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  • Suplemento Cultural do Dirio Oficial do Estado de Pernambuco n 63 - Distribuio gratuita - www.suplementopernambuco.com.br

    Os caminhos certos e incertos e a potica que a gente pode encontrar numa dedicatria

    EDUCAO SENTIMENTAL JOCA REINERS TERRON MICHEL LAUB E A MEMRIA

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    ESCrEvEr DEDiCar

  • PERNAMBUCO, MAIO 20112

    CA RTA DO EDITOR

    ThI AgO guIm A R Es

    GALERIA

    Essa foto de uns quatro anos atrs, mais ou menos, quando eu comeceia brincar de ser fotgrafo com uma cmera digital amadora. Era um dianublado, a luz do quintal favorecia e meu gato me observava muitocurioso de cima do telhado, enquanto eu manuseava minha cmera que erado tamanho de um mao de cigarros. Foi um daqueles momentos. O gatono est mais vivo, mas a foto t a pra me lembrar desse dia.http://www.about.me/thiagoguimaraes

    GOvERNO dO EstAdO dE PERNAMBUCOGovernador Eduardo Campos

    Secretrio da Casa CivilFrancisco tadeu Barbosa de Alencar

    COMPANhIA EdItORA dE PERNAMBUCO CEPEPresidenteLeda AlvesDiretor de Produo e EdioRicardo MeloDiretor Administrativo e FinanceiroBrulio Menezes

    CONsELhO EdItORIALEverardo Nores (Presidente)Antnio hermenegildo PortelaLourival holanda BarrosNelly Medeiros de CarvalhoPedro Amrico de Farias

    sUPERINtENdENtE dE EdIOAdriana dria Matos

    sUPERINtENdENtE dE CRIAOLuiz Arrais

    EdIORaimundo Carrero e schneider Carpeggiani

    REdAOMariza Pontes e Marco Polo

    ARtE, FOtOGRAFIA E REvIsOGilson Oliveira, hallina Beltro, Karina Freitas, Milito Marques e sebastio Corra

    PROdUO GRFICAEliseu souza, Joselma Firmino, Jlio Gonalves, Roberto Bandeira e sstenes Fernandes

    MARKEtING E PUBLICIdAdEAlexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvo

    COMERCIAL E CIRCULAOGilberto silva

    PERNAMBUCO uma publicao da Companhia Editora de Pernambuco CEPERua Coelho Leite, 530 santo Amaro RecifeCEP: 50100-140Contatos com a Redao3183.2787 | [email protected]

    H alguns meses, a reprter pernambucana, residente em So Paulo, Daniela Arrais sugeriu uma matria para a gente sobre dedicatrias, sobre o afeto (e a falta dele, em alguns casos) que elas encerravam. Para esse texto, percorreu sebos, entrevistou escritores, leitores e descobriu maldades de famosos. Encontrou exemplares, novinhos em folha, de Fernanda Young e Daniel Galera dedicados a J.R. Duran num sebo, com os seguintes textos: Duran, obrigada pela foto inteligente. Um grande retrato, para uma sempre inadequada escritora. Beijos, Fernanda Young e Para J.R. Duran, uma histria de amor e perda. Um grande abrao, Daniel Galera. Coitados dos dois autores...

    O texto de Daniela seria uma matria de ape-nas duas pginas, mas o universo que ela nos trouxe era to curioso, to rico, que acabou se tornando matria de capa desta edio. Para rechear a histria, Raimundo Carrero escre-veu uma crnica sobre o que vive e como sofre um autor na hora de criar essa fico chamada dedicatria. Alguns chegam a ditar o que querem ver escrito em seus livros: Lembre a nossa amizade de muito tempo, pedem uns; No esquea que lhe ajudei, implora outro, lanando mo da fico que a memria; Fui

    seu primeiro leitor, se orgulham alguns, mes-mo sabendo que pura inveno; tem sempre algum ditando que Minha me lhe adorava, escreveu Carrero.

    Samarone Lima comea nesta edio sua saga para entender Padre Daniel, poeta de 95 anos que escondia uma vasta e rica coleo de poemas, que s agora vieram a pblico, graas ao esforo dos seus amigos. Seu texto, cheio de suspense, passa a impresso de ser quase uma crnica policial.

    O reprter Talles Colatino fez uma longa en-trevista com Michel Laub, responsvel por um dos livros mais elogiados deste ano, Dirio da queda. O autor nos trouxe ponderaes bastante curiosas sobre a relao que sua obra mantm com memria e fico: Voc no pode fugir daquilo que , ainda mais se for escritor, porque seus livros no tero valor se algo seu no estiver neles. Agora, esse algo seu no necessaria-mente sua histria real. Ainda nesta edio, duas fices saborosas de Ivana Arruda Leite sobre o complicado que a etiqueta sentimen-tal e Joca Reiners Terron problematiza o olhar do leitor sobre o escritor como personalidade.

    isso, boa leitura e at junho!

  • PERNAMBUCO, MAIO 20113

    BASTIDORES

    Daqui para frente, apenas obras pstumas Prestes a lanar seu livro de contos em julho, de forma independente, um dos mais celebrados autores do pas fala de como precisou morrer para continuar escrevendo

    Marcelino Freire

    um livro pstumo. Cristo! Rezo para que eu, aqui, no suplemen-

    to Pernambuco, no esteja sendo proftico. Ave! Quero estar vivo quando ele for lanado, em julho deste ano. Mais vivo do que nunca!

    Este meu novo livro de contos, intitulado Amar crime, um verdadeiro renascimento.

    Minha morte nasceu no ano passado. Foi um ano difcil o de 2010. Perdi minha me, em maio. Perdi amigos queridos, escritores de cabeceira. Alguns heris literrios. Foi embora Roberto Piva. Alberto Guzik foi embora. Wilson Bueno, Glauco, o desenhista.

    Pancada! Nem sei como organizei a quinta edio da Balada

    Literria. Ao final dela, ca aos prantos e barrancos. Em dezembro, fugi. Fui para uma pousada de uma amiga.

    Antes, deixei um recado na revista da Folha de S. Paulo. A revista me pediu um carto de Natal. A pergunta era: para quem eu enderearia uma mensagem? Mandei um al para Chico Buarque, Edney Silvestre. Para o meu editor, da Record. Para a Companhia das Letras, para a Cmara Brasileira do Livro.

    Putz! Tanta gente desaparecida em 2010 e os caras estavam discutindo outras perdas e ganhos. Quem ganhou, oh, quem perdeu o Jabuti. Meu maior ouro j havia sido sepultado, p! Meu tesouro, repito: Maria do Carmo Freire. Minha me era a voz do meu trabalho etc.

    Na pousada, descansando os miolos, e para so-breviver, fui organizando meus novos contos. E percebia neles um flego maior. Outros ganchos sonoros. Um comeo de relacionamento. Aqui e ali, um fim de romance. Amor, morte, amor, morte. Violncia tambm porque ela ainda no acabou. Ela ainda di. E doeu, eu escrevo.

    Mas voltemos aos meus contos criminosos. Al-guns deles, extremamente amorosos. H, l no livro, amores verdadeiros, histrias bonitas e vi-toriosas. Mas que, s vezes, no conseguem tran-

    KARINA FREITAS

    quilidade para acontecer. O que amor para um, crime aos olhos do outro. Sempre tem algum metendo a colher, o pontap onde no foi chamado. E sempre tem algum colocando o amor venda. Lucrando com o corao das pessoas. Por exemplo: igreja, TV, cinema. Vive-se, diria e religiosamente, do comrcio do amor. O amor mata mais do que o dio uma hora berra um personagem meu, no p do ouvido do leitor.

    Bem, mas qual ttulo dar a este volume, meu amor?

    Pensei em Rebola. Rebolou. Pensei em O meu boy morreu. Morreu. At que, ouvindo uma msica do Dorival Caymmi, cantada pela baiana Jussara Silveira, ela comea com uma vinheta, de domnio pblico, que ri e rima: Voc diz que amar crime / Se amar crime, eu no sei no / hei de amar a cor morena / com prazer, com prazer no corao.

    Que bonitinho! Tiro certeiro. este o livro que eu quero, bati o martelo. Mas queria outra atitude para ele, suicida. Morrer junto com os meus per-sonagens. Atentar-me.

    Escrevi para os amigos da Editora Record, onde publiquei meus dois ltimos livros. Profundamente agradecido, falei que gostaria de editar o Amar crime quase caseiramente. Gostaria de dar um n no status quo. Enforcar-me em outras rvores. S. Da a ideia de o livro sair publicado por um coletivo artstico chamado Edith, do qual participo desde o ano passado. Veja quanta gente boa e indita est l, botando para feder: visiteedith.com

    Energia e alegria! Tudo isto tem me dado fora e vigor. Meio que voltei ao batente. Voltei po-ca em que lanava, suavemente, meus trabalhos independentes. Livres do mercado, do vazio, dos prmios, sei l.

    Gosto de no saber no que esta atitude apaixo-nada vai dar. Viver cada coisa a seu tempo at quando a morte chegar.

    Que no seja agora, no ? Salve, salve, viva, amm e sarav!

    Marcelino Freire autor de Cantos negreiros, vencedor do Jabuti na categoria contos, e lana Amar crime em julho.

    CARTUNSSOLDAhttp://cartunistasolda.blogspot.com/

  • PERNAMBUCO, MAIO 20114

    ARTIGO

    televiso, revistas, jornais, festas literrias: em todos os lugares, l est o autor. E o personagem, onde est? Babau, no existe mais. Morreu.

    uma poca muito chata, esta em que vivemos. Por isto a infncia atualmente anda to curta. No tempo em que o personagem tinha mais importncia que o autor que era bom.

    necessrio fazer alguma coisa para esse tempo voltar.

    3.Para comear, nada de nome de autor nas capas dos livros. Nada de foto na orelha. Nada de nota biogr-fica no final do livro. Nada de autor dar entrevista no lanamento. Ningum quer saber se os livros so escritos por algum.

    O passo seguinte deixar de pagar os milhes de dlares que so pagos a todo autor. Chega disso, quem merece todo cuidado e ateno o personagem. A par-tir de agora usaremos essa dinheirama para construir prises onde os autores ficaro presos e calados sem querer opinar sobre tudo quanto assunto. A partir de agora nada de confete para eles: s po e gua.

    Noutros tempos, quando comiam s po e gua, que eles criavam grandes personagens. Dostoivski, por exemplo: com essa dieta magra, criou Rasklnikov. E o teria criado de barriga cheia? Claro que no! O autor deve estar famlico como aquele jovem escritor criado por Knut Hamsun (que, alis, no inventaria perso-nagem to memorvel se no estivesse em idnticas condies) em seu romance Fome.

    Nesse livro, um rapaz vagueia pela cidade norue-guesa de Chistiania em busca do que comer. Na pe-rambulao, tem ideias as mais mirabolantes que mal e mal podem ser ouvidas pelo leitor, pois ficam ocultas sob o ronco de sua pana vazia. No final da histria o jovem escritor embarca num cargueiro e desaparece.

    Do mesmo modo, necessrio sumir com o autor.

    A infncia do leitor um dia ter de voltar Os duelos necessrios para que voltemos a acreditar que os livros so feitos sozinhos Joca Reiners Terron

    4

    1.Quando se criana pouco importa o autor do livro que se l. Na maioria dos casos, uma criana ao ler nem mesmo sabe que o livro em suas mos resultado do trabalho de algum. Para ela, o livro se escreveu sozinho e, quem sabe, seu texto surgiu na pgina so-mente naquele exato instante em que suas capas foram abertas e dois olhos bem arregalados caram nele.

    E o que aconteceria se a cada vez que abrssemos esse livro uma nova histria surgisse estampada nas folhas em branco? exatamente isso que uma criana pensa ao abrir um deles: sempre o mesmo livro, s mudam as histrias.

    E quem os teria escrito? Isto pouco importa. A nica coisa que vale ao leitor so os personagens e seus dra-mas. Afinal, quem tem sangue nas veias (e s vezes fora delas, principalmente se houver tiros e exploses no enredo) Taras Bulba, Huck Finn, Ahab, Dom Quixote e at a boneca Emlia (que de pano e em tese no deveria ter sangue mas tem).

    O autor? Esse deve permanecer mais invisvel que o Ho-

    mem Invisvel.

    2. Mas o autor existe, e seu sangue caudaloso o suficien-te para as diversas transfuses realizadas nos perso-nagens criados por ele ao longo da existncia. Arthur Conan Doyle, por exemplo, cansou-se a tal ponto da escravido qual Sherlock Holmes o submetia que acabou (para grande insatisfao do pblico, diga-se de passagem, que pouco se lixava para os dilemas do autor) assassinando seu personagem mais popular. Depois, cansado de tanta vaia, Conan Doyle ressuscitou Holmes e ficou o resto da vida quietinho em seu canto, escrevendo aquilo que seus leitores gostavam de ler.

    Mas isso faz muito tempo. Hoje em dia o autor apa-rece mais que o personagem. Palestras, programas de

  • PERNAMBUCO, MAIO 20115

    4. Esto terminantemente proibidas as fices de carter autobiogrfico. Nada de autores explorarem seu coti-diano mesquinho. Nada do ramerrame de casamentos, traies e separaes. Nada disso!

    Livros de memrias, nem pensar. Que o Carlos Heitor Cony pare j de remexer no passado. E quem l quer saber da realidade? Ningum, ningum. Parece que Salman Rushdie vem a com suas lembranas da fatwa. Algum, por favor, o impea. No queremos saber o que lhe aconteceu quando se escondia de fundamentalistas assassinos num canto qualquer do planeta. Isso no problema nosso. A vida dos auto-res no tem a menor graa ou importncia. Nada de verdadeiramente perigoso lhes acontece.

    Quando o jovem escritor de Knut Hamsun deixa de remoer suas infelicidades e paranoias e embarca num cargueiro que a aventura de verdade tem incio. Mas a o livro acaba.

    exatamente assim: o personagem comea onde o autor acaba.

    Pois que venha logo o fim do autor.

    5. E como impedir, digamos, que Lus Fernando Vers-simo e Chico Buarque venham a pblico mostrar suas caras horrveis que ningum mais quer ver?

    Primeiro, necessrio criar a Milcia Antiautor. Essa milcia dever ser devidamente treinada e armada com bazucas lanadoras de tomates. Estar a postos na primeira fila a cada apario do inimigo e dispa-rar fatalmente suas frutas podres. Cada ataque ser acompanhado do grito de guerra berrado em unssono

    MORRA O AUTOR! VIVA O PERSONAGEM!S assim cada leitor poder retornar infncia.

    Cobertos de tomates, Verssimo, Chico e quem mais ousar aparecer em qualquer festa literria ou

    bienal do livro (males que precisam ser urgente-mente extintos), sero enviados incontinenti para a Sibria dos autores.

    L, com a bunda e as mos congeladas, eles pode-ro escrever os livros que gostaramos de ler.

    6. Paulo Coelho ser o grande bode expiatrio. Para que sirva de exemplo aos jovens autores que se es-pelham nele e que desde cedo almejam escrever livros apenas para ficar famosos, Coelho dever ser crucificado no alto do Glgota.

    Entretanto, fica o aviso: tudo deve ser realizado com mximo cuidado para que ele no se torne um mrtir da causa e acabe fazendo ainda mais sucesso e venda outros tantos bilhes de livros. No queremos um Jesus Coelho.

    A partir da, com os autores trabalhando ardua-mente nas prises nos quintos dos infernos, gran-des personagens ressurgiro. E a infncia do leitor certamente h de voltar.

    Com isto, a Literatura vai renascer e voltaremos todos a ser crianas.

    Mas no sejamos to drsticos.No queremos ser acusados de radicais.Mas no mesmo.

    7. Os autores podero continuar ocupando seus papis de protagonistas na fico contempornea se aceitarem a seguinte condio: em vez de prosseguirem com suas palestras sem sal em festas literrias por a, tero de realizar aes dignas de grandes personagens.

    Conduzir diligncias em chamas perseguidas por apaches igualmente flamejantes, por exemplo. Ou ento dar a volta ao mundo em 80 dias num balo. Tomar poes mgicas que os transformem em monstros. Assassinar velhinhas. Seguir o rastro

    5

    de uma poeta desaparecida no deserto de Sonora. Comandar safris na frica em busca das minas do rei Salomo.

    Coisas assim. Neste mundo de livros sem autores, apenas Ernest

    Hemingway poderia permanecer como sempre foi: um personagem bom pra diacho.

    A extino do autor autobiogrfico comea quando eles se tornam grandes personagens e o caubi Chico Kid Buarque chega ao vilarejo sulista de Gayport em busca do malvado pistoleiro Louie Verssimo, cujo nome superlativo indica sua extrema velocidade ao sacar o revlver.

    8. Chico Kid daqueles caubis sedutores, com olhos azuis e o queixo furado. Tambm menestrel, e dei-xa um rastro de lindas mocinhas de nariz quebrado pelos caminhos que trilha. Elas suspiram tanto que seus narizes acabam se quebrando. No lombo de seu alazo, ele canta: Agora eu era o heri e o meu cavalo s falava ingls. O sotaque chiado de Chico Kid de gal chique de novela chata das seis.

    Louie Verssimo um bandido. Como todo bandi-do, ele gosta de jazz. Louie at tentou ter uma banda, mas no deu certo. Toda vez que os msicos erravam uma nota, acabavam levando um tiro. O nico ins-trumento que Louie toca hoje o seu Colt 45. Como passatempo, ele publica tirinhas no jornal da cidade.

    Chico Kid chegou ao vilarejo. No final da rua, aguar-da-o Louie Verssimo e o sol, como a temer o que est por vir, comea a dar tchau detrs das montanhas. a hora do duelo final.

    Neste instante comea a grande aventura.THE END

    Joca Reiners Terron autor de Do fundo do poo se v a lua, entre outros.

    HALLINA BELTRO

  • PERNAMBUCO, MAIO 20116

    o escritor quem escolhe as suas prprias memrias

    entrevistaMichel Laub

    Entrevista a talles Colatino

    RENATO PARADA/ DivuLgAO

    Dirio da queda trabalha com duas vias do principal ingrediente da fico do seu autor, Michel Laub: a memria. O quinto e novo ro-mance do escritor gacho nos coloca frente de um narrador de origem judaica que, atravs das memrias de sua famlia, tenta interli-gar os pontos para compreender (ou seria formar?) sua prpria identidade, esfacelada entre traumas e lembranas angustiantes. Alguns pontos da histria do narrador se as-semelham vida do tambm descendente

    Autor de um dos livros mais elogiados deste ano, Dirio da queda, o escritor gacho comenta como sua autobiografia se infiltra, ainda que s avessas, por tudo o que escreve

    de judeu Laub, que, assim como em seus romances anteriores, oferece ao leitor um jogo instigante entre Literatura e uma suposta autobiografia. Porm, mais que oferecer um incmodo causado por essa dbia simulao da realidade, Dirio da queda nos entrega uma fico com a densidade exata para tratar de uma situao-limite: quando a necessidade de evocar memrias para reviver o passado se torna o prprio futuro. Sobre esse livro, seu universo temtico, a relao entre Literatura e biografia e processo criativo, Michel Laub conversou com o Pernambuco.

    Imagino que para um descendente de judeu, o universo da religio e da histria parece estar sempre presente. E voc sempre trabalhou com uma suposta memria em seus romances. Por que s agora resolveu tratar desse tema? O que te levou a ele nesse momento da sua trajetria literria?No sou religioso e nem especialmente preocupado pelas questes culturais do judasmo. Mas claro que isso faz parte da minha histria, porque meus pais so judeus e estudei em escola judaica. Ento, como sempre mexo com o tema da memria, isso em algum momento teria de aparecer.

    Muitos detalhes da vida do protagonista do Dirio da queda so idnticos aos seus. E normal que muitos escritores tragam fragmentos da sua realidade para dentro da sua obra. Mas te incomoda o fato deste, como outros livros seus, ser confundido como uma espcie de relato autobiogrfico? Aproveitando o tema, fale um pouco sobre a sua relao entre Literatura e biografia.ncomodava mais no incio, e por isso eu disfarava mais. No Msica anterior, meu primeiro romance, fiz at um esforo para que o cenrio no fosse Porto Alegre e as referncias no fossem as minhas. Com o tempo fui percebendo que era bobagem. Voc no pode fugir daquilo que , ainda mais se for escritor, porque seus livros no tero valor se algo seu no estiver neles. Agora, esse algo seu no necessariamente sua histria real. Pode ser apenas sua inteligncia, sua sensibilidade, seu carisma, cada escritor de um jeito. No meu caso, como trabalho com a memria, usar algumas referncias reais ajuda a convencer o leitor de que aquilo aconteceu, o que bom para o livro. Mas isso um jogo tambm, e disfaro muita coisa por meio dessa aparncia de realidade. Sou eu que escolho o que quero que parea autobiogrfico. No geral, so as coisas menos importantes do livro.

    No artigo Narrar o trauma a questo dos testemunhos de catstrofes histricas, o professor e crtico literrio Mrcio Seligmann-Silva afirma: Narrar o trauma

  • PERNAMBUCO, MAIO 20117

    Os grandes sentidos vm depois (do livro pronto), e a uma anlise minha do que escrevi passa a ser equivalente de um crtico

    No meu caso, como trabalho com a memria, usar algumas referncias reais ajuda a convencer o leitor

    tem em primeiro lugar este sentido primrio de desejo de renascer. Acredita ser esse o caso do protagonista de Dirio da queda, na medida em que ele tenta, no necessariamente escrever, mas recompor, atravs das lembranas de seus traumas pessoais, sua trajetria?Difcil responder. Depois que o livro est pronto, muita coisa pode ser dita sobre ele. Essa frase cairia bem, sim, numa anlise do meu livro. Mas durante a escrita o processo outro, voc se preocupa mesmo em levar a histria adiante pargrafo a pargrafo, frase a frase. Os grandes sentidos vm depois, e a uma anlise minha passa a ser equivalente de um crtico estamos olhando para algo pronto e tentando extrair sentidos dali. Se o escritor faz a operao inversa, isto , decide o sentido antes e vai escrever depois, o risco de o livro ficar artificial enorme. Nesse sentido, para voc, escrever um ato de cura? Um desejo de renascimento?No. Escrever um trabalho como qualquer outro, com suas angstias e recompensas prprias. No mximo, v l, uma tentativa de expresso. Tenho um pouco de implicncia com essas definies solenes.

    A questo do trauma est muito presente em Dirio da queda. So esses traumas (a queda de Joo, Auschwitz para o av, a doena do pai) que vo desenhando a evoluo da identidade do protagonista. Voc acredita que so os resultados de situaes-limites como essas que acabam construindo as bases

    da identidade de um indivduo?Em parte, sim, mas no s isso. Um indivduo a soma de todas as experincias, das mais raras s mais banais. Isso bvio. Na Literatura, sim, que fica mais interessante se concentrar nas raras.

    Em determinado momento, o protagonista de Dirio da queda se queixa da av, ao afirmar que ela apenas dizia o bvio e nunca o essencial acerca do av. Em contrapartida, nada sobre a experincia em Auschwitz est presente nos cadernos deixados por ele. Acredita que o protagonista chegou, enfim, essncia daquele personagem, mesmo estando margem do real impacto de uma experincia como essa?No. O que ele faz um retrato superficial do av, e justamente essa superficialidade que me interessa. Por meio dela que so discutidas as questes mais importantes da histria. Porque o av um mistrio, e no rastro do mistrio que surge a angstia e a revolta do pai, que por sua vez so herdadas pelo narrador, e a comea o romance.

    O livro escrito todo em fragmentos, o que alimenta a ideia de que estamos lendo de fato um dirio. De que forma essa opo de escrever em fragmentos contribuiu para a narrativa?Para escrever foi mais fcil, porque pude abrir pargrafos novos quando achava que algum trecho precisava ser mais esmiuado, coisas assim. Os tpicos com nmeros tm a ver com a estrutura dos

    captulos, cujos ttulos remetem a listas (Algumas coisas que sei sobre o meu av etc.). Como sempre, depois de pronto o livro, ou ao menos bem adiantada a escrita, que percebi que essa forma poderia ter a ver com a forma de um dirio. Mais uma vez, porm, foi mais por acaso do que por inteno.

    O contexto atual da Literatura brasileira marcado por muitos contistas. Dirio da queda seu quinto livro publicado e seu quinto romance. O que te atrai tanto no romance? Pensa em publicar outro gnero?Comecei escrevendo contos, fiz isso por muito tempo e depois, no sei bem dizer por qu, parei. No quer dizer que no v praticar esse gnero no futuro (ou outros que me interessam, como o Teatro e o roteiro de cinema). O romance ou novela interessante porque voc no precisa tensionar a narrativa tanto quando num conto. D para botar uns trechos mais digressivos ali, umas descries, umas cenas secundrias, o que, ao menos para mim, ajuda muito no ritmo da histria. E voc no fica to dependente, como no conto, de escrever um final exato, coisas assim.

    Seus romances tambm tm em comum o fato de serem curtos. Eles nascem naturalmente dessa forma ou voc trabalha na inteno de sintetizar ao mximo a histria que est contando? Existe um mtodo, um cuidado especfico, na criao de um romance curto?O Dirio da queda no to curto. Na poca da diagramao, o pessoal da Companhia das Letras e eu achamos que valia a pena

    comprimir um pouco o conjunto, tirando pginas em branco no incio dos captulos e coisas assim. A tipologia tambm no muito grande. Ento, se fosse em outra editora, com outros padres grficos, seria um livro de duzentas e poucas pginas, o que um tamanho ok de romance.Quanto aos outros livros, sim, eles so curtos. Isso talvez venha do fato de que prefiro me concentrar num drama s, sem construir personagens secundrios e recursos do gnero, o que eu como qualquer escritor com o mnimo de experincia poderia fazer com facilidade. Nesse sentido, por falarem um drama s sem muita encheo de linguia, acho esses livros at longos. Os narradores ficam esmiuando uma nica situao por 100 pginas, o que requer um tipo de flego, acho, equivalente os de escrever um livro de 400 pginas cheio de histrias paralelas.

    No texto A vida prpria dos livros, publicado recentemente no seu blog, voc diz que um escritor pode ser surpreendido pelo seu prprio trabalho, j que parte do processo de escrever um livro pode ser como uma sucesso de testes. Analisando brevemente seus cinco romances, nesse sentido, qual te surpreendeu mais? Por qu?O segundo tempo eu achei que seria um livro de muito pouco in-teresse, por causa do ambiente especfico do futebol gacho dos anos 1980, e acabou sendo meu livro mais aceito at aqui. Essa opinio geral, que me fez pensar no livro novamente e reler trechos aqui e ali, mudou minha percepo sobre ele. Acontece:

    s vezes mudamos de opinio de acordo com os elogios ou as crticas que recebemos. No h como um escritor ser infenso a isso, e muito menos isento sobre seu prprio trabalho.

    O que te chama ateno na produo contempornea e de que forma voc se enxerga inserido nela?A diversidade. Muita gente es-crevendo sobre muitos temas, de muitas formas, com resultados muito diferentes. Me enxergo como algum que gosta de contar histrias, algo de que nem todos os escritores gostam.

    Voc tem rituais de criao? H uma rotina que gosta de respeitar na hora de escrever?Em cada livro muda, porque as circunstncias mudam. J escrevi dentro de redaes, com barulho e tudo, por exemplo, e hoje no tenho mais esse ambiente porque trabalho em casa, no silncio.

    Em algum momento, durante ou depois do processo criativo, a Literatura exige de voc um tempo de afastamento? Existe um perodo de cansar da Literatura?Para escrever, sim. Nunca comecei um livro novo, ou ao menos me dediquei seriamente a isso, antes de lanar e esperar a repercusso do livro anterior. como se voc precisasse se desintoxicar de tudo o que diga respeito a ele a histria, a linguagem, o tom, o ritmo. No meu caso, por escrever livros at um tanto parecidos entre si, esse distanciamento ainda mais importante.

    talles Colatino jornalista.

  • PERNAMBUCO, MAIO 20118

    MERCADOEDITORIAL

    Marco Polo

    Criada em 2007, a Coleo Encontros, da Azougue Editorial, j se consolidou. Traz entrevistas de grandes nomes da cultura brasileira, inditas ou compiladas, mais uma cronologia do autor enfocado e uma introduo ao seu pensamento. A coletnea comeou centrada em cientistas sociais como Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Gilberto Freyre (foto), mas abriu o leque

    para abrigar cineastas como Rogrio Sganzerla e Eduardo Coutinho, msicos (Jorge Mautner), poetas (Vincius de Moraes), artistas plsticos (Cildo Meireles), fsicos (Mario Schenberg) e gegrafos (Milton Santos). Na pauta dos prximos lanamentos est o agitador cultural pernambucano Jomard Muniz de Britto. A coleo foi idealizada e coordenada pelo editor da Azougue, Sergio Cohn.

    ENTREVISTAS

    Coleo resgata o pensamento de intelectuais brasileiros atravs de conversas compiladas ou inditas

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    honroso caso de um gibi brasileiro bem-sucedido no foge dessa febre: o Turma da Mnica jovem, que traz os personagens clssicos para a esttica oriental.

    As livrarias se tornaram o foco de ateno, se no da maioria do pblico, de uma parte respeitvel deste e da vasta maioria da crtica. As graphic novels j so uma realidade editorial, mas os lanamentos vo bem alm disso: as coletneas de tiras de Ra-fael Sica (Ordinrio, Quadrinhos na Cia) e Arnaldo Branco (Mundinho animal, Leya/Barba Negra) e a verso nacional da tradicional revista (em formato de livro) argentina Fierro (Zarabatana) so exemplos disso. As obras at servem como amostras do ca-tlogo das principais editoras de livrarias, que, somadas Conrad e Devir, formam o panteo nacional da rea.

    Desde a sua massificao, as histrias em quadrinhos se sustentaram principalmente pela dupla presena em bancas de revistas e em cadernos culturais dos grandes jornais. As tirinhas, bastante populares, continuam mantendo sua importncia, mas agora blogs e sites disputam espao com os impressos; as bancas, local onde so vendidas a maioria das HQs, em nmeros absolutos, vm perdendo importncia, pelo menos para quem acompanha notcias editoriais. As sagas de heris da Marvel e da DC Comics, lanadas aqui pela Panini, so cada vez mais criticadas pela falta de criatividade e mesmice no toa que os principais sucessos comerciais recentes so todos mangs. O

    hq

    Quadrinhos: manual de sobrevivnciaDiogo Guedes

    Em meio a esse mercado que importa tanto sucessos comerciais como quadrinhos autorais consagrados e comea agora a dar mais ateno a autores brasileiros, algumas iniciativas ousadas passam despercebidas. o caso da editora paraibana Marca de Fantasia (www.marcadefantasia.com), criada em 1995 por Henrique Ma-galhes. Autor de quadrinhos e professor da Univer-sidade Federal da Paraba (UFPB), ele cuida sozinho dos mais de 90 livros do seu catlogo e de 12 revistas e fanzines.

    A criao da Marca de Fantasia foi um processo de amadurecimento de meu trabalho editorial por muitos anos. Desde cedo comecei a publicar revistas em quadrinhos com minha personagem Maria, de tiras polticas e humorsticas. De 1976 a 1984 saram 10 nmeros da revista e dois lbuns, conta o editor. Du-

    reprODUO

  • Proliferam na internet sites dedicados ao livro. Um deles o portal Clube do Livro, que promove a leitura e discusso de obras, agregando, numa comunidade crtica, leitores dos mais diversos estados do pas. Outro Amigos do Livro, que contm uma bateria de informaes: frases e pensamentos, debates sobre o livro eletrnico, notcias variadas e esclarecimentos sobre questes tcnicas referentes a edio e direitos autorais.

    Para evitar recapturas, expulso ou tomada de suas terras, os negros que formavam o que depois ficou conhecido como quilombos, procuravam se instalar em locais inspitos e de difcil acesso. A consequncia que at hoje essas comunidades sofrem com a falta de infraestrutura, alm de geralmente sobreviver da chamada economia de subsistncia, ancorada na caa,

    LIVRO

    Sites dedicados ao livro promovem a discusso

    PESqUISA

    Universidade Federal Fluminense publica pesquisa que revela perfil socioeconmico das comunidades quilombolas

    na pesca e na plantao de hortas. Pela primeira vez no Brasil, os pesquisadores Andr Brando, Salete da Dalt e Victor Hugo Gouveia fizeram um levantamento das condies socioeconmicas destes locais, publicado no livro Comunidades quilombolas no Brasil, da Editora da UFF. Ao mesmo tempo que resgata uma populao invisvel, fornece subsdios para aes polticas.

    rante os anos 1980, Henrique mergulhou no mundo dos fanzines, chegando a criar o Marca de fantasia, que virou o nome do novo empreendimento. A ideia principal da editora era, e ainda , divulgar os novos autores que tenham um trabalho personalizado, o resgate da obra dos mestres e os estudos sobre as mltiplas expresses dos Quadrinhos e da Cultura Pop, aponta.

    INDEPENDENTEPara Henrique, poucas editoras brasileiras de quadri-nhos de fato merecem a alcunha. O que h publica-doras de livros, que se apoiam nos grandes sucessos do mercado internacional. A dicotomia entre quadrinhos de bancas e de livrarias e entre grandes e pequenas editoras um dos problemas do mercado brasileiro para ele. Os primeiros tm pouca inovao, buscam o lucro rpido e certo. Os segundos so mais criativos e renovadores, e so os que investem nos autores bra-sileiros. Sua produo se d em forma de lbuns, mas, infelizmente, o alto custo e preo elevado restringem o acesso do pblico, opina.

    O modelo de gesto da Marca de Fantasia e de outros empreendimentos alternativos busca trabalhar nas lacunas das duas formas de distribuio. Por fora, temos as editoras independentes, sem fins lucrativos, que produzem pequenas tiragens, mas que se per-mitem todo tipo de experimentao, situa. A casa, segundo ele, alcana repercusso pela instabilidade do mercado e pela falta de viso dos editores.

    Assim, muito alm de coletneas de tiras e graphic novels mas sem deixar de inclu-las -, o catlogo da editora voltado para dois nichos normalmente menosprezados pelas grandes da rea, fundamentais para o que Henrique chama de carter independente por convico da editora. O primeiro remonta s suas origens. Apesar de os fanzines terem um arre-fecimento de sua produo, em parte pela ascenso da internet, eles continuam sendo editados, com uma visvel melhoria grfica e editorial, defende, destacando a importncia das publicaes para o a circulao de ideias. Como exemplos, ele cita o 1 Anurio de fanzines, zines e publicaes alternativas, da Ugra Press, e o Top! Top!, da prpria Marca de Fantasia, j no nmero 26.

    No entanto, o carro-chefe do projeto a segun-da rea, a de livros acadmicos. A editora, ligada ao

    Programa de Ps-Graduao em Comunicao da UFPB, tem dois selos para ensaios e artigos. Temos a sries Quiosque, dirigida aos estudos sobre quadrinhos e animao, e a srie Veredas, voltada aos estudos de Comunicao, Lingustica e Cultura Pop, define o quadrinista. So os que mais saem.

    O maior xito de nossa editora so os livros tericos, que tm servido de fundamentao para inmeras pesquisas acadmicas. O mercado des-considera esse filo e ns investimos nele para atender crescente demanda do pblico, come-mora Henrique. Para ele, trabalhos de concluso de curso e outras produes acadmicas so uma fonte extensa de bons estudos, prontos para serem publicados.

    CATLOGO Aberto ao recebimento de originais de autores, Henri-que diz buscar a publicao de obras com contedo crtico e reflexivo, sem se interessar pelas que so mero entretenimento. Quadrinhos humorsticos (tiras) e experimentais so muito bem-vindos, por enquadrarem-se no conceito de quadrinhos autorais. Para os livros tericos, priorizamos os textos curtos, como ensaios, avisa. Os envios, no entanto, demoram a ser lidos ele o nico responsvel e a quantidade de obras ultrapassa o tempo disponvel para analis-las.

    Alm de autores acadmicos e iniciantes, a Marca de Fantasia conta com alguns nomes de bastante des-taque no cenrio nacional e mundial dos quadrinhos. O francs Patrice Killoffer, autor da elogiada obra ex-perimental 676 aparies de Killoffer, lanada pela parceria entre Leya e Barba Negra no comeo do ano, o nome mais clebre do catlogo. Seu livro Quando tem que ser uma coletnea de histrias curtas do autor, publicada originalmente em 2006. Enquanto o livro da Leya foi bastante celebrado, at pela vinda do quadrinista para a Rio Comicon em 2010, o ttulo da editora paraibana, sem o poderio de circulao do grupo portugus, foi pouco comentado.

    Killoffer, assim todos os demais autores, veio para a Marca de Fantasia justamente por seu carter inde-pendente. Trabalhamos em parceria com os autores, que cedem seu trabalho e recebem 10% como direitos autorais em exemplares da publicao, na medida em que so produzidos, explica Henrique. Alm do francs, o editor cita Claire Bretcher, Sergio Mas, Cristian Mallea, Gonalo Jnior, Shimamoto, Edgar Franco, Edgard Guimares, Elmano Silva, Antnio Cedraz e Luiz Saidenberg como outros colaboradores de destaque: Eles esto conosco por pura genero-sidade e companheirismo, mas por que tambm consideram importante a consolidao de um em-preendimento editorial independente.

    Em abril, a editora lanou dois novo volumes: o quinto nmero da revista Artlectos e Ps-Humanos, de Edgar Franco, com quadrinhos poticos; e a coletnea GAG: o humor o motor, cujos autores foram selecionados por concurso. Em maio, ser lanado um lbum com o resgate da obra de Messias de Melo, um dos mestres dos quadrinhos brasileiros, e teremos nova edio do lbum Guerra das ideias, de Flvio Calazans, antecipa. Os planos futuros ainda incluem facilitar a distribuio de suas edies. H um ano estamos implementando os livros eletrnicos, que daro mais agilidade venda e envio dos livros, finaliza.

    A experincia da editora paraibana Marca de Fantasia exprime algumas das dicotomias do mercado de quadrinhos

  • PERNAMBUCO, MAIO 20111010

    A fico do este livro para voc

    Daniela Arrais

    Uma dedicatria evoca tanta coisa que cria um novo livro dentro do livro

    Nunca escrevi um livro, mas imagino a tristeza que seria autograf-lo numa noite e, tempos depois, descobri-lo intacto em um sebo, com meu carinho e minha assinatura e a quase certeza de que ele foi, apenas, folheado. Fernanda Young e Daniel Galera talvez sentissem essa tristeza, estivessem eles numa sexta-feira tarde no Sebo Pinheiros, em So Paulo. Numa das primeiras pginas de Aritmtica, da pol-mica autora que posou nua outro dia, o fotgrafo J.R. Duran foi exaltado: Duran, obrigada pela foto inteligente. Um grande retrato, para uma sempre inadequada escritora. Beijos, Fernanda Young. Era 16 de abril de 2004, e, quase seis anos depois, sem riscos nem dobras, a obra repousava sobre um caixote de feira. Embaixo dele, constava um exemplar de At o dia em que o co morreu, do gacho Daniel Galera. Para J.R. Duran, uma histria de amor e perda. Um grande abrao, Daniel Galera. Texto mais simples, que no demonstra uma relao maior entre o autor e o leitor. Mas, com ou sem apego, ambos os ttulos foram parar nos fundos sem poeira de um sebo.

    Quando vejo dedicatrias, fico pensando: nossa, a pessoa comprou o livro, pegou um autgrafo e ago-

    ra o vendeu por dois reais, ri a simptica e solcita vendedora que tem um patro com postura oposta dela. Para evitar esse tipo de situao, jornalistas que cobrem literatura contam que o jornalista Elio Gaspari nunca autografa seus livros, mas sim um carto, que colocado dentro do exemplar. Consta que ele no quer correr o risco de constranger esse tipo de leitor (ou consumidor, apenas) que vai vender a publicao no sebo com o autgrafo.

    Uma dedicatria evoca tanta coisa. O autor escolhe dedicar um livro a algum famlia, ao grande amor, a outro autor que foi responsvel pela sua prpria descoberta. Em noites de autgrafos, este mesmo autor encara filas imensas (e d graas a Deus, afinal ningum quer um lanamento vazio), se desdobrando para criar frases que expressem alguma coisa de verda-de. Outros se limitam a escrever um beijo, um abrao, formam a turma dos genricos. Quem ganha livro de presente, s vezes encontra palavras de motivao, de agradecimento, de amor. Quem os ama de amor tctil, como disse Caetano em Livros, provavelmente enche as paredes de casa com um nmero cada vez maior de exemplares, muitos deles com palavras de carinho.

    CAPA

  • PERNAMBUCO, MAIO 201111

    Quem, por falta de espao fsico ou emocional, decide se livrar desses objetos fornece um material primo-roso para quem os encontra em sebos, bibliotecas, terminais de nibus.

    No mesmo Sebo Pinheiros, um exemplar dA mon-tanha mgica, de Thomas Mann, guarda a inscrio: A Renata, um feitio de simpatia. Somos pouco visionrios, talvez sabemos! O amor correr e o beijo se disseminar clere de boca em boca. Renata, to querida, to elogiada, precisava de uns trocados? Ou quis se livrar de uma histria que no teve um final feliz? Em um exemplar de A maior verdade do mundo, de OG Mandino, Jos Luiz escreve para Liberty: A felicidade no um fim, mas um meio. Ningum feliz, para ser feliz, mas para fazer algum feliz. Por tudo que voc fez por mim neste ano. Por tudo que fizemos pela CEF. Muito obrigado.

    Foi por encontrar uma dedicatria que Shaun Raviv comeou um grande projeto, o Book Inscriptions (www.bookinscriptions.com), que rene na internet achados de vrios lugares do mundo. Ele estava em um bar em Ma-nhattan, Nova York, em 2002, quando encontrou um exemplar de The road to human destiny, de Mary Lecomte du Noy, onde estava escrito Joey, eu te amo tanto! Voc ultrapassou a definio para tudo. Eu sempre vou apreciar nossos momentos orgsmicos (sic). Amor e resistncia, Mark.

    A dedicatria de Mark para Joey era to forte que peguei o livro, que falava sobre um cientista na lista negra, e o li. Da, alguns meses depois, eu estava numa loja de livros usados e encontrei outra dedicatria e pensei que seria um hobby divertido colecinon-las, disse Raviv, em entrevista ao Suplemento. Essas dedicatrias, que no devem ser confundidas com autgrafos de autores, so mensagem pessoais, escritas com caneta e foram dadas de presente. Algumas so to pessoais que quase impossvel que elas tenham se separado de seus donos.

    O tipo de dedicatria mais comum que Shaun cos-tuma encontrar Feliz Natal, mas ele no fica com elas. Fico apenas com aquelas que so diferentes. As mais valiosas para mim so aquelas tristes, que

    s podem ter sido escritas por pessoas que estavam muito agoniadas na poca. Como a que foi escrita por uma Annie no livro And spring shall come, de Walley Dean. Candle Light, um pensamento especial para um algum especial, que me faz brilhar e sorrir e sempre traz o melhor de mim. Uma espcie de inspirao. P.S.: Estou esperando que tudo d certo. Eu sou do tipo preocupada! Cuide-se, ok?

    Uma outra ainda mais enigmtica e foi encontrada em um catlogo do College de Vermont, datado de 1970-1971. Querida mame, esta pode ser a ltima vez que vocs todos me veem e isso porque Debbie louca e, se eu ficar por perto mais algum tempo, estarei na mesma condio que ela.

    Um dos motivos porque eu acho a maioria das dedicatrias tristes porque elas foram presentes em algum ponto, e as palavras escritas ali soam to pessoais... E mesmo assim os livros foram parar numa loja de livros usados, numa esquina, numa venda promocional de bibliotecas, analisa Shaun, que gosta de escrever dedicatrias especiais, na esperana de que as pessoas que presenteia fiquem com os livros.

    ENCONTROSAlgumas dedicatrias conseguem fazer com que a leitura de um livro comece antes mesmo da pri-meira pgina. Foi assim com a jornalista Larissa Brainer, que encontrou pequenas histrias de amor em livros aleatrios.

    A primeira estava escrita num exemplar de Cem anos de solido, de Gabriel Garca Mrquez, que ela en-controu na casa dos pais, em uma pilha de livros que seriam jogados fora. Lala, este um dia comum como qualquer outro, mas com uma grande diferena, pois estamos juntos, aqui e agora. Vitria, 12/06/82, Rivo.

    O de Gabo herdei de meu pai. Anos antes de eu nascer ele pegou emprestado com uma amiga e nunca devolveu. Encontrei na estante, empoeirado. A de-dicatria de Dia dos Namorados fofa me fez ter mais vontade ainda de ler o livro. Fora a coincidncia do apelido da dona, que tambm o meu. Fico imagi-nando como pode ter sido especial aquele 12 de junho

    de 1982 para minha xar. De vez em quando releio a dedicatria, para no deixar de lembrar que estar apaixonado faz parte do dia a dia tambm.

    A outra, escrita em Zen e a arte da manuteno de mo-tocicletas, de Robert M. Pirsig, dizia: Na verdade, eu comprei este livro para lermos juntos. Achei que voc ia gostar do fato de podermos ler alguma coisa que tem a ver com os dois e discutir, etc. Mas agora o deixo com voc; para voc, foi muito por voc Amor, J.

    Alexandre, meu marido, comprou o livro pelo site Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br), sem saber da existncia da dedicatria. Quando o livro chegou, que ele leu, sentiu o baque. As palavras fazem a gen-te sentir a dor da despedida de quem escreveu essa dedicatria. E, ao mesmo tempo, me pergunto o que (todas as lembranas, emoes etc) levaria algum a se desfazer de um livro com uma dedicatria assim.

    PRECIOSIDADES At que com frequncia, Leandro Antoniasse, do Sebo Avalovara, encontra exemplares autografados pelos prprios autores. Dia desses achou um exemplar de Viso do paraso autografado pelo autor Srgio Buarque de Hollanda. Era uma dedicatria simples, que dizia um abrao cordial do amigo Srgio, lembra.

    O mineiro Carlos Drummond de Andrade um dos campees das dedicatrias. J ouvi histrias de que ele chegava a cobrar por algumas, conta Anto-niasse. Nas conversas com autores e frequentadores do sebo, o vendedor acabou descobrindo, tambm, que o dramaturgo Plnio Marcos fazia dedicatrias de acordo com seu pblico-alvo: Para suas mulheres, amantes, musas, ele fazia textos imensos, s vezes inclua at uma poesia. Outro que aproveitava o vis literrio para um algo a mais era Jorge Amado. Uma vez peguei um livro dedicado para uma certa Maria. Ele dizia que esperava que o livro chegasse altura dela.

    O fetiche pelo autgrafo do autor transforma o sebo em parada estratgica para aqueles que querem tirar proveito da fama dos outros. Um dia chegou um sujeito aqui querendo vender uma primeira edio de Grande Serto: Veredas, supostamente autografada pelo

    gustavo gusmo

  • PERNAMBUCO, MAIO 20111212

    CAPA

    Guimares Rosa. Mas no era, atesta Antoniassi e ele sabia que no era porque j havia estudado todas as nuances da obra do autor e dele prprio durante as aulas no curso de Letras. Quando falei que a assinatura no era do Guimares, o sujeito ficou nervoso. Ele quis catapultar o preo e nem precisava, porque uma primeira edio j valiosa.

    NA NOITE DE AUTGRAFOSPara os autores, noites de lanamento de livro misturam prazer, ansiedade e dvida sobre o que escrever para todas aquelas pessoas que formam a fila de cumprimentos.

    sempre um momento tenso, mas tambm especial. O dedicado sempre espera ser tocado, e quem dedica sempre tenta ser tocante, em respeito e por afeto. Escrevo sempre o que sinto vontade de dizer na hora. Acho que o legal da dedicatria falar banalidades, explorar o momento que aquilo est acontecendo porque a pessoa que guardar o livro vai lembrar com carinho depois. Se amigo ou alguma pessoa ntima fica mais fcil, voc pode usar as palavras e piadas particulares. Mas em regra geral o nonsense sempre uma boa fonte de inspirao, afirma a escritora Bruna Beber, autora de A fila sem fim dos demnios descontentes e Bals. Se dedicar um dom, acho que tem gente que no sabe escrever dedicatria e eu acho que sou uma delas. Ultimamente aprendi que voc pode dedicar um livro escrevendo nele inteiro e no s no frontispcio. Fica mais divertido.

    E as idas e vindas que um livro pode travar ao longo de sua vida til, acabam gerando surpresas: Outro dia aconteceu uma situao nova: eu reautografei um livro que j tinha autografado. Uma conhecida com-

    prou meu primeiro livro num sebo e ele veio com a dedicatria da primeira compradora. Foi engraado.

    Antes da noite de autgrafos, o autor enfrenta a deciso de dedicar seu novo livro a algum, ou no. Bruna prefere no escolher algum. Michel Laub, autor de O segundo tempo e Longe da gua, fez isso apenas no seu primeiro livro. Ali agradeci famlia, minha namorada na poca, a todos os meus amigos, aos cachorros etc. Depois no fiz mais por vrias razes algumas de ordem particular, mas em geral porque no sentia que o livro tinha algo a ver com alguma pessoa em especial, ou que sem alguma pessoa o livro no existiria. Mas, casualmente, estou lanando um livro agora no primeiro semestre e vou dedic-lo ao meu pai, que morreu no ano passado.

    Na noites de autgrafo, Laub opta por dedicatrias--padro. No tento ser engraadinho improvisando frases espertas na hora (quando tento, fica meio pa-ttico). Em geral estou um pouco nervoso, ento no arrisco muito e fao uma dedicatria padro, tipo para fulano, com um abrao do Michel. A dedicatria uma sntese, e nunca fui bom nesse tipo de coisa.

    Postura oposta tem o ilustrador Rafa Coutinho, que sempre tenta fazer alguma coisa especial em seus livros, como Cachalote, em parceria com Daniel Galera. Lembro muito de como me sentia quando era mais novo e ia nos lanamentos dos meus dolos. Acho um ritual muito forte, esse de encontrar cara cara com o autor e trocar com ele alguma coisa. E pra ns, autores, o momento em que voc finalmente vai sentir a reao do leitor ou futuro leitor. claro que nem sempre rola, depois de 500 livros, a fila comea a ficar impaciente. Mas sempre d gosto de pensar em algo pessoal, diz. Procuro fazer algo pra cada

    um. Pergunto se o cara j leu, se gostou de algum personagem em especial. E tem aquela coisa de ver a pessoa, sentir mesmo como ela est, tentar relaxar o sujeito tambm. Muita gente chega nervosa na hora do autgrafo, quer conversar um pouco. O autgrafo uma desculpa pra gente se conhecer, acho.

    Se gosta do interlocutor, a escritora Ivana Arruda Leite, autora dos preciosos Hotel Novo Mundo e Alameda Santos, procura fazer uma dedicatria especial com al-guma referncia que lhe diga respeito. Minhas dedica-trias so sempre exageradas e cheias de superlativos, principalmente depois do terceiro copo. A abundam beijos e amores pra todos. Agora, quando a fila est muito grande com pessoas que eu no conheo, depois de um tempo eu fico cansada e vai no automtico. Ela tambm costuma fazer dedicatria nos livros que d de presente. E o mais engraado: assino com o nome do autor para aquela pessoa. Por exemplo: uma vez dei um livro do Ams Oz pra Andrea del Fuego e escrevi: para Andrea, com meu respeito e admirao, deste seu f Ams Oz. Gosto de pensar no que significado que essas dedicatrias tero daqui a 100 anos.

    Mas Ivana no precisou esperar muito para saber o significado que uma dedicatria sua teve na vida de um leitor que foi ao lanamento do seu livro Ao homem que no me quis. Quando o prprio chegou no lana-mento e colocou o livro na minha frente, eu escrevi: Este livro pra voc. Um beijo, Ivana. Na poca, o homem em questo era casado, mas Ivana soube o que ele acabou fazendo com seu livro. Ele arrancou a pgina da dedicatria para a mulher no ler e guarda o livro com ele at hoje. A mulher danou logo depois.

    Daniela Arrais jornalista.

  • PERNAMBUCO, MAIO 201113

    gustavo gusmo

    Comigo simples: dedico todos os livros que escrevo para minha mulher, Marilena, meus filhos e meus netos. Sei que eles nunca vo me abandonar. Dedicatrias deviam ser livres de arrependimento. Voc pensa naquela pessoa, a agradece por tudo o que passou, projeta um futuro e pronto: para sempre. Devia ser para sempre. claro que, como tudo na vida, h riscos no caminho. Viver encruzilhada. Sei disso, porm, neles confio. Mas nem sempre a gente pode confiar. Nem toda dedicatria feita para ser perene, como uma tatuagem, um escrito da pele. H aquelas que so de um minuto, de uma tarde ou noite de autgrafos. Essas a so uma espcie de fico antecipando a prpria fico. A gente cria um elo com um desconhecido, tal qual criamos o personagem para caber no enredo do romance.

    Conheo pessoas que no se importam com o livro, s com a dedicatria. So leitores de um jeito todo particular. Esses leitores no querem ler a histria, saber o destino dos personagens, nada disso. O importante ter o nome ao lado de um abrao, um beijo ou, melhor (muito melhor), num texto mais longo forjando algum tipo de relao. Ainda falam tanto dessa histria de morte do autor, mas ele tem de estar vivo,

    vivssimo, na hora de dedicar. Queria muito saber o que Roland Barthes diria disso...

    Tarde ou noite de lanamento hora de encontrar os leitores de dedicatrias. Eles chegam como quem no quer nada, carregam um copo de vinho de forma inocente, andam de l para c, do goles, reviram os olhos e, impacientes, olham o relgio. Alguns at conversam. Mas tudo encenao. Eles sabem o que querem e faro de tudo para conseguir. At que a ltima caneta seque, iro tirar o mximo daquilo que deveria ser simples - um autgrafo. Mas no to simples assim. Cada pessoa que se aproxima quer um autgrafo inslito, um beijo e um abrao nunca so suficientes. E o escritor, que j teve de criar assunto para escrever um livro inteiro, tem de esticar conversa e, pior, encontrar algum motivo para que a pessoa se sinta dona (para no dizer personagem) do livro que est comprando. Os leitores de dedicatria so quase uma confraria secreta, que faz girar o negcio do livro.

    Alguns deles chegam a ditar o que querem ver escrito em seus livros: Lembre a nossa amizade de muito tempo, pedem uns; No esquea que lhe ajudei, implora outro, lanando mo da fic-o que a memria; Fui seu primeiro leitor, se orgulham alguns, mesmo sabendo que pura inveno; tem sempre algum ditando que Minha

    me lhe adorava; h quem remeta ainda a paixes imemorveis: minha irm foi sua primeira namo-rada, quando ela foi s um das meninas do bairro que nunca negaram um escurinho. E o escritor j no sabe mais o que fazer com tanta demanda... A fico continua na noite de autgrafos, embora o miolo do livro seja bem mais interessante. Para no passar vexame, resolvi simplificar homens, um abrao, e para mulheres, um beijo. Assim, simples demais? perguntam alguns, incomodados. , no compromete ningum, respondo. Voc tem medo de escrever dedicatrias longas?. No, s precauo. Ainda assim, h quem insista: S saio daqui quando tiver um autgrafo pessoal.

    Mas nem todos os leitores de dedicatrias so fiis. H aqueles que vendem o livro no sebo, to logo dobram a primeira esquina. Os exemplos so muitos. Num desses lanamentos, autografei um livro para o jornalista Marcus Prado e, logo depois, o encontrei entre os exemplares velhos e usados de uma livraria do centro. To abandonado, o coitado do livro. Comprei-o. Ao encontrar Marcus no Diario de Pernambuco, onde trabalhvamos, pedi quinhentos cruzeiros emprestados. Quando j estava com o dinheiro em mos, disse-lhe que no era um em-prstimo, mas o pagamento do livro que ele vendeu com o meu precioso autgrafo.

    Dedicatrias deviam ser livres de arrependimentosRaimundo Carrero

  • PERNAMBUCO, MAIO 201114

    A principal acusao era a de traio, mas o que seria da histria da Literatura, no fossem certas traies?

    ENSAIO

    abenoa a blasfmia. Sim, os poemas foram fi-nalmente publicados, com prefcio de Lourival Holanda e Zeferino Rocha. Contrariando a lgica do mercado editorial, a obra esgota em poucos dias.

    Um detalhe daria mais tempero publicao. Um pequeno grupo, sob o comando da escritora Luzil Gonalves, arquitetou uma espcie de contrabando potico dos originais. S assim, Daniel Lima saiu do ineditismo literrio.

    H meio sculo Daniel Lima produz uma poesia de qualidade singular, mas que zelosamente subtrai ao olhar do grande pblico. Num movimento de atrao e repulso, ele afasta o pblico enquanto atrai e fascina seus amigos e mais chegados. Por sorte nossa, alguns destes amigos venceram, no sem muito custo, a resistncia de Daniel, subtraindo os poemas que formam esta seleo, diz Lourival Holanda no prefcio.

    Lembra tambm dos excessos da poesia em tem-pos de velocidade e novas mdias.

    A poesia contempornea parece sofrer de uma pa-radoxal fraqueza: a indigncia por excesso. Excesso de facilidade dos novos meios que possibilitam pressa, mais que cuidado, na exposio de sua potica.

    Lourival destaca o estilo solitrio de Daniel, que sempre fez questo de guardar ferozmente sua independncia frente a seitas e confrarias literrias.

    Cada semana a mdia consagra e entrega um grande poeta para a indiferena e esquecimen-

    to da semana seguinte. As rodas literrias fazem e desfazem famas, entre murmrios e elogios vagos tudo submetido ao caprichos do mercado, essa lei letal s letras.

    Ao sair da livraria com meu exemplar, li os pri-meiros poemas e no senti o impacto esperado. Em casa, fui mergulhando na obra e senti a profundi-dade. Havia mesmo algo vertical, uma espcie de luz prpria, nica. Precisava contar a histria do contrabando.

    Eu j tinha ouvido falar do Padre Daniel Lima vrias vezes, ao longo dos ltimos anos. Era quase como uma entidade, uma criatura parte, como se pertencesse a outra civilizao. Um homem cheio de belos manuscritos, mas avaro com o publicar. Que era algo raro e estranho nos dias de hoje um grande poeta annimo. Um homem menos do espetculo e mais da aventura espiritual, como lembrava Lou-rival. Um ser humano com o desafio de reamarrar mundo e sentido.

    Certa vez, uma amiga me presenteou um CD, onde o escritor Jomard Muniz de Brito, admirador de sua obra, recitava alguns poemas selecionados. Mas era tudo e era pouco.

    Parecia que Daniel Lima era um personagem de fico, envolvendo poetas, crticos literrios, roman-cistas, algum que no existia de verdade, mas estava num lugar imaginrio, guardando seu tesouro para um tempo futuro. Um professor de Filosofia, Latim,

    Aprenda aquia fazer um contrabando De como um grupo de amigos burlou a lei e publicou Padre DanielSamarone Lima

    Parece histria de cinema. Um padre de 95 anos, cone filosfico e intelectual de vrias geraes no Recife, tem em casa vrios volumes de poemas, que foi escrevendo ao longo da vida. Os poucos amigos que tiveram acesso aos originais tentam convenc--lo a publicar. Tratam os manuscritos como uma preciosidade literria.

    De jeito nenhum. Nem pensar. Jamais. O padre no arreda o p. Mantm o costume de muitos anos. Entrega os escritos amiga Clia Veloso, bibliotecria aposentada da Faculdade de Direito, que datilografa tudo e manda encadernar. So 14 livros de Filosofia, 13 de Poesia.

    Cada exemplar tem um formato de distribuio. Um exemplar fica com o autor, outro com Clia, o terceiro ele dedica a um amigo sem autorizao para publicar. Na primeira pgina de cada volume, algum aviso do tipo:

    Aos amigos confiveis, para emprstimo, com espera de devoluo.

    Ou:A qualquer um: Este exemplar meu. Por favor,

    devolva-o, se lhe for emprestado. E desculpe o estilo direto. Afinal, estamos no Brasil. Recife, 17 de de-zembro de 1991.

    A pr-estreiaLivraria Cultura, 15 de fevereiro de 2011. O auditrio

    est cheio, para o lanamento do livro Poemas, de Daniel Lima. Uma publicao de 400 pginas, editada pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE).

    Sentado, na primeira fila, escutando os elogios rasgados sua obra, Daniel Lima est quietinho como um passarinho que saiu do ninho por algumas horas. Ameaou no ir, buscou alguma dor que no surgiu, alegou um cansao inexistente, at que cedeu. Foi, mas ameaou fazer alguma travessura. Como protesto, no deu entrevistas.

    Mas agora est l, na primeira fila, com seus ca-belos brancos e sorriso de menino. Escuta, sorri,

  • PERNAMBUCO, MAIO 201115

    Quando tudo comeava a se encaixar, Luzil vol-tou casa do padre.

    Avisou:Daniel, estamos fazendo um livro com seus

    poemas. No pode! No dei ordem! Amiga traidora, espi!,

    foi a resposta. Daniel, voc padre. Isso um pecado ava-

    reza.O padre reclamou muito.Pra que isso?Mas Daniel, voc precisa deixar alguma coisa.Eu no quero deixar nada.A principal acusao era a de traio, mas na

    histria da Literatura, no fossem certas traies, a humanidade teria perdido grandes obras. A conspi-rao foi adiante, e o livro foi publicado.

    Aps a conversa com Luzil, s me restava um de-safio conhecer pessoalmente o padre Daniel Lima. Acertamos uma visita para uma semana depois.

    Foi voc, Luzil!. Acusao e absolvio. Chegamos ao apartamento de Clia, no bairro

    da Torre. Trata-se de uma mulher carinhosa, que h vrios anos cuida do amigo Daniel, datilografa suas garatujas com diligncia, dessas criaturas que aprenderam desde cedo o verbo cuidar.

    Daniel, sentado na sala, com seus chinelos e meias, tinha o livro ao lado. Luzil me apresentou, e percebi pelo sorriso, que o mais novo autor da CEPE

    era na verdade um menino travesso, com vocao para movimentos verticais. .

    Rapidamente a conversa gira em torno do lan-amento.

    Ele queria nada. Como eu fico aqui, botou a culpa toda em Luzil, diz Clia.

    Foi voc, no foi?, pergunta Daniel.Foi Luzil, responde.Clia no resiste.Ele gostou tanto, que vive com o livro nas mos. Estou vendo se encontro erros, rebate o padre.Depois de um silncio, olha para Luzil.Foi voc, Luzil! Uma pessoa em que eu confiava

    tanto...Voc me deu um livro. Os outros quatro voc

    me emprestou.Clia me conta que datilografava tudo quando

    chegava em casa, aps o expediente.Ele escrevia, eu ia batendo.Luzil pega o livro, comea a ler um poema. Da-

    niel fica com os olhos bem acesos. notrio que est em festa com a publicao, um comparsa da prpria traio.

    Colhes uma flor sem nome num jardim qualquer,numa tarde como as outrase, no entanto, toda a tua vida se recolhenesse ato humilde,todo o teu passado se refletenum gesto obscuro,

    Esttica, que influenciou muitas geraes, agora fora de cena, apenas aumentando seu ba de poemas e a contemplao da vida.

    Cinco dias depois do lanamento, fui casa de Luzil Gonalves, no Poo da Panela. Queria saber os detalhes do bem sucedido contrabando literrio e seus desdobramentos.

    Ela, que foi sua aluna no curso de Letras da UFPE, recordou de vrias histrias envolvendo o amigo, clebre por seu comportamento libertrio e travesso, seja dando aulas, seja nas posturas como padre. A definio de Dom Helder Camara resume a perso-nalidade de Daniel:

    Meu padre quase doido e quase gnio.Deixemos a vida para depois. Vamos obra.Luzil disse que pediu emprestado os livros Can-

    cioneiro tmido, Asa, abismo e voo, Cantos rpidos e Quase. Conseguiu sair com os quatro volumes originais quase sem acreditar. Falou com Leda Alves, presi-dente da CEPE.

    Consegui.Leda Alves conhece o homem h muito tempo.

    Foi um passo alm ao comentrio de Dom Helder.Meu Deus, Daniel um gnio, vamos public-lo.A trama comeara a ganhar forma. Luzil en-

    tregou os originais ao chefe do departamento de Cincia da Informao da UFPE, professor Marcus Galindo, que escanenou todo o material e passou para CD.

    KARINA FREITAS

  • PERNAMBUCO, MAIO 201116

    ENSAIO

    e se recapitula tudo o que fizestedesde os mais remotos tempos em que no existiasseno no desejo de teus avs,quando eras apenas uma forma vagamente

    possvel,um voto de amor no formulado ainda,talvez nem isto.Ao colheres uma flor,a tua vida inteira se refugia neste gesto.E por isto que a flor estremece.

    Daniel abre um sorriso de menino.No desconfiei nada desta traio.Pergunto se ele gostou do livro.Gostei.Ento estou perdoada, diz Luzil.Est, responde. O que vinha de editora importante aqui, pedir

    os escritos dele... Ele dizia que mandava daqui a um ms e nada, diz Clia, que tambm procura na Internet algum texto sobre o amigo.

    Luzil passou a ler outros poemas, e o clima de sarau instalou-se no apartamento de Clia. Levei uma pequena filmadora e pude registrar a alegria do novo autor pernambucano.

    Entre um poema e outro, fragmentos da vida de Daniel. O nascimento em Timbaba. Albertina, a me. Honorina, a irm de Albertina que o criou. A vocao para o sacerdcio. A expulso do Se-minrio de Olinda, os estudos na Paraba. Os oito irmos. A mania de no atender telefonemas, a no ser atravs de cdigos misteriosos, que pou-cos amigos tinham acesso. O dia em que estava atrasado para dar aulas na Faculdade, passou uma ambulncia, ele desmaiou, para pegar carona. Perto da Faculdade, avisou:

    Pode parar, que j fiquei bom.Agora voc vai para o hospital, respondeu o

    motorista da ambulncia, e ele perdeu as aulas. Ele adorava ser doido, comenta Clia. Depois, ela vai l dentro, em um dos quartos,

    e traz um livro encadernado, intitulado Perdidos e achados, de 1991, ainda indito. Ele imediatamente pega, como um menino que zela pelos brinquedos, antes de passar para os amigos.

    J era fim de tarde quando perguntei a Clia se poderia conhecer o apartamento. Ela me leva ao quarto dela, me mostra uma estante. Esto l, v-rios volumes encadernados. Originais que poucos amigos tiveram acesso.

    Pego um a um, folheio, vejo as dedicatrias. H poesias, textos curtos, anotaes, filosofemas. O sonho de qualquer editor.

    Sbito, penso em botar um na bolsa, sorratei-ramente, e levar um desses originais para ler em casa. A bolsa, porm, ficou na sala, e mal conheci o padre. Desisto da ideia.

    Passamos ao quarto onde Daniel dorme, tem suas coisas.

    Ele tem uma casa aqui perto, mas vai l s de vez em quando. Est cheia de livros e manuscri-tos, diz Clia.

    No quarto, em cima de uma cmoda, vejo um material encadernado, semelhante a uma apostila. Na capa, o ttulo:

    Daniel Lima por ele mesmo depoimentos e entrevistas. Organizado e apresentado por Zildo Rocha 2005.

    Pego o material, levo para a sala. Mostro e per-gunto o que .

    Ele imediatamente puxa para si, olha, folheia. Desconversa.

    Ele escreveu um estudo sobre Dom Quixote, um livro. No sei onde est, conta Clia.

    Enquanto Luzil l mais poemas, pego de volta os depoimentos e entrevistas. Basta ler alguns trechos, para saber que se trata de um material que envolve Filosofia, Literatura, reflexes sobre sua vida, sua jornada pelo mundo. Anoto alguns trechos. So escritos da alma.

    Mais inditos, publicados sem autorizao do autor.

    Quase assumi a personagem de Cervantes de um jeito tal que ela se grudou em mim at hoje. Eu era ele, o cavaleiro dos lees, o louco varrido que pensava certo mas agia errado, que melhorava as coisas piorando tudo, que via numa rude lavadeira a bela Dulcinia, sonho e a realidade fundidos e confundidos, meu heri doido que sonhava que estava acordado e assim dormido realizava sonhos to verdadeiros, os quais no podiam existir seno na sua cabea. Ento me disse: Ser louco preciso! A questo estar na dosagem.

    Li o texto em voz alta. Ele gosta.Qualquer dia vamos na minha casa, para voc

    conhecer. Tenho muita coisa escrita l.Depois completa:De vez em quando vou l, para reler minhas

    coisas. Quero ver se subi ou desci. Clia e Luzil falam da casa, a grande baguna

    do padre Daniel Lima, cheia de originais, repleta de livros. Certa vez, teve um princpio de incn-dio, a ao dos bombeiros para apagar foi mais devastadora que o prprio fogo. Fico imaginando os tesouros que Daniel tem ainda guardados.

    Leio e anoto mais trechos.Sim, sou um homem feliz. Tudo vem dando

    atribuladamente certo. No aconteci para fora, estou acontecendo para dentro. A cada dia sei que subo a escada que aparentemente vou descendo e vou me aproximando mais e mais de mim e saindo da caverna de sombras e figuras para a verdade de mim mesmo: o encontro esperado desde o primeiro dia.

    Peo a Luzil que leve emprestado, tenho ganas de ler todo o material. O lado avarento de Daniel entra em cena.

    Preciso ler, para ver se tem erros.Antes de sair, tenho tempo para anotar mais

    um trecho:

    Como Dom Quixote, mais de uma vez deixei que Rocinante, na encruzilhada, decidisse por mim nessas jornadas de espantos. Alis, a filosofia maior (a que incorporei minha vida, quando j na maturidade) me levou a sentir, vivencialmente, que existir, ser um vivente homem, no se pode entender sem a insegurana.

    Antes de sairmos, leio um poema, um dos que mais me tocou, um desses textos que engasga, que arrebata, ilumina.

    Meu irmo, te verei um diadespojado de tudo o que no sdesse rosto no teudas aparncias, dos guisos, das mentirasdos disfarces.Te verei meu irmoto diferentee desnudo e pequenoto tu mesmo e to outroe passearemos por galxias vadiase cus e infernos longose falaremos nada tantas horasque o tempo se far de nossas falas.

    Te verei meu irmomas talvez no me vejasto diferente estareito pequeno e desnudoto parecido a ti nas vaidades mortasna humildade do rosto enfim reencontrado.

    No ltimo gesto do encontro, peo a Daniel que faa uma dedicatria em meu exemplar. Ele escreve:

    Samarone: Vai a este livro, que escrevi numa fase de sono; meio sudorento, mas muito alegre e feliz, pois aprendi mais um nome difcil, que decorei para us-lo em momentos de xtase. Leia--o e esquea-o antes de gozar qualquer loucura maior. Do amigo Daniel.

    Por ltimo, a data improvvel:Recife, 2.980Antes de sair, combino retornar na semana

    seguinte, para uma visita ao seu reduto, repleto de originais e livros. Prometo levar um livro meu de presente.

    Venha sim e traga seu livro. preciso concordar mais uma vez com Lou-

    rival.Potica clandestina como as festas ntimas.

    Resta dar razo a Daniel por resistir ao assdio dos crticos: em seu jardim interior as orqudeas levam longo tempo em paz preparando o esplendor de sua florao.

    Nota: Em junho, o jornalista contar como foi a visita casa do padre Daniel Lima.

    Samarone Lima jornalista.

    PADRE DANIEL LIMADurante o lanamento do seu livro Poemas, publicado pela Cepe, na Livraria Cultura

    DIVULGAO/ CEPE

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    inscries:1 de abril a 30 de junho de 2011regulamento no site da cepe:www.cepe.com.br

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  • PERNAMBUCO, MAIO 201119

    INDITOS

    SOBRE O AUTOR

    Chico Felitti jornalista e ainda indito em livro

    Chi

    co F

    elitt

    i

    Ele foi comprar cigarros e nunca mais voltou. Como ele no fumava, ele s nunca mais voltou. Desde a mudana para o Brasil, avisou que ia para o casa-mento da prima, em Santiago, duas semanas depois. Coisa rpida, bate e volta para a nova vida conjugal. Bateu, no voltou, e o impacto quebrou cada andar da minha coluna vertebral.

    O amor sobreviveu distncia por um ano e v l. Mas no presena de um ms. Foi morte de beb. Sbita e sem traumatismo. Nenhuma desiluso, ne-nhuma briga, nenhum fonema. Nem um telefonema. Nada. Faltou tutano para os dois. O medo fez do tecido poroso e quebradio. Rebentou sem chance de reparo.

    Doeu na ostena, tipo crie, s que nos 206 dentes encarnados que sustentam o corpo. Em um holofote de tristeza, voc se acha o Joo do Pulo, e que a fratura vai acabar com a carreira do cora-o. Mas todo o mundo tem fraturas . O mundo, inclusive, chacoalhado pelas fraturas do que j foi, se ralando uma na outra. Voc no o nico moleque da rua Conrado Offa a se lambuzar de

    Ele s nunca mais voltou

    gesso. Seu esqueleto igual ao do vizinho e ao do cara que te trocou pelo nada. Radiografado, todo amor igual. Pelo menos, h amor.

    E h tempo. Com ele, a geleia de mocot calcifica em ossobuco. Um dia voc est por a, ereto de novo. Ou quase: aquele punhal de marfim con-tinua para fora. bom polir pra que no vire um exoesqueleto. Um chifre de narval que machuca quem chega perto. Mas tambm bom deixar ele na junta dele, sem muita ateno ao ligamento, para no virar o garoto dos ossos de vidro, numa bolha. Colocando o amor em vitrine, com preo impagvel. No assim que tem de ser. Fratura faz anticorpo de corao.

    H seis meses a gente voltou a se falar, depois que ato-falhei na internet e ca no blog dele, ento aberto h dois dias. L, ele ensina a cozinhar como cozinhava para mim: berinjela s cegas, po de milho, parrilhada. A ltima receita que li por l chamava Cheescake rpido y chico. Era do meu doce preferido. S que o Chico no era eu.

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  • PERNAMBUCO, MAIO 201120

    INDITOS

    SOBRE A AUTORA

    Luzil Gonalves publicou De volt a a Palermo e Os rios turvos

    Luzi

    l G

    ona

    lves

    Olhos de ressaca

    O homem falou e de repente, sem que nada o anunciasse, o pas-

    sado voltou a ser presente, o passado que acreditava esquecido, pretrito, de sbito diante

    de mim, coisa viva e atuante. Capaz de fazer ressus-citar em ns a alegria um dia existente, de refazer dores da alma, o sofrimento mais uma vez presente, ah to presente.E, de novo, o que ficou gravado em algum lugar de nossos longes, retorna, retoma o molde antigo, e reconhecemos seu espectro, a forma como agia em ns. Reconhecemos as angstias que foram obsesso por um tempo e que gostaramos de acreditar mortas.

    Ele nos chega sorrateiro, lento. Ou se impe de um golpe. Um cheiro do perfume de algum amado, um trecho de cano, outrora ligado a um momento bom de vida, um certo gosto de comida na boca. Um verso, uma frase ouvida, e de pronto j no somos aquele corpo instalado no aqui e agora, prisioneiros da cronologia, mas habitantes de um outro espao e tempo, ambos com o gosto do desconhecido: pois j no somos quem ouviu a cano, e h muito deixou de existir quem aspirou o perfume.

  • PERNAMBUCO, MAIO 201121

    Inexplicavelmen-te, somos de novo a crian-

    a a quem se fazia comer um bo-linho de feijo onde se escondia um fiapo

    de charque, sabor, surpresa, odor nunca mais experimentado pelo adulto. Somos o adolescente apaixonado, descobrindo a glria de ser amado e de amar, pela primeira vez. E somos o adulto que se deixou atrs, de repente sozinho em meio estrada, e a quem a vida tantas vezes enganou, apunhalou.

    Todas essas coisas me vieram ao esprito ontem, quando o homem entrou no vago e de repente me lanou aos ouvidos a expresso que eu ouvira anos antes. O homem, um desconhecido, falou. Sem o saber, sem querer, sem nem desconfiar do que poderia conter sua simples frase, talvez um galanteio desajeitado, um jeito de chamar minha ateno para sua figura, banal, corriqueira, apesar das roupas caras, do chapu. que retirou quando entrou no vago, do sapato certamente comprado em loja elegante dos Champs Elyses.

    O homem se sentara na poltrona a minha frente, depois de um Bonjour madame cerimonioso. Respondi, voltei a contemplar a paisagem que passava rpida do outro lado dos vidros.

    Era primavera, rvores j carregadas de brotos verde-claro corriam ao lado do trem. Pelo reflexo da vidraa vi os olhos do homem pregados em mim. Notou que eu o via, desviou o olhar. Imagi-nei que desejou se justificar, os franceses sempre andam se justificando, mesmo quando voc no lhes pergunta nada:

    Excusez-moi, madame.Aguardei, sabendo o que diria. Na Frana nin-

    gum encara ningum, somos todos mais ou menos invisveis na ruas, nas lojas, nos cinemas, e o modo como o homem me olhava, demandava mesmo uma desculpa. Tirou o chapu, comeou:

    Pardon, madame...Esperou um pouco, depois pronunciou as pala-

    vras, quase as mesmas, no fosse a diferena dos idiomas. Aguardei. Perguntou, algum j me havia dito que meus olhos lembravam um mar agitado, quando a ressaca levantava ondas enormes, lambia as pedras, varria a praia?

    Olhos de ressaca. Olhos de ressaca foi o que o homem falou. E de sbito o passado se postou diante de mim cinzento., com sua carga de negatividade. Olhos de ressaca me dissera Bentinho, um dia dis-tante, ns apenas adolescentes, ele fixando meus olhos, falando na cor deles, recitando Gonalves Dias, so uns olhos verdes, verdes, uns olhos da cor do mar, uns olhos cor de esperana, quando o tempo vai bonana. Parou, corrigiu: bonana, no. Ressaca. No entendi, perguntei:

    Ressaca? Por que ressaca?E ele: Mar violento, traioeiro.Bentinho! gritei.Como podia meu companheiro falar em trai-

    o, violncia, quando s amizade havia entre ns, e isso desde quando ainda balbucivamos as primeiras palavras e apenas ensaivamos uns passos trpegos? Nossas casas eram contguas, os quintais se tocavam, um portozinho fora aberto na sebe, para que pudssemos entrar e sair de um lado a outro, sem que minha me nem dona Glria se preocupassem conosco.

    Olhos de ressaca. Por delicadeza, sorri ao homem. Nunca poderia ele imaginar o poder da expresso sobre mim, fazendo desaparecer de um golpe os campos de coquelicots, o trigo dourado, a beleza do momento, desorganizando a harmonia do mundo, que eu sorvia em silncio.

    Olhos de ressaca. Por um instante, a tentao, contar ao homem uma parte de minha histria, de nossa histria, mas temi ser mal julgada. Como explicar a um desconhecido, no final de uma viagem ao cabo da qual nunca mais o veria,

    essa coisa enorme, movente, em que se tocam vises do cu e do inferno, separados apenas por uma folha trmula, uma vida a dois?

    Por isso escrevo. O homem nunca ler as linhas que escreverei. Nem a Bentinho as enviarei. Alis, mesmo que as enviasse, ele no as leria, Benti-nho nunca levou a srio nenhuma frase minha, nem uma expresso que lhe fizesse vislumbrar a existncia em mim de algo alm de um desejo superficial qualquer, uma impresso qualquer, um eu gosto disso, eu quero isso. Quando eu tentava lhe fazer ver que se encontrava diante de um ser humano, coisa complexa, indefinvel, ele me pedia para no complicar, ser mais direta, mais simples. No comeo ainda tentei lhe dizer isto: com o passar dos anos e sobretudo dos anos ao lado do homem silencioso que ele era, e tornado casmurro pelos anos, eu viera a desco-brir em mim caminhos insabidos, caminhos que levavam a abismos, cavernas, florestas escuras, profundezas marinhas povoadas de monstros abissais. Depois, e durante anos, habituei-me a guardar silenciosa aqueles pensamentos, medos, vises. A aceitar como evidente mas passageira, em algum recanto de meus longes, a presena daquelas florestas, cavernas, abismos. E aprender a no as temer, antes conviver com elas.

    Silenciosa, at que um dia aconteceu: algum acei-tou escutar as tmidas e desajeitadas tentativas de penetrar, de descrever essas cavernas, esses abis-mos. Foi quando Escobar entrou em minha vida. Em nossas vidas.

    Escrevo, pois, para dialogar um pouco com esses meus monstros. Para interrogar o passado, preencher, de algum modo, a monotonia da minha existncia atual. Imaginar outras vidas possveis. E tambm trazer tona todas aquelas que vivi, vivo, escondidas sob acontecimentos palpveis, atrs da concretude dos fatos, certamente mais ricas que a banalidade do quotidiano.

    Para mergulhar talvez em mim, eu de olhar enig-mtico. Olhos de ressaca, v l..

    HA

    LLIN

    A B

    ELTR

    O

  • PERNAMBUCO, MAIO 201122

    Esse foi meu primeiro contato com Dorothy Parker e agradeo quela professora que no lembro mais o nome pela apresentao. At hoje me pergunto o que ela quis dizer nos entregando aquela histria. Foi proposital? Penso que sim. Ela, assim como as personagens de Dorothy, parecia uma mulher que se escondia atrs de vrias membranas protetoras. No sei mais explicar o porqu, mas parecia.No meio do curso, ela precisou ser substituda por algumas semanas, porque seu apartamento se incendiara. Morava sozinha. Ao retomar as atividades, lembro que no houve qualquer comentrio sobre a tragdia. Estrangeiro, fiquei na dvida se no seria de bom tom dizer que sentia muito pelo ocorrido. Fora de casa, a gente nunca sabe bem o que dizer. Dorothy iria alm: em qualquer circunstncia, a gente engole o necessrio e se salva com ironias, silncio ou pela espinhosa

    REsENhAs

    Dorothy Parker ou a gente nunca sabe o que dizer

    educao de um Mas voc estava timo.J comprei umas trs coletneas de Dorothy Parker, mas elas foram fugindo da minha estante. Ms passado, reencontrei Dorothy Parker numa edio de bolso da Penquin, The Sexes. Aqui correm os mesmos temas daquele conto que li pela primeira vez. Espero que esse livro tambm no suma. A tal xrox guardo at hoje.

    Meu primeiro contato com Dorothy Parker foi inesquecvel. No que algo estranho tivesse ocorrido, pelo contrrio. Nada acontecera e, por isso, talvez, nunca esqueci. Estava na Inglaterra, cursando um daqueles intercmbios para adolescentes, e a janela da minha sala de aula dava para um cemitrio. Piorando a coisa, era inverno (ou seja: a vista do cemitrio ficava lgubre ao quadrado), meus companheiros de turma no eram a coisa mais interessante do mundo e os textos que ramos obrigados a estudar no ajudavam. Mas teve um dia que a professora gordinha, sardenta e de voz aguda, cujo nome me escapa levou uma certa xrox. A histria falava de um cara que acorda com uma ressaca monstra e no se lembra bem do que havia feito na noite passada. Sabia que algo errado acontecera, mas exatamente o qu?Ao seu lado, uma inimiga disfarada de amiga

    Livro de contos da autora trazem de volta lembranas de uma certa professora sem nome

    contos

    schneider carpeggiani

    A Cavalgada Pedra do Reino (foto), inspirada no romance de Ariano Suassuna, a principal atrao do Festival Pernambuco Nao Cultural - Serto Central, no dia 29, em So Jos do Belmonte. Este ano o festival passa a ser descentralizado, levando shows, exposies, lanamento de livros e outras atraes, de 24 a 30 de maio, a vrios municpios sertanejos. O ritual

    da cavalgada foi criado para rememorar o episdio em que tropas militares combateram os defensores do rei portugus Dom Sebastio: cavaleiros fantasiados de vaqueiros ou cangaceiros e armados de lanas, percorrem 30km at o cenrio onde se deu o massacre dos sebastianistas. A participao de Ariano na cavalgada, em 1995, fez crescer a fama do evento.

    FEstIVAL

    Cenrio da Pedra do Reino recebe cavalgada que relembra episdio descrito por Ariano Suassuna

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    ou ex-amante (no fica claro o papel dessa personagem na trama, apenas que sua identidade dbia), fazia questo de relembrar todos os vexames cometidos, mas sempre seguidos por um Mas voc estava timo. Na historinha, por trs do humor engraadinho e banal, era possvel visualizar alguns cogulos: corria ali solido, um jogo sadomasoquista, excessos e abandono emocional. No entendi muito bem todas as camadas da trama na primeira leitura. Mas guardei uma certeza: aquele no parecia um texto voltado para adolescentes com tdio, que pensavam apenas em como driblar a lei e encher a cara de tequila at o comeo da madrugada. No, eles (no caso: ns) no tinham biografia necessria para tanto. Lembro que discutimos a trama sem muito interesse, enrolando os minutos at que a sineta soasse. Por precauo, guardei aquela xrox comigo. E a reli durante vrias anos.

    notAsDE RoDAP

    Mariza Pontes

    The SexesAutora - Dorothy ParkerEditora - PenguinPreo - U$ 2Pginas - 96

    HALLINA BELTRO

  • PERNAMBUCO, MAIO 201123

    O JORNALISTA E O ASSASSINO (EDIO DE BOLSO) - UMA QUESTO TICAOriginalmente lanado em 1990, o livro ganhou edio de bolso. A obra trata de temas polmicos, como a relao entre jornalismo e poder, a tica jornalstica e a liberdade de imprensa, ao expor um caso de grande repercusso nos Estados Unidos, quando um mdico condenado pela morte da mulher e duas filhas moveu processo contra o jornalista que escreveu um livro sobre ele, baseado em entrevistas feitas

    durante o julgamento e na priso.

    BEL PEDROSA/ DIVULGAO DIVULGAO

    No ano passado, 435 obras foram inscritas no primeiro concurso. Entre os vencedores, esto escritores de Pernambuco, Paraba, Braslia, So Paulo e Santa Catarina. Alm dos seis classificados nas duas categorias, foram concedidas Menes Honrosas a sete concorrentes. A Cepe Editora vai publicar todas as classificadas neste primeiro semestre de 2011.

    concURso cEPE 2

    Vencedores de 2010 sero publicados neste semestre

    Fico para voyeurs Poesia quintal do mundo

    prateleira

    Autora: Janet MalcomEditora: Cia das LetrasPginas: 176Preo: R$ 21

    PoEsIA EnsAIo

    CopiAutora - Renata PimentelEditoras - Cosac Naify e 7 LetrasPreo - R$32Pginas - 87

    VesuvioAutora - Zulmira Ribeiro TavaresEditora - Companhia das LetrasPreo - R$ 33Pginas -96

    TEMAS PARA A DANA BRASILEIRAQuinze ensaios compem esta obra, que analisam desde o surgimento da crtica especializada no Brasil e a falta de leis de incentivo e polticas pblicas at o reconhecimento da arte como elemento da Economia, reunindo pesquisas acadmicas e experincias de produtores e artistas. O livro levanta questes fundamentais para o entendimento da cultura contempornea e aponta os cenrios possveis para o futuro da

    dana, alm de sugerir reflexes sobre as relaes entre o corpo e o fazer artstico.

    HINOS HOMRICOSEdio bilngue (grego-portugus) de 33 poemas atribudos a Homero, dedicados a 22 divindades gregas, o livro aborda aspectos da Mitologia, Religio, Lngua, Literatura e Antropologia da Grcia Antiga. Pesquisas apontam que os hinos sagrados eram recitados pelos rapsodos, que viajavam pelo pas: eles contam histrias sagradas e relatam costumes antigos, ligados a aspectos

    fundamentais do ser humano arraigados no inconsciente coletivo.

    TODO TERRORISTA SENTIMENTALJornalista carioca estreante na Literatura, o autor escolheu a dcada de 1990 como pano de fundo da ao de dois amigos brasileiros cansados de conviver com a impunidade, que criam o Comando Terrorista Anticorrupo com a ideia de combater os polticos que se utilizam de seus cargos pblicos para enriquecer ilegalmente. A vizinhana com um jovem basco

    e a entrada de uma bela garota no grupo leva a consequencias inesperadas e perigosas. O livro mistura poltica, cultura e um toque de rebeldia.

    LIVRo DIGItAL

    De documentos milenares a fotos da lua na BMDA Biblioteca Mundial Digital, da Unesco, tem documentos patri-moniais da cultura universal, em rabe, chins, ingls, francs, russo, espanhol e portugus. Do Mxico, h cdigos pr-colom-bianos e os primeiros mapas da Amrica. O Japo tem o Hyaku-manto darani, de 764, considerado o primeiro texto impresso da Histria. Da Sucia tem a Bblia do diabo, do sculo 13. Para acessar s teclar www.wdl.org .

    Esto abertas, at 30 de junho, as inscries ao II Concurso Cepe de Literatura Infantil e Juvenil, que vai conceder R$ 32 mil em prmios: R$ 8 mil para o primeiro colocado de cada categoria, R$ 5 mil para o segundo e R$ 3 mil para o terceiro. Os livros devem ser destinados a leitores de seis a dez anos (Infantil) ou de 11 a 16 anos (Juvenil). O regulamento est disponvel no site www.cepe.com.br.

    concURso cEPE 1

    Cepe conceder 32 mil reais em prmios em 2011

    Autor: Sigrid NoraEditora: Edies Sesc SPPginas: 344 Preo: R$ 58

    Autor: Wilson Alves Ribeiro Jr. (organizador)Editora: UnespPginas: 574Preo: R$ 79

    Autor: Mrcio MenezesEditora: RecordPginas: 236Preo: R$ 42,90

    O nome do argentino Copi pouqussimo conhecido no Brasil. Sua obra, que passa dos contos aos quadrinhos, trouxe um olhar sui generis para a discusso da Literatura no Continente, sobretudo pela ousadia no quese referia ao rompimento de barreiras polticas e de preconceitos. Seuolhar cutucava cones da histria do seu pas, como ditadores e EvitaPern (foto). Ele, fatalmente, pelo caminho da margem e da subverso (da antinorma) insere-se, como um fantasma que cutuca a tradio e nela se insere; como um crtico mordaz das instituies. E tambm, porque insere o discurso da tradio, dos cnones, das normas em sua obra para exager-los ao ponto de criar novos paradigmas para essa mesma tradio, observa

    Renata Pimentel, pesquisadora que publica agora o estudo Copi Transgresso e escrita transformista, fruto da sua tese de doutorado. Como a obra do argentino estava esgotada por aqui, esse trabalho uma rara chance para o leitor brasileiro entrar em contato com seu legado.(S.C.)

    Numa entrevista que fiz com a escritora Zulmira Ribeiro Tavares, ela negou que sua poesia fosse fruto da obsesso de um voyeur. Preferiu se definir como observadora. No concordo. O preciosismo de detalhes presente em Vesuvio, seu primeiro trabalho s de poemas quase patolgico. Essa paulista transformou supostas banalidades ematerial antipotico num dos grandes lanamentos deste ano. E, ainda, se vamos perdendo a gua que nos deixava luminosos como sinaleiras, como elas atentos e teis isso ainda no srio. Podemos avanar nas perdas, aponta em A mancha da cor. Mais adiante destaca a presena de Um poema escondido atrs de caixas/ como ratos espreitando por baixo de foges. um poema, e o seu pelo docemente cai,

    como se procurasse a inspirao at nos cantos das paredes. Na orelha, Wilma Aras comenta: Zulmira quer cutucar fera com vara curta, provacar fantasmas, roer fechos convencionais, lugares-comuns ou a beleza consensual (alis, h poemas escondidos como ratos). (S.C.)

  • PERNAMBUCO, MAIO 201124

    ficoIvana Arruda Leite

    Etiqueta emocional

    2. O JANTAR H um ano no nos vamos, no tenho lhe dado brecha ultimamente, mas

    ontem tarde, quando ele ligou para o escritrio, percebeu que tinha chance.

    - O que voc vai fazer noite?- Nada, venha jantar comigo.

    Meia hora antes do combinado, ele tocou a campainha com um pirex na mo.

    - Fiz pra voc. Torta de camaro.Eu pus de lado.

    - Vamos comer o picadinho que eu fiz. A torta eu como amanh.

    Numa sacola de plstico, trouxe trs latinhas de cerveja. Peguei uma garrafa de vinho j aberta.

    - Prefiro vinho, voc bebe a sua cerveja.Tambm trouxe Otelo, um boxer imenso que

    atravessou a sala e a conversa o tempo todo.- Voc se lembrava dele? Na ltima vez, ele

    era um bebezinho, est fazendo um ano.Depois do jantar, conversamos numa boa,

    sobre nada. Quando me calei e comecei a bocejar, ele se levantou dizendo:

    - Volto daqui a um ano.- Pode me ligar no Natal,

    eu lhe disse.Ele me xingou de filha da puta

    e foi embora dizendo que me ama e me amar para

    sempre. Eu fiz o mesmo.Hoje passei o dia com

    o celul


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