia, buscava proporcionar aos seus descendentes.

    Mandou-o para Portugal a fim de que l obtivesse grau universitrio, exigncia para ocupar

    qualquer posto burocrtico ou eclesistico no Imprio Portugus e etapa indispensvel

    conquista de prestgio e influncia que os homens de negcio pretendiam para seus filhos.

    Assim que chegou a Lisboa, o jovem Joo Fernandes de Oliveira foi internado como

    pensionista no seminrio de So Patrcio.48

    Nessa instituio,49

    sob a rigorosa disciplina dos

    jesutas, recebeu educao humanista de qualidade, que conjugava a excelncia acadmica, o

    exerccio da moral e das virtudes com a formao religiosa, base necessria para pleitear sua

    entrada na Universidade de Coimbra. Em outubro de 1743, buscando aprimorar sua formao

    religiosa, Joo Fernandes de Oliveira deixou o seminrio e matriculou-se no curso de Cnones

    em Coimbra. So Patrcio havia lhe fornecido condies intelectuais de cumprir os requisitos

    que aquela universidade exigia aos que pretendiam nela ingressar: o domnio de retrica,

    latim, lgica, metafsica, tica e grego.50

    A riqueza e o poder que seu pai acumulava nas

    Minas forneciam-lhe as condies de prestgio necessrias para se matricular na seleta

    46

    Concesso de sesmarias. Revista do Arquivo Pblico Mineiro, Belo Horizonte, ano X, p.224-225, 1905. 47

    AEAM. Auto de genere de Joo Fernandes de Oliveira. Armrio 5, pasta 806, f.5v-6. 48

    AEAM. Auto de genere de Joo Fernandes de Oliveira. Armrio 5, pasta 806. 49

    GANSS, George. Ignatius constitutions of education is the spirit of the Ratio Studiorum. In: Saint Ignatius,

    idea of a jesuit university. Milwaukee: The Marquette University Press, 1954, p.194-207. 50

    ANTUNES, lvaro de Arajo. Espelho de cem faces: o universo relacional do advogado setecentista Jos

    Pereira Ribeiro. 1999, p.163.

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    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 11

    instituio. O ttulo universitrio elevava no somente o prprio recipiendrio, dando-lhe

    certos privilgios e acesso classe dominante na colnia, mas constitua meio de ascenso

    social de toda a famliae , a partir do sculo XVIII, no apenas os filhos da elite agrria da

    colnia mandavam os filhos para as universidades no reino, mas especialmente os

    comerciantes em ascenso financeira,51

    como era o caso dos Fernandes de Oliveira.

    A concluso de um curso universitrio, principalmente o de leis cannicas, por sua

    vez, conferia mais honra e prestgio ao agraciado. Segundo os juristas portugueses do sculo

    XVIII, o estudo do Direito enobrecia o indivduo,52

    e por essa razo atraa os filhos dos

    homens de negcio, que, por no serem nobres de nascimento, buscavam canais burocrticos

    de ascenso.53

    O curso de Cnones, escolhido por Joo Fernandes, o habilitava ao exerccio

    do direito cannico e civil,54

    indispensvel para quem aspirava a candidatar-se carreira

    eclesistica ou magistratura.55

    Depois de cumprir os quatro anos regulares de 1743 a 1746,

    Joo Fernandes de Oliveira completou o bacharelado em 1747 e se formou em junho de

    1748.56

    No ms seguinte, ao jovem bacharel foi concedido o ttulo de cavaleiro da Ordem de

    Cristo, e como merc recebeu a tena de 12 mil ris.57

    A comenda fora comprada por seu pai

    e fazia parte da estratgia de promoo de sua famlia junto nobreza do reino. Parecia que o

    jovem Joo Fernandes pretendia se estabelecer em Portugal e ali percorrer uma brilhante

    carreira na rea jurdica ou na magistratura. J no ano seguinte, candidatou-se para disputar

    como opositor uma das cadeiras do curso de Cnones de Coimbra, mas no foi aprovado.58

    Em 16 de maro de 1750, munido das cartas de formatura, apresentou-se na Audincia de

    Juzo em Lisboa a fim de requerer licena para advogar. A estratgia de seu pai fora bem-

    sucedida: com efeito, o grau universitrio abrira-lhe as portas das varas do Pao, dos cargos

    na administrao da justia e de postos nas ordens militares. O processo de habilitao ao

    desempenho da advocacia foi concludo dois anos aps a realizao das inquiries

    costumeiras. Nele consta que Joo Fernandes estava com trinta anos, o que no era verdade,

    51

    RUSSELL-WOOD, A. J. R. Relato de um caso luso-brasileiro do sculo dezessete. Stvdia, n 36, p. 20, jun.

    1973. 52

    SCHWARTZ, Stuart B. Magistracy and society in colonial Brazil. Hispanic American Historical Review,

    p.724, 1970. 53

    SCHWARTZ, Stuart B. Magistracy and society in colonial Brazil, p.724. 54

    ANTUNES, lvaro de Arajo. Espelho de cem faces, p.163. 55

    RUSSELL-WOOD, A. J. R. Relato de um caso luso-brasileiro do sculo dezessete, p.21. 56

    Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC). Actos e graus de estudantes da Universidade por faculdade. 57

    ANTT. Chancelaria antiga da Ordem de Cristo. Livro 235, f. 319; livro 237, f.318. Mercs de dom Joo V.

    Livro 38, f.283. 58

    APM. Seo Colonial.131, f.53v-54.

  • Jnia Ferreira Furtado

    12 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    pois ainda no completara 25, idade insuficiente para tal investidura.59

    A todos os sinais de

    dignificao que acumulara at ento, acrescentou o ttulo de desembargador, aps sua

    nomeao para o Tribunal da Relao do Porto, em 1752.60

    Porm, alguns fatos relacionados

    sua promoo na esfera da magistratura contrariam as regras informais que normalmente

    norteavam as carreiras dos magistrados portugueses nos sculos XVII e XVIII. Ao contrrio

    do que ocorrera com o jovem desembargador, que teve inclusive que fraudar sua idade, havia

    um padro informal no acesso carreira judiciria no Reino e no alm-mar. O comeo da

    carreira na magistratura iniciava-se, por volta dos vinte e tantos anos de idade e pelos cargos

    mais baixos; as nomeaes de desembargadores ocorriam geralmente por volta dos quarenta

    anos, somente aps cerca de vinte anos de servios prestados em mdia na primeira instncia;

    os originrios do Brasil, depois de estudar em Coimbra, comeavam servindo no alm-mar e

    s muito mais tarde e, mesmo assim, somente alguns poucos conseguiam nomeaes no

    reino; por fim, a maioria dos desembargadores era originria de famlias cujos pais e avs

    serviram na alta magistratura.61

    Nada disso era o caso do jovem Joo Fernandes: o acesso

    direto ao importante cargo de desembargador como primeira nomeao, a pouca idade que

    tinha quando o posto lhe foi conferido, a ausncia de desembargadores na famlia e sua

    origem brasileira no impediu que seu primeiro posto fosse conferido no reino e diretamente

    na segunda instncia. O poderio do seu pai, o contratador e o apoio das altas autoridades

    locais, tecidas desde as Minas Gerais, foram fundamentais para a rpida concretizao do

    processo de notabilizao que o sargento-mor buscara para o filho.

    Foi em agosto de 1753 que o jovem desembargador Joo Fernandes de Oliveira

    chegou ao Tejuco para representar o sargento-mor Joo Fernandes de Oliveira, que, do reino,

    havia arrematado o quarto contrato dos diamantes.62

    Era um rapaz coberto de glria, cuja

    trajetria, cuidadosamente planejada por seu pai, refletia o processo de notabilizao e

    ascenso social que o antigo contratador dos diamantes procurava estabelecer para sua

    famlia, medida que enriquecia. Em 1763, aos ttulos j conseguidos no reino, o jovem

    desembargador alcanou a merc do lugar de juiz do fisco das Minas Gerais, [com] merc de

    59

    ANTT. ndice de leitura de bacharis. Joo Fernandes de Oliveira. Mao 22, doc.37. 60

    ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342, doc.7. 61

    Sobre este perfil ver: SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colnia. So Paulo:

    Perspectiva, 1979. CAMARINHAS, Nuno. Letrados e lugares de letras. Anlise prosopogrfica do grupo

    jurdico. Portugal, sculos XVII-XVIII. Lisboa: Instituto de Cincias Sociais, 2000. (Dissertao, Mestrado em

    Histria). 62

    ANTT. Cartrios notariais. 5B. Caixa 15, livro 75. Notas. Atual 12, f.75-78v. Uma pequena biografia do

    desembargador Joo Fernandes de Oliveira pode ser vista em CARDOZO, Manoel da Silveira. O desembargador

    Joo Fernandes de Oliveira. Separata da Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, v.XXVII, 1979.

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    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 13

    que possa vestir a beca.63

    Desse ano em diante, adquiriu o direito de se sentar no primeiro

    banco em qualquer cerimnia, local mais prximo do governador, no s no Tejuco, como na

    capitania.64

    Estar junto do principal representante do rei na regio, alm de evocar

    proximidade com o poder, era smbolo exterior de dignificao. Decerto o jovem Joo

    Fernandes, solteiro, de boa vida e costumes,65

    coberto de nobreza e representante do

    importante cabedal de seu pai, era o que se podia chamar de bom partido. Porm,

    contrariando todas as previses, ao chegar ao Tejuco, iniciou um envolvimento com Chica da

    Silva, ex-escrava, parda, a quem permaneceu ligado at a morte.66

    A grandeza e a importncia de Joo Fernandes deveriam ser continuamente

    demonstradas. Para que fosse honrado e respeitado pela sociedade, no bastava fazer parte do

    crculo dos poderosos. Mecanismo essencial para o engrandecimento, a caridade para com os

    mais pobres no era apenas um ato cristo, uma obrigao dos ricos - era tambm uma das

    formas instituintes da sociabilidade da poca. Praticada sob a aparncia de liberalidade, de ato

    desprendido, era na verdade estratgia sutil para angariar prestgio. Baseava-se em regras

    sociais informais, que definiam que o ato deveria ser sempre pblico, dirigido aos de grau

    socialmente inferior, com o propsito de encerr-los numa dvida permanente, inextinguvel.67

    A concesso material, sempre retribuda por um ganho moral, era uma maneira de realar a

    magnificncia e o poderio do ofertante.68

    Esperava-se que o agraciado retribusse a caridade

    de que fora objeto sujeitando-se permanentemente quele que a praticara, ou executando para

    ele pequenos servios. Encerrado em uma cadeia inextinguvel de compensaes, deveria

    demonstr-las publicamente, mesmo que na hora da morte.69

    Pedro lvares de Arajo,

    sargento-mor na Vila do Prncipe, foi exemplo das redes clientelares que o desembargador

    Joo Fernandes de Oliveira estabeleceu na regio dos diamantes, pois registrou em seu

    testamento que vivera principalmente do aluguel de escravos para os contratos diamantinos,

    dos quais ainda havia valores a receber, benefcio que dependera da boa vontade do

    contratador.70

    Os doentes eram igualmente objeto de caridade. Constava entre as obrigaes

    63

    ANTT. Ministrio do Reino. Livro 214, f.43v-44; APM. Seo Colonial. 131, f.53v-54v. Joo Fernandes de

    Oliveira tomou posse em janeiro de 1764, na casa do governador Lus Diogo Lobo da Silva, em Vila Rica. ANTT.

    Chancelaria de dom Jos I. Livro 86, f.101v-102. 64

    ANTT. Ministrio do Reino. Livro 209, f.184. 65

    ANTT. ndice de leitura de bacharis. Joo Fernandes de Oliveira. Mao 22, doc.37. Depoimento do dr. Jos

    Antnio Cobeiro de Azevedo, corregedor civil. 66

    FURTADO, Jnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. 67

    FURTADO, Jnia F. Homens de negcio, p.46-57. 68

    FURTADO, Jnia F. Homens de negcio, p.65-66. 69

    FURTADO, Jnia F. Homens de negcio, p.66-68. 70

    Apud: MENESES, Jos Newton C. O continente rstico: abastecimento alimentar nas Minas Gerais

    setecentistas. Diamantina: Maria Fumaa, 2001, p.163.

  • Jnia Ferreira Furtado

    14 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    dos contratos diamantinos a manuteno de um hospital, destinado sobretudo aos negros que

    trabalhavam na minerao, que sofriam muitos acidentes e padeciam de vrios males. O

    desembargador Joo Fernandes de Oliveira, pelo amor de Deus, mandava curar,

    gratuitamente, vrios pobres do Tejuco, doentes de cancros, e alguns sararam com grande

    admirao do mesmo, que os via quando os mandava aceitar, e quando eles lhe iam render as

    graas j sos.71

    Com o ritual de visitar os doentes que mandava curar gratuitamente, e de

    faz-los render graas aps terem sido curados, tornava pblicas frente populao do arraial

    sua grandeza e magnificncia para com os desfavorecidos, maneira de demonstrar e angariar

    mais honra e prestgio. Como seu pai, o desembargador arranjou para vrios de seus

    familiares ocupaes nos negcios do arraial. O capito Domingos Fernandes de Oliveira

    trabalhou como feitor do contrato dos diamantes nos servios do rio Manso,72

    alcanou a

    patente de capito73

    e ocupou vrios cargos no Tejuco, como irmo da Mesa da Irmandade do

    Santssimo.74

    Pombal e os contratadores dos diamantes

    At sua morte em 1770, o pai, o sargento-mor, estabeleceu-se no reino e, a partir da

    amizade que tecera cuidadosamente nas Minas Gerais com o governador Gomes Freire de

    Andrade, passou a freqentar os mais altos estratos da corte, compartilhando da confiana de

    Pombal. Enquanto isto, o filho, o desembargador, cuidadosamente educado no reino,

    estabeleceu-se no Tejuco e passou a administrar os contratos diamantinos. Os negcios do pai

    entrelaaram-se permanentemente aos do filho. Das Minas Gerais, o desembargador enviava

    anualmente os ricos rendimentos oriundos da explorao diamantina, permitindo que o pai

    vivesse folgadamente no reino, como um nobre, e ali estabelecesse as conexes de amizade

    necessrios ao bom desempenho de seus negcios coloniais. A estratgia da famlia

    Fernandes de Oliveira foi expediente comum entre os homens de negcio cujas cadeias de

    71

    MENDES, Jos Antonio. Governo de Mineiros, mui necessrio para os que vivem distantes de professores

    seis, oito, dez e mais lguas, padecendo por essa cauza is seus domsticos e escravos queixas, que pela dilaam

    dos remdios se fazem incurveis, no mais das vezes mortais. Lisboa, Oficina de Antonio Roiz Galhardo, 1770,

    p.133. 72

    Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Diamantina (AEAD). Livro de batizados em Couto Magalhes de

    Minas. 1760-1774. Caixa 331, f.141v. 73

    AEAD. Livro de certides de almas pelos irmos falecidos na Irmandade do Santssimo Sacramento. 1756,

    caixa 519, f.15. 74

    AEAD. Livro da Irmandade do Santssimo Sacramento. 1759-1764. Caixa sem identificao, f.4v.

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    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 15

    comerciantes estenderam-se por todo o imprio portugus.75

    Como as relaes de poder

    tinham carter privado, para a efetivao e o sucesso dos empreendimentos, era preciso

    manter um relacionamento cotidiano e ntimo com os poderosos, acima de tudo com o prprio

    rei, o que era vital para a concretizao dos interesses financeiros dos contratadores. Assim, o

    sargento-mor Joo Fernandes tratou de estabelecer conexes importantes na corte lisboeta, e

    vrios indcios demonstram que, a partir da ascenso do marqus de Pombal, as relaes entre

    os dois foram estreitas. Num intercmbio de favores, em 1770, durante as negociaes da

    renovao do sexto contrato dos diamantes, o velho sargento-mor concedeu, ao ainda Conde

    de Oeiras, oito contos de ris, que so vinte mil cruzados, para se acabarem as casas sitas

    junto Igreja da freguesia arruinada de So Paulo, desta corte, que herdara de seu irmo, o

    cardeal Paulo de Carvalho e Mendona.76

    O bom desempenho do desembargador Joo Fernandes, nos negcios no Tejuco foi

    salientado vrias vezes, e era com evidente exagero que ele reclamava que sofria no Brasil o

    fruto de asperssimos desterros, copiosos suores e incessantes fadigas.77

    Uma vez no Tejuco,

    organizou a explorao diamantina e fez crescer seus lucros e os do rei, pois possua

    inteligncia e probidade que requer um negcio de tanta importncia.78

    Foi a partir do

    aumento da lucratividade dos negcios diamantinos que se tornou, junto com seu pai,

    elemento de confiana de Pombal.79

    Como se observa pelo Quadro I, a evoluo da produo de diamantes no Tejuco,

    durante sua conduo pelo desembargador Joo Fernandes, demonstrou que seu xito e

    incremento estiveram diretamente ligados a sua presena. No primeiro relatrio que

    apresentou aos acionistas, salientou o sucesso de sua atuao e que os lucros que se

    avolumavam: No se pode duvidar, porque consta dos livros das entradas assim da casa do

    contrato, como dos administradores, que os servios do Jequitinhonha foram utilssimos, ricos

    e de considervel interesse para o atual contrato, que presentemente se acha com grande lucro,

    segundo o clculo que tenho feito das despesas e dos diamantes que se acham extrados e

    75

    Estratgia semelhante ocorreu na mesma poca com a famlia de comerciantes Pinto de Miranda. Ver

    SANTOS, Eugnio de. Relaes da cidade e regio do Porto com Rio de Janeiro e Minas Gerais Anais do I

    Colquio Histricos Brasil-Portugal. PUC/MG: Belo Horizonte, 1994. 76

    MATOS, Jos Sarmento. Uma casa na Lapa. Lisboa: Fundao Luso-Americana para o Desenvolvimento,

    1994, p.71. 77

    ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342. Doc.7. 78

    ANTT. Ministrio do Reino. Livro 212, f.6-6v 79

    FRANA, Jos-Augusto. Burguesia pombalina, nobreza mariana, fidalguia liberal. In: Pombal revisado.

    Lisboa: Editorial Estampa, 1984, n.34, v.1, p.19-33. MAXWELL, K. Pombal and the Nationalization of the

    Luzo-Brazilian Economy. Hispanic American Historical Review, New Heaven, v.48, n.4, p.608-631, 1968.

  • Jnia Ferreira Furtado

    16 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    remetidos aos caixas da cidade de Lisboa.80

    QUADRO I

    Produo oficial de diamantes

    entre 1765-1771

    ANO QUILATES

    1765 84.862

    1766 91.382

    1767 70.942

    1768 74.450

    1769 76.689

    1770 55.414

    1771 35.369

    (Fonte: ANTT. Ncleos extrados do Conselho da Fazenda. Junta de Direo Geral dos Diamantes. L.3, p.6v.)

    J quando ele se ausentou do Tejuco, a partir do final do segundo semestre de 1770 e

    durante o ano de 1771, a produo decresceu vertiginosamente, apesar do contrato continuar

    administrado por um de seus homens de confiana, o administrador-geral Caetano Jos de

    Sousa.81

    Isto comprova a transitividade entre sua presena e o aumento da produo. Pelo

    volume de riqueza produzida, percebe-se que os interesses privados e pblicos envolvidos na

    produo diamantina se completaram e geraram benefcios mtuos durante sua administrao.

    Como bem percebeu Pombal, o desembargador era pea fundamental no intricado jogo de

    relaes que uniam os grandes homens de negcio e a Coroa.82

    A trajetria dos dois Joo Fernandes de Oliveira emblemtica do papel que os

    comerciantes encontraram durante o perodo da minerao, momento privilegiado para

    ampliao das suas atividades e de seus ganhos. Sua insero social na capitania s pode ser

    compreendida como parte de uma cadeia de poder que se estendia desde o reino e que uniam

    os integrantes das grandes firma comerciais, vinculando os interesses destas aos do estado

    portugus.83

    O comerciante que se dirigia para a capitania das Minas, estabelecia uma srie de

    vnculos estratgicos que em muito propiciavam a interiorizao dos interesses

    80

    Relatrio apresentado aos acionistas e interessados na companhia dos diamantes pelo desembargador Joo

    Fernandes de Oliveira. Apud: SANTOS, Joaquim F. Memrias do Distrito Diamantino da Comarca do Serro do

    Frio. Rio de Janeiro: Edies O Cruzeiro, 1956. Coleo Braslica, p.149. 81

    ANTT. Ncleos extrados do Conselho da Fazenda. Junta de Direo Geral dos Diamantes. L3, p.1. 82

    Comparando a produo dos diferentes contratos, Boxer afirma que, enquanto o terceiro rendeu 154.579

    quilates, o quarto, o quinto e o sexto renderam respectivamente 390.094, 106.416 e 704.209. Infere-se dos dados

    apresentados que o desembargador Joo Fernandes foi responsvel por cerca de 72% da produo total de

    1.666.569 quilates explorada durante a vigncia do sistema de contratos. BOXER, Charles. A idade do ouro do

    Brasil, p.240. Os dados so baseados em Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). Cd. I-18-14-1, f.32. 83

    GODINHO, Vitorino Magalhes. Finanas pblicas e estrutura do estado. In: Ensaios II. Sobre a Histria de

    Portugal. 2aed. Lisboa: Livraria S da Costa Ed., 1978, p.53-54.

  • Nobilitao dos homens de negcio no Ultramar portugus: Pombal e os contratadores dos diamantes

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 17

    metropolitanos em suas conquistas ultramarinas.84

    Esses interesses tambm se

    complementavam quando da arrematao dos contratos, avidamente disputados pelos homens

    de negcio, seja para cobrana das entradas ou impostos na capitania, ou ainda, como no caso

    dos Joo Fernandes de Oliveira, para a explorao dos diamantes.

    Desejosos de ascenso e reconhecimento social, a Coroa utilizou a concesso de

    ttulos e honrarias para ter a seu lado o servio e o capital dos grandes homens de negcio do

    reino. A associao dos comerciantes com o estado ocorreu durante a disputa por mercados

    cada vez mais monopolizados e disputados entre as diversas naes europeias.85

    Em Portugal,

    esta consubstanciao se fez de forma efetiva, j que as necessidades de um importante

    comrcio transocenico, ligando o reino s suas conquistas, requeriam capitais vultuosos e

    estrutura organizacional que nem o estado sozinho, nem o pequeno comrcio tradicional,

    eram capazes de responder. Na medida em que os grandes comerciantes eram os nicos que

    acumulavam capitais vultuosos e tinham interesse em investir em negcios, eram eles os

    parceiros ideais no empreendimento ultramarino. Por isso, foram constantemente invocados a

    financiar os empreendimentos coloniais e a arrematar os diferentes contratos para a explo-

    rao dos seus produtos.

    Os comerciantes procuravam se afirmar numa sociedade em que os valores

    dominantes eram essencialmente nobilirquicos. O principal estratagema utilizado por eles,

    do qual se valeram os Joo Fernandes de Oliveira, foi a compra de ofcios e ttulos que, ento,

    se tornara importante fonte de financiamento da Coroa. Inseridos nas cortes reais, tais homens

    de negcio continuavam gravitando num sistema no qual a nobreza ocupava o topo social e

    por isto procuravam imit-la e confundir-se com ela. No sculo XVIII, os enciclopedistas

    denunciavam tal situao:

    Na poca em que se pode adquirir a nobreza mediante o comrcio; os financistas

    subiram to alto que se encontram junto aos grandes do reino. Deslizaram e

    confundiram-se com eles, aliando-se com os nobres, a quem pensionam, sustentam

    e tiram da misria.86

    Na segunda metade do sculo XVIII, durante o reinado de dom Jos I, com a ascenso

    de Pombal ao cargo de secretrio dos negcios do reino, foi elaborada uma poltica real

    84

    DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorizao da metrpole (1808-1853). In: MOTA, Carlos Guilherme

    (Org.). 1822-Dimenses. So Paulo: Perspectiva, 1982, p.160-184. 85

    GODINHO, Vitorino Magalhes. Finanas pblicas e estrutura do estado, p.53-54. 86

    Textes choisis de lEncyclopedie. Apud: CIAFARDINI, Horcio. Capital, comrcio e capitalismo; a propsito

    do chamado capitalismo comercial. In: GEBRAN, Philomena. (org.) O conceito de modo de produo. Rio de

    Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.157.

  • Jnia Ferreira Furtado

    18 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    sistemtica de reconhecimento do valor do comrcio para o enriquecimento da nao.87

    A

    legislao econmica de 1755 deliberou aes no sentido de estabelecer uma classe mercante

    nacional. Era esperado que, garantindo-lhe privilgios monopolistas, ela poderia acumular

    capital suficiente para competir efetivamente com os estrangeiros em todas as reas do

    comrcio Luso-Brasileiro.88

    Efetivamente, Pombal compreendeu a impossibilidade de

    promover o desenvolvimento do comrcio nas conquistas ultramarinas, especialmente o

    Brasil, sem recorrer ao capital desses negociantes por grosso.

    Com efeito, a construo de uma elite mercantil em Portugal demandou que Pombal

    investisse na formao e notabilizao desses estratos economicamente dominantes da

    sociedade. O rei procurava atrair os vassalos negociantes ao prometer privilgios, honras e

    proteo com que (...) tem creditado os lugares que estiverem ocupando.89

    Mas, essas

    distines eram reservadas apenas aos grandes comerciantes. Como conseqncia dessa

    poltica diminuiu cada vez mais a distino entre os negociantes de grosso trato e os nobres,

    especialmente partir da concesso de hbitos da Ordem de Cristo. A entrada cada vez mais

    significativa dos comerciantes s ordens militares pode ser atestada pelo exame do rol de

    justificativas que os candidatos apresentavam para serem aceitos. Neste momento, ao invs de

    ser motivo para desclassific-lo, ser bem sucedido nos negcios imprimia nobreza ao

    candidato, e servia de justificativa para ingresso na Ordem de Cristo dos grandes

    comerciantes que pleiteavam ser habilitados.90

    Uma testemunha de um dos processos de

    gnero de um comerciante poca referiu-se ao pretendente alegando que homem de

    negcio de avultados cabedais, (...) pelo que foi e tido por um dos negociantes Nobres desta

    Praa.91

    Esse novo status que os comerciantes iam adquirindo refletiu-se na nova denomi-

    nao de Praa do Comrcio, dada antiga Praa do Pao, depois de sua reconstruo aps o

    terremoto de 1755. Mas a possibilidade de acesso de grandes comerciantes, banqueiros e

    grandes contratadores aos diversos graus da nobreza, permitida pela poltica real de concesso

    de ttulos, provocou o abaixamento do limiar da nobreza e desencadeou uma reao da alta

    nobreza portuguesa oriunda do sangue para se distinguir. O escalonamento dos patamares de

    nobreza e a distino cada vez mais evidente entre fidalguia e nobreza, ocorrida ao longo do

    87

    MONTEIRO, Nuno Gonalo. D. Jos: na sombra de Pombal. Lisboa: Crculo de Leitores, 2006, p.166-186.

    (Coleo Reis de Portugal) 88

    MAXWELL, Kenneth. Pombal and the nationalization of the luso-brazilian economy, p.623. 89

    SILVA, Antnio Delgado. Coleo de Legislao portuguesa. Lisboa: Tipografia de Luiz Correa da Cunha,

    1842, v.(1750-1762), p.800. 90

    STUMPF, Roberta G. Cavaleiros do ouro e outras trajetrias nobilitantes: as solicitaes de hbitos das

    Ordens militares nas Minas Setecentistas. Braslia, UNB, 2009. (Tese, doutorado em Histria). 91

    MONTEIRO, Nuno Gonalo. Poder senhorial, estatuto nobilirquico e aristocracia. In: MATTOSO, Jos.

    (org.) Histria de Portugal; o Antigo Regime, p.336.

  • Nobilitao dos homens de negcio no Ultramar portugus: Pombal e os contratadores dos diamantes

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 19

    sculo XVIII, em que a primeira era relativa apenas aos nobres de nascimento, era produto do

    acesso dos grandes homens de comrcio aos patamares da nobreza. No interior da nobreza

    acabaram por se instituir, ao longo do sculo XVIII, trs hierarquias: os nobres em geral, os

    cavaleiros e um crculo restrito de fidalgos.92

    Coube a Pombal reformular a poltica colonial impondo-lhe um cunho racional.

    Procurou implantar uma administrao mais rgida e profissionalizada e buscou reforar a

    transferncia das riquezas ultramarinas. Para readquirir o controle do estado sobre a colnia e

    desenvolver o comrcio, modernizou a mquina administrativa, cooptou a elite colonial para

    os cargos locais e buscou a parceria com os grandes negociantes. Sua poltica mercantilista foi

    francamente monopolista, mas favorvel parceria com os grandes negociantes, esforo

    demonstrado pela criao das Companhias de Comrcio. Em setembro de 1755, com o intuito

    de modernizar a prtica mercantil, criou a Junta de Comrcio de Portugal, cujos estatutos

    foram editados em dezembro, procurando regular, estimular e profissionalizar essa atividade.

    No ano seguinte, implantou a Aula de Comrcio, cujo objetivo era preparar melhor o pequeno

    comerciante e os caixeiros das grandes casas, providenciando-lhes formao adequada para o

    desempenho de suas funes.93

    Nesse sentido, em lei de 1761, imps a contabilidade por

    partidas dobradas e a boa ordem nos livros da casa de comrcio.94

    Outro efeito desta poltica

    de educao profissional dos comerciantes foi o aparecimento em Portugal de obras voltadas

    exclusivamente para este pblico a partir de ento.95

    Comeava, ento, a lenta afirmao de

    uma cultura mercantil racional, por meio do estmulo ao uso da contabilidade e da

    escriturao nas casas comerciais.

    Na poltica pombalina, constantemente, os assuntos econmicos e a explorao de

    riquezas estratgicas para a Coroa eram postos nas mos de figuras da confiana e do crculo

    de amizade do ministro Pombal, consubstanciando os interesses do estado com os da classe

    mercantil. Em contrapartida, essa elite mercantil se enriquecia e se enobrecia e, como

    apresentado nesse artigo, os dois Joo Fernandes de Oliveira foram exemplos paradigmticos

    92

    O papel que as ordens militares passaram a desempenhar na sociedade portuguesa pode ser atestado por vrios

    autores: perante o progressivo alargamento dos estratos tercirios urbanos (...) a correspondente ampliao do

    conceito de nobreza fazia correr o risco de uma total banalizao e descaracterizao deste estado, (...). assim,

    para atribuir um estatuto diferenciado aos titulares destas novas funes sociais (...) a doutrina [jurdica] vai

    criar, ao lado dos estratos tradicionais, um estrato do meio ou estado privilegiado, equidistante entre a

    nobreza e o povo mecnico (...). Outros, no indo to longe, distinguiro entre a antiga nobreza, herdada do

    sangue, e esta ltima, adquirida pela riqueza ou pela indstria. MONTEIRO, Nuno Gonalo. Poder senhorial,

    estatuto nobilirquico e aristocracia, p.334-336. 93

    MARTINHO, Lenira Menezes; GORESTEIN, Riva. Negociantes e caixeiros na sociedade da Independncia.

    Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1993, p.54. 94

    GODINHO, Vitorino Magalhes. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. 3aed. Lisboa: Arcdia, 1977,

    p.115. 95

    GODINHO, Vitorino Magalhes. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, p.115-116.

  • Jnia Ferreira Furtado

    20 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    da poltica pombalina dirigida aos grandes homens de comrcio.96

    A anlise da relao que se

    estabeleceu entre estes dois contratadores dos diamantes e as diversas autoridades no Brasil e

    em Portugal revelou que, durante a era pombalina, confiana e intercmbio de interesses

    mtuos foi o que prevaleceu entre as partes.97

    Mas, contingncias na vida privada do desembargador Joo Fernandes de Oliveira,

    finalmente, o levaram, no final de 1770, de volta a Lisboa. Isso ocorreu porque, pouco antes

    da morte de seu pai, ocorrida em meados daquele ano, o mesmo modificara seu testamento e

    concedera viva a meao de seus bens, o que feriu de morte os interesses financeiros do

    jovem desembargador, j que o patrimnio do pai e do filho se encontrava totalmente

    entrelaado. Foi exclusivamente por esta razo, que o ltimo resolveu voltar a Portugal, para

    defender pessoalmente seus interesses frente madrasta,98

    mas tambm de se esperar que

    procurasse substituir seu pai no papel que desempenhava junto corte, na defesa de seus

    interesses comerciais. No que se refere explorao diamantina, seguindo a tendncia de

    monopolizao estatal da explorao e comrcio das riquezas coloniais, em meados de 1771,

    um alvar rgio extinguiu o sistema de contratos e, a partir de 1772, a explorao passou a ser

    realizada apenas pela Coroa, efetuada com a criao da Real Extrao dos Diamantes.99

    Findava ento o tempo dos contratadores no Tejuco. Como o marqus no podia mais contar

    com seu homem de confiana no Tejuco, prevaleceu a tendncia, j manifestada em outras

    reas, de o Estado retomar o controle sobre as riquezas do imprio, e foi em face disso que se

    decretou o monoplio rgio sobre a produo dos diamantes. A ausncia de uma pea vital na

    conduo do contrato dos diamantes, como era o caso dos dois Joo Fernandes de Oliveira,

    somente podia ser sanada com a decretao do monoplio rgio, consoante as pretenses de a

    Coroa retomar o controle sobre as riquezas do imprio. Neste caso, a soluo se apresentou

    no como culminncia de um projeto pombalino de longo prazo, e sim como reao inevitvel

    a uma circunstncia especfica e de difcil resoluo.100

    Na falta dos valiosos contratadores,

    era prefervel entregar os negcios do reino a administradores pblicos, que, afinal, estavam

    sendo preparados para esse fim.101

    96

    MAXWELL, Kenneth. Colaboradores e conspiradores, p.69-94. 97

    FURTADO, Jnia F. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito, p.207-237. 98

    FURTADO, Jnia F. Separao. In: Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito,

    p.199-224. 99

    FURTADO, Jnia F. O livro da capa verde Verde: a vida no Distrito Diamantino no perodo da Real

    Extrao. So Paulo: Anna Blume, 1996. 100

    Camilo Castelo Branco defendeu a tese de que as reformas pombalinas no foram resultado de um projeto de

    longo prazo, e sim definidas mais pelo acaso e elaboradas por outros que no ele prprio. CASTELO BRANCO,

    Camilo. Perfil do marqus de Pombal. Porto: Lello e Irmo Ed., 1982, p.114-115, 131, 134, 274-275. 101

    Pombal criara o Colgio dos Nobres para preparar os filhos dos nobres para a administrao pblica.

  • Nobilitao dos homens de negcio no Ultramar portugus: Pombal e os contratadores dos diamantes

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 21

    Quando o desembargador Joo Fernandes de Oliveira chegou ao reino, Sebastio Jos

    de Carvalho e Melo atingia o auge do poder: em 1769, dom Jos I lhe conferira o ttulo de

    marqus de Pombal. O desembargador sabia que gozava do favor e do reconhecimento do

    prprio rei, pois o senhor rei dom Jos dorme em paz, prezando em Joo Fernandes de

    Oliveira um vassalo honrado e til, houve de lhe nomear aquela administrao,102

    como

    tambm Pombal seu poderoso ministro. Com efeito, nas disputas judiciais com a viva de seu

    pai, Isabel Pires Monteiro, pela sua herana, o marqus e o rei claramente o protegeu, por

    meio de decretos reais sempre favorveis aos seus interesses. Pombal retribua, assim, a

    amizade que estabelecera com seu pai.

    A despeito das evidncias de o sargento-mor encontrar-se em s conscincia nos dias

    que precederam sua morte, em janeiro de 1773 a sentena do Tribunal da Relao,

    conclamando a Lei da Boa Razo, foi favorvel a Joo Fernandes, determinando no dever

    ela [Isabel] ser meeira nos bens do dito casal de seu marido, nem nos adquiridos, devendo s

    ser inteirada do seu dote.103

    Para essa sentena, foi crucial o atestado de incapacidade

    emitido por Pombal, pois por ser de um ministro de Estado e secretrio dos Negcios do

    Reino tem indubitvel f, mesmo que contrariasse todos os reunidos pela madrasta,

    assinados pelos religiosos e mdicos que foram testemunhas oculares do que havia de fato se

    passado.104

    Segundo a viva, a amizade que Pombal nutria pelo sargento-mor, e que era

    extensiva ao filho, foi decisiva para a vitria do desembargador no processo, que era devida

    opulncia de seu enteado e proteo dos ministros de Estado.105

    Fazia meno a vrios

    favores trocados entre os enriquecidos contratadores de diamantes com Pombal, sua esposa,

    seus irmos e outros poderosos da Corte.

    No ano de 1775, o desembargador caiu doente, com molstia perigosa.106

    Temeroso

    de ver seus bens dissipados, resolveu dar novo destino ao patrimnio da famlia e imortalizar

    o poder que detinha, por meio da constituio de um morgado. Dessa forma, poderia dar

    continuidade ao processo de notabilizao dos Fernandes de Oliveira, iniciado por seu pai. O

    desembargador olhava para longe; suas determinaes sobre os bens que possua apontavam

    para o futuro e dispunham suas vontades sobre sua descendncia. Regulamentado por diversas

    clusulas, o morgado consistia em um compromisso assumido entre o instituidor e o rei.

    102

    ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342, doc.7. Defesa do desembargador Joo Fernandes de Oliveira. 103

    ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342, doc.7. Defesa do desembargador Joo Fernandes de Oliveira,

    f.54v-65. 104

    ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342, doc.7. Defesa do desembargador Joo Fernandes de Oliveira,

    f.63v. 105

    ANTT. Desembargo do Pao. Ilhas. Mao 1342, doc.7. Defesa do desembargador Joo Fernandes de Oliveira,

    f.101. 106

    ANTT. Cartrios notariais. 5B. Caixa 15, livro 75. Notas. Atual 12, f.77v.

  • Jnia Ferreira Furtado

    22 Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011

    Tratava-se de um pagamento [a]os bons servios que fizeram aos reis nossos predecessores,

    pelos quais mereceram deles serem honrados e acrescentados.107

    Era uma retribuio aos

    sditos leais e honrados, entendida sempre como concesso real, e estava regida pelas leis

    portuguesas. Dessa forma preservavam-se seu nome e seus feitos, para sempre imortalizados

    nos seus sucessores vares, sob o beneplcito da Coroa. Assim, Sua majestade fidelssima,

    por efeito de sua real grandeza e benignidade, fo[i] servido conceder a ele, desembargador

    Joo Fernandes de Oliveira, as faculdades e licenas necessrias para fazer esta instituio de

    morgado na forma da Rgia Proviso,108

    intitulado Morgado do Grij.

    Com o morgado, criava-se um vnculo entre seus bens, que no podiam ser divididos

    ou alienados, e que, com a morte do possuidor, eram transmitidos para o filho primognito.

    No prembulo do documento que institua o morgado do Grij, Joo Fernandes declara

    objetivar o estabelecimento de uma Casa, que[,] conservando perene memria dos

    avantajados benefcios e honras que ele devia ao dito Senhor [rei], se distinguissem seus

    sucessores no zelo e devoo do real servio.109

    Segundo as Ordenaes filipinas, que

    regiam tais atos, a instituio era prerrogativa dos poderosos e caracterizava-se pelo desejo do

    fundador de conservar e aumentar seu nome, ao definir que a inteno dos grandes e

    fidalgos, e pessoas nobres dos nossos reinos e senhorios, que instituem morgados (...), para

    conservao e memria de seu nome e acrescentamento de seus estados, casas e nobreza.110

    Tudo indicava que Joo Fernandes de Oliveira efetivamente conseguira se juntar aos grandes

    do reino. A caracterstica estruturante do morgadio era a linhagem. No se tratava somente de

    regulamentar o destino e a administrao dos bens terrenos: ao perenizar os feitos dos

    antepassados, criava uma cadeia de compromissos entre as geraes e impunha uma srie de

    condutas aos sucessores. A estrita obedincia a essas normas era o fator que condicionava a

    manuteno da posse dos bens e a chefia do cl.111

    Segundo Joo Fernandes, sua inteno era

    andarem seus filhos e descendentes, conforme as clusulas das instituies, que fazem e

    ordenam.112

    Mas as coisas no ocorreram exatamente como previra. A morte de dom Jos I, em

    1777, e a ascenso de sua filha dona Maria I, acarretaram transformaes inquietantes no

    reino, as quais refletiram na casa de Joo Fernandes, em particular nos planos de imortalidade

    que ele pacientemente traara para seu nome e seus bens. Os reveses que o antigo contratador

    107

    Ordenaes filipinas. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, Livro IV, tt. 100, 5.

    108 ANTT. Cartrios notariais. 5B. Caixa. 15, livro 75. Notas. Atual 12, f.75.

    109 ANTT. Cartrios notariais. 5B. Caixa. 15, livro 75. Notas. Atual 12, f.75.

    110 Ordenaes filipinas. Livro IV, tt. 100, 5.

    111 ROSA, Maria de Lurdes. O morgadio em Portugal - scs. XIV-XV. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p.19-20.

    112 Ordenaes Filipinas. Livro

    IV, tt. 100, 5.

  • Nobilitao dos homens de negcio no Ultramar portugus: Pombal e os contratadores dos diamantes

    Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Imprios Ibricos de Antigo Regime | Lisboa 18 a 21 de Maio de 2011 23

    enfrentou nos anos iniciais do reinado da jovem rainha foram demonstrao certeira de que

    ele sempre contara com a proteo especial do marqus de Pombal, e por extenso do prprio

    dom Jos I. Com dona Maria I, a poltica do Reino sofreu inverses - conhecidas como

    Viradeira -, e os protegidos de Pombal, como era o seu caso, se viram ameaados. Na esteira

    das reformas institudas, Joo Fernandes viu sua sorte mudar e at seu morgado chegou a ser

    extinto, impedindo seu imortalizar sua linhagem como pretendia. Seu ocaso simbolizava o fim

    de toda uma era na qual uma classe mercantil, sob a batuta de Pombal, consubstanciando seus

    interesses aos do reino e usufruindo das riquezas de alm-mar, ainda que de forma nem

    sempre legal, ascendera econmica e socialmente, misturando-se nobreza de sangue.


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