2
3
PPLLAATTÃÃOO ((442277--334477 aa..CC..))
AA MMeettááffoorraa ddaa SSeegguunnddaa NNaavveeggaaççããoo ee aa
DDeessccoobbeerrttaa ddoo SSuupprraa--SSeennssíívveell
CAPA: Raffaello Sanzio, La Scuola di Atene, Platão, 1511.
4
5
Edivaldo ROSSI GONÇALVES
PPLLAATTÃÃOO ((442277--334477 aa..CC..))
AA MMeettááffoorraa ddaa SSeegguunnddaa NNaavveeggaaççããoo ee aa
DDeessccoobbeerrttaa ddoo SSuupprraa--SSeennssíívveell
Humanitas Vivens Ltda
Uma Instituição a serviço da Vida!
Sarandi (PR) 2009
6
Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda
EDITOR:
Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS
CONSELHO EDITORIAL:
Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA
Prof. Ms. Fábio Inácio PEREIRA
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CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Gonçalves, Edivaldo Rossi
G635p Platão (427-347a.C.): a metáfora da
segunda navegação e a descoberta do supra-
sensível [recurso eletrônico]
/Edivaldo Rossi Gonçalves. -- Sarandi, Pr
: Humanitas Vivens, 2009.
ISBN: 978-85-61837-07-5
Modo de acesso:
<www.humanitasvivens.com.br>. 1. Platão. 2. Segunda navegação. 3.
Platão - Ideias e princípios. 4. Filosofia.. 5.
Demiurgo.
CDD 21. ed. 100
Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de
responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de
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Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por
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www.humanitasvivens.com.br – [email protected]
Fone: (44) 3042-2233
7
Aos meus pais: Reinaldo Gonçalves Gilabel (in memoriam)
e a minha mãe Helena Rossi Gonçalves.
8
9
AGRADECIMENTOS
Ao Deus de Jesus Cristo, pelo dom da vida.
A Arquidiocese de Maringá, por ter confiado em mim
nestes últimos quatro anos.
A comunidade paroquial do Sagrado Coração de
Jesus de Nova Esperança – PR que sempre me ajudou nos
momentos em que mais precisava.
Aos bibliotecários e às bibliotecárias do Centro de
Ciências Aplicadas e da Saúde, pela excelência no
atendimento às inúmeras solicitações.
Ao meu orientador, o Professor Mestre Luiz Antonio
Belini, pela disponibilidade, apoio e paciência em todas as
etapas de elaboração dessa pesquisa.
Aos amigos, Paulo Henrique de Alencar –
companheiro das aulas de Italiano – Sueli Theobaldo,
Adriano Ferreira Melo e Rodrigo de Karvalho, pelo
estímulo e também pelos momentos de partilha.
A minha família, fonte de ternura e porto seguro nos
momentos de dificuldade.
10
11
Parecia-me que ele se portava como um homem que
dissesse que Sócrates faz tudo o que faz porque age com o
seu espírito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as
causas de tudo o que faço, dissesse que me acho sentado
aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões, e os
ossos são sólidos e separados uns dos outros por
articulações, e os tendões contraem e distendem os
membros, e os músculos circundam os ossos com a carne, e
a pele a tudo envolve!
Platão, Fédon, 98 C.
Queres que te exponha, ó Cebes, a segunda
navegação que empreendi para ir em busca dessa causa [i.é. – a verdadeira causa]?
É impossível que alguém o deseje mais do que eu, respondeu.
Platão, Fédon, 99 D.
12
13
Sumário
1 INTRODUÇÃO ...............................................................................
2 PREMISSA HISTÓRICA .................................................................
2.1 A GRÉCIA E SUA HISTÓRIA ....................................................
2.1.1 A Grécia Clássica .................................................................
2.2 PLATÃO ......................................................................................
2.2.1 A Questão Platônica ..............................................................
2.2.1.1 A autenticidade ............................................................
2.2.1.2 A cronologia ................................................................
2.2.1.3 As Doutrinas não-escritas ..........................................
2.3 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA ARCHÉ .....................
2.3.1 Os Jônicos .............................................................................
2.3.2 Os Pitagóricos ........................................................................
2.3.3 Os Eleatas ..............................................................................
2.3.4 Os Físicos Pluralistas ............................................................
3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E
A DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL ..................................
3.1 A MAGNA CHARTA DA
METAFÍSICA OCIDENTAL ........................................................
3.1.1 O encontro com os físicos .....................................................
3.1.2 A segunda navegação ..........................................................
3.2 A TEORIA DAS IDÉIAS .............................................................
3.2.1 As características metafísico-ontológicas .............................
3.2.1.1 A inteligibilidade e a incorporeidade ...........................
3.2.1.2 O ser em sentido pleno .................................................
3.2.1.3 A imutabilidade e a perseidade .....................................
3.2.1.4 A unidade .....................................................................
3.2.2 O “dualismo” platônico .........................................................
3.3 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS
PRIMEIROS E SUPREMOS ..........................................................
3.3.1 A duplicidade de nível de fundação metafísica .....................
3.3.2 O sistema metafísico bipolar .................................................
17
21
21
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108
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3.3.2.1 O Bem como Uno e como suprema medida ..................
3.3.2.2 O ser como síntese dos Princípios supremos .................
4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E
O SIGNIFICADO E ALCANCE DA
METAFÍSICA DE PLATÃO .............................................................
4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO .................................................
4.1.1 Cosmo sensível: uma emanação necessária? .......................
4.1.2 A conexão estrutural entre a
Inteligência Ordenadora e o Bem ............................................
4.1.3 O Demiurgo e a criação do cosmo físico ..............................
4.1.3.1 O princípio material ......................................................
4.1.3.2 A atividade ordenadora e os entes matemáticos ............
4.1.4 O cosmo físico: beleza e perfeição ...................................
4.2 PAPEL E ALCANCE DA METAFÍSICA DE PLATÃO ...............
4.2.1 O caráter imprescindível da filosofia de Platão ......................
4.2.2 A segunda navegação e a rejeição do materialismo ..............
4.2.3 A teoria das Ideias ..................................................................
4.2.4 A doutrina dos Princípios .......................................................
4.2.5 A doutrina do Demiurgo ........................................................
4.2.5.1 A concepção de Deus em Platão ...................................
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................
REFERÊNCIAS .....................................................................................
APÊNDICES ..........................................................................................
APENDICE A – SÍNTESE: ...................................................................
PLATÃO, A METÁFORA DA SEGUNDA NAVEGAÇÃO E A
DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL ............................................
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................
2 PREMISSA HISTÓRICA ...................................................................
2.1 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA ARCHÉ ..........................
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3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E
A DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL ....................................
3.1 A TEORIA DAS IDEIAS ................................................................
3.2 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS
PRIMEIROS E SUPREMOS .............................................................
4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E
O SIGNIFICADO E ALCANCE DA
METAFÍSICA DE PLATÃO .............................................................
4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO ...................................................
4.2 PAPEL E ALCANCE DA
METAFÍSICA DE PLATÃO .............................................................
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................
REFERÊNCIAS ...................................................................................
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17
1 INTRODUÇÃO
A origem da filosofia está ligada à busca pelo
princípio de todas as coisas. Para o grego antigo, podemos
afirmar que conhecemos algo quando conhecemos sua
causa, isto é, aquilo pelo qual algo existe. Nessa mesma
perspectiva, os primeiros filósofos afirmam que explicar é
unificar, ou seja, quem se propõe a explicar algo deve estar
apto a reduzir a multiplicidade a um princípio originário
único causador de todas as coisas – a arché.
Com efeito, ao buscar pelo princípio de todas as
coisas, a filosofia antiga tem em vista a totalidade do ser e
do real. De Tales de Mileto a Platão esta busca esteve
relacionada a questões metafísicas ligadas à causa da
geração, da corrupção e do ser das coisas. A problemática
de fundo apresentava-se da seguinte forma: Por que as
coisas se geram? Por que se corrompem? Por que existem?
Inicialmente, acreditava-se que a arché poderia ser
encontrada no âmbito da própria physis, na realidade
empírica. Com esse intuito, os primeiros filósofos
mobilizaram suas forças e direcionaram toda a sua atenção
para uma investigação incansável da natureza. O que, por
sua vez, justifica o fato de serem denominados físicos ou
naturalistas.
Apesar de todos terem como ponto de partida a
pergunta – Qual é o princípio de todas as coisas? – suas
conclusões mostraram-se divergentes e, até mesmo,
18
contraditórias. A metodologia adotada pelos naturalistas,
longe de esclarecer a causa da geração, da corrupção e do
ser das coisas, tornava-a ainda mais confusa e de difícil
compreensão.
Platão lê os naturalistas e constata que não
conseguiram alcançar uma resposta satisfatória ao problema
da arché, porque restringiram sua investigação ao âmbito da
physis. O problema dos naturalistas estava no método que
haviam empregado – ficaram presos aos sentidos. Ele
conclui que, somente ao adotar uma nova metodologia e ao
redirecionar a pesquisa, poderia chegar a uma resposta
satisfatória para a causa da geração, da corrupção e do ser
das coisas.
É diante deste contexto que Platão empreende a
guinada metodológica que ele mesmo denominou de
segunda navegação e que tem como resultado a descoberta
da dimensão metafísica do ser. Com efeito, a primeira
navegação é aquela feita com as velas ao vento e
corresponde à investigação realizada pelo impulso da
filosofia da physis. A segunda navegação é aquela feita com
os remos e refere-se ao novo método proposto por Platão
fundado sobre os raciocínios e os postulados racionais que
conduzem à descoberta de uma nova dimensão do ser.
A metáfora da segunda navegação constitui o
símbolo de acesso à dimensão supra-sensível e, como tal,
apresenta os três domínios fundamentais da teorização
metafísica de Platão: a teoria das Ideias; a doutrina dos
Princípios primeiros e supremos; a doutrina do Demiurgo.
Apesar de distintos, estes três âmbitos da metafísica
platônica estão em estreita conexão.
19
Somente se considerarmos a estreita conexão
existente entre teoria das Ideias, doutrina dos Princípios e
doutrina do Demiurgo, as questões ligadas à causa da
geração, da corrupção e do ser das coisas encontram uma
resposta satisfatória em Platão. Fora dessa visão de
conjunto, as respostas apresentam-se parciais e lacunares.
As linhas que se seguem propõem o estudo desses três
domínios da metafísica de Platão.
No primeiro capítulo, apresentamos as questões que
julgamos necessárias para reconstruir, ainda que
parcialmente, o horizonte histórico contemplado por Platão.
Particular atenção foi dispensada ao período Clássico da
história da Grécia, à vida de Platão e à problemática
filosófica que envolveu os naturalistas na busca pela arché.
No segundo capítulo, dedicamo-nos à discussão sobre
a segunda navegação platônica e a descoberta do ser supra-
sensível. Por sua vez, abordamos as questões referentes à
teoria da Ideias, que possibilitou, a Platão, explicar as coisas
não mais por elas mesmas, mas em função de realidades
inteligíveis; e também à doutrina dos Princípios que são o
fundamento da própria teoria das Ideias e constituem a
esfera suprema e primeira em sentido absoluto.
A abordagem da doutrina do Demiurgo, por pressupor
tanto a teoria das Ideias quanto a doutrina dos Princípios, foi
reservada para o terceiro capítulo. Neste último capítulo,
procuramos discorrer, ainda que sinteticamente, sobre o
papel e o alcance da metafísica de Platão, numa tentativa de
demonstrar o seu legado para a filosofia ocidental.
20
21
2 PREMISSA HISTÓRICA
Diante da novidade apresentada pela filosofia de
Platão, julgamos necessário dedicar maior atenção a seu
contexto. Além das informações de cunho mais geral,
buscamos apresentar o itinerário que Platão percorreu em
seus 80 anos de vida e lembramos que é frente à
problemática levantada pelos naturalistas, em sua incansável
busca pela arché, que podemos vislumbrar “a principal
novidade da filosofia platônica”1: a descoberta da dimensão
metafísica do ser.
2.1 A GRÉCIA E SUA HISTÓRIA
A história da Grécia Antiga pode ser dividida em
quatro grandes períodos: o período Pré-homérico, o período
Homérico, o período Arcaico e o período Clássico. O
período Pré-homérico compreende um arco de tempo que
vai desde os primórdios da ocupação humana na Grécia até
o século XII a.C. Este período é marcado por quatro grandes
invasões dos povos indo-europeus2 que, paulatinamente,
1 REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. 2. ed. São Paulo:
Paulus, 2004, p. 137. 2 GIORDANI, M. C. História da Grécia. 7. ed. Petrópolis: Vozes,
2001, p. 88, afirma que a expressão indo-europeu possui mais um
sentido linguístico que propriamente racial.
22
deram origem ao povo grego: os aqueus, os jônios, os eólios
e os dórios.
O período Homérico compreende do século XII ao
século VIII a.C. As principais fontes desse período são as
obras atribuídas a Homero, ou seja, a Ilíada e a Odisséia.
Este período é marcado por evoluções: político-social –
passagem dos genos à pólis, de um regime patriarcal para
um regime oligárquico; evolução econômica – da passagem
do pastoreio para a agricultura; evolução religiosa –
concretizada no processo de humanização e maior
conhecimento das divindades até então distantes,
misteriosas e desconhecidas.
No período Arcaico, que se estende do século VIII ao
século V a.C., temos a consolidação da polis grega, isto é,
da cidade-Estado, organização típica da Grécia antiga: o
centro da sociedade grega. Werner Jaeger afirma que “a
polis é o centro principal a partir do qual se organiza
historicamente o período mais importante da evolução
grega. Situa-se, por isso, no centro de todas as
considerações históricas”3. Dentre as várias cidades-Estado
que se consolidaram nesse período, Atenas e Esparta
destacam-se como as mais importantes.
Por fim, o período Clássico compreende os séculos V
e IV a.C. Um período agitado e de profundas
transformações. Em virtude de sua relevância, deter-nos-
emos um pouco mais em algumas de suas características
significativas.
3 JAEGER, W. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.
106.
23
2.1.1 A Grécia Clássica
O início do período Clássico foi marcado pelas
guerras entre os gregos e os persas: as Guerras Médicas.
Essas Guerras assinalaram profundamente os gregos.
Tucídides, ao escrever a História da Guerra do Peloponeso
e ao passar em revista a história da Grécia, chega afirmar
que “o acontecimento mais importante dos tempos passados
foi a guerra com os persas, e todavia ela foi prontamente
decidida em dois combates navais e duas batalhas
terrestres”4.
Os combates navais a que Tucídides se refere são os
de Artemísion e Salamina, dos quais sobressai o nome de
Temístocles e sua habilidade tática. As batalhas terrestres
são as de Termópilas, com destaque especial para os
trezentos soldados espartanos liderados pelo general
Leônidas que lutaram bravamente até a morte, e Platéias
com a aniquilação do exército persa pelos hoplitas
espartanos e atenienses liderados pelo general-chefe
Pausânias.
Mario Curtis Giordani, referindo-se às guerras entre
gregos e persas afirma:
A luta entre Gregos e Persas é um desses episódios
decisivos da História da Humanidade. Mais que as
4 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 3. ed. Brasília:
UnB, 1987, I, 23, p. 28.
24
forças armadas, chocam-se duas culturas opostas: de
um lado, um império absoluto, heterogêneo,
obedecendo como um autômato a um senhor
despótico; de outro lado, pequenas cidades
orgulhosas de sua independência, unidas por uma
língua e por inúmeras tradições comuns, conscientes
do papel que desempenharam na luta feroz contra o
invasor da pátria5.
As Guerras Médicas mudaram os rumos da história da
Grécia. Por ocasião da primeira ofensiva persa, que chegou
ao fim com a batalha de Maratona, em 490 a.C., temos a
reorientação política e econômica de Atenas para o mar:
primeiro com a aquisição do Pireu, depois com a construção
de uma frota que a transformou na maior potência marítima
da Grécia.
Por conseguinte, mesmo após a derrota em Platéias,
os persas impunham certo medo às cidades gregas e ainda
mantinham algumas cidades sob seu domínio. Era preciso
tomar alguma providência. Nasce então a Liga de Delos
que, liderada por Atenas, tinha um duplo objetivo: proteger
as cidades gregas de novos ataques persas e libertar aquelas
cidades que ainda estavam sob domínio inimigo.
A sede da Liga estava situada na pequena ilha de
Delos, onde existia um importante santuário dedicado a
Apolo. Nesta mesma ilha, era guardado o tesouro da Liga,
fruto dos tributos e da contribuição dos aliados, destinado à
manutenção da frota e dos exércitos. A paz entre gregos e
persas foi selada apenas em 448 a.C., com o Tratado de
Susa ou Paz de Cálias. Esse tratado possibilitou o
5 GIORDANI, M. C. Op. cit., p. 118.
25
florescimento do comércio entre Atenas e o Oriente. Agora,
o inimigo já não era mais o império persa, mas uma outra
cidade-Estado grega: Esparta.
Ao final da guerra com os persas, Atenas era a cidade
mais poderosa da Grécia. Por sinal, com o desaparecimento
da ameaça persa, a Liga já não tinha mais razão para existir.
Porém, ao contrário do esperado, Atenas manteve a Liga e a
cobrança de tributos. A antiga associação defensiva assumia
agora as dimensões de um poderoso império: o Império
Ateniense. De fato, em 450 a.C., o tesouro da Liga já tinha
sido transferido de Delos para Atenas. Quanto ao destino do
tesouro, Jean-Joël Duhot apresenta-nos claramente:
Por ocasião de sua invasão, os persas tinham
destruído a Acrópole. Péricles a faz reconstruir, sob
a direção de Fídias, nos anos 440, mas as despesas
da construção vieram rapidamente a exceder os
recursos financeiros da cidade. É então que decide
utilizar o tesouro dos aliados para acabar o
Partenon. A oposição aristocrática se indigna, mas o
dirigente democrata responde que, como Atenas
garante a segurança de seus aliados, não tem de dar conta da utilização que faz da contribuição à liga6.
Com Péricles, Atenas atinge seu período áureo. Os
anos de 446 a 431 a.C. entraram para a história como os
anos de apogeu da civilização grega. O florescimento de
Atenas manifesta-se nos mais diversos aspectos: na
arquitetura, com Ictino; na escultura, com Fídias, o
responsável pela reconstrução do Partenon, templo onde
6 DUHOT, J.-J. Sócrates ou o Despertar da Consciência. São Paulo:
Loyola, 2004, p. 28.
26
esculpiu uma estátua da deusa Atena em ouro e marfim; no
teatro, com Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes; na
pesquisa histórica, com Heródoto e Tucídides; na filosofia,
com os Sofistas e com Sócrates; na política, com o
fortalecimento da democracia.
O próprio Péricles, em sua célebre oração fúnebre,
apresenta o perfil de Atenas e dos atenienses do século V:
Vivemos sob uma forma de governo que não se
baseia nas instituições de nossos vizinhos; ao
contrário, servimos de modelo a alguns ao invés de
imitar outros. Seu nome, como tudo depende não de
poucos mas da maioria, é democracia. [...]
Instituímos muitos entretenimentos para o alívio da
mente fatigada; temos concursos, temos festas
religiosas regulares ao longo de todo o ano [...].
Nossa cidade é tão importante que os produtos de
todas as terras fluem para nós [...]. Somos amantes
da beleza sem extravagâncias e amantes da filosofia
sem indolência. [...] Decidimos as questões públicas
por nós mesmos, ou pelo menos nos esforçamos para
compreendê-las claramente, na crença de que não é o
debate que é empecilho à ação, e sim o fato de não se
estar esclarecido pelo debate antes de chegar a hora
da ação. [...] Em suma, digo que nossa cidade, em
seu conjunto, é a escola de toda a Hélade e que,
segundo me parece, cada homem entre nós poderia,
por sua personalidade própria, mostrar-se auto-
suficiente nas mais variadas formas de atividade, com a maior elegância e naturalidade7.
7 TUCÍDIDES. Op. cit, II, 37-46, p. 98 et seq.
27
Mas Atenas florescia a custa do dinheiro das outras
cidades da Liga. O descontentamento crescia e a rivalidade
e o contraste entre Atenas e Esparta também. A oposição
entre as duas cidades manifestava-se desde a concepção de
vida até o regime político e econômico – Esparta, protetora
natural das aristocracias; Atenas, que obrigava seus aliados
a adotarem o regime democrático.
As cidades-Estado descontentes com o jugo imposto
por Atenas foram buscar auxílio em Esparta. De fato, há
muito tempo, ela estava descontente com os rumos tomados
por Atenas. As rivalidades recíprocas as conduziriam a um
dos conflitos mais longos e mais sangrentos de toda a
história da Grécia – a Guerra do Peloponeso. Tucídides –
testemunha ocular do conflito – afirma que:
A guerra do Peloponeso estendeu-se por longo
tempo, e no seu curso a Hélade sofreu desastres como
jamais houvera num lapso de tempo comparável.
Nunca tantas cidades foram capturadas e devastadas,
algumas pelos bárbaros, outras pelos próprios
helenos combatendo uns contra os outros, enquanto
algumas, após a captura, sofreram uma mudança
total de habitantes. Nunca tanta gente foi exilada ou
massacrada, quer no curso da própria guerra, quer em decorrência de dissensões civis8.
De fato, foram 27 anos de guerra, de 431 a 404 a.C.
Durante o conflito, as cidades-Estado se polarizaram na
Liga de Delos, liderada por Atenas, e na Liga do
Peloponeso, liderada por Esparta, tendo como principais
aliados Corinto e Mégara.
8 Ibidem, I, 23, p. 28 et seq.
28
Enquanto Atenas detinha a hegemonia marítima,
Esparta detinha o domínio terrestre. Já nos primeiros anos
da Guerra, Atenas sofre um duplo golpe: a peste que arrasou
sua população e a morte de Péricles. Em 421, Atenas e
Esparta assinaram a Paz de Nícias e chegaram, até mesmo, a
celebrar uma aliança: atenienses e espartanos seriam aliados
por cinquenta anos9. Porém, nem todos os aliados de Esparta
ficaram satisfeitos; a paz não poderia ser duradoura.
Neste ínterim, o fantasma persa levantava-se
novamente no Oriente. Por terra, Esparta era imbatível; a
vitória ateniense seria alcançada apenas com o controle
absoluto do mar. Porém, o poderio de Siracusa, na Sicília,
era obstáculo para a concretização dos objetivos atenienses.
Assim, de 415 a 413 a.C., Atenas empreendeu a
campanha da Sicília sob o comando dos estrategos Nícias,
Lâmaco e Alcibíades – autor e líder da expedição, pupilo de
Péricles e discípulo de Sócrates. Os três estrategos se
desentenderam. Alcibíades, acusado de sacrilégio, foi
chamado a Atenas para justificar-se, entretanto foge e, ao
tomar conhecimento de sua condenação, alia-se aos
espartanos e trai Atenas. Siracusa pede auxílio à Esparta e
Atenas sofre a maior derrota de sua História – perderam
toda a frota, os mortos não foram sepultados e os feridos
foram abandonados. Vejamos o relato de Tucídides:
Aquela era, com efeito, a maior reviravolta jamais
ocorrida com uma expedição helênica, pois ela, que
viera para escravizar outros povos, voltava com o
temor de ter seus componentes reduzidos à
escravidão, e em vez de preces e hinos, ao som dos
9 Cf. TUCÍDIDES. Op. cit., V, 22 – 24, p. 253 et seq.
29
quais havia partido na vinda, estava agora
regressando sob imprecações inteiramente diferentes;
finalmente, seus homens iam como soldados de
infantaria em vez de marinheiros, e dependendo de hoplitas em vez de contar com uma frota10.
A derrota ateniense foi completa. Grande parte do
contingente foi exterminada e os sobreviventes
escravizados. Até mesmo Nícias foi executado. Não
bastasse a derrota na Sicília, os espartanos ainda invadiram
a Ática e se fortificaram na Decélia, cerca de vinte
quilômetros de Atenas. A situação ateniense se agravaria
ainda mais com a aliança dos espartanos com os persas.
Entretanto, Alcibíades afasta-se dos espartanos e, mesmo no
exílio, acena para a possibilidade de uma aliança entre
atenienses e persas, desde que a democracia fosse abolida.
Após o desastre siciliano, a oligarquia ateniense –
desejosa pelo fim da guerra – assume o poder, em 411 a.C.,
e suprime as antigas magistraturas, estabelecendo o
Conselho dos Quatrocentos11. No entanto, o partido
democrata restaurou a democracia em 407 a.C. e adotou
como lema uma luta até o fim12. As negociações com os
persas haviam fracassado. Alcibíades é reintegrado, assume
10 Ibidem, VII, 75, p. 377. 11 A tomada do poder pelos oligarcas, em 411, ao menos no que diz
respeito à crueldade, parece antecipar o governo dos Trinta Tiranos de
404 a 403. Tucídides fala do assassinato de um certo Androcles – líder
popular e exímio defensor do exílio de Alcibíades – e de várias outras
pessoas que lhes faziam oposição e que pareciam-lhes inconvenientes.
Verdadeiramente, com o relato de Tucídides salta a nossos olhos uma
cega e estúpida chacina comandada pelos oligarcas. Cf., TUCÍDIDES.
Op. cit., VIII, 65, 70 e 74. 12 Cf. ROSTOVTZEFF, M. Op. cit., p. 170.
30
o comando das tropas atenienses em Cízico e tem seu
retorno garantido a Atenas, onde é aclamado como general
chefe. Contudo, ao ser responsabilizado e condenado pelo
fracasso ateniense em Nócio, nas proximidades de Éfeso,
foge para a Ásia Menor de onde passou a observar o
desenrolar da guerra.
Os espartanos, sob o comando do general Lisandro,
aliaram-se novamente aos persas que, sob o comando de
Ciro – o Jovem – passaram a subsidiar a frota espartana.
Atenas ainda infligiria uma última derrota a sua rival na
batalha naval em Arginusas, no Helesponto, no ano de 406
a.C. Jean-Joël Duhot assim apresenta o episódio e seus
desdobramentos:
Atenas tinha reunido suas últimas forças, chegando a
oferecer a liberdade e a cidadania aos escravos para
mobilizá-los. O sobressalto teve êxito, mas a
tempestade se levanta logo depois da batalha e
impede os vencedores de socorrer os náufragos dos
25 navios gregos perdidos. Dos oito estrategos em
causa, dois preferem pôr-se ao abrigo e não
regressam. Os seis outros encontram-se acusados. O
processo se desenrola em um lamentável apelo à
emoção popular, associado a uma manipulação
processual que termina com a condenação à morte
dos estrategos, aos quais Atenas devia sua salvação –
entre eles o último filho sobrevivente de Péricles com
Aspásia (os dois outros tinham morrido de peste)13.
Por ocasião do julgamento, Sócrates tinha assento na
Assembleia, tentou reconduzir à legalidade e à razão a
13 DUHOT, J.-J. Op. cit., p. 54 et seq.
31
multidão ensandecida, mas seus esforços de nada
adiantaram. A democracia ateniense deixava transparecer
cada vez mais sua fragilidade. Atenas vivia um período de
descontrole e desequilíbrio emocional. Sócrates estava
decepcionado com a democracia, mas “talvez a experiência
tenha sido mais traumatizante e decisiva para Platão, na
época com 22 anos”14. O restante da frota ateniense foi
exterminada por Lisandro em 405 a.C., na batalha de Argos-
Pótamos. No ano seguinte, ele sitiou o Pireu com uma
poderosa esquadra e o exército peloponésio acampou diante
dos muros de Atenas.
A fome e as divergências políticas levaram Atenas à
rendição, obrigando-a a aceitar os termos de paz: as
muralhas da cidade e do Pireu foram destruídas; a frota, com
exceção de doze navios, também foi destruída; as
possessões foram abandonadas; os exilados políticos
receberam permissão para retornar; e Atenas foi forçada a
unir-se à liga lacedemônia, numa aliança defensiva e
ofensiva com Esparta sob a hegemonia da mesma. Em lugar
do governo democrático, Lisandro instituiu o governo
oligárquico dos Trinta Tiranos com total autoridade sobre a
vida dos cidadãos.
Os oligarcas repetiram o que já haviam feito em 411.
Sem demora, aplicaram-se a eliminar seus inimigos. Agiam
com brutalidade e condenavam à morte sem julgamento
aqueles que lhes faziam oposição. Quanto ao número
daqueles que foram assassinados, as fontes são divergentes e
os números são impressionantes: em oito meses de governo,
14 DUHOT, J.-J. Op. cit., p. 55.
32
os Trinta teriam executado de 1.500 a 2.500 atenienses15. Os
Trinta foram derrubados por Trasíbulo, o restaurador da
democracia ateniense.
Com a queda de Atenas, Esparta passou a exercer a
hegemonia na Grécia. Os regimes oligárquicos
multiplicaram-se. Beneficiária da Paz do Rei – de 386 –
Esparta chegou ao mais alto grau de seu poder e governou o
Peloponeso com pulso de ferro. Todavia, Atenas
recuperava-se gradualmente – reconstruiu as muralhas,
organizou um novo exército e uma nova esquadra,
recuperando o domínio do mar.
Contudo, são os tebanos e não os atenienses que
puseram fim à hegemonia espartana em 371 a.C. com a
batalha de Leuctras. As guerras frequentes esgotaram e
enfraqueceram os gregos e, em 360 a.C., nenhuma cidade
estava em condições suficientes para se impor às demais.
Filipe da Macedônia, com sua personalidade forte,
apoiado por um poderoso exército e consciente da profunda
desunião reinante entre os helenos, inicia o processo de
conquista da Grécia que culminaria em, 338 a.C., na batalha
de Queronéia, com a vitória do exército macedônico –
comandado pelo jovem Alexandre – sobre os atenienses e
tebanos. O domínio macedônio sobre a Grécia marca o fim
do período Clássico e o início do período Helenístico.
15 Cf. FERREIRA, J. R. Atenas, uma democracia? In: Línguas e
Literaturas. Revista da Faculdade de Letras do Porto. Porto: FLUP,
1989, p. 183.
33
2.2 PLATÃO
Platão nasceu em Atenas no ano 428/27 a.C. Seus
pais, Ariston e Perictione, também chamada Potone,
pertenciam a uma tradicional família aristocrata ateniense16.
O pai era descendente do rei Codro, fundador de Atenas, já
a descendência da mãe remontava a Sólon, o grande
legislador. Platão teve ainda dois irmãos, Adimanto e
Glauco, uma irmã chamada Potone e também um meio
irmão por parte de mãe conhecido pelo nome de Antifonte17.
A tradição familiar certamente exerceu forte
influência na vida de Platão, principalmente no que se refere
às questões políticas. De fato, na Carta VII, encontramos
uma declaração pontual a esse respeito: “quando moço,
aconteceu comigo o que se dá com todos: firmei o
16 Quanto à filiação de Platão, ver, sobretudo, o doxógrafo do início
do século III, LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos
Ilustres. 2. ed. Brasília: UnB, 1987, III, 1 et seq. p. 85. Conferir
também REALE, G; ANTÍSERI, D. Op. cit., p. 132; ABBAGNANO,
N. História da Filosofia. 6. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1999, p.
93; CHAUÍ, M. Introdução à História da Filosofia. 2. ed. São Paulo:
Cia. das Letras, 2007, p. 212; e a introdução de PESSANHA, J. A. M.
ao volume PLATÃO. Diálogos. O Banquete, Fédon, Sofista, Político.
2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. IX. 17 Cf. PLATÃO. Parmênides. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,
1974, 126 B. Ao que tudo indica, Antifonte é filho do segundo
casamento de Perictione com Pirilampo.
34
propósito, tão logo me tornasse independente, de ingressar
na política”18.
Seu verdadeiro nome era Aristocles, Platão era apenas
um apelido. Diógenes Laércio apresenta duas versões para a
origem da alcunha:
[Segundo o doxógrafo, nosso autor] praticou
ginástica com Aríston, o lutador argivo, de quem
recebeu o nome de Platão por causa de sua
constituição robusta (originalmente seu nome era
Aristoclés, em homenagem ao avô, como diz
Alêxandro na Sucessão dos Filósofos). Outros
autores afirmam que ele recebeu o nome de Platão
por causa da amplitude de seu estilo, ou em decorrência de sua ampla fronte, como diz Neantes19.
Quanto a essas afirmações, Giovanni Reale lembra
que, em grego, πλατος significa amplidão, largura, extensão,
e que desse termo deriva o nome Platão.
Sobre sua educação, pouco se sabe, entretanto, como
sua família pertencia à aristocracia ateniense, acredita-se
que tenha recebido a educação clássica ginástico-musical:
“o ginásio para a formação do guerreiro belo; a música e os
poetas, para a formação do guerreiro bom”20.
18 PLATÃO. Carta VII. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975,
324 B. 19 LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 4. p. 85 et seq. 20 CHAUÍ, M. Op. cit., p. 212.
35
Segundo testemunho de Aristóteles21, Platão ainda
jovem teria sido discípulo do heraclitiano Crátilo. O
encontro com Sócrates teria acontecido posteriormente:
Platão teria aproximadamente 20 anos, e Sócrates, cerca de
60 anos. Platão tornou-se seu discípulo mais importante,
frequentando-o por 8 anos, ou seja, até a morte de Sócrates,
em 399 a.C. As motivações que o levaram a frequentar o
círculo socrático, ao menos de início, não eram diferentes
daquelas da maioria dos jovens de seu tempo: não via a
filosofia como tendo um fim em si mesma, mas como um
meio para melhor se preparar para o exercício da vida
política.
Foi durante o governo dos Trinta Tiranos (404 – 403)
que Platão teve seu primeiro contato direto com a política.
Dois deles eram seus parentes: Cármides era irmão de
Perictione, mãe de Platão; e Crítias era tio de Perictione.
Com efeito, a grande chacina promovida pelos Trinta
impressionou muito Platão. A decepção foi tão grande a
ponto de ele declarar na Carta VII:
Imaginava que eles governariam a cidade fazendo-a
passar das vias da injustiça para as da justiça, o que
me despertou a curiosidade de ver como se
comportariam em semelhante conjuntura. Ora, o que
eu vi foi que em pouquíssimo tempo esses homens
deixaram parecida a antiga ordem de coisas com a
verdadeira idade de ouro. Como exemplo de suas
arbitrariedades, bastará notar o que fizeram com o
meu velho amigo Sócrates, que eu não vacilo em
proclamar o varão mais justo do seu tempo;
21 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2005, A, 987 a,
p. 35.
36
incumbiram-no de, com outros, trazer a força um
cidadão para ser executado, o que era meio de obrigá-los a apoiar sua política22.
Platão refere-se aqui à tentativa frustrada dos Trinta
em envolver Sócrates na condenação de Leon de Salamina,
cujos bens tinham o interesse de confiscar. Com a queda dos
Trinta, ele acabou se envolvendo politicamente na
restauração da democracia em Atenas, porém, com menos
entusiasmo23.
A grande decepção de Platão com a política ainda
estava por vir: o julgamento e a condenação de Sócrates à
morte. Tal fato o fez refletir sobre as condições da vida
política e sobre a constituição do Estado. Finalmente,
chegou a seguinte conclusão: “não cessarão os males para o
gênero humano antes de alcançar o poder a raça dos
verdadeiros e autênticos filósofos ou de começarem
seriamente a filosofar, por algum favor divino, os dirigentes
das cidades”24.
Após a morte de Sócrates, “Platão retirou-se para
Mégara com outros discípulos de Sócrates, indo juntar-se a
Euclides”25 que havia fundado uma escola, vinculando o
socratismo e o eleatismo. Segundo consta, sua permanência
em Mégara não foi longa: cerca de três anos. Diógenes
22 Carta VII, 324 D – 325 A. 23 Ibidem, 325 B. 24 Carta VII, 326 B. 25 LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 6, p. 86. REALE, G, História da
Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994, p. 8, interpreta este fato
como a maneira encontrada por Platão de evitar possíveis
perseguições, pois era de se esperar que, com a morte de Sócrates,
seus discípulos também fossem perseguidos.
37
Laércio apresenta o restante do itinerário percorrido por
Platão, afirmando que:
[De Mégara, ele] prosseguiu para Cirene em visita
ao matemático Teôdoros, e de lá foi para a Itália a
fim de encontrar-se com os pitagóricos Filôlaos e
Êuritos; da Itália viajou para o Egito em visita aos
profetas, segundo dizem, acompanhado por Eurípides
[...]. Platão pretendia ainda encontrar-se com os
Magos, porém foi impedido de fazê-lo pela guerra da
Ásia26.
No início da Carta VII27 Platão fornece uma
informação valiosa: “por ocasião de minha primeira viagem
a Siracusa, eu poderia ter quarenta anos”. Esta viagem teria
acontecido por volta de 388 a.C. e Platão teria ido a Siracusa
- na Sicília - a convite do tirano Dionísio I, cunhado de
Díon. Todavia, seus autotestemunhos confirmam apenas as
viagens à Itália28.
26 Ibidem, III, 6 et seq., p. 86. 27 Carta VII, 234 A. 28 Quanto às viagens a Cirene e ao Egito, a Carta VII não fala
absolutamente nada. REALE, G. Op. cit., p. 8, diz apenas que, delas,
“não temos confirmação”. Encontramos uma postura mais
conciliadora em REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. 2.
ed. São Paulo: Paulus, 2004. p. 133, eles afirmam que, “se esteve
também no Egito e em Cirene, como se conta, tais viagens devem ter
acontecido antes de 388 a.C.”. ABBAGNANO, N. Op. cit,. p. 94,
admite que elas “não são, contudo, inverossímeis, e a viagem ao Egito
pode ser considerada provável devido às inúmeras referências
freqüentes, nos diálogos, à cultura egípcia”. DUMONT, J.-P.
Elementos de História da Filosofia Antiga. Brasília: UnB, 2004, p.
264, também afirma que ele foi ao Egito e, “a exemplo dos gregos de
sua época, Platão ficou fascinado pelo Egito”. CHAUÍ, M. Op. cit., p.
38
Platão acreditava ter encontrado a oportunidade de
colocar em prática seu ideário político do rei-filósofo.
Contudo, não foi bem isso que aconteceu. Em Siracusa,
estabeleceu fortes laços de amizade com Díon, mas logo se
desentendeu com Dionísio I. Em represália, foi vendido
como escravo no mercado de Egina, mas Anicérides de
Cirene o resgatou e o mandou para Atenas.
Ao retornar a Atenas, Platão fundou a Academia, num
ginásio situado no jardim dedicado ao herói Academos. “A
Academia foi o primeiro instituto de investigação filosófica
do Ocidente”29. Ela formou os mais importantes
matemáticos, astrônomos e futuros políticos da Grécia
Clássica e filósofos, como Espeusipo – sobrinho e sucessor
de Platão na direção da Academia; Xenócrates, sucessor de
Espeusipo na direção da Academia; Heráclides do Ponto e,
sobretudo, Aristóteles – “o maior discípulo do Platão”30.
A segunda viagem de Platão à Sicília data de 367 a.C.
Dionísio I falecera e seu filho, Dionísio II, o sucedeu.
Persuadido por Díon, acreditou ter chegado a oportunidade
de pôr em prática seus projetos de legislação e de governo31.
214, omite a passagem de Platão por Mégara e apresenta a viagem a
Cirene e ao Egito, sem ao menos discutir a questão de sua veracidade
ou não. PESSANHA, J. A. M. Op. cit., p. XI, afirma que, da ida de
Platão ao Egito, “quase nada se sabe com segurança. Certo é que, em
Cirene, inteirou-se das pesquisas matemáticas desenvolvidas por
Teodoro”. Segundo Luc Brisson, é impossível saber se Platão visitou
o Egito. Seu texto: O Egito de Platão é muito esclarecedor quanto a
essa questão: BRISSON, L. Leituras de Platão. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003. 29 CHAUÍ, M. Op. cit., p. 226. 30 LAÊRTIOS, D. Op. cit., V, 1, p. 129. 31 Cf. Carta VII, 328 C.
39
Como estava enganado: em poucos meses Díon foi exilado e
ele foi mantido quase como prisioneiro! Vejamos o relato de
Platão acerca da segunda viagem a Siracusa:
Ao chegar – precisarei resumir – só encontrei
discórdias na corte de Dionísio, e Díon caluniado
junto do tirano. Defendi-o mais que pude, mas podia
muito pouco; porém, passados cerca de quatro meses
Dionísio acusou Díon de conspirar contra a tirania,
meteu-o numa pequena embarcação e o baniu
ignominiosamente. Depois desse fato, todos os
amigos de Díon ficamos receosos de algum de nós ser
acusado e castigado como participante das
maquinações de Díon. A meu respeito, correu o boato
de que Dionísio me mandara matar, como principal
responsável por tudo o que se dera. Porém ele,
vendo-nos naquele estado e receando que nosso medo
tivesse conseqüências graves, tratou-nos com
bondade; a mim, particularmente, encorajou-me,
concitando-me a ter confiança nele e, de toda
maneira, a não partir, pois minha fuga não lhe
ensejaria nada bom, o que se daria se eu ficasse. [...]
Como sua intenção fosse impedir minha partida, fez-
me conduzir e alojar na Acrópole, de onde nenhum
capitão de barco me teria retirado, a não ser com a
apresentação de uma ordem expressa de Dionísio,
para não formularmos a hipótese de que o fizesse contra sua vontade32.
Como a Sicília estava em guerra, Platão recebeu
autorização para retornar a Atenas, mas Dionísio II disse
que o chamaria de volta assim que seu poder estivesse um 32 Ibidem, 329 C – E.
40
pouco mais consolidado. Platão estava desiludido.
Chegando a Atenas, reencontrou Díon que passou a
frequentar a Academia.
Seis anos depois, ou seja, em 361 a.C., Platão
empreendeu uma terceira viagem à Sicília. Díon o
convencera a retornar a Siracusa na esperança de que
também lhe fosse permitido retornar à pátria. Ademais, da
Sicília, “chegavam notícias insistentes de que Dionísio
passara a revelar gosto extraordinário para a filosofia”33.
A terceira viagem de Platão a Siracusa proporcionou-
lhe mais decepções. O resultado foi desastroso. Dionísio
mostrou-se intransigente em tudo. Platão não conseguiu
exercer nenhuma influência em relação a ele. Dionísio não
resistiu às provas do seu ensino e, mais uma vez, manteve
Platão quase como um prisioneiro.
O relacionamento entre o tirano e o filósofo estava
cada dia mais conflituoso. Contudo, Dionísio procurava
manter as aparências a todo custo, a ponto de toda a Sicília
pensar que eram grandes amigos34. De fato, Platão
conseguiu livrar-se dele somente com a ajuda de Arquitas e
outros amigos de Tarento que, sob o pretexto do envio de
uma embaixada oficial, intercedeu por ele junto ao tirano,
que concordou imediatamente com sua partida35.
Platão retornou a Atenas em 360 a.C., permanecendo
na direção da Academia até o ano de sua morte, em 347
33 Carta VII, 338 B. 34 Cf. Carta VII, 348 A. 35 Ibidem, 350 B.
41
a.C., com cerca de 80 anos de idade. Nicola Abbagnano36,
referindo-se a um papiro descoberto recentemente em
Herculano, apresenta-nos a descrição das últimas horas do
filósofo:
A última visita que recebeu foi a de um caldeu. Uma
mulher trácia tocava e errou o compasso: Platão, já
com febre, fez ao hospede um sinal com o dedo. O
caldeu observou cortesmente que não havia como os
Gregos para perceber de medicina e de ritmo. Na
noite seguinte a febre agravou-se e, talvez nessa mesma noite, Platão morreu37.
Segundo Diógenes Laércio, Platão foi sepultado na
Academia e todos os seus discípulos estavam presentes no
cortejo fúnebre38. Will Durant afirma que “toda Atenas o
acompanhou à sepultura”39.
A Atenas que Platão viu ao nascer não era a mesma
que ele deixou ao morrer: Platão nasceu na Atenas do século
de Péricles, no auge da democracia, do florescimento da
arquitetura, das artes, das ciências e da filosofia – de
Sócrates.
36 ABBAGNANO, N. Op. cit., p. 95. 37 CHAUÍ, M. Op. cit., p. 219, ao tratar das circunstâncias da morte de
Platão, também faz referência ao papiro descoberto em Herculano. Os
outros autores a que tivemos acesso apenas indicam o ano de sua
morte. LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 2, p. 85, citando Hêrmipos, diz
que Platão morreu enquanto participava de um banquete nupcial. 38 Cf. LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 41, p. 95. 39 DURANT, W. A História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural,
1996, p. 68.
42
Com efeito, Platão nasceu no ano seguinte ao da
morte de Péricles. Sua juventude e maturidade coincidem
com os anos da Guerra do Peloponeso, com as cidades
dividindo-se em duas grandes frentes: a Liga de Delos e a
Liga do Peloponeso. Enfim, a Atenas em que ele nasceu, viu
surgir em poucas décadas os cânones estéticos, intelectuais e
políticos que ainda hoje influenciam nossa civilização e que
o fundador da Academia, com sua obra, ajudou a
imortalizar.
A Atenas que Platão deixou ao morrer estava exausta
e decadente. Expressão de uma Grécia mergulhada em
muitos conflitos e numa desunião tão grande que, em 338
a.C., na batalha de Queronéia, seria conquistada por Filipe
da Macedônia.
2.2.1 A Questão Platônica
Três grandes problemas constituem a chamada
Questão Platônica. O primeiro versa sobre a autenticidade
dos escritos de Platão, o segundo refere-se à cronologia
desses escritos e o terceiro trata das questões referentes às
Doutrinas não-escritas. Vejamos exame sintético dessas
questões.
43
2.2.1.1 A autenticidade
Os escritos de Platão chegaram até nós em sua
totalidade – trinta e seis trabalhos ao todo: uma Apologia de
Sócrates, trinta e quatro diálogos e treze cartas. A tradição
conservou a ordem adotada e difundida pelo gramático
Trásilo40, que dividiu os trinta e seis escritos em nove
tetralogias. O critério adotado por ele foi o de afinidade
temática e não o cronológico. Eis as nove tetralogias41:
I Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e
Fédon;
II Crátilo, Teeteto, Sofista e Político;
III Parmênides, Filebo, Banquete e Fédro;
IV Alcibíades I, Alcibíades II, Hiparco e
Amantes;
V Taeges, Cármides, Laques e Lisis;
VI Eutidemo, Protágoras, Górgias e
Mênon;
VII Hípias Menor, Hípias Maior; Íon e
Menexeno;
VIII Clitofon, A República, Timeu e Crítias;
IX Mino, As Leis, Epínomes e Cartas.
Entre os primeiros editores da Antiguidade que se
colocaram o problema da autenticidade desses escritos,
40 Cf. LAÊRTIOS, D. Op. cit., III, 56 et seq., p. 98. Trásilo foi
contemporâneo do imperador Tibério, século I d.C. 41 Cf. LAÊRTIOS, D. Op. cit., bidem, III, 58-61, p. 98 et seq.
44
encontramos o próprio Trásilo e também Aristófanes de
Bizâncio42, século III. A partir do século XIX, a crítica
textual dos escritos platônicos atingiu seu mais alto grau de
intensidade, chegando a duvidar da autenticidade de quase
todos os diálogos.
Esse quadro começou a ser revertido pelo historiador
Eduard Meyer que, levando em conta o grande valor
histórico das Cartas, defendia sua autenticidade. Em pouco
tempo, seu exemplo foi seguido pelos filólogos.
Wilamowitz, em sua biografia de Platão, confirmou a
autenticidade das cartas sexta, sétima e oitava43. A atitude
de Wilamowitz influenciou muitos outros filólogos. O
próprio Edward Zeller que, “a princípio, considerava
apócrifa a obra das Leis, por achá-la muito divergente das
obras fundamentais do autor, já se vê obrigado na sua
Philosophei der Gruiechen a reconhecer-lhe a
autenticidade”44.
Grosso modo, são cinco os critérios adotados para se
julgar a autenticidade dos escritos platônicos45:
42 Ibidem, III, 61 et seq., p. 99. 43 Cf. JAEGER, W. Op. cit., p. 587. 44 Ibidem, p. 602. 45 Dentre os vários autores que consultamos, apenas ABBAGNANO,
N. Op. cit., p. 96 et seq., apresenta os cinco critérios adotados para se
julgar a autenticidade dos escritos platônicos. A partir de sua
aplicação, declara como apócrifos o Alcibíades II, o Hiparco, o
Amantes, o Teages e o Mino, mas ressalta que ainda restam dúvidas
quanto ao Alcibíades I, o Hípias Maior, o Íon, o Clitofonte e o
Epínomis. REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 134, abordam
rapidamente a questão da autenticidade. MARCONDES, D. Iniciação
à História da Filosofia. 11. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 55,
45
1 a tradição: se os autores antigos julgaram o escrito
autentico ou não;
2 os testemunhos antigos: as críticas, comentários e
citações das obras de Platão pelos autores antigos.
3 o conteúdo doutrinal: refere-se à presença de
elementos doutrinais que pertencem a escolas
posteriores e também a contradições grosseiras;
4 o valor artístico: ressalta o valor artístico do
diálogo de Platão que é, ao mesmo tempo, obra de
pensamento e de poesia;
5 a forma linguística: o uso ou emprego de
expressões particulares, palavras etc., pertencentes
apresenta os “diálogos de autenticidade discutível” e afirma que está
baseando-se no estudo clássico de D. Ross, Plato`s Theors of Ideas,
Oxford: Clarendon Press, 1951 e em Karl Bormann, Platon, Verlag
Karl Alber, Freiburg/Munique, 1973 – entretanto, não discute a
questão. Entre os tais “diálogos de autenticidade discutível”,
apresenta: Alcibíades I e II, Hiparco, Anterestai, Teages, Clitofon,
Mino, O Filósofo e as Cartas – exceto a III a VII e a VIII. DUMONT,
J.-P. Op. cit., p. 266, aborda a questão, apresentando as conclusões de
Frederico Ast – que negou a autenticidade da Apologia, do Críton, do
Hípias Maior e do Hípias Menor, do Íon, do Menexeno do Menôn e,
até mesmo, das Leis. Dumont afirma, ainda, que Socher, um discípulo
de Ast, negou a autenticidade do Parmênides, do Sofista e do Crítias.
Por fim, seguindo Leonard Brandowood, editor do Word-Index to
Plato – famoso pelo uso do computador na execução de uma análise
literária e linguística dos escritos de Platão – Dumont apresenta os
seguintes escritos como apócrifos: o Alcibíades I e II, o Axíoco, o
Clitofon, as Definições, o Demódoco, a Erixia, o Hiparco, o Da
justiça, o Mino, Os Rivais, o Sísifo, o Taeges e o Da Virtude. CHAUÍ,
M. Op. cit., p. 227, apresenta quatro dos principais critérios para se
estabelecer a autenticidade dos escritos: a tradição, o testemunho, a
doutrina e o estilo. Quanto aos diálogos apócrifos, apenas fala de sua
existência, mas não chega a identificá-los.
46
ou não à época, que compuseram os diálogos
platônicos.
Contudo, tais critérios não podem ser aplicados
separadamente, pelo contrário, eles devem se controlar
mutuamente, senão pode-se cair em graves equívocos. O
fato é que, frente aos extremismos hipercríticos da crítica
moderna, o problema da autenticidade aos poucos foi
perdendo a importância e, como declaram Giovanni Reale e
Dario Antiseri, atualmente “a tendência é considerar
autênticos quase todos os diálogos ou até mesmo todos”46.
2.2.1.2 A cronologia
As questões referentes à cronologia dos diálogos
platônicos não expressam apenas uma questão de erudição,
mas referem-se à questão da evolução do pensamento
platônico. Neste caso, contrariamente ao problema da
autenticidade, as conclusões oferecem ao menos uma
resposta parcial para o problema.
Entre os críticos, há aqueles que afirmam ser possível
estabelecer determinados períodos, mas não a sucessão
lógica e cronológica dos diálogos desses períodos47. A
adoção do critério estilométrico está, em parte, na gênese do
estabelecimento das quatro fases ou períodos de divisão dos
diálogos platônicos. O escrito tomado como ponto de
46 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 134. 47 Cf. ABBAGNANO, N. Op. cit., p. 99.
47
partida para o estudo científico das características estilísticas
das diversas obras de Platão é As Leis – considerado como o
último escrito do filósofo. A partir do seu estudo, chegou-se
ao seguinte quadro48:
a) escritos de juventude: Apologia de Sócrates,
Cármides, Críton, Eutifron, Íon, Laquês, Lísis;
b) período de transição: Crátilo, Eutidemos,
Górgias, Hípias Menor, Hípias Maior, Menexeno,
Mênon, e Protágoras;
c) escritos de maturidade: Fédon, Banquete, A
República e Fédro;
d) período final: Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e As Leis.
Desse modo, os escritos de juventude seriam
imediatamente posteriores à morte de Sócrates e, portanto,
em suas discussões, predomina a temática socrática. Os
escritos de transição marcam o período de amadurecimento
da filosofia platônica; estão situados entre o período
imediatamente anterior à primeira viagem a Sicília e
imediatamente posterior à segunda viagem. Já os escritos de
maturidade pertencem à fase central da produção platônica:
são os chamados diálogos metafísicos. Por fim, os escritos
da fase final representam os últimos escritos de Platão –
dois incompletos: Timeu e Crítias – são os chamados
diálogos dialéticos.
48 Quanto aos escritos de maturidade e da fase final, REALE, G.;
ANTISERI, D. Op. cit., p 134, afirmam que esta é a sua “ordem”
cronológica. Quanto aos escritos de juventude e de transição, somos
forçados a nos contentar com a ordem alfabética.
48
2.2.1.3 As Doutrinas não-escritas
O debate acerca das Doutrinas não-escritas49
constitui o terceiro problema da questão platônica50. Se,
anteriormente, tal questão foi ignorada e considerada sem
importância, hoje, as perspectivas já não são as mesmas e
“muitos estudiosos consideram que da solução desse
problema depende a compreensão correta do pensamento
platônico em geral e da própria história do platonismo na
antiguidade”51.
É evidente que, assumindo a existência das Doutrinas
não-escritas, estamos declarando que os diálogos platônicos
não encerram em si mesmos a totalidade da filosofia de
Platão. Por sua vez, entramos em consonância com a crítica
à escrita contida nas páginas finais do Fédro, com os
autotestemunhos da Carta VII, e também, com os
testemunhos de seus discípulos e da tradição indireta52.
49 αγραφα δογματα (agrapha dogmata), ágrafos – ágrafo: não-escrito;
dogmatos – dogmato: doutrina. 50 É no mínimo intrigante o caso de alguns autores admitirem a
existência das Doutrinas não-escritas, mas não discuti-las em suas
obras. É o que constatamos em ABBAGNANO, N. Op. cit., em
CHAUÍ, M. Op. cit., e em MARCONDES, D. Op. cit., que nem ao
menos acenam para a questão. 51 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 135. 52 SZLEZÁK, T. A. Ler Platão. São Paulo: Loyola, 2005, apresenta
uma série de elementos característicos dos diálogos platônicos, cujo
objetivo é proporcionar uma interpretação dos escritos filosóficos de
Platão que resista à sua crítica da escrita elaborada no Fédro.
49
Transcrevemos abaixo o mito53 do deus egípcio
Thoth, introduzido por Platão em sua crítica à escrita:
Sócrates – Ouvi dizer que havia nos arredores de
Náucratis, no Egito, uma dessas velhas divindades a
quem os naturais da terra consagravam o pássaro
denominado íbis. Esse demônio era conhecido com o
nome de Thoth. Foi ele o primeiro a descobrir os
números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o
jogo do gamão e dos dados, e também os caracteres
da escrita. Nesse tempo, Thamus reinava em todo o
Egito, com residência na grande cidade da região
alta que os helenos denominavam Tebas Egípcia, e
davam à divindade o nome de Amon. Esse rei foi
procurado por Thoth, que lhe apresentou suas artes,
com a sugestão de serem ensinadas aos egípcios. O
rei perguntou para que serviam; e, conforme Thoth
as explicava, ele criticava ou elogiava. Dizem que
Thamus fez muitas observações a favor e contra cada
53 Em Platão, o mito não possui caráter pré-filosófico, mas sim pós-
filosófico. Ele é empregado como auxilio ao logos, pois quando a
razão chega aos limites extremos de suas possibilidades, o mito,
intuitivamente, através de suas imagens e alegorias, supera tais
limites. Desse modo, “ o mito busca clarificar o logos e o logos busca
complementação no mito” REALE, G.; ANTISERI, D. História da
Filosofia. Op. cit., p. 136. Segundo SZLEZÁK, T. A. Op. cit., p. 159,
em Platão, “o mito aparece como uma segunda via de acesso à
realidade, que certamente, quanto ao conteúdo, não pode ser
independente do logos mas oferece, em comparação com ele, um plus
que não pode ser substituído por nada”. Giovanni Reale nos lembra
ainda que para Platão, “falar por mitos [...] é um exprimir-se por
imagens, o que permanece válido em vários níveis, na medida em que
pensamos não só por conceitos, mas também por imagens” REALE,
G. História da Filosofia Antiga. Op. cit., p. 44.
50
uma das artes, que fora longo enumerar. Porém,
quando chegou aos caracteres da escrita, aqui está,
majestade, lhe disse Thoth, uma disciplina capaz de
deixar os egípcios mais sábios e com melhor
memória. Está descoberto o remédio para o
esquecimento e a ignorância. Ele a falar, e o rei a
responder: Engenhosíssimo Thoth, uma coisa é
inventar as artes, e outra muito diferente, discorrer
sobre a utilidade ou desvantagem para quem delas
tiver de fazer uso. Tal é o seu caso, como pai da
escrita: dada a afeição que lhe dedicas, atribuis-lhe
ação exatamente oposta à que lhe é própria, pois é
bastante idônea para levar o esquecimento à alma de
quem aprende, pelo fato de não obrigá-lo ao
exercício da memória. Confiante na escrita, será por
meios externos, com a ajuda de caracteres estranhos,
não no seu próprio íntimo e graças a eles mesmos,
que passarão a despertar suas reminiscências. Não
descobristes o remédio para a memória, mas apenas
para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é
simples aparência do saber, não a própria realidade.
Depois de ouvirem um mundo de coisas, sem nada
terem aprendido, considerar-se-ão ultra-sábios,
quando, na grande maioria, não passam de
ignorantões, pseudo-sábios, simplesmente, não sábios de verdade54.
E agora o veredicto sobre os livros:
54 PLATÃO. Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 274 C
– 275 B. Alteramos os nomes da tradução de Carlos Alberto Numes
para adotarmos os nomes mais comuns: Teute = Thoth; Tamuz =
Thamus; Amão = Amon.
51
Sócrates – [...] a escrita, Fédro, é muito perigosa e,
nesse, ponto, parecidíssima com a pintura, pois esta
em verdade, apresenta seus produtos como vivos;
mas, se alguém lhe formula perguntas, cala-se cheia
de dignidade. O mesmo passa com os escritos. És
inclinado a pensar que conversas com seres
inteligentes; mas se, com o teu desejo de aprender, os
interpelares acerca do que eles mesmos dizem, só
respondem de um único modo e sempre a mesma
coisa. Uma vez definitivamente fixados na escrita,
rolam daqui dali os discursos, sem o menor discrime,
tanto por entre os conhecedores da matéria como os
que nada tem que ver com o assunto de que tratam,
sem saberem a quem devam dirigir-se e a quem não.
E no caso de serem agredidos ou menoscabados
injustamente, nunca prescindirão da ajuda paterna,
pois por si mesmos são tão incapazes de se
defenderem como de socorrer alguém55.
E finalmente a confissão emblemática na Carta VII:
O que estou em condições de afirmar de quantos
escreveram e ainda virão a escrever com a pretensão
de conhecer as questões com que me ocupo, quer as
tenham ouvido de mim mesmo ou de outras pessoas,
que a descobrissem por esforço próprio, é que no
meu modo de pensar, eles não entendem nada de
nada de todas essas questões. De mim, pelo menos,
nunca houve nem haverá nenhum escrito sobre
semelhante matéria. Não é possível encontrar a
expressão adequada para problemas dessa natureza,
como acontece com outros conhecimentos. Como 55 Fédro, 275 D – E.
52
conseqüência de um comércio prolongado e de uma
existência dedicada à meditação de tais problemas é
que a verdade brota na alma como a luz nascida de
uma faísca instantânea, para depois crescer sozinha.
Melhor do que ninguém, tenho consciência de que
somente eu poderia expor minhas idéias, de viva voz
ou por escrito, como também sou eu quem mais viria
a sofrer, se a redação me saísse defeituosa56.
Diante dessas e de outras conclusões semelhantes
sobre o escrito, Platão está convicto de que é na oralidade
que a essência do filósofo manifesta-se e atua. Deste modo,
é à oralidade que ele confia o que tem de mais precioso:
Sócrates – Já nos detivemos bastante a conversar a
respeito da eloqüência. Agora procura Lísias e lhe
dize que nós dois descemos até o córrego das Ninfas
e seu santuário, onde ouvimos discursos que nos
incumbiram de comunicar a Lísias e a quem mais
compuser discursos, a Homero e a quantos
escreveram poesias simples ou musicadas, e
finalmente a Sólon e a todos os autores de discursos
políticos que, sob o nome de leis, redigiram seus
escritos, para comunicar-lhes, dizia, que se
ocuparam de tudo isso cientes do que seja a verdade,
e se forem capazes de sair em defesa de seus escritos,
quando chamados, e se, como oradores, com seus
argumentos deixarem o autor dos escritos em posição
secundária: um indivíduo nessas condições não
deverá ser designado por nenhum dos nomes
correntes entre nós, mas apenas pelo que se
56 Carta VII, 341 C – E.
53
relaciona com o objeto a que ele se dedicou tão
desinteressadamente.
Fédro – Que denominação lhe dás?
Sócrates – O nome de sábio, Fédro, me parece
excessivo; só vai bem com referência a Deus;
o de amigo da sabedoria, ou outra
designação equivalente, sobre ser mais modesto, conviria melhor.
Fédro – E não seria fora de propósito.
Sócrates – Em compensação, quem nada pode
apresentar de mais precioso do que o que ele
mesmo rabiscou ou ajeitou de cima a baixo
com um trabalhão enorme, acrescentando
aqui, cortando acolá, poderás com toda a
justiça denominar poeta, ou fazedor de
discursos ou redator de leis.
Fédro – Sem dúvida57.
Ora, admitindo a existência das Doutrinas não-
escritas entramos em evidente oposição com o paradigma
romântico da exegese de Platão fundado e difundido por
Friedrich Schleiermacher58. Este paradigma atribuía aos
57 Fédro, 278 B – E. 58 Um estudo detalhado do paradigma schleiermacheriano e de seus
limites é encontrado na obra de REALE, G. Para uma nova
Interpretação de Platão. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 39 a 50.
SZLEZÁK, T. A. Ler Platão. Op. cit., apesar de apresentar uma série
de elementos que visam proporcionar uma interpretação dos escritos
de Platão que resista à sua crítica da escrita elaborada no Fédro não
54
escritos platônicos uma indissociável síntese de forma e
conteúdo e afirmava que a compreensão dos diálogos
coincide com a totalidade da compreensão da filosofia de
Platão. Como tal, teriam um valor autônomo total e,
portanto, autárquico.
Frente a toda essa discussão, os estudiosos
introduziram o termo esotérico (do grego εσω – que quer
dizer dentro) para designar as Doutrinas não-escritas, isto é,
o ensinamento oral de Platão – aquele reservado somente
aos alunos no interior, dentro da Academia. Ao mesmo
tempo, com o termo exotérico (do grego εξω – que quer
dizer fora), passaram a designar o pensamento que Platão
confiou à escrita e, portanto, àqueles que também estavam
fora da Academia. Deste modo, passou-se a distinguir um
Platão esotérico de um exotérico.
Seguindo o estado atual da pesquisa59, também
adotamos como pano de fundo para leitura e interpretação
entra numa confrontação detalhada com o paradigma
schleiermacheriano. 59 A partir da nota de Henrique Cláudio de Lima Vaz, Um novo
Platão?, o paradigma de leitura e interpretação de Platão que
propunha a existência das Doutrinas não-escritas ficou conhecido
como o paradigma da Escola de Tübingen-Milão. A composição
justifica-se, pois, com a publicação de REALE, G. Para uma nova
Interpretação de Platão. Op. cit. Ele - nas palavras do próprio Lima
Vaz -“propõe-se um alvo grandioso e extremamente ambicioso: levar
a cabo, através de rigorosa análise textual dos Diálogos, e situando-se
na perspectiva de uma hermenêutica fundamental do espírito grego, a
demonstração definitiva da tese formulada, desde fins da década de
50, pela chamada ‘escola de Tübingen’ (cujos representantes
principais são H.-J. Krämer e Konrad Gaiser) e segundo a qual é
necessário pôr as chamadas ‘doutrinas não-escritas’ (ágrapha
dógmata) no centro da exegese filosófica da obra escrita de Platão
55
dos escritos de Platão a existência das Doutrinas não-
escritas conservadas pela tradição indireta60.
2.3 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA
ARCHÉ
A filosofia nasce querendo explicar a totalidade do
real, servindo-se de um discurso fundado em bases
puramente racionais. “Uma convicção basilar, que serve de
eixo para toda a filosofia anterior à de Platão, consiste na
convicção segundo a qual explicar significa unificar”61.
Deste modo, a busca pela arché, ou seja, pelo princípio
originário, único, fundamental e causador de todas as coisas,
constitui-se grande esforço de unificar a multiplicidade das
coisas, reduzindo-as a um princípio ou, mesmo, a alguns
princípios.
para que, desses textos, possa emergir em toda a sua grandeza a
primeira e mais audaz construção metafísica da filosofia ocidental” In:
Síntese Nova Fase. Belo Horizonte: Centro de Estudos Superiores –
SJ, 1990, n. 50, p. 101. 60 O leitor que desejar acercar-se de uma bibliografia que nega a
validade do novo paradigma hermenêutico encontrará ao menos duas
obras traduzidas nos últimos anos para o português: BRISSON, L.
Leituras de Platão. Op. cit., que se recusa a admitir a hipótese da
existência de uma doutrina platônica distinta daquela que se encontra
nos textos atribuídos a Platão; e TRABATTONI, F. Oralidade e
Escrita em Platão. São Paulo: Discurso Editorial; Ilhéus: Editus,
2003. 61 REALE, G. Para uma nova interpretação de Platão.Op. cit., p. 157.
56
Os filósofos pré-socráticos62 foram os primeiros a
afirmar a existência da arché. Giovanni Reale e Dario
Antiseri definem esse princípio originário como “aquilo do
qual provêm, aquilo no qual se concluem e aquilo pelo qual
existem e subsistem todas as coisas”63. Não se sabe ao certo
quem por primeiro passou a designar esse princípio com o
termo physis, ou seja, natureza. O certo é que “a palavra
grega physis, em sua origem, significa ao mesmo tempo o
início, o desenvolvimento e o resultado do processo pelo
qual uma coisa se constitui”64. O que justifica o fato de os
pré-socráticos serem também chamados de físicos ou
naturalistas.
2.3.1 Os Jônicos
O primeiro a se dedicar à busca do princípio de todas
as coisas foi Tales65. De fato, Aristóteles afirma que ele é o
iniciador da filosofia da physis, identificando a arché com a
água66. O Estagirita diz que esta convicção resulta da
62 BARNES, J. Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 10, afirma que “o epíteto [i.é, a expressão pré-socráticos]
peca por imprecisão, uma vez que Sócrates nasceu em 470 a.C. e
morreu em 399, de modo que muitos dos filósofos ‘pré-socráticos’
foram, em verdade, contemporâneos de Sócrates. No entanto o rótulo
está profundamente arraigado e seria inútil tentar rejeitá-lo”. 63 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 18. 64 HADOT, P. O que é Filosofia Antiga? São Paulo: Loyola, 2004, p.
29. 65 Mileto, 624/25 – 546/45 a.C. 66 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 983 b, p 17.
57
“constatação de que o alimento de todas as coisas é úmido, e
da constatação de que até o calor se gera do úmido e vive no
úmido”67.
Tales de Mileto teve a intuição de que as coisas vivas
têm umidade, à medida que a secura total é sinônimo de
morte. Com efeito, a umidade está para a vida, assim como
a secura está para a morte. E se a vida está relacionada à
presença de umidade e a umidade pressupõe a água, a
conclusão se apresenta como evidente: a água está na
gênese, na manutenção e na corrupção de todas as coisas.
Anaximandro68, concidadão e contemporâneo de
Tales, aprofundou ainda mais a problemática da busca da
arché. Em seu tratado Sobre a natureza, ele afirma que o
princípio não pode ser determinado por algo derivado, ou
seja, pela água, pelo ar ou qualquer outro elemento. O
princípio é o infinito: o á-peiron.
O á-peiron está privado de limites tanto externos
(quantitativos) quanto internos (qualitativos) e é justamente
esta característica que faz com que ele seja a origem de
todas as coisas. Como tal, o princípio não é imanente ao
mundo, mas transcendente. A arché, portanto, é ilimitada,
incorruptível e imortal.
Anaximandro foi o primeiro a se debruçar sobre a
questão de como e por que todas as coisas derivam do
princípio e qual seria o motivo de sua corrupção. Ao
responder a essas questões, introduziu o conceito de
dinamismo universal. As coisas derivariam da arché por
67 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 983 b, p 17. 68 Mileto, 610/09 – 547/46 a.C.
58
meio do processo de separação: “a substância infinita é
animada por um eterno movimento, em virtude do qual se
separam dela os contrários: quente e frio, seco e úmido,
etc.”69.
Anaxímenes70 procurou fazer uma síntese entre Tales
e Anaximandro. Como Tales, identificou o princípio com
uma matéria determinada – o ar – mas, seguindo
Anaximandro, atribuiu ao princípio a infinitude e o
movimento eterno. A transformação das coisas seria
provocada por um duplo processo: a rarefação e a
condensação: “rarefazendo-se, torna-se fogo; condensando-
se, vento, depois nuvem, e ainda mais, água, depois terra,
depois pedras, e as demais coisas (provêm) destas”71.
Heráclito72 levou o discurso filosófico dos três
milesianos a posições “decididamente mais avançadas e em
grande parte novas”73. Dada a dificuldade de compreensão
de seu pensamento e de seus escritos, foi cognominado O
69 ABBAGNANO, N. Op. cit., p. 30. 70 Mileto, 546/45 – 528/25 a.C. 71 ANAXÍMENES In: VVAA. Os Pré-Socráticos. São Paulo: Nova
Cultural, 2000, A 1, p. 56. Ao abordarmos os filósofos naturalistas,
enfrentamos um sério problema: a qualidade e a inteligibilidade das
traduções dos fragmentos. Diante desse desafio, tivemos que recorrer
a várias traduções. Sendo assim, procuramos citar aquela que pareceu
a melhor. 72 Éfeso, cerca de 540 – 470 a.C. Apesar de apresentarmos Heráclito
junto aos três milesianos, sabemos que ele não faz parte da Escola
Jônica. Agrupamo-lo aqui tendo em vista a geografia filosófica e não
o caráter conceitual. Em geral, os historiadores da filosofia abordam-
no em separado. 73 REALE, G. História da Filosofia Antiga. 2. ed. São Paulo: Loyola,
1993, p. 63.
59
Obscuro e O Enigmático74. Ele aprofundou o dinamismo
universal, chegando a um completo mobilismo, expresso,
sobretudo, na sentença: “Tudo escorre” – panta rhei.
Para Heráclito, o devir é o próprio princípio e não
uma característica do princípio, como queriam
Anaximandro e Anaxímenes. Em seu fragmento mais
célebre, lemos: “não se pode descer duas vezes no mesmo
rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no
mesmo estado, mas, por causa da impetuosidade e da
velocidade da mudança se espalha e se reúne, vem e vai”75.
O devir heraclitiano caracteriza-se por uma constante
e harmoniosa passagem de um contrário ao outro. Os
fragmentos são emblemáticos: “o que é oposição se concilia
e das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia, e tudo é
gerado por via de contraste”76. E também: “a mesma coisa é
o vivo e o morto, o desperto e o adormecido, o jovem e o
velho, porque tais coisas, pela mutação, são aquelas e
aquelas, por sua vez, pela mutação, são estas”77.
74 “Heráclito foi chamado desde cedo – por Sócrates e depois por
Aristóteles – de o Obscuro. E isso por duas razões: inicialmente por
sua recusa à pontuação; em seguida por inventar um estilo feito de
versos que imitam o movimento da contradição e exprimem a tensão
própria da harmonia”, DUMONT, J.-P. Op. cit., p. 62. 75 HERÁCILTO. In: REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., fr. 91 Diels-
Kranz, p. 52. Platão faz referência explícita à doutrina do mobilismo
universal no Crátilo: “Heráclito afirma que tudo passa e nada
permanece, e compara o que existe à corrente de um rio, para concluir
que ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas”, PLATÃO.
Crátilo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1973, 402 A. 76 Ibidem, fr. 8 Diels-Kranz, p. 52. 77 Ibidem, fr. 88 Diels-Kranz, p. 53.
60
Heráclito identificou o fogo como a arché: “todas as
coisas são troca do fogo, e o fogo uma troca de todas as
coisas, assim como as mercadorias são troca de ouro e o
ouro uma troca de mercadorias”78. De fato, o fogo melhor
expressa as características de contínua mudança, do
contraste e da harmonia: "ele está continuamente em
movimento, é vida que vive da morte do combustível, é
contínua transformação deste em cinzas, fumaça e vapores,
é perene ‘necessidade e saciedade’”79.
Com Heráclito, a arché ganha um novo atributo – a
racionalidade. Com efeito, enquanto governa tudo, o devir é
inteligência e esta inteligência não é caótica, mas racional –
é logos. Vejamos alguns fragmentos que expressam essa
tese: “o uno, único sábio, não quer e quer também ser
chamado de Zeus”80. E talvez o que melhor a expresse:
“existe uma só sabedoria: reconhecer a inteligência
(gnomem) que governa todas as coisas através de todas as
coisas”81.
2.3.2 Os Pitagóricos
Pouco se sabe sobre a figura de Pitágoras82 em sua
historicidade. Xenófanes e Heródoto atribuem a ele a
78 Ibidem, fr. 90 Diels-Kranz, p. 53. 79 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 23. 80 HERÁCILTO. In: REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., fr. 32 Diels-
Kranz, p. 53. 81 Ibidem, fr. 41 Diels-Kranz, p. 53. 82 Samos – cerca de 571/70 a 497/96 a.C.
61
doutrina da metempsicose83. Aécio diz que “foi Pitágoras o
primeiro a dar o nome de cosmos ao invólucro do universo,
em razão da organização que nele se vê”84. Todavia, não é
possível falar de seu pensamento individualmente, mas dos
Pitagóricos como um todo.
Em linhas gerais, eles herdaram dos jônios a
problemática do princípio, mas a deslocaram para uma
realidade mais elevada: identificaram a arché não com um
elemento material da realidade, mas sim com o número. A
esse respeito, o testemunho de Aristóteles é pontual:
Eles por primeiro se aplicaram às matemáticas,
fazendo-as progredir e, nutridos por elas,
acreditaram que os princípios delas eram os
princípios de todos os seres. E dado que nas
matemáticas os números são, por sua natureza, os
primeiros princípios, e dado que justamente nos
números, mais do que no fogo e na terra, eles
achavam que viam muitas semelhanças com as coisas
que são e que se geram [...]; e além disso, por verem
que as notas e os acordes musicais consistiam em
números; e, finalmente, porque todas as outras coisas
em toda a realidade lhes pareciam feitas à imagem
dos números e porque os números tinham a primazia
83 Cf. BARNES, J. Op. cit., p. 101. 84 AÉCIO, Opiniões, II, I, 1 apud DUMONT, J.-P. Op. cit., p. 95.
Também Platão faz referência aos Pitagóricos quando evoca a
concepção de mundo como cosmos: “Afirmam os sábios, Cálicles,
que o céu e a terra, os deuses e os homens são mantidos em harmonia
pela amizade, o decoro, a temperança e a justiça, motivo por que,
camarada, o universo é denominado cosmo, ou ordem, não desordem
nem intemperança”, PLATÃO. Górgias. In: Diálogos de Platão.
Belém: UFP, 1980, 507 E – 508 A.
62
na totalidade da realidade, pensaram que os
elementos dos números eram elementos de todas as
coisas, e que a totalidade do céu era harmonia e número85.
Os Pitagóricos foram também os responsáveis por
introduzirem um elemento novo no Orfismo86 – o conceito
do reto agir humano no itinerário de purificação da alma e
de aproximação de Deus.
85 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 985 b – 986 a, p 27. 86 A tradição atribui ao poeta trácio Orfeu o mérito de ter fundado o
Orfismo. Ele está inserido no contexto da religião dos mistérios. Com
efeito, os mistérios orficos foram os que exerceram maior influencia
na filosofia grega. Enquanto para Homero a morte punha fim a
existência humana, o Orfismo proclamava a imoralidade da alma e
concebia o homem a partir de um esquema dualista, contrapondo o
corpo è alma. Segundo REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 9, o
núcleo das crenças órficas pode ser resumido em 4 pontos
fundamentais:
a) no homem hospeda-se um princípio divino, um demônio, (alma)
que caiu em um corpo por causa de um culpa originária;
b) esse demônio não apenas preexiste ao corpo, mas também não
morre com o corpo, pois está destinado a reencarnar-se em corpos
sucessivos, a fim de expiar aquela culpa originária;
c) com seus ritos e práticas, a ‘vida órfica’ é a única em grau de pôr
fim ao ciclo das reencarnações e de, assim, libertar a alma do
corpo;
d) para quem se purificou (os iniciados nos mistérios órficos) há
um prêmio no além (da mesma forma que há punições para os não
iniciados).
63
2.3.3 Os Eleatas
Coube aos eleatas fundar a problemática acerca da
arché sob a perspectiva ontológica. De fato, eles são os
descobridores do ser. Com a escola eleática, saímos da
cosmologia e adentramos nos domínios da ontologia. Nicola
Abbagnano afirma:
Pela primeira vez, com a escola eleática, a
substância, se torna por si mesma princípio
metafísico: pela primeira vez, é ela definida não
como elemento corpóreo ou como número, mas tão só
como substância, como permanência e necessidade de ser enquanto ser87.
O grande fundador do eleatismo é Parmênides88. Com
ele, a questão do ser se torna primordial. Com efeito, o que
há de mais básico é o ser: a água é, o fogo é, a terra é, todos
as coisas são. Parmênides estabelece uma perfeita
correlação entre ser e pensar: “o mesmo é pensar e ser”89,
diz ele. E, em outro fragmento, lemos o seguinte:
O mesmo é pensar e em vista de que é pensamento.
Pois não sem o que é, no qual é revelado em palavra,
acharás o pensar; pois nem era ou é ou será 87 ABBAGNANO, N. Op. cit., p.43. 88 Eléia – sécs. VI-V a.C. 89 PARMÊNIDES. In: Os Pensadores Originários. 4. ed. Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2005, fr. 3 Diels-Kranz,
p. 45.
64
outro fora do que é [...]90.
De certa forma, esses fragmentos apresentam a
primeira formulação do princípio de não-contradição que,
com Aristóteles, recebeu sua mais célebre formulação e
defesa. Giovanni Reale e Dario Antiseri apresentam do
seguinte modo a chave para a compreensão do pensamento
de Parmênides: “o ser é e não pode não ser; o não ser não é e não pode ser de modo nenhum”91.
Como podemos perceber, nessa perspectiva, tudo o
que pensamos e falamos é. O nada é impensável, pois a
partir do momento que nos propomos a pensá-lo ele já é
algo. Assim, o ser em Parmênides apresenta alguns atributos
fundamentais:
a) é não-gerado e incorruptível: não tem um passado,
nem um futuro – é um eterno presente. Sua
geração implicaria sua vinda do não-ser e sua
corrupção implicaria na passagem do ser ao não-
ser, o que é absurdo;
b) é imutável e absolutamente imóvel: permanece em
si mesmo idêntico no idêntico, pois qualquer
mudança pressupõe um não-ser para o qual deveria
mover-se ou no qual deveria transformar-se;
c) é indivisível: finito, completo e esferiforme, pois o
infinito é inexplicável e, portanto, sinônimo de
imperfeição;
d) é uno: um contínuo todo igual, já que qualquer
diferença implicaria o não-ser.
90 PARMÊNIDES. In: VVAA. Os Pré-Socráticos. Op. cit., B 8, p.
124. 91 REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., p. 33.
65
Ora, se Heráclito perdeu o ser ao absolutizar o devir,
isto é, perdeu o ser em meio aos fenômenos, com
Parmênides acontece o contrário. Parmênides salva o ser,
mas perde os fenômenos. Consequentemente, o ser de
Parmênides não admite diferenciações quantitativas nem
qualitativas – os fenômenos, enquanto assumidos no ser, ou
seja, enquanto incluídos na unidade superior do ser,
encontram-se ao mesmo tempo igualizados e imobilizados,
como que petrificados na fixidez do ser.
Os outros eleatas aprofundarão ainda mais o princípio
de Parmênides, procurando demonstrar, com argumentos
bem evidentes, que o movimento e a multiplicidade não
existem. Tornou-se célebre a demonstração por absurdo
descoberta por Zenão e aplicada para negar a existência do
movimento, principalmente com os argumentos da
dicotomia, de Aquiles e da flecha. Notável é também seu
esforço para negar a multiplicidade dos fenômenos. No
entanto, a sistematização do eleatismo coube a Melisso,
culminando na afirmação de um Ser eterno, infinito, uno,
igual, imutável, imóvel e incorpóreo.
2.3.4 Os Físicos Pluralistas
Apesar do eleatismo ter declarado ilusório o mundo
do devir e ter relegado o conhecimento sensível que dele
procede como ilusório, a investigação naturalista
prosseguiu. Contudo, as conclusões dos eleatas não podiam
66
mais ser ignoradas. Empédocles92 foi o primeiro a tentar
resolver a aporia eleática. Como Parmênides, admite a
impossibilidade do nascer e do perecer como um derivar do
ser a partir do não-ser. Todavia, contrariamente a ele,
propõe-se a explicar a aparência do nascimento e da morte.
Não obstante, admitiu uma multiplicidade de princípios,
denominados raízes de todas as coisas: a água, o ar, a terra
e o fogo.
Com efeito, Empédocles afirmou que nascer e morrer
não se configuram na passagem do não-ser ao vir a ser ou
do ser ao não-ser, como queria Parmênides, mas do
misturar e do dissolver-se das raízes de todas as coisas.
Segundo ele, estas raízes possuem total inalterabilidade
qualitativa e intransformabilidade.
As forças motrizes dos processos do misturar-se e do
dissolver-se são o Amor e o Ódio. Por sua vez, a amizade
está para o misturar-se, ou seja, para a geração, assim como
o Ódio está para o dissolver-se, isto é, para a corrupção.
Anaxágoras93 também aceitou o princípio da
substancial imutabilidade do ser. Ele afirmou que o nascer
deve ser compreendido como compor-se e o morrer como
dividir-se. Como Empédocles, admitiu que as coisas são
compostas por elementos diversos. Contudo, afirmou que os
elementos dos quais derivam as coisas, - as sementes –
devem ser tantas quantas são as inumeráveis quantidades
das coisas.
92 Agrigento, 484/11 – 424/21 a.C. 93 Clazómenas, 449/48 – 428/27 a.C.
67
Segundo Anaxágoras, essas sementes podem se
dividir em partes sempre menores, entretanto, suas
qualidades permaneceriam inalteradas. Justamente por isso,
elas foram chamadas também de homeomerias – que quer
dizer partes semelhantes. Sua grande novidade está na
introdução de uma Inteligência Ordenadora, responsável
pelo movimento inicial que deu origem a uma mistura bem
ordenada da qual surgiram todas as coisas.
Com ele, chegamos ao limiar da descoberta do supra-
sensível. Entretanto, esse feito será concretizado apenas com
Platão e sua segunda navegação. O fato é que Anaxágoras,
mesmo com a descoberta da Inteligência Ordenadora,
permaneceu no plano físico, dando muita importância às
homeomerias no processo de explicação das coisas.
68
69
3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E A
DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL
No capítulo anterior buscamos contextualizar Platão e
apresentar a problemática levantada pelos naturalistas na
busca pela arché. Agora, apresentamos a “principal
novidade da filosofia platônica”94, ou seja, a segunda
navegação, a descoberta da dimensão metafísica do ser.
Desse modo, neste capítulo, abordamos a filosofia de Platão
em dois dos seus três pontos focais95: a teoria das Ideias
(primeira fase da segunda navegação); e a doutrina dos
Princípios primeiros e supremos96 (segunda fase da segunda
navegação). A doutrina do Demiurgo, que pressupõe tanto a
teoria das Ideias quanto a doutrina dos Princípios, será
objeto de estudo do capítulo seguinte.
94 REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. 2. ed. São Paulo:
Paulus, 2004, p. 137. 95 Cf. REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola,
1994, p. 58. 96 A doutrina dos Princípios refere-se ao ensinamento oral de Platão,
conservado pela tradição indireta, e transmitido sob o nome de
Doutrinas não-escritas.
70
3.1 A MAGNA CHARTA DA METAFÍSICA
OCIDENTAL
A passagem central do Fédon, 96 A – 102 A, é
considerada “uma das passagens mais célebres e mais
grandiosas”97 dos escritos de Platão, constituindo “a
primeira demonstração da existência de um ser meta-
empírico, supra-sensível e transcendente”98: a “magna
charta da metafísica ocidental”99.
Em poucos parágrafos, Platão descreve a trajetória
ideal que a mente humana deve percorrer quando busca a
verdade. Este trajeto é composto por duas fases essenciais:
a) a fase física, seguindo o método dos naturalistas, é
escalonada em dois momentos: o primeiro
inspirado na doutrina dos físicos em geral; o
segundo inspirado em Anaxágoras;
b) a fase metafísica, seguindo um novo método e
identificada metaforicamente com a expressão
segunda navegação, também escalonada em dois
momentos: o primeiro, com a teoria das Ideias; o
97 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. 2. ed. São
Paulo: Loyola, 2004, p.100. 98 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Terza
edizione. Milano: Rizzoli, 1998, p. 145: “la prima dimostrazione
dell’esistenza di un essere metempirico, soprasensibile e
transcendente”. 99 REALE, G. O Saber dos Antigos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.
221.
71
segundo, com a doutrina dos Princípios primeiros
e supremos.
Fédon, 96 A – 102 A, apresenta o mapa do projeto
metafísico de Platão, ora explicitamente, como no caso da
teoria das Ideias, ora implicitamente e de modo alusivo,
como no caso da doutrina dos Princípios e do Demiurgo.
Neste momento, faremos uma releitura deste mapa.
3.1.1 O encontro com os físicos
As questões metafísicas que direcionaram o itinerário
platônico pela busca da verdade estão ligadas à causa da
geração, da corrupção e do ser das coisas. Destarte, a
problemática de fundo pode ser formulada da seguinte
forma: “Por que as coisas se geram?”; “Por que se
corrompem?”; “Por que existem?”. Nas palavras do próprio
filósofo:
Escuta [...] o que vou contar: em minha mocidade
senti-me apaixonado por esse gênero de estudos a
que dão o nome de “exame da natureza”; parecia-me
admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo,
saber por que tudo vem à existência, por que perece e por que existe100.
100 PLATÃO. Fédon. In: Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,
1979, 96 A. Todas as citações do Fédon serão feitas a partir desta
edição.
72
Na primeira parte da fase física, Platão aproxima-se
dos físicos em geral e adota seu método de investigação. Por
sua vez, toma conhecimento das múltiplas respostas
apresentadas ao problema da causa da geração, da corrupção
e do ser das coisas, chegando a um resultado nada animador:
Havia coisas acerca das quais eu antes possuía um
conhecimento certo, ao menos na minha opinião, e na
dos outros. Pois bem, essa espécie de estudo chegou
a produzir em mim uma tal cegueira que desaprendi
até aquelas coisas que antes imaginava saber101.
Platão constata a fragilidade da metodologia adotada
pelos físicos em geral e percebe que, ao invés de esclarecer
a causa da geração, da corrupção e do ser das coisas, ela
acaba por torná-la ainda mais confusa e de difícil
compreensão. De fato, ele apresenta três argumentos que
desvelam toda a sua impotência e incapacidade de explicar
as coisas.
O primeiro refere-se às causas do crescimento – na
opinião comum, o crescimento do homem deve-se ao fato
de ele comer e beber: “adicionando carne à carne e ossos
aos ossos, e em geral substância semelhante à substância
semelhante”102. Assim, o volume do corpo, antes pequeno,
passa a muito, e o homem de pequeno torna-se grande. O
processo de crescimento é explicado por um reunir-se e
acrescentar-se de parte a parte. Entretanto, essas partes são
pequenas por si! Resta a interrogação: como o pequeno pode
gerar o grande?
101 Ibidem, 96 C. 102 Fédon, 96 D.
73
O segundo argumento refere-se à causa do ser maior
– Platão percebe que, ao colocarmos um homem grande ao
lado de um pequeno, aquele geralmente se mostrará maior
por uma cabeça, e o mesmo constatamos com um cavalo.
Mas como pode um homem ser maior que o outro por uma
cabeça que é, de fato, pequena por si? Também o dez
aparenta ser maior que o oito pelo fato de ser acrescido de
duas unidades. Como o dez pode ser maior que o oito por
causa do dois, se ele é em si menor? Da mesma forma, a
medida de dois côvados que parece ser maior que a de um
côvado pelo fato de este ser a metade daquele103.
O terceiro argumento refere-se à tentativa de explicar
o dois e o um – segundo os naturalistas, há duas maneiras
para explicar a causa do dois: a primeira aproximando e
acrescentando uma unidade à outra; a segunda separando-
as. Ora, os procedimentos do somar, ou seja, aproximar e
acrescentar, não são contrários ao do dividir, isto é, afastar,
separar? Eles não são categoricamente opostos? Deste
modo, seguindo os naturalistas, Platão não consegue nem
mesmo explicar o um104.
Diante desse quadro de incertezas, Platão manifesta
toda sua frustração: “enfim, e para dizer tudo, não sei
103 Cf. Ibidem, 96 D – E. 104 Cf. Ibidem, 97 A – B. Segundo REALE, G. Para uma nova
Interpretação de Platão. Op. cit., p. 105 et seq. “O ‘grande’ e o
‘pequeno’ e, sobretudo, o ‘dois’ e o ‘um’, dos quais ele [Platão]
sempre fala, não tem de modo algum um valor limitado de caráter
geométrico e matemático, mas tem um valor ontológico e metafísico
preciso, com o vértice na geração do um (έ´υ)”. Desse modo, são
referências à doutrina dos Princípios. De fato, “nos três casos, Platão
evoca precisamente aquela categoria da unidade que constituirá a base
da metafísica” REALE, G. O saber dos Antigos. Op. cit., p. 224.
74
absolutamente como qualquer coisa tem origem, desaparece
ou existe, segundo este procedimento metodológico. Escolhi
então outro método, pois, de qualquer modo, este não me
serve”105. É neste momento que ele toma conhecimento da
teoria da Inteligência Ordenadora de Anaxágoras – veremos
agora a segunda parte da fase física:
Certo dia ouvi alguém que lia um livro de
Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador
e a causa de todas as coisas”. Isso me causou
alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto,
vantagem em considerar o espírito como causa
universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou
espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor
forma. Desse modo, se alguém desejar encontrar a
causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou
existe, deve encontrar, a respeito, qual é a melhor
maneira seja de ela existir, seja de sofrer ou produzir
qualquer ação. E pareceu-me ainda que a única coisa
que o homem deve procurar é aquilo que é melhor e
mais perfeito, porque desde que ele tenha encontrado
isso, necessariamente terá encontrado o que é o pior, visto que são objetos da mesma ciência106.
Grandes eram suas expectativas. Acreditava ter
encontrado, em Anaxágoras e em sua Inteligência
Ordenadora, a causa capaz de explicar tudo o que existe.
Platão estava convicto de que a Inteligência e o Bem são
estruturalmente conexos, pois somente assim ela seria capaz
de ordenar as coisas da melhor forma possível. Portanto,
Anaxágoras deveria explicar o critério do melhor em função
105 Fédon, 97 B. 106 Fédon, 97 B – D.
75
do qual a Inteligência opera. Contudo, não foi isso que
aconteceu.
Anaxágoras estava circunscrito ao método de
investigação dos naturalistas e não conseguiu superá-lo.
“Com efeito, Anaxágoras tinha razão ao afirmar que a
Inteligência é causa de tudo, mas não conseguiu dar a tal
afirmação um fundamento adequado e uma consistência
necessária”107: seu método não permitia. Mais uma vez a
decepção se fez presente: “nunca supus que depois de ele
haver dito que o Espírito os havia ordenado, ele pudesse
dar-me outra causa além dessa que é a melhor e que é a que
serve a cada uma em particular assim como ao conjunto”108.
O equívoco de Anaxágoras foi confundir a verdadeira
causa com a concausa material. O depoimento de Platão é
esclarecedor a esse respeito:
À medida que avançava e ia estudando mais e mais,
notava que esse homem não fazia nenhum uso do
espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na
ordem do universo, indo procurar tal causalidade no
éter, no ar, na água em muitas outras coisas
absurdas!109
A fragilidade é exposta em proporções ainda maiores
quando Platão apresenta o famoso argumento de Sócrates.
Confunde-se a verdadeira causa com a concausa material e
107 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
106. Ver também REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza
Segreta. Op. cit., p. 147 et. seq. 108 Fédon, 98 A – B. 109 Ibidem, 98 B – C.
76
instrumental quando se afirma que Sócrates faz tudo o que
faz com a Inteligência e, no entanto, ao buscar explicar a
causa de seu agir, afirma-se que ele está no cárcere por
causa de seus órgãos locomotores, suas carnes, seus nervos,
seus ossos etc., negligenciando a verdadeira causa, ou seja,
a escolha do justo e do melhor, isto é, do Bem, feita com a
Inteligência110.
Com efeito, apesar de ter descoberto a Inteligência
Ordenadora, Anaxágoras permaneceu circunscrito à physis,
continuou a atribuir grande importância aos elementos
físicos na explicação das causas das coisas. Todavia, o
método físico não dá conta de explicar a totalidade do real:
seu erro é estrutural. Era imprescindível descobrir um novo
método:
– Isso [articular a Inteligência com os elementos
físicos e não com o melhor] importaria, nada mais
nada menos, em não distinguir duas coisas bem
distintas, e em vão ver que uma coisa é a verdadeira
causa e outra aquilo sem o que a causa nunca seria
causa. Todavia, é a isso que aqueles que erram nas
trevas, segundo me parece, dão o nome de causa,
usando impropriamente o termo. O resultado é que
um deles, tendo envolvido a terra num turbilhão,
pretende que seja o céu o que a mantém em
equilíbrio, ao passo que para outro ela não passa
duma espécie de gamela, à qual o ar serve de base e
de suporte. Mas quanto à força, que a dispôs para
que essa fosse a melhor posição, essa força, ninguém
a procura; e nem pensam que ela deva ser uma
potência divina. Acreditam, ao contrário, haver 110 Cf., Fédon, 98 C – 99 A.
77
descoberto um Atlas mais forte, mais imortal e mais
garantidor da existência do universo do que esse
espírito; recusam-se a aceitar que efetivamente o
bom e o conveniente formem e conservem todas as
coisas. Ardentemente desejaria eu encontrar alguém
que me ensinasse o que é tal causa! Não me foi
possível, porém adquirir esse conhecimento então,
pois nem eu mesmo o encontrei, nem o recebi de
pessoa alguma. Mas querias, estimado Cebes, que
descrevesse a segunda excursão111 que realizei em
busca dessa causalidade?
111 Para sermos fiéis à intenção de Platão, a expressão δευτερος πλους
– deuteros plous – deve ser traduzida por segunda navegação, do
contrário, não se preserva a conotação que o fundador da Academia
queria dar. Infelizmente, nossos tradutores nem sempre levaram isso
em conta. Além da tradução que estamos seguindo, podemos constatar
o mesmo erro em Jaime Bruna: “Queres, Cebes – perguntou – que te
narre as canseiras que me deu a rota de emergência em busca da
causa?” In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 189.
Mesmo publicações recentes negligenciam a metáfora platônica,
operando uma tradução literal: “Mas, uma vez que esta me falhou e
não pude, por minha parte, descobri-la ou achar quem ma explicasse,
tive de tentar uma segunda via para lançar na sua busca... Desejas,
pois, Cebes, que te conte a história dessas tentativas?” In: PLATÃO.
Fédon. Brasília: UnB, 2000. Carlos Alberto Nunes é quem mais se
aproximou da intenção de Platão: “Queres que te faça uma descrição
completa, Cebes, de como empreendi o segundo roteiro de navegação
para a investigação da causa?” In: PLATÃO. Diálogos. Belém: UFP,
1980.
78
– É impossível que alguém o deseje mais do que eu –
respondeu Cebes112.
3.1.2 A segunda navegação
A segunda navegação constitui a grande novidade e o
ponto fundamental da filosofia platônica. Ao que tudo
indica, a expressão é de origem marinhesca. É Giovanni
Reale que, recuperando uma antiga tradição, apresenta seu
verdadeiro significado:
“Segunda navegação” é uma metáfora tirada da
linguagem dos marinheiros, e o seu significado mais
óbvio parece ser o que é oferecido por Eustáquio,
que, referindo-se a Pausânias, explica: “Chama-se
‘segunda navegação’ aquela que alguém empreende
quando, ao ficar sem ventos, navega com os remos”.
E essa explicação, como há tempo os estudiosos
observaram, encontra confirmação até mesmo em
Cícero, que contrapõe o método do pandere vela
112 Fédon, 99 B – D. Acreditamos ser oportuno reproduzir a
interpolação de REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão.
Op. cit., p. 107.
79
orationis o método que consiste em dialecticorum
remis113.
A primeira navegação, isto é, aquela feita com as
velas ao vento, corresponde à investigação realizada sob o
impulso da filosofia da physis, isto é, seguindo método dos
naturalistas. Neste tipo de investigação, o filósofo está
circunscrito às velas dos sentidos e das sensações. Deste
modo, busca explicar o sensível por meio do próprio
sensível.
A segunda navegação, isto é, aquela feita com os
remos – muito mais trabalhosa e comprometedora –, refere-
se ao novo método proposto por Platão que conduz à
descoberta de uma nova dimensão do ser. Este novo modo
de filosofar é impulsionado pelos remos dos raciocínios e
dos postulados racionais, levando à conquista da dimensão
supra-sensível, ou seja, metafísica do ser. Transcrevemos
abaixo o texto que, em Platão, apresenta a segunda
navegação:
– Então – prosseguiu Sócrates – minha esperança de
chegar a conhecer os seres começava a esvair-se.
Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de não vir a
ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam
um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem
estragam os olhos por não tomarem a precaução de
observar a imagem do sol refletida na água ou em
matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que
minha alma viesse a ficar completamente cega se eu
113 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
108. Cf. REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op.
cit., p. 146.
80
continuasse a olhar com os olhos para os objetos e
tentasse compreendê-los através de cada um de meus
sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas idéias e
procurar nelas a verdade das coisas. É possível,
todavia, que esta comparação não seja perfeitamente
exata, pois nem eu mesmo aceito sem reservas que a
observação ideal dos objetos – que é uma observação
por imagens – seja melhor do que aquela que deriva
de uma experiência dos fenômenos. Entretanto, será
sempre para o lado daquela que me inclinarei. Assim,
depois de haver tomado como base, em cada caso, a
idéia, que é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo
que lhe seja consoante eu o considero como sendo
verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra
qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro114.
Como podemos observar, Platão tenta libertar-se
radicalmente dos sentidos e do sensível empreendendo uma
guinada metodológica que o conduz para o plano do
raciocínio puro e para aquilo que é apreendido somente com
o intelecto.
A segunda navegação platônica traz consigo uma tese
que será reiteradamente retomada e amplamente discutida
na história da filosofia Ocidental, ou seja, “a afirmação de
que a apreensão verdadeira da realidade se faz através de
conceitos e idéias115, que captam o ser mesmo de tudo, a
114 Fédon, 99 D – 100 A. 115 Nós, modernos, entendemos por ideia apenas um conceito, um
pensamento ou uma representação mental. Mais uma vez é a tradução
que nos conduz a um engodo, pois não é nessa acepção que Platão
emprega o termo Ideia. Com efeito, “o termo ‘Idéia’ não é uma
81
realidade como ela é em si mesma, em suas notas
essenciais”116. Platão está ciente da complexidade intrínseca
à novidade apresentada pela segunda navegação e,
justamente por isso, procura fornecer ulteriores explicações
ao seu interlocutor:
Vou, porém, explicar com mais clareza o que estou a dizer, pois me parece que não o compreendeste bem.
– Por Zeus, com efeito, que não o entendo bem! –
confirmou Cebes.
tradução, mas uma simples transliteração do original grego. A
tradução exata seria ‘Forma’ [...]. Os termos Idea e Eidos derivam do
verbo grego idein, que significa ver. No significado pré-filosófico,
estes termos indicavam a forma visível das coisas, a imagem sensível.
A partir de Platão, com algumas antecipações fragmentárias e parciais
em Anaxágoras e Demócrito, passou a significar a ‘forma interior’, ou
seja, a natureza específica ou a essência da coisa, o verdadeiro ser da
coisa. Mas só com Platão, e propriamente através do salto qualitativo
operado por ele com a ‘segunda navegação’, estas condições são
possíveis”. REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta.
Op. cit., p. 150 et seq.: “Il termine ‘Idea” non è una tradizione, ma la
semplice translitterazione dell’originário grego. La traduzione esata
sarebbe quella di ‘Forma’. [...] I termini Idea e Eidos in grego
derivano dal verbo idein, che significa ‘vedere’. Nel significato
profilosofico questi termini indicavano la forma visibile delle cose, il
veduto sensibile. A partire da Platone, con alcuni parziali e
frammentari anticipi in Anassagora e Democrito, essi vengono a
significare la ‘forma interiore’, ossia la natura specifica o essenza
delle cose, il vero esse delle cose. Ma solo con Platone, e proprio
mediante el salto qualitativo da lui operato con la sua ‘seconda
navigazione’, questo è stato possibile”. 116 OLIVEIRA, M. A. Filosofia: lógica e metafísica. In: IMAGUIRE,
G.; ALMEIDA, C. L. S. de; OLIVEIRA, M. A. (orgs). Metafísica
Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 161.
82
– Quero dizer o seguinte – volveu Sócrates – e não
estou a enunciar nenhuma novidade, mas apenas a
repetir o que, em outras ocasiões como na pesquisa
passada, tenho me fatigado de dizer. Tentarei
mostrar-te a espécie de causa que descobri. Volto a
uma teoria que já muitas vezes discuti e por ela
começo: suponho que há um belo, um bom, e um
grande em si, e do mesmo modo as demais coisas. Se
concordas comigo também admites que isso existe,
tenho muita esperança de, por esse modo, explicar-
lhe a causa mencionada e chegar a provar que a alma é imortal.
– Naturalmente admito que isso existe – confirmou Cebes; – e, agora, faze depressa o que dizes.
– Examina, pois, com cuidado, se estás de acordo,
como eu, com o que se deduz dessa teoria! Para mim
é evidente: quando, além do belo em si, existe outro
belo, este é belo porque participa daquele apenas por
isso e por nenhuma outra causa. O mesmo afirmo a
propósito de tudo o mais. Reconheces isto como causa?
– Reconheço.
– Logo – prosseguiu Sócrates – não compreendo nem
posso admitir aquelas outras causas científicas. Se
alguém me diz por que razão um objeto é belo, e
afirma que é porque tem cor ou forma, ou devido a
qualquer coisa desse gênero – afasto-me sem discutir,
pois todos esses argumentos me causam unicamente
perturbação. Quanto a mim, estou firmemente
83
convencido, de um modo simples e natural, e talvez
até ingênuo, que o que faz belo um objeto é a
existência daquele belo em si, de qualquer modo que
se faça a sua comunicação com este. O modo por que
essa participação se efetua, não o examino neste
momento; afirmo, apenas, que tudo o que é belo é
belo em virtude do Belo em si. Acho que é muitíssimo
acertado, para mim e para os demais, resolver assim
o problema, e creio não errar adotando esta
convicção. Por isso digo convictamente, a mim
mesmo e aos demais, que o que é belo é belo por
meio do Belo. Acaso não é esta também a tua opinião?
– É.
– E o que é grande é grande por meio da Grandeza; e
o que é maior pelo Maior; e o que é menor é Menor por meio da Pequenez?
– Indubitavelmente117.
Como afirmamos anteriormente, a descoberta da
teoria das Ideias constitui a primeira etapa da segunda
navegação. Esta descoberta colocou à disposição de Platão
um grande instrumental teórico. Ela possibilitou ao filósofo
explicar as coisas não mais por elas mesmas, mas em função
das realidades inteligíveis (o belo em si, o bom em si, o
grande em si etc.). O sensível já não é mais tomado como
verdadeira causa, mas como meio para a realização dessa
verdadeira causa.
117 Fédon, 100 A – E.
84
Ao contrário do que muitos pensaram, a teoria das
Ideias não constitui o vértice metafísico da filosofia de
Platão, pois, acima delas, estão os Princípios primeiros e
supremos que constituem verdadeiramente a etapa final da
segunda navegação. Entretanto, esta não é uma postura
aceita de modo unívoco e com tranquilidade entre os
historiadores de filosofia em geral e pelos platonistas.
O fato é que sua aceitação está estruturalmente ligada
à admissão das Doutrinas não-escritas, pois a principal
fonte que temos da doutrina dos Princípios é a tradição
indireta. Contudo, se, nos escritos de Platão, a doutrina dos
Princípios não aparece de forma tão explicita como a teoria
da Ideias, não se pode negar que há muitas remissões
implícitas e de caráter alusivo. O texto que transcrevemos
abaixo é um exemplo bem claro disso:
E se alguém se apresentasse censurando essa tese
[isto é, a teoria das Idéias], porventura não o
deixarias em paz e sem resposta, até o momento em
que houvesse examinado as conseqüências extraídas
e verificado se ela concorda consigo mesma ou se
contradiz? E depois, quando viesse a ocasião de dar
as razões desta tese em si mesma, não o farias da
mesma forma, tomando desta vez por base uma outra
tese, aquela em que encontrasse maior valor, até
atingires um resultado satisfatório? E não é claro que
tu, desejando uma doutrina do ser verdadeiro, te
absterias de tagarelices e mais discussões a propósito
do princípio e das suas conseqüências, assim como
fazem os que polemizam profissionalmente? Nada
85
daquilo, com efeito, figura nas pesquisas e
preocupações de tais homens: dão-se por
superiormente satisfeitos com a sabedoria que
possuem, embora confundam tudo. Tu, porém, se na
verdade és filósofo, tenho a certeza de que farás o que digo!118
Com efeito, a doutrina dos Princípios “outra tese” que
fundamenta a teoria das Ideias. A tese de “maior valor” que
garante um resultado satisfatório frente aos limites da teoria
das Ideias. Uma vez alcançados tais Princípios, não é
necessário procurar mais nada.
3.2 A TEORIA DAS IDEIAS
A teoria das Ideias compreende a primeira fase da
segunda navegação e configura-se num dos eixos de
sustentação dos escritos platônicos. Lembremos que nosso
autor chegou à teoria das Ideias mediante a introdução de
“postulados”, com o intuito de superar a filosofia da physis,
solucionando definitivamente as questões referentes à
geração, à corrupção e ao ser das coisas. Por meio da teoria
das Ideias, ele pretende fundar uma verdadeira metafísica e
uma nova epistemologia.
118 Fédon, 101 D – 102 A.
86
Platão opera, ao mesmo tempo, uma distinção e uma
síntese. A distinção é expressa na sua concepção de
realidade, que é formada por dois planos de ser - o sensível
e o inteligível. A síntese é elaborada a partir das conclusões
de Heráclito e Parmênides, com a atribuição, por um lado,
das características do ser heraclitiano à esfera sensível da
realidade, e, por outro, das características do ser
parmenídico às realidades inteligíveis. Dessa forma, salvou-
se o movimento e garantiu-se a possibilidade da ciência.
3.2.1 As características metafísico-ontológicas
As realidades inteligíveis sobre a qual falávamos
anteriormente, isto é, as Ideias, possuem alguns traços
fundamentais e algumas características metafísico-
ontológicas que podem ser agrupados em seis pontos:
inteligibilidade; incorporeidade; ser em sentido pleno;
imutabilidade; perseidade e unidade. Examinemos,
sinteticamente, cada um desses pontos.
87
3.2.1.1 A inteligibilidade e a incorporeidade
A inteligibilidade é a primeira característica que
expressa o caráter metafísico das Ideias. Intimamente ligada
a ela está também o conceito de incorporeidade. De fato, a
afirmação do caráter inteligível das Ideias fundamenta-se,
justamente, em elas serem captáveis apenas com os
raciocínios – elas são o objeto do intelecto. Por sua vez, a
inteligibilidade e a incorporeidade, ao mesmo tempo em que
implicam uma distinção entre sensível e inteligível, elevam
as Ideias a um âmbito subsistente acima do próprio sensível,
situando-as numa dimensão inteiramente diferente do
mundo corpóreo sensível. Vejamos um trecho do Fédon, em
que Platão expressa essa radical distinção entre sensível e
inteligível:
– Não é, por conseguinte, no ato de raciocinar, e não
de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade de um ser?
– Sim.
– E, sem dúvida alguma, ela raciocina melhor
precisamente quando nenhum empeço lhe advém de
nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista, nem
dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer – mas
sim quando se isola o mais que pode em si mesma,
abandonado o corpo à sua sorte, quando, rompendo
88
tanto quanto lhe é possível qualquer união, qualquer
contato com ele, anseia pelo real?
– É bem isso!
– E não é, ademais, nessa ocasião que a alma do
filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o
corpo e dele foge, enquanto por outro lado procura isolar-se em si mesma?
– Evidentemente!
– Mas que poderemos dizer, Símias, do seguinte:
afirmaremos a existência do “justo em si mesmo”, ou a negaremos?
– Certamente que a afirmaremos, por Zeus!
– E também a do “belo em si” e a do “bom em si”,
não é verdade?
– Como não?
– Ora, é certo que jamais viste qualquer ser desse gênero com teus olhos?
– Jamais.
– Mas então é porque os aprendeste por qualquer
outro sentimento que não por aqueles de que o corpo
é instrumento? Ora, o que eu disse há pouco é para
todos os seres, tanto para a “grandeza”, a “saúde”,
a “força”, como para os demais – é, numa só palavra
e sem exceção –, a sua realidade: aquilo,
89
precisamente, que cada uma dessas coisas é. E será,
então, por intermédio do corpo que o que nelas há de
mais verdadeiro poderá ser observado? Ou quem
sabe se, pelo contrário, aquele dentre nós que se tiver
o mais cuidadosamente e no mais alto ponto
preparado para pensar em si mesma cada uma dessas
realidades, que considera e toma por objeto – quem
sabe se não é esse quem mais deve aproximar-se do conhecimento de cada uma delas?
– Isso é absolutamente certo.
– E quem haveria de obter em sua maior pureza esse
resultado, senão aquele que usasse no mais alto grau,
para aproximar-se de cada um desses seres,
unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de
pensar nem a vista, nem a um outro sentido, sem
levar nenhum deles em companhia do raciocínio;
quem, senão aquele que, utilizando-se do pensamento
em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se
lançasse à caça das realidades verdadeiras, também
em si mesmas, por si mesmas e sem mistura? e isto só
depois de se ter desembaraçado o mais possível de
sua vista, de seu ouvido, e, numa palavra, de todo o
seu corpo, já que é este quem agita a alma e a impede
de adquirir a verdade e exercer o pensamento, todas
as vezes que está em contato com ela? Não será este
o homem, Símias, se a alguém é dado fazê-lo neste
mundo, que atingirá o real verdadeiro?
– Impossível, Sócrates, falar com mais verdade!119
119 Fédon, 65 C – 66 A.
90
Também no Político, a inteligibilidade aparece
intimamente ligada à incorporeidade: “As realidades
imateriais, as maiores e mais belas, só podem ser claramente
reveladas por meio da razão”120. Portanto, as Ideias
enquanto realidades inteligíveis e naturalmente
incorpóreas/imateriais, são preendidas apenas pela
razão/intelecto, graças a sua capacidade de transcender a
dimensão física dos sentidos, do corpóreo.
3.2.1.2 O ser em sentido pleno
Afirmar que as Ideias são o puro ser é o mesmo que
dizer que elas são o ser que verdadeiramente é. Com efeito,
elas são apresentadas e qualificadas por Platão “como o
verdadeiro ser, ser em si, ser estável e eterno”121. Indicam,
assim, um ser que “não nasce, não perece, não cresce nem
diminui, não muda nem advém de alguma maneira”122.
Alguns textos são particularmente significativos e
apresentam o conceito de Ideia como puro ser como o
centro de gravitação das outras características. Comecemos
pelo Banquete:
120 PLATÃO. Político. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980,
286 A. 121 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
126. 122 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. cit.,
p. 152: “non nasce, non perisce, non cresce né diminuisce, non muta
né diviene in alcuna maniera”.
91
– Quem tiver sido levado até esse ponto pelo caminho
do Amor, após a contemplação gradativa e regular
das coisas belas, já próximo da meta final do
conhecimento amatório, perceberá de súbito uma
beleza de natureza maravilhosa, precisamente,
Sócrates, a que construíra a razão de ser de seus
esforços anteriores: para começar é sempiterna, não
conhece nascimento nem morte, não aumenta nem
diminui; ao depois, não é bela de um jeito e feia de
outro, ou bela num determinado momento para
deixar de sê-lo pouco adiante, nem bela sob tal
aspecto e feia noutras condições, ou aqui sim e ali
não, ou bela para algumas pessoas porém feias para
outras; beleza que não se lhe apresentará sob
nenhuma forma concreta, como fora o caso de um
belo rosto ou de belas mãos ou de qualquer outra
parte do corpo, nem sob o aspecto de um discurso ou
conhecimento, nem como algo existente em qualquer
parte, num animal por exemplo, na terra, no céu ou
seja no que for, mas que existe em si e por si mesma e
é eternamente una consigo mesma, da qual todas as
coisas belas participam, porém de tal modo, que o
nascimento e a morte delas todas em nada a diminui ou lhe acrescenta nem causa o menor dano123.
No Fédon, Platão caracteriza as Ideias como puro ser
ainda mais claramente:
Aquela idéia ou essência a que em nossas perguntas e
respostas atribuímos a verdadeira existência,
conserva-se sempre a mesma e de igual modo, ou ora
123 PLATÃO. O Banquete. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980,
210 E – 211 B, grifo nosso.
92
é de uma forma, ora de outra? O igual em si, o belo
em si, todas as coisas em sim mesmas, o ser, admitem
qualquer alteração? Ou cada uma dessas realidades,
uniformes e existentes por si mesmas, não se
comportará sempre da mesma forma, sem jamais
admitir de nenhum jeito a menor alteração?
Forçosamente, Sócrates, falou Cebes, sempre
permanecerá a mesma e do mesmo jeito.
E com relação à multiplicidade das coisas belas:
homens, cavalos, vestes e tudo o mais da mesma
natureza, que ou são iguais ou belas e recebem a
própria designação daquelas realidades: conservam-se
sempre idênticas ou, diferentemente das essências,
não são jamais idênticas, nem com relação às outras
nem, por assim dizer, consigo mesmas?
Isso, justamente, Sócrates, é o que se observa,
respondeu Cebes; nunca se conservam as mesmas.
E não é certo também que todas essas coisas se
podem ver e tocar ou perceber por intermédio de
qualquer outro sentido, ao passo que as essências, que
se conservam sempre iguais a si mesmas, só podem
ser apreendidas pelo raciocínio, por serem todas elas
invisíveis e estarem fora do alcance da visão?
O que dizes, observou, é a pura verdade.
Achas, então, perguntou, que podemos admitir duas
espécies de coisas [seres]: umas visíveis e outras
invisíveis?
93
Podemos, respondeu.
Sendo que as invisíveis são sempre idênticas a si
mesmas, e as visíveis, o contrário disso?
Podemos, respondeu.
Sendo que as invisíveis são sempre idênticas a si
mesmas, e as visíveis, o contrário disso?
Admitamos também esse ponto, respondeu124.
Como podemos perceber, a característica de Ideia
como ser em sentido pleno e absoluto está em perfeita
sintonia com as outras duas características apresentadas
anteriormente. Por sua vez, ela mantém ainda uma relação
essencial com os conceitos de imutabilidade e perseidade
que veremos logo à frente.
A temática das Ideias como o verdadeiro ser é
também retomada no Fédro, quando Platão descreve o
Hiperurânio125, isto é, o mundo das Ideias. Na República126,
ela recebe ampliações numa perspectiva gnosiológica,
124PLATÃO. Fédon. In: Diálogos de Platão. Tradução de Carlos
Alberto Nunes. Belém: UFP, 1980, 78 D – 79 A, grifo nosso. 125 Hiperurânio = supraceleste, “lugar acima do céu”. Indica um lugar
que não é absolutamente um lugar no sentido físico, mas um lugar
metafísico, ou seja, a dimensão do supra-sensível. Cf. PLATÃO.
Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 247 C – E. 126 Cf. PLATÃO. A República. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,
1976, 476 E et seq.
94
culminando na afirmação de que somente o verdadeiro ser é
verdadeiramente cognoscível.
3.2.1.3 A imutabilidade e a perseidade
A imutabilidade e a perseidade são verdadeiramente
explicitações e determinações da característica abordada
anteriormente, isto é, de puro ser. É por essas duas
características, particularmente a de perseidade, que
surgiram grandes críticas a Platão, seguindo principalmente
a esteira aberta por Aristóteles.
Não temos o intuito de abordar essa questão
detalhadamente aqui. Todavia, lembramos que, ao referir-se
às Ideias como realidades em si e por si – belo em si, bem
em si etc. – Platão queria expressar o caráter de imobilidade
que a Ideia possui. Deste modo, como lembra Giovanni
Reale, essa característica das Ideias “foi entendida
freqüentemente em sentido hipostático, como se ela
revelasse claramente que a Idéia não é mais que a
ontologização do conceito ou a entificação do abstrato, ou
95
seja, a hipostatização do universal”127. Por hora, reiteramos
que a critica de Aristóteles é infundada.
Ao acentuar a imobilidade e a objetividade das Ideias,
Platão visa combater duas formas de relativismo: de um
lado, o relativismo heraclitiano que afirmava o perene fluxo
e a radical mobilidade de todas as coisas – culminando
numa total incognoscibilidade e ininteligibilidade do mundo
sensível; de outro, o relativismo sofístico-protagoriano que
negava a objetividade da realidade externa e dos valores –
instituindo o indivíduo como medida e critério último de
verdade.
Vejamos como a característica da imutabilidade das
Ideias emerge na polêmica contra o heraclitismo,
apresentada no Crátilo:
Sócrates – Detenhamo-nos mais particularmente
noutro aspecto do problema, para não nos
deixarmos enganar pela multidão de
palavras de igual orientação. Parece, de
fato, que os instituidores dos nomes os
formaram partindo do pressuposto de que
todas as coisas passam e se encontram num
fluxo perpétuo. É a idéia que eu faço de sua
maneira de pensar. Mas pode muito bem
acontecer que a explicação seja outra: eles
é que, tendo caído numa espécie de
redemoinho, ficaram atordoados e nos
arrastam na mesma direção. Reflete, meu
admirável Crátilo, no que tenho sonhado
127 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
130.
96
tantas vezes: se é licito afirmar que existe o
belo e o bom em si, e, nas mesmas
condições, qualquer coisa particular, ou não?
Crátilo – Parece-me que sim, Sócrates.
Sócrates – Então examinemos esse ponto [aquele em
si mesmo], sem procurarmos saber se é belo
este ou aquele rosto, ou o que quer que seja,
e se tudo parece encontrar-se num fluxo
perpétuo, e perguntemos se o belo em si não é sempre igual a si mesmo?
Crátilo – Necessariamente.
Sócrates – Se a todo momento o belo nos escapa,
poderemos com propriedade afirmar dele,
primeiro, que é aquilo mesmo que dissemos,
e depois, que é de determinada natureza, ou
será forçoso que no instante em que falamos
ele se modifique e desapareça, deixando de ser o que era?
Crátilo – Necessariamente.
Sócrates – De que modo, então, o que nunca se
encontra no mesmo estado poderá ser
alguma coisa? Se num determinado
momento ele se conservasse igual, é
evidente que durante esse tempo não
passaria por nenhuma transformação. Por
outro lado, se permanecesse sempre igual e
fosse sempre o mesmo, como poderia
97
transformar-se e movimentar-se, se nunca
chegasse a perder a forma inicial?
Crátilo – De nenhum jeito fora possível.
Sócrates – E mais: nunca poderia ser conhecido por
ninguém; pois no instante preciso em que o
observador se aproximasse dele para
conhecê-lo, ele se transformaria noutra
coisa diferente, de forma que não se
poderia conhecer a sua natureza ou o seu
estado. Não há conhecimento que conheça o
objeto do conhecimento que não se
encontra em nenhum estado.
Crátilo – É assim mesmo como dizes128.
Como podemos observar, declarando a imutabilidade
das Ideias, Platão afirma que “a verdadeira causa que
explica o que muda não pode, ela mesma, mudar, caso
contrário não seria a ‘verdadeira causa’, ou seja, não seria a
razão última”129. Observemos agora como Platão apresenta a
perseidade, enquanto objetividade absoluta das Ideias frente
ao relativismo sofístico-protagoriano:
Sócrates – Então, vejamos agora, Hermógenes, se és
também de parecer que com os seres se dá o
mesmo, possuindo cada um sua existência
particular, como dizia Protágoras, quando
128 PLATÃO. Crátilo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1973, 439
B – 440 A. 129 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit. p.
133.
98
afirmou que o homem é a medida de todas
as coisas, e que, por isso, conforme me
parecem as coisas, tais serão elas,
realmente, para mim, como o serão para ti
conforme te parecem. Ou és de opinião que
sua essência seja, de algum modo, permanente?
Hermógenes – Já me aconteceu, Sócrates, algumas
vezes, em minha perplexidade, ser levado a
adotar a opinião de Protágoras. Contudo, não me parece que seja muito certa.
Sócrates – Como assim? Em algum tempo já chegaste
a admitir que não existe em absoluto homem ruim?
Hermógenes – Não, por Zeus. Já me tem acontecido
muitas vezes aceitar que há homens ruins, e
até mesmo em grande número.
Sócrates – E então? E homens inteiramente bons, nunca chegastes a encontrar?
Hermógenes – Pouquíssimos.
Sócrates – Porém já os encontraste?
Hermógenes – Sim, já encontrei.
Sócrates – E de que modo pensas? Não te parece que
sejam judiciosos os indivíduos bons de todo,
e insensatos os inteiramente maus?
99
Hermógenes – É isso, justamente, o que penso.
Sócrates – Como poderá dar-se, então, no caso de
estar Protágoras com a razão, e ser, de
fato, verdade que as coisas são como
parecem ser a cada um, que entre nós uns sejam judiciosos, e outros insensatos?
Hermógenes – Não é possível.
Sócrates – Por outro lado, no caso de haver diferença
entre a razão e a sem-razão, hás de admitir
também, sem vacilações, que dificilmente
estará certa a proposição de Protágoras.
Pois, em verdade, ninguém poderia ser mais
judicioso do que o outro, se a verdade fosse
o que parece a cada pessoa.
Hermógenes – É muito certo.
Sócrates – Mas também não admitirás com Eutidemo,
quero crer, que todas as coisas são
semelhantes simultaneamente e sempre
para todo o mundo. Desse jeito, umas
pessoas não poderão ser boas, e outras
más, se a virtude e o vício ocorrerem
sempre juntos e ao mesmo tempo em todos os indivíduos.
Hermógenes – É certo o que dizes.
Sócrates – Ora, se as coisas não são semelhantes ao
mesmo tempo, e sempre, para todo o
mundo, nem relativas a cada pessoa em
100
particular, é claro que devem ser em si
mesmas de essência permanente; não estão
em relação conosco, nem na nossa
dependência, nem podem ser deslocadas em
todos os sentidos por nossa fantasia, porém
existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural.
Hermógenes – Parece-me que é assim mesmo, Sócrates130.
Mesmo no Parmênides, a objetividade das Ideias é
reafirmada:
Tudo isso, Sócrates, voltou Parmênides a falar, e
muito mais ainda está implícito nas idéias, no caso de
terem estas existência própria e concebê-las alguém
como algo independente. Quem ouve tal coisa fica
perplexo, sendo levado a contestar sua existência ou,
na hipótese de admiti-las, será obrigado a declarar
que por força terão de ser desconhecidas da natureza
humana. Quem assim se manifesta sabe o que diz e,
conforme observamos a pouco, não será fácil
demovê-lo de suas convicções. Só um indivíduo de
dotes extraordinários será capaz de compreender que
para cada coisa há um gênero à parte com existência
independente, e alguém mais bem dotado, ainda, para
descobrir tudo isso e ensiná-lo devidamente aos outros, por meio de uma análise exaustiva.
130 Crátilo, 385 E – 386 E.
101
Declaro-me de acordo contigo, Parmênides,
observou Sócrates, pois quando disseste concerta plenamente com minha maneira de pensar131.
A perseidade, isto é, a objetividade das Ideias, é
atestada pela permanência, pela estabilidade de sua essência.
Assim, possuem uma completa independência em relação ao
indivíduo, ao sujeito. A própria experiência comprova isso.
Portanto, o reconhecimento dessa total objetividade se
impõe e exige nosso reconhecimento.
3.2.1.4 A unidade
O caráter unitário metafísico das Ideias deve ser
compreendido numa dupla perspectiva, intimamente ligadas
entre si: a multiplicidade de coisas sensíveis que delas
participam; a concepção platônica de filósofo. De fato,
como lembra Giovanni Reale, “cada Idéia é uma ‘unidade’
e, como tal, explica as coisas sensíveis que dela participam,
constituindo desse modo uma multiplicidade uni-ficada”132.
E acrescenta: “o conhecimento dialético consiste em saber
uni-ficar a multiplicidade das coisas numa visão sinótica,
131 PLATÃO. Parmênides. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1974,
134 E – 135 B. 132 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
136.
102
reunindo a multiplicidade sensível na unidade da Idéia da
qual as coisas dependem”133.
Vejamos agora o texto da República em que a
natureza do filósofo é apresentada em sintonia com a
unidade metafísica das Ideias:
E para ti, perguntou, quais são os verdadeiros filósofos?
Os que se comprazem, disse, na contemplação da verdade.
É muito certo, objetou; mas, como explicas semelhante fato?
Não me fora fácil explicar, lhe disse, se estivesse a
tratar com outra pessoa. Mas tenho a certeza de que vais concordar com o seguinte.
Que é?
Uma vez que o belo é o oposto do feio, trata-se de
dois conceitos.
Como não?
Se são dois, cada um constitui uma unidade.
133 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. cit.,
p.154: “la conoscenza dialettica consiste nel saper uni-ficare la
molteplicità delle cose in una visione sinottica, raggruppando la
molteplicità sensoriale nell’unità dell’Idea dalla quale le cose
dipendono”.
103
Isso também.
O mesmo é válido para os conceitos do justo e do
injusto, do bem e do mal, e para todos, isoladamente
considerados: constituem unidades; mas, como cada
um deles só nos surge em combinação com outro, com corpos e ações, por isso nos parece múltiplo.
É justo o que dizes, observou134.
O filósofo é aquele capaz de unificar a multiplicidade
do sensível na Ideia. Os não-filósofos se perdem na
multiplicidade135, o dialético, ao contrário, vê o conjunto136.
3.2.2 O “dualismo” platônico
Diante do que foi dito, é possível entender que Platão
teria formulado uma concepção dualista da realidade. Como
afirmamos anteriormente, com a segunda navegação, temos
a descoberta de um novo plano de ser. Com a teoria das
Ideias, a distinção entre sensível e supra-sensível fica ainda
mais evidente. Entretanto, se, na antropologia platônica, a
interpretação dualista do homem é facilmente admissível e
sustentável, o mesmo não ocorre em sua metafísica.
Na metafísica platônica, encontramos uma distinção
entre dois planos de ser, e não uma simples oposição. 134 A República, 475 E – 476 A. 135 Cf. A República, 484 B. 136 Cf. A República, 537 C.
104
Segundo Giovanni Reale137, o dualismo não se justifica nem
mesmo na separação das Ideias das realidades sensíveis,
isto é, na sua transcendência. Não obstante, as Ideias são
tanto imanentes quanto transcendentes138. Sua imanência
indica aquilo que permanece tornando as coisas
cognoscíveis. Sua transcendência eleva-as ao patamar de
causa do sensível. É na transcendência das Ideias que
encontramos o fundamento de sua imanência.
Lembramos que, como o sensível não explica a si
mesmo, é preciso recorrer a uma causa que o transcenda.
Assim, o sensível é explicado pelo supra-sensível, o móvel
pelo imóvel, o múltiplo pelo uno e assim por diante. É
justamente a transcendência das Ideias que qualifica a
função de causa verdadeira que elas cumprem.
Como sabemos, Platão manteve-se convicto sobre a
existência de dois diferentes planos de ser. Seus últimos
diálogos são prova disso. Para Giovanni Reale, o erro que
conduz à afirmação do dualismo consiste em confundir a
distinção dos dois planos de ser em sua diferença estrutural
de natureza com sua separação, considerando, em certo
sentido, as Ideias como “’supercoisas’ fisicamente e não
metafisicamente separadas das coisas, como se elas não
137 Cf. REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit.,
p. 139. 138 Quanto à afirmação da imanência e da transcendência das Ideias,
vale a pena conferir o esquema de David Ross reproduzido por
REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p. 140
et seq. Nele, são enumeradas as expressões que Platão usou para
indicar tanto a imanência quanto a transcendência das Ideias.
105
fossem mais do que o sensível mistificado e, como tal,
contraposto ao sensível”139.
A segunda navegação afirma a transcendência do
mundo inteligível não como simples separação do mundo
sensível, mas como sua causa metaempírica, sua razão de
ser. Assim, o “dualismo” platônico se configura, nada mais
nada menos, no “dualismo de quem admite a existência de
uma causa supra-sensível como razão de ser do próprio
sensível, convencido de que o sensível, por sua
autocontraditoriedade, não possui uma razão de ser total de
si mesmo”140.
O grande símbolo da transcendência das Ideias foi
apresentado por Platão no Fédro, com o mito do
Hiperurânio. Vejamos o texto abaixo:
139 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
143. Quem também defende a unidade do mundo em Platão,
recusando a interpretação dualista, é Jean-Paul Dumont. Para sustentar
tal posição, ele serve-se das imagens apresentadas pelo próprio Platão
no final do livro VI e no começo do livro VII da República: a célebre
comparação da linha e a alegoria da caverna. Eis a passagem:
“Contrariamente ao que se ouve dizer (e pelo que se deixam levar
certos tradutores de A República), não existem para Platão dois
mundos, onde um seria inteligível e outro sensível. Há apenas um
mundo, proporcionalmente, analogicamente e geometricamente
dividido ou segmentado em lugares e colocado sobre o império do
Bem (A República), do Um (Parmênides), do Um-Bem (ensinamento
não-escrito) que está situado além da ousia, da realidade – mesmo
inteligível – e da existência”. DUMONT, J-P. Elementos de História
da Filosofia Antiga. Brasília: UnB, 2004, p. 301. 140 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
143.
106
A região supraceleste [i.é, o Hiperurânio] nunca foi
cantada por nenhum poeta cá de baixo, nem nunca
poderá ser bastantemente enaltecida. O que há é o
seguinte, pois é preciso coragem para dizer a
verdade. A essência que realmente existe e é sem
corpo e sem forma, impalpável e só pode ser
percebida pelo guia da alma, o intelecto, sobre ser o
objeto do verdadeiro conhecimento, tem aqui a sua
sede. Ora, o pensamento de Deus, nutrido
exclusivamente de inteligência e de conhecimento
puro, tal como se dá, aliás, com toda alma que se
preocupa com receber o conhecimento que lhe
convém, alegra-se quando chega o tempo de voltar a
perceber a realidade, e se nutre com delícias na
contemplação da verdade, até que o movimento
circular a traga de novo para o ponto de partida. No
decurso dessa revolução contempla a justiça em si
mesma, contempla a temperança, o conhecimento,
não o conhecimento passível de crescimento que
difere de acordo com o objeto com que se relaciona e
a que em nossa curta existência damos a
denominação de seres, mas o conhecimento do que
verdadeiramente existe. Depois de haver
contemplado as outras realidades verdadeiras e delas
se alimentado, mergulha a alma de novo no interior
do céu e retorna para sua morada. Lá chegando, o
cocheiro leva os cavalos para a mangedoura, lança-lhes ambrósia e depois dá-lhes a beber néctar141.
Lembramos ainda que o mundo ideal, ou seja, o
Hiperurânio, possui uma estrutura hierarquicamente 141 PLATÃO. Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 247
C – E.
107
organizada em que as Ideias inferiores implicam as
superiores, numa ascensão ininterrupta, até chegar às Ideias
que ocupam o vértice da hierarquia, em que está a Ideia que
condiciona as outras e não é condicionada por nenhuma
delas. Este princípio absoluto e incondicionado Platão
identificou com a Ideia do Bem142.
3.3 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS
PRIMEIROS E SUPREMOS
Enquanto a teoria das Ideias compreende a primeira
fase da segunda navegação, a doutrina dos Princípios,
também denominada como Protologia143, constitui sua etapa
final. Quando falamos em doutrina dos Princípios, estamos
falando daquela outra tese, aquela de maior valor144, capaz
de garantir um resultado satisfatório frente às limitações da
teoria das Ideias. O ensinamento mais precioso145 que foi
confiado à oralidade dialética. Estes Princípios supremos
são o Uno e a Díade do grande e do pequeno:
142 Na República – 507 A – 509 C, Platão referiu-se expressamente,
porém de modo incompleto, sobre esse princípio incondicionado e
absoluto. O restante do que sabemos sobre esse princípio do qual
derivam todas as Ideias foi transmitido pela tradição indireta. 143 Discurso sobre os Princípios primeiros. 144 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 47. 145 Cf., supra, Capítulo primeiro, p. 29.
108
O Uno não é, evidentemente, o número um, mas um
princípio formal, que é fonte de determinação em
relação ao princípio material; a Díade, que não é o
número dois, mas uma multiplicidade ideal
indeterminada que serve de substrato para a ação
delimitante do Uno que a República compara ao Bem146.
3.3.1 A duplicidade de nível de fundação
metafísica
Jean-Paul Dumont lembra que uma de nossas
principais fontes sobre o ensinamento oral de Platão, ou
seja, sobre as Doutrinas não-escritas, e, portanto, sobre a
doutrina dos Princípios, são os “testemunhos relativos a
uma conferência Sobre o Bem, que Platão teria feito
justamente após a fundação da Academia e que, em seguida,
ele teria várias vezes retomado”147. Ao ouvi-la, alguns de
seus discípulos teriam tomado nota, dentre eles, Aristóteles,
Heráclides do Ponto, Hestíaios e Xenócrates.
146 BRISSON, L. Leituras de Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003,
p. 60. 147 DUMONT, J-P. Op. cit., p. 287.
109
De fato, a conferência ou o ciclo de conferências
Sobre o Bem parece configurar-se numa tentativa frustrada,
empreendida por Platão, visando levar sua doutrina para
fora da Academia. Vejamos o testemunho de Aristóxeno de
Tarento148 sobre estes acontecimentos:
Como Aristóteles não se cansava de contar, é o que
experimentavam a maioria daqueles que foram os
ouvintes da lição de Platão Sobre o Bem. Cada qual,
relatava Aristóteles, anuía, supondo que aprenderia
algo sobre o que tradicionalmente se considera como
bens para o homem: riqueza, saúde, força física ou
qualquer outra maravilhosa felicidade em geral. Mas,
em se averiguando que preleções de Platão versavam
sobre as matemáticas, os números, a geometria e a
astronomia, concluindo que o Bem é um, imagino
então que isso pareceu-lhes algo totalmente estranho.
Por isso, alguns experimentaram uma sensação de
desprezo pelo que acabavam de ouvir e outros
manifestaram sua reprovação149.
Dumont afirma também que algumas obras ditas
perdidas de Aristóteles, conhecidas somente por citações ou
comentários, conteriam os testemunhos sobre o ensinamento
oral de Platão. As obras a que ele se refere são os livros
Sobre o bem, Sobre as idéias, Sobre os pitagóricos, Sobre a
filosofia e o Protrético150.
148 Discípulo de Aristóteles e um notório antiplatônico. 149 ARISTÓXENO. Elementos de harmonia. II, p. 39-40, Da Rios
apud BRISSON, L. Op. Cit., p. 111. 150 DUMONT, J-P. Op. Cit., p. 284.
110
Com efeito, admitir a Protologia é sinônimo de
admitir um duplo nível de fundação da metafísica platônica.
Para uma melhor compreensão dessa tese, lembremos
daquela convicção basilar que norteia o modo de pensar dos
gregos: “dizemos conhecer algo quando pensamos conhecer
a causa primeira” 151. Em outras palavras, conhecer é reduzir
a multiplicidade do sensível a sua causa última, ou seja,
conhecer é unificar.
Platão explica a pluralidade do sensível reduzindo-o à
unidade da Ideia. Não obstante, com a introdução da teoria
das Ideias, surge um ulterior problema: há tanto Ideias de
realidades substanciais, ou seja, homens, animais, vegetais
etc., quanto das qualidades e aspectos redutíveis à unidade,
isto é, belo, grande, duplo etc. Como resolver o problema da
pluralidade das Ideias?
Na verdade, estamos diante de um paradoxo: a
multiplicidade do sensível é explicada pelas Ideias que são
uma unidade, no entanto, cria-se uma multiplicidade
inteligível! Pois bem, em conformidade com a máxima que
rege o pensamento grego, Platão sente a necessidade de
subir a um segundo nível de fundação metafísica. Giovanni
Reale apresenta claramente como o raciocínio se articula:
O esquema de raciocínio que sustenta a duplicidade
de níveis de fundação metafísica é o seguinte. Como a
esfera do múltiplo sensível depende da esfera das
Idéias, assim, analogamente, a esfera da
multiplicidade das Idéias depende de uma ulterior
esfera de realidade, da qual derivam as próprias
151 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2005, A 983 a, p.
15.
111
Idéias, e esta é a esfera suprema e primeira em
sentido absoluto152.
A esfera suprema e primeira em sentido absoluto é
constituída, justamente, pelos Princípios primeiros e
supremos. É sobre eles que versam as Doutrinas não-
escritas. É o discurso protológico que poderá explicar quais
são os princípios e como eles se relacionam com as Ideias,
fornecendo uma explicação da totalidade do real.
A tradição indireta conservou vários documentos
sobre a duplicidade de nível de fundamentação metafísica
operada por Platão. Contentamos-nos em apresentar dois
breves textos. Comecemos com Aristóteles:
Portanto, posto que as Formas são causas das outras
coisas [primeiro nível], Platão considerou os
elementos constitutivos das Formas como os
elementos de todos os seres. Como elemento material
das Formas ele punha o grande e o pequeno, e como causa formal o Um [segundo nível]153.
E agora um testemunho de Sexto Empírico154:
Fica claro [...] que os princípios dos corpos
captáveis só com o pensamento devem ser
incorpóreos. Se, portanto, existem entes incorpóreos
que preexistem aos corpos, nem por isso eles são sem
mais, necessariamente, elementos das coisas que
152 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
159. 153 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A 987 B, p. 37. 154 Médico e filosofo cético do século II.
112
existem e princípios primeiros. Consideremos, por
exemplo, como as Idéias, que segundo Platão são
incorpóreas, preexistam aos corpos, e como qualquer
coisa que se gera gera-se com base nas relações com
elas [primeiro nível]. Ora, não obstante isso, elas
não são os princípios primeiros das coisas, uma vez
que cada Idéia considerada individualmente é dita
uma, mas considerada junto com outra ou outras é
dita duas, três, quatro, de modo que deve existir algo
que está acima da sua realidade, ou seja, em cuja
participação o um, o dois, o três ou um número maior se predica delas.
[...] Os princípios dos seres são dois, a primeira
unidade, em cuja participação todas as unidades que
contam são concebidas justamente como unidades, e
a dualidade indeterminada, em cuja participação
todas as dualidades determinadas são, justamente, dualidades [segundo nível]155.
155 SEXTO EMPÍRICO. Contro i matematici apud KRÄMER, H.
Platone e i Fondamenti della Metafísica. Terza edizione. Milano: Vita
e Pensiero, 1989, p. 391 et seq.: “Risulta dunque chiaro [...], che i
principi dei corpi coglibili con solo pensiero debbono esse incorporei.
Se, pertanto, ci sono enti incorporei che esistono anteriormente ai
corpi, non per questo essi sono senz’altro necessariamente elementi
delle cose che esistono e principi primi. Consideriamo, ad esempio,
como le Idee, che secondo Platone sono incorporee, preesistano ai
corpi, e come ciascuna cose che si genera si generi sulla base di
rapporto con esse. Orbene, ciononostante, esse non risultano principi
delle cose, dal momento che ciascuna Idee considerata singolarmente
si dice che è una, mentre considerata insieme ad un’altra o a più altre,
è detta dua, tre, quatro, cosieché deve esistire qualcosa che è ancora al
di sopra della loro realità, ossia il numero, per participazione al quale
l’uno, il due, il tre, o un numero maggiore si predica di esse.
113
Como podemos observar, os Princípios estão no
vértice do sistema metafísico platônico. Resta nos
esforçarmos para compreender o que Platão entendia
quando falava do Uno e da Dualidade indeterminada como
Princípios primeiros e supremos e porque ele admite dois
Princípios originários e não apenas um.
3.3.2 O sistema metafísico bipolar
O que, nos escritos, Platão identifica com Ideia que
condiciona todas as outras ideias e não é condicionada por
nenhuma delas, ou seja, o princípio absoluto e
incondicionado – o Bem – no ensinamento oral, conservado
e transmitido pela tradição indireta, ele identifica com o
Uno e a Díade indefinida do Grande e do Pequeno. Sendo
assim, podemos propor o seguinte questionamento: Por que
Platão admite como originários dois Princípios e não se
refere a um único Princípio?
Lembremos que “o problema metafísico por
excelência é, para os gregos, o seguinte: ‘Por que existem os
[...] I principi degli esseri sono dunque due, la prima unità, per
partecipazione a quela quale tutte le unità che si contano sono
concepite appunto come unità, e la dialità indeterminata per
partecipazione alla quale tutte le dualità determinate sono appunto
dualità”.
114
muitos?’, ou: ‘Por que e como, do Uno, derivam os
muitos?’”156 Como sabemos, essa questão foi elevada ao
primeiro plano pelos eleatas que apregoavam a total
impossibilidade do não-ser, culminando na negação da
multiplicidade e incorrendo num monismo radical.
Ora, ao estabelecer a Dualidade indeterminada como
um dos Princípios, Platão busca justificar a multiplicidade
dos seres num Princípio que seja a própria raiz da
multiplicidade. Acerca disso, Alexandre de Afrodísia157
apresenta um testemunho muito esclarecedor:
Além disso, convencido de ter demonstrado que o
igual e o desigual são princípios de todas as coisas,
seja das coisas que são por si seja das coisas que são
seu oposto (de fato, ele tentava reduzir todas as
coisas a estas, como as mais simples), atribuiu o
igual à unidade e o desigual ao excesso e ao defeito:
de fato, a desigualdade está em duas coisas, ou seja,
no grande e no pequeno, que são, respectivamente, o
que é por excesso e o que é por defeito. Por isso
[Platão] chamou-a também de dualidade
indeterminada, porque nem um nem outro, isto é, nem
o que excede nem o que é excedido, enquanto tal, é determinado, mas indeterminado e infinito158.
156 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
162. 157 Comentador de Aristóteles do final do século II e início do século
III. 158 ALEXANDRE DE AFRODÍSIA. Commentario alla Metafisica di
Aristotele apud KRÄMER, H. Op. cit., p. 383: “Inoltre, convinto di
aver dimostrato che l’uguale e l’ineguale sono principi di tutte le cose,
sia delle cose che sono per sé sia delle cose che sono fra loro opposte
115
Num texto de Simplício159, a Díade é apresentada
como uma espécie de matéria inteligível, uma
multiplicidade in-determinada, fonte tanto da pluralidade
horizontal quanto da gradação hierárquica:
Visto que muitas vezes Aristóteles afirma que Platão
diz que a matéria é o grande e o pequeno, deve-se
saber que Porfírio atesta que Dercílides, no livro XI
da sua Filosofia de Platão, no qual trata dessa
questão, cita um texto de Hermodoro, amigo de
Platão, extraído do tratado dedicado por ele a
Platão, do qual fica claro que Platão pôs a matéria
no âmbito do indefinido e do indeterminado e a
explicou partindo das coisas que admitem o mais e o
menos, em cujo grupo entram também o grande e o pequeno160.
(infati egli cercava di ricondurre tutte le cose a queste como alle più
semplici), attribuì l’uguale all’unità e il desiguale all’eccesso e al
difetto: infatti l’ineguaglianza sta in due cose, ossia nel grande e nel
piccolo, che sono, rispettivamente, ciò che è per eccesso e ciò che è
per difetto. Perciò [Platone] la chiamò anche dualità indeterminata,
perché né l’uno né l’altro, ossia né ciò che eccede né ciò che è
ecceduto, in quanto tale, è determinato, ma indeterminato ed infinito”. 159 Comentador neoplatônico do fim do século IV. 160 SIMPLÍCIO. Commentario alla Fisica di Aristotele apud
KRÄMER, H. Op. cit., p. 401: “Poiché più volte Aristotele afferma
che Platone dice che la materia è il grande e piccolo, si deve sapere
che Porfirio attesta che Dercillide nel libro XI della sua Filosofia di
Platone, in cui viene svolta una tratazione della materia, cita un texto
di Ermodoro, amico di Platone, desunto dal trattato di questi dedicato
a Platone dal quale risulta manifesto che Platone ha posto la materia
nell’ambito dell’indefinito e dell’indeterminato e l’ha chiarita
partendo da quelle cose che ammettono il più e il meno, nel novero
delle quali rientrano anche il grande e il piccolo”.
116
Então, Uno e Díade são Princípios complementares,
isto é, exigem-se estruturalmente, pois a pluralidade e a
gradação dos seres nascem da ação do Uno na Díade, ou
seja, da determinação da multiplicidade indeterminada da
Díade.
3.3.2.1 O Bem como Uno e como suprema medida
A função essencial do Bem e o que dela deriva, tal
qual é exposta na República161, por analogia com o Sol,
pode ser apresentada da seguinte forma:
a) a Ideia do Bem dá às coisas conhecidas a verdade e
a quem as conhece a faculdade de conhecer sua
verdade;
b) assim como a vista e o visto são afins ao Sol,
também o conhecimento e a verdade são afins ao
Bem;
c) como o Sol está acima da vista e do visto, o Bem
também está acima do conhecimento e da verdade;
d) assim como o Sol causa a geração, o crescimento e
a nutrição das coisas, ainda que ele próprio não
esteja implicado na geração, analogamente o Bem
causa o ser e a sua essência, mesmo não sendo o
ser ou a essência, mas superior por dignidade e
por potência.
161 Cf., A República, 506 D – 509 C.
117
Platão define o Bem como princípio absoluto e
incondicionado, ou seja, a Ideia que condiciona todas as
outras e não é condicionada por nenhuma delas. O Bem está
acima do ser e, como tal, é causa do ser e de sua essência, é
causa da faculdade de conhecer do intelecto e é também
causa de cognoscibilidade das coisas conhecidas.
Sabemos que, na República, o Bem não é definido
como Uno, entretanto, há precisas indicações neste sentido.
Dois testemunhos de Aristóteles são muito esclarecedores:
“Platão, ademais, atribui a causa do bem ao primeiro de seus
elementos e a causa do mal ao outro, como já tinham
tentado fazer – como dissemos – alguns filósofos anteriores,
por exemplo, Empédocles e Anaxágoras”162. Ainda na
Metafísica, o Estagirita afirma: “entre os que afirmam a
existência de substâncias imóveis, alguns dizem que o Um é
o Bem-em-si; eles pensavam que sua essência era,
justamente, o Um”163.
Ademais, vários outros testemunhos da tradição
indireta também confirmam que a essência do Bem é, com
efeito, o Uno. Todavia, o que se apresenta como a prova
decisiva e fundamental a respeito disso são as inúmeras
alusões fornecidas pelo próprio Platão.
Lembremo-nos que, logo depois de ter afirmado que o
Bem produz o ser e que é superior ao ser por dignidade e
poder, Platão põe, na boca de Glauco, o termo mais
emblemático possível, o nome do deus que simbolizava para
os pitagóricos o Uno: “Apolo! Quanta superioridade!”164
162 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A 988 a, p. 39. 163 Ibidem, N 1091 b, p. 683. 164 A República, 509 C.
118
Como lembra Giovanni Reale, “do ponto de vista
etimológico, note-se, A-polo pode ser, com efeito, entendido
como ‘privação do múltiplo’, e justamente jogando com o α
privativo e com πολλόυ = muito”165.
E se Platão encerra sua exposição Sobre o Bem
deixando entrever que a essência do Bem é, justamente, o
Uno. É de singular importância atentar para o fato de ele ter
iniciado a exposição acenando justamente para o conceito
de medida exatíssima, isto é, “de medida suprema de toda a
forma de multiplicidade, que, como sabemos, é a
característica do Uno”166. Por sua vez, esse conceito será
novamente retomado no Político, no qual é apresentado
como “padrão ideal”167 e “justa medida”168, ou seja, o meio
entre os extremos do muito e do pouco.
Como podemos perceber, nestes termos, a noção de
justa medida configura-se numa delimitação e, como tal, é
unidade-na-multiplicidade. Por sua vez, o discurso da justa
medida e do justo meio refere-se ao Uno entendido como
165 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
258. Acreditamos ser oportuno reproduzir aqui o testemunho de
Plotino (fundador do neoplatonismo no século III) a respeito do texto
em questão: “O nome Uno só indica negação quanto à multiplicidade;
daí os pitagóricos o designarem entre si, simbolicamente, com o nome
de Apolo, como negação dos muitos”. PLOTINO. Enéadas. Vols. V-
VI. Madrid: Biblioteca Clásica Gredos, 1998, p. 33: “El nombre Uno
sólo indica negación con respecto a la multiplicidad; de ahí que los
pitagóricos lo designasen entre ellos, simbólicamente, con el nombre
de Apolo, como negación que es de la pluralidad”. 166 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
259. 167 Político, 283 E. 168 Político, 284 A.
119
medida exatíssima. De fato, nos fragmentos de um diálogo
de Aristóteles, homônimo ao diálogo platônico em questão,
encontramos a seguinte afirmação: “[...] o Bem é a medida
perfeitíssima de todas as coisas”169. Portanto, o Bem é o
Uno, e o Uno é a medida suprema de todas as coisas.
3.3.2.2 O ser como síntese dos Princípios supremos
Como afirmamos anteriormente, o Uno e a Díade são
Princípios complementares. A ação do Uno sobre a Díade
manifesta-se como uma espécie de “de-terminação e de-
finição do ilimitado, do indeterminado, do indefinido”170,
num processo de igualização do desigual. Os seres,
enquanto frutos da ação do Uno na Díade, manifestam-se
como uma unidade-na-multiplicidade. Com efeito,
Alexandre de Afrodísia declara que “cada coisa é una,
enquanto é algo definido e determinado”171. Todo ser é uno
por essência e é justamente sua unidade que lhe garante
certa determinação ou identidade, distinguindo-o dos outros
seres.
Quanto ao núcleo da doutrina dos Princípios,
podemos caracterizá-lo da seguinte forma: “o ser é produto
169 ARISTÓTELES. Político. Fr. 2 Ross apud REALE, G. Para uma
nova Interpretação de Platão. Op. cit., p. 314. 170 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
165 171 ALEXANDRE DE AFRODÍSIA. Commentario alla Metafisica di
Aristotele apud KRÄMER, H. Op. cit., p. 385: “Ciascuna cosa è infatti
una, in quanto à qualcosa di definido e di determinato”.
120
de dois princípios originários e é, portanto, uma síntese, um
misto de unidade e de multiplicidade, de determinante e
indeterminado, de limitante e ilimitado”172. Neste misto de
unidade e multiplicidade, identidade e diferença se
implicam reciprocamente, no sentido de que tudo aquilo que
é é, ao mesmo tempo, idêntico e também diverso: idêntico a
si mesmo e diverso dos outros.
Enquanto princípios originários e constitutivos de
todo o ser, o Uno e a Díade não são ser, pois são anteriores a
ele. Por sua vez, “a unidade como princípio de determinação
está acima do ser, o princípio material indeterminado [i.é., a
Díade] como não-ser está abaixo do ser”173.
A temática referente à geração do ser por dois
princípios originários será retomada por Platão no Filebo.
Neste diálogo, as relações do Uno e dos Muitos são
concebidas como uma “dádiva dos deuses” conservada e
transmitida pelos antigos, que afirmam que tudo que existe
provém do Uno e do Múltiplo e traz consigo o finito e o
infinito174.
172 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
165 173 KRÄMER, H. Op. cit., p. 156: “L’unità come principio di
determinazione è al di sopra dell’essere, il principio materiale
indeterminato como non-essere à piuttosto al di sotto dell’essere”. 174 Cf. PLATÃO. Filebo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1974,
15 D – 17 A.
121
4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E O
SIGNIFICADO E ALCANCE DA METAFÍSICA
DE PLATÃO
Para este capítulo, temos um duplo objetivo: em
primeiro lugar, queremos abordar as questões referentes à
figura teorética do Demiurgo – o grande mediador entre os
planos inteligível e sensível – que, como sabemos, foi
confiada por Platão a seus escritos e não somente à
oralidade dialética; em segundo lugar, pretendemos, ainda
que sinteticamente, vislumbrar o significado e o alcance da
metafísica de Platão.
4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO
A doutrina do Demiurgo não é fruto de uma
elaboração tardia de Platão. No Fédon, ela já está presente.
122
E, embora seja retomada nos diálogos subsequentes, é
apenas ao tardio Timeu que Platão lhe dedica uma extensa
exposição. Com efeito, é no contexto da segunda navegação
que Platão fala pela primeira vez da Inteligência cósmica175.
E é tendo em vista esse grande mapa do projeto metafísico
de Platão que a doutrina do Demiurgo pode ser
compreendida adequadamente.
4.1.1 Cosmo sensível: uma emanação necessária?
A teoria das Ideias e a Protologia fornecem o
fundamento do cosmo sensível, mas não explicam porque e
como ele passou a existir. Não fosse pelo papel
desempenhado pela Inteligência Demiúrgica, Platão teria
deixado uma enorme lacuna em sua filosofia. Desejamos,
agora, abordar as questões referentes à geração do cosmo
físico operada pelo Divino Artífice, pois, como veremos, o
plano inteligível é apenas causa formal e necessária, mas
não eficiente do plano sensível.
Com a segunda navegação, Platão aporta num outro
plano de ser, um ”mundo” supra-sensível, hierarquicamente
organizado, que é causa formal do mundo sensível, também
hierarquicamente organizado: os Princípios primeiros e
supremos ocupam o vértice do mundo inteligível; logo
abaixo, está o plano das Ideias que é seguido pelo plano
175 Cf., PLATÃO. Fédon. In: Diálogos. São Paulo: Abril Cultural,
1979, 96 A 102 A, supra, Capítulo segundo, passim.
123
intermediário dos entes matemáticos; por fim, encontramos
o plano do mundo sensível.
Entre esses planos, há uma relação de dependência
ontológica. Quando mal interpretada, essa relação pode
levar a redução da metafísica platônica a um sistema
rigorosamente dedutivo; a um emanacionismo. Quanto a
isso, as palavras de Hans Krämer são esclarecedoras:
Em geral, trata-se de uma relação ontológica de
derivação na qual o grau mais alto possui sempre um
prius ôntico com relação ao mais baixo (πρότερου –‛ύστερου φύσει) e no qual, para usar uma fórmula
platônica, o primeiro pode ser pensado sem o segundo,
mas não vice-verça, o segundo sem o primeiro
(συναναιρεĩν χα`ι μ`ŋ συναναιρεĩσθαι). Tem-se uma
relação de dependência unilateral não reversível, na
qual, todavia, o plano mais alto oferece somente
condições necessárias, mas não também suficientes
para o plano sucessivo. Com efeito, a Díade de grande-
e-pequeno desempenha um papel de fundamento em
todos os planos como princípio material, mas sem que
a sua diferenciação seja ulteriormente fundada; o
novum categorial permanece, portanto, sem explicação176.
176 KRÄMER, H. Platone e i Fondamenti della Metafísica. Terza
edizione. Milano: Vita e Pensiero, 1989, p. 164: “In generale, si tratta
di un rapporto ontologico di derivazione nel quale il gradino più alto
possiede sempre un prius ontico rispetto a quello più basso (πρότερου
–‛ύστερου φύσει) e in ciu, per dirla con formula platonica, il primo piò
essere o essere pensato senza il secondo, ma non, viceversa, il secondo
senza il primo (συναναιρεĩν χα`ι μ`ŋ συναναιρεĩσθαι). Si ha, dunque, un
rapporto di dipendenza unilaterale non rovesciabile, in ciu, tuttavia, il
124
Segundo Krämer, o cosmo físico não é fruto de uma
simples dedução. A metafísica platônica não pode ser
compreendida como um sistema dedutivo. Quanto ao tipo de
sistema constituído pela filosofia platônica, Krämer afirma
que ele pode ser definido de uma maneira precisa:
Trata-se de uma forma de sistema que desenvolve
estruturas fundadoras e últimas diferenciadas e
graduadas hierarquicamente, e que, por isso, serve-se
de um metaforismo gerador. Todavia, não se pode
falar de um método dedutivo ou derivativo em sentido
estrito (particularmente, não se pode falar de uma
“emanação”). Isso depende do fato que a relação de
geração não é concebida de maneira radical que, para
tanto, seria necessária, e, em vez de fornecer as
condições necessárias e suficientes, limita-se a fornecer somente as condições necessárias177.
Ora, se o mundo inteligível não possui as condições
necessárias e suficientes para a dedução do mundo sensível,
e se o cosmo físico não é fruto de uma emanação, onde
piano più alto offre solamente condizioni necessarie, ma non anche
sufficienti per il piano successivo. Infatti, la diade di grande-e-piccolo
gioca un ruolo di fondamento in tutti i piani come principio materiale,
però senza che la sua differenziazone venga ulteriormente fondata: il
novum categoriale rimane, quindi, non spiegato”. 177 Ibidem, p. 177: “Si tratta di una forma di sistema che sviluppa
strutture fondative e ultimative differenziate e graduate
gerarchicamente, e che, per questo, si serve di un metaforismo
generativo. Di un metodo deduttivo o derivativo, a questo riguardo,
non si può tuttavia parlare in senso stretto (in particolare non si può
parlare di una ‘emanazione’). Questo dipende dal fatto che il rapporto
di principiazione non e sufficienti, si limita a fornire solamente le
condizione necessarie”.
125
podemos encontrar a causa eficiente das coisas? No
Demiurgo. É ele que exerce o papel de causa eficiente na
produção/criação178 do mundo sensível. Configurando-se,
assim, no grande mediador entre mundo inteligível e mundo
sensível. Este Artífice possui uma existência pessoal. Pensa
e quer. É um ser capaz de consciência e vontade.
A esta altura, podemos propor alguns
questionamentos: A Inteligência Ordenadora é absoluta ou
está conexa a outro princípio? O que o Demiurgo tem em
vista ao exercer a função mediadora entre mundo inteligível
e mundo sensível? O que significa afirmar que o divino
Artífice produziu/criou o cosmo sensível? Qual a sua
relação com a Protologia?
4.1.2 A conexão estrutural entre a Inteligência
Ordenadora e o Bem
Recordemos que as questões metafísicas que
direcionaram o itinerário platônico pela busca da verdade
estão ligadas à causa da geração, da corrupção e do ser das
coisas179. Apesar de a tese da Inteligência Ordenadora
178 Podemos usar o termo criação como sinônimo de produção em
Platão, desde que não nos reportemos à doutrina bíblica da criação ex
nihilo. A criação do Deus bíblico é absoluta, pois não pressupõe nada.
No entanto, a atividade criadora do Demiurgo platônico pressupõe a
existência de duas realidades com um nexo metafísico bipolar
intrínseco: a realidade eterna e imutável e o princípio material
sensível. 179 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 40.
126
remontar a Anaxágoras, coube a Platão, à luz da segunda
navegação, redirecioná-la e dar-lhe uma fundamentação
adequada, tornando-a, assim, capaz de explicar a causa de
tudo o que existe.
Contrariamente a Anaxágoras, Platão atribui à
Inteligência Ordenadora uma explicação de caráter
metafísico, ligando-a estreitamente e de maneira estrutural a
uma outra tese: “a Inteligência age e opera em função do
Bem, dispondo e ordenando cada coisa do melhor modo, em
sentido global e particular”180. E, para Platão, o
conhecimento do Bem comporta o conhecimento de seu
contrário. Portanto, a Inteligência só adquire pleno
significado se estiver estruturalmente conexa ao Bem181.
Nas palavras do próprio Platão:
Certo dia ouvi alguém que lia um livro de
Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador
e a causa de todas as coisas”. Isso me causou grande
alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto,
vantagem em considerar o espírito como causa
universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou
espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor
forma. Desse modo, se alguém desejar encontrar a
causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou
existe, deve encontrar, a respeito, qual é a melhor
180 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. 2. ed. São
Paulo: Loyola, 2004, p.100. 181 A Inteligência opera conexa com os dois Princípios das Doutrinas
não-escritas, pois, como diz Platão, ao encontrarmos o melhor,
encontramos necessariamente o que é pior, pois eles são objetos da
mesma ciência. Por sua vez, o Bem, o Melhor, está para o Uno, assim
como o Pior está para a Díade.
127
maneira seja de ela existir, seja de sofrer ou de
produzir qualquer ação. E pareceu-me ainda que a
única coisa que o homem deve procurar é aquilo que
é melhor e mais perfeito, porque desde que ele tenha
encontrado isso, necessariamente terá encontrado o que é pior, visto que são objetos da mesma ciência182.
A conexão estrutural com o Bem deve ser o fio
condutor dos ulteriores desenvolvimentos da doutrina da
Inteligência. Visto que o Bem é comum a todas as coisas e o
melhor caracteriza a cada uma delas, serão os
desdobramentos do Bem e o critério do melhor que devem
explicar a razão de tudo. É precisamente isso que Platão
declara no Fédon:
Pensando dessa forma, exultei acreditando haver
encontrado em Anaxágoras o explicador da causa,
inteligível para mim, de tudo que existe. Esperava
que ele iria dizer-me, primeiro, se a terra é plana ou
redonda, e, depois de o ter dito, que à explicação
acrescentasse a causa e a necessidade desse fato,
mostrando-me ainda como é ela a melhor. Esperava
também que ele, dizendo-me que a terra se encontra
no centro do universo, ajuntasse que, se assim é, é
porque é melhor para ela estar no centro. Se me
explicasse tudo isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer
desejaria tomar conhecimento de outra espécie de
causas [...]. Nunca supus que depois de ele haver dito
que o Espírito [i.é. a Inteligência] os havia ordenado,
ele pudesse dar-me outra causa além dessa que é a
182 Fédon, 97 B – D.
128
melhor e que é a que serve a cada uma em particular
assim como ao conjunto183.
Como sabemos, Anaxágoras não percebeu este nexo
estrutural como causa da ordem do universo184 e continuou a
dar muita importância aos elementos físicos. Escapou-lhe a
distinção entre causa e aquilo pelo qual a causa atua – a
distinção entre causa e concausa185, pois é o Bem em suas
várias manifestações que liga e mantém unidas todas as
coisas186. E é tendo-o em vista que a Inteligência opera.
Esta distinção da dupla ordem de causas será
retomada de forma esclarecedora por Platão no Timeu, ao
referir-se às causas secundárias de que Deus se serve para
efetivar o melhor. Platão fala de causas que pertencem à
natureza inteligente e causas que pertencem às coisas
movidas por outras. Eis o texto:
Tudo isso se inclui entre as causas secundárias de
que Deus se serve para realizar, tanto quanto
possível, a idéia do melhor. Mas a maioria dos
homens não as considera secundárias, senão causas
primárias de tudo [...]. Mas tais causas são incapazes
de atuar com razão e inteligência [...]. O amante da
inteligência e do conhecimento deve necessariamente
procurar primeiro as causas que pertencem à
natureza inteligente, e somente em segundo lugar as
que pertencem às coisas movidas por outras e que,
por sua vez, põem necessariamente outras em
183 Idem, 97 D – 98 B. 184 Cf., Idem 98 C. 185 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 42. 186 Cf., Fédon, 99 C.
129
movimento. É como também devemos proceder.
Precisamos falar de duas espécies de causas, mas
tratar com particular interesse das que atuam com a
inteligência e produzem efeitos bons e belos, para
distingui-las das que, privadas de razão, atuam sempre ao acaso e sem ordem187.
Resumidamente, estas são as considerações que
Platão apresentou no Fédon sobre a doutrina da Inteligência Ordenadora em três pontos188:
a) os físicos também chegaram à descoberta da
Inteligência como causa das coisas;
b) o papel da causalidade da Inteligência se esvazia
totalmente de qualquer eficácia ficando no plano
puramente sensível;
c) a Inteligência pode adquirir o seu significado e a
sua consistência ontológica somente com o
estabelecimento da pirâmide metafísica e do seu
vértice – o Bem.
4.1.3 O Demiurgo e a criação do cosmo físico
O Demiurgo é caracterizado, inicialmente, na
República, como o artífice dos sentidos189. Mais adiante,
187 PLATÃO. Timeu. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1977, 46 C
– E. 188 Cf., REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit.,
p. 385.
130
recebe maior destaque ao ser denominado divino artesão,
como aquele que “fabricara o céu e o que nele se contém da
maneira mais condigna e perfeita”190. Por fim, ao retomar a
problemática da arte e do seu papel ético-político e
educativo, Platão caracteriza-o como o criador das coisas na
sua natureza essencial, na sua unidade. Numa palavra: o
criador da Ideia191. “O verdadeiro criador do verdadeiro”192.
Ulteriores indicações sobre o Demiurgo são
apresentadas por Platão no final do Sofista193, ao estabelecer
a diferença entre arte produtiva humana e arte produtiva
divina194. Segundo ele, a arte produtiva divina, manifestação
da criação demiúrgica, é caracterizada como um levar do
não-ser ao ser, um trazer para a existência o que antes não existia195, conferindo-lhe um estatuto ontológico.
Embora tenha sido em grande parte antecipada no
Político, a doutrina do Demiurgo encontra sua forma mais
bem acabada no Timeu. Platão qualifica a exposição do
pitagórico Timeu sobre a origem do universo e do homem
como “mito verossímil”196, porque, quanto a isso, podemos
alcançar somente o provável e o verossímil e, graças ao
189 PLATÃO. A República. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,
1976, 507 C. 190 Ibidem, 530 A. 191 Ibidem, 597 B. 192 Ibidem, 597 D. 193 Cf., PLATÃO. Sofista. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980,
265 A – 268 D. 194 Ibidem, 265 B. 195 Ibidem 219 B e 265 B. 196 Timeu, 29 D.
131
“método da verossimilhança”197, que “concilia a
necessidade com a probabilidade”198.
O “prelúdio”199, de caráter puramente teorético, que
precede o discurso cosmológico do Timeu, apresenta quatro
premissas que norteiam todo o desenvolvimento da
exposição:
A meu parecer, será preciso, de início, distinguir o
seguinte. [1] Em que consiste o que existiu e nunca
teve princípio? [2] e em que consiste o que devém e
nunca é? O primeiro é apreendido pelo entendimento
com a ajuda da razão, por ser sempre igual a si
mesmo, enquanto o outro o é pela opinião, secundada
pela sensação carecente de razão, porque a todo
instante nasce e perece, sem nunca ser
verdadeiramente. E agora: [3] tudo o que nasce ou
devém procede necessariamente de uma causa,
porque nada pode originar-se sem causa. [4] Quando
o artista trabalha em sua obra, [com] a vista dirigida
para o que sempre se conserva igual a si mesmo, e
lhe transmite a forma e a virtude desse modelo, é
natural que seja belo tudo o que ele realiza. Porém se
ele se fixa no que devém e toma como modelo algo sujeito ao nascimento, nada de belo poderá criar200.
Os dois primeiros axiomas referem-se à diferença
estrutural entre o ser que é sempre e o devir. Os dois
197 Ibidem, 59 C. 198 Ibidem, 53 D. 199 Ibidem, 29 D. 200 Ibidem, 27 D – 28 B.
132
últimos referem-se à Inteligência Demiúrgica e a tudo
aquilo que se encontra estruturalmente ligado a ela.
Conforme o fundador da Academia, é necessário
saber, primeiramente, se o cosmos é um ser do tipo “que
sempre existiu e nunca teve princípio”, ou se está sujeito ao
devir numa contínua mudança. Se for sujeito ao devir, é
necessário identificar sua causa, porque tudo o que nasce,
procede de uma causa que produza a geração. Para Platão:
Quanto ao céu em universal – ou mundo, ou, se
preferirem outro nome mais apropriado, confiramos-
lhe esse mesmo – no que diz respeito, antes de mais
nada devemos considerar o que importa levar em
conta no início de qualquer estudo: se sempre existiu
e nunca teve princípio de nascimento, ou nasceu
nalgum momento e teve começo? Nasceu, pois é
visível, tocável e dotado de corpo, coisas sensíveis
todas elas. Ora, conforme já vimos, tudo o que é
sensível e pode ser apreendido pela opinião com a
ajuda da sensação, está sujeito ao devir e ao
nascimento. Afirmamos, ainda, que tudo o que devém
só nasce por efeito de alguma causa. Mas quanto ao
autor e pai deste universo é tarefa difícil encontrá-lo
e, uma vez encontrado, impossível indicar o que seja201.
Ora, ele conclui que o cosmo sensível foi gerado
nalgum momento e está sujeito ao devir. E, porque o
universo está em movimento, tem uma causa. Todavia, esta
causa é muito difícil de ser encontrada e, mesmo que fosse
encontrada, seria impossível torná-la conhecida a todos os
201 Timeu, 28 B – C.
133
homens. Resta, ainda, saber qual era o modelo que o “Autor
e Pai deste universo” tinha em vista quando construiu este
mundo:
Outro pondo que precisamos deixar claro é saber
qual dos dois modelos tinha em vista o arquiteto
quando o construiu: o imutável e sempre igual a si
mesmo ou o que está sujeito as nascimento? Ora, se
este mundo é belo e for bom seu construtor, sem
dúvida nenhuma este fixara a vista no modelo eterno;
e se for o que nem se poderá mencionar, no modelo
sujeito ao nascimento. Mas, para todos nós é mais do
que claro que ele tinha em mira o paradigma eterno;
entre todas as coisas nascidas não há o que seja mais
belo do que o mundo, sendo seu autor a melhor das
causas. Logo, se foi produzido dessa maneira, terá de
ser apreendido pela razão e a inteligência e segundo
o modelo sempre idêntico a si mesmo. Nessas
condições, necessariamente o mundo terá de ser a
imagem de alguma coisa202.
Tudo indica que o Arquiteto deste mundo tinha em
vista o modelo imutável e sempre igual a si mesmo – as
Ideias. Isso é atestado pela beleza, pela harmonia e pela
ordem desse mundo que o caracterizam como “a mais bela
entre todas as coisas nascidas”. E como seu fundamento é
inteligível, ele pode ser apreendido pela razão e pelo
intelecto. De fato, o cosmo físico é cópia do cosmo
inteligível. Platão reafirma a distinção entre o mundo das
Ideias eternas e detentoras do ser e o mundo das coisas
sensíveis, imagem do mundo inteligível e sujeitas ao devir.
202 Ibidem, 28 C – 29 B.
134
Com efeito, para Platão, toda a realidade é constituída
segundo uma estrutura bipolar – um elemento material e um
elemento formal. As realidades inteligíveis são eternas e não
necessitam de uma causa que as produzam; o cosmo físico,
ao contrário, enquanto sujeito ao devir, tem necessidade de
uma causa eficiente que produza aquela mescla de dois
princípios, imprimindo a forma sobre o princípio material
informe, fazendo–o ser propriamente um cosmo203.
4.1.3.1 O princípio material
A atividade criadora do Demiurgo não é absoluta.
Somente os dois princípios enunciados anteriormente204 não
dão conta de explicar a ação da Inteligência Demiúrgica em
sua totalidade. Não basta apenas admitir o modelo inteligível
sempre igual a si mesmo e a cópia desse modelo sujeita ao
nascimento. Platão admite também um princípio material
eterno preexistente ao cosmo, denominado como “causa
errante”, o “receptáculo” de todas as coisas que nascem e a
“matriz de tudo o que devém”205. Eis o texto em que Platão
apresenta-o:
Por enquanto bastará admitir três gêneros: o que
devém, aquilo em que isso devém, e o modelo à cuja
semelhança se originou o que nasceu. Ademais,
203 Cf., REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta.
Terza edizione. Milano: Rizzoli, 1998, p. 234. 204 Um modelo inteligível e a sua cópia 205 Timeu, 49 A.
135
podemos comparar o receptáculo com a mãe; o
modelo, ao pai; e a natureza intermediária entre os
dois ao filho. Devemos observar, ainda, que se a
marca a ser cunhada tiver de apresentar todas as
variedades de figuras, o receptáculo em que essas
impressões vão processar-se seria inadequado a
semelhante fim, se não carecesse de todas as formas
que terá de receber. De fato: se se parecesse com as
coisas que entram nêle, sempre que chegassem coisas
de natureza oposta ou totalmente diferente, ele as
representaria mal, porque seus próprios traços
deformariam a imagem. Por isso mesmo, o que tiver
de receber todas as espécies, não deve possuir
caráter especial206.
Este princípio não pertence nem ao mundo sensível
nem ao mundo inteligível, sendo caracterizado por Platão
como uma “espécie difícil e obscura”207 que carece de
ordem. Ele é “manifestação da Necessidade, que é fator de
produção do universo tanto quanto a Razão [...], o
receptáculo é precisamente aquilo pelo que as coisas
diferem do modelo”208. É necessidade, enquanto desordem
oposta à inteligência, carência total de finalismo.
Entretanto, a necessidade não é absoluta causalidade e
pura irracionalidade, já que, por sua natureza, “ela se deixa
dominar e persuadir pela Inteligência, e portanto, em boa
206 Ibidem, 50 C – E. 207 Timeu, 49 A. 208 BITAR, H. Introdução ao Timeu In: Diálogos de Platão. Belém:
Universidade Federal do Pará, 1977, p. 16.
136
medida se deixa convencer pela Inteligência”209. Ela é capaz
de receber a ordem. Verdadeiramente, a atuação do
Demiurgo na gênese do universo manifesta-se como a
vitória, pela persuasão, da sabedoria sobre a necessidade,
combinando necessidade e inteligência. Escreve Platão:
Com poucas exceções, tudo o que expusemos até
agora só diz respeito às operações da inteligência.
Mas ao lado delas precisamos tratar também do que
se processa por efeito da necessidade. Porque a
gênese do universo é o resultado da ação combinada
da necessidade e da inteligência. Dominando a
necessidade, convenceu-a a inteligência a dirigir
para o bem a maior parte das coisas que nascem. A
esse modo e por tal princípio foi que nosso universo
se formou, com a vitória, pela persuasão, da
sabedoria sobre a necessidade. Mas se tivermos de
explicar como ele chegou a formar-se de acordo com
esse princípio, precisaremos apelar para a causa
errante e mostrar como faz parte de sua natureza produzir movimento210.
Assim como um artista modela/plasma no ouro uma
série de figuras e, continuamente, transforma cada uma
delas em outras, também o Demiurgo modela/plasma o
receptáculo. Este, “por natureza, é matriz de todas as coisas;
movimenta-se e diversifica-se pelo que entra nela, razão de
parecer diferente, conforme as circunstâncias”211.
209 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
453. 210 Timeu, 47 E – 48 A. 211 Ibidem, 50 C.
137
Enquanto matriz de todas as coisas, “o receptáculo
deve ser amorfo, indeterminado, de uma plasticidade
indefinida”212. Enfim, é privado de uma estrutura formal
própria e, enquanto plasmável, permanece uma realidade
sempre idêntica. É justamente seu caráter informe que o
torna “obscuro, difícil de compreender e de captar, porque a
compreensibilidade implica estruturalmente a determinação
formal”213. Consequentemente, por não possuir
determinação formal, ou seja, por sua estrutura informal, é
também “invisível”214, pois aquilo que é objeto da visão é,
de um modo ou de outro, determinado e formado.
O receptáculo, enquanto natureza que recebe os
corpos, adquire caráter de substrato material. Não pertence
ao mundo inteligível nem ao mundo sensível. Constitui,
assim, um outro tipo de realidade, que Platão denomina de
espaço/espacialidade, também chamado de chora. É a
chora que fornece o lugar, a base de apoio ou a sede a todas
as realidades que nascem e perecerem. É precisamente isso
que Platão declara no texto abaixo:
Se for assim, teremos de admitir que há, primeiro, a
idéia imutável [modelo inteligível], que não nasce
nem perecerá, nada recebe em si mesma do exterior
nem entra em nada, não é visível nem perceptível de
qualquer jeito, e só pode ser apreendida pelo
pensamento. A outra espécie [cópia do modelo
inteligível] tem o mesmo nome da primeira e com ela
se parece, porém cai na esfera dos sentidos; é
212 BITAR, H. Op. cit., p. 16. 213 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
458. 214 Timeu, 51 A.
138
engendrada, está sempre em movimento, devém num
determinado local, para logo desaparecer daí, e é
apreendida pela opinião com a ajuda da sensação.
Por último, há um terceiro gênero, o espaço [i.é, a
chora]: por ser eterno, não admite destruição, enseja
lugar para tudo o que nasce e em si mesmo não é
apreendido pelos sentidos, mas apenas por uma
espécie de raciocínio bastardo. Dificilmente pode-se
acreditar nele. É o que contemplamos como em
sonhos, quando dizemos que tudo o que existe deve
necessariamente estar nalgum lugar e ocupar
determinado espaço, e o que não se encontra nem na terra nem em qualquer parte do céu, é nada215.
Desse modo, a chora apresenta-se como condição
necessária para que qualquer coisa que se gera possa ser.
Em sua ausência, ficaria excluída toda e qualquer forma de
geração. Apesar de não ser perceptível pelos sentidos, é
aquilo que é necessário para que a forma se realize
sensivelmente.
Ao concluir o discurso sobre o princípio material,
Platão aproveita para apresentar “o resumo da doutrina” que
acabou de expor e também para explicitar algumas de suas
características essenciais. Especial atenção merece a noção
de movimento caótico:
A matriz do devir, tornando-se úmida e inflamada, e
recebendo as formas da terra e do ar, e passando por
todas as modificações que se lhes seguem,
apresentava-se sob os mais variados aspectos; e por
estar cheia de forças que nem eram iguais nem
215 Ibidem, 51 E – 52 B.
139
contrabalançadas, não mostrava equilíbrio em
nenhuma de suas partes; oscilando irregularmente
em todos os sentidos, era sacudida por essas forças e,
posta em movimento, por sua vez as agitava.
Movimentando-se desse modo, sem pausa,
separavam-se as coisas e dispersavam-se em várias
direções, à maneira de grãos agitados e joeirados
com crivos e outros instrumentos próprios para
limpar o trigo, do que resulta ser jogado para um
lado o que for denso e pesado, enquanto vão para
outro as partículas finas e mais leves, onde se
acumulam. O mesmo, então, acontece com os quatro
gêneros agitados pelo receptáculo que se movimenta
a maneira de um crivo e joeirava e afastava para
longe uns dos outros os dissemelhantes, reunindo o
mais possível no mesmo modo os que se
assemelhavam entre si, de forma que as diferentes
espécies vieram a ocupar lugares diferentes, antes
mesmo de haver sido formado o todo que elas viriam
a constituir. Até esse momento tudo carecia de
proporção e medida. Quando o universo começou a
ser posto em ordem, a princípio o fogo a água a terra
e o ar revelavam traços de sua própria natureza, mas
se encontravam no estado em que é de esperar que esteja o que carece da presença de Deus216.
É interessante perceber que, antes mesmo de o
universo começar a ser ordenado, o princípio material já
portava algumas características rudimentares de fogo, água,
terra e ar, ainda que privadas de “proporção e medida”.
Note-se que o movimento caótico está na gênese do
216 Timeu, 52 D – 53 B.
140
processo de “separação” dos elementos da chora, jogando,
de um lado, o “denso e pesado”, e, de outro, as partículas
“finas e mais leves”.
4.1.3.2 A atividade ordenadora e os entes
matemáticos
Como acabamos de ver, o princípio material porta em
si mesmo algumas características rudimentares dos quatro
elementos, porém, tudo nele carece de proporção e medida.
Por sua vez, o Demiurgo, enquanto mediador entre mundo
sensível e mundo inteligível, exerce papel de causa
eficiente, porque o mundo inteligível não possui as
condições necessárias e suficientes para a dedução do
mundo sensível.
Não obstante, a atividade demiúrgica, enquanto
manifestação da causa eficiente que é, caracteriza-se como
uma espécie de atividade ordenadora. O Demiurgo,
enquanto plasma o princípio material, ordena-o, impõe-lhe
forma, fazendo, do caos, cosmo. Os frutos dessa primeira
intervenção do Demiurgo são os quatro elementos da
natureza:
Até esse momento, tudo isso carecia de proporção e
medida. Quando o universo começou a ser posto em
ordem, a princípio o fogo a água a terra e o ar
revelavam traços de sua própria natureza, mas se
encontravam no estado em que é de esperar que
esteja o que carece da presença de Deus. Constituído
141
naturalmente dessa maneira, começou a divindade a
dar-lhe uma configuração distinta por meio de
formas e de números. Que Deus os coordenou da
maneira mais perfeita possível, o que antes não
acontecia, é uma assertiva a que nos atemos em todo o decurso de nossa exposição217.
Porque o Demiurgo age em função do Bem, ele foi
capaz de ordenar o fogo, a água, a terra e o ar da melhor
forma possível. Mas, concentremos nossa atenção em outro
ponto do texto. Platão afirma que, na obra de produção dos
quatro elementos da natureza, o divino Artífice serviu-se de
formas e de números, realizando uma “mediação sintética
entre o Princípio informe e a forma geométrica”218. Eis
outro texto em que Platão reafirma o papel dos entes
matemáticos na formação do cosmo:
Tudo estava em desordem quando a divindade
introduziu proporção nas coisas, tanto nelas como em
suas relações recíprocas, na medida e da maneira
que admitiram proporções de simetria. Pois no
começo nenhuma coisa participava da proporção, a
não ser por acaso, não havendo nenhuma que
merecesse ser chamada pelos nomes que hoje lhes
aplicamos: fogo, água e o restante. [Deus] pôs tudo
em ordem, e com tais elementos formou este
universo219.
217 Timeu, 53 A – B. 218 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
478. 219 Timeu, 69 B – C.
142
De acordo com Platão, os instrumentos dos quais o
Autor e Pai deste universo serviu-se para construir o cosmo
físico são os entes matemáticos. A matéria informe
indeterminada e caótica foi modelada com formas
geométricas e números. Consequentemente, “a
racionalidade dos corpos sensíveis e do mundo corpóreo
sensível em geral depende exatamente da sua estrutura
geométrica e matemática, que torna possível a ‘imitação’ do
modelo inteligível”220.
O Demiurgo plasma o Princípio material combinando
necessidade e inteligência, de modo que o corpóreo físico-
sensível passe a refletir a estrutura do corpóreo inteligível –
geométrico. Quanto a essa complexa relação sintética,
ficamos com as palavras de Giovanni Reale:
Números, ponto, linha, superfície, estrutura
tridimensional e corpos geométricos, no plano dos
entes matemáticos são puramente inteligíveis;
sinteticamente combinados e sintetizados com o
Princípio material sensível, dão origem aos corpos
que vemos e tocamos, mediante uma penetração
capilar que “ordena” o Princípio material sensível,
por si caótico, até os mínimos pormenores, segundo
uma estrutura atomística com base nos sólidos geométricos regulares221.
220 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. Cit.,
p. 238: “La razionalità dei corpi sensibili e del mondo corporeo
sensibili in generale dipende esattamente dalla struttura geometrica e
matematica, che rende possibile l’imitazione dei modelli intelligibili”. 221 Idem: “Numeri, punto, línea, superfície, struttura tridimensionale e
corpi geometrici, sul piano degli enti matematici sono puramente
143
Lembramos que os entes matemáticos e as formas
geométricas derivam dos Princípios primeiros e supremos,
em cujo vértice encontra-se o Uno. Portanto, o divino
Artífice pauta toda sua atividade pelo Uno e, como vimos222,
Uno e Bem coincidem, pois a essência do Bem é,
precisamente, o Uno, enquanto medida suprema de todas as coisas.
4.1.4 O cosmo físico: beleza e perfeição
Imediatamente após a conclusão do “prelúdio”, ao
explicar a razão da origem do universo e de tudo o que está
sujeito ao movimento, Platão afirma que, por ser bom, o
Demiurgo “quis que, na medida do possível, todas as coisas
fossem semelhantes a ele”. Ao prosseguir sua narrativa,
assegura que o Divino Artífice, ao tomar o conjunto das
coisas visíveis, até então imerso num movimento caótico, o
fez passar da “desordem para a ordem, por estar convencido
de que esta em tudo é superior àquela”. Com efeito, por ser
o “bom” em mais alto grau, o “melhor” e por atualizar o
Bem no seu ato criador, ele seria incapaz de levar a cabo
uma obra que não fosse a “mais bela de todas”. Platão faz
estas afirmações no texto abaixo:
intelligibili; sinteticamente combinati e sintetizzati com la realtà
materiale sensibile, danno origine ai corpi che vediamo e tocchiamo,
mediante una penatrazione capillare che ordina il principio materiale
sensibile, di per sé caotico, fin nei minimi particolari, secondo una
struttura atomistica sulla base dei solidi geometrici regolare”. 222 Cf., supra, Capítulo segundo, p. 61 et seq.
144
Ele [o Demiurgo] era bom; ora, no que é bom jamais
poderá entrar inveja seja do que for. Estreme, assim,
de inveja, quis que, na medida do possível, todas as
coisas fossem semelhantes a ele [...]. Desejando a
divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto
possível, estreme de defeitos, tomou o conjunto das
coisas visíveis – nunca em repouso, mas
movimentando-se discordante e desordenadamente –
e fê-lo passar da desordem para a ordem, por estar
convencido de que esta em tudo é superior àquela.
Não era nem nunca foi possível que o melhor pudesse
fazer uma coisa que não fosse a mais bela de todas.
Depois de madura reflexão, concluiu que das coisas
visíveis por natureza jamais poderia sair um todo
privado de inteligência mais belo do que um todo
inteligente, e também: que em nenhum ser pode haver
inteligência sem alma. Com base nesse raciocínio,
pôs a inteligência na alma e a alma no corpo, e
construiu o universo segundo tal critério, com o
propósito de levar a cabo uma obra que fosse, por
natureza, a mais bela e perfeita que se poderia imaginar223.
Por “providência divina”224, o cosmo físico foi gerado
à imagem do ser inteligível que inclui em si a totalidade dos
seres inteligíveis. A divindade deu-lhe a mais completa
semelhança com o modelo inteligível, de modo que, em sua
unidade e singularidade, dotado de vida e inteligência,
abarque em si a totalidade dos seres sensíveis, imagens dos
seres inteligíveis.
223 Timeu, 29 E – 30 B. 224 Ibidem, 30 C.
145
E, ao contrário do que muitos pensam, o cosmo é
único. Nisso reside sua perfeição: o mundo é perfeito,
porque é uno. Não há mundos infinitos. O universo é uno e
único, criado segundo o modelo supremo uno e único. Nas
palavras do próprio Platão: “para que o mundo, na sua
unicidade, se assemelhasse ao ser vivo e perfeito, seu autor
não fez nem dois nem um número infinito de mundos; este
céu é um só e único; assim foi feito e assim sempre será”225.
E querendo realizar perfeitamente o modelo de
inteligência no sensível, tornando-o mais semelhante ao
modelo inteligível e, portanto, mais belo, o Demiurgo criou
e infundiu-lhe uma alma universal, de modo a torná-lo um
“animal dotado de alma e de razão”226, e a conservar a vida
do mundo, sem a necessidade de sua intervenção contínua.
Para aqueles que não acreditam na existência do
Demiurgo, do Divino, Platão declara que basta olhar à sua
volta, pois estamos cercados de provas verdadeiras de sua
existência: “temos a terra, o sol, os astros e o mundo
universal, e a bela seqüência das estações, distribuídas em
meses e anos”227. Recordemos aquela declaração
emblemática de Platão no Timeu: “quanto ao autor e pai
deste universo é tarefa difícil encontrá-lo e, uma vez
encontrado, impossível indicar o que seja”228.
Não obstante, a dificuldade de encontrá-lo e a
impossibilidade de indicar o que seja, não nos autoriza a
concluir sua não-existência, pois, como vimos, as criaturas
225 Timeu, 31 B. 226 Ibidem, 30 C. 227 PLATÃO. Leis. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980, 886 A. 228 Timeu, 28 C.
146
portam em si as marcas do seu criador. Tais afirmações nos
reportam, de imediato, à doutrina medieval da analogia
entre Deus e as criaturas.
Esta doutrina afirma que não há total identidade entre
Deus e as criaturas, mas também não há diferença absoluta
entre eles, pois a imagem de Deus está refletida no mundo.
E, por analogia, aquilo que se predica das criaturas pode se
predicar de Deus, ainda que não do mesmo modo e com a
mesma intensidade.
Não é exatamente esta relação análoga que
constatamos em Platão ao afirmar que o Demiurgo, por ser o
“bom” em mais alto grau, o “melhor”, e por atualizar o Bem
no seu ato criador, seria incapaz de levar a cabo uma obra
que não fosse a “mais bela de todas”? Também não seria um
discurso análogo aquele apresentado como prova da
existência do Demiurgo, pautado na beleza e na ordem da
terra, do sol, dos astros e na harmonia das estações,
distribuídas em meses e anos?
4.2 PAPEL E ALCANCE DA METAFÍSICA DE
PLATÃO
Após termos nos dedicado com afinco ao estudo da
principal novidade da filosofia platônica – a descoberta da
dimensão metafísica do ser – e dos três pontos focais da
filosofia de Platão – a teoria das Ideias, a doutrina dos
Princípios primeiros e supremos, e a doutrina do Demiurgo
– chegou o momento de apresentarmos, ainda que
147
sinteticamente, o papel e o alcance da metafísica platônica.
Não temos o intuito de fazer uma história da metafísica de
Platão, seria muita pretensão de nossa parte, mas apresentar
o significado e a atualidade de sua filosofia.
4.2.1 O caráter imprescindível da filosofia de
Platão
Platão está situado no vértice do pensamento antigo e,
permanecendo no âmbito do pensamento antigo, podemos
afirmar que sua filosofia constitui o eixo de sustentação
mais significativo do modo de pensar dos gregos229. Com
efeito, desde a antiguidade, Platão tem-se constituído num
verdadeiro manancial para o pensamento ocidental.
Outrora, o estudo e a pesquisa dos mestres do
Ocidente230 sempre esteve associada à vanguarda da
especulação filosófica, hoje, o quadro se inverteu. Dada a
pretensa morte da metafísica e o consequente
estabelecimento do niilismo231, marcado por uma
229 Cf., REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola,
1994, p. 7 et seq. 230 À primeira vista, parece haver um erro aqui, mas, contrariamente
ao que aparenta, esta construção é proposital, pois visa ampliar o arco
referencial, estendendo-o também a Aristóteles. 231 Grosso modo, podemos caracterizar o niilismo, ao menos da forma
como é concebido por Nietzsche (Röcken, Alemanha 1844 – 1900), e
também na acepção que empregamos neste texto, como a
desvalorização dos valores absolutos. A falta de valor, a perca do fim,
do sentido último da existência.
148
racionalidade eclipsada e fragmentária, o exercício de
retornar ao fundador da Academia é qualificado, não poucas
vezes, como algo retrógrado e dogmático, a contramão da
via filosófica contemporânea.
Não obstante, para o infortúnio dos que pensam
assim, contrariando os esforços empreendidos para
demonstrar a caducidade e o caráter obsoleto da filosofia
platônica, o discípulo de Sócrates permanece firme e, como
Werner Jaeger lembra:
Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em
que Platão ocupava o centro do universo espiritual
da Grécia e em que todos os olhares convergiam
para a sua Academia, e ainda hoje se continua a
definir o caráter de uma filosofia, seja ela qual for, pela sua relação com aquele filósofo232.
Com esta afirmação de Jaeger, podemos concluir que
Platão ocupa um lugar privilegiado na história da filosofia
ocidental, servindo como ponto de referência e paradigma
tanto para as formulações filosóficas elaboradas antes dele
quanto para aquelas que viriam à luz a partir ou depois dele.
A descoberta da dimensão metafísica do ser
configura-se como o ponto fundamental da obra do
fundador da Academia, constituindo uma conquista que, em
certo sentido, assinala “a etapa mais importante da história
232 JAEGER, W. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.
581.
149
do pensamento ocidental, e inaugura a metafísica no sentido
mais elevado e mais completo”233.
É inegável que, dentre a vastidão de sua obra, o que
confere o estatuto de paradigma à filosofia de Platão,
impulsionando as demais neste movimento de convergência
ou de divergência à filosofia platônica, é a segunda navegação e seu núcleo teorético234:
Todo o pensamento ocidental será condicionado, de
modo decisivo e irreversível, pela distinção platônica,
seja se e enquanto a aceitar, seja enquanto e na
medida em que não a aceitar. De fato, neste último
caso, deverá polemicamente justificar sua não-aceitação e ficará condicionado por esta polêmica235.
Declarações como essas podem ser encontradas
também em autores muito próximos de nós. É o caso de
Henrique Cláudio de Lima Vaz, ao afirmar que “um
encontro ou reencontro” com Platão é o “gesto inaugural de
toda a decisão autêntica de filosofar”. Segundo ele:
A história de quase dois milênios e meio da
pragmateia filosófica no Ocidente, a começar pelos
discípulos imediatos de Platão e pelo maior deles,
Aristóteles, nos mostra que o gesto inaugural de toda
233 REALE, G. O Saber dos Antigos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002,
p. 231. 234 Referimo-nos aqui àquela passagem do ser sensível ao ser supra-
sensível e a consequente introdução de uma causa metafísica com o
objetivo de explicar o ser físico e livrá-lo das contradições em que
cairia se fosse abandonado a si mesmo, tal como haviam feito os pré-
socráticos. Cf., supra, Capítulo primeiro, p. 29 et seq. 235 REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 231.
150
a decisão autêntica de filosofar dentro da nossa
tradição é um encontro ou um reencontro com
Platão. Platão é o gênio tutelar da cidade dos
filósofos e seu pensamento é o pórtico por onde se
entra nessa cidade que cresceu até tornar-se a
megalópólis de idéias e sistemas por onde hoje andamos e muitas vezes nos perdemos236.
Assim, Platão configura-se no grande ponto de
referência da Filosofia Ocidental. De uma forma ou de
outra, acabamos sempre por nos encontrar ou reencontrar
com ele, assumindo ou rejeitando sua filosofia,
desenvolvendo ou combatendo seus fundamentos, confiando
intrepidamente no poder arquitetônico da Razão ou
enveredando numa racionalidade eclipsada e fragmentária.
4.2.2 A segunda navegação e a rejeição do
materialismo
A segunda navegação, enquanto primeira
demonstração racional da existência de um ser supra-
sensível e transcendente que dá sentido ao ente sensível em
todas as suas manifestações, configura-se na rejeição de
toda e qualquer forma de materialismo.
236 VAZ, H. C. L. Platão Revisitado. Ética e Metafísica nas Origens
Platônicas. In: Síntese Nova Fase. Belo Horizonte: Centro de Estudos
Superiores – SJ, 1993, n. 61, p. 182.
151
Mesmo o materialismo em sua versão físico-
ontológica, claramente formulado a partir do século XII e,
tendo em Hobbes237 um dos seus primeiros teóricos, afirma
que tudo “aquilo que existe é a realidade física ou
epifenêmeno desta e, portanto, o ser em todas as suas
manifestações possíveis é reduzido à dimensão do físico”238.
Hobbes nega filosoficamente o espaço ontológico do ser
supra-sensível e, consequentemente, tudo o que é essência
espiritual ou que, de algum modo, não é corpóreo é excluído
da filosofia. Abre-se, assim, um horizonte corporeísta em
que não há espaço nem mesmo para o bem objetivo e,
portanto, para os valores morais autênticos.
Inclusive, o materialismo histórico-dialético de
Marx239 e de Engels240 que afirma ser os homens
dependentes inteiramente de suas condições materiais.
Coincidindo, pois, tanto com aquilo que produzem quanto
como produzem, relegando a simples emanação direta, fruto
do comportamento material humano, a atividade espiritual
nas suas mais variadas manifestações (a linguagem política,
as leis, a moral, a religião, a metafísica etc.) encontra
dificuldades frente à verdade irrevogável da segunda navegação.
Também não se aceita o niilismo, cujo fundamento
também é o devir da matéria. Ele encerra em si a
incredulidade num mundo metafísico, afirmando que este
suposto mundo verdadeiro teria sido fabricado apenas com
base em necessidades psicológicas infundadas e
237 Inglaterra, 1588 – 1679. 238 REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 213. 239 Trevis – Alemanha, 1818 – 1883. 240 Wuppertal – Alemanha, 1820 – 1895.
152
equivocadas e que, portanto, deve ser suprimido, para que,
uma vez proclamada a morte de Deus, possa estabelecer-se
o super-homem241, resultado da vontade de potência
exercida, um paradigma da virilidade.
Apesar de o arco de tempo que separa a elaboração
metafísica platônica dessas teorizações ser relativamente
grande e por elas serem cronologicamente posteriores a
Platão, isso não nos autoriza a concluir que superem o
fundador da Academia. Com efeito, reservadas as devidas
proporções, o erro que esses filósofos cometeram não difere,
ao menos substancialmente, daquele cometido pelos
naturalistas.
No entanto, se o ponto de chegada é o mesmo – a
realidade sensível na sua contingência e a absolutização do
devir em toda a sua contraditoriedade – o ponto de partida é
diverso. Enquanto os naturalistas estavam circunscritos aos
limites de seu método e de seu tempo e por mais que
tentassem, não conseguiram atingir uma resposta satisfatória
aos problemas da geração, da corrupção e do ser das coisas.
Como nos atesta a multiplicidade de respostas que
encontraram para esses problemas.
Os materialistas, ao contrário, negligenciaram a
totalidade do real, tomando como pressuposto fundamental
241 Evidentemente, não nos referimos ao personagem das histórias em
quadrinhos que ganhou a tela dos cinemas, mas sim àquele apregoado
por Nietzsche (Alemanha, 1844 – 1900). Com efeito, o super-homem
de Nietzsche é explosão de força e poder. Ele é capaz de negar e
superar a mentalidade cristã do Ocidente para impor-se a si mesmo
como valor. Em última instância, ao propor o super-homem, ele está
propondo uma autonomia absoluta.
153
apenas um de seus aspectos, elevando-o a um patamar que
é, ao mesmo tempo, reducionista e totalizante. O discurso é
reducionista, pois considera válido apenas um dos aspectos
do real. É ao mesmo tempo totalizante, pois, tomando um
aspecto do real como válido, assenta sobre ele seu discurso
sobre todo o restante.
4.2.3 A teoria das Ideias
Verdadeiramente, “as Idéias representam a figura
especulativa do pensamento de Platão que teve maior
sucesso”242, com uma série de repensamentos e
influenciando grandes pensadores em pontos fundamentais
de sua filosofia. Grosso modo, “podemos afirmar que uma
história da interpretação da teoria das Idéias cobriria grande
parte da história da filosofia ocidental, justamente num dos
seus pontos capitais”243.
Aristóteles foi o primeiro a interpretar a teoria das
Ideias de Platão e, igualmente, o pioneiro na série de críticas
que lhe seriam propostas244. Ele interpreta as Ideias como
hipóstases dos universais, dando-lhes um caráter físico e,
242 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
117. 243 Ibidem, p. 118. 244 A bem da verdade, as críticas elaboradas posteriormente a
Aristóteles dependem, substancialmente, daquelas formuladas pelo
Estagirita.
154
consequentemente, duplicando as coisas245. Sua crítica foi
largamente assumida pela tradição, culminando na acalorada
disputa medieval acerca dos universais246, caracterizando a
metafísica de Platão como realismo exagerado247.
Os médio-platônicos identificaram as Ideias com os
pensamentos de Deus e, buscando refutar a crítica
aristotélica, inseriram a distinção entre inteligíveis primeiros
(Ideias transcendentes – pensamento divino) e inteligíveis
segundos (formas imanentes). A tese de que as Ideias são os
pensamentos de Deus receberá sua fundamentação
metafísica apenas com o neoplatonismo, sobretudo, graças
aos esforços de Plotino, pondo as Ideias no âmbito da
hipóstase do Nous248. A Patrística e a Escolástica, salvo o
desenvolvimento de alguns de seus aspectos em conexão
245 Quanto à interpretação aristotélica das Ideias, Giovanni Reale
afirma que “ele as apresenta numa dimensão e com conotações bem
diferentes relativamente às que são próprias das Idéias como
‘verdadeira causa’ metafísica, de que Platão fala expressamente no
Fédon”. In: ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio Introdutório, texto
grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 213. 246 O problema dos universais refere-se à determinação do
fundamento e do valor dos conceitos e termos universais aplicáveis a
uma multiplicidade de indivíduos. Como diz respeito ao problema da
relação entre as palavras e as coisas, o pensamento e o ser, ele envolve
o fundamento e a validade do conhecimento. 247 O realismo exagerado constitui a postura que afirma serem os
universais entes reais, subsistentes em si, Ideias eternas e
transcendentes, exercendo função de arquétipo e paradigma em
relação aos indivíduos concretos. Portanto, conferindo estatuto
ontológico aos universais. 248 O termo é comumente traduzido por intelecto, mente, inteligência
ou pensamento. Entretanto, em Plotino, o mais correto seria traduzir
por Espírito.
155
com a doutrina da criação, seguindo esteira aberta por Fílon
de Alexandria249, apenas reafirmaram a tese de que as Ideias
são os pensamentos de Deus.
No mundo moderno, a retomada da teoria da Ideias
está relacionada às questões acerca do conhecimento, no
contexto do interminável debate entre racionalismo e
empirismo. É também nesse contexto que elas passam a ser
identificadas com a matéria do pensamento, ou seja, com os
conceitos e conteúdos do pensamento – uma simples
representação mental.
Immanuel Kant250 e George Wilhelm Hegel251 são os
exemplos mais significativos da influência exercida pelas
Ideias no período moderno. Kant interpretou as Ideias como
as formas supremas da Razão, entretanto, negou-lhes
qualquer valor cognoscitivo. Todavia, atribuiu um uso
regulativo estrutural de grande importância às Ideias de
alma, mundo e Deus.
Para Hegel, a realidade é a Ideia: o real é racional e o
racional é real. De fato, ele reconheceu na teoria das Ideias
a verdadeira grandeza especulativa de Platão, declarando-a
como pedra miliar na história da filosofia e até mesmo da
história universal.
249 Rabino de Alexandria e contemporâneo de Cristo. Fundador do
método alegórico de exegese e interpretação bíblica e filosófica. 250 Königsberg, Prússia (1724 – 1804). 251 Stuttgard, Alemanha (1770 – 1831), um dos maiores expoentes do
Idealismo Alemão.
156
4.2.4 A doutrina dos Princípios
Os Princípios primeiros e supremos, por estarem
acima das Ideias, constituem a esfera primeira e absoluta da
fundação metafísica platônica. Conforme Platão, eles
constituem um sistema bipolar em que do Uno deriva-se o
Bem e da Díade indefinida do grande e do pequeno derivam
a multiplicidade, a desordem e o mal. Há um filósofo
contemporâneo a nós que, apesar de ser antimetafísico,
retomou a grande tese platônica da estrutura bipolar dos
Princípios: Edgar Morin252.
De fato, a dinâmica relacional e dialética de ordem e
desordem com seus consequentes resultados positivos é uma
característica fundamental da sabedoria grega. Morin a
assume, concluindo que desordem e ordem cooperam e que
tudo o que existe nasce dessa cooperação. É justamente no
processo de desorganização que o universo se organiza: “é,
pois, possível explorar a idéia de um universo que constitui
sua ordem e sua organização na turbulência, na
instabilidade, no desvio, na improbabilidade, na dissipação
energética”253.
Ele é capaz de ler, nos mesmos processos de
desintegração, a gênese. Ligando, portanto, a criação a uma
ruptura e afirmando que a ruptura e a desintegração de uma
252 Cf., REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 233. Edgar
Morin, (1921) é um dos maiores expoentes da cultura francesa do
século XX. 253 MORIN, E. Il Método. Ordine disordine organizzazione apud
REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 235.
157
velha forma é, ao mesmo tempo, o processo constitutivo de
uma nova forma. Por fim, declara que a organização e a
ordem do mundo se edificam no desequilíbrio e na
instabilidade e por seu intermédio.
É interessante perceber que, mesmo adotando uma
postura antimetafísica e estando envolvido com as ciências
empíricas, Edgar Morin oferece excelentes observações de
profundidade ontológica e metafísica.
4.2.5 A doutrina do Demiurgo
Como vimos, a atividade que o Demiurgo exerce ao
criar não é absoluta, pois ele não cria do nada. Ele cria
contemplando um modelo inteligível e plasmando-o num
princípio material informe. Sua atividade é,
verdadeiramente, uma atividade ordenadora, pois faz do
caos cosmo, leva da desordem à ordem.
No entanto, se a doutrina do Demiurgo não é uma
doutrina criacionista propriamente dita (não ao menos como
o criacionismo bíblico), ela é o que podemos chamar de
sem-criacionismo – “a mais alta forma de criacionismo
alcançada pelo pensamento helênico”254.
Platão entende o ser em todos os níveis como um
misto, como “algo in-determinado que é determinado, um
254 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
521.
158
excesso comedido, um mais-e-menos-hamonizado”255. O
não-ser, por sua vez, é caracterizado como “o Princípio
material do excesso, do mais-e-menos, da desordem”256.
O Demiurgo é a causa inteligente – eficiente – que
explica qualquer misto, pois é ele que faz passar do não-ser
ao ser, de uma realidade informe a uma estruturação desta
em função do modelo que sempre é, por meio da mediação
entre o ser eterno e a realidade sensível, servindo-se de uma
complexa articulação geométrica.
Com efeito, o Deus platônico criou o universo, o
tempo, os animais, os vegetais, os minerais e todas as coisas
das quais derivam as coisas que são geradas – os quatro
elementos da natureza: água, ar, fogo e terra. E como o
Demiurgo é um Deus pessoal, portanto distinto das
criaturas, sua atividade não é um simples agir da
Inteligência em função do inteligível (do Bem), mas é um
querer a realização desse inteligível257.
255 Idem. 256 Idem. 257 Há duas características que marcam a concepção grega de Deus. A
primeira, afirma que Deus tem – do ponto de vista hierárquico – uma
regra acima de si, à qual deve referir-se e deve cumprir. Lembremos
que, acima do Demiurgo, está a Idéia do Bem que pauta todo o seu
agir e que ele deve atualizar em todos os níveis de ser. A segunda, que
a inteligência é possível somente se tem o ser como seu fundamento e
se ela se exprime no ser e por meio dele. Nem mesmo a Inteligência
suprema está livre dessa regra, pois encontra no Bem seu fundamento.
159
4.2.5.1 A concepção de Deus em Platão
Com efeito, Platão distingue o Demiurgo dos outros
Deuses – as Ideias, o Bem, a alma, o mundo, os astros etc.
Nisso, sua posição se diferencia daquela partilhada pelos
seus contemporâneos. Eles acreditam que tudo o que está
acima do céu é Divino, pois a divindade está relacionada à
eternidade e à incorruptibilidade. Assim, é compreensível o
fato de conceberem realidades sensíveis como divinas: o sol,
a lua, os astros etc.
Quando falamos que Platão distingue Deus do
Divino, estamos afirmando que ele não pode ser confundido
com o Princípio primeiro, com a regra que tem acima de si,
do ponto de vista hierárquico, à qual deve referir-se e deve
cumprir – o Bem. Também não deve ser confundido com
todo o ser. O Demiurgo é um Deus capaz de pensar e de
querer, capaz de consciência e de vontade, portanto, é
concebido por Platão numa dimensão pessoal. Sua atividade
não é um simples agir da Inteligência em função do
inteligível (do Bem), mas é um querer a realização desse
inteligível.
Tomando o conceito de criação, mesmo no sentido de
semicriação, percebemos que a causa eficiente do mundo é
o pensamento de um Deus pessoal, esse criador é o único
Deus que pode ser concebido em sentido estrito. Com efeito,
todos os outros Deuses são dependentes dele. Todo o
restante a que Platão chama Deus, seja o mundo ou parte
dele, são criados segundo a vontade do Divino Artífice e,
160
mantidas as devidas proporções, o Demiurgo se mostra
distinto deles. Vejamos o texto em que o Demiurgo se refere
aos Deuses criados:
Deuses de deuses, as obras das quais eu sou o
criador e pai, por terem sido geradas por mim, são
indissolúveis sem meu consentimento. Conquanto
tudo o que foi ligado possa ser desligado, somente um
espírito maldoso consentiria em dissolver o que foi
bem ajustado e se encontra em perfeitas condições. A
esse modo, pelo fato de haverdes sido gerados, nem
sois imortais nem absolutamente indissolúveis. Não
obstante, nem sereis desfeitos nunca nem ficareis
sujeitos à morte, por ser minha vontade para todos
vós um elo mais forte e poderoso do que vos ligou ao
nascimento. Escutai, portanto, o que vos anuncio com
este discurso. Ainda estão por nascer três raças
mortais; se não chegarem a formar-se, o céu ficará
incompleto, pois não conterá, como é preciso, todas
as espécies de seres vivos, para ser suficientemente
perfeito. Se eu lhes desse nascimento e vida, tornar-
se-iam iguais aos deuses. Mas, afim de que sejam
mortais e este universo fique realmente completo,
aplicai-vos, na medida de vossa capacidade, a formar
tais seres, imitando nisso meu poder por ocasião de
vosso nascimento. E como convém que algo nele
participe dos imortais, alguma coisa que se chamará
divino e que dentre eles comandará os que se
dispuseres a seguir sempre a justiça e a vós mesmos:
essa parte, como semente e princípio, eu mesmo vo-la
entregarei. O resto vos compete; tecendo o imortal
com o mortal, fabricai seres vivos a que dareis
nascimento permitindo que cresçam por meio da
161
alimentação, para os receber de novo, quando se
extinguirem258.
É inegável que, no âmbito do politeísmo grego, a
concepção platônica de Deus constitui um grande avanço e
uma revolução. Ainda que de forma longínqua, quanto à
exigência conceitual, o fato de os outros Deuses
dependerem do Demiurgo prepara o caminho para uma
concepção monoteísta de Deus.
258 Timeu, 41 A – D.
162
163
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema referente à causa da geração, da
corrupção e do ser das coisas não encontra uma resposta
satisfatória quando permanecemos circunscritos ao âmbito
da physis. Com efeito, as respostas dos naturalistas
revelaram-se, ao mesmo tempo, divergentes e insuficientes.
Tales de Mileto identificou a arché com a água,
Anaximandro, com o á-peiron, Anaxímenes, com o ar, e os
Pitagóricos, com o número. Empédocles chegou a admitir
uma multiplicidade de princípios, e Anaxágoras que, apesar
de ter sido o primeiro a formular a tese da Inteligência
Cósmica, permaneceu concedendo muita importância às
homeomerias no processo de explicação do real.
Não obstante, quando circunscritas à physis, as
respostas podem revelar-se, até mesmo, contraditórias e
excludentes, como no caso de Heráclito e Parmênides.
Enquanto o primeiro absolutizou o devir e o fez princípio do
ser; o segundo, ao estabelecer uma perfeita correlação entre
pensar e ser, afirmou sua total imobilidade, negando
completamente o movimento e também a multiplicidade.
Respostas como essas são prova de que a arché não
pode ser encontrada no interior da própria physis. Elas não
contribuem para a compreensão da geração, da corrupção e
164
do ser das coisas, pelo contrário, confundem e dificultam
ainda mais sua explicação. O sensível não é capaz de
explicar-se por si mesmo, por isso, é preciso recorrer a uma
causa de natureza não-física, supra-sensível e inteligível que
seja a razão do seu ser.
É somente com a segunda navegação, com a
descoberta do novo método de investigação fundado sobre
os raciocínios e os postulados racionais, que Platão
consegue descobrir a causa de natureza não-física, supra-
sensível e inteligível, capaz de explicar o sensível de modo
satisfatório. De fato, a segunda navegação conduziu Platão
à descoberta de uma nova dimensão do ser, uma dimensão
metaempírica e transcendente.
Na segunda navegação, estão presentes os três
domínios fundamentais da metafísica de Platão: a teoria das
Ideias; a doutrina dos Princípios primeiros e supremos e a
doutrina do Demiurgo. Apesar de distintos, eles estão em
estreita conexão. É somente numa visão de conjunto que a
metafísica de Platão pode oferecer uma resposta satisfatória
ao problema da geração, da corrupção e do ser das coisas.
Com a teoria das Ideias, Platão distingue dois âmbitos
da realidade – um sensível e outro inteligível. Por sua vez,
atribui ao primeiro as características do ser heraclitiano e, ao
segundo, os atributos do ser parmenídico. A transcendência
das Ideias as eleva ao patamar de causa do sensível. E é
justamente essa transcendência que as qualifica na função
de causa verdadeira do sensível.
Suas características metafísico-ontológicas
(inteligibilidade; incorporeidade; ser em sentido pleno;
165
imutabilidade; perseidade e unidade), além de lhes
conceder uma existência em si e por si, permitem também
reduzir a multiplicidade do sensível a sua causa última,
àquela Ideia da qual participam ou imitam. Explica-se a
pluralidade do sensível ao reduzi-la à unidade da Ideia.
Mas há tanto Ideias de realidades substanciais, ou
seja, homens, animais, vegetais etc., quanto de qualidades e
aspectos redutíveis à unidade, isto é, belo, grande, duplo etc.
No fim das contas, a multiplicidade sensível foi reduzida a
uma unidade inteligível que acabou por se converter a uma
multiplicidade inteligível. Como resolver esse problema?
Se a teoria das Ideias ocupasse o vértice da metafísica
platônica, este seria um problema insolúvel. Entretanto,
como ele é ocupado pela doutrina dos Princípios primeiros
e supremos, conservada e transmitida pela tradição indireta,
o problema se dissipa sem grandes dificuldades. Assim
como a multiplicidade sensível depende da multiplicidade
das Ideias, por analogia, conclui-se que a multiplicidade das
Ideias seja reduzida a uma esfera ulterior da realidade, da
qual elas mesmas dependam.
Com efeito, Platão concebe o mundo inteligível
hierarquicamente organizado. As Ideias inferiores implicam
as superiores, numa ascensão ininterrupta, até chegar às
Ideias que ocupam o vértice da hierarquia, no qual está a
Idéia que condiciona as outras e não é condicionada por
nenhuma delas. Este princípio absoluto e incondicionado é
identificado nos escritos com a Ideia do Bem. Porém, nas
Doutrinas não-escritas, ele é identificado com o Uno,
medida exatíssima e suprema de todas as coisas.
166
Oposto ao Uno, encontra-se outro princípio, a Díade.
Eles são complementares, e a ação do Uno sobre a Díade
manifesta-se como uma espécie de determinação e definição
do ilimitado, num processo de igualização do desigual.
Enquanto princípios originários e constitutivos de todo o
ser, eles não são ser, pois são anteriores a ele.
Mas somente a teoria das Ideias e a doutrina dos
Princípios não dão conta de explicar a totalidade do real.
Apesar de constituírem o fundamento do cosmo sensível,
não explicam porque e como ele passou a existir. É
exatamente nesse ponto que entra em cena a figura teorética
do Demiurgo que, ao explicar como e porque o mundo
passou a existir, salva a metafísica platônica de um sistema
dedutivo e emanacionista. Ele, ao contemplar o modelo
inteligível, plasma o princípio material e cria livremente,
num gesto de bondade e amor, o cosmo sensível, fazendo-o
passar da desordem à ordem, do caos ao cosmo.
Como podemos perceber, ao problema referente à
causa da geração, da corrupção e do ser das coisas Platão
apresenta uma única resposta – só pode ser explicado
recorrendo-se a uma causa não-física, supra-sensível e
inteligível – articulada em três âmbitos que, apesar de
distintos, são estruturalmente conexos. Abrir mão de um de
seus componentes é aceitar uma explicação parcial do
problema em questão.
É também perceptível que Platão antecipou as quatro
causas que Aristóteles apresenta em sua Metafísica: as
Ideias desempenham a função de causa formal; a chora
exerce a função de causa material; o Demiurgo é a causa
eficiente; e o Bem-Uno, enquanto orienta a ação do
167
Demiurgo, é a causa final. No entanto, reserva-se a
Aristóteles o mérito de tê-las sistematizado.
Por fim, é inegável que Platão constitui verdadeiro
manancial para o pensamento ocidental. A segunda
navegação confere o estatuto de paradigma à filosofia de
Platão e impulsiona as demais num movimento de
convergência ou de divergência à filosofia platônica.
Gostem ou não, desde a antiguidade e ainda hoje, o caráter
de uma filosofia é definido pela relação que ela mantém
com a filosofia de Platão.
168
169
REFERÊNCIAS
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APÊNDICES
APENDICE A – SÍNTESE
PLATÃO, A METÁFORA DA SEGUNDA
NAVEGAÇÃO E A DESCOBERTA DO SUPRA-
SENSÍVEL
1 INTRODUÇÃO
A origem da filosofia está ligada à busca pelo
princípio de todas as coisas. Para o grego antigo conhecer
algo significa conhecer sua causa. Desse modo, os primeiros
filósofos afirmaram que explicar é unificar, ou seja, quem se
propõe a explicar algo deve estar apto a reduzir a
multiplicidade sensível a um princípio originário único
causador de todas as coisas – a arché.
Em sua busca pela arché, a filosofia antiga tem em
vista a totalidade do ser e do real. De Tales de Mileto a
Platão, ela esteve relacionada a questões metafísicas ligadas
à causa da geração, da corrupção e do ser das coisas. A
problemática de fundo apresentava-se da seguinte forma:
178
Por que as coisas se geram? Por que se corrompem? Por que
existem?
Inicialmente, acreditava-se que a arché poderia ser
encontrada no interior da própria physis. Sendo assim, os
primeiros filósofos mobilizaram suas forças e direcionaram
sua atenção para uma investigação incansável da natureza.
Ao ler os naturalistas, Platão constata que eles não
conseguiram alcançar uma resposta satisfatória ao problema
da arché, porque restringiram sua investigação ao interior da
physis. O empecilho estava no método que haviam
empregado – ficaram presos aos sentidos. Platão conclui,
que somente adotando uma nova metodologia e
redirecionando a pesquisa, poderia chegar a uma resposta
satisfatória para o problema.
É nesse contexto que ele empreendeu aquela guinada
metodológica que, metaforicamente, denominou de segunda
navegação, tendo como resultado a descoberta da dimensão
metafísica do ser. Nela estão presentes os três domínios
fundamentais da metafísica de Platão: a teoria das Ideias; a
doutrina dos Princípios; a doutrina do Demiurgo.
Diante disso, nosso objetivo é pesquisar a segunda
navegação de Platão e a descoberta do supra-sensível. Com
o intuito de levar a bom termo essa tarefa, dividimos nosso
texto em três capítulos: no primeiro apresentamos as
questões ligadas ao horizonte histórico de Platão; no
segundo estudamos a teoria das Ideias e a doutrina dos
Princípios; no terceiro abordamos a doutrina do Demiurgo e
buscamos vislumbrar o papel e o alcance da metafísica de
Platão.
179
2 PREMISSA HISTÓRICA
Platão (428/27 a.C) nasceu na Atenas do século de
Péricles. Filho de uma tradicional e aristocrata família
ateniense, desde cedo manifestou interesse pela política259.
Na juventude foi discípulo de Crátilo260. O encontro com
Sócrates aconteceu posteriormente: Platão estaria com vinte
anos e Sócrates com sessenta. Platão foi seu discípulo mais
importante e freqüentou-o por oito anos.
Após a morte de Sócrates (399 a.C), retirou-se para
Mégara, onde permaneceu cerca de 3 anos. De Mégara
partiu para Cirene e, posteriormente, para a Itália261, onde
foi convidado para visitar a corte do tirano Dionísio I, na
Sicília (388 a.C.). Platão acreditava ter encontrado a
oportunidade de colocar em prática o ideário político do rei-
filósofo. Ao retornar para Atenas fundou a Academia, num
ginásio situado no jardim dedicado ao herói Academos.
Platão viajou outras duas vezes à Sicília (367 e 361
a.C) e, ao retornar à Atenas em 360 a.C. permaneceu na
direção da Academia até o ano de sua morte, em 347 a.C.,
com cerca de 80 anos de idade. Foi sepultado na própria
Academia. Todos os seus discípulos estavam presentes no
259 PLATÃO. Carta VII. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975,
324 B. 260 ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2005, A, 987 a. 261 LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. 2. ed.
Brasília: UnB, 1987, III, 6 et seq.
180
cortejo fúnebre262, aliás, “toda Atenas o acompanhou à
sepultura”263.
Seus escritos chegaram até nós em sua totalidade –
trinta e seis trabalhos ao todo: uma Apologia de Sócrates,
trinta e quatro diálogos e treze cartas. A tradição conservou
a ordem adotada e difundida pelo gramático Trásilo264 que,
seguindo o critério da afinidade temática, dividiu-os em
nove tetralogias.
Desde a antiguidade, o problema de sua autenticidade
se fez presente. A crítica moderna chegou a duvidar da
autenticidade de praticamente todos os escritos. Atualmente,
“a tendência é considerar autênticos quase todos os diálogos
ou até mesmo todos”265.
Contrariamente à questão da autenticidade, a
problemática referente à cronologia dos diálogos não
encontra uma resposta satisfatória. Somos forçados a nos
contentar apenas com o estabelecimento de quatro períodos:
escritos de juventude; escritos de transição; escritos de maturidade e escritos de senectude.
Juntamente ao problema da autenticidade e da
cronologia dos escritos, temos ainda a questão da existência
das Doutrinas não-escritas. Elas negam a autarquia dos
262 LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Op. cit.,
III, 41. 263 DURANT, W. A História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural,
1996, p. 68. 264 LAÊRTIOS, D. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Op. cit.,
III, 56 et seq. Contemporâneo do imperador Tibério, século I d.C. 265 REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. Filosofia pagã
Antiga. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2004, p. 134.
181
diálogos e, afirmam que a compreensão dos escritos de
Platão não coincide com a totalidade da compreensão de sua
filosofia.
Frente a essa discussão, os estudiosos introduziram o
termo esotérico para designar as Doutrinas não-escritas,
isto é, o ensinamento oral de Platão, reservado somente aos
alunos no interior da Academia. E o termo exotérico para
designar o pensamento que Platão confiou à escrita e,
portanto, àqueles que também estavam fora da Academia. A
autenticidade e a cronologia dos escritos, somadas às
Doutrinas não-escritas constituem, hoje, a chamada
Questão Platônica.
2.1 OS NATURALISTAS E A BUSCA PELA
ARCHÉ
Os pré-socráticos foram os primeiros a afirmar a
existência da arché. Tales266 identificou-a com a água267.
Anaximandro268 afirmou que o princípio não pode ser
determinado por algo derivado, mas que ele é o infinito: o á-
266 Mileto, 624/25 – 546/45 a.C. 267 ARISTÓTELES. Metafísica. Op. cit., A, 983 b. 268 Mileto, 610/09 – 547/46 a.C.
182
peiron. Anaxímenes269 apesar de identificá-la com o ar,
atribui-lhe infinitude e movimento eterno.
Heráclito270 aprofundou o dinamismo universal e
chegou a um completo mobilismo. Para ele, o devir é o
próprio princípio e não uma característica do princípio. Não
obstante, Heráclito identificou a arché com o fogo.
Pitágoras271 e os pitagóricos identificaram-na com o
número.
Os Eleatas fundaram a problemática da arché sob a
perspectiva ontológica. Em Parmênides272 a questão do ser
tornou-se primordial. O que há de mais básico é o ser: a
água é, o fogo é, a terra é, todos as coisas são. Por sua vez,
ele estabeleceu uma perfeita correlação entre ser e pensar.
Empédocles273 admitiu uma multiplicidade de
princípios, denominados raízes de todas as coisas. Afirmou
ainda, que estas raízes possuem total inalterabilidade
qualitativa e intransformabilidade.
Anaxágoras274 admitiu a substancial imutabilidade do
ser. Segundo ele, as coisas são compostas por elementos
diversos – as homeomerias – que podem dividir-se em
partes sempre menores sem que suas qualidades sofram
qualquer alteração.
269 Mileto, 546/45 – 528/25 a.C. 270 Éfeso, cerca de 540 – 470 a.C. 271 Samos – cerca de 571/70 a 497/96 a.C. 272 Eléia – sécs. VI-V a.C. 273 Agrigento, 484/11 – 424/21 a.C. 274 Clazómenas, 449/48 – 428/27 a.C.
183
A novidade de Anaxágoras é a introdução de uma
Inteligência Ordenadora, responsável pelo movimento
inicial que deu origem a uma mistura bem ordenada da qual
surgiram todas as coisas. Contudo, ele permaneceu no plano
físico e continuou a dar muita importância às homeomerias
no processo de explicação do real.
3 A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E A
DESCOBERTA DO SUPRA-SENSÍVEL
A passagem central do Fédon, 96 A – 102 A, é
considerada “uma das passagens mais célebres e mais
grandiosas”275 dos escritos de Platão, constituindo “a
primeira demonstração da existência de um ser meta-
empírico, supra-sensível e transcendente”276: a “magna
charta da metafísica ocidental”277. Ela apresenta o mapa do
projeto metafísico de Platão, ora explicitamente, como a
275 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. 2. ed. São
Paulo: Loyola, 2004, p.100. 276 REALE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Terza
edizione. Milano: Rizzoli, 1998, p. 145: “la prima dimostrazione
dell’esistenza di un essere metempirico, soprasensibile e
transcendente”. 277 REALE, G. O Saber dos Antigos. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002,
p. 221.
184
teoria das Ideias, ora com remissões implícitas e em nível
alusivo, como a doutrina dos Princípios e do Demiurgo.
Em poucos parágrafos, Platão descreve a trajetória
ideal que a mente humana deve percorrer quando busca a
verdade. Este trajeto é composto por duas fases essenciais: a
física e a metafísica. A fase física, seguindo o método dos
naturalistas, é escalonada em dois momentos: o primeiro
inspirado na doutrina dos físicos em geral; o segundo
inspirado em Anaxágoras. A fase metafísica, seguindo um
novo método também é escalonada em dois momentos: o
primeiro, com a teoria das Ideias; o segundo, com a doutrina
dos Princípios.
Ao conhecer a fragilidade e as contradições da
metodologia empregada pelos naturalistas, Platão
empreendeu aquela que, metaforicamente, ele mesmo
denominou de segunda navegação278. Ela constitui a grande
novidade e o ponto fundamental de sua filosofia. Ao que
tudo indica, a expressão é de origem marinhesca.
A primeira navegação é aquela feita com as velas ao
vento. Corresponde à investigação realizada sob o impulso
da filosofia da physis, seguindo método dos filósofos
naturalistas. Nela, o filósofo está circunscrito às velas dos
sentidos e busca explicar o sensível por meio do próprio
sensível.
A segunda navegação é aquela feita com os remos.
Refere-se ao novo método proposto por Platão que é
impulsionado pelos remos dos raciocínios e dos postulados
278 PLATÃO. Fédon. In: Diálogos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural,
1979, 99 D.
185
racionais, levando à conquista da dimensão supra-sensível
do ser.
3.1 A TEORIA DAS IDEIAS
Com a teoria das Ideias Platão opera, ao mesmo
tempo, uma distinção e uma síntese. A distinção é expressa
na sua concepção de realidade formada por dois planos de
ser - o sensível e o inteligível. A síntese é elaborada a partir
das conclusões de Heráclito e Parmênides, atribuindo as
características do primeiro à esfera sensível da realidade e,
as do segundo às realidades inteligíveis.
As Ideias possuem características metafísico-
ontológicas que as elevam a condição de fundamento e
causa do sensível: são inteligíveis e incorpóreas279; são o ser
em sentido pleno280; são imutáveis281; a permanência e
estabilidade de sua essência atestam sua objetividade282; sua
279 Fédon, 65 C – 66 A. 280 Fédon, 78 D – 79 A. 281 PLATÃO. Crátilo. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1973, 439
B – 440 A. 282 Ibidem, 385 E – 386 E. Mesmo no Parmênides, a objetividade das
Ideias é reafirmada: PLATÃO. Parmênides. In: Diálogos de Platão.
Belém: UFP, 1974, 134 E – 135 B.
186
unidade metafísica reduz a multiplicidade sensível a Idéia
que participam ou imitam283.
Enquanto causa e fundamento do sensível, as Ideias o
transcendem. Com efeito, no mito do Hiperurânio
encontramos o símbolo dessa transcendência284. O pretenso
“dualismo” metafísico que a crítica atribui a Platão, é o
“dualismo de quem admite a existência de uma causa supra-
sensível como razão de ser do próprio sensível, convencido
de que o sensível, por sua autocontraditoriedade, não possui
uma razão de ser total de si mesmo”285.
3.2 A DOUTRINA DOS PRINCÍPIOS
PRIMEIROS E SUPREMOS
A doutrina dos Princípios, também denominada
Protologia286, refere-se à outra tese – aquela de maior valor
citada de modo alusivo no Fedon287, o ensinamento mais
283 PLATÃO. A República. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP,
1976, 475 E – 476 A. 284 PLATÃO. Fédro. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1975, 247
C – E. 285 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
143. 286 Discurso sobre os Princípios primeiros. 287 Fédon, 101 D – 102 A.
187
precioso288 que foi confiado à oralidade dialética - capaz de
garantir um resultado satisfatório frente aos limites da
teoria das Ideias. Estes Princípios supremos são o Uno e a
Díade do grande e do pequeno.
Essa doutrina é o fruto de uma conferência intitulada
Sobre o Bem, proferida por Platão após a fundação da
Academia289. Ao ouvi-la, alguns de seus discípulos teriam
tomado nota, dentre eles, Aristóteles e Xenócrates. Porém, o
episódio configurou-se uma tentativa frustrada de levar a
doutrina platônica para fora da Academia290.
A Protologia além de revelar o duplo nível de
fundação metafísica, soluciona o problema da
multiplicidade inteligível. Com efeito, em conformidade
com a máxima que rege o pensamento grego291, Platão sente
a necessidade de subir a um segundo nível de fundação
metafísica:
como a esfera do múltiplo sensível depende da esfera
das Idéias, assim, analogamente, a esfera da
multiplicidade das Idéias depende de uma ulterior
esfera de realidade, da qual derivam as próprias
288 Fédro, 278 B – E. 289 DUMONT, J-P. Elementos de História da Filosofia Antiga.
Brasília: UnB, 2004, p. 287. 290 ARISTÓXENO. Elementos de Harmonia. II, p. 39-40, Da Rios
apud BRISSON, L. Leituras de Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2003, p. 111. 291 Conhecer é unificar.
188
Idéias, e esta é a esfera suprema e primeira em
sentido absoluto292.
Nos escritos o princípio absoluto e incondicionado é
identificado com o Bem. No ensinamento oral, Platão
identifica-o com o Uno e a Díade. Eles exigem-se
estruturalmente. A pluralidade e a gradação dos seres
nascem da ação do Uno na Díade, da determinação de sua
multiplicidade indeterminada. Desse modo, os seres
manifestam-se como uma unidade-na-multiplicidade: “cada
coisa é una, enquanto é algo definido e determinado”293.
292 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
159. 293 ALEXANDRE DE AFRODÍSIA. Commentario alla Metafisica di
Aristotele apud KRÄMER, H. Platone e i Fondamenti della
Metafísica. Terza edizione. Milano: Vita e Pensiero, 1989, p. 385:
“Ciascuna cosa è infatti una, in quanto à qualcosa di definido e di
determinato”.
189
4 A DOUTRINA DO DEMIURGO E O
SIGNIFICADO E ALCANCE DA METAFÍSICA
DE PLATÃO
4.1 A DOUTRINA DO DEMIURGO
A doutrina do Demiurgo apesar de estar presente no
Fédon e ter sido retomada nos diálogos subsequentes,
recebeu uma extensa exposição somente no tardio Timeu.
Como vimos, a teoria das Ideias e a Protologia
fornecem o fundamento do cosmo sensível, mas não
explicam porque e como ele passou a existir, pois entre os
planos inteligível e sensível há uma relação de dependência
ontológica unilateral e não reversível, onde o primeiro pode
ser pensado sem o segundo, mas não vice-verça. “O plano
mais alto oferece somente condições necessárias, mas não
também suficientes para o plano sucessivo”294.
É o Demiurgo que exerce esse papel de causa
suficiente. Ele apresenta-se como o mediador entre os dois
planos. Distingue-se do restante do cosmo e possui uma
existência pessoal. É um ser capaz de consciência e vontade. 294 KRÄMER, H. Platone e i Fondamenti della Metafísica. Op. cit., p.
164: “Il piano più alto offre solamente condizioni necessarie, ma non
anche sufficienti per il piano successivo”.
190
Sua ação é caracterizada como um levar do não-ser
ao ser, um trazer para a existência o que antes não
existia295, conferindo-lhe um estatuto ontológico. Ele opera
em função do Bem, dispondo e ordenando cada coisa do
melhor modo. Tendo em vista o modelo imutável e sempre
igual a si mesmo – as Ideias – plasma o princípio material
informe – a chora – que é eterno e preexistente ao cosmo,
denominado também como “matriz de tudo o que
devém”296.
O Demiurgo, auxiliado pelos entes matemáticos,
modela a chora de modo que, “a racionalidade dos corpos
sensíveis e do mundo corpóreo sensível em geral depende
exatamente da sua estrutura geométrica e matemática, que
torna possível a ‘imitação’ do modelo inteligível”297.
Platão afirma que o Demiurgo, por ser o “bom” em
mais alto grau e por atualizar o Bem no seu ato criador,
seria incapaz de levar a cabo uma obra que não fosse a
“mais bela de todas”298, por isso, “quis que, na medida do
possível, todas as coisas fossem semelhantes a ele”299.
295 PLATÃO. Sofista. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1980, 219
B e 265 B. 296 PLATÃO. Timeu. In: Diálogos de Platão. Belém: UFP, 1977, 49
A. 297 RELAE, G. Platone alla Ricerca della Sapienza Segreta. Op. Cit.,
p. 238: “La razionalità dei corpi sensibili e del mondo corporeo
sensibili in generale dipende esattamente dalla struttura geometrica e
matematica, che rende possibile l’imitazione dei modelli intelligibili”. 298 Timeu, 29 E – 30 B. 299 Idem.
191
4.2 PAPEL E ALCANCE DA METAFÍSICA DE
PLATÃO
Platão está situado no vértice do pensamento antigo e,
permanecendo nesse mesmo âmbito, podemos afirmar que
sua filosofia constitui o eixo de sustentação mais
significativo do modo de pensar dos gregos300. Desde a
antiguidade, Platão tem-se constituído num verdadeiro
manancial para o pensamento ocidental:
Mais de dois mil anos já se passaram desde o dia em
que Platão ocupava o centro do universo espiritual da
Grécia e em que todos os olhares convergiam para a
sua Academia, e ainda hoje se continua a definir o
caráter de uma filosofia, seja ela qual for, pela sua
relação com aquele filósofo301.
Henrique Cláudio de Lima Vaz, afirma que “o gesto
inaugural de toda a decisão autêntica de filosofar dentro da
nossa tradição é um encontro ou um reencontro com
Platão”302.
300 REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1994,
p. 7 et seq. 301 JAEGER, W. Paidéia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.
581. 302 VAZ, H. C. L. Platão Revisitado. Ética e Metafísica nas Origens
Platônicas. In: Síntese Nova Fase. Belo Horizonte: Centro de Estudos
Superiores – SJ, 1993, n. 61, p. 182.
192
Sua segunda navegação, enquanto primeira
demonstração racional da existência de um ser supra-
sensível e transcendente que dá sentido ao ente sensível em
todas as suas manifestações, configura-se como rejeição de
toda e qualquer forma de materialismo.
“As Idéias representam a figura especulativa do
pensamento de Platão que teve maior sucesso”303, com uma
série de repensamentos e influenciando grandes pensadores
em pontos fundamentais de sua filosofia. Grosso modo,
“uma história da interpretação da teoria das Idéias cobriria
grande parte da história da filosofia ocidental, justamente
num dos seus pontos capitais”304.
Quanto à doutrina dos Princípios, há um filósofo
contemporâneo a nós que, apesar de ser antimetafísico,
retomou a grande tese platônica da estrutura bipolar dos
Princípios. Seu nome: Edgar Morin305. Para ele ordem e
desordem cooperam e tudo o que existe nasce dessa
cooperação.
Já a doutrina do Demiurgo, mesmo não sendo uma
doutrina criacionista propriamente dita (não ao menos em
sentido bíblico), é o que podemos chamar de
semicriacionismo – “a mais alta forma de criacionismo
alcançada pelo pensamento helênico”306.
303 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
117. 304 Ibidem, p. 118. 305 REALE, G. O Saber dos Antigos. Op. cit., p. 233. Edgar Morin,
(1921) é um dos maiores expoentes da cultura francesa do século XX. 306 REALE, G. Para uma nova Interpretação de Platão. Op. cit., p.
521.
193
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como percebemos, quando circunscritas à physis, as
respostas referentes à causa da geração, da corrupção e do
ser das coisas revelam-se insuficientes e até mesmo
contraditórias. O sensível não é capaz de explicar-se por si
mesmo. Desse modo, é preciso recorrer a uma causa de
natureza não-física, supra-sensível e inteligível que seja a
razão do seu ser.
É somente com a segunda navegação, que
conseguimos descobrir essa causa capaz de explicar o
sensível de modo satisfatório. Ela conduziu Platão à
descoberta da dimensão metaempírica e transcendente do
ser. Nela estão presentes os três domínios fundamentais da
metafísica de Platão – a teoria das Ideias, a doutrina dos
Princípios e a doutrina do Demiurgo – que, apesar de
distintos, estão em estreita conexão.
A teoria das Ideias e a doutrina dos Princípios
fornecem o fundamento do ser, mas não esclarecem porque
e como ele passou a existir. Nesse ponto entra em cena a
figura teorética do Demiurgo que, ao explicar como e
porque o mundo passou a existir, salva a metafísica
platônica de um sistema dedutivo e emanacionista. O
Demiurgo, ao contemplar o modelo inteligível, plasma o
princípio material e cria livremente o cosmo sensível num
gesto de bondade e amor, fazendo-o passar da desordem à
ordem, do caos ao cosmo.
194
Ao problema referente à causa da geração, da
corrupção e do ser das coisas Platão apresenta uma única
resposta – só pode ser explicado recorrendo-se a uma causa
não-física, supra-sensível e inteligível – porém, articulada
em três âmbitos que, apesar de distintos, são estruturalmente
conexos.
Não obstante, é perceptível que Platão antecipou as
quatro causas apresentadas por Aristóteles na Metafísica: as
Ideias desempenham a função de causa formal; a chora
exerce a função de causa material; o Demiurgo é a causa
eficiente; e o Bem-Uno, enquanto orienta a ação do
Demiurgo, é a causa final. Todavia, reserva-se a Aristóteles
o mérito de tê-las sistematizado.
Por fim, é inegável que Platão constitui verdadeiro
manancial para o pensamento ocidental. A segunda
navegação confere o estatuto de paradigma a filosofia
platônica e impulsiona as demais num movimento de
convergência ou de divergência à ela. Gostem ou não, desde
a antiguidade e ainda hoje, o caráter de uma filosofia é
definido pela relação que ela mantém com a filosofia de
Platão.
195
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grego com tradução e comentário de Giovanni
Reale. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo:
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Filosofia da Companhia de Jesus. Belo
198
Horizonte: Centro de Estudos Superiores – SJ,
1993, n. 61.
199
Os primeiros filósofos dedicaram um grande esforço na
busca pela arché, o princípio originário único, capaz de
explicar a totalidade do real. Assim como os
naturalistas, Platão também busca a causa do real.
Percebendo que os naturalistas confundiram a
verdadeira causa com a concausa material, concluiu que
deveria buscar um novo método. Ao redirecionar a
busca pela verdadeira causa, empreendeu aquela que,
metaforicamente, denominou de segunda navegação – a
grande novidade e o ponto fundamental de sua filosofia.
Este novo modo de filosofar conduziu-o à descoberta da
dimensão supra-sensível do ser. A teoria das Ideias está
em sua etapa inicial, ao passo que a doutrina dos
Princípios está na etapa final. Coube a Platão
redirecionar a doutrina da Inteligência cósmica e dar-lhe
uma fundamentação adequada, ao elaborar a doutrina do
Demiurgo – o grande mediador entre mundo sensível e
mundo inteligível. Desde a antiguidade, e, ainda hoje, o
caráter de uma filosofia é definido pela relação que
mantém com a filosofia de Platão.