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Page 1: Pegadas de sangue

Pegadas deSangue

Lucas Zanella

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1.

O sol ardia no céu, cegando todos que se atreviam a

olhar para cima.

Para Cornélio, o sol ardia ainda mais. O homem

de cabelo preto e barba curta andava se arrastando.

Seus olhos brilhavam e pareciam já estarem cegos. Seu

sangue fervia e seu cérebro explodia.

- Senhor? - uma moça de vinte e tantos anos o

parou, um pouco mais jovem que ele, embora, naquelas

condições, ele parecesse mais velho. Parecia

preocupada com o bem-estar do desconhecido. - Ah,

meu deus. Venha comigo!

Ela o arrastou para um banco, logo abaixo de

uma grande árvore, numa praça vazia.

Cornélio sentia sua boca seca, gritando por algo

que saciasse sua sede. Ele sabia o que faria isso.

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- O senhor quer que eu chame alguém? - ela

tornou a perguntar.

- Muito obrigado, minha jovem - sua voz estava

rouca por conta da idade que chegava correndo. - Se

aproxime, lhe falarei o número de meu filho!

Ela o obedeceu. Certamente não desconfiaria de

um pobre velho que caía aos pedaços. A desconhecida

se agachou e aproximou o ouvido de sua boca, já

pensando que ele não teria forças para falar.

Não foi rápido e tampouco indolor. Mordeu-a

num instante e o sangue que caía do pescoço pingava

no chão duro e ardente, debaixo da sombra emitida

pela grande árvore. Cornélio saciava sua sede e

restaurava sua juventude, a mulher gritava e

lentamente morria. Ele não parecia se importar, afinal,

já eram décadas de gritos e mortes.

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A moça, Camila, era gentil e se preocupava com

os outros. Não possuía filhos e seus pais moravam em

outra cidade, mas estava noiva de Bruno, e achava que

fosse realmente, com ele, ser feliz para sempre. Talvez

até mesmo fosse ser, fosse ter uma vida feliz. Apenas

não teria porque resolveu, numa tarde monótona, parar

para ajudar uma pobre alma.

Cornélio já se sentia restaurado. O homem

voltara a ter sua aparência de quase 30 anos e estava

saudável. Apesar do sol, agora teria sangue o suficiente

para chegar em casa e trancar-se dentro dela. Quanto

à moça? Ah, deixe-a aí, pensou.

Essa não é uma história onde vampiros são

bonzinhos. Essa é a vida real, aqui eles matam pessoas

inocentes e não possuem um pingo de emoção. E é

assim como um deles foi descoberto.

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2.

Victor examinava papéis, mas sem nenhuma esperança

no olho ou alma.

Sentado em sua cadeira, em frente a sua mesa,

os papéis se pareciam mais com uma grande

montanha de decepção. Nunca antes se sentira assim,

tão decepcionado. Exceto, talvez, três anos atrás.

Sempre há aquela hora em que você se vê no

espelho e percebe que não há nada para fazer em

relação ao que ocorreu no passado. O que aconteceu

não pode ser mudado, pois é impossível.

Isso aconteceu para Victor quando ele jogou na

pilha outra pasta cheia de folhas completas e vazias ao

mesmo tempo. O aperto no coração veio primeiro,

como sempre vem, depois foram as lembranças, e, por

final, a lágrima que caiu primeiro pelo olho esquerdo.

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Pousou os dois cotovelos na mesa de madeira

lisa, pôs os óculos sobre a pilha e passou a mão pela

cara, limpando as lágrimas e expulsando a tristeza, que

agarrava-o como se fosse um amado.

Não conseguiu. A tristeza não o largou, mas a

esperança o deixou na sarjeta enquanto seguia seu

rumo o mais longe possível.

Lorenzo quebrou o clima de tristeza de Victor

batendo na mesa pequena do grande salão, enquanto

corria até ele desesperadamente, como um garoto que

acaba de perceber que perdera a mãe de vista no meio

de uma multidão. Usava um casaco de couro marrom,

sapato e calça preta.

- Merda. Merda. Merda - xingou a mesinha

enquanto pulava numa perna só, segurando a

machucada como se isso fosse resolver alguma coisa.

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O grande salão da casa de Victor não tinha esse

nome apenas por ter, mas sim era um enorme salão,

digno de realizações de danças antigas, com todos os

cavalheiros de terno e damas de belos vestidos. Possuía

bastante dinheiro, embora agora isso não importava

mais.

Por conta de bons investimentos no passado,

agora o dinheiro aparecia em sua conta bancária

automaticamente; ele, por sua vez, perdeu a vontade

por trabalhar. Escrevia e calculava; estudava e estudava.

Os cálculos eram sua paixão, sua terceira paixão.

- Um quilômetro de salão, mas eu precisava ter

batido na porra da mesa! - criticou-se Lorenzo, agora

agachado e esfregando o tornozelo com seus olhos

franzidos.

Deixara cair ao chão os documentos que

carregava. Suspirou e os pegou novamente, começou

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procurando por Victor na sala onde sempre trabalhava.

Após tanto tempo, o chefe até mesmo passou a dormir

ali, investigando sem parar.

- Victor! - ele disse ao vê-lo. Andou até a mesa

e estendeu a mão com os papéis.

- É inútil! - respondeu sem tirar as mãos dos

olhos e o cotovelo de cima da mesa.

- Ah, não, Victor. Não novamente. Não é inútil,

lembre-se disso. Você foi o que me disse para que,

sempre que você perdesse as esperanças, era para te

lembrar de que é isso o que quer fazer!

- E é - concordou. - Mas é inútil querer fazer, é

inútil fazer - levantou-se e passou a andar pela sala

apreensivamente. - Há três anos que investigo essa

merda e não encontro nada há três anos também. É

inútil.

- A esperança é a última que morre.

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- Não, Lorenzo, a esperança foi a primeira que

morreu. O que pensei que ainda não tivesse morrido

era minha vontade, mas até mesmo essa parece ter se

dado descarga e corrido para longe.

- Você não tem vontade de encontrar a porra do

cara que matou elas? - começou a gritar de raiva.

Ajudava Victor há tanto tempo que passara a também

se importar sobre o assunto.

Victor também gritou, de raiva e frustração.

Lágrimas começaram a novamente escorrer pelo rosto.

Lágrimas de raiva e de tristeza.

- É claro que tenho, mas não acho nada há

tempo demais. Demais para mim, pelo menos. É tarde,

Lorenzo, ele não deve mais estar na cidade, ou mesmo

vivo. Provavelmente já foi preso.

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Preso por outro assassinato que cometeu, e não

pelo da minha mulher e filha, pensou. Os policiais

teriam ligado se tivessem o pegado, não teriam?

Caiu de joelhos ao chão. Estava sem forças para

gritar ou continuar em pé. Tudo escorregava pelo seu

corpo, sua energia parecia o deixar.

- Victor! - gritou e correu até o amigo,

ajudando-o a se levantar. Sentou-o num sofá bege e de

aparência antiga.

A aparência antiga da casa se dava pelo gosto da

mulher. Victor também gostou, mas apenas depois que

tudo ficou pronto. Odiava coisas antigas, mas estava

disposto a fazer isso se fosse deixar ela feliz.

Agora, seu próprio desgosto o traíra. Era

cercado de coisas antigas por todos os cantos: fotos da

mulher e da filha penduradas nas paredes, sobre a

mesa, ao lado da cama.

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O quarto em que passara a dormir era outro,

pois não conseguia mais entrar naquele em que ela

dormira. Temia que não fosse aguentar tamanha

depressão caso entrasse. E agora, estando repleto de

teias de aranha que ele mesmo deixara que se

formassem, a depressão seria ainda maior.

Ele chorava, pela quarta vez naquele dia.

Era de noitinha, e o sol já despencara do céu.

- Eu vou deixar eles lá em cima! - Lorenzo

olhou para os papéis sobre a mesa. - Se você quiser,

pode lê-los amanhã. Durma, agora, é melhor que

durma para que pense melhor sobre o assunto.

- Não adianta, Lorenzo, não adianta - disse sem

forças. Já começava a deitar-se no sofá que, após tanto

tempo, já possuía a forma de seu corpo no couro.

Lorenzo pôs sob a cabeça do amigo uma

almofada e deixou-o ali, onde sempre dormia.

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...

Xingou-se em pensamento por terem discutido.

Aquela não era a vida dele, então não tinha direito de

interferir. Não sabia o que se passava na cabeça de

Victor, então não tinha como consolá-lo.

Sabia, porém, que ele apenas não se matou

porque queria achar quem as matou antes. Agora, com

ele sem vontade e esperança, não sabia o que poderia

acontecer.

Talvez, amanhã, quando descesse de seu quarto,

fosse encontrá-lo sobre sua mesa, com o sangue de sua

cabeça sobre as centenas de papéis que lá estavam.

Talvez fosse o encontrar no mesmo local,

deitado no sofá, com um copo de água e pílulas ao seu

lado. Dormindo em paz, mas nunca acordando.

Talvez, a caminho da escada que leva para o

primeiro andar, passaria na frente do quarto dela e

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veria a porta aberta. A dor poderia ser tanta que ele

cairia ao chão, sem nem mesmo ter a chance de, lá no

Paraíso, chegar para elas e falar que “O encontrou e o

matou”.

A mulher não aprovaria, mas ficaria aliviada, se

é que se pode não ficar aliviado no Paraíso, se é que era

lá para onde Victor iria quando o matasse.

Lorenzo sabia que o amigo não pensava sobre

isso, pois era inútil. Não as verei novamente, é o que

ele dizia, então é inútil me matar achando que irei.

Mas, às vezes, quando ele isso dizia, seu olho brilhava.

Era uma lágrima que ele lutava para segurar, e sempre

conseguia.

Não sabia se Victor falava aquilo para ele

apenas para o tranquilizar ou se realmente pensava

daquela maneira.

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Para Lorenzo, era impossível não pensar sobre

ver seus entes queridos novamente. Pensava que a vida

não tinha sentido nenhum se não fosse ter algo após

tudo isso.

Passou a mão pelo rosto, querendo parar de

pensar sobre isso, e conseguiu.

...

O sol entrava pela janela e batia no rosto de Victor,

isso o acordou. Sua cabeça doía.

Se esquecera, por um minuto, da briga do dia

anterior. Então se lembrou e achou melhor ao menos

olhar o que Lorenzo encontrou.

O amigo o ajudava a encontrar pistas sobre o

assassinato delas havia um bom tempo, mas nunca

encontraram nada. Isso o deixava triste.

Sentou na cadeira e pôs os óculos, então pegou

os papéis e se preparou com um suspiro longo.

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...

É claro que eles já teriam descoberto o corpo, afinal,

ele não estava assim tão escondido.

Caído no meio da praça, era examinado por

legistas. As duas marcas no pescoço não faziam

sentido, ao menos não ali na praça. E Victor sabia

disso; estava escondido atrás de uma árvore,

observando tudo.

Em casa, apenas disse para Lorenzo “Vou ir à

praça” após ler o que o amigo encontrara e correu até

lá. O amigo conseguira convencê-lo de não parar de

procurar, e sem nem mesmo tentar.

Os documentos entregues para Victor não eram

muito descritivos, tanto porque não eram documentos

oficiais da polícia, como sempre antes conseguiam.

Como era um novo assassinato, não havia ainda

documento algum que pudesse ser comprado de um

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policial corrupto. Aquele era apenas um simples papel

que descrevia imagens vistas numa câmera de

segurança por um comerciante local.

E, lendo a descrição, Victor percebeu que era

ele, o assassino delas. Ele ainda não morrera ou fora

preso. Estava lá, matando. Sem coração, sem emoção.

O documento fora escrito por Lorenzo,

enquanto conversava com a testemunha.

“O sujeito estava sentado em seu mercado,

lidando com alguns produtos. O homem conta que

viu, na tela com imagens da câmera de segurança do

lado de fora, uma mulher ajudar alguém. Sem som, era

impossível saber o que dizia, e estava assustado demais

para sair do mercado e ouvir. Assustado simplesmente

porque, na tela, nada aparecia. A mulher ajudava

ninguém. Se inclinou em frente a um banco vazio e

começou a gritar. O homem conta que ficou em

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estado de choque, sem saber a quem chamar ou se

deveria chamar alguém”.

Nada. Fora justamente isso o que Victor vira

nas imagens da câmera de segurança após a morte da

mulher e da filha. Nada as matava, mas morreram

mesmo assim.

Ao contar para a polícia, nem se deram ao

trabalho de investigar ou ver as filmagens. Chamaram-

no de louco, e com razão. Após a terrível experiência,

ficara um pouco louco.

- Empacotem-na e tirem-na daqui, antes que

comece a acumular gente! - disse um homem de

cabelo pouco grisalho que depois começou a coçar a

cabeça, pensativo.

Os outros obedeciam. O homem, o chefe,

andava de lá para cá, mas não viu Victor observando-o.

Estava apreensivo. Para Victor, isso só podia significar

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uma das duas coisas: ou sabia o que acontecia, ou não

tinha ideia alguma e isso o assustava.

Aquele assassino era esperto e misterioso, até

mesmo sobrenatural, então é claro que ele apostou que

o chefe não fizesse ideia do que lá acontecera.

Victor fitou o chão, que estava inundado de sangue. A

mulher, com olhos que gritavam de desespero, era

levantada e colocada dentro de um saco escuro.

Se não sabe o que é, jogue no lixo. Foi o que

Victor pensou ao ver a cena, criticando a atitude dos

“homens da lei”. Certamente não haveria autópsia ou

investigação minuciosa, isso porque eles sabiam que

isso não levaria a nada.

Para os homens, era melhor nem tocar no

assunto. Provavelmente contatariam a família da moça

e diriam que o assassino fora preso, ou então nem se

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dariam ao trabalho. Ele, por sua vez, nunca recebera o

telefonema que mentia.

Não sabia se iria se sentir pior ou melhor após a

mentira contada, mas certamente gostaria de tê-la

recebido anos atrás. Talvez sua vida fosse ser

totalmente diferente, talvez já teria casado novamente,

ou, pelo menos, pararia de pensar tanto sobre aquilo.

Os policiais saíam, e nem mesmo perceberam-

no. A praça tornava a ficar vazia, mas o sangue ainda

no chão. E não só o sangue era visto.

- Ele pisou no sangue - o homem disse

esperançoso e saiu de trás das árvores, querendo fazer

parte da atração principal.

Seguiu com os olhos um caminho vermelho,

pegadas de um sapato caminhavam sem notar o

descuido. Andou junto das pegadas do assassino,

olhando para baixo como se estivesse envergonhado.

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- Te peguei - proferiu, sorriu alegremente e

correu, ainda seguindo as pegadas.

3.

Livros e internet, aquele era o século XXI. Os meios

de e conseguir informação eram infinitos, e ele

procurara por todos.

Vampiros. Pff.

Claro que vampiros não existiam, mas o que

mais deixava duas marcas de mordida no pescoço de

suas vítimas?

Eram tempos modernos, mas inundados de

lendas ultrapassadas.

Não aparecia nas filmagens e, ao passar pelo

espelho no quarto do casal, nada foi visto também.

Essa era a única explicação, mas vampiros não existem.

Não podem existir.

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Há milênios que descobrimos a escrita, e

ninguém nunca escreveu um relatório que dizia tal

palavra proibida: Vampiro.

Haviam livros, filmes, peças de teatro e até

mesmo danças que possuíam vampiros, mas era apenas

isso. Não podemos nos basear em livros fictícios para

pensar que as coisas são reais, mas, ele se lembrou, seu

colega era cristão. Será mesmo que não podemos?

Em tudo o que é escrito ficcionalmente, uma

pequena parte é real, realmente aconteceu ou é

baseado na verdade. E se a parte falsa de Drácula fosse

que ele era um conde, e não um vampiro? Era possível,

tudo é possível.

São tempos modernos, mas cheios de ilusões

antigas.

Em sua mão direita, ele segurava uma estaca de

madeira muito bem cortada. Na outra, um crucifixo

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com o homem Jesus sofrendo nele. Segurava-os

firmemente, e não tinha a intenção de largá-los tão

cedo.

Largaria a estaca apenas quando estivesse

banhada de sangue, e o crucifixo apenas quando tivesse

feito o assassino sofrer, tal como ele sofria, tal como o

homem preso no próprio crucifixo sofrera, assim como

todos diziam, mas ninguém parecia ter compaixão.

Amarás o teu próximo como a ti mesmo, foi o

que o homem preso ao crucifixo uma vez disse, mas

ninguém perguntou a Victor se ele precisava de algo.

Ninguém o amou e teve compaixão pela pobre alma

do sofrido, apenas pena, dó.

Soltou um longo suspiro ao parar em frente a

uma casa grande, de gente rica. Era bela e também de

aparência antiga, mas muito mais antiga que a sua

aparentava ser. Parecia ter sido construída décadas,

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séculos atrás. E era bem provável que tivesse sido,

assim como era bem provável que o morador ainda

fosse o mesmo desde sua construção.

- A esperança não é a última que morre,

Lorenzo, são os malfeitores. Estes vivem para sempre.

Ninguém se lembrará de nomes importantes e

bondosos, mas falarão de Hitler até o fim dos tempos

- falou olhando para baixo, como se quisesse

transmitir a mensagem para o amigo que não estava

por perto.

Victor vestia um sobretudo preto e luvas de

couro da mesma cor. Não percebia, mas estava tão

misterioso quanto o homem que queria matar. Vestido,

talvez, como um verdadeiro matador de vampiros.

Ajustou os óculos com a mão que segurava o

crucifixo e empurrou um portão enferrujado, cercado

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de um muro de pedra que logo começaria a cair aos

pedaços.

O morador não cuidava da casa, apenas de si

próprio.

A grama estava podre e as flores também. Um

dia, há muito tempo, deveria ser uma bela casa para se

morar. Agora, parecia-se mais com uma casa em que o

próprio Diabo gostaria de morar.

...

O caminho de pedras era repleto de ervas daninhas.

Victor queria sair correndo de lá, seu coração estava

apertado. Apenas não saía porque a raiva era maior

que o medo, sempre foi.

As paredes, já sujas, eram antes de um amarelo

bonito. As janelas marrons, mas agora com teias de

aranha e sempre fechadas, como era de se esperar. A

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porta, grande e majestosa, estava ainda limpa, ou, pelo

menos, mais limpa que o resto da casa.

Claro, à noite ele precisava sair para procurar

comida, e isso fazia a porta ser a única coisa útil lá.

Não era noite, mas também o sol não brilhava

no céu. Victor não sabia mais se entrava ou se batia na

porta, obrigando-o a sair de casa e encará-lo abaixo

das nuvens e acima dos germes da terra.

Victor pôs a mão na maçaneta circular e

razoavelmente transparente da porta e a empurrou.

Ouviu-se um longo rangido, alto o suficiente para

acordar os mortos que descansavam na terra. Ninguém

apareceu.

Nada de teias de aranha ou móveis cobertos por

um pano branco para não pegarem poeira, tudo estava

limpo até o último centímetro. Era como se o

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assassino tivesse um certo cuidado interior pela casa,

mas pouco ligava para o exterior.

Sendo um homem que não sai muito de casa,

porém vive dentro dela quase o dia todo, é até mesmo

compreensível tal cuidado.

O primeiro corredor, curto e pouco espaçoso,

parecia ter sido recentemente lustrado, com as paredes

lisas e de um marrom bonito. Ao lado da porta de

entrada, um grande Lírio-da-Paz com suas folhas

ainda repletas de pequenas gotículas de água. A terra

fofa por conta do banho que a planta recentemente

recebeu.

No chão, o carpete era marrom-claro e possuía

um padrão de triângulos, com a intersecção entre eles

sendo de um marrom mais escuro que o da madeira

das paredes. Não era felpudo, mas belo. Bem ajeitado

no chão e limpo.

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– Preciso admitir – Victor disse para si mesmo

–, ele até que tem bom gosto!

A sala principal, logo depois do corredor, era

grande e a beleza dos móveis antigos permanecia.

Num dos cantos, um piano branco muito bem

cuidado. Nas paredes, belas pinturas que, se

verdadeiras, custam milhões de reais.

Mais plantas em alguns cantos, desta vez eram

Palmeira-Ráfias, plantadas em um vaso branco e

enfeitavam a sala. O piso também era liso e outro

carpete, agora com um padrão diferente, losangos.

A cada passo dado, a casa gemia, parecia querer

que ele fosse embora, mas o homem não obedecia.

Nenhuma outra alma viva, a única respiração

ouvida era a dele, e estava acelerada.

Embora maravilhado, seu medo começara a dar

pontadas em seu coração. A raiva não era mais

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suficiente para o fazer continuar, mas, por persistência,

continuou mesmo assim.

Outro corredor, outra sala. Tudo ainda muito

bem decorado, à maneira medieval. Embora belo,

vazio. Havia camas em todos os quartos, claro, mas

Victor sabia que não era uma cama o que ele

procurava.

Não, aquele assassino era diferente. As camas,

embora bem-feitas, eram visivelmente não usadas

havia anos. Décadas, talvez. Céus, talvez até mesmo

séculos.

Em que época viveu aquele vampiro maldito?

Sua mulher teria adorado aquela casa, insistido

em conhecer o dono. Ficou feliz por um instante, por

se lembrar dela, então lembrou-se que estava na casa

de seu assassino. O pesar voltou ao coração.

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Segurou a estaca de madeira com mais força.

Sua mão, agora vermelha, doía. Na outra, segurava o

crucifixo pelo colar de pedras brancas pequenas,

parecidas com minúsculas pérolas.

O quarto que procurava era o único a não ter

uma lâmpada, ou ser belo. Era escuro e frio.

Primeiramente, Victor sentiu na pele a sensação da

morte, porém não da própria, e sim da dele. Sabia, do

fundo de seu coração, que era lá onde ele estaria. No

fundo do quarto, dormindo em pé, no escuro mais

escuro, apenas esperando pela próxima vítima.

Baixou os olhos e viu as pegadas vermelhas que o

levaram à casa.

– Maldito – falou alto sem querer, porém

nenhum movimento foi ouvido.

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Não entrou no quarto de primeira. Precisou

antes ir até certa parte do corredor, pegar uma das

velas do candelabro de parede que iluminava aquela

área.

A única área que parecia não ter evoluído com o

tempo. A única área que parecia realmente ser da casa

que pertencia a um vampiro. O maldito vampiro.

Andava e tomava cuidado para não queimar

suas mãos com a cera que escorria pelo corpo branco

da vela longa. Com habilidade, segurava o crucifixo na

mesma mão da vela.

Manejou chegar em frente a porta, que já não

estava mais lá, era apenas o batente podre. A chama

pobremente iluminava uma pequena parte do local.

– Claro que não pensei em pegar uma lanterna

– e uma lanterna teria sim sido muito melhor.

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Daquela maneira, precisaria entrar no quarto

para saber se ele estava lá. E isso era algo que Victor

não queria fazer, nem em um milhão de anos. Mas fez,

por elas.

A chama piscava, como uma lâmpada

defeituosa. O quarto se iluminava por pouco e voltava

à escuridão. O coração de Victor dava saltos a todo

momento.

Aquele lugar sim fazia jus ao exterior feio da

casa. Teias de aranhas e poeira por toda a parte. Era

aquilo mesmo que ele esperava ter encontrado ao

entrar na casa. Finalmente achou o que queria, mas

não estava feliz. Nem um pouco.

Mais candelabros não usados e sem velas

jogados sobre uma mesa de madeira clara e de pernas

cobertas por teia. Andou e tropeçou em quadros ainda

mais antigos dos que os da sala principal, agora tão

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malcuidados que seria difícil vendê-los por mais de

cinco reais.

Achou novamente o que procurava, e

certamente não ficou feliz. Levou um susto e

cambaleou para trás. O caixão em pé era bem cuidado,

porém assustador. Bonito em sua estrutura, mas feio

por conta das teias de aranha que enfeitavam a parede

atrás dele.

Dessa vez sim, fez barulho demais.

Um riso profundo ecoou pelo quarto. Era uma

voz grossa e de deboche. Victor apertou ambos os

objetos contra seu peito. A vela caíra no chão, e agora

produzia formas diabólicas nas paredes. Sua luz quase

fora extinguida, mas, por sorte ou azar, conseguiu ver

que o vampiro começara a abrir seu caixão.

– Chame-me de Cornélio – falou a voz, o

caixão ainda abrindo, enquanto rangia. O interior, até

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então, completamente escuro. Pôde ver que o vampiro

acordara para ele, mas não o via se despertar e

observar-lhe com seus olhos de assassino.

– Cornélio – concordou, falou em um sopro.

Brandiu sua estaca como se fosse uma espada e o

maldito começara a lentamente aparecer, sua face

sendo iluminada pela tênue chama da vela caída.

– Mate-me, então. Vamos ver quem é mais

forte: o pobre humano ou o terrível imortal.

– Você as matou – falou, olhando-o diretamente

no olho escuro. – E agora é a hora da minha vingança.

Atacou-o tal como um guerreiro ataca outro,

mas eles não estavam numa arena. E tampouco a luta

era justa. Cornélio agarrou-o pelo braço e impediu seu

ataque. Sua força era a de mil homens, mas Victor não

desistiu. Não ainda.

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– Não sou um assassino – gritou como se fosse

uma ameaça. – Sou um sobrevivente. E agora é hora

sobreviver.

Andou até o indefeso homem, que tentara uma

nova chance, agora com o crucifixo. Brandiu-o tal

como muitos outros homens antes o brandiram, como

uma arma que servia para matar.

Funcionou, um pouco. A imagem do homem

preso ao objeto parecia ácido para os olhos e pele do

vampiro, que se contorceu todo e grunhiu para Victor.

Ele ainda apontava o crucifixo para ele.

Cornélio se levantou rapidamente, agarrando a

mão com o crucifixo, enquanto gritava de dor, jogou-o

no chão.

– Maldito! – rugiu novamente, passando a mão

no rosto como isso fosse curá-lo.

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– Assassino! – Victor gritou com ainda mais

força, golpeando com a estaca e mirando o coração

negro do vampiro.

O maldito o parou logo no último momento,

com a ponta encostando apenas na superfície de sua

roupa preta e em farrapos.

– Não é minha culpa se deixas aquelas por

quem tem afeição desprotegidas. Se não fosse eu, seria

um reles ladrão qualquer, procurando por preciosas

onde certamente não encontraria.

Jogou-o e ele caiu no chão. Victor derrubara

também a estaca, estava longe demais para tentar

pegá-la.

Olhou para o vampiro com olhos raivosos.

– A culpa é sua e apenas sua. Assassino é aquele

que mata o outro sem dó nem piedade, um ser sem

alma ou coração, que tem prazer ao ver o sofrimento

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alheio. É isso o que você é, Cornélio. Ela gritava sem

parar, e você não parava. E não pôde simplesmente

acabar com ela, não. Ainda não estava satisfeito. Foi

quando a criança cometeu o erro de aparecer em seu

campo de visão. Um ser como você não distingue certo

do errado. Ela era apenas uma criança!

Arrastou-se até o crucifixo e agarrou-o com

força, pondo-se em pé num pulo rápido, agarrando a

roupa do vampiro e puxando-o para perto de si.

– Você as matou. E essa é a minha vingança! –

repetiu e fez o vampiro vestir o crucifixo, as pérolas no

pescoço, o homem Jesus sobre o peito.

Ele gritou em dor e, desta vez, a dor parecia ser

excruciante, queimando todo seu ser. O vampiro

tentou agarrá-lo novamente, mas não conseguiu, pois

Victor correu para outra parte do quarto.

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Tentou tirar o crucifixo de seu pescoço,

puxando-o pelas minúsculas pérolas, e foi queimado

novamente. Caiu de joelhos e o grito não acabava,

olhou para Victor com olhos de assassino, e virou pó.

Caiu até a última partícula ao chão e, com isso,

apagou a chama da vela e o quarto, antes com

iluminação tênue, se encontrava na completa escuridão

novamente.

Victor acordou em sua cama com um sorriso no rosto,

mas foi por pouco tempo. Demorou consideráveis

segundos para perceber que nada daquilo realmente

ocorrera. Era apenas outro sonho, outro sonho onde

matava o assassino.

Chorou pela primeira vez naquele dia.


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