Para além da religiosidade: Estado e Igreja entre desafios e
possibilidades no Estado Democrático de Direito
Jéssica Renata Gomes Perez1
Rosely A. Stefanes Pacheco2
Resumo
Tema de constante interesse ao longo da história, a religião e os outros institutos
que a perpassam, como, por exemplo, a igreja e a liberdade, estão recebendo cada
dia mais atenção e interesse, não somente no ambiente acadêmico, mas na
sociedade de modo geral. A religião, ao contrário do que já foi prognosticado,
continua em evidência. Aliás, ela está presente entre os temas centrais dos debates,
especialmente no que diz respeito às leituras críticas do papel público e político das
religiões. Nesse sentido, este trabalho tem entre seus objetivos discutir o tema da
liberdade religiosa e a dignidade da pessoa humana, quando esta é afrontada por
decisões internas no âmbito das igrejas. Para a elaboração deste trabalho, adotou-
se a pesquisa bibliográfica, com a leitura de obras de diversas áreas do
conhecimento, bem como a utilização de jurisprudências e periódicos que versam
sobre o tema.
Palavras chave: Liberdade religiosa; Estado Democrático de Direito; intervenção;
inafastabilidade da jurisdição.
1 Aluna do 5º ano de Direito da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, [email protected] 2 Orientadora, Doutoranda em História UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados); Aluna do Programa para Doutorado em Direito UBA (Universidad de Buenos Aires); Membro do Centro de Pesquisa CEPEGRE, UEMS, CNPQ, Professora da UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), Curso de Direito, [email protected]
Considerações iniciais
A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os
mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a
qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir (Arendt, 2001).
A religião, ao contrário do que já foi prognosticado, parece não ter perdido o
interesse tanto acadêmico, quanto político, social ou cultural. Aliás, ela está presente
entre os temas centrais destes debates, especialmente no que diz respeito à leitura
crítica do papel público e político das religiões.
Conforme destaca Boaventura de Souza Santos (2013), a reivindicação da
religião como elemento constitutivo da vida pública é um fenômeno que tem
assumido uma importância crescente nas últimas décadas.
A afirmação de que vivenciamos hoje uma secularização em que não há
espaço para o sagrado mostra-se extremamente precária e temerária. Portanto, não
é possível sustentarmos a existência de um mundo hermeticamente fechado à
influência religiosa.
Segundo Karen Armstrong (2001):
Essa revivescência religiosa tem surpreendido muitos observadores. Em
meados do século XX acreditava-se que o secularismo era uma tendência
irreversível e que nunca mais a fé desempenharia um papel importante nos
acontecimentos mundiais [...] Contudo, no final da década de 1970, os
fundamentalistas começaram a rebelar-se contra a hegemonia do
secularismo e a esforçar-se para tirar a religião de sua posição secundária
e recolocá-la no centro do palco. Ao menos nisso tiveram extraordinário
sucesso. A religião voltou a ser uma força que nenhum governante pode
ignorar impunemente.
Atualmente é possível citar inúmeros exemplos de assuntos polêmicos que
estão vinculados à religião, ou melhor, a Igreja. Segundo Rouanet (2009),
hodiernamente, a leitura dos jornais nos demonstra que a religião está mais viva do
que nunca, não apenas nas suas formas “civilizadas”, mas, também, em sua
variante mais perversa: a fundamentalista.
A Constituição Federal de 1988 assegura a liberdade religiosa, declarando ser
“inviolável a liberdade de consciência e de crença, e assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e
suas liturgias”. Além disso, consagra a separação entre Igreja e Estado (CF, art. 19,
inciso I), delegando uma autonomia às organizações religiosas.
José Afonso da Silva (2003), ao estudar o assunto, divide a liberdade religiosa
em três categorias: (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de culto; (c) a liberdade
de organização religiosa. Segundo Samuel Luz (2014, p.14):
A liberdade é o único vínculo comum entre as pessoas. Sem liberdade não
se pode ser, nem crer. Nem deixar de crer, se a opção pessoal não for ter
crença nenhuma [...]. Enfim, liberdade é o clamor de todo ser humano.
Hoje, a liberdade religiosa é um direito fundamental consagrado nas
constituições democráticas de vários Estados e nos principais tratados
internacionais de direitos humanos. Assim, não é apenas um direito natural, sem
força jurídica vinculativa. É uma realização sem a qual não poderia ter a paz social,
nem associação harmoniosa entre os vários grupos religiosos existentes na
sociedade, incluindo ateus e agnósticos.
De acordo com Bastos (2010), apud Ferreira e Santos (2014), a liberdade de
crença é a possibilidade de escolha que o indivíduo tem para aderir a uma religião,
ou desistir de segui-la, trata-se de um foro íntimo.
Já o direito de culto garante que os cidadãos possam manifestar suas crenças
livremente, podendo externar suas convicções e materializá-las.
A liberdade de organização religiosa diz respeito à possibilidade de
estabelecimento e organização de igrejas e suas relações com o Estado. Visa
assegurar a realização da finalidade da entidade religiosa, garantindo o direito à
abstenção de interferência por parte do poder público.
Frente a essa ampla liberdade conferida às organizações religiosas, vários
conflitos acabam surgindo, dentre eles: processos atinentes à relação entre as
entidades religiosas e seus membros, notadamente no que diz respeito ao exercício
da disciplina eclesiástica e às condições de admissão/expulsão dos fiéis. Assim,
com base no princípio da inafastabilidade da jurisdição, o Poder Judiciário é
constantemente acionado para resolver conflitos entre cidadão(ã) x igreja.
Quando o judiciário é acionado para resolver lides entre fiéis e igreja, surge,
na verdade, um conflito de interesses. De um lado tem-se o princípio da
inafastabilidade da jurisdição, porém, de outro lado tem-se a laicidade estatal, que
prevê a não interferência deste em assuntos religiosos.
Diante do exposto, entende-se que é necessário evidenciar os conflitos
existentes entre Estado e Igreja. E, com base em decisões judiciais recentes sobre
o tema, verificar qual é o ponto de equilíbrio que deve existir entre os interesses dos
fiéis e o direito a liberdade ou autodeterminação das religiões.
Decisões judiciais: conflitos entre a dignidade da pessoa humana e a liberdade
religiosa
Com o intuito de discorrer sobre os conflitos existentes entre a liberdade
religiosa (autodeterminação) e a dignidade da pessoa humana, torna-se importante
esclarecer o que se entende sobre esta última.
Indispensável à configuração do Estado, a dignidade da pessoa humana está
elencada como princípio fundamental no art. 1º, inciso III da Constituição Federal de
1988. Ingo Wolfgang Sarlet (2011) preconiza ser a dignidade da pessoa humana em
sua completude:
[...] qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que
o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e
da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e
qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além
de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que
integram a rede da vida.
Hodiernamente, a tendência dos ordenamentos jurídicos é possibilitar ao ser
humano o exercício de suas atividades cotidianas com dignidade. De um modo
geral, a atual sociedade desaprova atos que atentem contra o ser humano.
Por certo, em um Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa
humana deverá ocupar posição de destaque no ordenamento jurídico, sendo um
norte para todos os ramos do direito, seja ele público ou privado.
Deste modo se por um lado temos destacado a dignidade da pessoa humana,
por outro a Carta de 1988 também garante o direito à liberdade religiosa, de maneira
ampla, pois abarcou a proteção à consciência, à crença, ao culto e às suas liturgias,
incluindo, principalmente a autonomia das organizações religiosas3, além de marcar
limites à interferência do Estado nas questões sagradas.
Deste modo à auto-organização garante às instituições religiosas a autonomia
de regulamentação e ordenação de seus atos, isto é, liberdade para estabelecer
estatuto jurídico sem estar vinculado a procedimentos ordenados pelo Código Civil,
diferentemente das demais pessoas jurídicas (associação, fundação, sociedades
dentre outras). Logo, a entidade religiosa terá ampla liberdade de estabelecer regras
para admissão e exclusão dos membros, bem como, a forma de distribuição de
poder interno e a criação de vários órgãos internos (Santos Júnior, 2008). 3 Importante destacar que a expressão organização religiosa pode ser tomada, também, como expressão sinônima de entidade religiosa, agremiação religiosa ou instituição religiosa. Usamos essa acepção quando dizemos que as igrejas são organizações religiosas. No entanto, quando tratamos de liberdade de organização religiosa, o sentido que atribuímos à expressão é outro. Organização religiosa designa, então, o modo de constituição e funcionamento das entidades religiosas (Santos Júnior, 2007).
Os mais variados exemplos de conflitos existentes entre o Estado e a Igreja,
no século XXI, são oferecidos por decisões judiciais que, apreciando conflitos entre
organizações religiosas e seus associados, impõem àquelas a prática de atos que
se situam no espectro das atividades estritamente religiosas. Nessas situações
entram em colisão os direitos fundamentais do cidadão e a liberdade religiosa
coletiva.
Inicialmente, pode-se citar o caso de um fiel que foi excluído da Igreja
Baptista Vila Libaneza, localizada em São Paulo, em razão de sua orientação
sexual, pelo pastor que encontrava-se no comando da referida Igreja. O autor
interpôs uma ação de indenização por danos morais, alegando que o ministro da
igreja excedeu os limites de uma mera admoestação de cunho religioso, ofendendo
sua vida privada, honra e imagem. O requerido, inconformado com a decisão de
primeiro grau, que o condenou ao pagamento de R$ 10.000,00 de indenização por
danos morais, interpôs apelação no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
tendo este reduzido para o valor de R$ 3.000,00. Segundo exposto na decisão do
TJSP:
[...] por toda prova analisada, restou evidente que a exclusão do autor se
deu em virtude da sua homossexualidade. Poderia se argumentar que a
opção sexual do autor não é adequada aos dogmas e preceitos da Igreja
Baptista da Vila Libanesa. Porém, ainda que fosse assim, a sua exclusão
não poderia ter ocorrido da forma como se deu. Vale destacar que o autor
foi submetido a situação de constrangimento em 03 oportunidades:
primeiro, quando foi inquirido perante seus parentes acerca da sua opção
sexual e lhe concedido prazo para 'ser ajudado'; segundo, quando houve
votação pela diretoria da igreja; e, terceiro, quando a assembleia teve
ciência da sua exclusão, anunciada de púlpito pelo réu.” (TJ-SP - APL:
1172589020078260000 SP 0117258-90.2007.8.26.0000, Relator: Egidio
Giacoia, Data de Julgamento: 25/10/2011, 3ª Câmara de Direito Privado,
Data de Publicação: 26/10/2011).
No caso em tela, pode-se indagar se a liberdade religiosa pode ser
considerada de caráter absoluto, uma vez que a “ humilhação” sofrida pelo
homossexual ou mesmo o estímulo à intolerância e à violência não podem ser
admitidos em nosso ordenamento jurídico, pois na legislação brasileira, já existem
normas que criminalizam condutas consideradas violentas e humilhantes.
Outro caso conflitante apreciado pelo Poder Judiciário foi uma ação de
ressarcimento de danos que foi interposta por um fiel que realizou doações mediante
promessa de cura divina. Argumentou-se que a apreciação judicial do presente caso
é uma intervenção à liberdade de organização religiosa e uma restrição ao âmbito
de proteção da liberdade de culto, crença e liturgia. Trata-se de agravo contra
decisão de inadmissibilidade de recurso extraordinário que impugna o seguinte
acórdão:
RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANOS.
DOAÇÕES REALIZADAS MEDIANTE PROMESSA DE CURA. COAÇÃO
MORAL EXERCIDA POR DISCURSO RELIGIOSO. OCORRÊNCIA.
DANO MORAL IN RE IPSA. DEVIDAMENTE RECONHECIDO.
SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.
Recurso conhecido e desprovido [...]” (eDOC 58). No recurso
extraordinário, interposto com fundamento no artigo 102, III, a, da
Constituição Federal, aponta-se violação ao art. 5º, caput e inciso VI; e art.
19, I, do texto constitucional. Nas razões recursais, sustenta-se a proteção
constitucional à liturgia religiosa (eDOC 59, p. 4). Argumenta-se que [...] a
apreciação judicial do presente caso concreto é uma intervenção à
liberdade de organização religiosa e uma restrição ao âmbito de proteção
da liberdade de culto, crença e liturgia (eDOC 59, p. 5). Decido. A
pretensão recursal não merece prosperar. No caso, o acórdão impugnado
consignou o seguinte: “ [...] 4. No que tange a alegação de falta de prova
das doações, como bem ponderado pelo juiz a quo inexiste prova somente
em relação ao quantum doado pelo autor, entretanto, existem fortes
indícios de que as doações existiram. Ademais, há que se ponderar que é
praticamente impossível fazer prova das doações, posto que a mesma é
feita sem identificação do doador em envelopes depositados no altar da
igreja. Veja que a testemunha do autor afirmou que os pastores falam que
os fieis tem que dar tudo, carro, dinheiro na troca de uma vida melhor, se a
pessoa está enferma ela vai se curar, se está mal nos negócios irá
prosperar; [...]. Ainda, que o autor entregava dinheiro a igreja pelo fato dele
ser deficiente físico e que os pastores prometiam a cura (evento 30), o que
corrobora com a versão do autor. 5. Alega o recorrente que inexiste prova
nos autos que demonstre a ocorrência dos danos morais sofrido pelo
requerente. No entanto o dano moral, no presente caso resta configurado
in re ipsa, aquele que decorre do próprio fato ofensivo. Não se pode olvidar
que os apelos para que os fiéis realizem doações sob a promessa de
graças e benesses divinas, que não se concretizam causa um grande
abalo emocional, situação apta a ensejar tal reparação. (eDOC 58).
Verifico que, para se entender de forma diversa, faz-se imprescindível o
reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, providência
vedada na via do apelo extremo, consoante o Enunciado 279 da Súmula
do STF. Nesse sentido, o AI- AgR 783.269, Rel. Min. Joaquim Barbosa,
Segunda Turma, DJe 2.3.2011, cuja ementa dispõe: “ AGRAVO
REGIMENTAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS.
REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. ENUNCIADO 279 DA SÚMULA/STF.
AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. Para se chegar a conclusão
diversa daquela a que chegou o acórdão recorrido seria necessário
reexaminar os fatos da causa, o que é vedado na esfera do recurso
extraordinário, de acordo com o enunciado 279 da Súmula do Supremo
Tribunal Federal. Agravo regimental a que se nega provimento. Ante o
exposto, conheço do presente agravo para negar-lhe provimento (art. 544,
§ 4º, II, “ a” , do CPC). Publique-se. Brasília, 23 de novembro de 2012.
Ministro Gilmar Mendes Relator Documento assinado digitalmente.
(STF - ARE: 723638 PR , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de
Julgamento: 23/11/2012, Data de Publicação: DJe-237 DIVULG
03/12/2012 PUBLIC 04/12/2012)
Ademais, pode-se mencionar o caso de um agravo de instrumento que foi
prolatado no Tribunal de Justiça de São Paulo. Segundo consta no relatório da
decisão, os agravantes eram membros de uma igreja evangélica cuja doutrina é
marcada pelo fundamentalismo, ou seja, interpretação “literal” do texto bíblico, que
adotam como única regra de fé e prática. Criticavam e rejeitavam o movimento
evangélico pentecostal contemporâneo, pautado pela teologia da prosperidade, cujo
principal postulado é o do sucesso financeiro através da fé, e por manifestações
espirituais cuja procedência divina não reconhecem. Sustentavam que o agravado,
pastor titular e presidente da Igreja, passou a difundir tais conceitos e práticas, além
de excluir e admitir membros aleatoriamente, conforme sua conveniência. Por isso
pretendiam sua destituição do cargo. O TJSP então decidiu que, no presente caso, o
mais correto seria conferir à Assembleia da Igreja a autoridade para destituir o
pastor do cargo, nos termos do art. 17, caput e parágrafo 3º do Estatuto da referida
organização, a qual se reconheceria atribuição para exame dos estatutos e
observância dos princípios daquela agremiação religiosa. Veja a emenda do agravo:
Agravo de instrumento. Ação visando destituir o Agravado do cargo de
pastor e presidente da Igreja por desvio doutrinário. Questão que deve ser
resolvida pela Assembleia da Igreja, nos termos do Estatuto. Tutela
antecipada indeferida. Recurso desprovido.
(TJ-SP, Relator: Pedro Baccarat, Data de Julgamento: 08/06/2011, 7ª
Câmara de Direito Privado).
Outro exemplo relevante, ocorrido no ano de 2005, em Goiânia, expõe que
um casal propôs uma ação cautelar inominada, que tramitou na 4ª Vara de Família e
Sucessões, contra a 1ª Igreja Batista para que o Pastor fosse obrigado a realizar o
casamento no templo. Na ação, o casal alegou que o pastor da igreja se negara a
realizar o casamento, em razão de a noiva estar grávida, mesmo ela pertencendo ao
rol de membros. Segundo o argumento do pastor, a Igreja não poderia realizar o
matrimônio, pois houve infringência às suas doutrinas, que proíbe que casais
mantenham relações sexuais antes do casamento.
O juiz Jaime Rosa Borges negou o pedido sob o argumento que não existe na
lei civil disposição que obrigue a autoridade ou ministro religioso a celebrar o
casamento, de forma "que o ato fica na dependência da relação de conveniência
entre os contraentes e a autoridade eclesiástica". Frisou, ainda, que a 1ª Igreja
Batista de Goiânia tem motivo para não celebrar o casamento, e considerando que
tal motivo decorre de regras comportamentais moralmente ditadas pela religião às
quais está submetida, o Poder Judiciário não pode determinar a realização do ato,
sob pena de interferência ilegal nas relações privadas dos particulares (JUSBRASIL,
2006).
Todavia, dias após, o casal novamente buscou tutela junto ao Judiciário. A
ação tramitou na 12ª Vara Cível de Goiânia, sendo deferida a liminar, determinando
que a igreja realizasse o casamento dos noivos, mesmo tendo o casal infringido uma
norma doutrinária e teológica. O novo argumento apresentado pelo casal foi que
agora estavam habilitados ao casamento perante o Cartório de Registro Civil e de
Pessoas Naturais e Tabelionato de Notas da 4ª Circunscrição, e caso a cerimônia
não fosse realizada pela igreja, eles passariam por enorme sofrimento e prejuízos de
ordem material.
Ao deferir a liminar, o magistrado argumentou que a atitude da 1ª Igreja
Batista, ao se negar a realizar o casamento religioso, fere a Constituição e o Código
Civil, que estão acima dos dogmas religiosos. No dia da cerimônia, foi determinado o
arrombamento das portas do templo religioso para a realização do matrimônio.
Desta decisão pode-se destacar no mínimo dois posicionamentos. Primeiro o
que entende que:
A maneira como agiu o Estado, através do Poder Judiciário, efetivamente
extrapolou em suas funções, já que interviu em matéria que não é de sua
competência, mas, sim, da entidade religiosa, a única legitima em decidir
conflitos doutrinários que surgem em seu seio, notadamente a realização de
casamento. Veja, se a pessoa faz parte do rol de membros de uma igreja e
chega até se batizar, claramente ela aceitou as regras da entidade religiosa.
Se essa pessoa descumpre as regras, passível de sofrer as sanções
previstas no regulamento da entidade (Reis e Costa, 2015, p.15).
E prossegue:
Essas intervenções do Estado afrontam a liberdade de organização religiosa
e, de outro lado, fere o sentimento religioso dos demais membros que
aceitaram a seguir as regras impostas pela entidade religiosa, o que acaba
por representar uma discriminação, às avessas, praticada pela autoridade
judicial. (Reis e Costa, 2015, p.15).
Santos Junior (2008), também acompanha esse pensamento quando destaca:
Se uma organização religiosa tem regras para a celebração de matrimônio de
seus fiéis e recusa-se a celebrar um casamento pelo desatendimento de tais
regras, não há aí tratamento discriminatório. Quem age discriminatoriamente
é a autoridade judicial que ordena a celebração de um casamento em
desacordo com as regras da comunidade religiosa, pois está conferindo a
quem buscou a tutela judicial um tratamento desigual em relação aos demais
membros da organização. Se o ordenamento jurídico da instituição religiosa
não socorre aos nubentes, nem por isso eles estarão impedidos de ter seu
casamento civil celebrado pela autoridade judicial, direito que o ordenamento
estatal lhes garante (SANTOS JUNIOR, 2008, p. 54).
Contrapondo-se a esses entendimentos não podemos esquecer-nos de
destacar o papel que os rituais desempenham tanto na vida das pessoas quanto na
legitimação da religiosidade. Portanto, o ritual cumpre uma função importante nessa
tarefa: como “modos de ação determinada” que expressam, objetivamente, as
crenças internalizadas das religiões (Durkheim, 1996, p.194).
A noção de ritual veio a se tornar uma categoria de análise no século XIX no
âmbito da antropologia e da religião devido às inúmeras pesquisas de campo
realizadas pelos antropólogos em diversos continentes. De um modo geral, entende-
se o ritual como um sistema cultural e religioso de comunicação simbólica,
4 Historicamente, é importante enfatizar a visão de Durkheim que coloca o rito numa condição estritamente social religiosa, isto é, no que diz respeito a relação com o sagrado. Hoje, no entanto, não devemos reduzir a prática ritualística apenas ao campo do sagrado, ou seja, da relação ser humano com o transcendente, situações que dizem respeito ao cotidiano “profano” também são ritualizadas, como é o caso do trabalho e da política.
elaborado com certas sequências ordenadas e padronizadas de silêncio, palavras e
atos normalmente expressos por múltiplos meios que possuem conteúdos variados.
Os rituais emprestam formas convencionais e estilizadas para organizar
certos aspectos da vida social. Podem-se elencar vários ritos de passagem, ritos
estes relacionados às mudanças mais significativas pelas quais passamos em
nossas vidas: nascimento, entrada na vida adulta, casamento, morte. Estes quatro
acontecimentos são marcados por rituais em quase todas as culturas e, num certo
sentido, “simbolizam uma iniciação” (V. Hellern, H. Notaker, J. Gaarder, 2004). Ou
seja, é na prática ritualística que certas religiões dão sentido às vivências e têm sua
caracterização de mundo sendo operacionalizada e absorvida pelos indivíduos.
Para além da religiosidade
Boaventura (2013) nos orienta que, “para o bem e para o mal, a religião
nunca abandonou o domínio público”. Se de um lado a religião contribuiu para a
legitimação da ordem colonial, para a dominação cultural, simbólica, espiritual e
epistemológica de inúmeros povos, ela sempre serviu de inspiração e motor para a
luta contra a dominação, protagonizada por grupos e movimentos pertencentes a
esses mesmos povos.
Assumindo-se que a religião “apenas existe como uma imensa variedade de
religiões” (2013, p. 119), o diálogo entre elas, nasce em prol das lutas pela dignidade
humana, a ser desenvolvido mais do que até aqui, pode funcionar “como uma
memória e um campo de experimentação para diálogos mais amplos, envolvendo
concepções religiosas e não-religiosas da dignidade humana” (2013, p. 120).
E, para pensar além da religiosidade devemos considerar a (re)apropriação
da religião no espaço público, e esta tende a propiciar o que discurso racional nos
impede de ver, ouvir e sentir. Ela permite, segundo (Souza Santos 2013) preencher
os entre lugares do diálogo intercultural onde a presença precede o sentido; o
sofrimento humano é tão imenso que não pode ser expresso em palavras, mas
apenas compartilhado no encontro de corpos; onde o sentido de comunidade pode
resgatar o conteúdo ético que o individualismo moderno negou.
Considerações finais
A Constituição Federal de 1988 é um marco. Um marco simbólico que
(re)inventa a nossa cidadania. Representa um momento especial, pois abandona o
sistema autoritário anterior, e trata de implementar um novo referencial
constitucional, democrático, afastando os comandos anteriores que conduziram ao
estabelecimento de um sistema antidemocrático e opressor. E, nesse construir teve
entre seus fundamentos a pluralidade.
Nesse processo de liberdades e garantias, a Constituição Federal de 1988
concedeu um rol de liberdades às organizações religiosas, garantindo-lhes a livre
organização de seus estatutos. Em razão dessas liberdades, atualmente, o Poder
Judiciário é constantemente acionado para resolver conflitos entre fiéis x Igreja.
Ocorre que, a jurisprudência brasileira ainda não possui um posicionamento
unificado sobre o assunto. É preciso delimitar os principais temas nos quais são
necessários a intervenção do Estado.
Na constituição das organizações religiosas, estas devem observar que as
doutrinas e suas liturgias não podem afrontar o direito à dignidade da pessoa
humana, porém, com base na laicidade estatal, também não se pode admitir que o
Estado “retire” a autonomia dessas religiões. Nessas situações entende-se que
entram em colisões os direitos fundamentais do cidadão(ã) e a liberdade religiosa
coletiva.
Desta maneira, é importante destacar que o Estado não pode obstar uma
prática religiosa ou discriminar alguém por motivos religiosos, pois a laicidade do
Estado, proclamada desde a instauração da República, tem o escopo de ampliar o
espaço conferido ao fenômeno religioso, sempre que forem invocadas pelos
cidadãos as garantias legais.
Em relação à autodeterminação das organizações religiosas, ela vem atender
a demanda por um pluralismo religioso existente no país, visando, principalmente, a
proteger os grupos de confissões minoritárias que podem encontrar certa resistência
do Estado e até mesmo da sociedade em instituir e propagar suas liturgias devido à
contrariedade do defendido pela ampla maioria. Porém, essa livre determinação não
se mostra absoluta, já que aquela religião que instituir rituais que afrontem o direito à
vida e à universalidade dos valores da dignidade humana, certamente à sua criação
não poderá ser admitida pelo Estado.
Portanto, uma vez que a religião passa a ocupar lugar de destaque no
cotidiano das sociedades, um elemento constitutivo da vida pública, um fenômeno
que tem assumido uma importância crescente nas últimas décadas, é necessário
encontrar um ponto de equilíbrio entre os interesses dos fiéis e o direito à liberdade
religiosa ou autodeterminação, uma vez que a modernidade enquanto projeto de
uma sociedade emancipadora, tem entre seus postulados, a dignidade da pessoa
humana, a democracia e a autonomia do cidadão(ã).
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