Planejamento da carreira artística Rômulo Avelar
Planejamento estratégico e conceituação da carreira
Todas as organizações, inclusive aquelas de natureza cultural, ambicionam o sucesso, seja na forma de vendas, no alcance de bons resultados socioeconômicos, na conquista de espaço político ou no reconhecimento público de sua importância. Muitas vezes, no entanto, a busca desenfreada por resultados imediatos leva as instituições a perderem as rédeas de seu próprio destino. Todo o tempo e a energia da equipe são consumidos pelas atividades intensas do dia-‐a-‐dia, restando pouco ou nenhum espaço para projetar o futuro. A atenção se concentra nos aspectos operacionais, e a organização segue seu curso ao sabor das pressões desordenadas do contexto. Não há direcionamento seguro, nem objetivos claros. Não existe, portanto, planejamento.
Segundo Lacombe e Heilborn (2006, p. 162), “Planejamento é a determinação da direção a ser seguida para alcançar um resultado desejado”. É uma ação deliberada que possibilita maior eficiência diante das variações e ameaças impostas pelo ambiente e aumenta consideravelmente as chances de êxito de um empreendimento. Planejar é abrir espaço no cotidiano para pensar o futuro. Para Natale e Olivieri (2006, p. 21), “é mais uma atitude do que uma tarefa; é reconhecer a importância de pensar e sentir antes de fazer”.
Dentre as várias formas de planejamento possíveis, vale destacar um instrumento de grande impacto, mas que ainda é muito pouco utilizado no âmbito da cultura: o planejamento estratégico. Trata-‐se de um processo gerencial que permite a definição do direcionamento a ser adotado por uma organização, com o objetivo de buscar melhores resultados. Envolve a formulação de objetivos e a seleção de programas de ação, a partir de um diagnóstico da situação interna da instituição e das condições do ambiente externo. A ideia de estratégia remete à efetuação de escolhas. O planejamento estratégico representa para os gestores, portanto, a possibilidade de selecionar, entre os vários caminhos possíveis, aqueles que se apresentam como mais adequados para o alcance dos objetivos traçados para a organização.
Infelizmente, esse instrumento de gestão ainda é visto como algo inacessível à maioria das entidades culturais brasileiras. Muitos profissionais da área pensam tratar-‐se de uma ferramenta restrita às organizações de grande porte. Outros tantos sequer têm noção de qual seja sua utilidade para um empreendimento de natureza cultural. A boa nova, no entanto, é que algumas experiências de sucesso vêm quebrando esse mito, revelando sua aplicabilidade a grupos artísticos, espaços e instituições culturais, ou mesmo ao trabalho de artistas que se lançam em carreiras solo.
É necessário observar que não há um modelo de planejamento estratégico único, que seja válido para todas as situações, indistintamente. Pelo contrário, existem metodologias diversas, com diferentes abordagens e nomenclaturas. Cabe aqui enumerar, no entanto, algumas etapas recorrentes em várias delas:
• definição do negócio; • definição da missão;
• definição dos princípios ou políticas; • formulação de uma visão de médio ou longo prazo; • diagnóstico da situação interna e das condições do ambiente; • formulação de objetivos; • definição de estratégias; • elaboração de um plano de ação; • implementação do plano de ação.
Além das etapas enumeradas acima, é imprescindível também a adoção de mecanismos de controle e de acompanhamento das ações projetadas, sem os quais todo o trabalho pode ser colocado em risco.
Vale também registrar que a construção de um plano de ação pode durar meses, demandando inúmeras reuniões, entrevistas e pesquisas. Na verdade, mais importantes do que o documento final são o processo vivido pela organização e o comprometimento da equipe com os objetivos traçados. É importante salientar que, embora a condução do planejamento estratégico seja atribuição da cúpula da organização, a quem cabe a tomada das grandes decisões, é recomendável o envolvimento, em algum nível, de todo o corpo funcional.
Conceituando uma carreira artística: negócio, missão e princípios
Observando as práticas do setor cultural brasileiro, é fácil perceber a pouca familiaridade dos artistas, grupos e entidades culturais com os temas ligados ao planejamento e à gestão. Geralmente, os profissionais da área concentram-‐se excessivamente sobre os processos de criação, passando ao largo de discussões sobre o modo como se estabelece sua carreira e sobre perspectivas futuras. É comum a existência de equipes em que tais reflexões simplesmente não acontecem.
Tomemos como exemplo um grupo de teatro fictício que dedica o máximo de tempo possível aos ensaios, pesquisas e trabalhos de preparação dos atores. Além disso, certamente seus integrantes precisam absorver atividades paralelas de produção, comunicação e, obviamente, de busca de recursos. Até aí, tudo parece muito natural e condizente com a realidade da área cultural brasileira, não é mesmo? O problema é que, no turbilhão do dia-‐a-‐dia, os artistas acabam não promovendo reflexões sobre questões conceituais fundamentais de sua carreira. É possível que nesse grupo teatral existam divergências de percepção do próprio trabalho: um dos integrantes, por exemplo, nutre expectativas de que a criação se fundamente na pesquisa de linguagens, enquanto o outro se propõe a produzir um teatro mais comercial. Como não há momentos reservados para a discussão do próprio conceito do grupo e para o alinhamento da equipe em torno de algumas referências fundamentais, a carreira segue seu curso como campo fértil para o surgimento de conflitos e, quase sempre, com sérios problemas de identidade.
Nesse sentido, a discussão do negócio, da missão e dos princípios pode contribuir para a redução das divergências internas e para o fortalecimento da carreira. A pactuação de alguns pontos de convergência entre os membros da equipe aumenta as possibilidades de satisfação dos anseios individuais e torna mais claro o perfil do trabalho, favorecendo as relações externas e o processo de busca de recursos e parcerias.
Definição do negócio
Negócio, segundo Vasconcelos Filho e Pagnoncelli (2001, p. 31), “é o entendimento do principal benefício esperado pelo cliente”. Quando alguém adquire um produto, não está interessado exatamente em seus atributos físicos, mas no benefício que eles lhe proporcionarão. O mesmo raciocínio vale, naturalmente, para um serviço. Para facilitar a compreensão deste conceito, alguns exemplos são apresentados no Quadro 1:
Quadro 1 – Exemplos de negócio
Organização Segmento Negócio
Natura Cosméticos Beleza
Casa do Beco
Centro cultural instalado em uma comunidade de periferia de Belo
Horizonte, MG
Teatro Transformação social
Coletivo de Teatro Alfenim
Grupo de teatro de João Pessoa, PB Teatro Intervenção política
Falcatrua
Banda de rock de Belo Horizonte, MG Música Entretenimento
Ram
Banda de rock de Belo Horizonte, MG Música Inquietação
Observe, por exemplo, que o cliente da Natura não compra cosméticos, mas beleza, que é um benefício proporcionado pelos seus produtos. Da mesma forma, o público da Casa do Beco espera que a entidade promova transformação da realidade à sua volta, e não simplesmente teatro. Os espetáculos, cursos e eventos que produz são apenas instrumentos para atendimento a uma expectativa maior do público, que vai além dos produtos em si. Já o
Coletivo de Teatro Alfenim entrega ao seu cliente intervenção política. Note que são perspectivas distintas, de públicos também distintos.
É importante perceber que a sobrevivência de uma organização está condicionada ao atendimento das expectativas de quem consome seus produtos ou serviços. A definição do negócio é, portanto, uma rica experiência para a equipe, na medida em que promove um deslocamento do olhar para fora, em busca da perspectiva daquele que é a própria razão de existir de uma carreira artística: o público.
Outra discussão importante, e que antecede a própria definição do negócio, é a identificação de quem é o cliente. Eis aqui uma questão difícil de ser respondida para boa parte dos artistas. Muitos deles, quando inquiridos sobre o assunto, tendem a idealizar o público, afirmando se tratar de um universo amplo, que inclui faixas etárias diversas e perfis socioeconômicos múltiplos. Na maior parte das vezes, esse espectro não corresponde à realidade.
Para a identificação precisa do público-‐alvo, o ideal seria, naturalmente, a realização de pesquisas, o que é inviável para a grande maioria dos empreendedores culturais brasileiros. No entanto, na falta de recursos para contratação de um estudo profissional, os próprios artistas, produtores e gestores culturais podem reunir informações preciosas a partir da observação atenta do comportamento e do perfil das pessoas que estão ligadas, de alguma forma, ao seu trabalho. Mesmo que não haja nesse procedimento uma base científica, a iniciativa pode contribuir para que a carreira ganhe novas referências e deixe de avançar às cegas. Sugere-‐se que, nesse processo, sejam buscadas respostas objetivas para perguntas como:
• Qual é a faixa etária da maioria das pessoas diretamente atingidas pelo trabalho? • É possível estabelecer um foco, expurgando-‐se as idades extremas (para cima e para
baixo)? • Qual é o perfil desse público? • Qual é sua origem? • Qual é sua classe social? • Como é seu poder aquisitivo? • Quais são os hábitos de consumo dessas pessoas? • Quais são os canais de informação usualmente acessados por esse público? • É possível listar outros artistas e grupos que também atingem essas pessoas?
A partir dessa reflexão, é provável que os empreendedores consigam visualizar com mais precisão seu público-‐alvo e definir com propriedade um foco de atuação. Naturalmente, é possível também que, ao final dessa análise, a conclusão seja de que o trabalho realmente atinge um universo amplo, com faixas etárias diversas e perfis socioeconômicos múltiplos. No entanto, é importante observar que poucos são os artistas e grupos que realmente conseguem este feito.
A definição do público-‐alvo é fundamental para o avanço de uma carreira artística. Com a identificação de quem são e onde estão as pessoas interessadas no trabalho, é possível
traçar estratégias para chegar até elas. Torna-‐se mais fácil definir os canais de comunicação a serem utilizados na divulgação das ações. O artista produzirá cartazes e filipetas tradicionais ou partirá para uma campanha por meio das redes sociais e de outras ferramentas da internet? Investirá em mídia de rádio ou pedirá para o padre anunciar o evento na missa de domingo?
Além disso, a clareza sobre o público-‐alvo será essencial no processo de busca de parceiros privados. Na perspectiva das empresas, esta é uma informação fundamental ao processo de decisão por patrocinar ou não um projeto cultural.
Definição da missão
Uma vez definidos o perfil do cliente e o negócio, o próximo passo na direção da conceituação da carreira artística é a formulação de sua missão.
Vasconcelos Filho e Pagnoncelli (2001, p. 31) definem a missão como sendo “a razão de existir da empresa no seu negócio”. Trata-‐se aqui de buscar, em uma única frase e de maneira bastante objetiva, a explicitação da identidade e dos propósitos de uma organização. No Quadro 2 são apresentados alguns exemplos de missão.
Quadro 2 – Exemplos de missão
Organização Missão
Danone Levar saúde, por meio de alimentos, ao maior número de pessoas possível.
Coletivo de Teatro Alfenim
Grupo de teatro de João Pessoa, PB
A partir da experimentação estética, criar espetáculos teatrais que promovam um espaço de resistência simbólica à lógica do capital, com vistas à transformação da sociedade.
Grupo Hibridus
Grupo de dança contemporânea de
Ipatinga, MG
Produzir, compartilhar e difundir experiências em dança contemporânea, gerando diálogo com outros segmentos artísticos e criando ambientes de troca que possibilitem a ampliação da visão e espírito crítico da comunidade.
Coletivo Canoa Cultural
Associação sem fins lucrativos de Boa Vista, RR, vinculada ao Circuito
Fora do Eixo
Agitar a cena cultural de Roraima e valorizar a arte autoral, conectando público e artistas, por meio de ações baseadas nos princípios da economia solidária e criativa.
Meninas de Sinhá
Grupo musical composto por mulheres da terceira idade de Belo Horizonte,
MG
Exaltar a cultura como fator de desenvolvimento humano e estratégia de modificação social e
psicológica de qualquer pessoa, em qualquer idade.
Fernando Sodré
Instrumentista de Belo Horizonte, MG
Criar e difundir uma linguagem inovadora para a viola.
A missão deve ser entendida como uma “impressão digital” da organização, em que não apenas são definidos seus propósitos, mas também estabelecidos certos compromissos com a sociedade. O Coletivo de Teatro Alfenim, por exemplo, deixa claro um posicionamento político que se fará presente em todo o seu trabalho. O Grupo Hibridus, por sua vez, explicita seu caráter experimental e contemporâneo, bem como sua perspectiva de diálogo entre os segmentos artísticos, enquanto o Coletivo Canoa Cultural se compromete a buscar o fortalecimento da cena cultural de Roraima.
Definição dos princípios
Outro ponto importante é o posicionamento da organização em relação aos valores que norteiam sua atuação. Trata-‐se aqui de elencar seus princípios ou políticas, que segundo Vasconcelos Filho e Pagnoncelli (2001, p. 31), “são os balizamentos para o processo decisório e o comportamento da empresa no cumprimento da sua missão”. Alguns exemplos de princípios são apresentados no Quadro 3.
Quadro 3 – Exemplos de princípios
Organização Princípios
Disney
Não ceticismo
Criatividade, sonhos e imaginação
Atenção fanática aos detalhes
Preservação e controle da magia Disney
Coro Madrigale
Coral de Belo Horizonte,
Harmonia: Respeito e companheirismo no grupo.
Comprometimento: Disciplina, assiduidade, dedicação e
MG disposição para novos desafios.
Formação: Busca de aperfeiçoamento técnico e artístico de cantores de coro.
Repertório: Qualidade e pesquisa.
Resgate: Revalorização do movimento coral.
Público: Respeito, educação e enriquecimento cultural.
Sustentabilidade: Busca de estabilidade financeira.
Isenção: Independência política e religiosa.
Favela é Isso Aí
Organização não governamental de Belo Horizonte, MG, que tem como principal objetivo o fomento à produção cultural e artística da
periferia.
Trabalhamos para garantir reconhecimento aos moradores das periferias, vilas e favelas, em especial à produção artístico-‐cultural.
Valorizamos e fortalecemos a diversidade cultural nas comunidades periféricas.
Todos os nossos projetos são realizados a partir de pesquisas e diagnósticos, propiciando o conhecimento da realidade e da particularidade de cada comunidade.
Temos o compromisso de oferecer aos nossos públicos oportunidades de acesso aos meios de produção, formação e divulgação.
Desenvolvemos nossas ações com seriedade, ética e transparência, com qualidade, eficiência e resultados concretos para o público.
Envolvemos as comunidades em todos os projetos e incentivamos conexões entre elas.
Manolos Funk
Banda de Vespasiano, MG
Não basta fazer. Tem que fazer diferente.
Fazer com qualidade técnica e artística.
Fazer com prazer.
Promover a construção de um mercado médio para a música autoral.
Promover a sustentabilidade dos integrantes da equipe
Manolos Funk.
Promover a interatividade entre o Manolos Funk, o público e os outros artistas.
Trabalhar sempre sob a ótica do coletivo e do associativo: do it juntos.
Respeitar o próximo, seja ele humano, bicho ou planta.
Trabalhar sempre com bom humor.
Os princípios ajudam a equipe a tomar decisões do dia-‐a-‐dia. O Coro Madrigale, por exemplo, observando o princípio da isenção, pode decidir, com toda agilidade, pelo não engajamento em determinada campanha político-‐partidária que lhe seja proposta. Como já existe a política previamente definida, a decisão se torna mais simples. Da mesma forma, a ONG Favela é Isso Aí, coerente com seu princípio de fundamentar os projetos com pesquisas e diagnósticos, pode rechaçar de imediato uma proposta superficial e que não inclua tais procedimentos.
Mais do que simplesmente frases bonitas colocadas no papel, a missão e os princípios se prestam a buscar o alinhamento da equipe em torno de um conceito referencial para a organização e a estimular o corpo funcional a construir e cultivar relações harmoniosas com seus diversos públicos. No entanto, para que tenham força e realmente contribuam para o fortalecimento da identidade, é preciso que tanto a missão quanto os princípios sejam coerentes com as práticas cotidianas. É essencial que espelhem com fidelidade o que essa organização é, e não o que gostaria de ser. Por conta disso, é frequente encontrar missões e conjuntos de princípios que, por faltarem com a verdade, acabam caindo no ridículo.
Diagnóstico Uma das chaves para o êxito de um processo de planejamento estratégico está na realização de um apurado diagnóstico da organização. Trata-‐se aqui de examinar criteriosamente a situação em que ela se encontra, identificando-‐se seus pontos fortes e fracos em relação a diversos fatores, como a qualidade de seus produtos ou serviços, sua capacidade gerencial e de organização, seu conhecimento técnico, sua estrutura tecnológica, sua capacidade de produção e distribuição, sua saúde financeira e suas perspectivas de mercado.
O diagnóstico deve ser entendido como o ponto de partida para a construção do plano de ação. É a partir desse “mergulho na realidade da organização que se torna possível a identificação de informações essenciais para o aperfeiçoamento dos processos de trabalho e, em última instância, para que se alcancem os resultados desejados. No campo da gestão, é de todo recomendável partir de fatos e dados reais, e não apenas de projeções intuitivas.
A construção do diagnóstico também pode se guiar por diferentes metodologias. Uma ferramenta frequentemente utilizada para esse fim é a Análise SWOT ou Análise FOFA. A sigla SWOT vem das iniciais das palavras strenghts (forças), weaknesses (fraquezas), opportunities (oportunidades) e threats (ameaças), pois estes são justamente os pontos a serem avaliados. No estudo do ambiente externo, cujas variáveis estão sempre fora do controle dos gestores, são levantadas as ameaças e oportunidades às quais a instituição está sujeita. Trata-‐se de fatores demográficos, políticos, sociais, econômicos, tecnológicos, sindicais, legais etc. No estudo do ambiente interno, são levados em conta os pontos fortes e fracos da organização, ou seja, aspectos sobre os quais é possível exercer maior controle. A ideia é potencializar os pontos fortes e buscar soluções para a correção ou para a minimização dos fracos.
Um bom diagnóstico se faz por meio de entrevistas, análise de documentos e grupos de discussão, podendo ser conduzido por um consultor externo, com apoio do corpo funcional. Somente a partir de uma avaliação profunda dos dados e informações levantados é possível prosseguir no planejamento e avançar sobre a definição de objetivos e estratégias.
As estratégias têm que usar as forças, minimizar as fraquezas, evitar as ameaças e tirar proveito das oportunidades que tenham sido identificadas. A Análise SWOT significará uma perda de tempo caso o material levantado através desse processo analítico não seja usado na formulação de estratégias. (Allen et al., 2003, p. 63)
Vale observar que a Análise SWOT é bastante utilizada no planejamento estratégico, mas, em função de sua simplicidade, pode ser também empregada em qualquer tipo de análise de cenário.
Construção de um diagnóstico da carreira
Assim como nas empresas e demais organizações, nas carreiras artísticas também é importante mapear os pontos fortes e fracos, bem como as oportunidades e ameaças presentes no setor cultural. O diagnóstico deve promover uma varredura em todos os aspectos envolvidos, tais como a qualidade artística e técnica, a estrutura, a organização, o clima interno, a distribuição, a sustentabilidade, a comunicação e o marketing.
No Quadro 4 são apresentados exemplos de questões de fácil compreensão, que podem auxiliar os artistas e grupos a construírem o diagnóstico de sua carreira.
Quadro 4 – Diagnóstico
Exemplos de questões para a formulação do diagnóstico de uma carreira artística
Qua
lidad
e artística e técnica
Como anda a bagagem técnica e a preparação dos artistas?
Os artistas procuram se reciclar permanentemente?
Os artistas mantém uma boa rotina de ensaios?
Os artistas reservam tempo na agenda para se dedicarem à criação?
Como anda a qualidade dos espetáculos e produtos?
Existem esforços no sentido da melhoria da qualidade daquilo que é produzido?
Os artistas mantêm boas parcerias de criação?
Existe uma boa equipe de criação a serviço da carreira?
Existe uma boa equipe técnica a serviço da carreira?
Existem bons equipamentos à disposição dos artistas?
As apresentações acontecem em lugares com boa infraestrutura?
As gravações acontecem em bons estúdios?
Os artistas possuem o hábito de assistir e analisar conjuntamente as gravações de seu próprio trabalho?
Os artistas possuem o hábito de assistir e analisar conjuntamente gravações de trabalhos de terceiros?
Estrutura e organização
Os artistas dispõem de bons locais de ensaios?
Os artistas dispõem de um bom escritório para as atividades de produção e gestão?
Existe um espaço adequado para armazenamento dos equipamentos e materiais?
Existem bons equipamentos e mobiliário de escritório?
Existe uma rotina de manutenção de equipamentos?
A equipe de produção é competente e bem dimensionada?
A equipe de gestão é competente e bem dimensionada?
A produção trabalha com bons checklists?
Existe uma rotina de organização de arquivos?
Existe uma rotina de preservação da memória da carreira?
As funções são bem distribuídas na equipe?
Existe clareza quanto às responsabilidades de cada integrante da equipe?
A equipe trabalha com um bom escritório de contabilidade?
A equipe dispõe de um bom consultor jurídico?
Os impostos são pagos em dia?
A legislação trabalhista é cumprida?
A legislação específica da área cultural é cumprida?
A legislação ambiental é cumprida?
Os artistas mantêm o hábito de planejar suas atividades com pelo menos um ano de antecedência?
Clim
a interno
A equipe promove reuniões regulares e produtivas?
Os artistas tomam decisões de forma colegiada?
A comunicação interna é fluente e eficaz?
A equipe cultiva a pontualidade?
O clima interno é de respeito e tolerância?
Os integrantes da equipe mantêm o hábito de se encontrar fora do ambiente de trabalho?
Existe alguma iniciativa de aproximação com os familiares dos membros da equipe?
Os colaboradores recebem orientações claras?
Há algum investimento na capacitação da equipe?
Os colaboradores recebem remunerações razoáveis?
O pagamento aos colaboradores é feito em dia?
Os colaboradores recebem algum benefício além da remuneração?
Distrib
uição
Existe um bom material para venda de espetáculos?
Como anda a frequência de apresentações?
A equipe busca ativamente o aumento da frequência de apresentações ou fica esperando o telefone tocar?
A equipe dispõe de uma boa listagem de festivais e feiras culturais?
Existe algum mapeamento de prefeituras e entidades que habitualmente compram espetáculos?
A equipe desenvolve ações em parceria com outros artistas para somar públicos?
A equipe estabelece e mantém parcerias com artistas de outras cidades, outros estados e outros países?
Susten
tabilid
ade
Existe uma linha de produtos comercializáveis?
Como andam as vendas desses produtos?
A equipe conhece bons canais de venda física e virtual de produtos culturais?
Existe na equipe um profissional capacitado para a elaboração de projetos?
Os artistas mantém o hábito de apresentar projetos às leis de incentivo e aos fundos de financiamento à cultura?
Os artistas inscrevem projetos nos editais de financiamento público e privado?
Existe um bom material para captação de recursos de empresas?
Existe na equipe um profissional capacitado para a captação de recursos?
Existe na equipe um profissional para a manutenção de contatos regulares com os patrocinadores e o poder público?
As logomarcas dos parceiros, patrocinadores e órgãos públicos são aplicadas de maneira correta?
Os parceiros e patrocinadores recebem benefícios interessantes como contrapartida?
Os retornos prometidos nos projetos são integralmente cumpridos?
A equipe tem o hábito de elaborar relatórios para os parceiros e patrocinadores?
Como andam as prestações de contas de recursos públicos captados para os projetos?
As finanças da carreira encontram-‐se equilibradas?
A equipe mantém habitualmente uma reserva financeira?
A equipe mantém uma boa relação com os fornecedores?
Comun
icação
A equipe dispõe de uma boa assessoria de comunicação?
Existe um plano de comunicação para a carreira?
Existem boas estratégias de abordagem dos veículos de comunicação?
A programação visual é feita de maneira profissional?
O material gráfico é de primeira linha?
O trabalho de fotografia é feito de maneira profissional?
O trabalho de vídeo é feito de maneira profissional?
A carreira dispõe de um bom site?
A manutenção do site acontece com regularidade?
A equipe desenvolve boas estratégias de exploração das redes sociais?
A equipe mantém o mailing list atualizado?
Existe uma rotina coleta e organização do clipping?
Existe uma rotina de revisão dos textos?
Marketin
g
Os artistas conhecem verdadeiramente o perfil de seu público?
Existe um cadastro de público preferencial bem estruturado?
A equipe mantém rotina de envio de informações para o público preferencial?
As demandas do público são atendidas com agilidade?
A equipe desenvolve estratégias de fidelização de público?
Os artistas realizam ensaios abertos para o público preferencial?
A equipe realiza promoções voltadas para o público preferencial?
Olhando para o futuro
“Para quem não sabe aonde vai, qualquer caminho serve”.
Alice no país das maravilhas (Lewis Caroll, 1865)
Qualquer forma de planejamento traz em si um olhar para o futuro, uma tentativa de torná-‐lo melhor ou, no mínimo, igual ao presente. No dia-‐a-‐dia, as pessoas fazem uso de inúmeros instrumentos com o intuito de programar a realidade, a exemplo de uma simples lista de compras, um roteiro de viagem ou um fluxo de caixa para o controle das finanças. De maneira bastante natural, o planejamento de ações pontuais ou de curto prazo está presente na vida cotidiana.
Entretanto, quando se trata de projetar o futuro em médio ou longo prazo, surgem dificuldades para grande parte das pessoas. Muitos são aqueles que se embaraçam diante das clássicas perguntas aplicadas em processos de planejamento estratégico:
• Quem é você daqui a cinco anos? • Onde estará? • O que estará fazendo? • O que você projeta para sua vida nesse horizonte de tempo?
Desconcertadas, muitas pessoas se dão conta de que nada projetam para o futuro. Quase sempre, apenas algumas poucas têm claras suas metas de longo prazo. O fato é que, no plano pessoal, pode ser uma opção de vida não programar a realidade. Muitos são aqueles que se guiam pelas palavras de Zeca Pagodinho: “deixa a vida me levar...”. Até aqui, não há o que questionar. Cada um tem o direito de fazer suas próprias escolhas.
O problema é quando esse procedimento se estende às organizações e, em nosso caso, às carreiras artísticas. A opção por não definir um direcionamento seguro pode fazer com que os artistas permaneçam à deriva, ao sabor dos humores do mercado. A carreira tanto pode seguir um caminho interessante e alcançar o sucesso, quanto permanecer estacionada no mesmo lugar, ou ainda pior, sofrer um retrocesso. É preciso, portanto, que a equipe aja com determinação no sentido de definir uma visão de médio ou longo prazo para o trabalho.
Construção da visão: um norte para a carreira
O estabelecimento da visão é outro ponto fundamental no processo de planejamento estratégico. Visão, segundo Vasconcelos Filho e Pagnoncelli (2001, p. 31), “é a explicitação do que se visualiza para a empresa”. Para os autores, ela “levanta uma bandeira” e propõe, de maneira objetiva, um salto em relação ao patamar em que a organização se encontra no momento, contribuindo para que ela saia da “zona de conforto”. Funciona também como
um norte para a equipe na busca do crescimento, permitindo o alinhamento de todos em determinada direção, com naturais ganhos de sinergia.
Um horizonte bastante usual para a visão costuma ser de cinco anos, embora, dependendo da organização, a projeção possa ser feita para períodos mais longos.
No caso das carreiras artísticas, o processo para sua formulação invariavelmente traz à tona discussões importantes sobre expectativas individuais e coletivas, como, por exemplo:
• Em qual direção queremos avançar? • Em qual medida queremos crescer? • Desejamos nos profissionalizar como artistas ou permanecer amadores? • Qual será a abrangência geográfica do nosso trabalho? • Qual posição queremos ocupar no mercado ou na sociedade? • Qual é a medida do sucesso para a nossa carreira: queremos alcançar a
sustentabilidade a partir de uma base consistente de público ou desejamos nos tornar celebridades?
Para facilitar a compreensão do conceito de visão, alguns exemplos são apresentados no Quadro 4:
Quadro 4 – Exemplos de visão
Organização Visão
Kodak Ser líder mundial em geração de imagens.
Marcelo Veronez
Cantor de Belo Horizonte, MG
Marcelo Veronez tem por objetivo estruturar uma carreira sólida e rentável, com equipe competente e coesa, dedicando tempo e recursos financeiros para a realização de um CD e sua turnê por pelo menos quatro capitais brasileiras e uma apresentação internacional.
Fernando Sodré
Instrumentista de Belo Horizonte, MG
Fernando Sodré pretende tornar-‐se referência da viola brasileira na música instrumental.
Centro Cultural Piollin
Centro cultural de João Pessoa, PB
O Centro Cultual Piollin pretende consolidar o seu projeto político pedagógico e cultural, com a estruturação dos seus espaços físicos e a diversificação das fontes de recursos, tornando-‐se referência nacional na formação de crianças e jovens e na programação permanente de artes cênicas.
Manitu
Banda de Belo Horizonte, MG
O Manitu espera consolidar, nos próximos cinco anos, novo modelo decisório, administrativo, financeiro, operacional e artístico, para que suas produções conquistem o mercado nacional.
Na definição da visão, é necessário projetar um salto, mas sem perder de vista sua exequibilidade. É preciso propor o alcance de um patamar acima daquele em que está a carreira, mas sem estabelecer uma meta inatingível, que no futuro possa resultar em frustração.
Observe, por exemplo, que Marcelo Veronez almeja para os próximos cinco anos algo bem objetivo como a gravação de um primeiro CD, de uma turnê por pelo menos quatro capitais brasileiras e de uma apresentação internacional. No caso do Centro Cultural Piollin, foi projetada, entre outras coisas, um avanço na estruturação de seus espaços físicos.
Objetivos e estratégias
Uma vez estabelecida uma visão de médio ou longo prazo para a organização e realizado um diagnóstico aprofundado da situação corrente, é preciso traçar objetivos e estratégias. Se no início do processo de planejamento procedeu-‐se a uma reflexão de natureza conceitual (com a formulação de negócio, missão e princípios), é chegada a hora de dar ao trabalho contornos mais concretos, com a definição de providências aplicáveis ao cotidiano da carreira.
Vasconcelos Filho e Pagnoncelli (2001, p. 31) entendem objetivos como “resultados que a empresa precisa alcançar em prazo determinado para concretizar sua visão”.
No caso das carreiras artísticas, trata-‐se aqui de definir alguns desafios a serem vencidos pela equipe, com o intuito de sanar as fragilidades identificadas na etapa de diagnóstico. Os objetivos são, de certa maneira, um detalhamento da visão. É importante que proponham avanços quantificáveis. Em uma carreira musical, por exemplo, alguns objetivos possíveis são:
• Gravar um novo CD no prazo de dois anos. • Realizar 20 apresentações fora do estado nos próximos dois anos. • Captar pelo menos R$ 200.000,00 nos próximos dois anos. • Montar um estúdio próprio no prazo de três anos. • No prazo de dois anos, estruturar uma equipe de apoio com pelo menos três
colaboradores diretos.
Definidos os objetivos, a equipe pode pensar em um vasto leque de ações com o intuito de torná-‐los realidade. Entretanto, a fim de que todo o trabalho de planejamento seja algo verdadeiramente factível, é fundamental fazer escolhas. É preciso selecionar apenas uma
parte dessas ações para serem efetivadas, para conferir à gestão o caráter estratégico que, conforme já visto, envolve a escolha de caminhos. Aqui reside um dos pontos cruciais para o êxito de qualquer empreendimento, inclusive as carreiras artísticas: para que haja avanços e crescimento é preciso fazer opções, traçar prioridades. Aqueles que tentam fazer tudo ao mesmo tempo, atacando simultaneamente em todas as direções, correm o risco de permanecer estagnados ou mesmo perdidos. Certamente não encontram energia suficiente para alcançar resultados satisfatórios em todas as frentes de trabalho.
Há um princípio básico da economia que diz que “os recursos são sempre escassos e as demandas, infinitas”. Talvez o maior desafio do administrador seja escolher onde aplicar os recursos – uma vez que são limitados –, de maneira a gerar o maior benefício possível para o todo. Nesse sentido, o planejamento estratégico se apresenta como ferramenta poderosa a auxiliá-‐lo na difícil tarefa de fazer suas apostas e definir quais são os “fios de meada” a serem puxados.
Vasconcelos Filho e Pagnoncelli (2001, p. 31) definem estratégia, portanto, como “o que a empresa decide fazer e não fazer, considerando o ambiente, para concretizar a visão e atingir os objetivos, respeitando os princípios, visando cumprir a missão no seu negócio”.
Ainda na perspectiva de mirar o futuro, é importante empreender esforços pela construção de um cronograma de trabalho que projete as principais ações da carreira para, pelo menos, doze meses subsequentes. Eis aqui um ponto que costuma gerar descrença entre profissionais da área da cultura: muitos deles se recusam a pensar em uma programação de médio prazo sob o argumento de que, ao final, “tudo acontecerá de maneira diferente mesmo”. Outros tantos afirmam que “não adianta projetar um cronograma anual para a carreira enquanto os recursos não tiverem sido captados”.
Neste ponto cabe a clássica reflexão: o que vem antes: o ovo ou a galinha? No caso acima descrito, não há sombra de dúvidas que o cronograma deve vir antes. É a partir da efetuação de escolhas que a carreira deve se estabelecer. Quando um artista ou grupo não projeta seu futuro, fica à mercê dos editais e da vontade de terceiros, tornando-‐se refém do mercado.
Consolidação do trabalho
O trabalho de planejamento estratégico resulta na confecção de um plano de ação, documento com linguagem necessariamente direta e acessível, que consolida todo o processo e serve de guia os passos futuros. Para que sua implantação ocorra de fato é recomendável o estabelecimento de uma rotina de reuniões destinadas à discussão de temas estratégicos e monitoramento das ações previstas, realizadas em momentos distintos dos encontros para o trato das questões operacionais e corriqueiras.
É importante salientar que a atividade não se esgota com a implementação daquilo que foi previsto no plano de ação. É fundamental que se trabalhe numa perspectiva de continuidade, com avaliações sistemáticas e correções de rumos, adotando-‐se uma dinâmica permanente de gestão estratégica.
Finalmente, vale apena conhecer as impressões de Lacombe e Heilborn (2006, p. 161) sobre essa ferramenta tão importante para as organizações: “Planejamento não se refere a decisões futuras, pois isso não existe; decisões são sempre tomadas no presente. Ele é executado no presente: seus resultados é que se projetam no futuro. Todo plano requer um prazo para sua implantação. Se não planejarmos no presente, não teremos condições de implantar o que desejamos no futuro.”
Bibliografia
AVELAR, Romulo. O avesso da cena: notas sobre produção e gestão cultural. Belo Horizonte: Ed. do Autor, 2013.
LACOMBE, Francisco José Masset; HEILBORN, Gilberto Luiz José. Administração: princípios e tendências. São Paulo: Saraiva, 2006.
NATALE, Edson; OLIVIERI, Critiane. Guia brasileiro de produção cultural 2007: educar para a cultura. São Paulo: Editora Zé do Livro, 2006.
VASCONCELOS FILHO, Paulo de; PAGNONCELLI, Dernizo. Construindo estratégias para vencer!: um método prático objetivo e testado para o sucesso da sua empresa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2001.