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Poemas De António Manuel Pina

Biblioteca da escola secundária de Tondela

Bibliografia

Manuel António Pina, nasceu na Beira Alta, Sabugal,

em 1943. Licenciou-se em Direito pela Universidade

de Coimbra. Vive na cidade do Porto. Foi, durante 30

anos, jornalista profissional do Jornal de Notícias.

Continua a colaborar regularmente na comunicação

social. Foi professor da Escola Superior de Jornalismo

do Porto e membro do Conselho de Imprensa. É autor

de mais de três dezenas de obras de poesia, crónica,

ensaio e literatura infantil e ainda de duas dezenas

de peças de teatro. Obras suas foram levadas ao

cinema, TV e BD, bem como musicadas e editadas em

disco. A sua poesia encontra-se traduzida em

francês, inglês, dinamarquês, espanhol, galego,

alemão, catalão, neerlandês, búlgaro, servo-croata e

corso. A sua obra foi, várias vezes, premiada.

Coisas que não há que há

Uma coisa que me põe triste

é que não exista o que não existe.

(Se é que não existe, e isto é que existe!)

Há tantas coisas bonitas que não há:

coisas que não há, gente que não há,

bichos que já houve e já não há,

livros por ler, coisas por ver,

feitos desfeitos, outros feitos por fazer,

pessoas tão boas ainda por nascer

e outras que morreram há tanto tempo!

Tantas lembranças de que não me lembro,

sítios que não sei, invenções que não invento,

gente de vidro e de vento, países por achar,

paisagens, plantas, jardins de ar,

tudo o que eu nem posso imaginar

porque se o imaginasse já existia

embora num sítio onde só eu ia...

Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu

sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que

não é nada comigo. Distraído percorro

o caminho familiar da saudade,

pequeninas coisas me prendem,

uma tarde num café, um livro. Devagar

te amo e às vezes depressa,

meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,

regresso devagar a tua casa,

compro um livro, entro no

amor como em casa.

Completas

A meu favor tenho o teu olhar

testemunhando por mim

perante juízes terríveis:

a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam

à noite na solidão do quarto

refugiam-se em fundos sítios dentro de mim

quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,

dos demónios da noite e das aflições do dia,

fala em voz alta, não deixes que adormeça,

afasta de mim o pecado da infelicidade.

by evenz

O Medo

Ninguém me roubará algumas coisas,

nem acerca de elas saberei transigir;

um pequeno morto morre eternamente

em qualquer sítio de tudo isto.

É a sua morte que eu vivo eternamente

quem quer que eu seja e ele seja.

As minhas palavras voltam eternamente a essa morte

como, imóvel, ao coração de um fruto.

Serei capaz

de não ter medo de nada,

nem de algumas palavras juntas?

A um Homem do Passado

Estes são os tempos futuros que temia

o teu coração que mirrou sob pedras,

que podes recear agora tão fundo,

onde não chegam as aflições nem as palavras duras?

Desceste em andamento; afinal era

tudo tão inevitável como o resto.

Viraste-te para o outro lado e sumiram-se

da tua vista os bons e os maus momentos.

Tu ainda tinhas essa porta à mão.

(Aposto que a passaste com uma vénia desdenhosa.)

Agora já não é possível morrer ou,

pelo menos, já não chega fechar os olhos.

A Poesia Vai Acabar

A poesia vai acabar, os poetas

vão ser colocados em lugares mais úteis.

Por exemplo, observadores de pássaros

(enquanto os pássaros não

acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao

entrar numa repartição pública.

Um senhor míope atendia devagar

ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum

poeta por este senhor?» E a pergunta

afligiu-me tanto por dentro e por

fora da cabeça que tive que voltar a ler

toda a poesia desde o princípio do mundo.

Uma pergunta numa cabeça.

— Como uma coroa de espinhos:

estão todos a ver onde o autor quer chegar?

By John tarahteeff

ARTE POÉTICA

Vai pois, poema, procura

a voz literal

que desocultamente fala

sob tanta literatura.

Se a escutares, porém, tapa os ouvidos,

porque pela primeira vez estás sozinho.

Regressa então, se puderes, pelo caminho

das interpretações e dos sentidos.

Mas não olhes para trás, não olhes para trás,

ou jamais te perderás;

e teu canto, insensato, será feito

só de melancolia e de despeito.

E de discórdia. E todavia

sob tanto passado insepulto

o que encontraste senão tumulto,

senão de novo ressentimento e ironia?

NA BIBLIOTECA

O que não pode ser dito

guarda um silêncio

feito de primeiras palavras

diante do poema, que chega sempre demasiadamente

tarde,

quando já a incerteza

e o medo se consomem

em metros alexandrinos.

Na biblioteca, em cada livro,

em cada página sobre si

recolhida, às horas mortas em que

a casa se recolheu também

virada para o lado de dentro,

as palavras dormem talvez,

sílaba a sílaba,

o sono cego que dormiram as coisas

antes da chegada dos deuses.

Aí, onde não alcançam nem o poeta

nem a leitura,

o poema está só.

„E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.‟

Eu não procuro nada em ti

Eu não procuro nada em ti,

nem a mim próprio, é algo em ti

que procura algo em ti

no labirinto dos meus pensamentos.

Eu estou entre ti e ti,

a minha vida, os meus sentidos

(principalmente os meus sentidos)

toldam de sombras o teu rosto.

O meu rosto não reflecte a tua imagem,

o meu silêncio não te deixa falar,

o meu corpo não deixa que se juntem

as partes dispersas de ti em mim.

Eu sou talvez

aquele que procuras,

e as minhas dúvidas a tua voz

chamando do fundo do meu coração.

A Pura Luz Pensante

Tudo é tudo ou quase tudo

e nada é a mesma coisa.

Na realidade são tudo coisas indiferentes.

(Imagens...Imagens...Imagens...)

É este o caminho da Inocência? Exis-

te tudo e a aparência de tudo. (Imagens...)

Totalmente tolerante é

a matéria metafórica da infância.

Tenho que tornar a fazer tudo,

a emoção é um fruto fútil, a pura luz

pensando dos dois lados da Literatura.

Aqui estão as palavras, metei o focinho nelas!

O Jardim das Oliveiras

Se procuro o teu rosto

no meio do ruído das vozes

quem procura o teu rosto?

Quem fala obscuramente

em qualquer sítio das minhas palavras

ouvindo-se a si próprio?

Às vezes suspeito que me segues,

que não são meus os passos

atrás de mim.

O que está fora de ti, falando-te?

Este é o teu caminho,

e as minhas palavras os teus passos?

Quem me olha desse lado

e deste lado de mim?

As minhas dúvidas, até elas te pertencem?

Ouro e prata

A flor amarela

era a da urze?

E a de prata

a da giesta?

Pouca coisa são as palavras

e é o que me resta,

o seu ouro derramado

sobre as lembranças:

a palavra urze, a palavra giesta,

os nomes das primeiras esperanças,

o meu nome tantas vezes sussurrado

de tantas maneiras indiferentes!

Agora é

Agora é diferente

Tenho o teu nome o teu cheiro

A minha roupa de repente

ficou com o teu cheiro

Agora estamos misturados

No meio de nós já não cabe o amor

Já não arranjamos

lugar para o amor

Já não arranjamos vagar

para o amor agora

isto vai devagar

isto agora demora

O que é dito

Alguma coisa em algum lugar

de que o que existe de o que não existe

é isto que escreve e a ciência de isto

a pura voz sem sujeito e o fora de ela.

Esta mão é um acontecimento improbabilíssimo

que o infinito e a eternidade atravessam,

alguma coisa fala de si própria através de ela.

De que pode ela falar senão de tudo?

O que está dentro e o que está fora

e vê e é visto de toda a parte

é o mesmo e o outro

e tudo isto é sabido em mim.

Van Gogh Mondrian

Uma vez um anjo apaixonou-se por Van Gogh e veio vê-lo

van Gogh pintou-o naquela cadeira, te acuerdas Frederico

bajo la tierra?

o anjo depois foi-se embora e van Gogh ficou com o

tabaco estragado

mondrian também tinha um anjo mas o dele era mau

não se importava com coisa nenhuma batia-lhe nos olhos

Atropelamento e Fuga

Era preciso mais do que silêncio,

era preciso pelo menos uma grande gritaria,

uma crise de nervos, um incêndio,

portas a bater, correrias.

Mas ficaste calada,

apetecia-te chorar mas primeiro tinhas que arranjar o

cabelo,

perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde,

já não me lembro de que dia, talvez de um dia

em que era eu quem morria,

um dia que começara mal, tinha deixado

as chaves na fechadura do lado de dentro da porta,

e agora ali estavas tu, morta (morta como se

estivesses morta!), olhando-me em silêncio estendida no

asfalto,

e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!

O livro

E quando chegares à dura

pedra de mármore não digas: “Água, água!”,

porque se encontraste o que procuravas

perdeste-o e não começou ainda a tua procura;

e se tiveres sede, insensato, bebe as tuas palavras

pois é tudo o que tens: literatura,

nem sequer mistério, nem sequer sentido,

apenas uma coisa hipócrita e escura, o livro.

Não tenhas contra ele o coração endurecido,

aquilo que podes saber está noutro sítio.

O que o livro diz é não dito,

como uma paisagem entrando pela janela de um quarto

vazio.

Resposta

Algo mais elementar que o espaço e o tempo,

e a escuridão luminosa do Areopagita,

uma hipótese ilegível, antes do pensamento,

uma sílaba só de uma palavra não dita,

sem sentido e sem finalidade, apenas uma ocasião,

como um olho único e cego que vê

do fundo da sepultura da razão,

vaste comme la nuit et comme la clarté.

Um sonho

de uma sombra de quê?

Biblioteca da escola secundária de Tondela


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