Pesquisas emPsicologia ePoliacuteticasPuacuteblicasDiaacutelogos na poacutes-graduaccedilatildeo Volume 1 1ordf Ediccedilatildeo
Mariana Priol i CordeiroMaria Fernanda Aguilar LaraHenrique Araujo AragusukuRodolfo Luis Almeida Maia(Organizadores)
Satildeo PauloPsicologiaUSP
Universidade de Satildeo Paulo2019
Pesquisas em Psicologia e
Poliacuteticas Puacuteblicas
Diaacutelogos na poacutes-graduaccedilatildeo
Volume 1
Mariana Prioli Cordeiro
Maria Fernanda Aguilar Lara
Henrique Araujo Aragusuku
Rodolfo Luis Almeida Maia
(Organizadores)
DOI 10116069788586736926
1
E permitida a reproduccedilatildeo parcial ou total desta obra desde que citada a fonte e autoria
proibido qualquer uso para fins comerciais
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo
Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo
Pesquisas em psicologia e poliacuteticas puacuteblicas organizado por Mariana Prioli Cordeiro [et al] ‐ Satildeo Paulo IPUSP 2019 298 p (Diaacutelogos na Poacutes‐Graduaccedilatildeo v1) ISBN 978-85-86736-92-6 DOI 10116069788586736926 1 Psicologia social 2 Pesquisa cientiacutefica 3 Poliacuteticas puacuteblicas I Tiacutetulo HM 251
2
UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO
Reitor Vahan Agopyan
Vice reitor Antonio Carlos Hernandes
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Diretora Marilene Proenccedila Rebello de Souza
Vice diretor Andreacutes Eduardo Aguirre Antuacutenez
CONSELHO EDITORIAL
Profa Dra Adriana Marcondes Machado
Prof Dr Arley Andriollo
Prof Dr Danilo Silva Guimaratildees
Profa Dra Marina Ferreira da Rosa Ribeiro
Profa Dra Miriam Debieux Rosa
Prof Dr Nelson Ernesto Coelho Junior
Prof Dr Rogeacuterio Lerner
3
Sumaacuterio
Apresentaccedilatildeo 5
Maria Fernanda Aguilar Lara Henrique Araujo Aragusuku Rodolfo Luis Almeida
Maia e Mariana Prioli Cordeiro
1 Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre atores estatais e
natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas 10
Joseacute Fernando Andrade Costa
2 A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC e Estado 30
Maria Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro
3 Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia
Social a mulheres idosas 50
Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro
4 A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de um jovem em
cumprimento de medidas socioeducativas 66
Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado Maders e Maria Chalfin
Coutinho
5 Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura como
disparadores de anaacutelise 86
Beatriz Saks Hahne e Adriana Marcondes Machado
6 A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em SAICAs de Osasco
103
Andrielly Darcanchy de Toledo e Mariana Prioli Cordeiro
7 A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a poliacutetica de
Assistecircncia Social 128
Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol
8 Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento Maceioacute litoral do
Cearaacute 148
Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt
9 O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz 168
Patriacutecia Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado
4
10 Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise socioconstrucionista sobre a
construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa Ensino Integral (PEI) 189
Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro
11 A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado hospitalar
pediaacutetrico 210
Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo Daniela Barros da Silva Freire Andrade e
Adriana Marcondes Machado
12 Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo questotildees de
gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil 230
Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina
Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini
Santos Paula Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli
13 Algumas contribuiccedilotildees da Psicologia para o campo da Sauacutede do Trabalhador 251
Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol
Bernardo e Mariana Pereira da Silva
14 Mulheres e Mineraccedilatildeo contribuiccedilotildees da Psicologia Social no campo das poliacuteticas
puacuteblicas 273
Paula Sassaki Coelho
Sobre asos autorases 291
Pareceristas 297
5
Apresentaccedilatildeo
Maria Fernanda Aguilar Lara
Henrique Araujo Aragusuku
Rodolfo Luis Almeida Maia
Mariana Prioli Cordeiro
No Brasil as relaccedilotildees entre a Psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas satildeo complexas e
multifacetadas e natildeo existe um uacutenico modo de compreendermos essa questatildeo Ao realizarmos
uma breve busca nos bancos de dados acadecircmicos utilizando de forma combinada esses dois
descritores constatamos que haacute uma vasta literatura em Psicologia que trata sobre a temaacutetica
das poliacuteticas puacuteblicas em suas diversas aacutereas ndash como na sauacutede educaccedilatildeo assistecircncia social
seguranccedila puacuteblica direitos humanos entre outras Estes textos foram produzidos a partir de
distintas perspectivas analiacuteticas e mobilizam muacuteltiplos repertoacuterios teoacutericos conceituais e
metodoloacutegicos de pesquisa e intervenccedilatildeo Foram escritos principalmente por psicoacutelogosas
ainda que em algumas publicaccedilotildees constatamos a participaccedilatildeo de profissionais de outros
campos Psicoacutelogosas com diferentes tipos de formaccedilatildeo profissional atuando a partir de
distintas localidades e aacutereas em um paiacutes de tamanho continental marcado por uma grande
diversidade geograacutefica institucional e sociocultural
Poderiacuteamos dizer que para discutirmos as relaccedilotildees entre esses dois ldquocamposrdquo teriacuteamos
de nos perguntar o que eacute a Psicologia E o que satildeo poliacuteticas puacuteblicas Como se estabelecem
as conexotildees entre ambas No entanto essas perguntas que em princiacutepio parecem simples (e ateacute
ingecircnuas) natildeo satildeo nada faacuteceis de responder Afinal as palavras ldquoPsicologiardquo e ldquopoliacuteticas
puacuteblicasrdquo funcionam como termos guarda-chuvas que aglutinam uma seacuterie de conceitos e
sistemas de representaccedilatildeo (ontologias epistemologias e teorias) estando permeadas por
contradiccedilotildees conflitos e polissemias Isto eacute natildeo eacute possiacutevel estabelecer uma uacutenica verdade sobre
esses termos e seus sentidos Prova disso eacute que em muitos momentos vemos que os estudos
em Psicologia trabalham as poliacuteticas puacuteblicas a partir de linguagens diferentes que pouco
dialogam entre si
De forma geneacuterica a Psicologia pode ser compreendida como um campo disciplinar
institucional e profissional autocircnomo Poreacutem essa definiccedilatildeo natildeo daacute conta da complexidade de
6
sua natureza e funccedilatildeo enquanto campo do conhecimento Trata-se de uma aacuterea da sauacutede da
educaccedilatildeo das ciecircncias sociais das ciecircncias do comportamento Seu objeto eacute a mente a psique
o comportamento o social a cultura Por outro lado em termos gerais as poliacuteticas puacuteblicas
podem ser compreendidas como as accedilotildees promovidas pelo poder puacuteblico (Judiciaacuterio Executivo
e Legislativo) nas mais diversas aacutereas de atuaccedilatildeo No entanto o poder puacuteblico se manifesta
unicamente pela via estatal As poliacuteticas puacuteblicas satildeo apenas accedilotildees estruturadas e de longo
prazo ou seriam todas as accedilotildees (fragmentaacuterias de curto e meacutedio prazo) promovidas pelo poder
puacuteblico Como a esfera privada se relaciona com as poliacuteticas puacuteblicas
Neste sentido acreditamos que eacute de fundamental importacircncia a proposiccedilatildeo de diaacutelogos
e aproximaccedilotildees entre as vaacuterias abordagens que constituem esse campo ndash compreendendo que
existem diferentes formas de conceituaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas e de definiccedilatildeo dos ldquoobjetosrdquo e
ldquoobjetivosrdquo da Psicologia Cabe ressaltar que natildeo se trata de estabelecermos uma uacutenica verdade
sobre o que eacute um estudo em ldquoPsicologiardquo sobre ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo mas sim de pensarmos
como estes dois campos podem se relacionar a partir de diferentes olhares espaccedilos
temporalidades e perspectivas
A proposta de construccedilatildeo desta coletacircnea surgiu a partir dessas inquietaccedilotildees recorrentes
em diversos espaccedilos de diaacutelogo e reflexatildeo acadecircmica Inquietaccedilotildees que apontam para a
necessidade de discutirmos as diferentes abordagens teorias e metodologias utilizadas em
pesquisas sobre o tema Para alcanccedilar esse objetivo optamos por enfocar pesquisas receacutem
realizadas (ou em fase de conclusatildeo) no acircmbito dos programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia
Esta escolha foi motivada fundamentalmente pela necessidade de dar visibilidade a pesquisas
de mestrado e doutorado que trataram a temaacutetica das poliacuteticas puacuteblicas a partir dos referenciais
da Psicologia estabelecendo tambeacutem pontes de diaacutelogo e aproximaccedilotildees entre distintos aportes
Notamos que a maioria das pesquisas desenvolvidas no acircmbito da poacutes-graduaccedilatildeo ficam
restritas aos formatos de teses e dissertaccedilotildees natildeo sendo publicadas em versotildees resumidas como
artigos capiacutetulos e ensaios que facilitam a circulaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo do conhecimento
acadecircmico Em conversas entre estudantes da poacutes-graduaccedilatildeo do IPUSP satildeo frequentes os
relatos sobre as dificuldades que perpassam a publicaccedilatildeo de artigos em perioacutedicos cientiacuteficos
tendo em vista a falta de estrutura profissional (em relaccedilatildeo agrave vida acadecircmica) para a elaboraccedilatildeo
e submissatildeo dos textos e o longo processo de avaliaccedilatildeo e editoraccedilatildeo dos perioacutedicos Por outro
lado osas estudantes tambeacutem relatam que sentem a necessidade de publicar suas pesquisas em
formato de artigo tanto para a melhoria de seus curriacuteculos quanto pela circulaccedilatildeo e
compartilhamento dos resultados produzidos ao longo de anos de estudo
7
Somado a isto natildeo podemos deixar de mencionar o momento poliacutetico que enfrentamos
no Brasil no que concerne agrave poacutes-graduaccedilatildeo Temos presenciado e sentido as medidas
sancionadas pela atual gestatildeo do Governo Federal que reduzem significativamente o nuacutemero
de bolsas destinadas a pesquisas de poacutes-graduaccedilatildeo Ateacute setembro de 2019 foram cortadas
aproximadamente doze mil bolsas da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel
Superior (Capes) Concomitantemente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientiacutefico e
Tecnoloacutegico (CNPq) informou que natildeo possui orccedilamento para pagar as mais de oitenta mil
bolsas de pesquisa ateacute o final do ano gerando uma imensa crise administrativa na pasta de
Ciecircncia e Tecnologia Essas medidas se natildeo revogadas prejudicam o desenvolvimento
imediato e futuro da pesquisa cientiacutefica no Brasil que somadas a outras accedilotildees do governo
resultaratildeo no desmonte e na privatizaccedilatildeo das universidades puacuteblicas Assim as duas maiores
agecircncias brasileiras de fomento agrave pesquisa cientiacutefica encontram-se ameaccediladas por um projeto
de governo que ataca a democratizaccedilatildeo da ensino superior no Brasil
Foi a partir deste contexto poliacutetico e institucional que tem afligido milhares de
pesquisadoresas que pensamos em dar visibilidade agraves pesquisas cientiacuteficas desenvolvidas por
estudantes de poacutes-graduaccedilatildeo Portanto a construccedilatildeo deste livro eacute para noacutes um ato de
resistecircncia uma forma de ilustrar quantos trabalhos importantes estatildeo sendo desenvolvidos por
meio do financiamento puacuteblico de pesquisa cientiacutefica ndash seja atraveacutes da estrutura que a
universidade puacuteblica oferece ou pelo fomento direto proporcionado pelas bolsas de mestrado
e doutorado do CNPq e da Capes Todo esse debate demonstra o quanto as poliacuteticas puacuteblicas
atravessam as pessoas e a vida social em seus mais diversos aspectos e que dificilmente
conseguimos nos esquivar dessa temaacutetica
Sobre o processo de construccedilatildeo deste livro inicialmente fizemos uma chamada aberta
a pesquisadoresas que desenvolveram estudos sobre poliacuteticas puacuteblicas no acircmbito de
programas de poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia Recebemos uma grande quantidade de propostas
de capiacutetulo com significativa relevacircncia social e acadecircmica o que acabou fazendo com que
fossem necessaacuterios dois volumes para a publicaccedilatildeo de todos os trabalhos selecionados O
processo de anaacutelise avaliaccedilatildeo e revisatildeo dos trabalhos tambeacutem foi feito de forma coletiva
Convidamos asos proacuteprios autoresas assim como outrosas pesquisadoresas para atuar como
pareceristas Assim cada texto foi avaliado por doisduas pareceristas que fizeram comentaacuterios
e contribuiccedilotildees que ajudaram no aperfeiccediloamento dos textos Entendemos que a avaliaccedilatildeo por
pares natildeo apenas tornou o processo de elaboraccedilatildeo do livro mais colaborativo mas tambeacutem
contribuiu para melhorar a explicitaccedilatildeo do meacutetodo a descriccedilatildeo das resultados e o
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amadurecimento das proposiccedilotildees teoacutericas presentes nos capiacutetulos favorecendo um processo
reflexivo
O resultado desse processo coletivo resultou em uma coletacircnea composta por 14
capiacutetulos No primeiro deles Joseacute Fernando Andrade Costa recorre aos pressupostos da
Psicologia Social Criacutetica para discutir implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas enfocando a relaccedilatildeo
entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos O debate em torno da
relaccedilatildeo estado-sociedade civil segue sendo tema do capiacutetulo seguinte de autoria de Maria
Fernanda Aguilar Lara e Mariana Prioli Cordeiro Mas nele o foco recai sobre como essa
relaccedilatildeo foi se constituindo ao longo da histoacuteria da Assistecircncia Social no Brasil
Jaacute no capiacutetulo 3 de autoria de Izabela Penha Silva e Renata Fabiana Pegoraro eacute o
presente da poliacutetica de Assistecircncia Social que estaacute em debate Mais especificamente as autoras
apresentam os resultados de uma pesquisa que buscou investigar como um grupo de mulheres
idosas compreendem e avaliam as accedilotildees do Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social do qual
satildeo usuaacuterias No capiacutetulo seguinte Liandra Savanhago Camila Trindade Tielly Rosado
Maders e Maria Chalfin Coutinho articulam reflexotildees sobre as trajetoacuterias de vida de um jovem
em cumprimento de medida socioeducativa com a discussatildeo em torno das praacuteticas psi em
serviccedilos de assistecircncia social No capiacutetulo 5 de autoria de Beatriz Saks Hahne e Adriana
Marcondes Machado a discussatildeo dessa medida ganha outros contornos Nele o foco recai
sobre as memoacuterias e narrativas de adolescentes que cumprem ou cumpriram recentemente
medida socioeducativa
Ainda sobre a poliacutetica de assistecircncia social de autoria de Andrielly Darcanchy de
Toledo e Mariana Prioli Cordeiro o capiacutetulo 6 debate a implementaccedilatildeo do Programa de
Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de Osasco-SP atraveacutes do relato de experiecircncia de
trabalho com Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e Adolescentes (SAICA) E
no capiacutetulo 7 Mariana Belluzzi Ferreira e Carolina Esmanhoto Bertol levantam reflexotildees sobre
as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agrave garantia de direitos de adolescentes no acircmbito da assistecircncia
social discutindo o discurso ldquomenoristardquo que perpassa a histoacuteria desta poliacutetica no Brasil
Nos capiacutetulos seguintes a discussatildeo sobre poliacuteticas puacuteblicas ganha outros rumos com
o enfoque na temaacutetica da educaccedilatildeo em diaacutelogo com outras poliacuteticas puacuteblicas No capiacutetulo 8
Denise Zakabi e Maria Luisa Sandoval Schmidt abordam as contribuiccedilatildeo da Psicologia para o
estudo das ruralidades e das poliacuteticas puacuteblicas relacionadas ao campo Para isto as autoras
analisam as experiecircncias de jovens que frequentam a escola Nazareacute Flor localizada em uma
assentamento rural na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute Jaacute no capiacutetulo 9 de autoria de Patriacutecia
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Peixoto Zapletal e Adriana Marcondes Machado o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash promovido pelo
Governo Federal de 2007 a 2016 ndash se torna o centro do debate Utilizando a noccedilatildeo de
governamentalidade oriunda dos escritos foucaultianos as autoras problematizam a
formulaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo deste programa governamental
No capiacutetulo 10 Omar Calazans Nogueira Pereira e Marcelo Afonso Ribeiro discutem
como a Orientaccedilatildeo Profissional enquanto campo teoacuterico-metodoloacutegico da Psicologia se insere
nas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo a partir da anaacutelise do Programa de Escola Integral (PEI) do
Governo do Estado de Satildeo Paulo
Os dois proacuteximos capiacutetulos discutem a temaacutetica da Psicologia e poliacuteticas puacuteblicas em
diaacutelogo com a educaccedilatildeo e a sauacutede O capiacutetulo 11 ndash de autoria de Andreia Maria de Lima
Assunccedilatildeo Adriana Marcondes Machado e Daniela Barros da Silva Freire Andrade - apresenta
uma pesquisa realizada na ala pediaacutetrica de um hospital puacuteblico da cidade de Cuiabaacute
levantando questotildees sobre como considerar as vivecircncias das crianccedilas nas poliacuteticas de sauacutede Jaacute
no capiacutetulo 12 Mariana Fagundes de Almeida Rivera Tatiana Alves Romatildeo Ana Carolina
Martins de Souza Felippe Valentim Fernanda Lyrio Heinzelmann Kate Delfini Santos Paula
Rosana Cavalcante e Ianni Regia Scarcelli apresentam as pesquisas de mestrado e doutorado
desenvolvidas pelo Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise e Psicologia Social (LAPSO) do
IPUSP
No capiacutetulo seguinte a poliacutetica de sauacutede eacute debatida em conjunto agrave temaacutetica do Trabalho
Heloiacutesa Aparecida de Souza Johanna Garrido Pinzoacuten Marcia Hespanhol Bernardo e Mariana
Pereira da Silva apresentam uma siacutentese dos resultados das discussotildees e pesquisas realizadas
pelo grupo ldquoTrabalho no Contexto Atual Estudos Criacuteticos em Psicologia Socialrdquo que desde
2009 tem se dedicado ao estudo dos fenocircmenos vinculados agrave sauacutede de trabalhador Por fim no
capiacutetulo 14 Paula Sassaki Coelho traz algumas reflexotildees sobre o papel do Estado diante da
induacutestria da mineraccedilatildeo a partir de uma experiecircncia de pesquisa em Conceiccedilatildeo do Mato Dentro
no estado de Minas Gerais
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Capiacutetulo 1
Contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para anaacutelise da relaccedilatildeo entre
atores estatais e natildeo estatais na implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas
Joseacute Fernando Andrade Costa
Introduccedilatildeo
Este capiacutetulo tem como objetivo apresentar e discutir algumas contribuiccedilotildees atuais da
Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas tomando como
recorte a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos Trata-se
de realizar um aprofundamento analiacutetico de parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado
sobre a implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais na cidade de Satildeo Paulo (Costa 2016) A
intenccedilatildeo aqui natildeo eacute repetir os argumentos jaacute apresentados na referida pesquisa mas
desenvolver melhor alguns pontos que laacute foram apenas esboccedilados sobretudo em termos de uma
fundamentaccedilatildeo teoacuterico-metodoloacutegica baseada na articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do
reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003) e a sociologia da accedilatildeo puacuteblica (Lascoumes amp Le
Galegraves 2012) para o estudo psicossocial das poliacuteticas puacuteblicas
Cabe frisar uma motivaccedilatildeo para o resgate da pesquisa empiacuterica e o esforccedilo de continuar
a refletir sobre seus achados quando do iniacutecio do processo do mestrado o projeto fora escrito
tendo em vista compreender o papel das poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social para o
fortalecimento da cidadania Contudo os desafios do trabalho de pesquisa e o curto tempo de
um mestrado acabaram provocando algumas transformaccedilotildees significativas na forma de abordar
esse objeto Nem sempre todas as transformaccedilotildees e aprendizados decorrentes de uma pesquisa
de poacutes-graduaccedilatildeo satildeo depurados no relatoacuterio final por isso vale a pena seguir desenvolvendo
as ideias em novos foacuteruns (Costa 2017)
Das transformaccedilotildees do projeto inicial a principal foi uma radical mudanccedila na
compreensatildeo sobre o que satildeo as poliacuteticas puacuteblicas e sobre como abordaacute-las numa perspectiva
psicossocial criacutetica Se inicialmente a ideia era pesquisar as ldquoPoliacuteticas Puacuteblicas de Assistecircncia
Socialrdquo no decorrer do processo de pesquisa passei a conhecer o ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah
2016) e em especial a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo A importacircncia analiacutetica atribuiacuteda a tal
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deslocamento seraacute tratada neste capiacutetulo na medida em que se pretende discutir possiacuteveis
contribuiccedilotildees da Psicologia Social Criacutetica para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas
Houve tambeacutem a necessidade de problematizar o que se convencionou chamar de
Psicologia Social Criacutetica Toda Psicologia Social enseja de certa forma um esclarecimento
sobre de qual Psicologia Social se trata exatamente uma vez que este natildeo eacute um campo
homogecircneo (Silva Juacutenior amp Zangari 2017) Isso eacute verdadeiro tambeacutem para a Psicologia Social
Criacutetica Este qualificativo ndash ldquocriacuteticardquo ndash refere-se efetivamente a quecirc Agrave criacutetica de determinado
modelo teoacuterico-metodoloacutegico ldquotradicionalrdquo Agrave criacutetica de uma determinada atitude (passiva)
perante as contradiccedilotildees da realidade social Agrave proposiccedilatildeo de um determinado referencial
analiacutetico ldquocriacuteticordquo Ou ainda ele designa uma subaacuterea da Psicologia Social na qual se
encontram determinadas pessoas e ideias A Psicologia Social Criacutetica com a qual irei trabalhar
nesse texto eacute aquela que se vale reflexivamente das contribuiccedilotildees da filosofia moral e da teoria
social com o intuito de explicar processos e padrotildees de interaccedilatildeo interpessoais institucionais
e societaacuterios de forma articulada mas sem perder de vista os horizontes normativos de
libertaccedilatildeo e emancipaccedilatildeo humana
Nessa perspectiva as disciplinaridades tambeacutem merecem ser questionadas A
ultraespecializaccedilatildeo exigida pelo mercado simboacutelico do campo acadecircmico tem um alcance
limitado e limitador para produzir conversas instrutivas e alargar o espaccedilo formativo de seus
participantes Se por um lado a especializaccedilatildeo contiacutenua eacute um valor intriacutenseco ao
desenvolvimento do pensamento cientiacutefico e da capacitaccedilatildeo teacutecnica por outro eacute necessaacuterio
olhar para aleacutem das fronteiras para enxergar no horizonte os benefiacutecios da interdisciplinaridade
da transdisciplinaridade e inclusive de certa dose de indisciplinaridade
Assim espero contribuir para ampliar as perspectivas criacuteticas de anaacutelise das poliacuteticas
puacuteblicas pela Psicologia Social e para favorecer a busca de um diaacutelogo profiacutecuo entre esses dois
campos Afinal como diz Howard Becker (2015) a vida intelectual nada mais eacute do que um
diaacutelogo entre pessoas interessadas no mesmo assunto
O presente capiacutetulo estaacute estruturado da seguinte maneira num primeiro momento (1)
seraacute abordada a questatildeo da relaccedilatildeo entre Psicologia Social e Teoria Criacutetica com o intuito de
apresentar a teoria do reconhecimento reciacuteproco de Axel Honneth e o modo como ela pode ser
uacutetil para a anaacutelise de instituiccedilotildees em seguida (2) seraacute proposto o deslocamento da perspectiva
das poliacuteticas puacuteblicas em direccedilatildeo agrave compreensatildeo mais ampla da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo enfatizando o
potencial do campo psicossocial em contribuir com estudos sobre anaacutelise do processo de
implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos e por fim (3) as articulaccedilotildees entre as duas perspectivas
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anteriores seratildeo desenvolvidas a partir de alguns dos resultados da pesquisa empiacuterica com foco
na relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que atuam na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos de
assistecircncia social no municiacutepio de Satildeo Paulo Nas consideraccedilotildees finais satildeo apresentas algumas
reflexotildees sobre as potencialidades e os limites dessa proposta
1 Psicologia Social e Teoria Criacutetica
A Psicologia Social Criacutetica costuma ser genericamente identificada como resultado da
crise de referecircncia da disciplina na deacutecada de 1970 quando o modelo dominante da Psicologia
Social positivista passou a ser sistematicamente criticado por sua insuficiecircncia em dar respostas
efetivas aos diversos problemas sociais cada vez mais urgentes nos paiacuteses latino-americanos
Esse movimento fez surgir uma concepccedilatildeo alternativa de Psicologia Social orientada natildeo
apenas por pressupostos cientiacuteficos mas principalmente pela ideia de um compromisso social
e poliacutetico com a transformaccedilatildeo da realidade
Diversos referenciais teoacuterico-metodoloacutegicos passaram a ser desenvolvidos desde entatildeo
pela Psicologia Social com destaque para a assimilaccedilatildeo de abordagens marxistas poacutes-
estruturalistas e construcionistas1 Como observa Fernaacutendez Christlieb (2019) em sua descriccedilatildeo
das transformaccedilotildees da disciplina nas uacuteltimas deacutecadas hoje a Psicologia Social encontra-se
enormemente enriquecida pela quantidade de leituras produccedilotildees e debates sobre os mais
variados temas que a tornaram ldquouma disciplina paradoxalmente soacutelida e consolidada mas sem
ser canocircnica nem dogmaacuteticardquo (p 17) O elemento da ldquocriacuteticardquo parece funcionar como pivocirc da
articulaccedilatildeo de diferentes perspectivas e modos de fazer Psicologia Social capazes natildeo apenas
de desvelar a realidade mas tambeacutem de buscar caminhos para transformaacute-la
Dentre os modelos que informam os trabalhos teoacutericos e empiacutericos da Psicologia Social
Criacutetica no Brasil destacam-se as contribuiccedilotildees da tradiccedilatildeo de pensamento conhecida como
ldquoTeoria Criacutetica da Sociedaderdquo ou ldquoEscola de Frankfurtrdquo (Crochiacutek 2013 Lima 2015) As
1Em relaccedilatildeo agraves Poliacuteticas Puacuteblicas a Psicologia Social tem buscado contribuir teoacuterico-metodologicamente a partir
de diferentes bases epistemoloacutegicas que vatildeo se fortalecendo em diversos foacuteruns profissionais e acadecircmicos Por
exemplo desde uma perspectiva marxista haacute trabalhos que discutem as contradiccedilotildees estruturais das poliacuteticas
sociais implementadas pelo Estado como resposta agrave questatildeo social no Modo de Produccedilatildeo Capitalista (Oliveira amp
Costa 2018) desde uma perspectiva poacutes-estruturalista ressalta-se o aspecto biopoliacutetico dos dispositivos puacuteblicos
enquanto tecnologias de governo das populaccedilotildees e de gerenciamento dos riscos sociais (Cavagoli amp Guareschi
2018) desde uma perspectiva (poacutes-)construcionista as poliacuteticas puacuteblicas satildeo entendidas como processos
heterogecircneos que constituem redes hiacutebridas fruto de muacuteltiplos processos de associaccedilatildeo nos quais participam uma
grande quantidade de elementos de forma complexa e por vezes complicada (Brigagatildeo Nascimento amp Spink
2011) Minha proposta neste capiacutetulo eacute contribuir com esse debate desde as perspectivas da Teoria Criacutetica
(Honneth 2003) e do ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016)
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principais caracteriacutesticas dessa tradiccedilatildeo de pensamento satildeo a busca pela formulaccedilatildeo de
diagnoacutesticos do tempo presente e a orientaccedilatildeo para a emancipaccedilatildeo Metodologicamente a
criacutetica da sociedade requer a reconexatildeo entre filosofia e ciecircncias sociais de modo a proceder agrave
investigaccedilatildeo sistemaacutetica das promessas de emancipaccedilatildeo contidas na realidade mas que satildeo
sistematicamente bloqueadas pela proacutepria organizaccedilatildeo social Em outras palavras a Teoria
Criacutetica natildeo visa criticar a realidade de fora como se houvesse um ponto externo do qual se pode
observar melhor a dinacircmica societaacuteria ou segundo um horizonte utoacutepico formulado idealmente
mas procura filosoficamente desvelar o possiacutevel no existente A reconexatildeo entre filosofia e
ciecircncias empiacutericas visa fundamentar uma criacutetica imanente da sociedade na qual por um lado
o pensamento natildeo seja refeacutem da empiria e por outro a teoria natildeo prescinda dos meacutetodos
cientiacuteficos
Autores como Theodor Adorno Herbert Marcuse Walter Benjamin e Juumlrgen Habermas
foram decisivos para a formaccedilatildeo de muitos psicoacutelogos(as) sociais brasileiros(as) e para o
desenvolvimento de pesquisas criacuteticas sobre diversos assuntos como preconceito violecircncia
identidade etc Eacute possiacutevel afirmar que a relevacircncia das duas primeiras geraccedilotildees da Teoria Criacutetica
para a Psicologia Social brasileira eacute bastante conhecida e consolidada jaacute a recepccedilatildeo das
geraccedilotildees mais recentes de teoacutericos criacuteticos eacute um processo atual e encontra-se ainda em
construccedilatildeo
O principal representante da chamada ldquoterceira geraccedilatildeordquo da Teoria Criacutetica eacute o filoacutesofo
e socioacutelogo alematildeo Axel Honneth autor de vasta obra nas uacuteltimas trecircs deacutecadas sobre filosofia
moral e teoria social A grande contribuiccedilatildeo de Honneth consiste em desenvolver uma filosofia
social de teor normativo ancorada no processo de construccedilatildeo da identidade (pessoal e coletiva)
como resultado de padrotildees de interaccedilatildeo social mediados pelo conflito social Mais
precisamente Honneth (2003) elabora seu projeto de teoria criacutetica sobre o paradigma da
intersubjetividade na forma de uma teoria do reconhecimento reciacuteproco Conveacutem analisar em
detalhes como esse projeto pode ser uma via promissora para a Psicologia Social Criacutetica
brasileira inclusive para a anaacutelise de processos de implementaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos
11 Axel Honneth e a renovaccedilatildeo da Teoria Criacutetica
Honneth eacute conhecido por sua pretensatildeo de renovar o projeto original da Teoria Criacutetica
a partir da criacutetica ao ldquodeacuteficit socioloacutegicordquo que ele identifica em seus antecessores Ele mostra
que em Horkheimer e Adorno a criacutetica funcionalista da razatildeo instrumental e do mundo
14
totalmente administrado leva a um impasse em relaccedilatildeo aos fundamentos para a criacutetica social
em termos normativos Em Habermas ele critica a concepccedilatildeo dual de sociedade que opotildee dois
conceitos concorrentes de organizaccedilatildeo social (sistema e mundo da vida) pois entende que natildeo
eacute possiacutevel supor a existecircncia de instituiccedilotildees (sistemas) desprovidas de normatividade e
tampouco eacute plausiacutevel conceber esferas de accedilatildeo comunicativa (mundo da vida) privadas de
relaccedilotildees de poder Honneth retoma os escritos de Hegel para fazer uma atualizaccedilatildeo da teoria
criacutetica pautada pelo paradigma das relaccedilotildees intersubjetivas no qual estatildeo inseridas as
instituiccedilotildees mas tomando o conflito como elemento constitutivo
Como observa Saavedra (2007) na obra de Honneth as concepccedilotildees teoreacuteticas de
continuidade histoacuterica estatildeo ancoradas materialmente em espaccedilos vitais devendo ser
fundamentadas objetivamente no acircmbito da accedilatildeo social no qual os acontecimentos histoacutericos
satildeo interpretativamente derivados Em outras palavras com essa concepccedilatildeo processual de
histoacuteria a proacutepria noccedilatildeo de sujeito histoacuterico passa a ser redefinida de modo que este ldquonatildeo eacute
mais considerado uma pura imposiccedilatildeo teoacuterica ou histoacuterica mas sim uma projeccedilatildeo normativa
na qual a possiacutevel integraccedilatildeo histoacuterica de todas as diferentes unidades sociais e regionais eacute
tematizada na humanidade consciente de si mesmardquo (Saavedra 2007 p 99)
Nesta perspectiva a histoacuteria natildeo deve ser vista como uma grande trama de relaccedilotildees sem
sujeitos e nem deve ser assimilada como acircmbito de acontecimentos caoacuteticos que soacute podem ser
apreendidos em construccedilotildees narrativas situadas na representaccedilatildeo imediata que os sujeitos fazem
de si e dos outros O esforccedilo teoacuterico de Honneth situa-se na intersecccedilatildeo entre filosofia moral e
teoria social procurando desenvolver a criacutetica da sociedade fundada na identificaccedilatildeo dos
princiacutepios normativos constitutivos dos conflitos sociais A categoria-chave para esse projeto eacute
a luta por reconhecimento reciacuteproco (Honneth 2003)
12 Uma teoria criacutetica do reconhecimento
Em sua principal obra Honneth (2003) busca atualizar a concepccedilatildeo hegeliana sobre a
formaccedilatildeo intersubjetiva das relaccedilotildees pessoais e institucionais segundo as exigecircncias poacutes-
metafiacutesicas das teorias sociais de base empiacuterica Ele encontra na psicologia social de G H
Mead os fundamentos para essa atualizaccedilatildeo O intuito eacute elaborar uma teoria social de teor
normativo isto eacute uma teoria criacutetica das patologias sociais que bloqueiam os processos de
autorrealizaccedilatildeo praacutetica necessaacuterios agrave formaccedilatildeo de uma vida eacutetica ou ldquoeticidaderdquo (Sittlichkeit)
Para tanto deve-se partir da reconstruccedilatildeo das regras e valores morais estruturantes das relaccedilotildees
15
sociais especialmente daquelas experiecircncias de desrespeito natildeo simbolizadas nas relaccedilotildees
intersubjetivas
Esquematicamente Honneth (2003) mostra que para Hegel a formaccedilatildeo do indiviacuteduo
se daacute a partir de embates intersubjetivos que ocorrem nos acircmbitos da famiacutelia do direito e da
formaccedilatildeo da vontade puacuteblica isto eacute da solidariedade Em Mead o reconhecimento social
aparece na forma de relaccedilotildees primaacuterias (guiadas pelo amor) juriacutedicas (pautadas por leis) e na
esfera do trabalho (na qual os indiviacuteduos poderiam mostrar-se valiosos para a coletividade) A
partir dos insights desses dois autores Honneth refina as categorias de relaccedilotildees de
reconhecimento social extraindo delas trecircs princiacutepios integradores as ligaccedilotildees emotivas fortes
a adjudicaccedilatildeo de direitos e a orientaccedilatildeo por valores
Para tornar esses princiacutepios base de uma filosofia social criacutetica Honneth (2003) adota o
procedimento metodoloacutegico negativo isto eacute ele parte dos sentimentos de injusticcedila dos atores
sociais para elaborar uma teoria da base moral das concepccedilotildees de justiccedila e suas violaccedilotildees O
interesse inicial de Honneth era analisar as formas de resistecircncia agrave dominaccedilatildeo no acircmbito dos
chamados ldquoestudos culturaisrdquo em que haacute primazia da perspectiva dos participantes sobre as
narrativas das grandes revoluccedilotildees Isso o leva a investigar sistematicamente as formas mais
sutis ou menos expliacutecitas de resistecircncia em suma as violaccedilotildees de certas expectativas de
reciprocidade que satildeo processadas pelos indiviacuteduos como sentimentos de injusticcedila e por isso
podem ser a base da formaccedilatildeo tanto de coletivos e movimentos sociais organizados quanto de
reaccedilotildees natildeo articuladas Honneth identifica que a anaacutelise dessas violaccedilotildees de expectativas
representa uma lacuna psicoloacutegica na filosofia social pois as reaccedilotildees emocionais negativas tais
como vergonha raiva ofensa ou desprezo devem ser interpretadas dentro do quadro teoacuterico da
experiecircncia social de desrespeito em relaccedilatildeo agraves demandas de reconhecimento
Com isso a centralidade da teoria criacutetica de Honneth repousa sobre o conflito social
cuja gramaacutetica moral satildeo as lutas por reconhecimento reciacuteproco A partir da leitura de Hegel e
Mead Honneth apresenta trecircs esferas do reconhecimento social amor direito e estima social
A cada uma delas correspondem respectivamente uma forma de autorrelaccedilatildeo praacutetica dos
indiviacuteduos e uma forma de desrespeito
Na esfera do amor as demandas por reconhecimento se expressam nas relaccedilotildees afetivas
primaacuterias pois satildeo as mais fundamentais para a estruturaccedilatildeo da personalidade Sejam as
relaccedilotildees de filiaccedilatildeo de amizade ou entre parceiros sexuais a autocompreensatildeo de si como
indiviacuteduo autocircnomo depende do reconhecimento do outro Retomando a psicanaacutelise de Donald
Winnicott Honneth aponta para os conflitos existentes na relaccedilatildeo matildee-bebecirc na primeira
16
infacircncia cuja resoluccedilatildeo da tensatildeo dependecircncia x autonomia seraacute a base para a formaccedilatildeo do
sentimento de autoconfianccedila Tal sentimento seraacute fundamental para a participaccedilatildeo segura na
esfera puacuteblica O desrespeito correspondente a essa esfera do reconhecimento satildeo os maus-
tratos e a violaccedilatildeo
As relaccedilotildees de direito ou de cidadania por sua vez pautam-se pelos princiacutepios morais
universalistas que um sistema juriacutedico garante aos membros de uma determinada comunidade
poliacutetica Honneth observa que a institucionalidade dos direitos eacute resultado de conflitos sociais
histoacutericos Mais do que apenas normas juriacutedicas o conceito de direito indica toda uma gama de
relaccedilotildees modernas pautadas por demandas de liberdade individual e que conseguem estabelecer
uma consistecircncia e legitimidade moral assentida pelos participantes da comunidade Isso
significa que da perspectiva da igualdade pelo direito todos podem se reconhecer como seres
humanos capazes de participaccedilatildeo social A autorrelaccedilatildeo praacutetica decorrente dessas relaccedilotildees
juriacutedicas seraacute o autorrespeito e a ela corresponde o tipo de desrespeito associado agrave privaccedilatildeo de
direitos e agrave exclusatildeo
A terceira dimensatildeo do reconhecimento refere-se ao domiacutenio das relaccedilotildees de
solidariedade ou mais precisamente de estima social No interior de uma comunidade de
valores os indiviacuteduos podem encontrar a valorizaccedilatildeo de suas habilidades particulares a partir
do reconhecimento puacuteblico de seus feitos e realizaccedilotildees em prol da coletividade Dessa forma
a autorrelaccedilatildeo praacutetica associada seraacute a autoestima isto eacute um sentimento de orgulho do grupo
ou de honra coletiva O desrespeito nesse caso seraacute a vexaccedilatildeo a degradaccedilatildeo puacuteblica os tipos
de ofensa o preconceito e a humilhaccedilatildeo
Honneth reivindica a heranccedila da Teoria Criacutetica na medida em que sob as bases de uma
concepccedilatildeo naturalista e pragmaacutetica das ciecircncias sociais procede agrave reconstruccedilatildeo dos conflitos
intersubjetivos (sua gramaacutetica eacute a luta por reconhecimento) do ldquoespiacuterito objetivordquo para usar os
termos hegelianos e aponta para uma eticidade formal (Sittlichkeit) isto eacute para uma concepccedilatildeo
de vida boa que visa natildeo apenas a realizaccedilatildeo da autonomia moral dos indiviacuteduos mas tambeacutem
as condiccedilotildees eacuteticas de sua autorrealizaccedilatildeo como um todo societaacuterio
As formas de reconhecimento do amor do direito e da solidariedade formam dispositivos de
proteccedilatildeo intersubjetivos que asseguram as condiccedilotildees da liberdade externa e interna das quais
depende o processo de uma articulaccedilatildeo e de uma realizaccedilatildeo espontacircnea de metas individuais de
vida Com esse potencial interno de desenvolvimento migra para as condiccedilotildees normativas
de autorrealizaccedilatildeo um iacutendice histoacuterico que deve limitar as pretensotildees de nossa concepccedilatildeo formal
de eticidade o que pode ser considerado condiccedilatildeo intersubjetiva de uma vida bem-sucedida
torna-se uma grandeza historicamente variaacutevel determinada pelo niacutevel atual de
desenvolvimento dos padrotildees de reconhecimento (Honneth 2003 p 274)
17
Nesses termos um sistema filosoacutefico derivado da teoria do reconhecimento seraacute capaz
de explicar a gecircnese moral dos conflitos histoacutericos como as lutas de classe ndash no sentido de uma
luta pelo reconhecimento da classe trabalhadora como produtora da riqueza socialmente
produzida ndash mas tambeacutem das diferentes reivindicaccedilotildees de reconhecimento das identidades
como por exemplo as lutas antirracistas feministas de diversidade sexual e de gecircnero etc De
fato o modelo honnethiano repercutiu na filosofia social como uma contribuiccedilatildeo maior para a
nossa autocompreensatildeo do tempo presente em seus desejos e lutas
13 Reconhecimento e instituiccedilotildees
Das criacuteticas feitas a essa teoria criacutetica do reconhecimento destacam-se a objeccedilatildeo de
Nancy Fraser (2006) quanto agrave capacidade de um conceito de reconhecimento cultural abarcar
demandas de redistribuiccedilatildeo econocircmica e a discussatildeo de Rahel Jaeggi (2013) sobre certas
relaccedilotildees de reconhecimento fracassarem ou serem deficitaacuterias enquanto relaccedilotildees de
reconhecimento pois mesmo certas adscriccedilotildees positivas podem ser limitantes e injuriosas Haacute
tambeacutem um conjunto de debates sobre o vieacutes individualista da teoria de Honneth ao priorizar
as relaccedilotildees pessoais em detrimento da criacutetica das instituiccedilotildees Dentre essas uacuteltimas eacute
particularmente importante para a discussatildeo deste capiacutetulo as consideraccedilotildees de Emmanuel
Renault (2011) sobre o papel atribuiacutedo agraves instituiccedilotildees na teoria do reconhecimento
Renault (2011) questiona se Honneth foi capaz de explicar adequadamente a relaccedilatildeo
entre expectativas intersubjetivas de reconhecimento reciacuteproco e a formaccedilatildeo de instituiccedilotildees que
encarnam certos princiacutepios normativos como uma ldquosegunda naturezardquo seja na forma de modos
relativamente mais simples de coordenaccedilatildeo das accedilotildees (escolas prisotildees etc) seja em sistemas
mais complexos de organizaccedilatildeo da vida social (famiacutelia estado mercado) O problema central
para Renault consiste em estabelecer a ordem de prioridade entre as demandas de
reconhecimento e as exigecircncias institucionais Por um lado numa concepccedilatildeo ldquoexpressivistardquo
de reconhecimento as instituiccedilotildees expressam relaccedilotildees de reconhecimento isto eacute as relaccedilotildees
intersubjetivas precedem as instituiccedilotildees operando num niacutevel ldquopreacute-institucionalrdquo Assim as
instituiccedilotildees seriam apenas um resultado em diferentes niacuteveis de lutas por reconhecimentos que
sedimentaram determinadas praacuteticas sociais Ocorre que as relaccedilotildees de reconhecimento nunca
acontecem de forma pura mas sempre condicionadas por regras sociais e expectativas
normativas das quais as instituiccedilotildees participam ativamente Desse modo por outro lado
argumenta Renault as instituiccedilotildees tambeacutem produzem relaccedilotildees de reconhecimento Numa
18
perspectiva histoacuterica diferentes settings institucionais satildeo capazes de coordenar accedilotildees
individuais e de sustentaacute-las em conformidade com certas promessas normativas
Ao provocar a reflexatildeo sobre a necessidade de explicitar os elos entre reconhecimento
e instituiccedilotildees Renault (2011) entende estar contribuindo para dar agrave filosofia de Honneth um
ldquocomplemento socioloacutegicordquo (p231) Isso significa que as demandas por reconhecimento
operam tanto no niacutevel mais elementar das relaccedilotildees intersubjetivas (como expectativas
normativas) quanto no niacutevel dos fatos sociais (como efeitos do reconhecimento) mas o link
entre esses dois niacuteveis natildeo eacute de todo evidente A criacutetica de Renault seraacute que a resoluccedilatildeo desse
problema afeta a ambiccedilatildeo do projeto de uma teoria do reconhecimento como criacutetica social
Em minha opiniatildeo explicitar isso implica em uma concepccedilatildeo diferente de reconhecimento na
medida em que nos obriga a renunciar agrave ideia de pressupostos normativos da vida social bem
como a desenvolver uma teoria do reconhecimento como teoria da justiccedila As expectativas
baacutesicas de reconhecimento satildeo demasiado indeterminadas para definir princiacutepios de justiccedila e
para serem entendidas como pressupostos da vida social2 (Renault 2011 p 231 traduccedilatildeo livre)
Honneth (2011) responde a Renault argumentando por uma consideraccedilatildeo ldquomais
dialeacuteticardquo da relaccedilatildeo entre instituiccedilotildees e reconhecimento a partir do que ele chama de ldquoordens
de reconhecimentordquo Isso significa que as instituiccedilotildees natildeo satildeo apenas instacircncias que refletem
ou expressam o reconhecimento intersubjetivo uma vez que os indiviacuteduos recorrem a normas
institucionalizadas em suas demandas de reconhecimento e eacute apenas agrave luz dessas instituiccedilotildees
que concedem uns aos outros determinado status normativo Para Honneth (2011) ldquoessas
lsquoordens de reconhecimentorsquo consistem em estruturas normativas institucionalizadas que
historicamente se desenvolveram em torno das exigecircncias de reproduccedilatildeo social ao mesmo
tempo em que tornaram tais exigecircncias dependentes do preenchimento de certas obrigaccedilotildees e
papeacuteis pelos atores sociaisrdquo (p 403 traduccedilatildeo livre)
A efetivaccedilatildeo da autonomia individual soacute poderaacute ser possiacutevel se vir acompanhada de
complexos institucionais que garantam a realizaccedilatildeo da liberdade social (Honneth 2015) Isso
significa que para cada ordem de reconhecimento correspondem sistemas de accedilatildeo
normativamente institucionalizados agraves relaccedilotildees pessoais correspondem instituiccedilotildees como a
amizade a intimidade e a famiacutelia agraves relaccedilotildees econocircmicas correspondem as instituiccedilotildees
produtivas de consumo e de mercado e agraves relaccedilotildees poliacuteticas correspondem a vida puacuteblica
democraacutetica a cultura poliacutetica e o Estado democraacutetico de direito (Honneth 2015)
2 Em resposta a essas e outras criacuteticas Honneth desenvolve em O direito da liberdade uma teoria da justiccedila como
criacutetica social Esta obra marca um giro teoacuterico em direccedilatildeo agraves instituiccedilotildees na qual o objetivo central eacute a reconstruccedilatildeo
normativa da ideia moderna de liberdade (Honneth 2015)
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Em suma Emmanuel Renault apresenta uma questatildeo extremamente importante mas sua busca
por uma resposta leva-o na direccedilatildeo errada Uma anaacutelise abrangente da sociedade natildeo deve se
contentar apenas em reconstruir normativamente aquelas formas de reconhecimento inerentes
ao cerne da reproduccedilatildeo social Para compreender o padratildeo de acordo com o qual os sujeitos satildeo
integrados agrave sociedade tambeacutem precisamos de uma anaacutelise das formas de reconhecimento
praticadas em organizaccedilotildees puacuteblicas ou privadas Seria fatal simplesmente assumir que somente
encontraremos formas de reconhecimento sob o niacutevel normativo das formas gerais de interaccedilatildeo
A questatildeo sobre quais padrotildees de interaccedilatildeo devem ser implementados em cada organizaccedilatildeo eacute
sempre decidida em processos conflitivos de negociaccedilatildeo social Os resultados natildeo podem ser
previstos teoricamente mas soacute podem ser explorados com o auxiacutelio de investigaccedilotildees empiacutericas
(Honneth 2011 pp 404-405 traduccedilatildeo livre)
A questatildeo agora natildeo consiste em estabelecer a prioridade das instituiccedilotildees sobre o
reconhecimento ou do reconhecimento sobre as instituiccedilotildees mas de proceder agrave investigaccedilatildeo
dos processos conflitivos de negociaccedilatildeo cotidiana que dialeticamente conformam determinadas
ordens de reconhecimento institucionalizadas seja na esfera das relaccedilotildees pessoais econocircmicas
ou da vida puacuteblico-poliacutetica Tendo em vista essa uacuteltima proponho considerar a seguir o
processo de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como uma possibilidade para tal investigaccedilatildeo
tomando como exemplo um padratildeo de interaccedilatildeo especiacutefico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo
estatais na provisatildeo de serviccedilos puacuteblicos
2 Das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo agrave ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo
Passemos agora a considerar de que modo a filosofia social de Axel Honneth pode
contribuir para as ciecircncias sociais especialmente para a anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas De fato
a teoria do reconhecimento pode ser categorizada como filosofia social na medida em que parte
da filosofia moral e poliacutetica para determinar as bases normativas da interaccedilatildeo social mas
tambeacutem se configura como teoria social criacutetica pois reconstroacutei os sistemas de accedilatildeo coletiva
observando a formaccedilatildeo dos sentimentos de injusticcedila e as patologias sociais enquanto resultado
de demandas e lutas por reconhecimento reciacuteproco assim como tambeacutem o satildeo as noccedilotildees de
progresso moral e emancipaccedilatildeo social Da breve explanaccedilatildeo feita no toacutepico anterior resulta que
a teoria do reconhecimento de Axel Honneth oferece bons fundamentos para a construccedilatildeo de
uma Psicologia Social Criacutetica atualizada em relaccedilatildeo agraves exigecircncias da criacutetica social
contemporacircnea No entanto a questatildeo agora eacute saber como essa teorizaccedilatildeo se reconecta com as
exigecircncias metodoloacutegicas das ciecircncias empiacutericas Essa eacute uma discussatildeo da maior importacircncia
e que jaacute vem sendo feita haacute algum tempo (OrsquoNeill amp Smith 2012)
Todo programa de pesquisa cientiacutefica fundamenta-se em pressupostos teoacutericos e utiliza
de hipoacuteteses auxiliares e de meacutetodos rigorosos para o desenvolvimento sistemaacutetico de novos
conhecimentos sobre a realidade As ciecircncias sociais diferente das ciecircncias formais se
20
desenvolvem a partir da pesquisa empiacuterica Assim para que a Psicologia Social Criacutetica
fundamentada em uma teoria criacutetica do reconhecimento possa oferecer alguma contribuiccedilatildeo
para o estudo das Poliacuteticas Puacuteblicas eacute necessaacuterio partir dos problemas da realidade social em
busca de respostas que visem consequecircncias praacuteticas Eacute neste sentido que a relaccedilatildeo entre
Psicologia e o campo das Poliacuteticas Puacuteblicas emerge como uma questatildeo da maior relevacircncia na
atualidade3 Antes de discutir os achados da pesquisa de mestrado que norteia a discussatildeo
proposta neste capiacutetulo vamos dar mais um passo na direccedilatildeo da construccedilatildeo de elementos
teoacutericos que subsidiam a anaacutelise psicossocial criacutetica das poliacuteticas puacuteblicas fundamentada na
teoria do reconhecimento Como mencionado na introduccedilatildeo no decorrer do processo de
pesquisa foi essencial uma aproximaccedilatildeo ao ldquocampo de puacuteblicasrdquo (Farah 2016) e em especial
agrave sociologia da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2012)
21 A sociologia da accedilatildeo puacuteblica
A relaccedilatildeo entre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas eacute marcada por uma histoacuteria de conexotildees
e desconexotildees com a promessa recente de uma reconexatildeo mais duraacutevel As produccedilotildees mais
recentes indicam maior possibilidade de diaacutelogo entre esses dois campos ainda que ambos
sejam marcados por uma multiplicidade de enfoques teoacutericos e linguagens de accedilatildeo (Spink
2013) Se por um lado as poliacuteticas puacuteblicas satildeo frequentemente encaradas como um artefato
isto eacute como um sistema de accedilatildeo institucional voltado a obtenccedilatildeo de resultados com alto grau
de eficiecircncia eficaacutecia e efetividade por outro lado elas tambeacutem satildeo encaradas como processos
fluiacutedos e dinacircmicos em busca de coerecircncia diante da ambiguidade contiacutenua dos processos
organizativos poliacuteticos e sociais que a conformam Como sintetiza Spink (2013 p 172) mais
do que um conceito ldquopoliacutetica puacuteblica eacute tambeacutem algo que as pessoas fazemrdquo
Tambeacutem o estudo das poliacuteticas puacuteblicas eacute uma praacutetica construiacuteda socialmente Eacute o que
argumentam Pierre Lascoumes e Patrick Le Galegraves (2010) Para esses autores o modelo claacutessico
de anaacutelise das poliacuteticas centradas no protagonismo da administraccedilatildeo estatal como se esta fosse
o uacutenico ator responsaacutevel pela materializaccedilatildeo das poliacuteticas ldquoestaacute completamente ultrapassadordquo
de modo que ldquoa expressatildeo poliacutetica puacuteblica tem sido abandonada em benefiacutecio da noccedilatildeo de accedilatildeo
puacuteblicardquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 32-33) Isso natildeo significa evidentemente
3 Em geral a Psicologia tem abordado o universo das poliacuteticas puacuteblicas desde o enfoque das praacuteticas profissionais
setorializadas em funccedilatildeo do nuacutemero crescente de postos de trabalho em diferentes serviccedilos puacuteblicos Podemos
dizer que a Psicologia foi a reboque da demanda social e institucional Reflexo dessa situaccedilatildeo eacute a criaccedilatildeo do
CREPOP (Centro de Referecircncia Teacutecnica em Psicologia e Poliacutetica Puacuteblica) pelo Conselho Federal de Psicologia
em 2006 e o crescente nuacutemero de teses e dissertaccedilotildees sobre poliacuteticas puacuteblicas (Spink 2013)
21
abandonar a criacutetica do Estado e de sua responsabilidade na gestatildeo dos interesses dos cidadatildeos
e cidadatildes Trata-se de ampliar o escopo de anaacutelise para aleacutem do Estado tomando-o como um
(importante) ator no jogo de relaccedilotildees que determinam a realidade das poliacuteticas mas natildeo como
o uacutenico O problema das poliacuteticas puacuteblicas nessa perspectiva passa a considerar um intrincado
jogo de relaccedilotildees disputas e orientaccedilotildees coletivas que envolvem atores puacuteblicos e privados em
diferentes niacuteveis ampliando a noccedilatildeo de governanccedila (Bichir 2018) Dessa forma ldquoo
emaranhado de niacuteveis de formas de regulaccedilatildeo e de redes de atores forccedilou uma revisatildeo das
concepccedilotildees estatistas de intervenccedilotildees puacuteblicas em benefiacutecio de sistemas de anaacutelise muito mais
abertosrdquo (p 33)
A anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas na medida em que natildeo se ateacutem exclusivamente agrave
burocracia estatal contribui para a compreensatildeo da dinacircmica das sociedades A sociologia da
accedilatildeo puacuteblica situa-se no domiacutenio das ciecircncias sociais mas natildeo reivindica uma epistemologia
especiacutefica Ela enfatiza ldquoas accedilotildees dos atores suas interaccedilotildees e o sentido que eles lhes atribui
mas tambeacutem as instituiccedilotildees as normas as representaccedilotildees coletivas e os procedimentos que
disciplinam o conjunto de tais interaccedilotildeesrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 40) Os autores
defendem um modelo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica denominado ldquopentaacutegono das poliacuteticas
puacuteblicasrdquo que compreende cinco elementos articulados entre si atores representaccedilotildees
instituiccedilotildees processos e resultados
Os atores podem ser individuais ou coletivos eles satildeo dotados de recursos possuem certa
autonomia estrateacutegias e capacidade de fazer escolhas Satildeo mais ou menos guiados por interesses
materiais eou simboacutelicos As representaccedilotildees satildeo os espaccedilos cognitivos e normativos que datildeo
sentido agraves suas accedilotildees as condicionam e as refletem As instituiccedilotildees satildeo normas regras rotinas
procedimentos que governam as interaccedilotildees Os processos satildeo as formas de interaccedilatildeo e sua
recomposiccedilatildeo no tempo Eles justificam as muacuteltiplas atividades de mobilizaccedilatildeo dos atores
individuais e coletivos Os resultados (outputs) satildeo as consequecircncias os efeitos da accedilatildeo puacuteblica
(Lascoumes amp Le Galegraves 2010 pp 45-46)
A perspectiva da accedilatildeo puacuteblica eacute uma abordagem centrada mais nas interaccedilotildees do que
nos efeitos das poliacuteticas puacuteblicas De forma simplificada pode-se dizer que a perspectiva das
ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo eacute tradicionalmente a da ciecircncia poliacutetica interessada no alcance e nos efeitos
das poliacuteticas produzidas nos niacuteveis mais centrais da administraccedilatildeo estatal (modelo top-down)
enquanto a perspectiva da ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo eacute a da sociologia e dirige-se prioritariamente para a
compreensatildeo das interaccedilotildees entre os muacuteltiplos atores que compotildeem a poliacutetica (modelo bottom-
up) Com isso natildeo quero dizer que a sociologia da accedilatildeo puacuteblica natildeo atribui a devida importacircncia
para os processos poliacuteticos A mudanccedila eacute mais de ecircnfase pois tambeacutem na Ciecircncia Poliacutetica tem
sido dada cada vez mais a devida atenccedilatildeo agraves interaccedilotildees no seio das instituiccedilotildees (Marques
2013) Em suma a ldquopostura fecundardquo como argumentam os autores ldquoconsiste em trabalhar as
22
articulaccedilotildees entre regulaccedilatildeo social e regulaccedilatildeo poliacutetica entre o que eacute ou natildeo governado pelas
poliacuteticas puacuteblicasrdquo (Lascoumes amp Le Galegraves 2010 p 52) Um acircmbito privilegiado de anaacutelise
empiacuterica satildeo os processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas
22 Implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas e ordens de reconhecimento
O ciclo de poliacuteticas puacuteblicas ndash elemento analiacutetico baacutesico no ldquocampo de puacuteblicasrdquo ndash
parece ser pouco conhecido ou de certa forma negligenciado pela Psicologia Eacute no estaacutegio de
implementaccedilatildeo que as poliacuteticas seratildeo ldquoentreguesrdquo aos cidadatildeos e cidadatildes E nesse estaacutegio do
ciclo que a execuccedilatildeo do serviccedilo no cotidiano materializa as intenccedilotildees dos formuladores e
decisores E eacute nesse momento que a funccedilatildeo dos agentes implementadores ndash os chamados
ldquoburocratas do niacutevel da ruardquo (Lipsky 2019) ndash ganha centralidade para a perspectiva da
sociologia da accedilatildeo puacuteblica Afinal o que acontece ldquona pontardquo dos serviccedilos natildeo reflete apenas
desenhos institucionais e modos de gestatildeo mas da objetivaccedilatildeo cotidiana dos cinco elementos
do ldquopentaacutegono da accedilatildeo puacuteblicardquo E isso supotildee processos conflitivos de negociaccedilatildeo que
dialeticamente conformam determinadas ordens de reconhecimento
Esses burocratas do niacutevel da rua satildeo todos aqueles funcionaacuterios que cotidianamente
entregam as poliacuteticas para os usuaacuterios independente se contratados diretamente pelo Estado ou
de forma indireta Satildeo eles professores policiais assistentes sociais agentes de sauacutede etc Entre
eles encontram-se todas as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam em serviccedilos puacuteblicos O estudo
seminal de Lipsky (2019) revela como esses atores natildeo satildeo passivos diante dos niacuteveis mais
ldquoelevadosrdquo da poliacutetica de certa forma esses burocratas tambeacutem ldquofazemrdquo a poliacutetica
cotidianamente ao fazerem escolhas e tomarem decisotildees com relativa margem de liberdade no
interior dos procedimentos e legislaccedilotildees estabelecidas pelo ordenamento juriacutedico das poliacuteticas
Natildeo se trata de uma subversatildeo mas de reconhecer a existecircncia de um espaccedilo de atuaccedilatildeo
relativamente livre para o exerciacutecio de certo poder discricionaacuterio
Nessa perspectiva a discricionariedade natildeo eacute uma anomalia do desenho de uma poliacutetica
puacuteblica mas um resultado inevitaacutevel que emerge nas interaccedilotildees cotidianas dos burocratas entre
si e com os usuaacuterios A accedilatildeo desses burocratas eacute permeada por valores e referecircncias individuais
que para a populaccedilatildeo pode se mesclar com os valores das instituiccedilotildees Para compreender a
implementaccedilatildeo eacute necessaacuterio compreender natildeo apenas os fatores organizacionais e institucionais
do trabalho desses burocratas mas tambeacutem fatores individuais e relacionais que podem ser
igualmente importantes para determinar a natureza a qualidade e quantidade dos benefiacutecios
23
aleacutem de sanccedilotildees e direcionamentos Desse modo o debate sobre a discricionariedade dos
burocratas do niacutevel da rua costuma girar em torno da legitimidade ou natildeo das escolhas e
decisotildees por eles tomadas pois se por um lado podem adaptar as poliacuteticas para melhor alcanccedilar
os objetivos previstos por outro lado eles natildeo possuem legitimidade democraacutetica para tomar
decisotildees que afetem negativamente a vida dos cidadatildeos4
Nesse ponto uma contribuiccedilatildeo importante para os estudos sobre implementaccedilatildeo pode
ser encontrada na teoria do reconhecimento a partir do conceito de ldquoordens de
reconhecimentordquo Vimos que essas ordens correspondem a padrotildees de interaccedilatildeo mais ou menos
institucionalizados cujo fundamento satildeo as expectativas e demandas por reconhecimento Se
retomarmos as trecircs esferas do reconhecimento ndash amor direito e estima social ndash veremos que a
sociologia da accedilatildeo puacuteblica concentra-se nas duas uacuteltimas Natildeo obstante a ecircnfase dada aos
processos e interaccedilotildees cotidianas ainda falta ao campo de anaacutelise de poliacuteticas puacuteblicas como
um todo um suporte propriamente psicoloacutegico ou mais precisamente psicossocial Penso que
esse suporte pode ser dado pela Psicologia Social Criacutetica orientada pela teoria do
reconhecimento Ao tomar as ordens institucionalizadas do reconhecimento como pano de
fundo para a pesquisa social dos processos de implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas creio que eacute
possiacutevel ir aleacutem de alguns limites encontrados em ambos os lados pela Psicologia que nesse
assunto padece de seu relativo insulamento e pelo ldquocampo de puacuteblicasrdquo que parece reticente
quanto a retomar perspectivas psicoloacutegicas
Considero que uma indicaccedilatildeo importante para construir esse diaacutelogo foi dada por Peter
Spink (2013) ao distinguir a linguagem dos direitos da linguagem das poliacuteticas puacuteblicas Para
ele enquanto a linguagem dos direitos evocada pelos coletivos e movimentos sociais eacute
imperativa ndash pois fundada na segunda esfera do reconhecimento ndash a linguagem das poliacuteticas
puacuteblicas eacute uma linguagem de possibilidades de orientaccedilatildeo de processos poliacuteticos e de
orientaccedilatildeo ndash pertence portanto agrave terceira esfera das relaccedilotildees de reconhecimento Em meio agraves
diferentes linguagens de accedilatildeo e ontologias poliacuteticas vislumbradas pelo autor surge como
estrateacutegia metodoloacutegica e analiacutetica que ldquooptar pela cacofonia performaacutetica poderia ser mais
adequado do que aceitar a hegemonia automaacutetica e articuladora da poliacutetica puacuteblicardquo (Spink
2013 p 179) E sobre o espaccedilo da Psicologia Social nesse debate acrescenta
Talvez uma maneira de ampliar o foco fosse relocalizar a temaacutetica da poliacutetica puacuteblica para a
discussatildeo da accedilatildeo puacuteblica em geral Se entendermos accedilatildeo puacuteblica natildeo somente em relaccedilatildeo
agraves atividades do setor puacuteblico mas incluindo os diversos arranjos entre governo e sociedade
presentes na formulaccedilatildeo e gestatildeo do agir puacuteblico e a pressatildeo de novas instacircncias da sociedade
4 Sobre os estudos de burocracia de niacutevel da rua no Brasil ver o prefaacutecio de Gabriela Lotta em Lipsky (2019)
24
civil e a provisatildeo de serviccedilos proacuteprios pelas comunidades segue que eacute aqui que precisaremos
aprofundar nossas investigaccedilotildees (Spink 2013 p 180 grifos meus)
Seguindo essa pista mas sem abrir matildeo de uma teoria social criacutetica de longo alcance
como a que encontramos na obra de Axel Honneth proponho agora utilizar essas elaboraccedilotildees
para a anaacutelise de um caso concreto decorrente da etapa empiacuterica da pesquisa de mestrado
referida no iniacutecio deste capiacutetulo (Costa 2016)
3 Um exemplo empiacuterico a relaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais na accedilatildeo puacuteblica de
assistecircncia social
Partindo desses referenciais a pesquisa de mestrado visou compreender as accedilotildees dos
serviccedilos socioassistenciais para efetivaccedilatildeo da proteccedilatildeo social como um direito de cidadania
Para tanto foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa compreensiva de cunho
teoacuterico e empiacuterico utilizando os seguintes meacutetodos revisatildeo bibliograacutefica (sobre ldquocidadaniardquo
ldquoreconhecimentordquo e ldquoproteccedilatildeo socialrdquo) e pesquisa de campo (observaccedilatildeo participante em um
serviccedilo estatal e um natildeo estatal aleacutem de nove entrevistas semi-dirigidas sendo seis com
trabalhadoras e trecircs com usuaacuterias dos serviccedilos socioassistenciais) Como mencionado acima a
mudanccedila de ecircnfase das ldquopoliacuteticas puacuteblicasrdquo para a ldquoaccedilatildeo puacuteblicardquo decorreu da proacutepria
especificidade do objeto a rede socioassistencial do municiacutepio de Satildeo Paulo caracteriza-se pela
articulaccedilatildeo de atores estatais (Poder Puacuteblico) e natildeo estatais (Organizaccedilotildees da Sociedade Civil)
na provisatildeo dos serviccedilos puacuteblicos agrave populaccedilatildeo Assim para compreender as accedilotildees desses
serviccedilos foi necessaacuterio observar as particularidades da relaccedilatildeo entre esses diferentes atores
Por se tratar de uma pesquisa que tomou como recorte um territoacuterio especiacutefico natildeo
houve a pretensatildeo de estender os achados para a rede como um todo pois isso demandaria um
estudo detalhado da diversidade de Organizaccedilotildees da Sociedade Civil (OSCs) que atuam em
diferentes territoacuterios Trata-se portanto de uma discussatildeo situada no espaccedilo e no tempo pois
reflete as caracteriacutesticas que foram observadas em um momento especiacutefico No entanto a partir
desse recorte algumas consideraccedilotildees podem ser bastante uacuteteis para entender melhor a relaccedilatildeo
entre atores estatais (no caso um Centro de Referecircncia da Assistecircncia Social) e atores natildeo
estatais (no caso um Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos gerenciado por uma
OSC) na provisatildeo da accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia social
A primeira consideraccedilatildeo a ser feita diz respeito agrave configuraccedilatildeo da rede socioassistencial
em Satildeo Paulo como exemplo para anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica jaacute que a provisatildeo dos serviccedilos eacute
executada quase em sua totalidade pelas OSCs por meio de contratos estabelecidos com a
25
administraccedilatildeo municipal (Costa 2016 p 76) Essa caracteriacutestica confere certa
excepcionalidade na operacionalizaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) na
metroacutepole paulista5 Isso natildeo significa que os serviccedilos sejam ldquoterceirizadosrdquo como se costuma
argumentar na literatura Uma anaacutelise mais detalhada dos processos e interaccedilotildees entre esses
diferentes atores como a realizada por Brettas (2016 citada por Costa 2016 pp 77-78) revela
a existecircncia de uma ldquorede socioassistencial do SUAS uacutenica de finalidade puacuteblica independente
da natureza da organizaccedilatildeo ofertante do serviccedilordquo Haacute diversos exemplos que ilustram essa
situaccedilatildeo de maneira mais adequada do que a simples ideia de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (que pressupotildee a
centralidade do Estado na realizaccedilatildeo da poliacutetica e ignora a diversidade de OSCs de tensotildees e
processos que materializam a accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia) Para resumir basta ressaltar que
as OSC satildeo muito diversas Geralmente satildeo associaccedilotildees ciacutevicas ligadas a grupos com declarada
vocaccedilatildeo para a accedilatildeo social como setores comunitaacuterios da Igreja Catoacutelica associaccedilotildees de
moradores ou grupos beneficentes e humanitaacuterios Tambeacutem podem ser associaccedilotildees poliacuteticas
como movimentos sociais tradicionais com maior ou menor enraizamento no territoacuterio onde
atuam Desse modo o estudo da accedilatildeo puacuteblica no niacutevel local deve considerar a accedilatildeo de ambos
atores estatais e natildeo estatais em relaccedilatildeo agrave dinacircmica socioterritorial na qual estatildeo inseridos
(Costa 2016 p 78)
Como afirma Bichir (2018 p 54) tambeacutem a ldquoregulamentaccedilatildeo das organizaccedilotildees eacute
definida na interaccedilatildeo entre burocratas da Secretaria Municipal de Assistecircncia e atores ligados
agraves OSCs e ocorre tanto em espaccedilos formais como o conselho e o foacuterum da aacuterea quanto em
arenas informaisrdquo Outro exemplo nesse sentido satildeo as conferecircncias autocircnomas tambeacutem
denominadas ldquoConferecircncias Livresrdquo ldquoCiacutevicasrdquo ou ldquoDemocraacuteticasrdquo que satildeo realizadas por um
conjunto de atores das OSCs ligados agrave poliacutetica de assistecircncia para discutir caminhos da accedilatildeo
puacuteblica Isso significa que a relaccedilatildeo entre atores estatais eacute muito mais complexa do que supotildee
uma simples ldquoterceirizaccedilatildeordquo pois a dinacircmica da accedilatildeo puacuteblica inclui tensotildees disputas e
capacidades institucionais de ambos os atores envolvidos
Ao observarmos essas situaccedilotildees de conflito veremos que elas satildeo marcadas por lutas
por reconhecimento Um exemplo observado durante a pesquisa empiacuterica foi a disputa
linguiacutestica sobre como definir a relaccedilatildeo entre esses atores enquanto as burocratas da
administraccedilatildeo direta apregoavam o caraacuteter de ldquoconvecircniordquo as representantes da OSC insistiam
na ideia de ldquoparceriardquo O primeiro termo diferencia as posiccedilotildees e ressalta o trabalho burocraacutetico
da administraccedilatildeo puacuteblica enquanto o segundo termo por sua vez ldquosupotildee que obrigaccedilotildees dos
dois lados para aleacutem do decretordquo (Costa 2016 p 124) Em ambos os casos haacute para aleacutem das
5 Essa caracteriacutestica do caso paulistano eacute analisada entre outras por Bichir (2018)
26
tensotildees e disputas a reivindicaccedilatildeo de que sejam reconhecidas as contribuiccedilotildees e realizaccedilotildees
(terceira esfera do reconhecimento) de cada ator para a efetivaccedilatildeo da poliacutetica socioassistencial6
Aleacutem da natureza da relaccedilatildeo entre os atores envolvidos na accedilatildeo puacuteblica outros termos
satildeo ressignificados nas lutas por reconhecimento dos atores que realizam a accedilatildeo puacuteblica no
cotidiano tais como a noccedilatildeo de ldquoporta de entradardquo e de ldquocidadaniardquo (Costa 2016)
Tambeacutem as capacidades institucionais e a discricionariedade desses atores devem ser
observadas enquanto ordens de reconhecimento institucionalizadas Ficou patente na pesquisa
empiacuterica que determinadas OSCs possuem motivaccedilotildees morais para o desenvolvimento do
trabalho assistencial (uma vocaccedilatildeo religiosa por exemplo) e podem mobilizar determinados
recursos (financeiros e humanos como doaccedilotildees e voluntariado) para aleacutem daquilo que recebem
da parceria com o poder puacuteblico Dessa forma natildeo eacute descabido levantar a seguinte hipoacutetese os
baixos repasses financeiros feitos pela administraccedilatildeo puacuteblica para as OSCs acabam forccedilando
essas uacuteltimas a complementarem os recursos necessaacuterios para garantir a accedilatildeo puacuteblica
assistencial enquanto totalidade (para aleacutem dos termos estritos dos contratos estabelecidos)
assim o montante de recursos mobilizados pela accedilatildeo puacuteblica de assistecircncia acaba sendo maior
do que aquele destinado pelos orccedilamentos puacuteblicos de modo que as decisotildees e orientaccedilotildees
sobre quais caminhos devem ser seguidos pela poliacutetica de assistecircncia social acabam sendo
motivo de intensas lutas por reconhecimento entre diferentes atores
Por fim uma uacuteltima consideraccedilatildeo possiacutevel de ser feita a partir da pesquisa empiacuterica
consiste em observar as demandas de reconhecimento natildeo apenas das trabalhadoras das
poliacuteticas7 mas tambeacutem da populaccedilatildeo usuaacuteria Nesse caso podemos ir aleacutem das duas esferas
puacuteblicas do reconhecimento (direito e estima social) e acrescentar tambeacutem a relevacircncia de
observar as lutas por reconhecimento na esfera das relaccedilotildees pessoais (amor) Afinal como
argumenta Honneth (2003 p 177) ldquoa experiecircncia intersubjetiva do amor constitui o
pressuposto psiacutequico do desenvolvimento de todas as outras formas de autorrespeitordquo
constituindo portanto a base indispensaacutevel para a participaccedilatildeo autocircnoma na vida puacuteblica
Para uma pessoa que busca os serviccedilos da assistecircncia social o simples fato de ser bem recebida
respeitada e acolhida pelas teacutecnicas possui consequecircncias profundas em relaccedilatildeo agrave validaccedilatildeo de
suas pretensotildees normativas Receber o devido reconhecimento como diz Charles Taylor
natildeo eacute apenas uma cortesia mas uma necessidade humana vital Assim podemos questionar as
accedilotildees dos serviccedilos socioassistenciais natildeo apenas quanto aos impactos produzidos nas famiacutelias e
6 Para mais detalhes sobre esse exemplo ver o capiacutetulo 7 (toacutepico 73) em Costa (2016) 7 Para mais detalhes sobre essas demandas conferir o capiacutetulo 7 (toacutepico 71 subtoacutepico ldquoenfrentando as dificuldades
do trabalho precarizadordquo) em Costa (2016) E importante notar que a pesquisa revelou naquele momento aspectos
de precarizaccedilatildeo do trabalho relativamente maiores no acircmbito da administraccedilatildeo direta do que no acircmbito da OSC
contrariamente ao que de modo geral tem sido observado na literatura
27
nos territoacuterios mas tambeacutem com relaccedilatildeo ao que pode e deve ser feito nos momentos de
atendimento individual onde deveria predominar a ldquoseguranccedila de acolhidardquo entendida natildeo
como um mero instrumento ldquoteacutecnicordquo mas como uma verdadeira abertura para o
reconhecimento do outro em suas necessidades e capabilidades Penso que este eacute um caminho
que vale a pena a ser seguido por quaisquer profissionais que atuam nos serviccedilos puacuteblicos da
assistecircncia social uma formaccedilatildeo criacutetica da sociedade comeccedila pela compreensatildeo do potencial
contido nos encontros intersubjetivos e por aiacute que devemos caminhar (Costa 2016 p 154)
Consideraccedilotildees finais
Os argumentos apresentados neste capiacutetulo pretendem servir como um convite para a
reflexatildeo sobre o potencial da articulaccedilatildeo entre uma teoria criacutetica do reconhecimento
intersubjetivo e o campo de anaacutelise da accedilatildeo puacuteblica Esse exerciacutecio do pensamento visto sob a
perspectiva da Psicologia Social Criacutetica poderaacute ser uma via bastante promissora para explicar
a dinacircmica das poliacuteticas puacuteblicas
Diferente de outras propostas que tomam a poliacutetica puacuteblica como um fato (uma
consequecircncia do Modo de Produccedilatildeo Capitalista) ou como processos mais ou menos
fragmentados (seja como dispositivos de controle dos corpos ou como construccedilatildeo social) com
base no referencial teoacuterico apresentado advogo por uma via alternativa isto eacute uma postura
pragmaacutetica e criacutetico-normativa diante da realidade dos processos de accedilatildeo puacuteblica e do
fundamento intersubjetivo das relaccedilotildees sociais que podem ser adequadamente entendidas como
lutas por reconhecimento reciacuteproco
Isso natildeo significa tomar uma via uacutenica em detrimento das outras linguagens que tecircm
procurado dizer algo sobre as poliacuteticas puacuteblicas desde a Psicologia Antes o que parece estar
em jogo agora eacute o alargamento dos recursos disponiacuteveis para a compreensatildeo da accedilatildeo puacuteblica
de forma mais ampla Considerando a complexidade do objeto o estudo psicossocial criacutetico
deveria se pautar natildeo apenas pela criacutetica das determinaccedilotildees sociais e intersubjetivas que
conformam as poliacuteticas do ldquoEstado em accedilatildeordquo mas tambeacutem deveria aprofundar a anaacutelise dos
processos de interaccedilatildeo entre atores estatais e natildeo estatais que constituem a accedilatildeo puacuteblica
Evidentemente a discussatildeo sobre todas as mediaccedilotildees e nuances dessa proposta natildeo se
encerra neste texto Na realidade se a Psicologia Social Criacutetica almeja dar alguma contribuiccedilatildeo
efetiva para a anaacutelise das poliacuteticas puacuteblicas entatildeo eacute fundamental buscar o diaacutelogo
comprometido e interessado com outras disciplinas Essa tarefa natildeo eacute faacutecil pois implica em
correr uma seacuterie de riscos como por exemplo a articulaccedilatildeo de linguagens que aparentemente
natildeo conversam tatildeo facilmente Mas eacute preciso ousar sem perder a modeacutestia em relaccedilatildeo ao alcance
do nosso saber afinal como escreveu Leandro Konder (2011 p 36) ldquoa realidade eacute sempre
28
mais rica do que o conhecimento que temos dela Haacute sempre algo que escapa agraves nossas siacutenteses
isso poreacutem natildeo nos dispensa do esforccedilo de elaborar siacutenteses se quisermos entender melhor a
nossa realidaderdquo
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30
Capiacutetulo 2
A assistecircncia social no Brasil uma anaacutelise histoacuterica das relaccedilotildees entre OSC
e Estado
Maria Fernanda Aguilar Lara
Mariana Prioli Cordeiro
Introduccedilatildeo
As parcerias entre organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) e o Estado na implementaccedilatildeo
de poliacuteticas puacuteblicas satildeo atualmente uma realidade na administraccedilatildeo puacuteblica brasileira Assim
temos presenciado o crescimento e a relevacircncia do papel que as OSC ocupam na implementaccedilatildeo
de serviccedilos em vaacuterias esferas de poliacuteticas puacuteblicas Concomitantemente na literatura de
diversos campos acadecircmicos (como na Ciecircncia Poliacutetica na Administraccedilatildeo Puacuteblica na
Sociologia no Direito na Psicologia Social no Serviccedilo Social etc) este tem sido um assunto
recorrente e latente tendo em vista como se estabelece este tipo de relaccedilatildeo puacuteblico-privada (ou
estatalnatildeo estatal) e quais os efeitos produzidos natildeo apenas no acircmbito das poliacuteticas puacuteblicas
mas tambeacutem na proacutepria configuraccedilatildeo de distintas dimensotildees da esfera puacuteblica e da esfera
privada
No acircmbito da poliacutetica puacuteblica de assistencial social a relaccedilatildeo entre organizaccedilotildees da
sociedade civil1 e Estado na execuccedilatildeo de accedilotildees assistenciais eacute antiga e se constitui enquanto um
eixo estruturante da poliacutetica Se recorrermos a uma anaacutelise histoacuterica sobre as praacuteticas
assistenciais no Brasil constataremos o papel central que as organizaccedilotildees da sociedade civil ndash
entidades filantroacutepicas organizaccedilotildees religiosas (sobretudo vinculadas ao catolicismo)
organizaccedilotildees natildeo-governamentais ndash ocuparam na promoccedilatildeo de serviccedilos e accedilotildees voltadas agraves
populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e extrema pobreza Por outro lado historicamente
o Estado assumiu um papel residual e subsidiaacuterio atuando de forma perifeacuterica atraveacutes da
1 Haacute uma grande variedade de termos utilizados para se referir agraves ldquoinstituiccedilotildees privadas sem fins lucrativosrdquo que
satildeo conveniadas ao Estado para a implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas como organizaccedilotildees natildeo governamentais
(ONG) organizaccedilotildees sociais de interesse puacuteblico (OSCIP) entidades de assistecircncia social organizaccedilotildees da
sociedade civil (OSC) organizaccedilotildees sociais (OS) organizaccedilotildees do Terceiro Setor entre outros Contudo nos
documentos oficiais de caraacuteter teacutecnico-administrativo e regulatoacuterio os termos que aparecem com maior frequecircncia
satildeo ldquoentidades de assistecircncia socialrdquo e mais recentemente ldquoorganizaccedilotildees da sociedade civilrdquo Neste trabalho
optamos por utilizar o termo OSC para fazer menccedilatildeo agraves organizaccedilotildees conveniadas que ofertam serviccedilos
socioassistenciais
31
concessatildeo de subsiacutedios e subvenccedilotildees para as organizaccedilotildees Foi apenas com a Constituiccedilatildeo de
1988 e com a promulgaccedilatildeo da Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993 que a
assistecircncia social passou a ser concebida enquanto uma poliacutetica puacuteblica e um dever do Estado
se tornando um direito inalienaacutevel de toda(o) cidadatilde(o) (Amacircncio 2008 Marin 2012
Mestriner 2008)
Este cenaacuterio de ampla participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social nos traz
algumas inquietaccedilotildees que tecircm se tornado inclusive tema de pesquisa de diferentes aacutereas Aqui
lanccedilaremos matildeo de algumas perguntas que se constituem como importantes eixos
mobilizadores deste trabalho2 como ocorreu a participaccedilatildeo das OSC na histoacuteria da assistecircncia
social Qual o papel que as OSC ocupam atualmente na assistecircncia Como eacute tratada a relaccedilatildeo
entre as OSC e o Estado nas principais normativas que regem esta poliacutetica puacuteblica
Desse modo o objetivo deste capiacutetulo eacute discutir o processo de constituiccedilatildeo da poliacutetica
puacuteblica de assistecircncia social no Brasil de modo a analisar como ocorreu a participaccedilatildeo do
Estado e das organizaccedilotildees da sociedade civil (OSC) na construccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica3 De
forma mais especiacutefica buscamos discorrer sobre (I) a participaccedilatildeo das organizaccedilotildees da
sociedade civil na assistecircncia social (II) o processo de consolidaccedilatildeo e regulamentaccedilatildeo da
assistecircncia enquanto uma poliacutetica puacuteblica Em termos metodoloacutegicos utilizamos duas
estrateacutegias principais para a construccedilatildeo desta narrativa (a) revisatildeo da literatura que discute a
poliacutetica de assistecircncia social no Brasil (b) levantamento e anaacutelise documental de normativas
que regulamentam a aacuterea da assistecircncia social principalmente daquelas que versam sobre os
convecircnios firmados com as OSC
Tendo em vista o escopo deste livro podemos lanccedilar matildeo de mais duas perguntas com
as quais tambeacutem pretendemos dialogar qual a importacircncia do estudo da poliacutetica puacuteblica de
assistecircncia social a partir da Psicologia Social Qual seria a contribuiccedilatildeo deste campo
acadecircmico para o estudo desta poliacutetica puacuteblica De forma breve podemos apresentar algumas
consideraccedilotildees que julgamos relevantes Em primeiro lugar compreendemos que houve um
2 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla de mestrado que estudou o discurso de profissionais do
Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) sobre as estabelecidas entre OSC e Estado na poliacutetica de assistecircncia
social no municiacutepio de Satildeo Paulo A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Psicologia Social do Instituto de
Psicologia da USP sob orientaccedilatildeo da Profa Dra Mariana Prioli Cordeiro 3 Neste trabalho partirmos da perspectiva de poliacutetica puacuteblica como um ldquocampo de conhecimento que busca ao
mesmo tempo ldquocolocar o governo em accedilatildeordquo eou analisar essa accedilatildeo (variaacutevel independente) e quando necessaacuterio
propor mudanccedilas no rumo ou curso dessas accedilotildees (variaacutevel dependente)rdquo (Souza 2006 p 26) Neste sentido o
estudo das poliacuteticas puacuteblicas vai desde a formulaccedilatildeo implementaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo agrave anaacutelise dos processos
relacionais dos atores envolvidos e dos desenhos institucionais que perpassam a construccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas
como um fenocircmeno amplo e complexo (Farah 2016 Marques 2013)
32
aumento significativo no nuacutemero de psicoacutelogos(as) que atuam na assistecircncia social Este
nuacutemero acompanhou o proacuteprio crescimento da aacuterea aumentando consideravelmente a partir da
publicaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RHSUAS)
ndash que prevecirc a contrataccedilatildeo de psicoacutelogos(as) nas equipes de referecircncias de diversos serviccedilos do
SUAS De acordo com Mariana Cordeiro Bernardo Svartman e Laura Souza (2018) em 2017
eram cerca de 22 mil profissionais de psicologia atuantes na assistecircncia social ou seja cerca
de 8 dos(as) psicoacutelogos(as) em atividade no Brasil Concomitantemente presenciamos
tambeacutem um aumento no nuacutemero de pesquisas em Psicologia que tratam sobre a assistecircncia
social (Cordeiro Svartman amp Souza 2018)
Destarte grande parte dos artigos e trabalhos acadecircmicos que versam sobre a Psicologia
na assistecircncia social tem tido como foco a atuaccedilatildeo profissional nos diversos serviccedilos do SUAS
Certamente este eacute um assusto bastante relevante e fundamental para a aacuterea tendo em vista a
importacircncia da praacutetica profissional da Psicologia para o funcionamento desta poliacutetica puacuteblica
Poreacutem acreditamos ser fundamental que as pesquisa em Psicologia expandam os objetos de
estudos vinculados agrave assistecircncia tratando de assuntos como construccedilatildeo de normativas do
SUAS espaccedilos de controle social anaacutelise de normativas e regulamentaccedilotildees gestatildeo e
operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica anaacutelise institucional da estruturaccedilatildeo da aacuterea relaccedilatildeo puacuteblico-
privada na assistecircncia entre outros Todos estes aspectos interferem na configuraccedilatildeo da
assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica e por conseguinte afetam a atuaccedilatildeo dos(as)
psicoacutelogos(as) nos serviccedilos
Neste sentido acreditamos que satildeo aspectos relevantes que podem se tornar temas de
pesquisa da Psicologia Afinal em todos eles haacute a presenccedila de pessoas ndash gestores(as)
trabalhadores(as) poliacuteticos usuaacuterios(as) ndash que interagem em processos constantes de
negociaccedilotildees disputas e pactuaccedilotildees de acordos necessaacuterios para a operacionalizaccedilatildeo da poliacutetica
nos mais diferentes niacuteveis e instacircncias Em acordo com Peter Spink (2018) ldquoconsiderando que
governos e equipes de agecircncias puacuteblicas satildeo compostos por pessoas podemos presumir que as
accedilotildees foram acompanhadas e fundadas em conversas ndash muitas conversas Decisotildees foram
tomadas escolhas feitas novas materialidades e socialidades produzidasrdquo (P Spink 2018 p
19) estabelecendo a institucionalidade que rege as poliacuteticas puacuteblicas Portanto na nossa
concepccedilatildeo o estudo das institucionalidades eacute tambeacutem um objeto de estudo da Psicologia
Desta forma neste capiacutetulo propomos o estudo da histoacuteria institucional da assistecircncia
social como poliacutetica puacuteblica a partir das contribuiccedilotildees da Psicologia Social Quando vamos
falar especificamente sobre o histoacuterico da poliacutetica de assistecircncia social podemos constatar que
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haacute uma vasta literatura acadecircmica que se debruccedilou sobre esta temaacutetica (Amacircncio 2008
Chiachio 2006 Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Jacooud Bichir amp Mesquita 2017
Brettas 2016 Marin 2012 Sposati Bonetti Yazbek amp Falcatildeo 1987) que narra de diversas
maneiras e a partir de diferentes enfoques os acontecimentos que configuram a estruturaccedilatildeo da
assistecircncia social como uma poliacutetica puacuteblica
Na nossa concepccedilatildeo existem muitas formas de narrar uma histoacuteria dando maior ou
menor destaque a eventos e fatos a partir dos nossos objetivos da nossa visatildeo de mundo do
desenho da pesquisa e de outros fatores que constrangem e influenciam a forma em como uma
narrativa seraacute apresentada Neste trabalho buscamos construir uma narrativa tendo como lente
a Psicologia Social de perspectiva construcionista (Ibantildeez 2001 2003 Intildeiguez 2003 M J
Spink 2010 P Spink 2018) Nesta perspectiva sujeitos e objetos satildeo resultantes de
convenccedilotildees e praacuteticas sociais portanto social e historicamente produzidos (Intildeiguez 2001
2003) Parte-se do princiacutepio de que a ldquorealidaderdquo eacute mediada por processos que estatildeo
condicionados pelas interaccedilotildees linguiacutesticas e socioculturais impossibilitando a apreensatildeo de
uma ldquoessecircncia naturalrdquo das ldquocoisasrdquo que conformam o mundo (Ibantildeez 2003 M J Spink
2010)
Nesta forma de compreender o mundo as proacuteprias poliacuteticas puacuteblicas satildeo um produto
social que foi historicamente construiacutedo por meio das interaccedilotildees linguiacutesticas Nas palavras de
Peter Spink (2018) poliacutetica puacuteblica ldquoeacute uma ferramenta discursiva ou um conceito que
utilizamos para conversar sobre o que governos fazem dizem que querem mudar ou priorizar
e pela mesma loacutegica ndash porque a falta de accedilatildeo eacute tambeacutem accedilatildeo ndash aquilo que governos natildeo querem
fazer ou que natildeo querem mudar ou priorizarrdquo (Spink 2018 pp 13-14) Neste sentido a partir
da perspectiva construcionista damos ecircnfase ao estudo do uso das diferentes linguagens que
conformam o funcionamento das poliacuteticas puacuteblicas tendo em vista a compreensatildeo da ldquoformardquo
como satildeo produzidas e dos ldquoefeitosrdquo que produzem nos sujeitos envolvidos
Neste estudo em especiacutefico daremos ecircnfase no estudo da ldquolinguagem normativardquo que
estrutura a assistecircncia social ou seja na anaacutelise das normas leis diretrizes que regem esta
poliacutetica puacuteblica De forma complementar utilizamos como base a literatura acadecircmica que
tratou do mesmo objeto Assim a histoacuteria que seraacute narrada expotildee fatos acontecimentos trechos
discursivos que apresentam uma certa linha argumentativa com foco na participaccedilatildeo das OSC
no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Desse modo escolhemos tratar a assistecircncia social sob
a oacutetica da institucionalidade puacuteblica ou seja daquilo que foi ou natildeo incorporado nas accedilotildees do
Estado Nesta perspectiva o Estado ndash que eacute composto por muacuteltiplos atores abrangendo
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teacutecnicos(as) gestores(as) governos burocracias instituiccedilotildees normativas e legislaccedilotildees etc ndash
assume uma centralidade na narrativa sendo colocado como agente principal ou sujeito ldquoda
accedilatildeordquo por ser protagonista dos eventos que seratildeo narrados Entretanto a despeito da escolha
narrativa se centrar na oacutetica da institucionalidade ndash afinal marcos institucionais satildeo importantes
para compreender a dinacircmica atual da poliacutetica ndash buscamos tambeacutem discutir outras
possibilidades de pensar a consolidaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica tentando expor diferentes
perceptivas e olhares sobre a relaccedilatildeo entre OSC e Estado na implementaccedilatildeo da poliacutetica de
assistecircncia social Cabe destacar que os documentos utilizados para a construccedilatildeo desta narrativa
foram analisados como ldquodocumentos de domiacutenio puacuteblicordquo
Os documentos de domiacutenio puacuteblico satildeo produtos sociais tornados puacuteblicos Eticamente estatildeo
abertos para anaacutelise por pertencerem ao espaccedilo puacuteblico por terem sido tornados puacuteblicos de
uma forma que permite a responsabilizaccedilatildeo Podem refletir as transformaccedilotildees lentas em
posiccedilotildees e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simboacutelicos que permeiam o dia a
dia ou no acircmbito das redes sociais pelos agrupamentos e coletivos que datildeo forma ao informal
refletindo o ir e vir de versotildees circulantes assumidas ou advogadas (P Spink 2013 p 112)
A histoacuteria que seraacute apresentada tem por objetivo lanccedilar luz a uma perspectiva diferente
de se compreender a participaccedilatildeo das OSC no processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica Em alguns
trabalhos que tratam sobre a mesma temaacutetica o processo de participaccedilatildeo das OSC eacute visto como
uma ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal ou um processo de ldquoterceirizaccedilatildeordquo (Perez 2005 Souza
2016 Souza 2017 T Cordeiro 2017 Pereira 2015 Reis 2013 Souza 2017) Em outros
momentos a atuaccedilatildeo das OSC eacute associada manutenccedilatildeo de resquiacutecios de caridade e filantropia
(Nunes 2010 Souza 2017) Aqui pretendemos apresentar mais uma possibilidade de
compreender a participaccedilatildeo das OSC Como seraacute exposto a seguir constataremos que as OSC
atuam na assistecircncia muito antes desta aacuterea se tornar uma poliacutetica puacuteblica e algumas aturam no
processo de estruturaccedilatildeo da poliacutetica sendo atores importantes na luta em prol da assistecircncia
social
Assim iremos argumentar que a participaccedilatildeo das OSC na assistecircncia social natildeo se
constitui em essecircncia enquanto um processo de ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal A
desresponsabilizaccedilatildeo por parte do Estado com a poliacutetica de assistecircncia social no Brasil ocorreu
em muitos momentos da histoacuteria e ainda ocorre nos tempos atuais Poreacutem na nossa
compreensatildeo a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute vincula agrave falta de centralidade que a assistecircncia ocupa
nas agendas governamentais e natildeo necessariamente agrave existecircncia de uma rede socioassistencial
mista composta por instituiccedilotildees estatais e natildeo estatais
Por fim no que concerne a estrutura deste capiacutetulo dividiremos o trabalho em trecircs
partes aleacutem da presente introduccedilatildeo Na primeira parte nos remetemos agraves primeiras accedilotildees
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socioassistenciais iniciadas no periacuteodo colonial perpassando o processo de institucionalizaccedilatildeo
da assistecircncia ao longo do seacuteculo XX Na segunda parte apresentamos a consolidaccedilatildeo da
assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica no final dos anos 1980 junto agrave efetivaccedilatildeo do SUAS
nos anos 2000 E na terceira parte apresentaremos a linha argumentativa que o texto propotildee
1 Histoacuterico das relaccedilotildees entre organizaccedilotildees da sociedade e Estado do Brasil Colonial agrave
Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS)
Ao remontarmos agraves primeiras praacuteticas socioassistenciais no Brasil durante a eacutepoca
Colonial vemos que as accedilotildees ndash como dar alimento abrigo e atendimento meacutedico aos pobres ndash
eram executadas fundamentalmente por instituiccedilotildees vinculadas agrave Igreja Catoacutelica pautadas
pelos preceitos da caridade e benevolecircncia (Cruz amp Guareschi 2009) Como exemplo temos a
criaccedilatildeo da primeira ldquoRoda dos Expostosrdquo4 no seacuteculo XVIII em Salvador como uma demanda
das autoridades brasileiras diante do crescente nuacutemero de bebecircs abandonados nas ruas
A Santa Casa de Misericoacuterdia vinculada agrave Igreja ficou responsaacutevel pela realizaccedilatildeo dos
trabalhos da ldquoRodardquo recebendo subsiacutedios da Coroa para o seu funcionamento Vemos nesta
iniciativa como destacado por Lilian Cruz e Neuza Guareschi (2009) um marco histoacuterico para
pensarmos nas relaccedilotildees entre sociedade civil e Estado ao longo do processo de constituiccedilatildeo das
primeiras accedilotildees socioassistenciais em que a sociedade civil guiada pelo princiacutepio da caridade
tomava a iniciativa e o Governo entrava com o financiamento das accedilotildees Dessa forma
ldquoconstatamos que as alianccedilasparcerias entre Estado e sociedade civil satildeo antigas e atravessam
a histoacuteria nas quais a Igreja Catoacutelica marca significativa presenccedilardquo (Cruz amp Guareschi 2009
p 20)
Ao avanccedilarmos na histoacuteria vemos que esta relaccedilatildeo entre Estado e Igreja continuou a
perpassar as accedilotildees assistenciais pois compreendia-se que o auxiacutelio aos pobres e a ldquocaridaderdquo
natildeo era uma funccedilatildeo a priori do poder puacuteblico Contudo a partir do final do seacuteculo XIX o
Brasil passou por importantes transformaccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas ndash como por
exemplo o fim da escravidatildeo o aumento da matildeo de obra assalariada a chegada de imigrantes
de diversos paiacuteses o ecircxodo rural e o crescimento desordenado das cidades Tais transformaccedilotildees
provocaram graves problemas sociais vinculados ao alto iacutendice de desemprego e ao
4 A ldquoRoda dos Expostosrdquo era um dispositivo utilizado para o abandono de bebecircs sendo uma espeacutecie de tabuleiro
em forma ciliacutendrica fixado na janela das Casas de Misericoacuterdia Este dispositivo funcionava a partir de um
mecanismo giratoacuterio de forma a preservar a identidade das matildees que tocavam uma sineta avisando que um bebecirc
havia sido deixado na casa (Cordeiro 2018)
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crescimento da miseacuteria urbana Neste cenaacuterio o Estado ndash que ateacute entatildeo intervinha sobre a
pobreza majoritariamente a partir de seus aparelhos repressivos ndash comeccedilou a assumir o papel
de organismo ldquocivilizadorrdquo promotor e organizador de accedilotildees poliacuteticas que garantiam um
miacutenimo de coesatildeo social e ordem puacuteblica (Cordeiro 2018 Cruz amp Guareschi 2009 Sposati et
al 1987)
Seguindo tais transformaccedilotildees institucionais em 1942 temos a criaccedilatildeo da primeira
grande instituiccedilatildeo filantroacutepica de assistecircncia social no paiacutes a Legiatildeo Brasileira de Assistecircncia
(LBA) tendo em sua presidecircncia a primeira-dama Darcy Vargas A LBA foi inicialmente criada
para prestar assistecircncia agraves famiacutelias dos soldados que lutavam na Segunda Guerra e com o fim
da guerra a instituiccedilatildeo voltou-se para as populaccedilotildees em situaccedilatildeo de pobreza (Cruz amp Guareschi
2009 Sposati et al 1987) Como apresentado por Mariana P Cordeiro (2018) podemos
destacar duas caracteriacutesticas centrais da LBA (1) tratava-se de uma organizaccedilatildeo da sociedade
civil sem finalidade econocircmica que compreendia a assistecircncia social como uma accedilatildeo de ldquoboa
vontaderdquo e natildeo um direito agrave cidadania e (2) assegurava estatutariamente sua presidecircncia agrave
primeira-dama da Repuacuteblica instituindo assim o chamado ldquoprimeiro-damismordquo (Cordeiro
2018) Neste sentido percebe-se que o Estado mais uma vez delegou agraves organizaccedilotildees da
sociedade civil a responsabilidade pela execuccedilatildeo de accedilotildees de assistecircncia social pautando-se
agora na ldquoboa vontaderdquo das mulheres da alta sociedade e da esposa do governante
Continuando nosso relato histoacuterico podemos afirmar que o primeiro-damismo bem
como a filantropia e o assistencialismo marcaram as praacuteticas socioassistenciais nas deacutecadas
que se seguiram Ateacute final dos anos 1980 a assistecircncia social natildeo foi concebida enquanto uma
poliacutetica estruturada mas era entendida como ldquoum mix de accedilotildees dispersas e descontiacutenuas de
oacutergatildeos governamentais e instituiccedilotildees privadas nas quais o Estado figurou desde sempre um
papel subsidiaacuteriordquo (Amacircncio 2008 p 31) Eacute apenas no final dos anos 70 e iniacutecio dos anos 80
com o avanccedilo dos movimentos da sociedade civil pela redemocratizaccedilatildeo do paiacutes ndash apoacutes quase
vinte anos de autoritarismo e Ditadura Militar ndash que presenciamos transformaccedilotildees mais
significativas no debate puacuteblico em torno da assistecircncia social com a entrada de uma agenda
cidadatilde que ampararia as discussotildees para a formalizaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 (Cordeiro
2018 Ximenes Paula amp Barros 2009)
Podemos considerar a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 como um marco para a
consolidaccedilatildeo do papel do poder puacuteblico enquanto promotor de poliacuteticas sociais Um dos grandes
avanccedilos trazidos pela nova Constituiccedilatildeo foi a instituiccedilatildeo do chamado ldquotripeacute da Seguridade
Socialrdquo ndash a partir disso a promoccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de Sauacutede Previdecircncia Social e
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Assistecircncia Social se tornam um dever do Estado Por conseguinte a assistecircncia social (ao
menos no plano juriacutedico e discursivo) deixou de se pautar pelas noccedilotildees de caridade
benevolecircncia e filantropia dando lugar agraves noccedilotildees de cidadania direito e poliacutetica puacuteblica
(Cordeiro amp Sato 2017 Macedo et al 2011) Para Thais Marin (2012) a Constituiccedilatildeo de 1988
inaugurou uma nova fase no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro que apesar de natildeo ter
significado o fim do legado do assistencialismo e das praacuteticas caritativasfilantroacutepicas se
apresentou como um importante marco simboacutelico e juriacutedico que iria ldquodisputarrdquo as concepccedilotildees
sobre assistecircncia social a partir dos princiacutepios da cidadania e dos direitos humanos
Outra contribuiccedilatildeo importante foi a instituiccedilatildeo da descentralizaccedilatildeo das poliacuteticas sociais
outorgando maior autonomia aos municiacutepios para a implementaccedilatildeo e adequaccedilatildeo das diretrizes
nacionais A partir da utilizaccedilatildeo de modelos federalistas com corresponsabilizaccedilotildees e
atribuiccedilotildees especiacuteficas dos trecircs niacuteveis de governos (uniatildeo estados e municiacutepios) as poliacuteticas
sociais passam a ser implementadas a partir de sistemas uacutenicos ndash com diretrizes nacionais
unitaacuterias que norteiam o processo de implementaccedilatildeo que deve se dar a partir da realidade dos
municiacutepios (Jaccoud Bichir amp Mesquita 2017)
Em confluecircncia com esta mudanccedila constitucional tivemos em 1993 a promulgaccedilatildeo da
Lei nordm 874293 intitulada de Lei Orgacircnica da Assistecircncia Social (LOAS) que estabeleceu
normas e criteacuterios para organizaccedilatildeo da assistecircncia social reafirmando a proteccedilatildeo social
enquanto um direito inalienaacutevel e um dever do Estado Em seu artigo 5ordm a LOAS define trecircs
diretrizes gerais que devem nortear o processo de construccedilatildeo da poliacutetica (1) descentralizaccedilatildeo
poliacutetico-administrativa para os Estados o Distrito Federal e os Municiacutepios e comando uacutenico
das accedilotildees em cada esfera de governo (2) participaccedilatildeo da populaccedilatildeo por meio de organizaccedilotildees
representativas na formulaccedilatildeo das poliacuteticas e no controle das accedilotildees em todos os niacuteveis (3)
primazia da responsabilidade do Estado na conduccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social em cada
esfera de governo (Brasil 1993 2009)
Portanto o Estado deve conduzir e protagonizar o processo de construccedilatildeo e
implementaccedilatildeo da poliacutetica a partir de um ldquojogordquo coordenado pelos trecircs niacuteveis de governos
com ampla participaccedilatildeo popular em todo o processo Neste documento normativo o poder
puacuteblico reafirma o papel complementar das OSC na assistecircncia social reconhecendo-as
juridicamente como ldquoentidades e organizaccedilotildees de assistecircncia socialrdquo Assim afirma-se a
importacircncia das organizaccedilotildees para a construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo da poliacutetica desde que se
adequem e passem a ser regidas por esta normativa conforme Art 6 ordm
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As accedilotildees na aacuterea de assistecircncia social satildeo organizadas em sistema descentralizado e
participativo constituiacutedo pelas entidades e organizaccedilotildees de assistecircncia social abrangidas por
esta lei que articule meios esforccedilos e recursos e por um conjunto de instacircncias deliberativas
compostas pelos diversos setores envolvidos na aacuterea (Brasil 1993)
Outro avanccedilo importante da LOAS foi instituir o Conselho Nacional de Assistecircncia
Social (CNAS) como oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo colegiada da poliacutetica de assistecircncia social
de composiccedilatildeo paritaacuteria entre sociedade civil e governo Este oacutergatildeo eacute uma importante instacircncia
de pactuaccedilatildeo controle e deliberaccedilatildeo da assistecircncia social a niacutevel federal
Se paramos a nossa anaacutelise neste momento de consolidaccedilatildeo normativa da poliacutetica
percebemos que a trajetoacuteria histoacuterica da assistecircncia social no Brasil deixou muitas ldquomarcasrdquo e
ldquolegadosrdquo que certamente influenciaram a forma como o Estado compreendeu implementou e
consolidou o que naquele momento passou a ser uma poliacutetica puacuteblica Temos como exemplo
a ideia da assistecircncia social como qualquer accedilatildeo voltada a populaccedilotildees vulneraacuteveis (Mestriner
2008) as concepccedilotildees da assistecircncia social como caridade benevolecircncia clientelismo vinculada
a figura da primeira dama (Amacircncio 2008 Marin 2012) a falta de prioridade desta poliacutetica
nas agendas governamentais (T Cordeiro 2017) entre outros
O reconhecimento da assistecircncia social como uma poliacutetica de ampliaccedilatildeo da cidadania ndash
circunscrita na Constituiccedilatildeo de 1988 e na LOAS ndash foi um importante meio de disputa discursiva
na concepccedilatildeo da assistecircncia social jaacute que a partir deste momento as organizaccedilotildees que
desejassem firmar convecircnios e parcerias com a administraccedilatildeo puacuteblica deveriam fazecirc-lo a partir
das disposiccedilotildees contidas em lei se pautando pelos princiacutepios dispostos em ambas as
normativas Portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de cidadania Certamente o processo
de mudanccedila de paradigma da assistecircncia da caridadefilantropia agrave cidadaniapoliacutetica puacuteblica
natildeo seria realizado de forma abrupta e imediata mas como todo processo de transformaccedilatildeo
seria gradual processual e dialoacutegico incorporado pelos indiviacuteduos a partir de diferentes formas
e significaccedilotildees
2 O periacuteodo poacutes-LOAS e o desafio da construccedilatildeo o Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social
A partir da promulgaccedilatildeo da LOAS em 1993 passou a ser de competecircncia dos governos
(nos trecircs niacuteveis) implementar e consolidar as normativas e diretrizes contidas em lei Esperava-
se assim o compromisso real e contiacutenuo por parte do poder puacuteblico na construccedilatildeo da poliacutetica
de assistecircncia social ou seja a priorizaccedilatildeo desta agenda nos planos de governo e
consequentemente na disposiccedilatildeo orccedilamentaacuteria necessaacuteria para a sua implementaccedilatildeo (Amacircncio
2008) Contudo a deacutecada que sucedeu a LOAS natildeo foi um periacuteodo de grandes avanccedilos na
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consolidaccedilatildeo da poliacutetica de assistecircncia social (Chiachio 2006 Marin 2012 Mestriner 2008)
Pelo contraacuterio pouco sistemaacuteticas foram as iniciativas em prol da construccedilatildeo e consolidaccedilatildeo
desta poliacutetica
Juacutelia Amacircncio (2008) afirmou que apoacutes a Constituiccedilatildeo de 88 o Governo Federal passou
a dar ecircnfase a construccedilatildeo de programas de transferecircncia de renda como forma de enfrentamento
agrave pobreza Isto ficou evidente com a criaccedilatildeo de uma seacuterie de programas como o Fundo de
Combate agrave Pobreza o Bolsa Alimentaccedilatildeo o Agente Jovem o Auxiacutelio gaacutes o Bolsa Escola entre
outros Damos destaque para a criaccedilatildeo em 2003 do Programa Bolsa Famiacutelia que se constituiu
como um dos principais programas de transferecircncia de renda no paiacutes Na mesma perspectiva
Luciana Jaccoud Renata Bichir e Ana Mesquita (2017) salientaram que nos anos 1990
tivemos alguns avanccedilos normativos ndash como a implementaccedilatildeo do primeiro benefiacutecio assistencial
de acircmbito nacional o benefiacutecio de prestaccedilatildeo continuada (BPC) em 1996 e a mobilizaccedilatildeo da
sociedade em torno da construccedilatildeo da Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social em 1995
Entretanto poucos foram os avanccedilos observados ldquono que se refere agrave afirmaccedilatildeo da gestatildeo
puacuteblica e compartilhada em niacutevel federativo e tampouco no campo dos serviccedilos entatildeo
majoritariamente operados por entidades privadas sem fins lucrativosrdquo (Jaccoud Bichir amp
Mesquita 2017 p 41)
No entanto a implementaccedilatildeo das poliacuteticas de Assistecircncia Social preconizadas pela
LOAS ocorreu em um momento de avanccedilo do projeto neoliberal no cenaacuterio internacional
(Coutinho 2011) preconizando a ldquodiminuiccedilatildeordquo do Estado e restringindo a sua capacidade de
intervenccedilatildeo sobre a economia e a sociedade Dessa forma os governos que se seguiram nos
anos de 1990 natildeo incluiacuteam em sua agenda prioritaacuteria a construccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica de
assistecircncia social que consolidasse as prerrogativas da LOAS Certamente o cenaacuterio econocircmico
e poliacutetico de instabilidades influenciou este processo de poucos avanccedilos
Foi apenas na deacutecada seguinte nos anos 2000 que presenciamos a efetivaccedilatildeo das
diretrizes estabelecidas pela LOAS com a publicaccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Assistecircncia
Social (PNAS) em 2004 ndash formulada a partir do acuacutemulo de amplas discussotildees com a sociedade
civil organizada em torno da IV Conferecircncia Nacional de Assistecircncia Social realizada em 2003
(Brasil 2005)
Por meio da PNAS tivemos a retomada das diretrizes da LOAS e em 2005 iniciou-se
o processo de construccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) ndash que tem como
objetivo a integraccedilatildeo e articulaccedilatildeo da rede socioassistencial em seus diferentes niacuteveis
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(municipal estadual e federal) regulamentando tambeacutem a participaccedilatildeo da sociedade civil para
a efetivaccedilatildeo do controle social5
No texto da PNAS foi afirmado que a proteccedilatildeo social deve garantir as seguranccedilas de
sobrevivecircncia (de rendimento e de autonomia) de acolhida e de conviacutevio ou vivecircncia familiar
Para materializar estas prerrogativas a seguranccedila de renda deve ser provida pela concessatildeo de
benefiacutecios e as outras seguranccedilas devem ser garantidas atraveacutes da oferta de serviccedilos programas
e projetos organizada a partir de dois niacuteveis de complexidade a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB)
e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE) A gestatildeo e implementaccedilatildeo destes programas ficariam ldquosob
encargo de equipamentos puacuteblicos diferenciados os Centros de Referecircncia de Assistecircncia
Social (CRAS) e os Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social (CREAS) aleacutem
da rede puacuteblica e privada voltada a puacuteblicos e atendimentos especiacuteficosrdquo (Jacooud Bichir amp
Mesquita 2017 p 42)
Este documento tambeacutem versa sobre as relaccedilotildees estabelecidas entre Estado e sociedade
civil e afirma que diante dos problemas sociais que caracterizam a sociedade brasileira eacute
necessaacuterio que o Estado assuma a ldquoprimazia da responsabilidade em cada esfera de governo na
conduccedilatildeo da poliacutetica Por outro lado a sociedade civil participa como parceira de forma
complementar na oferta de serviccedilos programas projetos e benefiacutecios de Assistecircncia Social
Possui ainda o papel de exercer o controle social sobre a mesmardquo (Brasil 2005 p 47) Em
outro trecho importante consta que ldquosomente o Estado dispotildee de mecanismos fortemente
estruturados para coordenar accedilotildees capazes de catalisar atores em torno de propostas
abrangentes que natildeo percam de vista a universalizaccedilatildeo das poliacuteticas combinada com a garantia
de equidaderdquo (Brasil 2005 p 47) Neste sentido entendemos que as organizaccedilotildees da sociedade
civil vinculadas agrave assistecircncia social continuam sendo reconhecidas como agentes importantes
no processo de consolidaccedilatildeo da poliacutetica Contudo eacute ressaltado o seu papel complementar
cabendo ao Estado o papel protagonista e condutor na estruturaccedilatildeo desta poliacutetica puacuteblica
Nos anos que se seguiram presenciamos o aumento crescente na implementaccedilatildeo de
CRAS e CREAS Em algumas localidades este aumento da oferta de serviccedilos ocorreu por meio
de convecircnios com OSC Este cenaacuterio de aumento da provisatildeo indireta exigiu do poder puacuteblico
o aperfeiccediloamento dos instrumentais juriacutedicos que regulamentam a participaccedilatildeo das OSC na
rede socioassistencial (Amacircncio 2008 Bretas 2016 Jacooud Bichir e Mesquita 2017 Marin
2012) Desse modo em 2009 foi promulgada a Lei nordm 121012009 que desvinculou a
5 A organizaccedilatildeo do SUAS tambeacutem estaacute regulamentada pela Norma Operacional Baacutesica do SUAS (NOB-SUAS) e
pela Norma Operacional Baacutesica de Recursos do SUAS (NOB-RHSUAS) (Brasil 2005 2011)
41
concessatildeo do Certificado de Entidades Beneficentes de Assistecircncia Social (CEBAS)6 do
Conselho Nacional de Assistecircncia Social (CNAS) e atribui esta responsabilidade agrave cada
ministeacuterio setorial ou seja no caso na assistecircncia social passou a ser competecircncia do Ministeacuterio
de Desenvolvimento Social (MDS) a concessatildeo da certificaccedilatildeo Este movimento possibilitou
que o CNAS que acabava atuando numa loacutegica cartorial concedendo ou negando certificaccedilotildees
pudesse assumir de fato a sua atribuiccedilatildeo de oacutergatildeo superior de deliberaccedilatildeo controle social e
coordenaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social
Naquele mesmo ano tivemos a aprovaccedilatildeo da Tipificaccedilatildeo Nacional de Serviccedilos
Socioassistenciais (Brasil 2009) que estabeleceu padrotildees de organizaccedilatildeo e execuccedilatildeo dos
serviccedilos dividindo-os por niacuteveis de complexidade (PSB e PSE de meacutedia e alta complexidade)
Nesse documento constam paracircmetros miacutenimos de desenvolvimento e execuccedilatildeo dos serviccedilos
puacuteblicos de assistecircncia social que devem ser seguidos por todas as instituiccedilotildees que os executem
ndash sejam estatais ou natildeo estatais Ao estabelecer ldquoparacircmetros miacutenimosrdquo para a execuccedilatildeo dos
serviccedilos avanccedilou-se na consolidaccedilatildeo de uma rede uacutenica de assistecircncia social na qual todas as
instituiccedilotildees (estatais e natildeo-estatais) satildeo regidas pelas mesmas normativas que norteiam a
construccedilatildeo do SUAS
Seguindo a mesma perspectiva tivemos em 2012 a revisatildeo e atualizaccedilatildeo da LOAS que
em sua nova redaccedilatildeo institui o ldquoviacutenculo SUASrdquo e o Cadastro Nacional de Entidades de
Assistecircncia Social ldquoambos visando integrar a rede privada agraves normativas e agrave fiscalizaccedilatildeo
puacuteblicardquo (Jaccoud Bichir e Mesquita 2017 p 42) Desde entatildeo temos observado o aumento
da rede socioassistencial em niacutevel nacional seja por meio apenas da provisatildeo direta ou atraveacutes
da integraccedilatildeo de serviccedilos estatais e natildeo estatais Entretanto apesar de termos presenciado
avanccedilos na consolidaccedilatildeo de programas accedilotildees e serviccedilos na assistecircncia social a rede atualmente
implementada natildeo eacute suficiente para tratar as demandas sociais que caracterizam a realidade
brasileira
3 Analisando a participaccedilatildeo das OSC na poliacutetica de assistecircncia social
Em linhas gerais tentamos apresentar o histoacuterico do desenvolvimento da assistecircncia
social enquanto uma poliacutetica puacuteblica Certamente natildeo eacute consenso nem na literatura acadecircmica
6 O CEBAS eacute definido como um ldquoinstrumento que possibilita a organizaccedilatildeo usufruir da isenccedilatildeo das contribuiccedilotildees
sociais tais como a parte patronal da contribuiccedilatildeo previdenciaacuteria sobre a folha de pagamento e permite ainda a
priorizaccedilatildeo na celebraccedilatildeo de contratualizaccedilatildeoconvecircnios com o poder puacuteblico entre outros benefiacuteciosrdquo
Informaccedilatildeo retirada do site oficial do Ministeacuterio da cidadania ndash disponiacutevel em httpmdsgovbr acesso em
10022019
42
nem na arena poliacutetica o papel da assistecircncia social no sistema de proteccedilatildeo social brasileiro Ao
longo das deacutecadas a assistecircncia social ganhou diferentes posiccedilotildees e contornos em relaccedilatildeo agrave
priorizaccedilatildeo nas agendas dos governos e agrave proacutepria concepccedilatildeo do que seria esta aacuterea Ainda hoje
vemos que mesmo apoacutes 26 anos da promulgaccedilatildeo da LOAS e 31 anos da Constituiccedilatildeo de 88 a
ldquoidentidaderdquo da assistecircncia social eacute alvo de constantes disputas e ataques sendo necessaacuterio a
atuaccedilatildeo exaustiva de ativistas e militantes em prol da defesa da assistecircncia a partir das
prerrogativas destas normativas
Isto fica ainda mais evidente nas uacuteltimas gestotildees no Governo Federal principalmente
na gestatildeo de Michel Temer (2016-2018) que cortou significativamente os repasses direcionados
a assistecircncia social bem como suas accedilotildees se restringiram a fomentar o Programa Crianccedila Feliz
amplamente questionado por especialistas trabalhadores da assistecircncia por estar desvinculados
dos princiacutepios normativos do SUAS Outra importante medida sancionada por este governo
que afeta as poliacuteticas puacuteblicas como um todo foi a aprovaccedilatildeo da Emenda Constitucional 95 ndash
intitulada de PEC do teto de gastos durante sua tramitaccedilatildeo no Congresso Nacional Esta
emenda vincula os investimentos puacuteblicos ao crescimento do PIB por vinte anos ou seja
restringe o investimento em aacutereas sociais a despeito da atual condiccedilatildeo de subfinanciamento No
atual governo apesar de natildeo termos presenciado significativas mudanccedilas na assistecircncia social
ateacute este momento a proposta de reforma da previdecircncia se aprovada nos termos propostos iraacute
reconfigurar o sistema da proteccedilatildeo social restringindo ainda mais o alcance da poliacutetica de
assistecircncia social
No que diz respeito a oferta de serviccedilos socioassistenciais por meio de parcerias com
OSC haacute muitas controveacutersias (nos espaccedilos acadecircmicos e poliacuteticos) sobre o papel e a
centralidade destas organizaccedilotildees Gabriela Brettas (2016) que tambeacutem estudou a relaccedilatildeo entre
OSC e Estado na implementaccedilatildeo da Assistecircncia Social afirmou que existem trecircs momentos
sobre o entendimento do papel das OSC na poliacutetica de Assistecircncia Social Em um primeiro
momento na fase inicial de implementaccedilatildeo do SUAS havia uma visatildeo estatista da execuccedilatildeo
desta poliacutetica puacuteblica Entendia-se que implementaccedilatildeo da rede socioassistencial deveria ser
realizada unicamente atraveacutes de serviccedilos administrados de forma direta pelo poder puacuteblico As
organizaccedilotildees por outro lado eram associadas de forma generalizante a praacuteticas conservadoras
assistencialistas e filantroacutepicas Portanto vincular os serviccedilos agrave oferta pelas OSC seria atrelar
assistecircncia social a estas praacuteticas
Em um segundo momento em que o SUAS comeccedilou a ganhar contornos mais
estruturados a administraccedilatildeo puacuteblica passou a entender que haacute uma rede socioassistencial
43
privada do SUAS ou seja que a despeito da implementaccedilatildeo direta (realizada primordialmente
atraveacutes dos CRAS e CREAS) as organizaccedilotildees continuaram ofertando serviccedilos especiacuteficos a
populaccedilotildees em situaccedilatildeo de vulnerabilidade Neste sentido as OSC passam a ser vistas como
instituiccedilotildees que tem expertise e capilaridade Concomitantemente algumas OSC
(principalmente as grandes) participaram de espaccedilos nacionais de construccedilatildeo da poliacutetica
reivindicando o seu lugar no sistema Por fim no terceiro momento a partir de 2011 entendeu-
se que as organizaccedilotildees satildeo importantes ficando evidente o discurso em prol de uma rede
socioassistencial do SUAS uacutenica Iniciou-se entatildeo um processo de aprimoramento das
regulamentaccedilotildees que tratam da relaccedilatildeo entre OSC e Estado (Brettas 2016)
A autora destacou que estas concepccedilotildees ainda hoje permeiam as discussotildees na
assistecircncia social Evidentemente isto natildeo eacute ldquoum processo no qual essas ideias se substituem
no tempo de modo linear ao contraacuterio envolve dinacircmicas complexas e tensotildees entre as distintas
concepccedilotildees poliacuteticas a respeito do papel do Estado e das OSCrdquo (Brettas 2016 p 151) Em
complementariedade a autora apresentou que
Questotildees como o ldquotamanhordquo do Estado as implicaccedilotildees nos espaccedilos de autonomia e papeis das
OSC (de controle social de prestadoras de serviccedilo de articulaccedilatildeo intersetorial etc) ou sobre a
loacutegica de vinculaccedilatildeo e participaccedilatildeo das OSC ao SUAS (seu lugar institucional no sistema) por
exemplo natildeo satildeo consensuais e continuam em disputa nos espaccedilos de reflexatildeo e construccedilatildeo da
poliacutetica ndash na academia entre as equipes da SNASMDS no CNAS entre as OSC nos conselhos
e oacutergatildeos gestores locais de assistecircncia ou ainda nas instacircncias de discussatildeo e deliberaccedilatildeo sobre
as relaccedilotildees entre Estado e OSC em sentido mais abrangente (como a SGPR ou a Plataforma do
Marco Regulatoacuterio e tambeacutem nos foacuteruns em acircmbito local) (Brettas 2016 p 152)
Seguindo esta linha de pensamento Julia Amacircncio (2008) destacou que se por um lado
a participaccedilatildeo das OSC na implementaccedilatildeo de serviccedilos socioassistenciais aumenta por outro a
relaccedilatildeo que o Estado estabelece com estas organizaccedilotildees natildeo se daacute nos mesmos moldes daquelas
historicamente construiacutedas antes da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 Como descrito
anteriormente a oferta de serviccedilos era feita de forma fragmentada sendo considerada como
qualquer accedilatildeo a populaccedilotildees vulneraacuteveis baseadas em diferentes princiacutepios (da cidadania
filantropia assistencialismo primeiro-damismo)
Apoacutes a promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo de 1988 e da LOAS a luta pela consolidaccedilatildeo da
assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica caminhou num sentido contraacuterio Buscou-se a
construccedilatildeo de um sistema uacutenico com diretrizes princiacutepios e paracircmetros universais pautados
nos preceitos da cidadania e do direito social Disputou-se assim a ldquoidentidaderdquo da assistecircncia
social tentando imprimir o caraacuteter de poliacutetica puacuteblica de direito de todo cidadatildeo e dever do
Estado Esta ldquodisputa identitaacuteriardquo natildeo apenas chegou nas OSC que ofertavam os serviccedilos mas
tambeacutem foi construiacuteda de forma ativa por muitas organizaccedilotildees que participaram dos espaccedilos
44
de construccedilatildeo da poliacutetica Neste sentido vemos que a relaccedilatildeo entre Estado e sociedade civil natildeo
se constroacutei a partir de relaccedilotildees unilaterais de passividade e atividade mas sim em um processo
dialoacutegico de muacutetua constituiccedilatildeo
Por outro lado isto natildeo quer dizer que acreditamos que natildeo houve
ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo por parte do poder puacuteblico como abordado por parte da literatura
(Souza 2016 Souza 2017 Perez 2005) Na nossa leitura isto aconteceu em muitos momentos
afinal a histoacuteria natildeo eacute linear e a construccedilatildeo natildeo foi puramente progressiva Tivemos governos
nos quais a assistecircncia social ganhou destaque na agenda poliacutetica com a maior disponibilidade
de recursos e governos que foram marcados por um momento de retraccedilatildeo e pouco investimento
Contudo nos parece que em alguns momentos a utilizaccedilatildeo do termo
ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estaacute associada apenas a realizaccedilatildeo de convecircnios e parcerias
Certamente a construccedilatildeo de parcerias com as OSC foi algo ldquorentaacutevelrdquo e ldquoconvenienterdquo para o
poder puacuteblico pois o governo comumente investe um montante de recuso financeiro
insuficiente para a execuccedilatildeo efetiva dos serviccedilos Contudo esta precarizaccedilatildeo ocorre tambeacutem
em serviccedilos da administraccedilatildeo direta em que haacute a contraccedilatildeo de uma equipe muito reduzida com
baixas remuneraccedilotildees para a execuccedilatildeo de um volume muito grande de trabalho Nesse sentido
compreendemos que a desresponsabilizaccedilatildeo estaacute associada agrave centralidade que a assistecircncia
social ocupa (ou no caso natildeo ocupa) na agenda governamental ndash e natildeo apenas do desenho
institucional de uma rede socioassistencial mista
Para Amacircncio (2008) o fato de a assistecircncia social passar a ser considerada como
poliacutetica puacuteblica de dever do Estado natildeo condiciona sua execuccedilatildeo exclusivamente pela accedilatildeo
direta do poder puacuteblico Portanto puacuteblico natildeo quer dizer exclusivamente estatal A autora
desenvolveu uma linha de pensamento a partir de alguns trechos escritos por Raquel Raichelis
(1998) e por Maria Luiza Mestriner (2005) ndash que compreendemos ser bastante pertinente para
a discussatildeo desta questatildeo Assim neste diaacutelogo
Esta compreensatildeo [do puacuteblico natildeo apenas como estatal] natildeo restringe o universo da assistecircncia
social a uma intervenccedilatildeo exclusiva dos governos uma vez que supotildee a participaccedilatildeo em
diferentes niacuteveis dos segmentos organizados da sociedade civil em sua formulaccedilatildeo
implementaccedilatildeo e gestatildeo (RAICHELIS 1998 129)
No entanto
Conceber a assistecircncia social nesta perspectiva natildeo implica diluir a responsabilidade estatal por
sua conduccedilatildeo Ao contraacuterio situaacute-la no campo dos direitos remete agrave ativa intervenccedilatildeo do Estado
para garantir sua efetivaccedilatildeo dentro dos paracircmetros legais que a definem (RAICHELIS 1998
37)
A soluccedilatildeo para esse impasse depende
45
A possibilidade de uma parceria com o Estado na elaboraccedilatildeo implementaccedilatildeo e controle de uma
poliacutetica puacuteblica de assistecircncia social com clara definiccedilatildeo das responsabilidades deste Estado
enquanto normatizador coordenador e financiador da poliacutetica que integra agrave sua accedilatildeo as
iniciativas privadas num sistema articulado e agrave sua accedilatildeo as iniciativas privadas num sistema
articulado e coerente de accedilotildees (Mestriner 2005 p 47 citado por Amacircncio 2008 p 173)
Numa apreciaccedilatildeo similar Peter Spink e Ana Marcia Ramos (2016) sustentam que ldquoser
o condutor das poliacuteticas sociais natildeo impede que os governos tenham parceiros tanto para a
execuccedilatildeo dos serviccedilos que adveacutem dessas poliacuteticas quanto para a construccedilatildeo conjunta de
projetos societaacuterios que venham ao encontro de maior justiccedila e equidade socialrdquo (p288) Dessa
forma no que diz respeito agrave assistecircncia social entende-se que o caraacuteter puacuteblico das poliacuteticas
natildeo adveacutem exclusivamente da oferta direta do Estado mas do enquadramento normativo
construiacutedo nas instacircncias de pactuaccedilatildeo e negociaccedilatildeo socioestatais em que a sociedade civil
tambeacutem estaacute presente Ou seja o caraacuteter puacuteblico dos serviccedilos depende da vinculaccedilatildeo das accedilotildees
desenvolvidas agraves diretrizes e princiacutepios nacionais dispostos em lei (como na LOAS na PNAS
e no SUAS)
Consideraccedilotildees finais
O argumento central do presente artigo foi sustentar a ideia de que as parcerias puacuteblico-
privadas com organizaccedilotildees da sociedade civil natildeo necessariamente marcam um processo de
ldquoterceirizaccedilatildeordquo ou ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo estatal conforme defendido por parte da literatura
acadecircmica ndash ou que a participaccedilatildeo das OSC necessariamente faccedila menccedilatildeo a resquiacutecios de
caridade e filantropia Acreditamos que certamente existem OSC que atuam a partir destas
perspectivas assim como deve haver profissionais concursados(a)s e gestores(as) que pautam
sua atuaccedilatildeo nos mesmos preceitos Como apresentado anteriormente foram muitos anos da
assistecircncia social baseados nos paradigmas da caridade benevolecircncia filantropia A histoacuteria da
assistecircncia social como poliacutetica puacuteblica ndash ou seja de direito de toda(o) cidadatilde(o) e de dever do
Estado ndash eacute recente em termos histoacutericos
Desse modo como todo processo de transformaccedilatildeo macroestrutural a mudanccedila de
paradigma eacute gradual processual e dialoacutegica incorporada de diferentes formas pelos sujeitos
ressignificada a partir das experiecircncias particulares e do cotidiano Assim vemos que
atualmente haacute diferentes concepccedilotildees sobre a assistecircncia social tanto por parte da sociedade
civil quanto dos governos que perpassam um processo de constantes disputas e negociaccedilotildees
sobre os rumos desta poliacutetica puacuteblica Neste sentido a Psicologia Social de perspectiva
construcionista pela ecircnfase no estudo das interaccedilotildees discursivas e dos processos dialoacutegicos se
46
constitui enquanto uma importante ferramenta teoacuterica e metodoloacutegica para o estudo das
poliacuteticas puacuteblicas
Por fim argumentamos que a Constituiccedilatildeo de 1988 a LOAS a PNAS e todos as outras
normativas que regem a assistecircncia social foram importantes meios de disputa discursiva na
concepccedilatildeo desta poliacutetica influindo sobre a sua operacionalizaccedilatildeo Posto que com base nestas
legislaccedilotildees as organizaccedilotildees conveniadas devem prestar serviccedilos baseados nos princiacutepios
expostos nestes documentos ndash portanto tendo como premissa central a noccedilatildeo de direito e
cidadania Dessa forma acreditamos que o intento em resgatar os marcos histoacutericos e as
normativas relevantes para a constituiccedilatildeo das parcerias puacuteblico-privadas (ou estataisnatildeo-
estatais) pode nos servir com um importante recurso analiacutetico para a compreensatildeo dos efeitos
deste legado histoacuterico no desenvolvimento institucional e na dinacircmica organizacional na
poliacutetica de assistecircncia social nos dias atuais
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Capiacutetulo 3
Proteccedilatildeo Social e Fortalecimento de Viacutenculos contribuiccedilotildees da Poliacutetica de
Assistecircncia Social a mulheres idosas
Izabela Penha Silva
Renata Fabiana Pegoraro
Introduccedilatildeo
A Psicologia vem tendo participaccedilatildeo importante nas poliacuteticas sociais desde o final da
deacutecada de 1970 por meio da criaccedilatildeo de sindicatos e efetiva ocupaccedilatildeo dos mesmos pela classe
profissional bem como do chamado ldquosistema conselhosrdquo Na deacutecada de 1980 os psicoacutelogos
brasileiros se envolveram em importante movimento no campo social o que auxiliou na
definiccedilatildeo de algumas condiccedilotildees para uma inserccedilatildeo mais extensiva da Psicologia no campo das
poliacuteticas puacuteblicas (Yamamoto 2007)
A temaacutetica das poliacuteticas sociais tem sido alvo de investigaccedilotildees e debates no acircmbito
acadecircmico da Psicologia tanto no que diz respeito agrave compreensatildeo das accedilotildees e serviccedilos
vinculados agraves poliacuteticas puacuteblicas quanto agrave sua articulaccedilatildeo com o trabalho dos(as) psicoacutelogos(as)
buscando compreender como tem se dado atualmente a participaccedilatildeo da categoria no campo
social Neste contexto este capiacutetulo versa sobre uma pesquisa de mestrado realizada em um
Centro de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) do interior de Minas Gerais com 13
usuaacuterias pertencentes ao ldquoGrupo de Mulheresrdquo ofertado pelo Serviccedilo de Convivecircncia e
Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) da instituiccedilatildeo com objetivo de investigar como tais
usuaacuterias compreendem as accedilotildees do CRAS Abordaremos em seccedilatildeo seguinte a poliacutetica de
assistecircncia social e o CRAS enquanto um dispositivo dessa aacuterea
1 A Poliacutetica de Assistecircncia Social e a Proteccedilatildeo Social Baacutesica
A Assistecircncia Social no Brasil configurou-se enquanto poliacutetica puacuteblica a partir da
Constituiccedilatildeo Federal de 1988 quando passou a constituir um dos pilares da Seguridade Social
junto agrave Sauacutede e agrave Previdecircncia Seus serviccedilos accedilotildees projetos e programas satildeo geridos pelo
Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) que eacute organizado a partir de uma loacutegica estrutural
51
de proteccedilatildeo em dois niacuteveis a Proteccedilatildeo Social Baacutesica (PSB) e a Proteccedilatildeo Social Especial (PSE)
A PSB eacute considerada a porta de entrada da Assistecircncia Social e desenvolve accedilotildees de caraacuteter
preventivo isto eacute atua para que a violaccedilatildeo de direitos constitucionais seja prevenida tendo suas
accedilotildees referenciadas nos Centros de Referecircncia de Assistecircncia Social (CRAS) Jaacute a PSE tem
caraacuteter protetivo uma vez que se destina a sujeitos e famiacutelias que se encontram em situaccedilatildeo de
risco pessoal ou social isto eacute aqueles que jaacute tiveram seus direitos violados As accedilotildees deste niacutevel
de proteccedilatildeo estatildeo referenciadas nos Centros de Referecircncia Especializados de Assistecircncia Social
(CREAS) (Pereira amp Guareschi 2018 Cruz amp Guareschi 2013 Couto 2013) Neste texto
abordaremos a PSB por se tratar do contexto em que foi realizada a pesquisa aqui relatada
Como mencionado anteriormente as accedilotildees da PSB estatildeo referenciadas no CRAS Esta
unidade da Poliacutetica de Assistecircncia Social atua em municiacutepios e no Distrito Federal e tem como
foco aqueles que em seu territoacuterio de abrangecircncia encontram-se em situaccedilatildeo de
vulnerabilidade e risco social decorrente de pobreza privaccedilatildeo eou fragilidade de viacutenculos
afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Sua proposta eacute prevenir a violaccedilatildeo de
direitos por meio do desenvolvimento de potencialidades aquisiccedilotildees fortalecimento de
viacutenculos familiares e comunitaacuterios e acesso a benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda
(tais como cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade auxiacutelio funeral Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio
de Prestaccedilatildeo Continuada) Para isso faz-se importante o conhecimento do territoacuterio de atuaccedilatildeo
do CRAS e das famiacutelias que nele vivem suas necessidades vulnerabilidades situaccedilotildees de risco
bem como suas potencialidades e as ofertas jaacute existentes no territoacuterio em questatildeo Este trabalho
eacute denominado busca ativa e possibilita compreender melhor a realidade para nela atuar O
CRAS tambeacutem tem como funccedilatildeo promover a articulaccedilatildeo intersetorial do territoacuterio buscando
dialogar com as demais poliacuteticas e setores (educaccedilatildeo sauacutede previdecircncia cultura esporte
lazer) viabilizando o acesso das famiacutelias aos serviccedilos setoriais para que tenham um
atendimento integral (Brasil 2009)
No Brasil de acordo com o Censo SUAS realizado no ano de 2018 haacute um total de 8360
unidades de CRAS os quais atendem 28823500 famiacutelias sendo 1173 destas unidades
alocadas no Estado de Minas Gerais Em todo o Brasil os CRAS empregam 103625
profissionais dos quais 10529 satildeo psicoacutelogos(as) Em Minas Gerais atuam 1660 profissionais
da Psicologia isto eacute haacute a presenccedila de ao menos um psicoacutelogo em todos os CRAS do Estado
(Brasil 2019)
Dentre as accedilotildees que se encontram na alccedilada do CRAS temos (a) Serviccedilo de Proteccedilatildeo
e Atendimento Integral agrave Famiacutelia (PAIF) (b) Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de
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Viacutenculos (SCFV) e (c) Serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica no domiciacutelio para pessoas com
deficiecircncia e idosas (Ministeacuterio do Desenvolvimento Social 2016) Seraacute abordado mais
especificamente neste capiacutetulo o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos uma
vez que o ldquoGrupo de Mulheresrdquo eacute uma accedilatildeo que pertence ao SCFV do CRAS pesquisado
11 O Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos (SCFV) e a contextualizaccedilatildeo da
pesquisa
Como o proacuteprio nome sugere o Serviccedilo de Convivecircncia e Fortalecimento de Viacutenculos
(SCFV) tem como principal objetivo a promoccedilatildeo da convivecircncia coletiva e o fortalecimento de
viacutenculos afetivos familiares comunitaacuterios e de pertencimento Devido a isso suas accedilotildees satildeo
organizadas no formato de grupos e satildeo propostas atividades que promovam trocas culturais e
de vivecircncias entre os usuaacuterios bem como contribuam com o desenvolvimento do sentimento
de pertenccedila e de identidade Para isto eacute importante que a formaccedilatildeo dos grupos leve em
consideraccedilatildeo as especificidades do ciclo de vida dos usuaacuterios podendo ser organizados grupos
de crianccedilas adolescentes jovens adultos pessoas idosas entre outros As atividades do SCFV
satildeo ofertadas na proacutepria instituiccedilatildeo [CRAS] ou em instituiccedilotildees parceiras (Brasil 2016)
O ldquoGrupo de Mulheresrdquo do qual as participantes da pesquisa aqui apresentada satildeo
frequentadoras integra o SCFV de um CRAS do interior de Minas Gerais Este grupo eacute
composto por mulheres em sua maioria idosas aposentadaspensionistas e viuacutevas que estatildeo no
serviccedilo haacute pelo menos oito anos O grupo eacute ofertado semanalmente na instituiccedilatildeo tem duraccedilatildeo
aproximada de 60 minutos e eacute coordenado por uma psicoacuteloga da equipe de referecircncia do CRAS
Nele satildeo abordadas diversas temaacuteticas relacionadas aos interesses das participantes por vezes
contempladas por palestrantes convidados Satildeo realizadas atividades que promovem a sauacutede
mental e fiacutesica (ex memoacuteria concentraccedilatildeo coordenaccedilatildeo motora) e o fortalecimento de
viacutenculos aleacutem de espaccedilo para compartilhamento de experiecircncias diversas por meio de rodas de
conversa acerca de conteuacutedos relacionados ao cotidiano e agraves relaccedilotildees sociais e comunitaacuterias das
usuaacuterias
Esta pesquisa buscou investigar como as usuaacuterias deste grupo compreendem as accedilotildees
ofertadas pelo CRAS O ldquoGrupo de Mulheresrdquo foi eleito para fase de campo da pesquisa por
agregar as usuaacuterias mais antigas do serviccedilo e que apresentam elevada taxa de frequecircncia no
grupo Para a construccedilatildeo de dados foram aplicados questionaacuterios para caracterizaccedilatildeo das
usuaacuterias e realizados trecircs encontros para entrevistas em grupo no formato de Grupos Focais
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os quais contaram com materiais de apoio como disparadores de discussotildees acerca do tema
proposto Os dados foram analisados por meio de Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por
Bardin (1977) Abordaremos em seccedilatildeo seguinte o uso de Grupo Focal como teacutecnica de
construccedilatildeo de dados na pesquisa no campo das poliacuteticas puacuteblicas
2 O uso de Grupos Focais em pesquisas no campo das poliacuteticas puacuteblicas organizaccedilatildeo
conduccedilatildeo vantagens e desvantagens
A teacutecnica de Grupos Focais (GF) foi eleita para fase de construccedilatildeo de dados por ser um
procedimento raacutepido praacutetico e que permite acessar com facilidade as contribuiccedilotildees que a
populaccedilatildeo investigada tem a oferecer sendo comumente utilizado nos campos das Ciecircncias
Sociais Antropologia e Sauacutede Essa teacutecnica tem como objetivo investigar por meio de
entrevistas em grupo um tema comum aos participantes proporcionando espaccedilo interacional
que possibilita a expressatildeo de sentimentos crenccedilas valores experiecircncias representaccedilotildees e
percepccedilotildees dos participantes sobre o fenocircmeno investigado Para isto eacute importante que os
participantes sejam escolhidos de forma intencional isto eacute tenham relaccedilatildeo com os objetivos da
pesquisa Aleacutem disso eacute recomendado que o grupo seja composto por uma meacutedia entre quatro e
quinze participantes e que tenha uma duraccedilatildeo meacutedia de 60 a 120 minutos atentando-se para
que encontros muito longos sejam evitados uma vez que podem causar cansaccedilo e desgaste
mental (Busanello Lunardi-Filho Kerber amp Santos 2013 Backes Colomeacute Erdman amp
Lunardi 2011) A literatura tambeacutem aponta que o nuacutemero de encontros necessaacuterios para
investigaccedilatildeo de um tema varia de acordo com a complexidade do mesmo sendo recomendado
o uso do criteacuterio de saturaccedilatildeo como estrateacutegia para delimitaccedilatildeo do nuacutemero de encontros
necessaacuterios pois considera a repeticcedilatildeo a previsibilidade dos testemunhos e a ausecircncia do
surgimento de novas ideias identificando que o esgotamento do tema foi alcanccedilado (Trad
2009)
Para desenvolvimento dos grupos focais eacute necessaacuteria a presenccedila de um moderador que
tem como funccedilatildeo coordenar o grupo esclarecer sobre o objetivo da pesquisa e a dinacircmica dos
encontros bem como criar um clima agradaacutevel entre os participantes e fomentar as discussotildees
O moderador pode contar com o auxiacutelio de um observador para controle do tempo
monitoramento dos equipamentos de gravaccedilatildeo e registro da dinacircmica grupal expressotildees dos
participantes e demais aspectos que julgar importantes O espaccedilo para realizaccedilatildeo dos encontros
deve ser localizado preferencialmente em territoacuterio neutro protegido de ruiacutedos ou demais
interrupccedilotildees confortaacutevel e que assegure a privacidade dos participantes (Busanello et al 2013
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Backes et al 2011 Trad 2009) O desenvolvimento e a observaccedilatildeo do GF podem ser
facilitadas pela organizaccedilatildeo do espaccedilo fiacutesico com as cadeiras dispostas em ciacuterculo (Gaskell
2002)
Compreendemos que o uso da teacutecnica de GF pode ser vantajosa no campo das poliacuteticas
puacuteblicas em especial por ofertar um espaccedilo confortaacutevel para a livre expressatildeo de ideias e
opiniotildees sobre determinado assunto o que permite aos pesquisadores explorarem perguntas natildeo
antevistas e incentivar a participaccedilatildeo dos integrantes possibilitando o entendimento das
questotildees de forma mais ampla Aleacutem disso a flexibilidade em seu formato o qual permite o
uso de imagens metaacuteforas ou estiacutemulos projetivos tambeacutem eacute vantajoso para uma construccedilatildeo de
dados de maior qualidade e mais rica em detalhes (Gaskell 2002 Trad 2009)
A literatura aponta alguns limites do procedimento de GF que versam sobre o risco de
interferecircncia dos juiacutezos de valores do moderador bem como a dificuldade de generalizaccedilatildeo dos
dados construiacutedos visto que a seleccedilatildeo de participantes eacute feita de forma intencional e por
conveniecircncia Quanto agrave generalizaccedilatildeo em pesquisas qualitativas vale pontuar que natildeo se
objetiva encontrar uma unidade entre as representaccedilotildees sobre determinado objeto de estudo
Pelo contraacuterio busca-se a compreensatildeo dos diferentes e muitas vezes divergentes pontos de
vista sobre o tema em foco Em alguns casos no entanto a discussatildeo em grupo pode impedir a
expressatildeo de opiniotildees que sejam divergentes das dos demais participantes e alguns integrantes
do grupo podem dominar a discussatildeo ou desviar o assunto proposto enviesando a construccedilatildeo
de dados A dificuldade de garantir o total anonimato dos participantes por se tratar de uma
entrevista grupal tambeacutem eacute apontada como uma desvantagem da teacutecnica (Trad 2009 Backes
et al 2011)
Na pesquisa com o ldquoGrupo de Mulheresrdquo foram realizados trecircs encontros de GF com
duraccedilatildeo aproximada de 90 minutos Cada encontro contou com materiais de apoio como
dispositivos disparadores de ideias reflexotildees e sentimentos acerca do tema a ser investigado
naquele encontro No primeiro encontro foi utilizado como material disparador de discussatildeo a
foto da fachada do CRAS investigado procurando compreender os sentidos atribuiacutedos agrave
instituiccedilatildeo por suas usuaacuterias Em um segundo momento deste encontro foram apresentadas agraves
participantes imagens de diferentes serviccedilos puacuteblicos de aacutereas diversas como Sauacutede Educaccedilatildeo
Previdecircncia Assistecircncia Social Cultura Esporte e Lazer com o intuito de investigar o
conhecimento que as idosas tinham a respeito da Poliacutetica de Assistecircncia Social e do CRAS
enquanto pertencente a essa aacuterea No segundo encontro objetivou-se investigar o conhecimento
que as participantes tinham sobre as atividades e accedilotildees realizadas pela instituiccedilatildeo sendo
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convidadas a comporem uma lista com todas aquelas que se lembrassem Em seguida foram
apresentadas imagens dos benefiacutecios eventuais e de transferecircncia de renda da Proteccedilatildeo Social
Baacutesica para investigaccedilatildeo minuciosa do conhecimento que as mesmas apresentavam sobre cada
um deles bem como de sua relaccedilatildeo com o CRAS No terceiro e uacuteltimo encontro as idosas
foram convidadas a circular pelos espaccedilos da instituiccedilatildeo observando sua estrutura
organizaccedilatildeo dinacircmica corpo de funcionaacuterios para em seguida fazerem uma avaliaccedilatildeo do
CRAS pontuando o que estava funcionando bem e o que precisava ser melhorado Nesse
mesmo encontro tambeacutem foi investigado o lugar que o CRAS ocupa na vida das usuaacuterias
contando com a apresentaccedilatildeo de um viacutedeo produzido pela equipe com seus momentos na
instituiccedilatildeo como material disparador de reflexotildees
O nuacutemero de participantes em cada encontro variou entre 8 e 12 A partir do uso dessa
teacutecnica de construccedilatildeo de dados (GF) e da Anaacutelise de Conteuacutedo Temaacutetica proposta por Bardin
(1977) foi possiacutevel elencar alguns eixos de anaacutelise construiacutedos ao longo da pesquisa os quais
seratildeo discutidos em seccedilatildeo seguinte A pesquisa foi aprovada pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa
com seres humanos da Universidade Federal de Uberlacircndia (Parecer 2735403) e cada
participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em duas vias uma
ficou com a participante e a outra foi entregue agrave pesquisadora Os encontros ocorreram em uma
sala reservada no proacuteprio CRAS
3 Contribuiccedilotildees da Poliacutetica de Assistecircncia Social a mulheres usuaacuterias do CRAS
As 12 mulheres que participaram da pesquisa tinham entre 53 e 92 anos sendo a grande
maioria idosas (n=10) viuacutevas (n=8) aposentadas ou pensionistas Destas 11 acessaram o
CRAS por demanda espontacircnea (convidadas por familiares ou conhecidos jaacute vinculados ao
serviccedilo) e apenas uma por busca ativa A maior parte (n=8) eacute usuaacuteria do CRAS haacute pelo menos
oito anos
De acordo com os resultados da pesquisa a participaccedilatildeo de mulheres idosas nas poliacuteticas
sociais e neste caso no serviccedilo de Proteccedilatildeo Social Baacutesica tem feito com que elas identifiquem
nesses espaccedilos um lugar que lhes pertence Ao longo do processo de construccedilatildeo de dados da
pesquisa um dos aspectos investigados pelas pesquisadoras dizia respeito ao puacuteblico-alvo da
instituiccedilatildeo isto eacute foi investigado junto agraves usuaacuterias para quem os serviccedilos ofertados na
instituiccedilatildeo [CRAS] satildeo destinados As participantes mencionaram que aquele serviccedilo se
destinava agraves pessoas em situaccedilatildeo de vulnerabilidade enfatizando o puacuteblico da terceira idade
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As demais faixas etaacuterias segundo as participantes tambeacutem satildeo contempladas nas accedilotildees do
CRAS entretanto em segundo plano como ilustrado pelo trecho ldquo- O adolescente eacute puacuteblico
alvo do CRASrdquo (Pesquisadora GF1) ldquo- O CRAS Soacute se for [adolescente] deficiente Isso aqui
eacute mais para noacutes [idosas mulheres]rdquo (Neide1 GF1)
Nesse sentido mesmo sendo um serviccedilo destinado ao puacuteblico em situaccedilatildeo de
vulnerabilidade independente de sua faixa etaacuteria o CRAS tem sido reconhecido por essas
mulheres como um lugar que tem como foco acolher as questotildees da terceira idade Alguns
autores (Stuart-Hamilton 2002 citado por Morais 2009) apontam situaccedilotildees que contribuem
para a elucidaccedilatildeo de conflitos nesse momento de vida como (1) surgimento de algumas
doenccedilas muitas vezes crocircnicas que afetam a qualidade de vida dos idosos (2) mudanccedilas
corporais e orgacircnicas que podem influenciar a autoimagem do idoso (3) viuvez eou morte de
amigos e parentes (4) perda de algumas funccedilotildees sociais que podem ocasionar uma sensaccedilatildeo de
invalidezinutilidade ao idoso (5) dificuldades financeiras muitas vezes ocasionadas pela
diminuiccedilatildeo da renda apoacutes saiacuteda do mercado de trabalho eou aposentadoria Estas questotildees
podem afetar a autoestima e a identidade do idoso gerar crises e conflitos fazendo com que ele
recorra a recursos tanto internos quanto externos para enfrentamento das consequecircncias
ocasionadas pelas mudanccedilas que vivencia (Morais 2009)
Segundo a Poliacutetica Nacional de Sauacutede da Pessoa Idosa (Brasil 2006) a proporccedilatildeo de
usuaacuterios idosos nos serviccedilos puacuteblicos em todos os setores tende a ser cada vez maior tanto pelo
maior acesso a informaccedilotildees que as pessoas da terceira idade vecircm tendo quanto pelo aumento
relativo e absoluto da populaccedilatildeo pertencente a essa faixa etaacuteria no paiacutes A presenccedila da mulher
idosa nos serviccedilos puacuteblicos tambeacutem eacute marcante visto que 55 da populaccedilatildeo idosa brasileira eacute
composta por mulheres e 35 da populaccedilatildeo feminina do paiacutes pertence a esta faixa etaacuteria Nesta
pesquisa 10 participantes eram mulheres idosas A forte presenccedila da mulher nas poliacuteticas
puacuteblicas tambeacutem estaacute relacionada com a busca por atendimento natildeo apenas para suas demandas
pessoais mas sobretudo para filhos netos outros familiares pessoas idosas com deficiecircncia e
ateacute mesmo vizinhos e amigos por ser a mulher a pessoa identificada como principal e agraves vezes
uacutenica cuidadora (Brasil 2011)
Esse excesso de funccedilotildees desempenhadas pelo gecircnero feminino (matildee avoacute educadora
cuidadora e em geral principal provedora) pode muitas vezes ocasionar sobrecarga fiacutesica e
emocional agrave mulher desencadeando adoecimento psiacutequico (Batista Reinaldo Martins
1 Todas as participantes foram identificadas por meio de nome fictiacutecio visando preservar sua identidade
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Paschoal amp Santos 2015) Tal aspecto alerta para a necessidade de que as poliacuteticas puacuteblicas
levem em consideraccedilatildeo a perspectiva de gecircnero para o planejamento de suas accedilotildees Segundo
Madureira Peliser Beltrame e Stamm (2008) incluir o debate sobre gecircnero na construccedilatildeo de
accedilotildees de promoccedilatildeo de sauacutede e ndash incluiacutemos de proteccedilatildeo social ndash contribui para uma melhor
assistecircncia das mulheres de forma integral visto que deixa de considerar o envelhecer como
um processo universal vivenciado da mesma forma por homens e mulheres possibilitando
assim atender de forma efetiva as especificidades do puacuteblico feminino
A participaccedilatildeo em grupos ofertados por serviccedilos puacuteblicos voltados agrave terceira idade tem
se mostrado um recurso externo interessante utilizado por idosas no enfrentamento das
intercorrecircncias relacionadas ao envelhecer As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo por
exemplo relataram ter encontrado no CRAS um lugar de acolhimento e apoio em especial
emocional pois contribuiu em momentos difiacuteceis como luto e depressatildeo ldquoquando eu perdi meu
filho amigas me convidaram e eu vim para caacute Estava em depressatildeo fiquei em depressatildeo trecircs anos
tomando remeacutedio Eu vim para caacute e graccedilas a Deus foi uma belezardquo (Ceacutelia GF1)
E outra usuaacuteria complementa ldquoO CRAS nos tira do fundo do poccedilo Eu tambeacutem perdi
minha menina e foi aqui que eu natildeo que eu aguentei Se eu ficasse em casa eu natildeo
aguentariardquo (Neide GF1) As idosas relataram com carinho e apreccedilo sobre o viacutenculo que
construiacuteram por meio do Grupo de Mulheres ofertado pela instituiccedilatildeo considerando ainda
terem ganhado uma nova famiacutelia ldquoA uniatildeo nossa eacute muito bonita aquirdquo (Neide GF3) e Marcela
complementa ldquoEu falo que aqui a gente tem uma famiacuteliardquo Carmona Couto e Scorsolini-Comin
(2014) pontuam que as relaccedilotildees de amizade entre idosos podem oferecer consequecircncias
positivas uma vez que amplia a rede de apoio social e funciona como um recurso de proteccedilatildeo
contra a solidatildeo ao proporcionar o contato com outras pessoas significativas que experimentam
vivecircncias semelhantes agraves deles
Souza (2016) relatou experiecircncia semelhante ao realizar estudo sobre um grupo de
convivecircncia composto por idosos usuaacuterios de um CRAS da cidade de Serra Negra do NorteRN
buscando identificar as contribuiccedilotildees que a participaccedilatildeo nesse grupo oferecia agrave vida dos
mesmos Segundo a autora fazer parte de tal grupo auxiliou na melhoria da qualidade de vida
dos idosos visto que naquele espaccedilo eles tinham oportunidade de socializaccedilatildeo e consequente
construccedilatildeo de viacutenculos afetivos entre si participavam de atividades diversas incluindo
passeios se sentiam acolhidos pela equipe sendo tratados com carinho e atenccedilatildeo o que os
auxiliava na lida com as dificuldades cotidianas
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Neri (2001) tambeacutem apontou como uma das alternativas atuais de enfrentamento das
intercorrecircncias relacionadas agrave velhice a participaccedilatildeo em grupos voltados ao puacuteblico da terceira
idade por serem interessantes espaccedilos de construccedilatildeo de novas possibilidades e perspectivas de
vida agravequeles que muitas vezes se deparam com uma realidade marcada pelo sentimento de
solidatildeo inutilidade invalidez e mesmice
as pessoas de mais idade dentro de um grupo sociocultural podem afirmar a sua proacutepria
identidade expandir as fronteiras de seu valor reconhecerem-se como participantes da vida
atual do grupo por meio da memoacuteria compartilhada porque a identidade individual eacute uma
instacircncia que depende do outro (Neri 2001 p 144)
Aleacutem de um espaccedilo de acolhimento e apoio estes grupos podem ser proporcionadores
de aprendizados As participantes do ldquoGrupo de Mulheresrdquo relataram encontrar no CRAS um
espaccedilo importante para veiculaccedilatildeo de informaccedilotildees sobre sauacutede nutriccedilatildeo poliacuteticas puacuteblicas
entre outros assuntos importantes por meio de atividades realizadas nos grupos de convivecircncia
e de palestras que satildeo ofertadas na instituiccedilatildeo
a gente aprende muita coisa aqui Atraveacutes dessas palestras que [trabalhadores do CRAS] fizeram
aiacute eu aprendi tanta coisa necessaacuteria importante doenccedila que eu nem sabia que existia acabei
descobrindo que meu neto estaacute com essa doenccedila Entatildeo a gente vai aprendendo muita coisa
eu acho muito importante a gente que tem famiacutelia saber as coisas melhor sobre a sauacutede de cada
um (Marcela GF1)
Aleacutem disso ao longo de suas trajetoacuterias na instituiccedilatildeo as idosas tambeacutem evidenciaram
nos encontros de GF terem aprendido sobre a Poliacutetica de Assistecircncia Social As mesmas
demonstraram ter bom conhecimento dos serviccedilos e accedilotildees ofertados pela Proteccedilatildeo Social
Baacutesica como os benefiacutecios de transferecircncia de renda (Bolsa Famiacutelia e Benefiacutecio de Prestaccedilatildeo
Continuada) os benefiacutecios eventuais (cesta baacutesica cobertor auxiacutelio natalidade) bem como as
atividades realizadas na instituiccedilatildeo e pela equipe de referecircncia (visitas domiciliares acolhidas
encaminhamentos mediaccedilatildeo de grupos do SCFV atividades culturais de danccedila e atividades
infantis) Isto mostra que a instituiccedilatildeo tem conseguido contar por meio de sua praacutetica cotidiana
ldquoa que veiordquo e ldquoa quem veiordquo e que seus usuaacuterios natildeo satildeo meros participantes mas ativos atores
na efetivaccedilatildeo do serviccedilo
Leandro-Franccedila e Murta (2014) tambeacutem apontam a experiecircncia de grupo como
importante estrateacutegia de promoccedilatildeo de sauacutede mental entre idosos Segundo as autoras a
participaccedilatildeo em grupos que tenham como objetivo a promoccedilatildeo da valorizaccedilatildeo do envelhecer e
de discussotildees sobre as questotildees que afetam a vida na terceira idade pode ser interessante
caminho de empoderamento dos idosos no lidar com as adversidades deste periacuteodo
beneficiando a sua sauacutede mental De acordo com as autoras a prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da sauacutede
mental podem contribuir tambeacutem com (1) melhoria na sauacutede em geral (2) promoccedilatildeo de
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cidadania (3) planejamento e adaptaccedilatildeo agrave saiacuteda do mercado de trabalhoaposentadoria (4)
reduccedilatildeo de sintomas de depressatildeo e ansiedade (5) prevenccedilatildeo do suiciacutedio Leandro-Franccedila e
Murta (2014) pontuam ainda que as estrateacutegias mais eficazes para este puacuteblico satildeo aquelas
que apresentam abordagens abrangentes isto eacute que englobam intervenccedilotildees que levam em
consideraccedilatildeo natildeo apenas os determinantes individuais de sauacutede (comportamentos haacutebitos
conhecimentos) mas tambeacutem determinantes sociais como a rede de apoio ao idoso a
comunidade em que vive as instituiccedilotildees e as poliacuteticas puacuteblicas
Rabelo e Neri (2013) orientam que intervenccedilotildees grupais com idosos podem funcionar
como catalisadores para maximizar ldquoas potencialidades compensar perdas reorganizar a vida
e ajustar-se agraves situaccedilotildeesrdquo (Rabelo amp Neri 2013 p 61) Para tanto eacute necessaacuterio que os
profissionais responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo e conduccedilatildeo desses grupos respeitem os valores a
escolaridade e a cultura de seus participantes estimulem a livre expressatildeo de memoacuterias e
sentimentos num clima de confianccedila e acolhimento mediante um contrato de convivecircncia
efetuado previamente que garanta o sigilo o compromisso com o grupo e seguranccedila para
expressar diferentes opiniotildees
Carmona Couto e Scorsolini-Comin (2014) defendem que a terceira idade precisa ser
olhada natildeo mais como um periacuteodo de perdas crises e limitaccedilotildees mas sim como uma
experiecircncia que possibilita transformaccedilotildees aquisiccedilotildees significados e novas possibilidades
Sobre isto Zimmerman (2000 citado por Morais 2009) pontua que pessoas mais saudaacuteveis e
otimistas estatildeo mais propensas a ver a velhice como um tempo de acuacutemulo de experiecircncias
maturidade liberaccedilatildeo de certas responsabilidades e liberdade para assumir novas ocupaccedilotildees
4 A Psicologia frente agrave poliacutetica de Assistecircncia Social
As questotildees abordadas neste texto dialogam de maneira importante com a formaccedilatildeo em
Psicologia e demais aacutereas que se debruccedilam nos estudos sobre o desenvolvimento humano uma
vez que apesar de mudanccedilas importantes ao longo dos uacuteltimos anos ainda estatildeo marcados por
olhares que enfocam a incapacidade funcional e limitaccedilotildees fiacutesicas cognitivas e sensoriais dos
idosos bem como o controle e a prevenccedilatildeo de agravos de doenccedilas Precisamos nos lembrar
diariamente que a sauacutede do idoso se caracteriza como a ldquointeraccedilatildeo multidimensional entre sauacutede
fiacutesica sauacutede mental independecircncia na vida diaacuteria integraccedilatildeo social suporte familiar e
independecircncia econocircmica (Ramos 2003 p 794)
60
Os(as) psicoacutelogos(as) por se tratar de uma classe profissional fortemente presente nas
poliacuteticas puacuteblicas de atenccedilatildeo aos idosos podem contribuir com a mudanccedila desta perspectiva
para um olhar mais positivo voltado ao envelhecimento em suas praacuteticas Eacute importante destacar
que a presenccedila de uma psicoacuteloga na coordenaccedilatildeo e mediaccedilatildeo do ldquoGrupo de Mulheresrdquo pode
ofertar experiecircncias interessantes agraves usuaacuterias Apesar de natildeo terem um formato terapecircutico
visto que a praacutetica psicoteraacutepica se consolida como responsabilidade da poliacutetica de Sauacutede o
grupo do SCFV coordenado por uma psicoacuteloga pode trazer benefiacutecios que acabam sendo
terapecircuticos para seus participantes O(a) psicoacutelogo(a) quando no papel de facilitador do
processo grupal auxilia na socializaccedilatildeo e compartilhamento de experiecircncias em comum e na
construccedilatildeo de uma rede de suporte psicossocial entre os participantes promovendo sauacutede
mental e fortalecimento de viacutenculos Nesse sentido o formato de grupos tem se mostrado uma
alternativa interessante e viaacutevel para a promoccedilatildeo e prevenccedilatildeo da sauacutede biopsicossocial dos
idosos no serviccedilo puacuteblico (Reis Giuglliani amp Pasini 2012)
A participaccedilatildeo da Psicologia na Poliacutetica de Assistecircncia Social natildeo eacute um evento novo
Inicialmente o trabalho da Psicologia neste campo se configurava de forma mais pontual
atuando apenas em praacuteticas focalizadas em grupos considerados de risco ficando fora de seu
acircmbito de atuaccedilatildeo as demais parcelas da populaccedilatildeo Aos poucos com a divulgaccedilatildeo dos
resultados de suas experiecircncias relacionadas a intervenccedilotildees em situaccedilotildees de vulnerabilidade
social bem como do apontamento de recursos subjetivos como mediadores da minimizaccedilatildeo de
tais vulnerabilidades houve uma ampliaccedilatildeo da concepccedilatildeo social e governamental das
contribuiccedilotildees que a Psicologia oferecia agraves poliacuteticas puacuteblicas o que implicou em sua inserccedilatildeo
na Proteccedilatildeo Social Baacutesica a partir da estruturaccedilatildeo do SUAS em 2005 (Reis Giuglliani amp Pasini
2012 Conselho Federal de Psicologia 2005)
Mas afinal o que faz um(a) psicoacutelogo(a) no cotidiano da Proteccedilatildeo Social Baacutesica Esta
pergunta eacute importante uma vez que ainda haacute um desconhecimento sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo
em contextos que sejam diferentes do setting cliacutenico-terapecircutico Este dado se revela como um
reflexo da predominacircncia das cliacutenicas tradicionais como referenciais norteadores das praacuteticas
do psicoacutelogo desde sua formaccedilatildeo em detrimento das atuaccedilotildees que envolvem o cenaacuterio das
poliacuteticas puacuteblicas Por esta razatildeo intervenccedilotildees ligadas agrave psicoterapia ainda satildeo percebidas em
alguns serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica como a praacutetica do psicoacutelogo por excelecircncia o que
reforccedila sua manutenccedilatildeo neste contexto (Flor amp Goto 2015 Reis Giuglliani amp Pasini 2012)
Na Assistecircncia Social o(a) psicoacutelogo(a) tem como funccedilatildeo baacutesica atuar junto agrave equipe
para o fortalecimento das poliacuteticas puacuteblicas e de seus usuaacuterios enquanto sujeitos de direitos
61
tendo sempre como foco as necessidades e potencialidades de seu puacuteblico alvo Ao considerar
e atuar sobre a subjetividade a Psicologia pode favorecer o desenvolvimento da autonomia e
cidadania dos usuaacuterios do serviccedilo Para isto eacute importante que o psicoacutelogo tenha uma postura
de trabalho que seja contra qualquer accedilatildeo que categorize patologize ou objetifique as pessoas
atendidas Ao contraacuterio disso eacute imprescindiacutevel que o profissional busque compreender os
aspectos histoacuterico-culturais envolvidos no contexto de vulnerabilidade bem como os processos
e recursos psicossociais de que dispotildeem os sujeitos que ali vivem (Conselho Federal de
Psicologia 2007)
Sobre isso Cruz e Guareschi (2012) alertam que de acordo com resgate histoacuterico sobre
as praacuteticas da Psicologia na Assistecircncia Social muitas accedilotildees tecircm sido pautadas em dicotomias
como ldquonormalpatoloacutegicordquo ldquofamiacutelia estruturadadesestruturadardquo orientadas agrave manutenccedilatildeo da
norma categorizaccedilatildeo de vulnerabilidades sociais culpabilizaccedilatildeo das famiacutelias por sua condiccedilatildeo
socioeconocircmica eou daquilo que natildeo transcorre dentro do esperado e psicologizaccedilatildeo das
questotildees que atravessam o social Com isto o saber cientiacutefico neste campo vem produzindo
subjetividades desqualificadas ao considerar o conhecimento dos especialistas como verdade
uacutenica sobre o sujeito Nesse contexto as autoras apontam a necessidade de promover
diariamente o exerciacutecio reflexivo sobre a proacutepria praacutetica e fazem interessante questionamento
ldquoateacute que ponto nossas accedilotildees natildeo tecircm se configurado como dispositivo de controle sobre as
famiacutelias e sujeitosrdquo (Cruz amp Guareschi 2012 p 31)
Para evitar tais condutas indesejadas o(a) psicoacutelogo(a) deve tomar como princiacutepios em
sua praacutetica na Proteccedilatildeo Social Baacutesica (1) conhecer previamente o territoacuterio de abrangecircncia no
qual atuaraacute para entatildeo planejar accedilotildees e intervenccedilotildees condizentes com os objetivos da PSB (2)
identificar valorizar e auxiliar no desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos e da
comunidade por meio de intervenccedilotildees individuais familiares grupais e coletivas (3) trabalhar
sempre buscando o diaacutelogo entre o saber popular e o saber cientiacutefico da Psicologia natildeo
deixando de valorizar as mais diversas experiecircncias expectativas e conhecimentos em sua
atuaccedilatildeo (4) contribuir com o exerciacutecio ativo da cidadania com o empoderamento e autonomia
dos sujeitos bem como com o controle social por meio da oferta de espaccedilos de participaccedilatildeo da
comunidade mobilizaccedilatildeo social e organizaccedilatildeo comunitaacuteria evitando que as vulnerabilidades
se cronifiquem (Conselho Federal de Psicologia 2007)
Diante disto os(as) psicoacutelogos(as) atuantes na Proteccedilatildeo Social Baacutesica tecircm como desafio
pensar em um sujeito para aleacutem daquele que precisa ser normalizado adequado a padrotildees Eacute
preciso olhar para o sujeito para aleacutem das ldquovulnerabilidades sociaisrdquo ou da ldquopobrezardquo que o
62
acometem isto eacute reconhecer nele um sujeito ativo vivo que tem contradiccedilotildees saberes
potencialidades e que tem o que dizer Isso implica na necessidade de que diferentes olhares
possam ser construiacutedos e que natildeo apontem apenas para o que ldquofaltardquo mas tambeacutem para a
potecircncia de resistir desses sujeitos que escancaram todos os dias que a pobreza e a carecircncia natildeo
se configuram enquanto impossibilidade de vida (Lasta Guareschi amp Cruz 2012)
Consideraccedilotildees finais
A participaccedilatildeo de mulheres idosas em grupo focal sobre o alcance das accedilotildees de um
CRAS apontou a valorizaccedilatildeo do espaccedilo grupal por elas frequentado e coordenado por um
profissional de Psicologia como facilitador da formaccedilatildeo de viacutenculos e de promoccedilatildeo de sauacutede
mental contribuindo para o bem-estar das participantes A idade avanccedilada de algumas
participantes a condiccedilatildeo de viuacuteva a experiecircncia de perda de pessoas importantes e a vivecircncia
do luto datildeo um contorno de proteccedilatildeo agrave sauacutede ao Grupo Convivecircncia e Fortalecimento de
Viacutenculos o qual dialoga natildeo apenas com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social mas tambeacutem
com poliacutetica de sauacutede do idoso e poliacutetica integral de sauacutede da mulher
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66
Capiacutetulo 4
A Psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social estudo de caso de
um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas
Liandra Savanhago
Camila Trindade
Tielly Rosado Maders
Maria Chalfin Coutinho
Introduccedilatildeo
A atuaccedilatildeo da Psicologia nas Equipes de Referecircncia da poliacutetica puacuteblica de assistecircncia
social tem se intensificado nos uacuteltimos anos Sobretudo a partir de 2005 com a concretizaccedilatildeo
do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) E mais especificamente a partir do ano de
2011 com a implementaccedilatildeo da Norma Operacional Baacutesica de Recursos Humanos do SUAS
(NOB-RHSUAS) a qual dispotildee sobre a obrigatoriedade da presenccedila de psicoacutelogosas nos
respectivos serviccedilos (Brasil 2011) Mesmo sendo uma profissatildeo essencial para o SUAS apenas
apoacutes um longo tempo de concretizaccedilatildeo oa psicoacutelogoa passou obrigatoriamente a integrar a
equipe de referecircncia dos serviccedilos de Proteccedilatildeo Social Baacutesica e Proteccedilatildeo Social Especial de
Meacutedia e de Alta Complexidade os quais constituem os trecircs niacuteveis de complexidade do SUAS
Ao longo deste trabalho elucidamos algumas atividades que se inserem na Proteccedilatildeo
Social Especial de Meacutedia Complexidade a qual oferece atendimentos para pessoas em situaccedilatildeo
de violaccedilatildeo de direitos tal como o serviccedilo de medidas socioeducativas (MSE) em meio aberto
(Brasil 2005) em um municiacutepio localizado no litoral norte do estado de Santa Catarina cuja
populaccedilatildeo foi estimada segundo o Censo demograacutefico de 2010 em 45797 habitantes (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2010)
As MSE elementos centrais dessa discussatildeo satildeo serviccedilos preconizados pelo Estatuto
da Crianccedila e do Adolescente (ECA) instituiacutedo pela Lei Federal nordm 8069 de 1990 (Brasil 1990)
Tal legislaccedilatildeo tem como base os pressupostos da Doutrina da Proteccedilatildeo Integral dos direitos das
Crianccedilas e dos Adolescentes a qual teve marco no artigo ndeg 227 da Constituiccedilatildeo Federal da
Repuacuteblica Federativa do Brasil do ano de 1988 Esses serviccedilos satildeo realizados quando haacute a
praacutetica de atos infracionais por jovens que estejam na faixa etaacuteria dos 12 ateacute os 18 anos As
67
medidas podem ser privativas de liberdade (Internaccedilatildeo e Semiliberdade) e natildeo privativas de
liberdade (Liberdade Assistida Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade Obrigaccedilatildeo de Reparaccedilatildeo
de Danos e Advertecircncia) (Brasil 1990)
Em relaccedilatildeo agraves medidas de Liberdade Assistida (LA) e Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave
Comunidade (PSC) o ECA estabelece que a LA tem o propoacutesito de acompanhar auxiliar e
orientar o jovem durante o tempo miacutenimo de seis meses com o objetivo de fornecer auxiacutelio em
projetos de profissionalizaccedilatildeo e de inserccedilatildeo no mercado de trabalho (Brasil 1990) A PSC tem
a funccedilatildeo de realizar ldquotarefas gratuitas de interesse geral por periacuteodo natildeo excedente a seis meses
junto a entidades assistenciais hospitais escolas e outros estabelecimentos congecircneres bem
como em programas comunitaacuterios ou governamentaisrdquo (Brasil 1990) ou seja por meio desta
medida eacute exigido que o jovem realize trabalho comunitaacuterio
A partir destas breves consideraccedilotildees este trabalho objetivou discutir algumas relaccedilotildees
entre as trajetoacuterias de vida de um jovem em cumprimento de medidas socioeducativas e as
praacuteticas psis em serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Para isso realizamos um estudo de
caso de um jovem em cumprimento de MSE em meio aberto em que problematizamos suas
trajetoacuterias juvenis com as poliacuteticas puacuteblicas de Assistecircncia Social de forma a enfatizar como
as praacuteticas psis podem se revelar no cenaacuterio da assistecircncia
Para essas reflexotildees tomamos como base a questatildeo social entendida por Iamamoto e
Carvalho (2001) como siacutentese explicativa do processo de pauperizaccedilatildeo massiva da classe
trabalhadora expressa por meio de muacuteltiplas determinaccedilotildees tais como desemprego
subemprego violecircncia criminalizaccedilatildeo e patologizaccedilatildeo da pobreza entre outras
1 Trajetoacuteria dos jovens inseridos nas medidas socioeducativas
Para discutir a atuaccedilatildeo da psicologia nas poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social optamos
por dar visibilidade agrave trajetoacuteria de um jovem inserido no serviccedilo de meacutedia complexidade da
Proteccedilatildeo Social Especial Poreacutem antes de nos atentar a um fenocircmeno especiacutefico julgamos
necessaacuterio evidenciar algumas determinaccedilotildees histoacutericas e sociais que constituem a presente
discussatildeo Com isso objetivamos natildeo recair em meacutetodos e compreensotildees que individualizam
as questotildees sociais que constituem a nossa sociedade
Rizzini (1997) ao realizar uma anaacutelise histoacuterica da construccedilatildeo social do jovem
criminalizado a partir do advento da Repuacuteblica brasileira afirma que tal contexto foi permeado
por diversas alteraccedilotildees sociais as quais tinham como finalidade tornar o Brasil uma ldquonaccedilatildeo
68
culta e civilizadardquo (Rizzini 1997 p 27) Para a autora a concepccedilatildeo de alteraccedilatildeo posta nesse
momento histoacuterico era baseada no entendimento da necessidade de educar instruir e vigiar a
grande massa da populaccedilatildeo brasileira considerada como ldquoignoranterdquo E o iniacutecio dessa
empreitada seria com os sujeitos que eram considerados ldquoo futuro do paiacutesrdquo isto eacute as crianccedilas
e jovens brasileiros
Tal discurso salvacionista acabava por mascarar as contradiccedilotildees e posicionamentos
higienistas para com a infacircncia pobre e criminalizada e ao mesmo tempo era pautado pela
loacutegica da era industrial capitalista a qual tinha como preocupaccedilatildeo conter a ldquodelinquecircnciardquo e a
ldquovadiagemrdquo em razatildeo da natildeo absorccedilatildeo da matildeo-de-obra (Cabral amp Sousa 2004) Este controle
da populaccedilatildeo juvenil tornou-se politicamente viaacutevel pois assumiu uma funccedilatildeo regulatoacuteria
desde a infacircncia quando por exemplo a pedagogia do trabalho era considerada como a
principal estrateacutegia para a ldquoregeneraccedilatildeordquo daqueles que natildeo estavam inseridos no regime
produtivo vigente (Santos 2013)
Ainda com o advento da Repuacuteblica Brasileira Rizzini (1997) destaca a origem de ldquoum
complexo aparato meacutedico-juriacutedico-assistencial cujas metas eram definidas pelas funccedilotildees de
prevenccedilatildeo educaccedilatildeo recuperaccedilatildeo e repressatildeordquo (pp 29-30) Tal aparato possuiacutea a funccedilatildeo de
prestar assistecircncia e vigilacircncia agrave populaccedilatildeo pobre com a intenccedilatildeo de efetivar uma formaccedilatildeo
moral e de ldquocivilizaccedilatildeordquo Nesse sentido a necessidade de controle da infacircncia e juventude era
efetivada desde uma educaccedilatildeo direcionada para a absorccedilatildeo de matildeo-de-obra ateacute um sistema de
classificaccedilatildeo para aqueles sujeitos que ora eram classificados como ldquoperigososrdquo e por isso
precisavam de puniccedilatildeo ora eram considerados em ldquoperigordquo e precisavam de proteccedilatildeo
Assim observamos que as preocupaccedilotildees relacionadas ao gerenciamento das condutas
das crianccedilas e dos jovens das camadas populares possuem raiacutezes antigas relacionadas com a
histoacuteria do Brasil Algumas dimensotildees do controle de crianccedilas e jovens foram observadas
pontualmente no sistema educativo Para Mayer e Nuacutentildeez (2017) a massificaccedilatildeo e a
universalizaccedilatildeo dos sistemas escolares se traduziram em processos de discriminaccedilatildeo e
estigmatizaccedilatildeo na experiecircncia de crianccedilas e jovens de camadas populares em toda Ameacuterica
Latina Baseada em valores e comportamentos hegemocircnicos da classe meacutedia e diante de
infacircncias e juventudes atravessadas pela pobreza isto eacute pela necessidade de trabalho precoce
muitas vezes ilegal e consequente evasatildeo escolar o sistema educacional maquiado pelo
discurso da meritocracia produziu desigualdades legitimando hierarquias e novas
diferenciaccedilotildees sociais em sua maioria individualizantes e excludentes
69
Associado a isso historicamente a juventude tem sido compreendida de forma
naturalizada e individualizante ou seja ldquocomo um periacuteodo muito difiacutecil para os que nele se
encontram cheio de conflitos instaacutevel com mudanccedilas de comportamento muito grandesrdquo (Leal
amp Facci 2014 p 17) Com isso observamos o desenvolvimento histoacuterico de associaccedilotildees entre
concepccedilotildees que naturalizam a juventude com concepccedilotildees de prevenccedilatildeo e a repressatildeo presentes
no discurso social e juriacutedico na passagem do seacuteculo XIX ao XX (Rizzini 1997) Entendemos
que o desdobramento disso se revela na construccedilatildeo de praacuteticas profissionais e concepccedilotildees que
reiteram a individualizaccedilatildeo de contradiccedilotildees de cunho estrutural de nossa sociedade na mesma
medida em que a pobreza e os jovens pobres passam a ser entendidos como sujeitos que carecem
de civilizaccedilatildeo de cultura enfim da proacutepria vida
Eacute tambeacutem nesse contexto e com base nessas concepccedilotildees que temos o desenvolvimento
da ciecircncia psicoloacutegica no Brasil Patto (1990) aponta que diante de noccedilotildees baseadas na
necessidade de ldquoculturalizarrdquo os brasileiros tal ciecircncia assumiu um papel ideoloacutegico de
avaliaccedilatildeo e quantificaccedilatildeo dos aspectos subjetivos que constituem os sujeitos pobres
Para Patto (1990) o foco era comparar esses sujeitos com os da classe dominante
considerados superiores cultural e intelectualmente Com isso tem-se o impulso dos testes
psicoloacutegicos enquanto instrumentos utilizados por psicoacutelogosas que vinham para legitimar a
condiccedilatildeo inferior do pobre e da pobreza na medida em que analisavam por exemplo variaacuteveis
comportamentais ou cognitivas de forma descontextualizada fragmentada e baseada na
avaliaccedilatildeo de elementos que ldquofaltavamrdquo no sujeito (Patto 1990)
Bock (2009) nos recorda para atentarmos agraves questotildees ideoloacutegicas voltadas aos
interesses burgueses que constituiacuteram a histoacuteria da ciecircncia psicoloacutegica Por isso entendemos
que mesmo sendo superadas determinadas praacuteticas e concepccedilotildees desenvolvidas napela aacuterea
ainda na atualidade nos deparamos com uma ciecircncia psicoloacutegica mais preocupada em ajustar
os indiviacuteduos agrave sociedade do que possibilitar o desenvolvimento de mediaccedilotildees que lhe
impulsionem a emancipaccedilatildeo ao inveacutes do ajustamento A discussatildeo acerca da emancipaccedilatildeo
humana passa por uma reformulaccedilatildeo de toda estruturaccedilatildeo da sociedade e pela superaccedilatildeo do
modo de produccedilatildeo capitalista uma vez que a atuaccedilatildeo profissional da psicologia deva ser
pautada na eacutetica e direcionada ao desenvolvimento humano em seus aspectos totais fiacutesicos
subjetivos e relacionais Praacuteticas de formataccedilatildeo de sujeitos para adaptaccedilatildeo do mercado de
trabalho extrapolam natildeo soacute as dimensotildees eacuteticas da atuaccedilatildeo profissional das aacutereas psis mas
acabam por reproduzir e reiterar loacutegicas excludentes e adoecedoras que desconsideram os
sujeitos de direito e a proacutepria sauacutede mental
70
Mesmo diante desse cenaacuterio contraditoacuterio observamos o histoacuterico esforccedilo para o
desenvolvimento de novas formas e praacuteticas psis voltadas para a compreensatildeo dos sujeitos em
suas muacuteltiplas relaccedilotildees e contextos Oliveira e Costa (2018) discorrem que eacute a partir da inserccedilatildeo
dos profissionais da psicologia no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) e no SUAS que ocorre
tambeacutem um movimento de ldquoexpansatildeo e diversificaccedilatildeo das atividades e praacuteticas psicoloacutegicasrdquo
(p 36) Com isso satildeo impulsionados ldquonovos debates em torno dos direcionamentos eacutetico-
poliacuteticos do trabalho dos[as] psicoacutelogos[as]rdquo (Oliveira amp Costa 2018 p 36)
Em relaccedilatildeo ao SUAS as autoras enfatizam que esse foi o primeiro momento da histoacuteria
da profissatildeo no qual efetivamente o trabalho dosas psicoacutelogosas teve como base a questatildeo
da ldquocondiccedilatildeo de pobrezardquo (Oliveira amp Costa 2018 p 38) Contudo muitas vezes a mesma foi
tomada como ldquoimpeditivo ou como empecilho a um trabalho efetivo e de qualidaderdquo (Oliveira
amp Costa 2018 p 39)
Retomamos tambeacutem a discussatildeo sobre a importacircncia da implementaccedilatildeo do ECA para
enfatizar que se mostrou como uma legislaccedilatildeo importante para as mudanccedilas em relaccedilatildeo agraves
compreensotildees das condiccedilotildees de vidas das crianccedilas e jovens brasileiros sobretudo quando esses
passam a ser entendidos como sujeitos de direitos Entretanto eacute nesta e em outras legislaccedilotildees
como o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)1 (Brasil 2012) que se
revelam outras contradiccedilotildees que colocam em xeque essas possibilidades de mudanccedila quando
dispotildeem sobre concepccedilotildees baseadas em ressocializaccedilatildeo e reeducaccedilatildeo Aleacutem do imaginaacuterio
social o qual (ainda) permanece adotando a antiga ideologia do menorismo enquanto um
sistema discriminatoacuterio das crianccedilas pobres e natildeo brancas
Batista (2013) faz uma criacutetica a essas perspectivas das possibilidades ldquorerdquo
(ressocializaccedilatildeo reeducaccedilatildeo reintegraccedilatildeo) as quais na verdade mantecircm praacuteticas punitivas e
excludentes que objetivam normalizar modos de comportamento Da mesma forma Calado e
Souza (2014) apontam que os fundamentos pedagoacutegicos das medidas socioeducativas satildeo
baseados em concepccedilotildees educativas que tecircm como foco os indiviacuteduos e suas capacidades de
ajustamento e regulaccedilatildeo diante das contradiccedilotildees sociais
Eacute importante frisar que a socioeducaccedilatildeo eacute vista como uma poliacutetica puacuteblica direcionada
para o resgate de uma diacutevida histoacuterica da sociedade brasileira com uma parte especiacutefica da
populaccedilatildeo jovem Poreacutem a histoacuteria tem mostrado muitas contradiccedilotildees entre as legislaccedilotildees
1 O Sinase eacute uma legislaccedilatildeo que regulamenta as medidas socioeducativas Instituiacutedo em 2012 seu objetivo eacute
demarcar princiacutepios regras e programas especiacuteficos a niacutevel municipal estadual e nacional de atendimento aos
jovens (Brasil 2012)
71
brasileiras e a execuccedilatildeo do que preconizam por meio das poliacuteticas puacuteblicas Tanto que no que
tange agrave legislaccedilatildeo brasileira atual mesmo com a implantaccedilatildeo do ECA e seus princiacutepios de
proteccedilatildeo integral diversas denuacutencias de violaccedilotildees de direitos humanos satildeo relatadas em espaccedilos
puacuteblicos na miacutedia e em ambientes acadecircmicos Calado e Souza (2014) alertam para as diversas
dimensotildees que assumem essas violecircncias de Estado enfatizando o quanto muitas vezes elas satildeo
aceitas socialmente enquanto uma forma de ldquocorreccedilatildeordquo eou ldquopuniccedilatildeordquo para os jovens Nesse
cenaacuterio mais uma vez temos a reproduccedilatildeo de uma loacutegica desigual excludente que visa o
funcionamento do mercado e natildeo o desenvolvimento humano
Passetti (2013) considera questionaacutevel que a mentalidade juriacutedica no Brasil permaneccedila
penalizadora e cada vez mais distante do ECA Entretanto ao analisarmos tal estatuto
percebemos que apesar de seus avanccedilos normativos o mesmo ainda se mostra distante de sanar
a referida diacutevida histoacuterica a que se propotildee Nessa perspectiva Cabral e Sousa (2004) apontam
que ldquoainda existe certa distacircncia entre aquilo que dispotildee a lei e a realidaderdquo (p 85) Entendemos
que mesmo passados quinze anos de tal constataccedilatildeo a mesma ainda se sustenta Pois apesar
dos avanccedilos no acircmbito dos Direitos Humanos que dispotildee a lei do Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo (Sinase) (Brasil 2012) as MSE ainda abarcam as tensotildees e as
(con)tradiccedilotildees do contexto social brasileiro em que o estigma social continua refletindo nos
nuacutemeros dos jovens apreendidos pela justiccedila2
Eacute nesse cenaacuterio que o trabalho dao psicoacutelogao eacute desenvolvido isto eacute em meio a uma
seacuterie de contradiccedilotildees estruturantes de um modelo social excludente Eidelwein (2007) destaca
que mesmo diante de determinaccedilotildees limitadoras que constituem o trabalho dao psicoacutelogao no
contexto capitalista ainda assim podem e devem ser construiacutedas possibilidades de superaccedilatildeo
dessas formas de relaccedilotildees Quanto as praacuteticas psi em termos imediatos um passo importante
que envolve o trabalho dao psicoacutelogao eacute a delimitaccedilatildeo das opccedilotildees eacuteticos-poliacuteticas teoacuterico-
metodoloacutegicas e teacutecnico-operativas (Eidelwein 2007) visto que satildeo essas que orientam
possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo e intervenccedilatildeo psi para
aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em relaccedilatildeo aos jovens
brasileiros
2 Exemplo disso nos sistemas socioeducativos atuais bem como no sistema prisional observamos ldquoum padratildeo de
intervenccedilatildeo racialmente seletivo e higienista que se configura como forma de anulaccedilatildeo e eliminaccedilatildeo das pessoas
que compotildeem a categoria forjada dos ditos lsquoperigososrsquo e lsquodelinquentesrsquordquo (Instituto de Pesquisa Econocircmica e
Aplicada 2016 p 71) Isto eacute tais espaccedilos satildeo ocupados majoritariamente por jovens negros do gecircnero
masculino com baixa escolarizaccedilatildeo e renda
72
A mesma autora destaca que mesmo em meio ao modelo social excludente apresentado
ainda assim eacute possiacutevel construir possibilidades de emancipaccedilatildeo e superaccedilatildeo de condicionantes
da realidade social (Eidelwein 2007) Um exemplo a ser evidenciado eacute a adoccedilatildeo dos
pressupostos apresentados pela autora a partir da perspectiva da classe trabalhadora posto que
satildeo esses que orientam possibilidades de construccedilatildeo de novas formas de compreensatildeo atuaccedilatildeo
e intervenccedilatildeo psi para aleacutem das hegemocircnicas e excludentes apresentadas anteriormente em
relaccedilatildeo aos jovens brasileiros Ou seja o entendimento de pertencimento a classe trabalhadora
que natildeo abarca apenas os jovens mas tambeacutem os profissionais da psicologia deve ser pensado
enquanto entendimento basilar que estrutura nossas accedilotildees profissionais nossa categoria e que
estrutura a sociedade do capital
2 Meacutetodo
Este estudo de caso eacute um recorte de uma pesquisa mais ampla realizada pela primeira
autora no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Psicologia da Universidade Federal de Santa
Catarina finalizada em fevereiro de 2019 Na pesquisa de mestrado a autora investigou os
sentidos sobre o trabalho para quatro jovens utilizando a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica da
Psicologia Histoacuterico-Cultural preconizada por Lev Semyonovich Vigotski Alexis Leontiev e
Alexander Luria
Partindo de uma compreensatildeo Histoacuterico-Cultural esta pesquisa se trata de uma anaacutelise
qualitativa em que realizamos um estudo de caso com um jovem em cumprimento de medidas
socioeducativas em meio aberto Aleacutem do Diaacuterio de Campo utilizamos a entrevista
semiestruturada como ferramenta de pesquisa A entrevista foi composta pela identificaccedilatildeo
dados sociodemograacuteficos e por questotildees abertas sobre temas como trajetoacuterias de estudo e de
trabalho cotidiano de trabalho e interfaces entre trabalho medidas socioeducativas e atos
infracionais As entrevistas foram gravadas e transcritas
Em consonacircncia com a perspectiva teoacuterica e metodoloacutegica adotada as anaacutelises foram
realizadas por meio dos Nuacutecleos de Significaccedilatildeo inspirados em Aguiar Soares e Machado
(2015) Na dissertaccedilatildeo de mestrado as anaacutelises foram realizadas por meio de quatro etapas de
siacutenteses e aglutinaccedilotildees temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores separados por jovem
indicadores entrelaccedilados e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo Neste estudo de caso pela ausecircncia dos
outros jovens participantes as anaacutelises foram realizadas por meio de trecircs etapas sucessivas de
aglutinaccedilotildees e siacutenteses temaacuteticas Preacute-indicadores indicadores e Nuacutecleos de Significaccedilatildeo
73
Para a dissertaccedilatildeo foram formados trecircs nuacutecleos de significaccedilatildeo nomeados como
ldquoTrajetoacuterias de educaccedilatildeo e de trabalhordquo ldquoCotidiano e trabalhordquo ldquoInterfaces entre trabalho e
medidas socioeducativasrdquo A fim de dialogar com o objetivo deste trabalho construiacutemos dois
nuacutecleos de significaccedilatildeo o primeiro chamado ldquoTrajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo
trabalhordquo e o segundo tal como a pesquisa de mestrado ldquoInterfaces entre trabalho e medidas
socioeducativasrdquo
O primeiro Nuacutecleo teraacute visibilidade nesta pesquisa de forma a contextualizar a vida do
jovem entrevistado e dar suporte para as discussotildees presentes do segundo nuacutecleo Nesse sentido
o uacuteltimo nuacutecleo que possui uma interface com as poliacuteticas puacuteblicas de assistecircncia social e
instituiccedilotildees proacuteximas teraacute um papel central na discussatildeo do trabalho
Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos o projeto da investigaccedilatildeo foi
submetido e aprovado pelo Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSHUFSC)
e contamos com a autorizaccedilatildeo por escrito do jovem participante
3 Trajetoacuterias de Pedro uma vida marcada pelo trabalho
Pedro eacute um jovem extrovertido que tem muitas histoacuterias a serem contadas sobre a sua
vida histoacuterias estas que iniciaram tatildeo rapidamente desde o iniacutecio do contato com a pesquisadora
que muitas natildeo puderam ser registradas no gravador Pedro se declarou como pardo tem 18
anos de idade e no momento da entrevista estudava no segundo ano do ensino meacutedio do EJA
- Educaccedilatildeo de Jovens e Adultos O jovem tem uma extensa trajetoacuteria nos serviccedilos de Proteccedilatildeo
Social Especial de Meacutedia e Alta Complexidade Em sua adolescecircncia frequentou o Serviccedilo de
Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) em seguida transitou
entre medidas socioeducativas em meio fechado e meio aberto em diversos municiacutepios e
estados No momento em que a pesquisa foi realizada cumpria medida de LA e PSC no
municiacutepio em que residia
O municiacutepio em questatildeo estaacute localizado no litoral catarinense Sobre seu bairro de
residecircncia Pedro diz que mora em um ldquobecordquo caracterizado por ele como o menor bairro da
cidade por essa razatildeo relata natildeo frequentar muitos locais da regiatildeo O jovem mora com sua
avoacute um irmatildeo de 17 anos e uma irmatilde de 14 anos Aleacutem de seus dois irmatildeos diz ter uma irmatilde
por parte de pai trecircs irmatildes que foram segundo o jovem ldquoadotadas por consideraccedilatildeordquo e um
irmatildeo que faleceu antes do nascimento Sua matildee reside em outro municiacutepio de Santa Catarina
74
e seu pai encontra-se encarcerado em um presiacutedio de seguranccedila maacutexima tambeacutem em Santa
Catarina motivo este que relata ter ingressado no PAEFI
Sobre as ocupaccedilotildees familiares a avoacute com quem reside trabalha haacute muito tempo em uma
padaria da regiatildeo Aleacutem de trabalhar como doceira trabalha com revendas de cosmeacuteticos
nacionais A irmatilde caccedilula por sua vez trabalha informalmente nas temporadas de veratildeo com os
tios vendendo milho churros e aacutegua Em relaccedilatildeo ao irmatildeo Pedro diz que o jovem ldquoeacute
malandratildeordquo pois as vezes aparece com dinheiro cuja origem eacute desconhecida
Em relaccedilatildeo ao contexto de trabalho Pedro traz muitas histoacuterias e diz que sempre teve
muito incentivo de sua famiacutelia para trabalhar Na infacircncia havia um engenho de farinha em que
todos os familiares trabalhavam inclusive Pedro Poreacutem o engenho entrou em processo de
falecircncia Em seguida Pedro trabalhou em diferentes praias vendendo castanhas-de-caju e
fazendo bijuterias artesanais segundo o jovem ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo vendiardquo Por certo
tempo de sua vida o jovem diz que ganhou bastante dinheiro realizando atividades ligadas ao
narcotraacutefico e atividades afins
Atualmente Pedro e seu tio trabalham na aacuterea de construccedilatildeo civil realizando o serviccedilo
de calfinagem isto eacute o acabamento de paredes internas de casas e apartamentos com cal fina
Em concomitacircncia com esse trabalho o jovem e sua tia realizaram um curso de importaccedilatildeo pela
internet e hoje importam produtos de outro paiacutes para vender no Brasil
Como vimos Pedro iniciou sua trajetoacuteria de trabalho de forma precoce Aos sete anos
de idade jaacute desenvolvia trabalhos na aacuterea alimentiacutecia em conjunto com sua famiacutelia Calil (2003)
aponta que ldquohistoricamente o trabalho eacute uma presenccedila constante na vida de crianccedilas e
adolescentes das camadas popularesrdquo (p 151) A condiccedilatildeo de pobreza e de trabalho infantil
acabam marcando a experiecircncia em relaccedilatildeo ao trabalho e a proacutepria vida em geral para esses
sujeitos Tendo em vista que os jovens passam a significar e a construir sentidos tomando
contato com outras realidades a realidade em que o trabalho era a uacutenica forma de garantir o
sustento familiar (Pereira 2003) eacute constitutiva na vida de Pedro
Para que conseguisse um trabalho com retorno financeiro satisfatoacuterio Pedro contou que
teve que trabalhar bastante durante sua vida Todos os seus trabalhos ateacute o momento da
entrevista foram considerados pelo jovem como ldquoautocircnomosrdquo ndash ldquoeu mesmo fazia e eu mesmo
vendiardquo ndash embora sempre atrelados aos trabalhos familiares e lugares puacuteblicos
Trabalhei muito em diversos lugares Trabalhei na praia igual a minha irmatilde Fazia tipo
aqueles negoacutecios de bijuteria artesanal O meu tio fazia no quadro eu fazia aqueles negoacutecios
75
de prosperidade incenso noacutes fazia tambeacutem coisas pra colocar tabaco vendia castanha na praia
Trabalhei muito sempre em lugares que tinha bastante pessoas (Pedro)
A condiccedilatildeo de pobreza persistente conforme Calil (2003) leva os adultos a utilizarem
o trabalho infantil como estrateacutegia de sobrevivecircncia do grupo familiar Nesse sentido embora
Pedro afirme que toda sua trajetoacuteria laboral foi como ldquoautocircnomordquo o suporte familiar
possibilitou sua autonomia no trabalho na medida em que necessitava auxiliar na sobrevivecircncia
proacutepria e da famiacutelia (Calil 2003) Eacute interessante perceber como tais relaccedilotildees entre trabalho e
famiacutelia se mostram paradoxais pois o trabalho infantil foi utilizado como subsiacutedio para a
complementaccedilatildeo da renda familiar atrelando-se assim a uma forma de sobrevivecircncia familiar
ao mesmo tempo em que as experiecircncias de trabalho para a sobrevivecircncia de si e de sua famiacutelia
lhe permitiram atribuir sentidos de autonomia e emancipaccedilatildeo precoce
O jovem relatou que desde sua juventude trabalhou no traacutefico de drogas e em atividades
afins
Natildeo era soacute traacutefico neacute Eu com 15 anos era patratildeo tinha duas trecircs biqueiras3 jaacute Jaacute tinha 15
anos e jaacute cuidava neacute E comprava coisas com caras que tavam dentro do sistema neacute Comprava
creacutedito pra eles dava telefone pra eles pra falar com eles Jaacute tava bem mais avanccedilado tambeacutem
entendeu (Pedro)
Consideramos tal como Feffermann (2006) o traacutefico de drogas como um fenocircmeno que
transpassa a ordem policial e criminal pois estaacute inserido na sociedade como parte integrante do
sistema social poliacutetico e econocircmico vigente Este sistema ldquoalicerccedilado na acumulaccedilatildeo do
capital cria e reproduz uma reserva de forccedila de trabalho desempregada ou parcialmente
desempregada e uma grande parcela desta populaccedilatildeo passa a desenvolver estrateacutegias de
sobrevivecircncia sendo que alguns transpassam o limite da legalidaderdquo (Feffermann 2006 p
209)
O trabalho no traacutefico de drogas eacute portanto uma atividade que surge para o jovem como
resposta a uma marginalidade econocircmica (Feffermann 2006) e que possui caracteriacutesticas de
um trabalho duplamente informal pois aleacutem de ser um trabalho sem regulamentaccedilatildeo formal
ldquoeacute um mercado de circulaccedilatildeo de mercadorias iliacutecitas cuja atividade eacute em si mesmo
criminalizadardquo (Misse 1999 p 293)
Em seu trabalho atual o jovem afirma conciliar duas formas de trabalho os serviccedilos de
calfinagem e de revenda de produtos importados O trabalho com cal fina por ser um serviccedilo
informal natildeo gera um salaacuterio fixo mas sim uma remuneraccedilatildeo por dia de trabalho conforme o
metro de revestimento realizado por exemplo ldquovamos fazer as contas faz uns 15 20 metros
3 Terminologia coloquial que significa o lugar onde se vendem substacircncias psicoativas
76
por dia daiacute agraves vezes 18 aiacute daacute uns 400 300 [reais] por diardquo A flexibilidade desse tipo de
trabalho eacute considerada pelo jovem como um aspecto positivo tendo em vista que natildeo precisa
estar subordinado a ningueacutem ldquose eu trabalhei hoje eu ganho se eu natildeo trabalhar eu natildeo ganho
eu natildeo preciso ficar dependendo de ningueacutem escutando coisa dos outrosrdquo
Por residir em um municiacutepio onde a construccedilatildeo civil eacute um dos principais ldquomotoresrdquo da
economia regional o jovem diz que ldquosempre tem bastante serviccedilo mas tem bastante
concorrecircncia tambeacutem mas daiacute eu melhoro o preccedilo e melhoro a qualidade aiacute sempre vai neacuterdquo
O jovem trabalha durante o dia e estuda no periacuteodo noturno
Segundo Mattos e Chaves (2010) para conciliar o tempo de estudo e de trabalho que
ocorrem em turnos diferentes do dia os jovens precisam (re)organizar a rotina diaacuteria para
acomodar a atividade laboral Os mesmos autores dizem que o tempo gasto no deslocamento
entre o trabalho e a escola foi apontado em sua pesquisa empiacuterica com jovens trabalhadores
como uma dificuldade a ser superada Tais constataccedilotildees tambeacutem foram encontradas no discurso
de Pedro o jovem diz que precisa sair mais cedo do trabalho deixando de ganhar mais dinheiro
no dia pois a localizaccedilatildeo da escola eacute afastada dos locais onde normalmente trabalha
A conciliaccedilatildeo de estudo e trabalho faz com que o cotidiano de Pedro seja exaustivo isso
se deve agrave carga horaacuteria de trabalho agrave distacircncia da escola e ao fato de ser um trabalho pesado
ldquoEacute braccedilal pra caramba toda hora eu tenho peso na matildeordquo ldquoEacute corrido pra mim tambeacutem eu
chego cansado porque o cal fino cansardquo ldquoeacute calo na matildeo pra carambardquo
Antunes (2011) ao descrever os diversos modos de ser da informalidade cita os que se
inserem em setores de prestaccedilatildeo de serviccedilos sem garantias e direitos sociais Caso fiquem
doentes pelo excesso de trabalho braccedilal por exemplo correm o risco de perder sua renda Outra
caracteriacutestica sobre os modos de ser na informalidade diz respeito agrave carga horaacuteria de trabalho
segundo Antunes (2011 sp) ldquonatildeo haacute horaacuterio fixo de trabalho e as jornadas de trabalho levam
frequentemente ao uso das horas vagas para aumentar a renda oriunda da atividaderdquo Tal
realidade pode ser ilustrada pela fala de Pedro ao dizer que ldquo[em] dois dias eu tive que
trabalhar cheio Ateacute 8 9 horas da noite no saacutebado por exemplo fiquei ateacute 9 horas da noite
trabalhando porque a gente faz pra terminarrdquo
Dialogando sobre aspectos gerais sobre a categoria trabalho Pedro definiu a mesma
enquanto uma forma de rotina que garante sua sobrevivecircncia Tal definiccedilatildeo acaba por
evidenciar sua origem social
Trabalho pra mim eacute uma coisa que a pessoa precisa da nossa comunidade da minha
comunidade mesmo eu natildeo sei da tua neacute mas na minha comunidade eu nasci na pobreza
77
neacute Eu preciso de um trabalho pra crescer neacute pra adquirir Trabalho eacute o que a pessoa precisa na
minha comunidade por exemplo que todo mundo precisa e natildeo tem taacute em falta neacute E hoje em
dia tem bastante pessoa que natildeo consegue trabalho Taacute em crise (Pedro)
A condiccedilatildeo de pobreza situada por Pedro eacute considerada uma das expressotildees da questatildeo
social a qual se manifesta dentre muitos outros determinantes pelas desigualdades de renda
entre os grupos sociais
Para os grupos sociais empobrecidos que vivem em condiccedilotildees precaacuterias de trabalho
basta uma situaccedilatildeo conjuntural de crise de subsistecircncia para que esta populaccedilatildeo seja suscetiacutevel
de ser desestabilizada tanto pela queda de produccedilatildeo de atividades quanto pelo desemprego
conforme afirma Castel (2008) Tal caracteriacutestica eacute visualizada no trecho em que Pedro relata
sobre a crise econocircmica que se faz presente no atual contexto brasileiro a qual afetou e vem
afetando pessoas que residem em sua comunidade (e que compartilham de sua situaccedilatildeo de
pobreza) agravando a condiccedilatildeo de trabalhadores subempregados e desempregados
Em referecircncia a seu meio social e a seu trabalho com a cal fina o jovem diz que realiza
um trabalho o qual tem condiccedilotildees de executar de modo a obter um retorno financeiro ldquoeu tenho
condiccedilotildees que eu tenho como trabalhar eacute um jeito que eu acho de guardar mais dinheirordquo
Atrelado a isso o trabalho de importaccedilotildees que realiza com sua tia eacute um ldquotrabalho que me ajudou
muito porque pra mim ter condiccedilotildees de taacute vendendo isso taacute importando passei por bastante
coisa e foi difiacutecil natildeo eacute faacutecilrdquo ldquoeu tenho o maior orgulho de venderrdquo Mesmo diante das
inuacutemeras contradiccedilotildees que perpassam o cotidiano de trabalho de Pedro o jovem se refere com
sentimentos positivos em relaccedilatildeo agraves atividades que vem desenvolvendo
Eu fico bastante orgulhoso de mim porque eu tenho aprendido essa profissatildeo e o significado
dela eacute que me motiva a cada dia Eacute o dinheiro neacute pra eu ter o meu sustendo e eu sofri bastante
pra poder fazer o que eu faccedilo E eu me orgulho muito e tem um significado de gratidatildeo De
aprender mesmo a fazer esse negoacutecio (Pedro)
Isto eacute mesmo desenvolvendo trabalhos informais e conciliando uma rotina exaustiva
Pedro expressa orgulho em revender produtos importados e executar serviccedilos de calfinagem
uma vez que esses trabalhos lhe trouxeram autonomia financeira em sua vida Por fim podemos
considerar que a histoacuteria de Pedro eacute marcada desde sua infacircncia pela necessidade de muito
trabalho
4 Manifestaccedilotildees da questatildeo social Interfaces entre trabalho Psicologia e MSE
A histoacuteria de Pedro nos revela que aleacutem de uma vida marcada por muito trabalho o
jovem vivenciou uma longa experiecircncia com alguns equipamentos de assistecircncia social Por
78
exemplo antes de cumprir a medida socioeducativa ele relata que frequentou o CREAS no
serviccedilo de Proteccedilatildeo e Atendimento Especializado a Famiacutelias e Indiviacuteduos (PAEFI) desde os
14 anos de idade junto a seu irmatildeo Ao relatar tais experiecircncias Pedro destaca que
mas daiacute ela era psicoacuteloga tambeacutem Mas natildeo era referente ao ato infracional Mas era tipo na
minha famiacutelia tinha pessoa que tava fazendo ato infracional e ela sabia tinha denuacutencia E eu
tinha que vir aqui pra ela ver meu psicoloacutegico pra eu natildeo cair na vida daiacute tinha que vir (Pedro)
Cruz Hillesheim e Guareschi (2005) alertam para a existecircncia de praacuteticas psis
hegemocircnicas em serviccedilos de prevenccedilatildeo e vigilacircncia direcionada aos jovens ldquopotencialmente
perigososrdquo que acabam por se desdobrar em uma concepccedilatildeo dicotomizada de infacircncia dita
normal ideal e desejaacutevel em oposiccedilatildeo a uma infacircncia de risco Nesse sentido eacute interessante
observar a referecircncia que Pedro faz ao trabalho da psicoacuteloga que lhe prestou atendimento
Enquanto profissional que ao desenvolver seu trabalho tem como horizonte manter a
estabilidade das possibilidades de desenvolvimento dele conforme um padratildeo do que eacute
considerado normal e natildeo a partir das contradiccedilotildees que envolvem a sua vida concreta
Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa na aacuterea da assistecircncia social eacute psicossocial
ou seja eacute um serviccedilo realizado junto a profissionais do serviccedilo social e logo supera as praacuteticas
tradicionais da psicologia tais como atendimento individual e cliacutenico Em relaccedilatildeo agrave atuaccedilatildeo
profissional nos serviccedilos do PAEFI as atividades satildeo realizadas conforme as demandas das
pessoas atendidas por isso as atuaccedilotildees profissionais satildeo diversas como orientaccedilotildees sobre seus
direitos sociais encaminhamentos para outros equipamentos da rede atendimento
especializado ateacute oficinas com famiacutelias (Brasil 2012) nesse sentido constitui-se uma gama de
possibilidades para o desenvolvimento do trabalho doa psicoacutelogoa no respectivo serviccedilo
Pedro nos relata ter passado por grande parte das MSEs que estatildeo tipificadas no ECA
tais como medida socioeducativa de internaccedilatildeo de liberdade assistida e de prestaccedilatildeo de
serviccedilos agrave comunidade aleacutem de jaacute ter pago cestas baacutesicas ldquoJaacute paguei cesta baacutesica jaacute paguei
um monte de coisardquo As trajetoacuterias de Pedro nos respectivos serviccedilos o PAEFI como forma de
ldquoproteccedilatildeo e prevenccedilatildeordquo e a medida socioeducativa como forma de ldquorecuperaccedilatildeo e reeducaccedilatildeordquo
se desdobram na relaccedilatildeo experienciada pelas crianccedilas e adolescentes pobres que ora satildeo
consideradas perigosas necessitando de medidas de ldquocorreccedilatildeordquo ora estatildeo em perigo de ser e
precisam de ldquoproteccedilatildeordquo e ldquoprevenccedilatildeordquo (Rizzini 1997) E interessante pontuar que tal
representaccedilatildeo ambivalente foi construiacuteda no advento da urbanizaccedilatildeo e da industrializaccedilatildeo
brasileira estando associada a determinados grupos sociais do jovem pobre negro morador
de periferia na medida em que eacute transformado em ldquomenor infratorrdquo (Meneghetti 2018) pela
periculosidade invariavelmente atrelada agraves classes populares (Rizzini 1997)
79
Durante seu percurso de internaccedilotildees o jovem diz que ldquovivia dopadordquo pois enquanto
permanecia no centro de internaccedilatildeo recebia psicotroacutepicos com receita meacutedica A
medicalizaccedilatildeo4 de jovens em ambientes socioeducativos de internaccedilatildeo eacute um fato que ocorre
frequentemente e eacute um tema presente na literatura brasileira (Anjos 2018 Vicentin Gramkow
amp Rosa 2010) portanto eacute tambeacutem um tema de sauacutede puacuteblica
Historicamente as praacuteticas psis estiveram atreladas ao modelo hegemocircnico pautado na
medicina e psiquiatria em que as praacuteticas cliacutenicas estatildeo direcionadas agrave adaptaccedilatildeo das pessoas
na busca por padrotildees de normalidade A partir disso problematizamos a responsabilidade eacutetico-
poliacutetica que constitui o trabalho dosas psicoacutelogosas quando natildeo satildeo questionados os processos
de medicalizaccedilatildeo patologizaccedilatildeo e institucionalizaccedilatildeo em ambientes socioeducativos Mesmo
que a categoria de psicoacutelogosas natildeo possa receitar medicamentos a atuaccedilatildeo nestes serviccedilos
conta com uma equipe teacutecnica multidisciplinar o que coloca todosas os profissionais
envolvidos num lugar de responsabilidade e postura eacutetica com suas praacuteticas Assim reiteramos
a necessidade de superaccedilatildeo dessa loacutegica uma vez que fenocircmenos sociais devem ser tratados
em sua totalidade e singularidade e natildeo como doenccedilas ou como comportamentos a serem
medidos e ldquoajustadosrdquo de forma individual
Diante disso entendemos a necessidade do desenvolvimento de um trabalho
efetivamente multidisciplinar no acircmbito da assistecircncia social envolvendo desde meacutedicosas
psicoacutelogosas assistentes sociais advogados educadores sociais entre outros Em certa
medida a legislaccedilatildeo da poliacutetica jaacute prevecirc essa disposiccedilatildeo contudo o que se observa eacute que apesar
da existecircncia dessa prerrogativa muitas vezes os profissionais acabam atuando de forma
fragmentada
No que diz respeito agrave interface entre medidas socioeducativas ato infracional e trabalho
na vida de Pedro o jovem relata suas experiecircncias de trabalho dentro e fora do campo da
legalidade Nesse sentido o traacutefico de drogas para o jovem eacute significado como uma atividade
importante pois remete a sua adolescecircncia e sua forma de sobrevivecircncia naquele momento
Segundo o jovem
antes eu soacute traficava natildeo trabalhava soacute vivia das coisas erradas Era soacute coisa errada realmente
era soacute coisa errada Eu quando tinha uma cabeccedila mais era mais menor tinha uma cabeccedila
diferente de pensar eu achava isso uma maneira de ganhar dinheiro hoje em dia eu jaacute natildeo acho
mais (Pedro)
4 Salientamos a necessidade de compreender as muacuteltiplas determinaccedilotildees que envolvem tal temaacutetica tais como a
patologizaccedilatildeo da infacircncia os mecanismos de controle social da populaccedilatildeo juvenil a sauacutede mental em instituiccedilotildees
socioeducativas a ideia de periculosidade atrelada aos transtornos mentais entre outras
80
Feffermann (2006) destaca que o mercado ilegal surge como uma das respostas agrave
marginalidade econocircmica para jovens pertencentes agraves classes populares viacutetimas do crescimento
econocircmico desigual Sabendo da complexidade do trabalho e do traacutefico de drogas enquanto
importante dimensatildeo da constituiccedilatildeo subjetiva e natildeo querendo esgotar tais dimensotildees
afirmamos a partir dos relatos de Pedro que o traacutefico de drogas esteve presente em sua vida
como uma estrateacutegia de sobrevivecircncia e um meio de ganhar dinheiro
Entendemos que o trabalho doa psicoacutelogoa nas poliacuteticas puacuteblicas com questotildees
relacionadas a atos infracionais natildeo deve ser pautado em concepccedilotildees moralizantes que
contribuem para a criminalizaccedilatildeo da juventude envolvida nessas relaccedilotildees Mas sim uma
atuaccedilatildeo voltada para compreender o lugar que tais relaccedilotildees assumem na vida desses jovens e
para a construccedilatildeo de soluccedilotildees coletivas que visam superar esse contexto de produccedilatildeo de
criminalidade no qual se constituem as vidas de tantos jovens
Segundo Oliveira e Costa (2018) o desafio da psicologia consiste em compreender que
eacute a proacutepria pobreza que condiciona produz e reverbera os mais variados problemas
apresentados no cotidiano da profissatildeo Natildeo se trata apenas de uma formaccedilatildeo precaacuteria que natildeo
prepara seus profissionais para atuar em contextos de pobreza enquanto uma postura eacutetica
social e de classe comprometida com nossa realidade mas tambeacutem a proacutepria estrutura da
economia e da poliacutetica que satildeo permeadas por interesses da classe dominante (Oliveira amp Costa
2018) Por exemplo uma atuaccedilatildeo voltada a inserccedilatildeo de jovens no mercado de trabalho parece
desconsiderar a realidade dezenas de milhotildees desempregados na atualidade isto eacute o
desemprego estrutural
Em relaccedilatildeo ao cotidiano de trabalhadores do traacutefico outro aspecto a ser visibilizado diz
respeito ao cotidiano de sucessivas violecircncias atreladas agrave atividade Pedro revela ter
interrompido as atividades de traacutefico de drogas pois estava em busca de sua liberdade
Tambeacutem pelo amor que sente por sua famiacutelia e pelo medo de morrer ou de perder algum
membro de sua famiacutelia para a violecircncia por isso diz ter se distanciado das atividades ilegais e
passou a desenvolver atividades na construccedilatildeo civil conforme jaacute mencionamos
Poreacutem esse tempo de permanecircncia em atividades natildeo legalizadas fizeram com que o
jovem ficasse ldquorotuladordquo pela poliacutecia militar e sofresse diversas violaccedilotildees de direitos Segundo
o jovem tais violaccedilotildees acontecem com frequecircncia
foi de noite Eu tava na rua da minha casa eles me pegaram laacute eu tava vendendo droga eles
sabiam neacute tinha muita denuacutencia jaacute sabiam e eu tava marcado jaacute avisaram Eu natildeo tava
escutando eles eles podiam falar eu natildeo tava nem aiacute Daiacute foi o que aconteceu eles me pegaram
perto da 130 1h me levaram e me bateram (Pedro)
81
De acordo com Wacquant (2001) o uso constante da violecircncia pela poliacutecia militar
contra pessoas de camadas populares banalizou a brutalidade no seio do Estado Aleacutem disso o
uso da violecircncia policial estaacute ancorado em concepccedilotildees hieraacuterquicas e paternalistas que atingem
trabalhadores e pessoas ldquoem conflito com a leirdquo de forma que a manutenccedilatildeo da ordem de classe
e da ordem puacuteblica se confundem
Na histoacuteria de Pedro a violecircncia policial natildeo se restringe ao momento imediato da
abordagem policial mas sim se constitui em ameaccedilas constantes napara vida do jovem ldquoEles
[policiais militares] avisaram na frente do advogado falaram ldquoah se noacutes te pegar de novo
na rua vocecirc jaacute sabe a gente vai te matar [me] ameaccedilou ameaccedilou assim com o advogado
vendo eu natildeo meti um processo neles porque eu natildeo quero morrerrdquo A fala de Pedro eacute
reveladora de um contexto no qual natildeo raramente as ameaccedilas de morte se materializam em
assassinatos de jovens pobres e negros por parte da poliacutecia entrando para as estatiacutesticas de
genociacutedio dessa populaccedilatildeo
Eacute importante ressaltar que mesmo cumprindo as medidas socioeducativas e afirmando
que encerrou as atividades ligadas ao narcotraacutefico as abordagens policiais e violaccedilotildees de
direitos continuam na vida de Pedro Desse modo Pedro poderia ser situado como provaacutevel
alvo daquilo que Meneghetti (2018) considera como ldquocisma policialrdquo a qual eacute constituiacuteda a
partir da imagem construiacuteda em relaccedilatildeo aos jovens desde sua primeira ocorrecircncia sobretudo
caso ele apresente atributos baacutesicos de suspeiccedilatildeo em termos de gecircnero raccedila e classe somados
agrave aparecircncia No caso de Pedro observamos a seguinte situaccedilatildeo
Aqui acontece direto Me pegaram em quatro agora e me pegaram 100 reais Faz duas ou trecircs
semanas tava com 500 reais no bolso e eles [policiais militares] falaram ldquode quem eacute esse
dinheiro aquirdquo E eu falei ldquoacabei de receber tava voltando do serviccedilordquo Me pegaram eu tava
com roupa e o sapatatildeo de tecircnis e tudo Me pegaram eles me conhecem neacute Se eles pegassem
os 500 reais que eu tivesse recebido no dia aiacute meu deus eu ia levar na corregedoria e eles iam
se incomodar neacute Soacute que por 100 reais eu natildeo ia me incomodar Depois ele vai querer me matar
ainda neacute (Pedro)
Em busca de desfazer o estereoacutetipo ldquomenor suspeitordquo Pedro recorre ao trabalho O
uniforme de trabalho ldquoroupa e o sapatatildeordquo adquire um sentido para aleacutem de subsistecircncia mas
sim envolve uma possibilidade de condiccedilatildeo de seguranccedila relacionada a um status de natildeo
delinquecircncia Ao mesmo tempo em que Pedro enfatiza o orgulho e a autonomia que o seu
trabalho proporciona tambeacutem retrata que a realidade de desemprego estaacute presente para muitas
pessoas que residem ao seu redor Isto eacute a contradiccedilatildeo sobressalente nos sentidos sobre o
trabalho diz respeito ao sistema social e econocircmico que precariza as condiccedilotildees mais baacutesicas de
82
existecircncia tirando das pessoas o direito ao trabalho que se tratando de uma classe que necessita
trabalhar para (sobre)viver trata-se de uma ameaccedila agrave proacutepria vida humana
Consideraccedilotildees finais
Este trabalho teve como objetivo compreender as trajetoacuterias de vida de um jovem em
cumprimento de medidas socioeducativas e algumas reflexotildees acerca das praacuteticas psis em
serviccedilo da poliacutetica de assistecircncia social Ao longo do desenvolvimento da pesquisa que deu
origem agrave presente reflexatildeo diversos questionamentos sobre essas relaccedilotildees principalmente
acerca do trabalho doa psicoacutelogoa no ambiente socioeducativo foram se constituindo no
diaacuterio de campo Como acolher as histoacuterias dos jovens que estatildeo por vir Como abordar as
temaacuteticas de cunho institucional sem que gere desconforto ou que criminalize ainda mais os
jovens Qual eacute a melhor forma ou instrumentos de trabalho para que eles se sintam acolhidos
numa instituiccedilatildeo direcionada a temaacuteticas que transversalizam questotildees sobre criminalidade
Como a psicologia pode ajudar na superaccedilatildeo de condiccedilotildees de vidas precaacuterias
Os desafios postos na construccedilatildeo de praacuteticas psi que indiquem possibilidades de romper
com preconceitos e concepccedilotildees que naturalizam a condiccedilatildeo de pobreza em relaccedilatildeo aos jovens
satildeo muitos Tais desafios apontam tanto para a revisatildeo das concepccedilotildees teoacutericas que sustentam
as praacuteticas como para as proacuteprias praacuteticas dosas psicoacutelogosas Oliveira e Costa (2018) nos datildeo
uma pista para que possamos compreender e superar tais condiccedilotildees qual seja pressupor que o
cerne das contradiccedilotildees postas na atualidade estaacute situado nas relaccedilotildees capital-trabalho E por
isso por mais acessiacutevel inclusiva ou democraacutetica que sejam as poliacuteticas puacuteblicas elas ainda
em maior ou menor grau satildeo engendradas nesse contexto de contradiccedilotildees
Entendemos que essa compreensatildeo retoma a funccedilatildeo histoacuterica social e poliacutetica do
trabalho doa psicoacutelogoa E neste caso pensar e concretizar possibilidades de superaccedilatildeo do
que estaacute posto em relaccedilatildeo a ele desdobra-se em uma responsabilidade eacutetico-poliacutetica com a
classe trabalhadora brasileira isto eacute com a proacutepria de vida de jovens como Pedro Destacamos
na histoacuteria de Pedro a persistecircncia de desigualdades de classe constituiacuteda por relaccedilotildees
complexas de uma estrutura social precaacuteria e perversa que coloca a vida humana nas margens
Portanto eacute importante resgatar a urgecircncia de uma praacutetica profissional baseada na eacutetica na
permanente reflexatildeo e autocriacutetica e ainda comprometida com a realidade e com os jovens
brasileiros As diversas trajetoacuterias de trabalho de Pedro evidenciam o quanto na vida deste
jovem trabalhador a ocupaccedilatildeo em serviccedilos informais e ilegais se colocou como uacutenica
83
possibilidade assim como para outros jovens inclusive de sua proacutepria famiacutelia E tambeacutem o
quanto tais condiccedilotildees o colocaram em relaccedilotildees contraditoacuterias e sucessivas com as poliacuteticas de
assistecircncia social
Por fim reiteramos como ressaltam Mayer e Nuacutentildeez (2017) a importacircncia de
considerarmos processos de longo prazo e natildeo apenas conjunturas especiacuteficas pois ao conhecer
a constituiccedilatildeo histoacuterica do Estado brasileiro e a trajetoacuteria de Pedro comum a tantos jovens de
camadas populares cabe a Psicologia contribuir para identificar e natildeo permitir a reproduccedilatildeo de
padrotildees e loacutegicas excludentes de praacuteticas psicologizantes correcionistas e culpabilizadoras de
questotildees que satildeo de ordem social
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86
Capiacutetulo 5
Medidas socioeducativas as narrativas de adolescentes e o uso da literatura
como disparadores de anaacutelise
Beatriz Saks Hahne
Adriana Marcondes Machado
Introduccedilatildeo
Seratildeo apresentadas a partir de pesquisa de doutorado em andamento1 experiecircncias
construiacutedas em parceria com adolescentes e jovens que cumprem ou cumpriram recentemente
medida socioeducativa Satildeo meninos e meninas que ao praticarem ato infracional tecircm suas
trajetoacuterias carregadas de vivecircncias em unidades de internaccedilatildeo e se percebem transitando na
comunidade em que habitam tomados como autores de ato infracional isso estaacute presente na
famiacutelia na escola nos olhos dos vizinhos e na relaccedilatildeo com a poliacutecia
Situada no departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do
Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo a incursatildeo acadecircmica no campo das
medidas socioeducativas se alia agrave afirmaccedilatildeo da Psicologia como lugar do debate a favor da
garantia de direitos Para tanto um primeiro tensionamento parece necessaacuterio falamos em
Psicologias no plural compreendendo seu saber inserido em uma disputa (Coimbra amp
Nascimento 2008) de mundos representada por aquilo que eacute solicitado de sua praacutetica
Profissionais do campo ldquopsirdquo satildeo frequentemente convocados a agir por meio de verbos como
nomear definir e significar demandados a corrigir caminhos ou de outra forma no que diz
respeito agrave discussatildeo deste artigo a ressocializar o adolescente que ldquodesviardquo (Batista 2003)
Com a perspectiva de ampliar a discussatildeo sobre o trabalho com os adolescentes
atendidos por essa poliacutetica puacuteblica a pesquisa de doutorado que alimenta estas linhas realiza a
construccedilatildeo de narrativas com jovens que hoje cumprem medidas socioeducativas de meio
aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade Assistida ndash ou que possuem trajetoacuteria
anterior de cumprimento de alguma das seis sanccedilotildees descritas na Lei 8069 (Brasil 1990)
Importa escutar histoacuterias para alongar o olhar em relaccedilatildeo a um horizonte que diz respeito a
vidas ameaccediladas ndash de sua dignidade e do corpo fiacutesico Na intenccedilatildeo de conhecer o que esses
1 O trabalho de campo da presente pesquisa foi iniciado em dezembro de 2018
87
adolescentes contariam sobre suas trajetoacuterias em meio ao tempo de cumprimento das medidas
socioeducativas tomamos o ato infracional vinculado ao contexto histoacuterico que tambeacutem o
constitui
Certos modos de pensar e de operacionalizar os atendimentos teacutecnicos e os
encaminhamentos aos serviccedilos e atores do Sistema de Garantia de Direitos2 aleacutem da elaboraccedilatildeo
do Plano Individual de Atendimento3 e dos relatoacuterios enviados ao poder judiciaacuterio fazem colar
nos adolescentes discursos de uma identidade totalizada Falamos dos procedimentos que se
repetem ao natildeo considerarem aquilo que singularmente suas trajetoacuterias solicitam Ao
contribuir para um certo enrijecimento identitaacuterio (Rolnik 2006) afirmando determinadas
formas de vida em detrimento de outras ndash avaliaccedilatildeo sempre do campo da moral e da
arbitrariedade ndash potencializam as chances de que todos fiquem assimilados como adolescentes-
infratores4
Esse modo de operar cria elo com a natildeo variaccedilatildeo da vida pois atribuindo agrave medida
socioeducativa o objetivo de ressocializar arriscamos ver no jovem algueacutem desinteressado ou
destoante que natildeo consegue alcanccedilar a ideia socialmente constituiacuteda do que seria uma vida boa
e correta Essa posiccedilatildeo tambeacutem produz efeitos nos profissionais cujas praacuteticas ficam menos
criativas e mais pressionadas a responder a demandas judiciais que em geral natildeo se articulam
aos desafios dos enfrentamentos cotidianos Opor-se a esse modo de pensar a juventude implica
uma atuaccedilatildeo que conquiste discussotildees elaboraccedilotildees e conversas para que a cada passo as
estrateacutegias de atendimento considerem as especificidades daqueles para quem e com quem
trabalhamos
A produccedilatildeo da realidade passa necessariamente pelas trocas que se datildeo no mundo de
forma que a duacutevida pode ser alimento para a accedilatildeo ao natildeo restringir a vida a ser aquilo que se
supotildee que deveria ser Nessa reduccedilatildeo fica de fora o singular cuja importacircncia eacute permitir ver o
2 Resoluccedilatildeo 113 Conanda (2006) ldquoArt 1ordm O Sistema de Garantia dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente
constitui-se na articulaccedilatildeo e integraccedilatildeo das instacircncias puacuteblicas governamentais e da sociedade civil na aplicaccedilatildeo
de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoccedilatildeo defesa e controle para a efetivaccedilatildeo
dos direitos humanos da crianccedila e do adolescente nos niacuteveis Federal Estadual Distrital e Municipalrdquo Disponiacutevel
em httpwwwcrpsporgbrportalcomunicacaodiversosmini_cdpdfsRes_113_CONANDApdf Acesso em
23 jul 2019 3 Lei 1259412 Art 1 sect 2ordm ldquoEntendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art 112 da Lei nordm 8069
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Crianccedila e do Adolescente) as quais tecircm por objetivos I - a responsabilizaccedilatildeo
do adolescente quanto agraves consequecircncias lesivas do ato infracional sempre que possiacutevel incentivando a sua
reparaccedilatildeo II - a integraccedilatildeo social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais por meio do
cumprimento de seu plano individual de atendimento e III - a desaprovaccedilatildeo da conduta infracional efetivando as
disposiccedilotildees da sentenccedila como paracircmetro maacuteximo de privaccedilatildeo de liberdade ou restriccedilatildeo de direitos observados os
limites previstos em leirdquo 4 A historiadora Vera Malaguti Batista (2003) traz esta questatildeo ao estudar relatoacuterios produzidos por psicoacutelogas nas
unidades da Febem da cidade do Rio de Janeiro ao longo de 20 anos (1960-1980)
88
que faz uma existecircncia persistir O que faz uma vida vingar Agamben (2007) em diaacutelogo com
Foucault ressalta as vidas que satildeo caladas e colocadas agrave margem ao serem acessiacuteveis por meio
de escritas feitas sobre elas que registram a marca da infacircmia daqueles sobre quem se escreve
Convocar esses adolescentes a produzirem narrativas a partir de saberes sobre a proacutepria
trajetoacuteria eacute uma estrateacutegia entre outras contra o apagamento de uma autoria de vida
Para acessar e discutir com nossos colaboradores suas memoacuterias ndash aquilo que constitui
sua existecircncia ndash utilizamos a construccedilatildeo de narrativas como ferramenta Ouvir os relatos
escrevecirc-los ler conjuntamente e reescrevecirc-los eacute processo animado pelo uso da literatura
Romances letras de muacutesicas e poemas satildeo tomados como recursos para dignificar a vida
coletivizar as existecircncias e criar alianccedilas em um contexto em que a marca juriacutedica coloca esses
jovens como se fossem maacutes exceccedilotildees Os textos emprestam uma experiecircncia ao leitor fazendo
de suas linhas moradas do afeto pois ao compartilhar sentimentos duacutevidas e amores neles
presentes o leitor emprestando essas experiecircncias torna-se algueacutem menos isolado
Para continuaccedilatildeo da discussatildeo apresentaremos a poliacutetica puacuteblica das medidas
socioeducativas e o procedimento que temos utilizado a partir de uma certa Psicologia junto
aos adolescentes que vivem essas medidas
1Medidas socioeducativas entre a poliacutetica puacuteblica e o sujeito-adolescente
Data de 1923 a poliacutetica de proteccedilatildeo social brasileira voltada agravequeles entatildeo nomeados
como ldquomenores abandonados e delinquentesrdquo5 Dela a criaccedilatildeo do Juizado de Menores e o
reforccedilo ao termo que mora em tempo contiacutenuo no saber social como marca do jovem que
diverge ou que delinque ou que eacute pobre e em geral negro Menor palavra que com o Coacutedigo
de Menores eacute associada ldquodefinitivamente a crianccedilas pobres a serem tuteladas pelo Estado para
a preservaccedilatildeo da ordem e asseguramento da modernizaccedilatildeo capitalista em cursordquo (Batista 2003
p 69) Processo de capitalizaccedilatildeo de um Brasil recentemente saiacutedo dos tempos de escravatura e
que natildeo teve de seu seio retiradas as marcas da escravizaccedilatildeo dos negros roubados agrave sua terra
(Gomes amp Schwarcz 2018) Ao contraacuterio tais feridas persistem e constroem incessantemente
dados estatiacutesticos acerca das desigualdades sociais no Brasil6
5 Decreto nordm 16272 de 20 de dezembro de 1923 ndash Artigo 24 sect 2ordm ldquoSe o menor focircr abandonado pervertido ou
estiver em perigo de o ser a autoridade competente promoveraacute a sua collocaccedilatildeo em asylo casa de educaccedilatildeo escola
de preservaccedilatildeo ou o confiaraacute a pessoa idonea por todo o tempo necessario aacute sua educaccedilatildeo comtanto que natildeo
ultrapasse a idade de 21 annosrdquo (Passetti 2013 p 354) 6 Atlas da Violecircncia 2019 Disponiacutevel em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=
articleampid=34784ampItemid=432 Acesso em 23 jul 2019
89
O primeiro Coacutedigo de Menores de 1927 reafirmava o papel do Estado de assistir e
cuidar dos ldquoabandonadosrdquo e o fazia por meio da institucionalizaccedilatildeo A lei colocou fim agrave
condiccedilatildeo de anonimato da praacutetica de renuacutencia a crianccedilas atraveacutes do uso da Roda dos Expostos
O Estado assumia legalmente a responsabilidade pelo atendimento de uma camada da infacircncia
e juventude brasileiras por meio de estrateacutegias que como efeito ampliavam sua segregaccedilatildeo
(Hahne 2017)
Todas as crianccedilas e jovens tidos como em perigo ou perigosos (por exemplo abandonado
carente infrator apresentando conduta dita antissocial deficiente ou doente ocioso
perambulante) eram passiacuteveis em um momento ou outro de serem enviados agraves instituiccedilotildees de
recolhimento Na praacutetica isto significava que o Estado podia atraveacutes do Juiz de Menor destituir
determinados pais do paacutetrio poder atraveacutes da decretaccedilatildeo da sentenccedila de ldquosituaccedilatildeo irregular do
menorrdquo Sendo a ldquocarecircnciardquo uma das hipoacuteteses de ldquosituaccedilatildeo irregularrdquo podemos ter uma ideia
do que isto podia representar em um paiacutes onde jaacute se estimou em 36 milhotildees o nuacutemero de crianccedilas
pobres (Arantes 2004 p 163)
Em 1979 o Coacutedigo de Menores eacute reformulado e sem mudanccedilas estruturais naquilo que
conferia a crianccedilas e adolescentes a condiccedilatildeo de inclusatildeo marginal ndash pois com a pecha de
destoantes ndash funda a Doutrina da Situaccedilatildeo Irregular Satildeo irregulares os pobres abandonados
ou natildeo filhos da escravidatildeo Essa concepccedilatildeo foi enfrentada na letra da lei apenas 63 depois
com a implementaccedilatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) que institui a
Doutrina da Proteccedilatildeo Integral e assume os direitos fundamentais e as poliacuteticas que devem
asseguraacute-los A ordem eacute menos controle e mais proteccedilatildeo
Medida socioeducativa eacute a poliacutetica puacuteblica apresentada pelo Estatuto da Crianccedila e do
Adolescente (Brasil 1990) que determina e aplica sanccedilatildeo legal aos brasileiros e brasileiras em
idade entre 12 e 18 anos7 Posterior agrave primeira legislaccedilatildeo destinada exclusivamente a crianccedilas
e adolescentes ndash o Coacutedigo de Menores ndash o Estatuto carrega histoacuterias de luta pela afirmaccedilatildeo de
direitos em meio agrave entatildeo recente redemocratizaccedilatildeo do Brasil A todas as crianccedilas e adolescentes
inclusive agravequeles apreendidos por ato infracional satildeo aplicaacuteveis sob avaliaccedilatildeo judicial
medidas de proteccedilatildeo8 de forma que a transgressatildeo natildeo apaga ndash e ao contraacuterio em muitas
7 Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) ndash Art 112 ldquoVerificada a praacutetica de ato infracional a autoridade
competente poderaacute aplicar ao adolescente as seguintes medidas I - advertecircncia II - obrigaccedilatildeo de reparar o dano
III - prestaccedilatildeo de serviccedilos agrave comunidade IV - liberdade assistida V - inserccedilatildeo em regime de semiliberdade VI -
internaccedilatildeo em estabelecimento educacionalrdquo 8 Art 101 do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente define as medidas protetivas ldquoI - Encaminhamento aos pais
ou responsaacutevel mediante termo de responsabilidade II - Orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III -
matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV - inclusatildeo em serviccedilos
e programas oficiais ou comunitaacuterios de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V -
requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI - inclusatildeo
em programa oficial ou comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII -
acolhimento institucional VIII - inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX - colocaccedilatildeo em famiacutelia
substitutardquo
90
histoacuterias de vida faz ver ndash necessidades de ordem socioeconocircmica que marcam jovens
trajetoacuterias
Mais recentemente outra lei voltada agrave juventude ndash especiacutefica aos adolescentes objeto
das medidas socioeducativas ndash foi criada para regular orientar e normatizar a execuccedilatildeo desta
poliacutetica puacuteblica A Lei 12594 (Brasil 2012) foi bastante reduzida no momento de sua
promulgaccedilatildeo especialmente no que diz respeito aos aspectos pedagoacutegicos das medidas
socioeducativas que receberam menor ecircnfase se comparados agrave defesa da responsabilizaccedilatildeo que
a Lei ressalta (Barone Botarelli Frassetto amp Guaraacute 2012)
O Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Brasil 1990) ao posicionar seu puacuteblico-alvo
como sujeitos de direitos sociais cujas vozes devem compor a construccedilatildeo do mundo9 convoca
os profissionais no que diz respeito agrave execuccedilatildeo das medidas a trazerem para si o adolescente
e fazerem com ele a composiccedilatildeo dos processos educativos de reflexatildeo e de debate sobre sua
trajetoacuteria singular A Lei 12594 (Brasil 2012) ressalta a construccedilatildeo do Plano Individual de
Atendimento (PIA) como ferramenta estrateacutegica para essa composiccedilatildeo coletiva
A centralidade nos sujeitos-adolescentes se faz importante porque procura respeitar o indiviacuteduo
em sua singularidade ressaltando sua efetiva participaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo do Plano Individual de
Atendimento que sugerimos deve ser posicionado no projeto de vida dos adolescentes e em
sua histoacuteria e no projeto pedagoacutegico das instituiccedilotildees que executam as medidas socioeducativas
(Barone et al 2012 p 68)
A legislaccedilatildeo brasileira portanto defende a participaccedilatildeo do adolescente na construccedilatildeo
das ponderaccedilotildees e das accedilotildees que permitiratildeo a constituiccedilatildeo de trajetoacuterias distanciadas do
universo infracional tornando sociedade e Estado coautores de suas histoacuterias e natildeo apenas
cobradores de mudanccedilas ndash da chamada ressocializaccedilatildeo termo complexo quando satildeo tomadas
as condiccedilotildees para uma primeira socializaccedilatildeo daqueles cujas cidadanias tecircm sido historicamente
impedidas ou nas palavras do geoacutegrafo Milton Santos mutiladas (Santos 19961997)
Sob essa loacutegica os adolescentes fazem parte dos momentos que servem agrave construccedilatildeo do
trabalho socioeducativo tomando os processos tatildeo ou mais importantes que o produto final
Ocorre que suas ferramentas podem ser capturadas e burocratizadas fechando os olhos agravequilo
que a vida de cada adolescente apresenta e solicita O sujeito quando ausente daquilo que
9 Art 53 ldquoA crianccedila e o adolescente tecircm direito agrave educaccedilatildeo visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa
preparo para o exerciacutecio da cidadania e qualificaccedilatildeo para o trabalho assegurando-se-lhes I - igualdade de
condiccedilotildees para o acesso e permanecircncia na escola II - direito de ser respeitado por seus educadores III - direito de
contestar criteacuterios avaliativos podendo recorrer agraves instacircncias escolares superiores IV - direito de organizaccedilatildeo e
participaccedilatildeo em entidades estudantis V - acesso agrave escola puacuteblica e gratuita proacutexima de sua residecircncia garantindo-
se vagas no mesmo estabelecimento a irmatildeos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educaccedilatildeo
baacutesica (Redaccedilatildeo dada pela Lei nordm 13845 de 2019) Paraacutegrafo uacutenico Eacute direito dos pais ou responsaacuteveis ter ciecircncia
do processo pedagoacutegico bem como participar da definiccedilatildeo das propostas educacionaisrdquo
91
constitui discursos sobre si eacute tornado objeto do saber de um outro que se supotildee mais saacutebio
sobre o que ele pode Na posiccedilatildeo de representaccedilatildeo ndash adolescente-infrator ndash fica destituiacutedo de
seus conhecimentos
Naquilo que tem constituiacutedo a realidade do adolescente que cumpre medida
socioeducativa hoje exemplificamos a explicaccedilatildeo com duas notiacutecias recentes A primeira delas
eacute o pedido de revisatildeo do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente a favor da ampliaccedilatildeo do poder
punitivo contra os adolescentes10 No mesmo periacuteodo em que era veiculada a notiacutecia ocorria o
lanccedilamento de pesquisa sobre a aplicaccedilatildeo e a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio
aberto nas cidades do Rio de Janeiro e Satildeo Paulo11 que aponta para a prevalecircncia do caraacuteter
punitivo em relaccedilatildeo aos adolescentes a quem satildeo atribuiacutedas medidas socioeducativas de meio
aberto em ambas as cidades A persistecircncia da chamada progressatildeo de medida12 afirma o olhar
sancionatoacuterio
Com esse pano de fundo a Psicologia sempre sob o risco de ser fisgada por modos de
agir burocratizados e homogeneizadores a partir de crenccedilas socialmente aprendidas (Machado
2008) eacute convocada a questionar suas praacuteticas A construccedilatildeo coletiva dos processos educativos
e participativos eacute tatildeo complexa quanto a defesa da vida dos adolescentes que vivem a medida
socioeducativa13 atravessada que eacute por discursos que o tomam como sujeito violento e
antissocial (Violante 1984 Trassi 2006) Sob essa identidade esses adolescentes satildeo
colocados em posiccedilotildees que natildeo tecircm variado ao menos na maior parte das experiecircncias
localizadas e debatidas na cidade de Satildeo Paulo quando estatildeo perante a um juiz que pouco
conhece suas condiccedilotildees de vida e em seguida a adultos convocados a produzir registros sobre
suas tatildeo erradas vidas (Miraglia 2005 Malvasi 2012)
10 STF marca para agosto julgamento de accedilatildeo contra ECA Disponiacutevel em httpsogloboglobocomsociedade
stf-marca-para-agosto-julgamento-de-acao-contra-eca-23594873 Acesso em 19 abr 2019 11 A pesquisa intitulada Juventude e cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto entre a garantia
de direitos e a judicializaccedilatildeo foi apresentada no evento Execuccedilatildeo das medidas socioeducativas para adolescentes
haacute mais o que saber sobre o ldquomeio abertordquo realizada pelo Nuacutecleo de estudos poacutes-graduados em Serviccedilo Social
ndash Nuacutecleo de estudos em seguridade e assistecircncia social (NEPSAS) da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo
Paulo em 15042019 12 Aplicaccedilatildeo de uma ou ambas as medidas em meio aberto ndash Prestaccedilatildeo de Serviccedilos agrave Comunidade e Liberdade
Assistida ndash apoacutes o cumprimento de internaccedilatildeo eou semiliberdade alongando em meses ou anos o
acompanhamento do adolescente pelo poder judiciaacuterio 13 IPEA (2015) Nota Teacutecnica ndash O Adolescente em Conflito com a Lei e o Debate sobre a Reduccedilatildeo da Maioridade
Penal esclarecimentos necessaacuterios Brasiacutelia Sobre o perfil do adolescente em conflito com a lei no Brasil mais
de 60 dos adolescentes privados de liberdade eram negros 51 natildeo frequentavam a escola 49 natildeo
trabalhavam quando cometeram o delito e 66 viviam em famiacutelias consideradas extremamente pobres Disponiacutevel
em httpwwwipeagovbrportalindexphpoption=com_contentampview=articleampid=25621ampItemid =9 Acesso
em 26 jun 2019
92
Eacute nesse contexto que se inscreve a pesquisa em andamento em meio agrave produccedilatildeo
massificada de vidas-adolescentes construir narrativas singulares com aqueles cujas
existecircncias satildeo marcadas pelo cometimento de ato infracional e pelas formas com as quais o
Brasil tem escolhido agir a partir dele o encarceramento natildeo precisa ser consequecircncia uacutenica ou
primeira agrave infraccedilatildeo A retomada de solicitaccedilotildees pela reduccedilatildeo da maioridade penal e pela
ampliaccedilatildeo do tempo de privaccedilatildeo da liberdade torna urgente a discussatildeo
Consideramos que assumir esses adolescentes como narradores do vivido eacute brigar pela
dignificaccedilatildeo e duraccedilatildeo de suas vidas Apostando na importacircncia da literatura para afirmar a
singularidade das existecircncias algo que lhes teria sido furtado (Petit 2009) ela se torna suporte
para o registro de suas palavras Satildeo utilizados contos letras de muacutesicas poemas e histoacuterias
presentes na literatura como recursos estrateacutegicos para dignificar a vida dessas pessoas
produzindo saberes sobre si
2 Experiecircncia e variaccedilatildeo da vida na literatura
A histoacuteria pregressa e atual de parcela consideraacutevel da juventude brasileira ndash aquela que
eacute objeto das sanccedilotildees legais14 ndash daacute a ver os desafios agrave Psicologia para que considere a
singularidade das vidas que encontra em seu fazer Adolescentes autores de atos infracionais
com frequecircncia satildeo tomados como sujeitos-supostos submetidos a histoacuterias que antecedem
sua vinda ao mundo e com muitas experiecircncias cotidianas de indignidade que desafiam a
construccedilatildeo de trajetoacuterias que sejam pensadas por eles mesmos O desafio eacute o de ldquouma
singularizaccedilatildeo existencial que coincida com um desejo com um gosto de viver com uma
vontade de construir o mundo no qual nos encontramosrdquo (Guattari amp Rolnik 2013 p 22)
A construccedilatildeo de narrativas atua como dispositivo para provocar a pensar as formas como
os adolescentes parceiros dessa pesquisa sobrevivem em contextos tatildeo indignos Memoacuterias e
experiecircncias permitem ver como o Sistema Socioeducativo e em seu interior o atendimento
teacutecnico satildeo percebidos por eles e os efeitos que neles produzem A escrita das narrativas e as
reflexotildees nascidas no processo de elaboraccedilatildeo permitem afirmarmos que os adolescentes se
constituem a partir dos discursos que os atravessam de forma que o falado e o escrito sobre
eles compotildeem a existecircncia e a maneira de cumprir a medida socioeducativa ldquoa singularidade
carrega uma experiecircncia coletiva em que haacute um elemento impessoal um comum o que
14 Brasiacutelia Distrito Federal (2016) Caderno de Orientaccedilotildees Teacutecnicas Serviccedilo de Medidas Socioeducativas em
Meio Aberto Secretaria Nacional de Assistecircncia Social Disponiacutevel em httpswwwmdsgovbrwebarquivospu
blicacaoassistencia_socialCadernoscaderno_MSE_0712pdf Acesso em 28 jul 2019
93
significa que aquilo que eacute narrado eacute agregado singular de mil outros casosrdquo (Alaion 2017 p
104) Identificaccedilotildees e nomeaccedilotildees em relaccedilatildeo agraves situaccedilotildees que esses jovens vivem satildeo
construiacutedas a partir das compreensotildees de mundo de quem de uma forma ou outra com eles
convive
O processo educativo da sanccedilatildeo disciplinar eacute disputado por visotildees de mundo e
idealizaccedilotildees socialmente construiacutedas sobre esses adolescentes e sobre suas vidas Teacutecnicos que
realizam seu atendimento com frequecircncia referem-se a solicitaccedilotildees do poder judiciaacuterio para
encaminhamentos que devem ser realizados aos adolescentes como afirmaccedilatildeo corrente meio
para a criaccedilatildeo de alternativas ao ato infracional Se a desigualdade socioeconocircmica eacute ponto
crucial para o problema aqui discutido ao ser considerada uacutenica motivaccedilatildeo esconde o sujeito
por traacutes de quem o pratica ou seja os sentidos pensados e construiacutedos em relaccedilatildeo ao vivido
Essa constataccedilatildeo eacute um convite ao psicoacutelogo para agir tal como um cartoacutegrafo como um
investigador curioso sobre as coisas do mundo e os repertoacuterios de vida de quem acompanha em
seu trabalho
A praacutetica de um cartoacutegrafo diz respeito fundamentalmente agraves estrateacutegias das formaccedilotildees do
desejo no campo social natildeo tem o menor racismo de frequecircncia linguagem ou estilo Tudo
o que der liacutengua para os movimentos do desejo tudo o que servir para cunhar mateacuteria de
expressatildeo e criar sentido para ele eacute bem-vindo Todas as entradas satildeo boas desde que as saiacutedas
sejam muacuteltiplas (Rolnik 2006 p 65 destaques do original)
Ao cartoacutegrafo natildeo cabe a valoraccedilatildeo dos modos de agir no mundo mas a sustentaccedilatildeo da
expansatildeo da vida natildeo a revelaccedilatildeo do sentido das existecircncias mas a criaccedilatildeo de sentido com
elas Eacute sempre no campo relacional e por meio das alianccedilas que nos constituiacutemos essa
composiccedilatildeo eacute mais conectada agrave variaccedilatildeo da vida quando haacute lugar para a construccedilatildeo de
experiecircncias que rompam mesmo que por poucos momentos com a impossibilidade de
elaboraccedilatildeo da proacutepria existecircncia construccedilatildeo que se daacute por meio de uma certa qualidade das
relaccedilotildees estabelecidas que permita a transformaccedilatildeo dos lugares operaacuteveis natildeo apenas nos
adolescentes mas naqueles que os acompanham
Entre aquilo que eacute roubado a esses adolescentes ndash a moradia a escola o alimento o
lazer a seguranccedila os amigos ndash estaacute a cultura Os livros natildeo chegam15 e sem eles as paacuteginas
que tornariam a vida menos solitaacuteria ao ver-se na narrativa do outro Afirmar a vida eacute accedilatildeo que
tambeacutem compete agrave Psicologia A dor o amor a tristeza e a sobrevivecircncia narradas por um outro
a quem se lecirc permitem que o vivido seja apreendido como experiecircncia do um e tambeacutem de
15 Rede Nossa Satildeo Paulo Mapa da desigualdade 2017 Disponiacutevel em httpsnossasaopauloorgbrportalmapa_
2017_completopdf Acesso em 27 jun 2019
94
todos se o outro sofrendo existe pode-se construir a hipoacutetese de uma dimensatildeo puacuteblica da
vida em seu sofrimento e sua persistecircncia
A leitura dos textos literaacuterios opera como instrumento de confirmaccedilatildeo de suas
biografias ao ressaltarem que satildeo ldquosoacute mais umrdquo ndash sensaccedilatildeo mencionada por vaacuterios de nossos
colaboradores ndash natildeo com pouca frequecircncia os adolescentes-parceiros mostram-se
surpreendidos com aquilo que leem ao descobrirem na dor e na beleza narrada por um outro o
valor da proacutepria existecircncia conferindo sentido agrave persistecircncia dos dias
Alagar a vida ajudar a tornar mais real uma existecircncia e dar a ela destaque particular
que legitima sua forma de ser comprova sua autenticidade e o direito de existir A existecircncia eacute
sempre efeito de gestos de movimentos contiacutenuos e nunca finitos ndash ldquonatildeo haacute mais seres soacute haacute
processos ou melhor as uacutenicas entidades a partir de agora satildeo atos mudanccedilas transformaccedilotildees
metamorfoses que afetam esses seres e os fazem existir de outra maneirardquo (Lapoujade 2017 p
61 destaque do original) Instaurar atraveacutes do gesto eacute fazer valer o direito de ser e de nos
tornarmos reais
3 O percurso dos encontros
O lugar de iniacutecio da pesquisa aqui compartilhada eacute um Serviccedilo de Medidas
Socioeducativas de Meio Aberto (SMSE-MA) da cidade de Satildeo Paulo responsaacutevel por
acompanhar adolescentes que em sua comunidade semanalmente se encontram com a equipe
teacutecnica que os acompanha no caminho ateacute a extinccedilatildeo da sanccedilatildeo
As relaccedilotildees em que as primeiras conversas foram provocadas foram possibilitadas por
experiecircncias de uma das autoras desse trabalho realizadas nos uacuteltimos anos junto agrave juventude
atendida pelas medidas socioeducativas e a profissionais que atuam com este puacuteblico O SMSE-
MA em questatildeo eacute antigo parceiro de trabalho profissional que aceitou facilitar o acesso a
adolescentes que pudessem ser convidados a compor com esse trabalho As narrativas satildeo
constituiacutedas em encontros atravessados em muitos momentos pelas experiecircncias na infacircncia
na famiacutelia na medida socioeducativa e na rua
A construccedilatildeo do espaccedilo narrativo eacute apoiada na histoacuteria oral que tem sido o meio para
conhecer as vivecircncias singulares tomadas em um campo plural que carrega consigo Histoacuteria e
Sociedade (Portelli 2016) Na metodologia alguns elementos pedem atenccedilatildeo accedilatildeo entre
aquele que escuta e quem fala tempo em que a fala eacute realizada e tempo que criou a memoacuteria
o fato de que a histoacuteria ocorre em meio agrave Histoacuteria aleacutem da oralidade e da escrita produzidas
95
As narrativas com os adolescentes satildeo construiacutedas em pelo menos trecircs tempos (1)
constituiccedilatildeo do relato (2) escrita posterior pela pesquisadora e (3) encontros para releitura com
os colaboradores sempre com a abertura para correccedilotildees e mudanccedilas de rotas Esses tempos satildeo
constituiacutedos em muitos encontros quantos forem necessaacuterios para o estabelecimento de
confianccedila que torne possiacutevel o relato das cenas vividas O tempo eacute distinto em cada relaccedilatildeo e
precisa ser considerado para que evitemos atravessamentos que por vontade nossa
desrespeitassem a vida vivida pelo jovem Nesse sentido o tempo da pesquisa motiva mas natildeo
determina o trabalho
O primeiro encontro com a maioria dos adolescentes ocorreu no SMSE-MA com a
intermediaccedilatildeo da equipe teacutecnica Aproveitamos eventos festivos e reuniotildees buscando
momentos em que os adolescentes estando em coletivo talvez ficassem mais agrave vontade para
iniciar uma conversa para a qual seriam convidados a continuar em outro momento Alguns
encontros passaram a ocorrer inesperadamente quando em serviccedilo da rede socioassistencial a
partir do cuidado atento da pesquisadora provocamos conversas com jovens que natildeo
frequentavam mais o SMSE-MA mas que ao estarem naquele territoacuterio e terem passado por
medida socioeducativa puderam ser convidados para compor com a pesquisa Entre os seis
adolescentes entrevistados ateacute o momento uma era menina que aceitou uma conversa breve
nos avisando que naquele momento natildeo havia espaccedilo para continuar os encontros
Haacute sempre um primeiro pedido de licenccedila da pesquisadora seguido da apresentaccedilatildeo do
que a motiva a iniciar a conversa a hipoacutetese formada por meio de vivecircncias em outros trabalhos
que fazem pensar que os adolescentes satildeo os menos escutados no processo socioeducativo Os
tempos de cada adolescente satildeo tatildeo distintos quanto eles o satildeo mais ou menos tiacutemidos falantes
curiosos ou desconfiados
Construir narrativas sobre histoacuterias de vida-adolescente-sancionada carrega o desejo de
que sobrevivam e possam viver outras variaccedilotildees de suas trajetoacuterias Para alguns adolescentes
narrar as proacuteprias memoacuterias eacute aposta de proteccedilatildeo em relaccedilatildeo a outros que como eles poderiam
vir a ser apreendidos e encaminhados agraves unidades de privaccedilatildeo da liberdade disse um de nossos
parceiros ldquoquero falar natildeo por mim que jaacute lsquotocircrsquo velho mas pelos outros menores Eu jaacute tenho
dezessete anos e natildeo vou mais ser preso [em unidade de internaccedilatildeo para adolescentes] mas tem
os outros que eu natildeo quero que passem pelo o que eu passeirdquo Compartilhar experiecircncias e
estrateacutegias de cuidado com o proacuteprio corpo eacute uma maneira de cuidar inclusive de algueacutem que
natildeo conhecem Para outros ainda contar as proacuteprias experiecircncias eacute dar a elas visibilidade
dando importacircncia agrave vida aprendemos com um dos jovens que uma cena vivida por uma pessoa
96
pode retratar um campo muito vasto ldquoeacute como beber aacutegua ou comer ou escrever A gente pode
falar do mundo pelas coisas que uma pessoa fazrdquo Mora aiacute a vontade de que saibamos de um
algueacutem que existe
Os encontros com cada adolescente pedem uma primeira organizaccedilatildeo de horaacuterio data e
local que melhor contemplem cada entrevistado de forma que as conversas satildeo realizadas em
serviccedilos da rede socioassistencial praccedilas em seu local de trabalho ou em equipamentos de
cultura nos quais trabalham ou cumprem medida socioeducativa Nos primeiros encontros satildeo
retomadas as ideias que alimentam a vontade de escuta e escrita das experiecircncias que contam
testemunhar suas existecircncias (Lapoujade 2017) e contribuir para o debate sobre o que vem
concorrendo com suas vidas
Palavras como oacutedio relatos sobre violecircncia fiacutesica sofridas pelas matildeos das instituiccedilotildees
estatais e da famiacutelia e um mundo vivido como inflexiacutevel satildeo tomados como produccedilotildees que a
pesquisa opera Os relatos trazem o ato infracional praticado e as violecircncias vividas ainda na
infacircncia Haacute uma convocaccedilatildeo da pesquisadora agrave posiccedilatildeo de testemunha do corpo que sofre e
duvida solicitando a criaccedilatildeo de estrateacutegias para que o silenciamento natildeo domine A literatura
e a palavra escrita (como letras de muacutesica) criam um comum nesse encontro em que a posiccedilatildeo
social da pesquisadora implica um natildeo compartilhamento de muitas das experiecircncias que
marcam a juventude dos entrevistados os textos e os autores emprestam vivecircncias que agem
no isolamento da dor apostando no fortalecimento do adolescente para a criaccedilatildeo de estrateacutegias
de vida
Nesse momento satildeo contadas histoacuterias de diferentes fontes literaacuterias16 e lidos poemas
inspirados nas palavras dos entrevistados Com as biografias que permitem a variaccedilatildeo do olhar
sobre o vivido o mundo vai ficando maior permitindo uma elaboraccedilatildeo mais autoral dos
discursos sobre si Juntos lemos textos e entrelaccedilamos palavras agravequelas que haviam sido antes
pronunciadas pelos entrevistados Um dos apoios convocados tem sido o poeta Manuel de
Barros (2015)
Eu queria fazer parte das aacutervores como os paacutessaros fazem Eu queria fazer parte do orvalho
como as pedras fazem Eu soacute natildeo queria significar Porque significar limita a imaginaccedilatildeo E com
pouca imaginaccedilatildeo eu natildeo poderia fazer parte de uma aacutervore Como os paacutessaros fazem Entatildeo a
razatildeo me falou o homem natildeo pode fazer parte do orvalho como as pedras fazem Porque o
homem natildeo se transfigura senatildeo pelas palavras E era isso mesmo (Barros 2015 p 97)
16 Lemos juntos aleacutem de poemas de Manuel de Barros tambeacutem os de Eduardo Galeano (O livro dos abraccedilos)
comentamos sobre as histoacuterias narradas na obra A guerra natildeo tem rosto de mulher falamos sobre a ativista
americana Acircngela Davis discutimos letras de muacutesica do cantor Tim Maia indicamos uns aos outros filmes como
Cortina de fumaccedila e 400 contra 1
97
Com alguns adolescentes satildeo realizados muitos encontros com outros apenas dois
seratildeo possiacuteveis tornando-os ainda mais preciosos Aceitamos seu tempo As entrevistas tecircm
priorizado o relato oral sem o uso de gravador buscando menos o caraacuteter de entrevista e mais
a conversa fluida um encontro-entrevista Sabe-se de partida que os registros seratildeo revisitados
e poderatildeo ser recompostos a construccedilatildeo de sentido eacute incessante A cada novo encontro vamos
repensando os termos escolhendo palavras ndash quais satildeo eleitas e por quecirc Tomadas como
substacircncia que constituem a existecircncia interessa o processo de construccedilatildeo das linhas escritas
que disputa com a ilusoacuteria suposiccedilatildeo de existir uma verdade fundamental
E isto a partir da convicccedilatildeo de que as palavras produzem sentido criam realidades e agraves vezes
funcionam como potentes mecanismos de subjetivaccedilatildeo Eu creio no poder das palavras na forccedila
das palavras creio que fazemos coisas com as palavras e tambeacutem que as palavras fazem coisas
conosco As palavras determinam nosso pensamento porque natildeo pensamos com pensamentos
mas com palavras natildeo pensamos a partir de uma suposta genialidade ou inteligecircncia mas a
partir de nossas palavras E pensar natildeo eacute somente ldquoraciocinarrdquo ou ldquocalcularrdquo ou ldquoargumentarrdquo
como nos tem sido ensinado algumas vezes mas eacute sobretudo dar sentido ao que somos e ao que
nos acontece (Larrosa 2002 p 21)
Tendo em matildeos uma escrita construiacuteda com a direccedilatildeo eacutetica de potencializar a existecircncia
convidamos o jovem a um novo encontro em que lhe eacute apresentada a narrativa escrita a partir
da conversa inicial Juntos pesquisadora e adolescente leem as narrativas que se tornam nova
palavra a ser escutada uma espeacutecie de outra voz em que se compotildee um corpo formado em
coautoria Revisam frase por frase questionam-se quanto agrave escolha das palavras repensam
aquelas que parecem deslocadas enfatizam as que satildeo importantes reconstroem outras a
produccedilatildeo de sentidos eacute alimentada pela escolha das palavras e pelo trabalho da memoacuteria As
frases satildeo construiacutedas como uma associaccedilatildeo entre a memoacuteria do narrador e a escuta da
pesquisadora satildeo elaboradas em terceira pessoa buscando alcanccedilar as lembranccedilas em uma
posiccedilatildeo afirmativa quanto agraves vidas sobre as quais falam Nesse momento as reaccedilotildees variam
adolescentes veem-se no relato e lendo a proacutepria vida muitos se espantam com a largueza
percebida Surpreendem-se alguns como se suas vidas se tornassem elas mesmas poesia Em
uma seacuterie de encontros em que dois adolescentes eram entrevistados juntos chegamos agrave
seguinte construccedilatildeo
O menino que fala raacutepido e bastante gruda uma histoacuteria atraacutes da outra Quer compartilhar
vivecircncias de seu dia a dia e contar sobre como elas entram em seu corpo o afetam e fazem
pensar Ao seu lado estaacute L que observador daacute espaccedilo agrave voz do amigo em meio agrave narrativa
corrida vai cavando momentos para falar sobre si Compotildeem uma dupla disposta a lembrar de
fatos que poderiam endurecer o coraccedilatildeo mas que neles movimenta o sangue que corre atraacutes
de novas ideias As muitas violecircncias satildeo localizadas em cenas que exemplificam dilemas de
todos os dias
98
O material colhido pela oralidade implica performance e processo natildeo estanque Haacute uma
certa presenccedila de quem narra sua histoacuteria e do modo como o faz que se mostra por meio da
construccedilatildeo das frases A passagem do narrado para a escrita elaborada pela pesquisadora precisa
respeitar que aquilo que eacute falado pelos adolescentes seraacute efeito de uma multiplicidade de
elementos entre eles as formas de compreender que a pesquisadora tem da vida e das situaccedilotildees
Respeitar nesse sentido implica (i) criar narrativas que permitam abertura de questotildees e natildeo
adjetivaccedilotildees e julgamentos (ii) desenvolver um procedimento de trabalho em que os jovens
possam avaliar e se posicionar em relaccedilatildeo aos efeitos que a leitura da narrativa escrita lhes
produz (iii) considerar que haacute elementos da singularidade do narrador natildeo captaacuteveis pela
pesquisadora ndash talvez nem mesmo pelo contador ndash e isso eacute condiccedilatildeo da pesquisa ldquoa tonalidade
e as ecircnfases do discurso oral carregam a histoacuteria e a identidade dos falantes e transmitem
significados que vatildeo bem aleacutem da intenccedilatildeo consciente destesrdquo (Portelli 2016 p 21)
Na pesquisa a escrita age pelo estabelecimento de alianccedilas com o pensamento por meio
do fazer a quatro matildeos Convidamos os adolescentes agrave posiccedilatildeo de coautores a partir da reflexatildeo
de suas memoacuterias Essa metodologia vai operando como
um espaccedilo onde encontrar um lugar viver tempos que sejam um pouco tranquilos poeacuteticos
criativos e natildeo apenas ser o objeto de avaliaccedilotildees em um universo produtivista Conjugar os
diferentes universos culturais de que cada um participa Tomar o seu lugar no devir
compartilhado e entrar em relaccedilatildeo com outros de modo menos violento menos desencontrado
paciacutefico (Petit 2010 p 289)
Apanhar ser humilhado e silenciado satildeo experiecircncias que produzem oacutedio Ao sofrer e vendo-
se tatildeo sozinho com esse sentimento a vida lhes eacute de certo modo furtada Muitos jaacute foram
tombados como Gomes (2017) afirma ao narrar os enfrentamentos de Dom Quixote Pixaim
Eu natildeo queria mais cultivar o oacutedio mas eles nos obrigam a vencer desde que o inventaram o
poacutedio Uhuru a liberdade ainda eacute sonho Um triste soneto o medo de cair destroccedilos Nessa
terra em que jaacute tombaram tantos dos nossos Mas enquanto constroem pelourinhos eu sigo
erguendo mocambos enfrentando moinhos e todos os traumas de ser assim Dom Quixote
Pixaim (Gomes 2017 p 45)
Amor oacutedio duacutevida e violecircncia existem singularmente no corpo de um e coletivamente
no corpo social Na histoacuteria narrada oralmente o vivido eacute percebido como algo do particular e
do plural que diz de cada adolescente e de muitos outros Os adolescentes apresentam suas
referecircncias no compartilhamento dos textos em geral de filmes e muacutesica e nas conversas
sugerem palavras que permitam o exerciacutecio de compreender o que se passou com eles A
pesquisa toma o alargamento do imaginaacutevel como ensaio de um lugar natildeo-determinado e aposta
que a discussatildeo a partir das relaccedilotildees construiacutedas das narrativas escritas e do material literaacuterio
partilhado contribui para um trabalho que vise agrave garantia de direitos desses adolescentes
99
4 Fazer advir aquilo que natildeo deve existir
Animada pela vontade de conhecer e registrar percursos de experiecircncias de adolescentes
que em um terreno no qual pressupor o outro tantas vezes o adianta em relaccedilatildeo a quem eacute ou
agravequilo que poderia realizar de sua existecircncia a pesquisa faz alianccedila com o campo
socioeducativo Contar sobre a constituiccedilatildeo de uma metodologia de acesso aos nossos
interlocutores e de construccedilatildeo de narrativas com eles a partir de suas vivecircncias tem como
desafio acessar as infacircncias as abordagens policiais os entraves que percebem no percurso e
as vinculaccedilotildees com os profissionais que os atendem na execuccedilatildeo da medida socioeducativa A
preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave sua sobrevivecircncia eacute dimensatildeo que para muitos adolescentes
fortalece a presenccedila nos atendimentos realizados pelas equipes socioeducativas e a vontade de
conversar A conversa com um dos jovens constroacutei a seguinte narrativa
faz diferenccedila o teacutecnico que mostra o relatoacuterio antes que siga ao juiz e pergunta a opiniatildeo do
adolescente Com eles [a equipe que o atendia no SMSE-MA] nunca foi preciso pedir mudanccedila
na escrita sempre fiel agravequilo que ocorria naquela eacutepoca da vida Eacute bom quando o teacutecnico daacute
conselhos e natildeo julga deixando a L o direito de decidir As boas conversas fazem quando de
volta agrave comunidade pensar e fortalecer a vontade de mudar de vida era verdade que com o
dinheiro do traacutefico fica difiacutecil ter uma reserva Vem faacutecil vai faacutecil e aleacutem disso a famiacutelia natildeo
aceita o dinheiro sujo em casa
Suas histoacuterias variam e inspiram modos de fazer alianccedilas Essa eacute uma dimensatildeo que
desafia conquistar uma qualidade de relaccedilatildeo a partir da qual a palavra e o pensamento
produzam possiacuteveis Aacuterdua tarefa pois satildeo muitos os atravessamentos que concorrem com
essas interaccedilotildees necessidade de tempo grandes distacircncias fiacutesicas falta de dinheiro precaacuterias
condiccedilotildees de trabalho violecircncia territorial e descontinuidade das poliacuteticas puacuteblicas
O convite aos adolescentes para narrarem suas trajetoacuterias foi possibilitado pelas relaccedilotildees
estabelecidas a partir da atuaccedilatildeo profissional no campo da psicologia junto a um SMSE-MA de
determinado territoacuterio da cidade de Satildeo Paulo No processo uma das condiccedilotildees reconhecidas
como necessaacuterias para esses encontros tem sido o tempo tempo para as distacircncias em que os
encontros se datildeo tempo para a espera tempo para sustentar um intervalo entre os encontros
sem se saber direito por que o adolescente desmarca o agendado outros compromissos surgem
e a disponibilidade muda
A persistecircncia em promover a continuidade dos encontros tem permitido a construccedilatildeo
de alianccedilas e a possibilidade de o jovem interlocutor ver-se coautor das linhas que registram
suas experiecircncias As condiccedilotildees que nossos colaboradores apresentam exigem consenso
100
Na construccedilatildeo dos registros uma questatildeo eacute colocada agrave pesquisa como responder aos
relatos de violecircncias sofridas desde a infacircncia O racismo e as situaccedilotildees violentas ao longo da
vida solicitam respostas e a afirmaccedilatildeo de que natildeo deveriam ter ocorrido Na narrativa abaixo
o jovem pede alianccedila parceria e compreensatildeo e segundo ele talvez isso fosse possiacutevel se na
cena algum policial fosse negro
Agrave noite na praccedila em que muitos traficam mas natildeo ele vem um carro de poliacutecia e de dentro
dele algueacutem manda que levante a camiseta para provar o que o menino sabe natildeo levava em seu
corpo arma alguma Na ausecircncia do objeto que mata algueacutem grita ldquosai fora natildeo vou nem descer
do carro lsquoprarsquo natildeo sujar a matildeo com vocecirc seu macaco preto Sai forardquo De fora do carro pocircde
ver que dentro dele havia apenas brancos Seus olhos buscavam algueacutem que fosse da mesma
cor de sua pele para nele encontrar a conivecircncia com a cena que o humilhava Satildeo sempre
brancos os que fazem isso fosse negro poderia ir embora sem essa
O fato de o adolescente compartilhar sobre seu corpo que sofre pede um deslocamento
em relaccedilatildeo a uma suposta neutralidade da pesquisa ou agrave ideia de que natildeo haacute nada que possa ser
feito Falar sobre a medida socioeducativa quando toda uma vida eacute invocada implica vermo-
nos testemunhas da dor alheia ndash e natildeo haacute silenciamento possiacutevel frente a tais horrores Haacute
movimentos necessaacuterios de desterritorializaccedilatildeo de todos narrador e escutador Reconhecer o
horror de uma cena de violecircncia e advogar por uma existecircncia eacute testemunhar o valor da vida e
aquilo que a impede Os efeitos da escuta de tantas violecircncias passam pelo corpo da
pesquisadora fica-se quente ao ouvir a violecircncia enquanto se pensa no que dizer em uma
situaccedilatildeo em que um direito natildeo foi garantido pois os relatos vivos exigem a emergecircncia de uma
resposta A narrativa escrita eacute uma escrita-ato que toma a funccedilatildeo de natildeo deixar calar
Fazer existir implica brigar contra o apagamento e contra a sombra Lapoujade (2017)
afirma a posiccedilatildeo de advogar em defesa das existecircncias que satildeo impedidas como uma questatildeo
poliacutetica pois jaacute natildeo se trata de (apenas) existir mas de ter o direito de natildeo existir conforme
modelos predeterminados
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103
Capiacutetulo 6
A Implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo em
SAICAs de Osasco
Andrielly Darcanchy de Toledo
Mariana Prioli Cordeiro
Introduccedilatildeo
A aprovaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 trouxe importantes transformaccedilotildees para
o campo das poliacuteticas sociais brasileiras Entre outras coisas determinou que o sistema de
seguridade social do paiacutes passasse a ser composto pelo tripeacute assistecircncia social sauacutede e
previdecircncia social (Brasil 1988) Seguindo as diretrizes propostas pela nova Constituiccedilatildeo em
1993 eacute aprovada a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) que estabelece as diretrizes da
poliacutetica de assistecircncia social ao defini-la como direito do cidadatildeo e dever do Estado (Brasil
1993) A fim de transformar em accedilotildees diretas os pressupostos da LOAS e da Constituiccedilatildeo de
1988 em 2004 eacute aprovada a Poliacutetica Nacional de Assistecircncia Social (PNAS) que prevecirc o
reordenamento da poliacutetica em dois niacuteveis de proteccedilatildeo social baacutesica e especial sendo a proteccedilatildeo
especial subdividida em dois graus de complexidade meacutedia e alta A partir da PNAS em 2005
tem iniacutecio a implementaccedilatildeo do Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS) (Alberto Freire
Leite amp Gouveia 2014)
Uma das funccedilotildees da proteccedilatildeo social especial eacute garantir a seguranccedila de acolhida de
usuaacuterios e famiacutelias em situaccedilatildeo de risco pessoal e social Tal seguranccedila eacute oferecida em casos
em que haacute situaccedilatildeo de abandono e isolamento quando haacute necessidade de separaccedilatildeo da famiacutelia
ou da parentela (motivada por situaccedilotildees de violecircncia familiar ou social drogadiccedilatildeo alcoolismo
criminalidade entre outras) ou em situaccedilotildees de acidentes e desastres naturais Seu objetivo
central consiste em restaurar a autonomia a capacidade de conviacutevio e o protagonismo das(os)
usuaacuterias(os) por meio da oferta de condiccedilotildees materiais de abrigo repouso alimentaccedilatildeo
higienizaccedilatildeo vestuaacuterio e aquisiccedilotildees pessoais (Brasil 2005)
A seguranccedila de acolhida eacute ofertada em diferentes tipos de instituiccedilatildeo (para crianccedilas
jovens adultos idosos pessoas com deficiecircncia etc) todos considerados parte da rede de
proteccedilatildeo social especial de alta complexidade Neste capiacutetulo enfocaremos o acolhimento
104
institucional de crianccedilas e adolescentes Mais especificamente apresentaremos e discutiremos
a experiecircncia de implementaccedilatildeo do Programa de Apadrinhamento Afetivo no municiacutepio de
Osasco enfocando seus resultados dificuldades e avanccedilos Com isso o presente trabalho
pretende contribuir com a circulaccedilatildeo de relatos e reflexotildees entre os municiacutepios que possuem
programa semelhante Aleacutem disso tambeacutem busca suprir uma lacuna na literatura acadecircmica
uma vez que em pesquisas realizadas em maio de 2019 em trecircs bases de dados (Scientific
Electronic Library Online - SciELO Applied Social Sciences Index amp Abstracts - ASSIA e
Banco de Teses da Capes) encontramos apenas seis trabalhos que abordam diretamente o
programa de apadrinhamento afetivo no Brasil Em buscas no Google Acadecircmico foram
encontrados mais textos contudo nenhum abordava a implementaccedilatildeo da mesma maneira
proposta neste artigo a partir de um relato de experiecircncia1 Mas antes de apresentarmos ndash e
discutirmos ndash a experiecircncia propriamente dita consideramos importante apresentar ainda que
de forma breve algumas caracteriacutesticas importantes do acolhimento institucional no acircmbito do
SUAS bem como a ideia central que embasa o programa de apadrinhamento afetivo
1 Acolhimento Institucional e Apadrinhamento Afetivo
De acordo com a Tipificaccedilatildeo Nacional dos Serviccedilos Socioassistenciais (Brasil 2014)
existem duas modalidades de Serviccedilos de Acolhimento Institucional para Crianccedilas e
Adolescentes (SAICA) 1) abrigo institucional que acolhe ateacute 20 crianccedilas e adolescentes tendo
profissionais que se revezam em plantotildees e 2) casa-lar que atende ateacute 10 acolhidos com uma
pessoa ou casal como educadorcuidador residente Jaacute o apadrinhamento afetivo natildeo eacute
propriamente um serviccedilo de acolhimento nem estaacute tipificado nas normativas do SUAS Mas eacute
uma iniciativa que vem ocorrendo em cada vez mais municiacutepios com o objetivo de lidar com
alguns dos resultados do acolhimento institucional prolongado
No entanto a despeito de natildeo ser oficialmente um serviccedilo do SUAS podemos dizer que
esse programa constitui uma poliacutetica puacuteblica uma vez que envolve escolhas essenciais feitas
pelo poder puacuteblico que produzem materialidades e socialidades (Spink 2018) Aleacutem disso
assim como toda poliacutetica puacuteblica eacute uma accedilatildeo intencional implica implementaccedilatildeo execuccedilatildeo e
avaliaccedilatildeo possui objetivos determinados e apesar de produzir impactos no curto prazo visa
resultados continuados e no longo prazo (Brigagatildeo Nascimento amp Spink 2011) Um dos
1 Vale destacar que o Instituto Fazendo Histoacuteria tem uma publicaccedilatildeo proacutepria que inspirou essa experiecircncia mas
que conteacutem muitas diferenccedilas pois eacute focada em propor etapas e atividades para possiacuteveis implementaccedilotildees mas
natildeo narra uma experiecircncia com seus diversos resultados Essa publicaccedilatildeo eacute citada mais abaixo
105
principais resultados almejados eacute a diminuiccedilatildeo das sequelas de longos periacuteodos de acolhimento
institucional
Apesar de o acolhimento institucional prolongado ser uma realidade em muitos
municiacutepios do paiacutes de acordo com as diretrizes do Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA)
(Brasil 1990) essa medida protetiva deveria ser excepcional e provisoacuteria Afinal o ECA
compreende que toda crianccedila e adolescente estaacute em uma condiccedilatildeo peculiar por encontrar-se
ainda em desenvolvimento sendo seu direito ldquoser criado e educado no seio de sua famiacutelia e
excepcionalmente em famiacutelia substituta assegurada a convivecircncia familiar e comunitaacuteria em
ambiente que garanta seu desenvolvimento integralrdquo (Art19) Seguindo essas diretrizes
recentemente o prazo maacuteximo de acolhimento institucional de crianccedilas e adolescentes foi
reduzido de dois anos (Lei 120102009) para 18 meses (Lei 135092017) Assim quando uma
crianccedila ou adolescente eacute acolhido eacute necessaacuteria uma reavaliaccedilatildeo constante de sua situaccedilatildeo a
fim de garantir que a institucionalizaccedilatildeo seja de fato excepcional e provisoacuteria
Rachel Baptista e Maria Helena Zamora (2016) afirmam que a medida protetiva de
acolhimento institucional atinge quase exclusivamente as classes pobres o que para as autoras
daria margem agrave associaccedilatildeo enganosa da pobreza com uma possiacutevel incompetecircncia em fornecer
proteccedilatildeo e cuidados adequados agraves crianccedilas Irene Rizzini Irma Rizzini Luciene Naiff e Rachel
Baptista (2007) entendem que atualmente ldquoressaltam-se as competecircncias da famiacutelia mas na
praacutetica com frequecircncia cobra-se dos pais que deem conta de criar seus filhos mesmo que
faltem poliacuteticas puacuteblicas que assegurem as condiccedilotildees miacutenimas de vida dignardquo (p 18) Na
mesma direccedilatildeo Maria Liacutevia Nascimento (2012) sustenta que haacute situaccedilotildees em que o acolhimento
realmente ocorre como medida provisoacuteria enquanto a famiacutelia se reorganiza contudo a
ldquoproblematizaccedilatildeo se faz em torno do abrigamento como salvaccedilatildeo quando se destinam
recursos apenas para o abrigamento e natildeo para outras possibilidadesrdquo (p 43)
Apoacutes o acolhimento eacute intensificado o trabalho com suas famiacutelias de origem e extensas
(tios avoacutes etc) visando o desacolhimento o mais breve possiacutevel Somente depois de encerradas
as possibilidades de retorno a essas famiacutelias eacute que se considera a destituiccedilatildeo do poder familiar
para futura colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta inscrita no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e
Acolhimento (SNA)2 (ECA Art101 sect1ordm)
Contudo devido a diversos fatores os SAICAs atendem muitas crianccedilas e adolescentes
2 O antigo e mais conhecido Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo que esteve ativo desde 2008 foi substituiacutedo pelo
Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em 2018 com o objetivo de aperfeiccediloar a busca por
pretendentes agrave adoccedilatildeo Mais informaccedilotildees disponiacuteveis em httpswwwcnjjusbrprogramas-e-acoescadastro-
nacional-de-adocao-cna
106
que legalmente poderiam ser adotados mas permanecem acolhidos ateacute a maioridade Um dos
fatores principais eacute a diferenccedila jaacute conhecida entre o perfil daqueles que podem ser adotados e o
procurado pelos adotantes3
Em pesquisa realizada no antigo Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo (CNA) em julho de
2018 no paiacutes todo havia quase 9 mil crianccedilasadolescentes aptos agrave adoccedilatildeo e mais de 44 mil
pretendentes Entretanto aproximadamente 95 deles desejava crianccedilas de ateacute sete anos e
somente 36 dos acolhidos estava nessa faixa etaacuteria A isso se somam outros fatores como o
fato de aproximadamente 60 dos acolhidos terem irmatildeos e mais de 20 apresentarem
doenccedilas eou deficiecircncias Dessa forma eacute expressivo o nuacutemero de crianccedilas e principalmente
adolescentes que estatildeo acolhidos haacute vaacuterios anos e hoje tecircm pouquiacutessimas chances de adoccedilatildeo
tendo como previsatildeo o desacolhimento por maioridade
Em nova pesquisa realizada no Sistema Nacional de Adoccedilatildeo e Acolhimento (SNA) em
julho de 2019 foi possiacutevel acessar os dados da Vara da Infacircncia e Juventude (VIJ) ndash Foro
Central Ciacutevel da capital de Satildeo Paulo Nessa VIJ constavam 193 crianccedilas e adolescentes
acolhidos sendo que naquele momento 4 estavam aptas agrave adoccedilatildeo e todas tinham entre 9 e 18
anos Na mesma VIJ ao mesmo tempo havia 203 pretendentes habilitados aguardando para
se tornarem pais haacute ateacute 36 meses contudo nenhum aceitava crianccedilas maiores de 10 anos
O acolhimento institucional prolongado gera consequecircncias bastante estudadas pela
Psicologia Aline Siqueira e Deacutebora DellAglio (2006) fizeram uma revisatildeo bibliograacutefica sobre
os impactos da institucionalizaccedilatildeo que mostrou convergecircncia de muitos estudos ao apontarem
dificuldades funcionais dos serviccedilos de acolhimento (profissionais pouco capacitados e em
nuacutemero insuficiente aleacutem de precariedades de diversas ordens) que resultavam em pouca
efetividade da atuaccedilatildeo da rede de garantia de direitos das crianccedilas e adolescentes As autoras
afirmam ainda que o tempo de permanecircncia em instituiccedilotildees pode ultrapassar dez anos o que
interfere na sociabilidade e na manutenccedilatildeo de viacutenculos na vida adulta
Como uma medida excepcional o acolhimento institucional carrega paradoxos que tecircm
chamado cada vez mais atenccedilatildeo de profissionais e pesquisadores O Plano Nacional de
Promoccedilatildeo Proteccedilatildeo e Defesa dos Direitos de Crianccedilas e Adolescentes agrave Convivecircncia Familiar
e Comunitaacuteria (PNCFC) foi criado em 2006 justamente para ressaltar a necessidade de
combater algumas das dificuldades dessa medida Maria Moreira (2014) afirma que a ldquomedida
de acolhimento institucional traz agrave tona as contradiccedilotildees entre o direito agrave convivecircncia familiar e
3 Esses nuacutemeros satildeo puacuteblicos e podem ser consultados no site do Conselho Nacional de Justiccedila
(httpwwwcnjjusbr)
107
a supressatildeo dessa convivecircncia como condiccedilatildeo para restaurar esse mesmo direito agrave
convivecircnciardquo Ou seja observa-se que o proacuteprio acolhimento promove a tatildeo nociva ruptura de
viacutenculos e limita o direito agrave convivecircncia familiar de quem eacute acolhido em uma instituiccedilatildeo
Diante dessa contradiccedilatildeo o atual modelo de apadrinhamento afetivo surgiu com o
objetivo maior de restaurar o direito agrave convivecircncia familiar e comunitaacuteria dos acolhidos em
instituiccedilotildees Isso vem ocorrendo atraveacutes da modificaccedilatildeo de antigas praacuteticas assistencialistas
criando maior comprometimento dos voluntaacuterios que desejem se aproximar dos SAICAs por
meio de relaccedilotildees individualizadas
Cada programa de apadrinhamento afetivo estabelece suas proacuteprias regras e haacute cidades
que tecircm portarias municipais com as especificaccedilotildees do apadrinhamento naquela localidade ndash
um exemplo disso eacute Satildeo CarlosSP com a Lei nordm 180322016 Mesmo com essa diversidade
pelo paiacutes tal ideia ganhou tanta notoriedade que os poderes judiciaacuterio e legislativo
concentraram esforccedilos para regulamentaacute-la e ampliar sua implementaccedilatildeo
Em 2014 a Corregedoria Geral da Justiccedila do Estado de Satildeo Paulo publicou o
Provimento nordm 362014 regulamentando o apadrinhamento afetivo no estado (Jusbrasil 2016)
O Provimento tinha o objetivo de ldquocriar e estimular a manutenccedilatildeo de viacutenculos afetivos
ampliando assim as oportunidades de convivecircncia familiar e comunitaacuteriardquo (Art 2ordm) No acircmbito
nacional em 2017 a Lei Federal no 13509 incluiu no ECA o seguinte artigo
Art 19-B A crianccedila e o adolescente em programa de acolhimento institucional ou familiar
poderatildeo participar de programa de apadrinhamento
sect 1o O apadrinhamento consiste em estabelecer e proporcionar agrave crianccedila e ao adolescente
viacutenculos externos agrave instituiccedilatildeo para fins de convivecircncia familiar e comunitaacuteria e colaboraccedilatildeo
com o seu desenvolvimento nos aspectos social moral fiacutesico cognitivo educacional e
financeiro
sect 4o O perfil da crianccedila ou do adolescente a ser apadrinhado seraacute definido no acircmbito de cada
programa de apadrinhamento com prioridade para crianccedilas ou adolescentes com remota
possibilidade de reinserccedilatildeo familiar ou colocaccedilatildeo em famiacutelia adotiva (Brasil 2017)
A partir do texto da lei (Brasil 2017) e da literatura consultada (Dantas 2011 Oliveira
2011 Leal 2015 Nascimento amp Malveira 2017 Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) eacute possiacutevel
observar que existem ao menos dois tipos de apadrinhamento o afetivo focado em estabelecer
relaccedilotildees de convivecircncia e o financeiro em que pessoas fiacutesicas ou juriacutedicas suprem diferentes
necessidades materiais dos acolhidos
Percebe-se que a lei natildeo define a maneira exata como deve ser executado cada programa
de apadrinhamento nem quais criteacuterios devem ser levados em conta para avaliar a qualidade
da relaccedilatildeo estabelecida ela apenas determina que os acolhidos poderatildeo participar de tais
programas Sendo assim na maior parte das vezes esse trabalho (de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e
108
acompanhamento das relaccedilotildees) eacute realizado pelas proacuteprias equipes teacutecnicas dos serviccedilos de
acolhimento ndash as quais satildeo compostas necessariamente por uma(um) assistente social e
uma(um) psicoacuteloga(o) (Brasil 2006)
Recentemente foram publicados os resultados de pesquisas que investigaram alguns
programas de apadrinhamento com diferentes enfoques meacutetodos referenciais teoacutericos e
conclusotildees Deacutebora Nascimento e Jamille Malveira (2017) por exemplo realizaram entrevistas
com atores do judiciaacuterio e concluiacuteram que um dos efeitos duradouros do programa seria ldquoa
inserccedilatildeo das crianccedilas na sociedaderdquo (Nascimento amp Malveira 2017 p 50) Juliana Goulart e
Simone Paludo (2014) analisaram a evoluccedilatildeo de cinco ediccedilotildees de um programa de
apadrinhamento Para isso entrevistam 25 afilhados e aplicaram questionaacuterios em seus
respectivos padrinhos com o intuito de identificar o significado da relaccedilatildeo para os envolvidos
As pesquisadoras observaram que os afilhados relataram o apadrinhamento como possibilidade
de afeto e cuidado fora do espaccedilo institucional enquanto que os padrinhos o enxergavam de
maneira assistencialista como forma de ajudar outras pessoas
Jaacute Livia Leal (2015) afirma a importacircncia de tais programas no sentido de proporcionar
visibilidade social para essas crianccedilas e adolescentes o que estimularia o pleno exerciacutecio da
solidariedade e da cidadania Ela sugere que o apadrinhamento pode ter um resultado ainda
mais extremo na garantia da convivecircncia familiar ao defender a utilizaccedilatildeo do mesmo como
instrumento facilitador da adoccedilatildeo homoafetiva Segundo a autora ainda haacute resistecircncia de alguns
magistrados em reconhecer a adoccedilatildeo por casais do mesmo sexo assim a existecircncia de uma
relaccedilatildeo afetiva preacutevia atraveacutes do apadrinhamento poderia ser usada como argumento para
justificar a adoccedilatildeo por esses casais como maior interesse da crianccedilaadolescente
Aline Zerbinatti e Verocircnica Kemmelmeier (2014) por sua vez argumentam que o
apadrinhamento afetivo eacute permeado por ambiguidades e contradiccedilotildees As autoras entrevistaram
padrinhos que demonstraram entendimento sobre as possibilidades e limites de seus viacutenculos
quando perguntados sobre seus desejos de adotar os afilhados todos disseram natildeo ter essa
intenccedilatildeo por diversos fatores circunscrevendo sua motivaccedilatildeo em apadrinhar dentro das
categorias assistecircncia realizaccedilatildeo e condiccedilatildeo No mesmo sentido Karollyne de Sousa e Joatildeo
Paravidini (2011) analisaram quatro entrevistas com madrinhas e o caso cliacutenico de uma crianccedila
apadrinhada Os autores observaram haver em relaccedilatildeo ao apadrinhamento ldquoexaltaccedilatildeo da
solidariedade correlacionada a sentimentos como a bondade e o amor ao proacuteximo narcisismo
exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos primoacuterdios da existecircncia a
seduccedilatildeo que perpassa a relaccedilatildeo padrinho-crianccedila institucionalizada a ambivalecircncia de
109
sentimentosrdquo (Sousa amp Paravidini 2011 p 537)
Neste artigo seguimos um caminho diferente As reflexotildees que aqui apresentaremos
natildeo estatildeo embasadas em questionaacuterios ou entrevistas mas na experiecircncia de uma das autoras
como membro da comissatildeo responsaacutevel pela implementaccedilatildeo do programa de apadrinhamento
em Osasco o Laccedilos Consideraremos como implementaccedilatildeo um periacuteodo que comeccedilou com a
formaccedilatildeo da Comissatildeo de Implementaccedilatildeo do Programa incluiu o lanccedilamento oficial do Laccedilos
as reuniotildees de rede a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes os encontros de capacitaccedilatildeo e
seleccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos e os primeiros seis meses de monitoramento e
acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas
2 A Primeira Ediccedilatildeo do Programa Laccedilos
Osasco tem aproximadamente 700 mil habitantes um dos maiores Produtos Internos
Brutos (PIB) do Estado de Satildeo Paulo (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica 2018) e
tem sua aacuterea urbana conurbada com a cidade de Satildeo PauloSP mantendo caracteriacutesticas de uma
cidade de grande importacircncia econocircmica e social No ano de 2017 contava com cinco abrigos
institucionais de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados agrave Prefeitura
A Secretaria de Assistecircncia Social de Osasco comeccedilou a realizar apadrinhamentos
afetivos em 2016 com algumas crianccedilas e adolescentes acolhidas em SAICAs de administraccedilatildeo
direta de maneira pontual e sempre acordada entre as teacutecnicas dos SAICAs e da VIJ Entatildeo a
partir dos resultados dessas primeiras experiecircncias em 2017 o municiacutepio decidiu implementar
o referido programa de apadrinhamento afetivo A implementaccedilatildeo de um programa municipal
tinha o objetivo de garantir um processo de seleccedilatildeo capacitaccedilatildeo e acompanhamento de maior
qualidade e padronizaccedilatildeo entre os padrinhos de todos os SAICAs
21 A Comissatildeo de Implementaccedilatildeo
Por ser a primeira ediccedilatildeo do Programa houve um processo licitatoacuterio que resultou na
contrataccedilatildeo de uma consultoria Aleacutem das consultoras a comissatildeo responsaacutevel pela
implementaccedilatildeo do programa contou tambeacutem com uma equipe de profissionais do municiacutepio4
A Comissatildeo batizou o projeto como Programa Laccedilos ndash Apadrinhamento Afetivo e estabeleceu
4 Danielle Silva Bueno Diretora do Departamento de Proteccedilatildeo Social Especial da Secretaria de Assistecircncia Social
da Prefeitura Municipal de Osasco (DPSE-SAS-PMO) Maacutercia Marciana Favorim Supervisora do DPSE-SAS-
PMO e as Teacutecnicas de SAICA Valquiacuteria De Conto (assistente social) e Andrielly Darcanchy (psicoacuteloga)
110
os criteacuterios para os candidatos a padrinhos
22 Os Criteacuterios para Apadrinhar
Apoacutes consultar algumas experiecircncias existentes (Goulart amp Paludo 2014 Souza amp
Paravidini 2011) optamos por realizar apadrinhamentos exclusivamente de pessoas fiacutesicas e
com o uacutenico intuito de formarem viacutenculos afetivos Era necessaacuterio residir em Osasco ou
comprovar faacutecil acesso agrave cidade Os candidatos natildeo poderiam estar inscritos no entatildeo ativo
CNA e obviamente era imprescindiacutevel ter disponibilidade afetiva e de tempo mantendo ao
menos encontros quinzenais com os afilhados5
23 Lanccedilamento do Programa
Em novembro de 2017 houve a apresentaccedilatildeo oficial do Programa contando com o
prefeito conselheiros tutelares funcionaacuterios dos SAICAs organizaccedilotildees parceiras e
representantes do poder legislativo Do poder judiciaacuterio foi convidada a equipe da Vara de
Infacircncia e Juventude
Foram apresentados dados gerais dos acolhimentos no municiacutepio Naquele momento
havia quatro SAICAs de administraccedilatildeo direta da Prefeitura e trecircs conveniados No total havia
aproximadamente 120 acolhidos sendo a maioria adolescentes
Tambeacutem foi exibido um viacutedeo feito para a divulgaccedilatildeo do Programa com o objetivo de
ilustrar as ideias que os acolhidos tinham sobre ele O viacutedeo continha desenhos e falas das
crianccedilas e adolescentes respondendo a questotildees sobre a importacircncia da relaccedilatildeo com um adulto
e suas expectativas em relaccedilatildeo ao apadrinhamento Nesse viacutedeo os acolhidos relatavam que
precisavam de um adulto para cuidados cotidianos e lazer mas tambeacutem para trocas afetivas
para se sentirem valorizados e para ldquonatildeo ser tratado como um objeto que pode ser trocadordquo nas
palavras de um adolescente Eles relatavam ainda que considerariam os padrinhos como ldquouma
segunda famiacuteliardquo (sic) uma famiacutelia substituta com a qual poderiam contar independentemente
das dificuldades que passassem
Apoacutes a cerimocircnia de lanccedilamento do programa iniciamos as primeiras formaccedilotildees Elas
foram realizadas entre dezembro de 2017 e marccedilo de 2018 e incluiacuteram seis reuniotildees de rede
(com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ) a preparaccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes e
5 Os criteacuterios para apadrinhar e ser apadrinhado estatildeo melhor detalhados no anexo 1
111
seis encontros com os candidatos a madrinhas e padrinhos sendo um deles de caraacuteter luacutedico
Eacute importante ressaltar que todas essas atividades aconteceram simultaneamente durante
o mesmo intervalo de meses Contudo faremos uma divisatildeo didaacutetica dentro dos eixos em que
as atividades se concentraram com os profissionais da rede com os acolhidos e com os
candidatos a madrinhas e padrinhos Dessa forma algumas atividades seratildeo mencionadas mais
de uma vez enfocando o trabalho proposto dentro de cada eixo
24 Reuniotildees de Rede e Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes
Na primeira reuniatildeo com diversos atores da rede de proteccedilatildeo apresentamos os marcos
legais e os resultados esperados a criaccedilatildeo de referecircncias afetivas fora de instituiccedilotildees a melhora
na qualidade das relaccedilotildees interpessoais dos afilhados o enriquecimento dos referenciais sociais
e culturais e o suporte emocional oferecido na saiacuteda do acolhimento por maioridade (Goulart
amp Paludo 2014) Seguiram-se a essa outras cinco reuniotildees de rede nas quais decidimos
coletivamente os detalhes da implementaccedilatildeo conforme relatado a seguir (anexo 2)
Na segunda reuniatildeo acordamos os criteacuterios para as crianccedilas e adolescentes
participarem do Programa (1) ter mais de sete anos (2) o apadrinhamento afetivo ser parte do
Plano Individual de Atendimento (PIA) (3) estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo
acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento
do PIA (4) previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA (5) manter poucas referecircncias afetivas
eou todas as referecircncias serem institucionalizadas (6) estar disposto a estabelecer novas
relaccedilotildees
Como naquele momento havia um SAICA que recebia somente crianccedilas de zero a trecircs
anos sem irmatildeos ndash ou seja que natildeo atendiam aos criteacuterios que acabaacutevamos de estabelecer ndash
decidimos que esse equipamento natildeo participaria do Programa Assim foram incluiacutedos apenas
seis SAICAs sendo trecircs de administraccedilatildeo direta e trecircs conveniados
Nessa reuniatildeo tambeacutem solicitamos que as equipes teacutecnicas dos SAICAs fizessem
organogramas com as referecircncias afetivas dos acolhidos qualificando a relaccedilatildeo e a forccedila do
viacutenculo estabelecido Esses organogramas continham o acolhido no centro e todas as pessoas
eou instituiccedilotildees com as quais ele se relacionava sendo que o traccedilo indicativo da relaccedilatildeo poderia
ter caracteriacutesticas (ser uma linha reforccedilada simples ou um tracejado) e cores diferentes para
indicar a intensidade da relaccedilatildeo se ela era conflituosa entre outros adjetivos que a equipe
achasse necessaacuterio ressaltar Esse exerciacutecio foi utilizado principalmente para observar se as
112
relaccedilotildees estabelecidas por cada crianccedilaadolescente eram prioritariamente vinculadas a uma
instituiccedilatildeo principal criteacuterio utilizado para estabelecer quais crianccedilasadolescentes
participariam dessa primeira ediccedilatildeo tendo em vista natildeo haver candidatos a padrinhos para todos
os que se enquadravam aos outros criteacuterios
Na terceira reuniatildeo de rede discutimos coletivamente os casos levantados como
prioritaacuterios e assim criamos uma lista daqueles que participariam dessa e da proacutexima ediccedilatildeo
do programa de acordo com o nuacutemero de candidatos a padrinhos Pelas caracteriacutesticas dos
acolhidos naquele momento essa lista continha somente maiores de 11 anos que jaacute estavam em
acolhimento institucional havia mais de 6 anos chegando a um caso que estava acolhido havia
14 anos
Na quarta reuniatildeo de rede orientamos as equipes teacutecnicas a fazerem duas atividades
de preparaccedilatildeo de todos os acolhidos Primeiramente os teacutecnicos de cada SAICA conduziriam
no seu Serviccedilo uma roda de conversa com todos os integrantes (acolhidos e funcionaacuterios) para
explicar o Programa os criteacuterios estabelecidos quais crianccedilasadolescentes participariam
daquela ediccedilatildeo e por quecirc (anexo 3) As equipes relataram esse momento como uma
oportunidade para observarem a solidariedade entre os acolhidos pois eles foram
gradativamente entendendo os criteacuterios e passaram a compreender e concordar com nossa
escolha de quem deveria participar daquela ediccedilatildeo em detrimento de seus proacuteprios interesses
em ter padrinhos afetivos rapidamente
Em seguida as equipes teacutecnicas de cada SAICA realizaram atendimentos individuais
com os participantes daquela ediccedilatildeo para tirar duacutevidas e confirmar seu interesse ressaltando
que o apadrinhamento envolvia um compromisso com responsabilidades reciacuteprocas Nesse
momento tambeacutem foi solicitado que refletissem sobre como queriam se apresentar aos
padrinhos Essa proposta surgiu da observaccedilatildeo de que as histoacuterias dos acolhidos satildeo muitas
vezes expostas em demasia fazendo com que nunca estejam em uma relaccedilatildeo de maneira
igualitaacuteria podendo escolher o que contar e o que guardar pra si Afinal tal como afirma Maria
Moreira (2014) apesar de repetirmos que a crianccedila e o adolescente satildeo sujeitos de direitos ldquoeles
ainda satildeo pouco escutados sobre a compreensatildeo que tecircm de suas proacuteprias trajetoacuterias sobre as
suas escolhas e sobre as alternativas que propotildeem para seus problemas e dificuldadesrdquo (Moreira
2014 p 36) Thalita Poker (2017) completa ao afirmar que a ldquocrianccedila institucionalizada por
longos periacuteodos eacute um dos sintomas de uma sociedade colonizada cujas poliacuteticas de identidade
infantojuvenis pressupotildeem que as crianccedilas e os adolescentes deveratildeo ter representantes isso
significa que na maioria das situaccedilotildees elas natildeo podem se representarrdquo (Poker 2017 p 8)
113
Com esse cuidado em mente ainda nessa quarta reuniatildeo decidimos fazer um encontro
luacutedico entre todos os candidatos a padrinhos e os acolhidos que poderiam ser apadrinhados
Afinal esse momento descontraiacutedo eacute importante para facilitar a primeira experiecircncia entre os
participantes (Instituto Fazendo Histoacuteria 2017) O encontro luacutedico consistiu em uma gincana
incluindo diversos jogos e brincadeiras aleacutem de um piquenique Ele ocorreu em um parque
sem que houvesse predeterminaccedilatildeo dos apadrinhamentos pois aquele era um momento para
que todos pudessem se conhecer ndash essa informaccedilatildeo foi transmitida e reiterada aos acolhidos e
aos pretendentes por diversas vezes pois eles estavam ansiosos com a formaccedilatildeo das duplas
afilhados-padrinhos
A quinta reuniatildeo ocorreu em seguida e nela discutimos as impressotildees que as crianccedilas
e os adolescentes expressaram agraves equipes Aleacutem disso tambeacutem acordamos os detalhes dos
proacuteximos passos que incluiacuteam uma visita domiciliar aos candidatos a padrinhos para avaliar
a receptividade da famiacutelia expandida ao apadrinhamento a confirmaccedilatildeo do interesse daquela
crianccedilaadolescente em ter aquela pessoa como padrinhomadrinha um atendimento individual
aos candidatos a padrinhos apresentando de maneira breve o possiacutevel afilhado (apenas
caracteriacutesticas e preferecircncias gerais respeitando o acordo de deixar que a crianccedilaadolescente
se apresentasse e escolhesse se iria quando e como contar sua histoacuteria) e por fim os primeiros
passeios individuais dos candidatos a padrinhos com as crianccedilas e adolescentes que desejavam
apadrinhar
Na sexta e uacuteltima reuniatildeo de rede as equipes informaram como foram as visitas
domiciliares os atendimentos aos padrinhos e os primeiros passeios para os acolhidos
25 Capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos6
Do primeiro encontro participaram 12 nuacutecleos familiares com diferentes composiccedilotildees
ndash casais heterossexuais com e sem filhos casais homossexuais sem filhos famiacutelias
monoparentais e pessoas solteiras Desses nuacutecleos sete estavam dispostos a conhecer qualquer
crianccedilaadolescente Trecircs famiacutelias haviam conhecido previamente alguma crianccedilaadolescente
e participavam do encontro com o interesse de iniciar um apadrinhamento especiacutefico com essa
pessoa jaacute conhecida Outros dois nuacutecleos jaacute apadrinhavam e participaram para qualificar eou
oficializar essa relaccedilatildeo
Realizamos uma rodada de apresentaccedilatildeo em que cada um dizia resumidamente seu
6 O anexo 4 apresenta uma siacutentese das atividades de capacitaccedilatildeo dos candidatos a madrinhas e padrinhos
114
interesse em participar do Programa Apareceram motivos variados algumas famiacutelias jaacute tinham
filhos de vaacuterias idades e outras natildeo desejavam tecirc-los mas todas compartilhavam o interesse em
contribuir socialmente e estabelecer uma nova relaccedilatildeo de cuidados e proteccedilatildeo ndash cabe apontar
que tais motivos estatildeo em consonacircncia com os resultados de pesquisas anteriores sobre
programas semelhantes (Sousa amp Paravidini 2011 Goulart amp Paludo 2014 Zerbinatti amp
Kemmelmeier 2014)
No segundo encontro abordamos as principais caracteriacutesticas dos antigos orfanatos e
dos atuais serviccedilos de acolhimento promovendo a discussatildeo sobre conceitos ainda presentes
socialmente como por exemplo o questionamento sobre os acolhidos terem ou natildeo famiacutelia ou
a duacutevida sobre as crianccedilas poderem sair do serviccedilo de acolhimento pois a instituiccedilatildeo algumas
vezes eacute confundida com uma medida de restriccedilatildeo de liberdade para adolescentes em conflito
com a lei As famiacutelias expuseram muitas de suas duacutevidas e preconceitos que puderam ser
trabalhados durante a formaccedilatildeo
Por fim lemos uma paraacutebola de Walter Benjamin (1995) que conta a histoacuteria de um rei
e seu desejo por comer uma omelete de amoras exatamente igual a uma que comera na infacircncia
sendo que ao longo do texto eacute explicado se tratar na verdade do desejo de reviver uma
experiecircncia com grande valor emocional Essa paraacutebola foi usada para ilustrar como as
memoacuterias afetivas satildeo constitutivas das histoacuterias de vida e das identidades
Assim o terceiro encontro foi dedicado agraves referecircncias e memoacuterias afetivas de cada
participante Notamos que todos se referiram exclusivamente a familiares com os quais
mantinham laccedilos consanguiacuteneos por isso aprofundamos a discussatildeo sobre a possibilidade de
estabelecer viacutenculos tatildeo relevantes quanto aqueles com pessoas sem parentesco
O quarto encontro foi o luacutedico Eacute importante ressaltar que ao longo dos encontros o
nuacutemero de candidatos foi diminuindo por motivos que seratildeo explicados a seguir mas ateacute aquele
momento havia seis famiacutelias participando ativamente Todas tinham confirmado presenccedila no
encontro luacutedico por isso levamos ao parque tambeacutem as seis primeiras crianccedilasadolescentes
determinadas nas reuniotildees de rede relatadas Entretanto um dos candidatos faltou e natildeo
conseguimos mais contato com ele Portanto compareceram ao encontro cinco nuacutecleos
familiares e seis acolhidos aleacutem de uma das pessoas que jaacute apadrinhava com a respectiva
afilhada O encontro durou cerca de 4h e ao longo das atividades foi possiacutevel observar quatro
duplas (de padrinhos e afilhados) se aproximando enquanto dois adolescentes apresentaram
dificuldades para se relacionar com os candidatos
115
Apoacutes o encontro luacutedico realizamos a reuniatildeo de rede jaacute relatada na qual os teacutecnicos dos
SAICAs informaram os desejos das crianccedilas e dos adolescentes Com esses dados da reuniatildeo
de rede no quinto encontro com os candidatos a madrinhas e padrinhos ouvimos suas
impressotildees as quais no geral combinavam com as apontadas pelos acolhidos dessa forma
estabelecemos as cinco duplas possiacuteveis
Lembrando que houve uma adolescente que natildeo pocircde ser apadrinhada por causa de uma
desistecircncia repentina trecircs famiacutelias se ofereceram para realizar encontros esporaacutedicos com ela
e assim ampliar seu ciacuterculo de convivecircncia comunitaacuteria
A partir de entatildeo as equipes teacutecnicas dos SAICAs deveriam realizar as visitas
domiciliares e iniciar o apadrinhamento em si com frequecircncia quinzenal Para garantir que jaacute
tivesse ocorrido ao menos um encontro individual com os afilhados realizamos o uacuteltimo
encontro pouco mais de um mecircs depois
Nesse intervalo entre os encontros com os candidatos uma das duplas se desfez Ela era
formada por um adolescente que apresentara dificuldades em se relacionar durante o encontro
luacutedico e logo no primeiro passeio com o candidato a padrinho a comunicaccedilatildeo entre eles foi
difiacutecil O candidato tambeacutem afirmou ter percebido somente naquele momento que desejava
adotar outro perfil de crianccedilaadolescente natildeo apadrinhar por isso pediu para encerrar sua
participaccedilatildeo no Programa Conforme exposto acima jaacute haviacuteamos acordado entre todos os
participantes (candidatos a padrinhos e afilhados) que as possiacuteveis desistecircncias deveriam incluir
uma uacuteltima conversa de encerramento para poderem ser rompimentos cuidados e natildeo
repentinos Contudo naquele momento avaliamos que realizar outro encontro para despedida
seria uma situaccedilatildeo danosa para o adolescente por se tratar apenas de um primeiro passeio que
durou menos de meia hora e por especificidades daquelas pessoas ndash o candidato a padrinho
demonstrou muita dificuldade em lidar com a situaccedilatildeo parecia sentir-se amedrontado por estar
sozinho com o adolescente e o adolescente voltou do encontro dizendo que a relaccedilatildeo natildeo teria
continuidade e que preferia assim Entatildeo realizamos atendimentos individuais com os dois e
compreendemos que seria melhor encerrar o apadrinhamento somente com o adolescente
Por uacuteltimo o sexto encontro encerrou o ciclo de capacitaccedilatildeo do Programa Laccedilos
contando com quatro apadrinhamentos iniciados e dois continuados Esse momento foi
dedicado agrave discussatildeo das impressotildees dos padrinhos em relaccedilatildeo aos primeiros encontros com os
afilhados Em comum todas as famiacutelias relataram entusiasmo com o iniacutecio da relaccedilatildeo
116
26 Acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas
Conforme mencionado consideramos os primeiros seis meses de convivecircncia como
parte do processo de implementaccedilatildeo pois estaacutevamos realizando acompanhamentos constantes
a fim de verificar a efetividade das accedilotildees realizadas ateacute entatildeo Os acompanhamentos envolviam
trabalhos com os afilhados e com os padrinhos divididos entre as equipes teacutecnicas dos SAICAs
e a Comissatildeo sendo necessaacuteria comunicaccedilatildeo constante e organizada
As equipes teacutecnicas dos SAICAs realizavam atendimentos individuais com os afilhados
e em separado com os padrinhos sendo os resultados informados periodicamente agrave Comissatildeo
(anexo 5) Esses atendimentos tinham o objetivo de monitorar periodicamente como a relaccedilatildeo
estava se desenvolvendo no cotidiano
Jaacute agrave Comissatildeo cabiam encontros com periodicidade bimestral com todos os padrinhos
A proposta desses encontros era fornecer um momento para os padrinhos partilharem como
estava sendo a experiecircncia de apadrinhar uma crianccedilaadolescente que residia havia muitos anos
em um SAICA Portanto nesses encontros eles podiam compartilhar de maneira mais geral
como estavam sendo os contatos e dividir os sentimentos que esses encontros provocavam
Dentre os quatro apadrinhamentos iniciados dois resultaram em desistecircncias durante
esses primeiros seis meses de convivecircncia Uma das desistecircncias envolveu uma adolescente
proacutexima do seu desacolhimento por maioridade A relaccedilatildeo comeccedilou a apresentar dificuldades
nos primeiros meses de convivecircncia a ponto de os padrinhos solicitarem o encerramento Esse
apadrinhamento foi estabelecido com uma adolescente de 16 anos pertencente a um grande
grupo de irmatildeos com acolhimentos anteriores e uma histoacuteria transgeracional de extrema
vulnerabilidade social
Antes do encontro luacutedico a adolescente havia sido selecionada para trabalhar como
Jovem Aprendiz em um programa organizado pelo casal na empresa em que trabalhavam entatildeo
ela comeccedilou a trabalhar chefiada pela madrinha no mesmo periacuteodo em que iniciou a relaccedilatildeo
Poucas semanas apoacutes o iniacutecio do trabalho a madrinha disse que a jovem natildeo estava se
comportando adequadamente (usava vestes inadequadas e chegou a dormir em algumas
atividades no horaacuterio de trabalho) e o apadrinhamento estava afetando o programa Jovem
Aprendiz na empresa como um todo pois os outros jovens entendiam que ela estava tendo um
tratamento privilegiado O casal de padrinhos expressou ainda que o acompanhamento teacutecnico
teria sido insuficiente para lidar com essas questotildees Por isso eles decidiram encerrar a relaccedilatildeo
sozinhos recusando nossas indicaccedilotildees de realizar o encerramento na presenccedila da equipe teacutecnica
117
do SAICA ou da Comissatildeo Ademais logo apoacutes o fim do apadrinhamento eles tambeacutem
desligaram a adolescente do trabalho
A outra desistecircncia envolveu uma adolescente acolhida desde crianccedila e com um
transtorno mental em tratamento Depois de alguns encontros os padrinhos que tinham dois
filhos pequenos pediram para encerrar o apadrinhamento por falta de tempo questotildees de sauacutede
na famiacutelia e ciuacutemes por parte dos filhos Da mesma forma solicitamos que o encerramento
fosse mediado pela Comissatildeo e nos oferecemos para atendecirc-los a qualquer dia e horaacuterio
(inclusive fora dos nossos horaacuterios de trabalho agrave noite ou em algum final de semana) mas eles
afirmaram total indisponibilidade Por fim eles tiveram uma uacuteltima conversa raacutepida com a
adolescente por telefone e a psicoacuteloga que a tratava ficou responsaacutevel por retomar os
significados daquele encerramento com a adolescente
3 Discussatildeo sobre os resultados da primeira ediccedilatildeo do Programa Laccedilos
Essa primeira experiecircncia produziu natildeo somente novas relaccedilotildees novos viacutenculos novos
afetos Mas produziu tambeacutem desistecircncias e frustraccedilotildees aleacutem da percepccedilatildeo de que era possiacutevel
(e necessaacuterio) aperfeiccediloar o Programa
Conforme mencionado no toacutepico anterior no primeiro encontro havia 12 famiacutelias
(Quadro 1) sete dispostas a conhecer qualquer crianccedilaadolescente trecircs desejavam iniciar uma
relaccedilatildeo especiacutefica e duas jaacute apadrinhavam As duas famiacutelias que participaram do Programa para
qualificar e oficializar seus apadrinhamentos concluiacuteram os encontros e mantiveram as
relaccedilotildees
As trecircs famiacutelias que desejavam iniciar uma relaccedilatildeo de apadrinhamento especiacutefica natildeo
concluiacuteram o programa Uma delas relatou logo no primeiro encontro que desejava adotar as
adolescentes mencionadas e foi orientada a procurar a VIJ A segunda famiacutelia era composta
pela professora da crianccedila desejada o casal tinha dois filhos menores de quatro anos e estava
muito sensibilizado com a situaccedilatildeo da crianccedila acolhida mas ao longo das formaccedilotildees eles
perceberam que naquele momento natildeo conseguiriam assumir mais esse compromisso A
terceira famiacutelia desistiu apoacutes o encontro em que discutimos preconceitos pois percebeu que
tinha muitos receios quanto agraves dificuldades que poderia vivenciar nesse tipo de relaccedilatildeo
Das outras sete famiacutelias uma delas engravidou durante o ciclo de encontros Outra
conforme relatado desistiu no dia do encontro luacutedico sem nos informar os motivos nem
retornar nossas diversas tentativas de contato Uma terceira desistiu apoacutes o primeiro passeio
118
sozinho com o adolescente quando percebeu que queria adotar em vez de apadrinhar Por fim
quatro apadrinhamentos foram iniciados
Dentre esses quatro dois foram encerrados por solicitaccedilatildeo dos padrinhos conforme
descrito acima Entatildeo ao final do periacuteodo que denominamos implementaccedilatildeo somente duas
relaccedilotildees foram iniciadas pelo Programa e outras duas relaccedilotildees anteriores permaneceram
Quadro 1 ndash Resultados da implementaccedilatildeo do Programa Laccedilos
Famiacutelia Interesse inicial Desfecho Momento Motivo
1 Qualificar e oficializar
apadrinhamento
Relaccedilatildeo
mantida
______ ______
2 Qualificar e oficializar
apadrinhamento
Relaccedilatildeo
mantida
______ ______
3 Conhecer qualquer
crianccedila ou adolescente
Iniciaram
relaccedilatildeo
______ ______
4 Conhecer qualquer
crianccedila ou adolescente
Iniciaram
relaccedilatildeo
______ ______
5 Conhecer qualquer
crianccedila ou adolescente
Iniciaram
relaccedilatildeo e
Desistecircncia
No iniacutecio da
convivecircncia
Dificuldades na relaccedilatildeo
6 Conhecer qualquer
crianccedila ou adolescente
Iniciaram
relaccedilatildeo e
Desistecircncia
No iniacutecio da
convivecircncia
Falta de tempo questotildees de
sauacutede e ciuacutemes
7 Conhecer qualquer
crianccedila ou adolescente
Desistecircncia Durante
capacitaccedilatildeo
Dificuldades na relaccedilatildeo e
desejo por adoccedilatildeo
8 Conhecer qualquer
crianccedila ou adolescente
Desistecircncia Durante
capacitaccedilatildeo
Gravidez
9 Conhecer qualquer
crianccedila ou adolescente
Desistecircncia Durante
capacitaccedilatildeo
Natildeo justificado
10 Apadrinhamento
especiacutefico
Desistecircncia Durante
capacitaccedilatildeo
Desejava adotar
11 Apadrinhamento
especiacutefico
Desistecircncia Durante
capacitaccedilatildeo
Sem condiccedilotildees no
momento familiar
12 Apadrinhamento
especiacutefico
Desistecircncia Durante
capacitaccedilatildeo
Tinha receios
Portanto percebemos que das doze famiacutelias iniciais mais de 65 (oito) desistiu por
motivos diversos durante as formaccedilotildees ou no iniacutecio da convivecircncia O que mais chama a
atenccedilatildeo eacute o fato de 25 do grupo inicial (trecircs famiacutelias dentre as doze iniciais) ter desistido por
motivos que indicavam natildeo terem seus projetos familiares concluiacutedos - como o iniacutecio de uma
gravidez ou a decisatildeo por adotar Esse dado se destaca porque pode indicar como nossa
sociedade enxerga essas crianccedilas e adolescentes acolhidos e como se relaciona com eles como
aqueles com quem se pode assumir um compromisso e abandonaacute-lo sem grandes preocupaccedilotildees
119
O fato de algumas dessas famiacutelias desejarem adotar levanta a duacutevida sobre os motivos
que as levaram a procurar o apadrinhamento afetivo Apoiadas na dissertaccedilatildeo de mestrado de
Karollyne de Sousa (2011) que reflete sobre o processo de apadrinhamento observando que ele
envolve um ldquonarcisismo exacerbado como tentativa de recuperar a onipotecircncia perdida nos
primoacuterdios da existecircnciardquo (Sousa 2011 p 7) eacute possiacutevel questionar se esse interesse estaria
relacionado agrave intenccedilatildeo de utilizar o apadrinhamento como um teste drive uma experiecircncia de
convivecircncia com uma crianccedila ou adolescente acolhido sem o compromisso de filiaccedilatildeo sabendo
que assim que quisessem adotar teriam plenas condiccedilotildees legais para isso Se fosse esse o caso
seraacute que soacute desistiram do apadrinhamento pela nossa insistecircncia em explicitar o
comprometimento necessaacuterio para iniciar aquela relaccedilatildeo
Provavelmente nem os candidatos saberiam responder essas questotildees pois eacute comum a
situaccedilatildeo do acolhimento levantar sentimentos ambiacuteguos nos primeiros contatos Sendo assim
eacute importante que a capacitaccedilatildeo mobilize repetidas reflexotildees sobre as dimensotildees afetivas
envolvidas no apadrinhamento a fim de que os candidatos estejam seguros quanto ao desejo de
iniciar a relaccedilatildeo Portanto eacute fundamental contribuir na elucidaccedilatildeo do interesse dessas famiacutelias
em participar do Programa e eacute esperado que haja um nuacutemero de desistecircncias
Quanto agraves desistecircncias que chegaram a envolver alguns contatos com os adolescentes
(seja na aproximaccedilatildeo ou no iniacutecio da convivecircncia) eacute importante refletir sobre alguns pontos
Nina Costa e Maria Rossetti-Ferreira (2009) afirmam que ldquoa ameaccedila ou existecircncia de rupturas
afetivas anteriores parece criar enredamentos ou tramas que as pessoas em interaccedilatildeo reeditam
nas suas praacuteticas dialoacutegicas e discursivas coconstruindo no momento atual os problemas ou
uma visatildeo de desenvolvimento inadequado para essas crianccedilasrdquo (Costa amp Rossetti-Ferreira
2009 p 116) Na mesma direccedilatildeo Bruna Wendt Luana Dullius e Deacutebora DellAglio (2017)
realizaram uma pesquisa quantitativa sobre as imagens sociais atribuiacutedas aos jovens em
acolhimento institucional Atraveacutes da aplicaccedilatildeo de questionaacuterio fechado em 224 pessoas de 18
a 71 anos que tinham ou natildeo contato com acolhidos as autoras observaram que as
caracteriacutesticas negativas foram mais associadas aos jovens em acolhimento institucional
(Wendt Dellius amp DellrsquoAglio 2017 p 529) em comparaccedilatildeo com os jovens cuidados por suas
famiacutelias Essas informaccedilotildees demonstram obstaacuteculos que permeiam o processo de
apadrinhamento afetivo de adolescentes com perspectiva de longa permanecircncia na instituiccedilatildeo
como era o caso dos que participaram dessa ediccedilatildeo do Programa
Outro fator que pode ter contribuiacutedo para o alto nuacutemero de desistecircncias eacute o fato de haver
ldquosemelhanccedilas do processo de apadrinhamento com o processo de adoccedilatildeo no que diz respeito agrave
120
busca do filho ideal que se estende agrave procura do padrinho ideal e do afilhado idealrdquo (Sousa amp
Paravidini 2011 p537) Ou seja haacute afilhados que apresentam comportamentos que aos olhos
dos padrinhos satildeo vistos como inadequados (comportamentos agressivos ou desafiadores)
mas tambeacutem eacute possiacutevel observar idealizaccedilotildees e baixa toleracircncia por parte de alguns padrinhos
A partir dessa primeira experiecircncia uma liccedilatildeo importante que levamos para a segunda
ediccedilatildeo do Programa foi a realizaccedilatildeo de encontros luacutedicos com menos acolhidos que candidatos
a padrinhos preferindo formar uma lista de espera dos adultos e natildeo das crianccedilas e adolescentes
Outra modificaccedilatildeo baseada nessa experiecircncia relatada foi a realizaccedilatildeo de dois encontros
luacutedicos na segunda ediccedilatildeo que foi iniciada em 2018 Na segunda ediccedilatildeo fizemos o primeiro
encontro luacutedico totalmente livre como em 2017 mas entatildeo a partir das afinidades nele
observadas aliadas aos perfis dos acolhidos e dos candidatos realizamos um segundo encontro
luacutedico em que indicamos aos adultos que se aproximassem mais de duas crianccedilasadolescentes
que avaliaacutevamos como combinaccedilotildees possiacuteveis Eacute importante indicar que essa segunda ediccedilatildeo
contou com a consultoria do Instituto Fazendo Histoacuteria sendo que muitas das alteraccedilotildees foram
resultantes da nossa experiecircncia combinada com as propostas daquela equipe
Tambeacutem ampliamos o acompanhamento das relaccedilotildees iniciadas nessa e na segunda
ediccedilatildeo Incluiacutemos encontros coletivos entre os afilhados aleacutem de manter os atendimentos
individuais e os encontros dos padrinhos com a Comissatildeo passaram a ter frequecircncia mensal
Como resultados imediatos observamos uma diminuiccedilatildeo do percentual de desistecircncias de
candidatos durante a capacitaccedilatildeo e eles relataram seguranccedila e satisfaccedilatildeo com o processo de
formaccedilatildeo das duplas de padrinhos-afilhados por terem tido dois encontros luacutedicos As
mudanccedilas no acompanhamento apoacutes iniacutecio da convivecircncia ainda estatildeo sendo avaliadas mas a
maior parte dos padrinhos tem frequentado os encontros e aproveitado esse espaccedilo de trocas de
experiecircncias Por fim planejamos continuar realizando ediccedilotildees anuais do Programa no
municiacutepio com o intuito de ter padrinhos para todos os acolhidos que possam se beneficiar
dessa relaccedilatildeo
Consideraccedilotildees finais
Notamos que apesar de haver alguns estudos relativos agraves motivaccedilotildees que levam pessoas
a apadrinhar e reflexotildees quanto aos sentimentos envolvidos nesse ato os estudos sobre efeitos
do apadrinhamento afetivo ainda estatildeo em passo inicial principalmente quanto agrave contribuiccedilatildeo
especiacutefica da Psicologia nesses processos Da mesma forma a efetividade dessa iniciativa na
121
garantia de convivecircncia familiar e na diminuiccedilatildeo dos impactos da institucionalizaccedilatildeo estaacute em
construccedilatildeo necessitando de mais estudos sobre seus resultados
Contudo se faltam estudos que discutam as contribuiccedilotildees da Psicologia para esse
programa especiacutefico haacute uma ampla literatura que discorre sobre suas contribuiccedilotildees para as
poliacuteticas puacuteblicas em geral ou mais especificamente para a poliacutetica de Assistecircncia Social Para
isso partem de diferentes abordagens e posicionamentos poliacuteticos bem como apresentam
argumentos distintos Apesar dessas diferenccedilas muitas(os) autoras(es) parecem concordar com
a afirmaccedilatildeo de que a entrada maciccedila da Psicologia no campo das poliacuteticas puacuteblicas trouxe agrave
tona a necessidade de repensar suas praacuteticas hegemocircnicas (Brigagatildeo Nascimento amp Spink
2011 Cordeiro 2018 Yamamoto 2007) Afinal nesse campo natildeo haacute a presenccedila do setting
tradicional as demandas satildeo outras as possibilidades de intervenccedilatildeo satildeo distintas No caso
especiacutefico da Assistecircncia Social a cliacutenica tradicional tatildeo enfatizada pelos cursos de graduaccedilatildeo
eacute inclusive proibida - documentos normativos do SUAS e referecircncias teacutecnicas do conselho de
classe afirmam claramente que usuaacuterias(os) que necessitam de atendimento cliacutenico devem ser
encaminhadas(os) para serviccedilos de sauacutede (Conselho Federal de Psicologia 2012 2013) Mas o
que fazem entatildeo as psicoacutelogas e psicoacutelogos que atuam nessa poliacutetica puacuteblica Ou melhor
como a Psicologia pode contribuir para sua implementaccedilatildeo e execuccedilatildeo
Diversas(os) autoras(es) sustentam que nossa contribuiccedilatildeo reside sobretudo na nossa
capacidade de intervir em questotildees subjetivas eou intersubjetivas (Cordeiro 2019) Aleacutem
disso ressaltam a importacircncia da interface entre os fatores psicoloacutegicos e sociais nas situaccedilotildees
de risco e vulnerabilidade e destacam a necessidade de pensar a subjetividade sempre de forma
contextualizada (Cordeiro 2019 pp 170-171) Maria Luacutecia Afonso e colaboradoras(es)
(2012) chamam a nossa atenccedilatildeo para o fato de que fazer isso implica
criar condiccedilotildees sociais para o exerciacutecio da cidadania (promoccedilatildeo dos direitos socioassistenciais)
bem como favorecer as condiccedilotildees subjetivas para o seu exerciacutecio (circular informaccedilatildeo
fortalecer participaccedilatildeo desenvolver potencialidades facilitar processos decisoacuterios dentre
outros) Transformaccedilotildees sociais tecircm impacto sobre identidades sociais relaccedilotildees e valores
(Afonso et al 2012 p 197)
Nesse sentido garantir o exerciacutecio da cidadania de crianccedilas e adolescentes acolhidos
natildeo significa simplesmente oferecer um teto embaixo do qual eles podem dormir Mas criar
condiccedilotildees para que possam se desenvolver aprender ressignificar suas histoacuterias construir
novos viacutenculos afetar e ser afetado E eacute justamente nesse ponto que os programas de
apadrinhamento afetivo buscam intervir
No entanto cabe ressaltar que tal intervenccedilatildeo natildeo acontece sem contradiccedilotildees
122
Conforme exposto o apadrinhamento visa garantir o direito agrave convivecircncia familiar e
comunitaacuteria modificando o formato de relaccedilotildees que jaacute se formavam entre acolhidos e adultos
que natildeo trabalham na instituiccedilatildeo Entatildeo notamos que apesar de ser um direito e como tal deve
ser garantido pelo Estado o apadrinhamento afetivo depende da disponibilidade de voluntaacuterios
os quais geralmente satildeo motivados primeiramente por uma ideia de caridade
Eacute importante salientar que esse tipo de viacutenculo soacute pode se formar com pessoas que natildeo
tecircm sua relaccedilatildeo mediada por uma questatildeo trabalhista O padrinho natildeo poderia ser um
profissional contratado para estabelecer uma relaccedilatildeo diferenciada com o acolhido pois o
viacutenculo mais importante de um funcionaacuterio eacute com o trabalho natildeo com a crianccedilaadolescente
(Mariotto 2009) Assim vale lembrar que nossa Constituiccedilatildeo Federal se destaca por propor a
participaccedilatildeo social e convocar a populaccedilatildeo a tambeacutem se comprometer com a garantia de seus
direitos contribuindo ativamente para as poliacuteticas puacuteblicas Sendo assim o apadrinhamento
efetiva a participaccedilatildeo da sociedade na garantia de seus direitos de maneira solidaacuteria
Referecircncias
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Anexos
Anexo 1 Caracteriacutesticas gerais do Programa Laccedilos
Tipo de Apadrinhamento exclusivo com pessoas fiacutesicas com o objetivo de formar viacutenculos
afetivos entre padrinhos e afilhados
Criteacuterios para apadrinhar
Residir em Osasco ou comprovar faacutecil acesso agrave cidade
Natildeo estar inscritos no Cadastro Nacional de Adoccedilatildeo
Ter disponibilidade afetiva e de tempo
Manter encontros presenciais com o afilhado ao menos duas vezes por mecircs
Criteacuterios para ser apadrinhado
Ter mais de sete anos
O apadrinhamento afetivo deve ser parte do Plano Individual de Atendimento (PIA)
Estar acolhido haacute mais de oito meses ndash tempo acordado como miacutenimo necessaacuterio para a equipe
teacutecnica elaborar e avaliar o desenvolvimento do PIA
Ter previsatildeo de longa permanecircncia no SAICA
Manter poucas referecircncias afetivas ou todas serem institucionalizadas
Estar disposto a estabelecer novas relaccedilotildees
Anexo 2 Reuniotildees de Rede ndash com teacutecnicos dos SAICAs dos CREAS e da VIJ
Objetivos Resultados
1ordf Apresentar os marcos legais e os
resultados esperados do Programa
Maior conhecimento e disponibilidade para
participaccedilatildeo dos profissionais envolvidos
com o acolhimento em diferentes dimensotildees
2ordf Estabelecer os criteacuterios para os
acolhidos participarem do Programa
Criaccedilatildeo de consenso entre os profissionais
sobre as especificidades do programa
3ordf Decidir quais crianccedilas e adolescentes
participaratildeo daquela ediccedilatildeo
Anaacutelise da rede de relaccedilotildees de cada acolhido
e estabelecimento de prioridade de casos para
a participaccedilatildeo
4ordf Orientaccedilatildeo das equipes teacutecnicas dos
SAICAs sobre a preparaccedilatildeo de todos os
acolhidos para o programa e dos
participantes daquela ediccedilatildeo para o
encontro luacutedico
Estabelecimento de um roteiro com temas a
serem abordados em uma roda de conversa
com todos os acolhidos e um atendimento
individual com os participantes daquela
ediccedilatildeo
5ordf Elencar as impressotildees das crianccedilas e
adolescentes quanto aos candidatos a
Apresentaccedilatildeo dos relatos dos acolhidos sobre
o encontro luacutedico e seus candidatos
126
padrinhos a fim de combinaacute-las com as
impressotildees dos adultos e acertar os
proacuteximos passos da aproximaccedilatildeo com
as equipes teacutecnicas dos SAICAs
preferidos aleacutem do acordo de que as equipes
de cada SAICA realizariam visita domiciliar
confirmaccedilatildeo do interesse do acolhido
atendimentos individuais e os primeiros
encontros das duplas
6ordf Acompanhar o desenvolvimento da
aproximaccedilatildeo acordada na reuniatildeo
anterior
Apresentaccedilatildeo das visitas domiciliares dos
atendimentos aos padrinhos e das primeiras
saiacutedas com os acolhidos
Anexo 3 Preparaccedilatildeo das Crianccedilas e Adolescentes ndash realizadas em cada SAICA
Presentes Objetivos Resultados
Rodas de
Conversa
Todos os
acolhidos e
funcionaacuterios
de cada abrigo
Explicar etapas e
criteacuterios do Programa e
quais acolhidos
participariam daquela
ediccedilatildeo
Observaccedilatildeo da
compreensatildeo e
solidariedade entre os
acolhidos e capacitaccedilatildeo dos
demais funcionaacuterios do
SAICA
Atendimentos
individuais antes
do encontro
luacutedico
Apenas os
acolhidos
participantes
da ediccedilatildeo
Confirmar interesse na
criaccedilatildeo de uma nova
relaccedilatildeo
Promoccedilatildeo da implicaccedilatildeo
dos acolhidos em
participar pois passaram a
entender seu protagonismo
Encontro luacutedico Apenas os
acolhidos
participantes
da ediccedilatildeo
Promover a
aproximaccedilatildeo entre
candidatos e acolhidos
Alguns acolhidos
participaram das atividades
e outros natildeo
Atendimentos
individuais apoacutes
o encontro luacutedico
Apenas os
acolhidos
participantes
da ediccedilatildeo
Levantar como estava a
interaccedilatildeo com os
candidatos e a
aproximaccedilatildeo
Levantamento de dados
importantes para avaliar a
continuidade das
aproximaccedilotildees
Anexo 4 Encontros com candidatos a madrinhas e padrinhos
Objetivos Resultados
1ordm Apresentaccedilatildeo dos candidatos e de
seus interesses em participar
Iniacutecio da formaccedilatildeo do grupo
2ordm Diferenciar orfanatos de SAICAs e
refletir sobre conceitos associados
aos acolhidos
Promoccedilatildeo de reflexotildees sobre a realidade dos
acolhimentos com os quais teriam contato
3ordm Refletir sobre as referecircncias e
memoacuterias afetivas dos candidatos
Todos se referiram a familiares por isso discutimos
a possibilidade de estabelecer viacutenculos relevantes
com pessoas sem parentesco
4ordm Encontro luacutedico Todos os candidatos a padrinhos estavam bastante
participativos
5ordm Ouvir suas impressotildees sobre o
encontro luacutedico
Levantamento de informaccedilotildees para realizar a
combinaccedilatildeo das duplas de padrinhos e afilhados
6ordm Acompanhar os primeiros
encontros sozinhos com os
afilhados e as expectativas
Encerramento da capacitaccedilatildeo e observaccedilatildeo de que
todos estavam animados com o iniacutecio da
convivecircncia
127
Anexo 5 Acompanhamento
Com afilhados Atendimentos individuais com as equipes de cada SAICA e encontros
coletivos dos afilhados
Com padrinhos Contatos semanais dos teacutecnicos dos SAICAs com os padrinhos e encontros
bimestrais dos padrinhos com a Comissatildeo do Programa
128
Capiacutetulo 7
A concepccedilatildeo desenvolvimentista de adolescecircncia e seus impasses para a
poliacutetica de Assistecircncia Social
Mariana Belluzzi Ferreira
Carolina Esmanhoto Bertol
Introduccedilatildeo
As poliacuteticas do campo da Assistecircncia Social foram instituiacutedas pela Constituiccedilatildeo Federal
(Brasil 1988) trazendo importantes mudanccedilas ao tomar como responsabilidade puacuteblica
necessidades ateacute entatildeo consideradas de acircmbito pessoal ou individual (Brasil 2013 Sposati
2009) Como poliacutetica puacuteblica a Assistecircncia Social ancora-se na prevalecircncia do interesse
puacuteblico possuindo caraacuteter contiacutenuo regular universal e obrigatoacuterio Regulamentada em 1993
por meio da Lei 8742 (Brasil 1993) ela passa a compreender as situaccedilotildees de desproteccedilatildeo
social como expressatildeo de uma questatildeo social ou seja produzida por determinantes histoacutericos
poliacuteticos e sociais que natildeo podem ser atribuiacutedos a um sujeito ou agraves particularidades de uma
determinada famiacutelia ou grupo Ao entender que uma poliacutetica puacuteblica trata de necessidades
sociais e coletivas ainda que essas se manifestem concretamente em situaccedilotildees e pessoas eacute
preciso que a gestatildeo ganhe competecircncia e conhecimento na atenccedilatildeo superaccedilatildeo e ateacute mesmo
prevenccedilatildeo dessas necessidades (Brasil 2013)
Destaca-se assim o fato de o Estado tambeacutem estar implicado em situaccedilotildees de
desproteccedilatildeo situando o sofrimento do sujeito e de sua famiacutelia nos contextos histoacuterico e poliacutetico-
social nos quais estatildeo inseridos e natildeo mais em si mesmos Assume-se que o Estado eacute
responsaacutevel pela proteccedilatildeo da famiacutelia e de seus membros pois dada a estruturaccedilatildeo social e
econocircmica do paiacutes em uma histoacuteria de escravidatildeo ele tambeacutem foi e eacute produtor de desigualdades
sociais e desproteccedilatildeo de muitas famiacutelias
Apesar das mudanccedilas descritas observamos contudo que a concepccedilatildeo da Assistecircncia
Social como poliacutetica puacuteblica centrada no princiacutepio do direito ainda eacute um modelo a ser
implantado um norte muito mais do que uma realidade jaacute efetuada (Sposati 2009) Estamos
diante do processo de institucionalizaccedilatildeo desta poliacutetica de seus princiacutepios e concepccedilotildees
129
fundantes e de suas seguranccedilas socioassistenciais1 resultante da tensatildeo entre dois discursos
antagocircnicos presentes neste campo (Ferreira 2015) Sposati (2009) acrescenta que avanccedilar na
institucionalizaccedilatildeo da Assistecircncia Social como poliacutetica puacuteblica consiste em efetuar um tracircnsito
do acircmbito individual para o social consistindo esse tracircnsito na ldquoraiz fundante da poliacutetica
puacuteblicardquo e exigindo o seu deslocamento do acircmbito assistencialista para o da compreensatildeo da
proteccedilatildeo e do direito
No caso de crianccedilas e adolescentes podemos compreender que o discurso que se
encontra instituiacutedo consiste no discurso assistencialista menorista que atribui agrave crianccedila e ao
adolescente os lugares de carecircncia anormalidade e perigo e agrave sua famiacutelia o lugar de ldquoincapazrdquo
Jaacute o discurso instituinte refere-se agrave compreensatildeo da proteccedilatildeo e do direito como necessidades
coletivas responsabilidades puacuteblicas e potecircncias relacionais No que diz respeito
especificamente ao campo dos direitos da infacircncia e juventude o Estatuto da Crianccedila do
Adolescente (ECA) (Brasil 1990) efetivou um tracircnsito do acircmbito individual para o social ao
prever o direito universal de Proteccedilatildeo Integral aplicado portanto a todas as crianccedilas e
adolescentes deixando assim de ser restrito como seraacute visto a seguir aos filhos das famiacutelias
pobres identificados anteriormente pelo Coacutedigo de Menores agrave categoria menor (Brasil 1979)
A contiacutenua institucionalizaccedilatildeo da poliacutetica de Assistecircncia Social exige o seu
deslocamento do discurso instituiacutedo para o discurso instituinte consistindo assim em desafio
presente no cotidiano de trabalho dos diversos serviccedilos e nas muacuteltiplas relaccedilotildees estabelecidas
entre trabalhadores crianccedilas adolescentes e familiares Essas relaccedilotildees satildeo construiacutedas de
acordo com os lugares atribuiacutedos no discurso institucional e no discurso social mais amplo agraves
famiacutelias e agraves crianccedilas e aos adolescentes
Assim nesse artigo procuramos problematizar como a execuccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas
destinadas a garantir os direitos dos adolescentes eacute ainda um grande desafio no acircmbito da
Assistecircncia Social A despeito dos avanccedilos legais e poliacuteticos em nossa atuaccedilatildeo profissional e
de pesquisa fica evidente que as principais poliacuteticas para essa populaccedilatildeo ainda atribuem ao
adolescente os lugares de carente desviante ou perigoso como o antigo Coacutedigo de Menores o
fazia
Neste trabalho problematizaremos entatildeo como o discurso menorista insiste e
reatualiza-se muitas vezes na noccedilatildeo de proteccedilatildeo e de desenvolvimento que estaacute na base das
atuais poliacuteticas puacuteblicas dirigidas a essa populaccedilatildeo atravessando o cotidiano dos serviccedilos
1 A poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia Social deve afianccedilar trecircs seguranccedilas sociais especiacuteficas de sobrevivecircncia (ou
de rendimento e autonomia) de acolhida e de convivecircncia (familiar e comunitaacuteria) (Brasil 2004)
130
socioassistenciais e ratificando praacuteticas de exclusatildeo Partiremos da discussatildeo de dois casos
institucionais ndash o desacolhimento institucional de adolescentes por maioridade e as medidas
socioeducativas em meio aberto ndash para apresentar os efeitos desse discurso e como dispositivos
coletivos de discussatildeo de caso podem operar novos efeitos As discussotildees apresentadas
baseiam-se em parte nas pesquisas de mestrado e doutorado realizados pelas autoras sob o
aporte da Psicanaacutelise Implicada (Rosa 2012) no Programa de Estudos Poacutes-Graduados em
Psicologia Social da PUC-SP
1 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Situaccedilatildeo Irregular
O seacuteculo XX foi caracterizado como um periacuteodo de grande presenccedila do Estado na
implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas de atendimento agrave categoria dos entatildeo chamados
ldquomenoresrdquo Ele inicia-se com a instituiccedilatildeo do Coacutedigo de Menores de 1927 o qual sofreu
algumas alteraccedilotildees culminando no novo Coacutedigo de Menores de 1979 Esse periacuteodo que ficou
amplamente conhecido como tutelar buscava identificar crianccedilas que estivessem em risco
devido agrave falta de condiccedilotildees morais e materiais de suas famiacutelias e colocaacute-las sob a tutela do
Estado Os processos de reeducaccedilatildeo eram a diretriz das instituiccedilotildees que se ocupavam destas
crianccedilas nas quais investia-se na compreensatildeo dos comportamentos da infacircncia e suas causas
e da construccedilatildeo de teacutecnicas e intervenccedilotildees mais eficazes na prevenccedilatildeo e na mudanccedila de
comportamentos indesejaacuteveis (Donzelot 1980)
Como passaram a ser vistos com caracteriacutesticas e necessidades especiacuteficas agraves suas fases
da vida aqueles que apresentavam condutas antissociais foram diagnosticados como carentes
e desajustados em funccedilatildeo da ldquoausecircncia moral da falta de formaccedilatildeo de valores haacutebitos e atitudes
desejaacuteveis dentro do considerado padratildeo liberal bem como resultado da falta de afeto e amor
da famiacuteliardquo (Silva 2011 p 86) Juntamente com esta nova concepccedilatildeo se produziu a ideia de
que as famiacutelias pobres natildeo estavam aptas a educar e dar condiccedilotildees adequadas ao
desenvolvimento de seus filhos
Entretanto nesse periacuteodo natildeo se buscava levantar as condiccedilotildees sociais das famiacutelias para
avaliar suas necessidades e contribuir para sua promoccedilatildeo social mas apenas para julgaacute-las e
apontar falhas nas suas formas de vida Nesse sentido elas acabavam sendo culpabilizadas pela
sua situaccedilatildeo de precariedade social pela sua inadequaccedilatildeo a uma norma moral dominante Por
outro lado o Estado se desresponsabilizava pela produccedilatildeo das condiccedilotildees de pobreza na qual
essas famiacutelias viviam e assumia o controle de seus filhos atraveacutes da sua institucionalizaccedilatildeo
Como eram considerados incapazes as vontades e os interesses das crianccedilas e dos adolescentes
131
natildeo eram considerados Quem falava por eles eram os educadores e os trabalhadores sociais os
quais por serem especialistas conheciam mais dos adolescentes e de sua dinacircmica familiar do
que eles mesmos (Guirado 1986 Gadelha 1998)
Produzia-se uma relaccedilatildeo na qual as crianccedilas os adolescentes e suas famiacutelias ocupavam
o lugar de objetos de cuidados de higiene de exame de avaliaccedilatildeo e de diagnoacutesticos como
objeto a ser cuidado e controlado Ao analisar este periacuteodo autores como Silva (2011) Mendez
(2013) e Sposato (2011) ressaltam como ele contribuiu para uma judicializaccedilatildeo dos problemas
sociais e para a criminalizaccedilatildeo de crianccedilas e jovens pobres que tinham seus direitos violados
em nome da sua proteccedilatildeo As famiacutelias eram punidas duas vezes pois aleacutem de viverem em
situaccedilotildees sociais e materiais precaacuterias ainda eram criminalizadas e tinham suas crianccedilas
retiradas de seu conviacutevio Nesse periacuteodo milhares de crianccedilas foram institucionalizadas
arbitrariamente separadas de suas famiacutelias ou voluntariamente entregues por elas com o
objetivo de serem educadas e cuidadas em regime de internaccedilatildeo
2 O lugar da crianccedila e do adolescente na Doutrina de Proteccedilatildeo Integral
O processo de redemocratizaccedilatildeo do paiacutes no final do seacuteculo XX permitiu a discussatildeo
sobre a garantia de direitos incluindo os direitos das crianccedilas e dos adolescentes em
consonacircncia com o debate internacional sobre o tema O campo da proteccedilatildeo agrave infacircncia e agrave
adolescecircncia foi marcado particularmente nesse periacuteodo pelo questionamento das praacuteticas e
concepccedilotildees assistencialistas e institucionalizantes tendo como principal efeito a
descentralizaccedilatildeo de suas poliacuteticas e praacuteticas Foram herdeiros da redemocratizaccedilatildeo do paiacutes e de
forte mobilizaccedilatildeo social e poliacutetica a Constituiccedilatildeo Federal de 1988 o Estatuto da Crianccedila e do
Adolescente (ECA) em 1990 e a Lei Orgacircnica de Assistecircncia Social (LOAS) em 1993
Entre as mudanccedilas que ocorreram nesse momento destacamos o reconhecimento de
crianccedilas e adolescentes como sujeito de direitos2 Segundo Rosemberg e Mariano (2010) nesse
2 Esses direitos estatildeo descritos nos artigos nordm 15 nordm 16 e nordm 17 do ECA (Brasil 1990) Art nordm 15 ndash A crianccedila e o
adolescente tecircm direito agrave liberdade ao respeito e agrave dignidade como pessoas humanas em processo de
desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis humanos e sociais garantidos na Constituiccedilatildeo e nas leis Art nordm
16 ndash O direito agrave liberdade compreende os seguintes aspectos I ndash ir vir e estar nos logradouros puacuteblicos e espaccedilos
comunitaacuterios ressalvadas as restriccedilotildees legais II ndash opiniatildeo e expressatildeo III ndash crenccedila e culto religioso IV ndash brincar
praticar esportes e divertir-se V ndash participar da vida familiar e comunitaacuteria sem discriminaccedilatildeo VI ndash participar da
vida poliacutetica na forma da lei VII ndash buscar refuacutegio auxiacutelio e orientaccedilatildeo Art nordm 17 ndash O direito ao respeito consiste
na inviolabilidade da integridade fiacutesica psiacutequica e moral da crianccedila e do adolescente abrangendo a preservaccedilatildeo
da imagem da identidade da autonomia dos valores ideias e crenccedilas dos espaccedilos e objetos pessoais (Brasil
1990)
132
processo eles passam a usufruir dos direitos garantidos pela Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos
Humanos entre eles o direito a participaccedilatildeo expressatildeo e liberdade ndash sendo dever da famiacutelia da
sociedade civil e do Estado assegurar com absoluta prioridade esses direitos uma vez que
crianccedilas e adolescentes natildeo possuem plena autonomia sendo considerados sujeitos em
desenvolvimento Em um cenaacuterio no qual eles eram punidos arbitrariamente com a privaccedilatildeo de
sua liberdade em nome de sua proteccedilatildeo essa mudanccedila foi fundamental para regular as
intervenccedilotildees do Estado junto a crianccedilas e adolescentes que deixam de ser objeto de tutela
controle e vigilacircncia do adulto para serem sujeitos com direitos a serem garantidos entre eles
a liberdade e a participaccedilatildeo social e poliacutetica
Nesse sentido as mudanccedilas natildeo satildeo somente teacutecnicas implicam em uma mudanccedila na
forma de o Estado perceber e se relacionar com as crianccedilas e os adolescentes (Mendez 2008
2013) Apesar da centralidade do cuidado e da educaccedilatildeo ser da famiacutelia se reconhece o dever
do Estado de dar condiccedilotildees para que esta cumpra sua funccedilatildeo de proteccedilatildeo por meio de suas
poliacuteticas sociais promovendo a diminuiccedilatildeo das desigualdades sociais e priorizando crianccedilas e
adolescentes
Estas mudanccedilas trouxeram novos impasses para as relaccedilotildees de poder intergeracionais
pois ao mesmo tempo que o paradigma da Proteccedilatildeo Integral implica o direito agrave liberdade e agrave
participaccedilatildeo eles natildeo possuem autonomia plena devendo receber proteccedilatildeo especial Nesse
sentido Rosemberg e Mariano (2010) discutem as tensotildees que emergiram entre duas
perspectivas no campo dos direitos das crianccedilas e adolescentes as que priorizam os direitos
individuais ndash entre eles o direito agrave liberdade e agrave participaccedilatildeo ndash conhecidas como correntes
liberacionista e as que priorizam a proteccedilatildeo especial conhecidas como protecionistas
Enquanto na primeira perspectiva haacute um princiacutepio de igualdade que sustenta as relaccedilotildees entre
os sujeitos na segunda sustenta-se a ideia de que as crianccedilas satildeo dependentes daqueles que tecircm
o poder sobre suas vidas Trata-se de uma dialeacutetica entre o direito agrave liberdade e os direitos de
proteccedilatildeo inerentes agrave constituiccedilatildeo do sujeito em um pacto social democraacutetico A doutrina da
Proteccedilatildeo Integral coloca entatildeo novos impasses para o trabalho junto a crianccedilas e adolescentes
uma vez que se trata de respeitar seu direito de liberdade e de participaccedilatildeo e ao mesmo tempo
garantir sua proteccedilatildeo o que em muitas situaccedilotildees pode levar a direccedilotildees de trabalho antagocircnicas
3 O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia
Compreendemos que muitas questotildees estatildeo envolvidas na dinacircmica
133
participaccedilatildeoproteccedilatildeo mas ressaltamos que entre elas encontra-se o fato de o discurso juriacutedico
sobre a infacircncia e adolescecircncia particularmente no Brasil estar articulado agrave noccedilatildeo de
desenvolvimento3 a partir da qual entende-se que ao longo da vida haacute uma aquisiccedilatildeo linear de
caracteriacutesticas e habilidades marcadas cronologicamente que culminam na maturidade moral
cognitiva e na autonomia Poreacutem estudos de autores como Ariegraves (1981) e Del Priore (2010)
ressaltam que a concepccedilatildeo da infacircncia e da adolescecircncia como etapas da vida consiste em uma
construccedilatildeo histoacuterica e social que no ocidente contemporacircneo ao hierarquizar as idades atribui-
se determinados lugares agrave crianccedila ao adolescente e ao adulto sendo esse uacuteltimo considerado o
aacutepice de um processo de desenvolvimento Trata-se natildeo somente da atribuiccedilatildeo de lugares
diversos a depender das diferentes caracteriacutesticas atribuiacutedas a cada etapa da vida mas de como
essas diferenccedilas satildeo tomadas para justificar uma desigualdade e atribuir uma suposta
inferioridade agrave crianccedila e ao adolescente em relaccedilatildeo ao adulto Nesse sentido os adultos satildeo
compreendidos como indiviacuteduos completos enquanto crianccedilas e adolescentes satildeo
compreendidos e tratados a partir das suas faltas e natildeo a partir das suas capacidades e
potencialidades
Observamos que ao atuar a partir de etapas do desenvolvimento predeterminadas o
discurso juriacutedico trabalha com o dever ser com a norma (Foucault 1988) parte de categorias
ideais sobre o dever ser crianccedila e adolescente consistindo em um discurso normativo e
operacionalizando-se a partir de um saber preacutevio sobre o sujeito adolescente compreendendo
como desviante aquele que escapa a essa norma ideal socialmente construiacuteda (Cerruti e Rosa
2008)
Segundo Jobim e Souza (2010) a perspectiva desenvolvimentista concebe a crianccedila e o
adolescente marcados predominantemente por uma matriz bioloacutegica-evolucionista A ideia de
um aprimoramento linear e contiacutenuo que culmina na maturidade adulta implica em conceber
a passagem da infacircncia agrave vida adulta como um processo padronizado e gradual de socializaccedilatildeo
vindo a transformar o discurso sobre o desenvolvimento na proacutepria natureza da crianccedila e do
adolescente
De acordo com a autora a perspectiva desenvolvimentista pretende-se assim universal
3 A condiccedilatildeo peculiar de desenvolvimento da crianccedila e do adolescente estaacute descrita nos artigos n 3 e n 6 do ECA
(Brasil 1990) Art No 3 - A crianccedila e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes agrave pessoa
humana assegurando-se-lhes por lei ou por outros meios todas as oportunidades e facilidades a fim de lhes
facultar o desenvolvimento fiacutesico mental moral espiritual e social em condiccedilotildees de liberdade e de dignidade
Art No 6 - Na interpretaccedilatildeo desta Lei levar-se-atildeo em conta os fins sociais e a que ela se dirige as exigecircncias do
bem comum os direitos e deveres individuais e coletivos e a condiccedilatildeo peculiar da crianccedila e do adolescente como
pessoas em desenvolvimento
134
desconsiderando os fatores culturais histoacutericos e sociopoliacuteticos que permitem em determinada
eacutepoca uma caracterizaccedilatildeo particular das diferentes fases da vida Esse discurso afirma a
homogeneidade negando a multiplicidade e a diferenccedila afirma uma adolescecircncia uacutenica e ideal
baseada em um modelo eurocecircntrico (Burman 2008) refutando a diversidade de experiecircncias
dos sujeitos as vaacuterias adolescecircncias possiacuteveis e por eles vivenciadas
Nessa leitura o adolescente eacute concebido em fase de desenvolvimento em busca de sua
independecircncia e de construccedilatildeo de uma identidade fixa Os ldquoproblemasrdquo ldquoinsucessosrdquo e
ldquodesviosrdquo enfrentados durante o processo de desenvolvimento satildeo compreendidos como
dificuldades vivenciadas pelo adolescente em sua constituiccedilatildeo ou ainda na sua capacidade no
estabelecimento de laccedilos com os outros sobretudo com os adultos e as instituiccedilotildees que esses
representam Nessa articulaccedilatildeo entre direito e desenvolvimento as crianccedilas e os adolescentes
que natildeo correspondem agraves normas e aos ideais previamente e universalmente determinados satildeo
entendidos como desviantes num processo de patologizaccedilatildeo eou criminalizaccedilatildeo de seus
comportamentos
Partilhamos com Ceciacutelia Coimbra e colaboradoras (2005) que o uso generalizado e
indiscriminado da concepccedilatildeo de adolescecircncia como uma fase universal e a-histoacuterica do
desenvolvimento humano incide sobretudo em discursos e praacuteticas oficiais Desta forma essa
concepccedilatildeo incide principalmente junto a adolescentes submetidos agraves instituiccedilotildees de proteccedilatildeo e
socioeducativas sendo necessaacuteria sua problematizaccedilatildeo sobretudo no contexto do sistema de
Justiccedila e das poliacuteticas puacuteblicas incluindo a de Assistecircncia Social
O discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia ao aliar-se a discursos meacutedico-psiquiaacutetricos
apresenta-se com uma roupagem de cientificidade conferindo-lhe assim maior difusatildeo no
campo social (Cerruti amp Rosa 2008) Essa ampla difusatildeo faz com que essa concepccedilatildeo
desenvolvimentista tambeacutem atravesse o sistema de proteccedilatildeo e os serviccedilos referenciados agraves
poliacuteticas puacuteblicas
Ressaltamos que a concepccedilatildeo desenvolvimentista ao individualizar os ldquoproblemasrdquo e
ldquodesviosrdquo vivenciados pelos adolescentes produz a contenccedilatildeo e o velamento dos conflitos
institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem e forjam essas ldquodificuldadesrdquo Notamos assim que
essa concepccedilatildeo se baseia na dicotomia indiviacuteduo-sociedade vindo a produzir a falsa ilusatildeo de
autonomia (Rosa amp Vicentin 2012) Essa noccedilatildeo de autonomia em sua acepccedilatildeo individual e
liberal concebe o sujeito adolescente como independente dos laccedilos com seus semelhantes e o
campo social em que se inscreve opondo-se agrave concepccedilatildeo de autonomia prevista pela poliacutetica
135
de Assistecircncia Social4
Em nossa atuaccedilatildeo propomos entatildeo uma compreensatildeo de sujeito que manteacutem o lugar das
questotildees soacutecio-poliacuteticas no cerne dos processos de subjetivaccedilatildeo contrapondo-se a leituras que
individualizam o sofrimento e responsabilizam exclusivamente o sujeito por ele Assim sob o
aporte da psicanaacutelise salientamos que a constituiccedilatildeo subjetiva longe de ser fruto de um
processo intrapsiacutequico ou predeterminado biologicamente se daacute necessariamente na relaccedilatildeo do
sujeito com seus semelhantes e com o campo social em que se inscreve (Rosa 2012)
Nesta abordagem e em consonacircncia com as diretrizes da poliacutetica puacuteblica de Assistecircncia
Social o sujeito natildeo eacute concebido como unidade isolada e independente mas sim constituiacutedo na
relaccedilatildeo com seus semelhantes e o campo social Este seraacute representado ao longo da vida do
sujeito por diferentes atores No contexto dos serviccedilos socioassistenciais em particular tais
representantes seratildeo os familiares professores profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e
intersetoriais operadores do Direito conselheiros tutelares dentre outros Esses representantes
do campo social estatildeo incluiacutedos em uma rede discursiva e libidinal enunciando diversas
narrativas e mensagens que atribuem ao sujeito lugares e posiccedilotildees sociais diferentes (Rosa
2004)
Vejamos entatildeo os efeitos que o trabalho a partir de concepccedilotildees desenvolvimentistas
podem produzir no laccedilo com os adolescentes e como a desconstruccedilatildeo e problematizaccedilatildeo destas
produz efeitos nas praacuteticas profissionais no sentido de contribuir para a consolidaccedilatildeo dos
direitos dos adolescentes Partiremos da discussatildeo de dois casos institucionais os adolescentes
em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto e aqueles em vias de
desacolhimento institucional por maioridade
4 A Pesquisa-intervenccedilatildeo e a construccedilatildeo de um saber coletivo
Frente ao processo de individualizaccedilatildeo e despolitizaccedilatildeo das desproteccedilotildees e violaccedilotildees de
direitos agraves quais os adolescentes estatildeo submetidos seja por fragilidade e ruptura de laccedilos
familiares e comunitaacuterios ou como efeitos de segregaccedilatildeo e isolamento que a atuaccedilatildeo baseada
em concepccedilotildees desenvolvimentistas e individualizantes produzem no cotidiano dos serviccedilos
socioassistenciais propomos em nossas pesquisas a discussatildeo coletiva de casos como forma
4 A poliacutetica socioassistencial introduz uma concepccedilatildeo de autonomia oriunda da Sauacutede Coletiva que consiste em
uma coconstruccedilatildeo (Torres amp Gouveia 2013) Esta concepccedilatildeo inclui um conjunto de fatores como o sujeito sua
histoacuteria e sua rede de relaccedilotildees articulando assim esse conceito aos contextos institucional e poliacutetico-social nos
quais o sujeito estaacute inserido e que o constituem
136
de construir um endereccedilamento das questotildees e dificuldades manifestadas pelo adolescente para
o grupo de profissionais que atuam na proteccedilatildeo de seus direitos
Tratam-se de pesquisas que natildeo se caracterizam entatildeo por uma pesquisa psicanaliacutetica
cliacutenica stricto sensu mas por uma metodologia que se insere no que Rosa (2012) nomeia
psicanaacutelise implicada e que se propotildee estudar o sujeito enredado nos fenocircmenos sociais e
poliacuteticos dando visibilidade natildeo soacute ao adolescente mas tambeacutem aos discursos e natildeo ditos que
se articulam a seus atos e comportamentos concebidos frequentemente como problemas
desvios patologia e violecircncia
Trabalhamos assim com a noccedilatildeo de implicaccedilatildeo (Lourau 1993) que permite pocircr em
anaacutelise o lugar ocupado pelos diversos profissionais no campo sociopoliacutetico bem como aquele
ocupado pelo pesquisador A anaacutelise das implicaccedilotildees pressupotildee assim conceber que as praacuteticas
profissionais incluindo o proacuteprio processo de pesquisa natildeo possui caraacuteter objetivo baseada
numa suposta neutralidade do profissional (ou do pesquisador) mas inclui sua subjetividade
seu desejo O meacutetodo psicanaliacutetico de pesquisa supera assim a dicotomia pesquisador-
pesquisado compreendendo-os como construccedilotildees histoacutericas e natildeo como categorias
transcendentais refutando assim a noccedilatildeo de neutralidade cientiacutefica Observamos tambeacutem que
o meacutetodo de pesquisa psicanaliacutetico supera a dicotomia teoria-praacutetica uma vez que ldquovai do
fenocircmeno ao conceito e constroacutei uma metapsicologia natildeo isolada mas fruto da escuta
psicanaliacutetica que natildeo enfatiza ou prioriza a interpretaccedilatildeo a teoria por si soacute mas integra teoria
praacutetica e pesquisardquo (Rosa 2004 p 341) Ao desfazer essas dicotomias o meacutetodo psicanaliacutetico
revela seu caraacuteter de pesquisa-intervenccedilatildeo
Foi a partir destes pressupostos que nas pesquisas realizamos discussotildees coletivas de
caso Uma das pesquisas foi realizada com profissionais que atuam nos serviccedilos de medidas
socioeducativas em meio aberto e a outra com profissionais dos serviccedilos socioassistenciais e
intersetoriais que compotildeem a rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo
Ao discorrer sobre a construccedilatildeo de casos Viganoacute (2010) ressalta que a construccedilatildeo de
caso visa produzir um saber sobre o discurso e natildeo sobre o sujeito consistindo em construccedilatildeo
que se interroga sobre a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo social Nesse sentido o autor aponta que na
construccedilatildeo do caso existe um questionamento sobre qual a posiccedilatildeo do sujeito no laccedilo com o
Outro possibilitando uma interrogaccedilatildeo dos profissionais sobre o lugar e funccedilatildeo que ocupam
para o sujeito pois promove um corte no saber uma interrogaccedilatildeo das certezas e permite um
questionamento do lugar que eles ocupam no discurso no qual o sujeito estaacute enlaccedilado Eacute
possiacutevel pensar como o sujeito se posiciona no discurso que discurso eacute esse e como atuar de
137
forma a realizar uma rachadura um questionamento deste discurso permitindo ao sujeito a
formulaccedilatildeo de questotildees sobre sua posiccedilatildeo nesse laccedilo
Assim a discussatildeo coletiva de caso permite incidir nos discursos dos profissionais sobre
os adolescentes possibilitando trabalhar os afetos e as fantasias daqueles sobre estes incluindo
os determinantes institucionais e poliacutetico-sociais que subjazem os atos e comportamentos dos
adolescentes Esse dispositivo contribui assim para a problematizaccedilatildeo das relaccedilotildees construiacutedas
entre profissionais e adolescentes e entre estes e os serviccedilos socioassistenciais e os efeitos
subjetivos produzidos nestas relaccedilotildees procurando produzir mudanccedilas de posiccedilatildeo dos
profissionais e por conseguinte dos adolescentes
A construccedilatildeo de espaccedilos coletivos de discussatildeo de caso somente eacute possiacutevel em funccedilatildeo
do posicionamento eacutetico-poliacutetico dos profissionais participantes comprometidos com a oferta
de um outro lugar aos adolescentes que natildeo o de desvio patologia ou violecircncia
Comprometidos tambeacutem com a construccedilatildeo de estrateacutegias efetivas de intervenccedilatildeo junto a eles e
com a sustentaccedilatildeo de espaccedilos democraacuteticos de discussatildeo A sustentaccedilatildeo desse dispositivo natildeo
se daacute sem impasses e dificuldades implicando em uma estrutura complexa lugar de trocas de
relaccedilotildees e de discussotildees muitas vezes marcadas por divergecircncias e contradiccedilotildees Na medida
em que o grupo sustenta contudo as tensotildees suscitadas pelas discussotildees ele se mostra potente
na construccedilatildeo coletiva de um saber singular sobre o adolescente
5 Adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em meio aberto
As medidas socioeducativas satildeo poliacuteticas puacuteblicas destinadas a atender todos aqueles
adolescentes que cometeram um ato infracional ou seja um ato considerado antijuriacutedico e que
apoacutes terem passado por um processo legal com direito a defesa foram sentenciados com uma
das cinco medidas previstas pelo ECA obrigaccedilatildeo de reparar danos prestaccedilatildeo de serviccedilos a
comunidades liberdade assistida semiliberdade e internaccedilatildeo Estas medidas tecircm tanto uma
dimensatildeo punitiva como forma de exercer um controle social atraveacutes da sanccedilatildeo e que visa
responsabilizar o adolescente pela sua accedilatildeo e consequecircncias desta quanto uma dimensatildeo
pedagoacutegica e social uma vez que busca promover a integraccedilatildeo social dos adolescentes atraveacutes
da garantia de seus direitos (Brasil 1990)
Os profissionais que atuam na medida socioeducativa embasam seu trabalho tanto no
ECA (Brasil 1990) quanto no SINASE lei n 12594 (Brasil 2012) que orienta e estabelece
princiacutepios e paracircmetros nacionais para as medidas socioeducativas bem como as
138
responsabilidades dos profissionais e instituiccedilotildees envolvidas na sua execuccedilatildeo Com a
promulgaccedilatildeo desta uacuteltima lei a execuccedilatildeo das medidas socioeducativas em meio aberto passa a
ser efetivamente executadas pelos municiacutepios e fica vinculada tanto ao Sistema Nacional
Socioeducativo (SINASE) quanto ao Sistema Uacutenico de Assistecircncia Social (SUAS)
Os teacutecnicos socioeducativos que atuam nos serviccedilos tecircm como funccedilatildeo contribuir para o
acesso do adolescente aos seus direitos para o desenvolvimento de suas potencialidades e para
a introjeccedilatildeo ou a ressignificaccedilatildeo de valores que contribuam para sua integraccedilatildeo social criando
condiccedilotildees para a ruptura da praacutetica do ato infracional observando-se sempre a sua
responsabilizaccedilatildeo Para a realizaccedilatildeo desse trabalho destacam a importacircncia de duas aacutereas
fundamentais a educaccedilatildeo formal e a educaccedilatildeo para o trabalho sendo entatildeo uma poliacutetica que
necessita de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas como as de sauacutede e de educaccedilatildeo para
efetivar o atendimento ao adolescente (Brasil 2012 2016 Prefeitura de Satildeo Paulo 2016)
O eixo de toda medida socioeducativa eacute o Plano Individual de Atendimento no qual
devem ser descritas todas as atividades a serem realizadas com e pelo adolescente durante a sua
medida bem como os objetivos das mesmas O adolescente deve participar ativamente da
elaboraccedilatildeo e da execuccedilatildeo das atividades a serem realizadas e portanto seus interesses desejos
e opiniotildees devem ser considerados no planejamento das accedilotildees a serem desenvolvidas por ele e
com ele durante a medida Assim direitos como a liberdade a participaccedilatildeo e o protagonismo
aparecem como diretrizes do trabalho socioeducativo (Brasil 2012 2016) Os teacutecnicos sociais
natildeo mais decidem o destino dos adolescentes mas o acompanham e produzem reflexotildees criacuteticas
sobre seus atos sobre seus direitos e portanto tambeacutem sobre sua posiccedilatildeo enquanto sujeito no
laccedilo social
Eacute na medida que conseguem experenciar o lugar de sujeito na relaccedilatildeo com os teacutecnicos
que os adolescentes podem reproduzir essa posiccedilatildeo em suas outras relaccedilotildees consolidando seu
lugar de sujeito e elaborando e enfrentando os conflitos que emergem com esse deslocamento
de posiccedilatildeo de objeto para a posiccedilatildeo de sujeito (Bertol 2019)
Eacute importante ressaltar que na praacutetica a execuccedilatildeo deste Plano Individual de Atendimento
natildeo eacute um processo tatildeo simples pois o adolescente deve conseguir conciliar as escolhas
baseadas em seus interesses aquelas que se mostram como exigecircncias do juiz para sancionar o
cumprimento de sua medida (como as medidas de proteccedilatildeo de escolarizaccedilatildeo e
profissionalizaccedilatildeo) bem como as oportunidades que lhes satildeo possiacuteveis dentro de sua trajetoacuteria
de vida e condiccedilotildees sociais
139
Assim ao nos aproximarmos do cotidiano dos serviccedilos de medidas socioeducativas em
meio aberto encontramos uma realidade de trabalho na qual os profissionais se deparavam com
diferentes impasses na construccedilatildeo e execuccedilatildeo deste Plano Era recorrente a queixa dos teacutecnicos
sobre uma natildeo adesatildeo dos adolescentes agrave medida ou seja de que estes natildeo cumpriam as metas
determinadas em seu Plano Individual de Atendimento (PIA) pois eles natildeo viam perspectiva
no estudo ou entatildeo porque eram ldquopreguiccedilososrdquo natildeo queriam estudar e nem trabalhar Os
profissionais tambeacutem apontavam que muitas vezes o juiz que aplicava a medida
socioeducativa jaacute determinava metas preacutevias que o adolescente deveria cumprir mas que na
visatildeo deles muitas vezes natildeo fazia sentido para a vida dos adolescentes e para operar uma
transformaccedilatildeo na mesma Os PIAs se transformavam entatildeo em um instrumento burocraacutetico no
qual nem a participaccedilatildeo e nem os interesses dos adolescentes eram contemplados E o natildeo
cumprimento destas demandas e de outras normas institucionais era compreendido como natildeo
aderecircncia agrave medida falta de responsabilidade do adolescente e portanto como um fracasso no
seu processo socioeducativo
Quando iniciamos o trabalho de pesquisa junto aos teacutecnicos sociais de um serviccedilo de
medidas socioeducativas em meio aberto da cidade de Satildeo Paulo eles optaram por discutir o
caso de um adolescente que segundo o seu teacutecnico de referecircncia tinha muito potencial mas natildeo
aderia a nenhum encaminhamento realizado pelos profissionais Jaacute estava sendo atendido haacute
dois anos e eles natildeo percebiam nenhuma mudanccedila Quando iniciamos as discussotildees os
teacutecnicos quase natildeo tinham o que dizer sobre o adolescente afirmando que todas as informaccedilotildees
necessaacuterias estavam em sua pasta Eles entendiam que todos os encaminhamentos realizados
tinham fracassado porque o adolescente era desinteressado e apresentava problemas que
excediam as capacidades de atuaccedilatildeo dos profissionais dentro do campo das medidas
socioeducativas O adolescente natildeo se vinculava aos teacutecnicos comparecendo agrave medida de forma
intermitente natildeo aderia ao Plano proposto mas tambeacutem natildeo descumpria o que era solicitado
Ao longo dos encontros para discussatildeo de seu caso a equipe foi se dando conta da
fragmentaccedilatildeo do trabalho realizado junto ao adolescente e de como sentiam-se hiper-
responsabilizados pelo que ocorria com ele Aleacutem disso havia uma percepccedilatildeo homogeneizada
dos adolescentes atendidos pois eles ldquoeram todos iguais com os mesmos problemasrdquo Na
percepccedilatildeo dos teacutecnicos os atos infracionais eram decorrentes das condiccedilotildees materiais e sociais
precaacuterias da falta de estrutura familiar e da apatia dos adolescentes Entretanto eles natildeo
reconheciam em seu trabalho a possibilidade de operar mudanccedilas nestas condiccedilotildees reduzindo
seu trabalho a incorporaccedilatildeo de limites pelo adolescente
140
Havia um saber sobre os comportamentos e as motivaccedilotildees para seus atos infracionais
que se antecipava ao adolescente que assim muitas vezes natildeo era escutado Assim
encaminhavam o adolescente para escola e oportunidades de trabalho poreacutem sem articular com
as singularidades da histoacuteria do adolescente pois natildeo conseguiam escutaacute-las
Esse cenaacuterio foi sendo modificado na medida em que com as discussotildees de caso os
profissionais puderam entrar mais em contato com a histoacuteria do adolescente no serviccedilo e
passaram a questionar o laccedilo que estabeleciam com ele sua dificuldade de escutaacute-lo pela
anguacutestia que o sofrimento contido em sua histoacuteria lhes causava e como isso afastava o
adolescente produzindo uma manutenccedilatildeo de sua desproteccedilatildeo e portanto uma natildeo garantia de
seus direitos
Em um dos encontros nos propusemos a pensar sobre o PIA do adolescente como ele
tinha sido elaborado e as possibilidades de execuccedilatildeo do mesmo Ao realizar uma apropriaccedilatildeo
coletiva das praacuteticas e um questionamento sobre seus processos de trabalho os teacutecnicos
puderam perceber como a ldquovozrdquo do adolescente natildeo aparecia nos registros e como tambeacutem ldquoa
vozrdquo deles muitas vezes natildeo era ouvida natildeo ldquointeressavardquo ao juiz Eles puderam sustentar a
partir de um trabalho de busca e construccedilatildeo de conhecimento compartilhado um
questionamento das accedilotildees realizadas pelos diversos teacutecnicos junto ao adolescente e tambeacutem
produzir interrogaccedilotildees sobre sua histoacuteria no serviccedilo Aos poucos novas informaccedilotildees foram
surgindo bem como recordaccedilotildees sobre aspectos singulares do adolescente que contribuiacuteram
para pensar novos encaminhamentos e accedilotildees em seu processo socioeducativo Com esta
discussatildeo de caso os profissionais repensaram seus processos de trabalho junto ao adolescente
o qual passou a estar mais presente na instituiccedilatildeo conseguiu retornar agrave escola e foi inserido em
um curso de cabeleireiro
6 O desacolhimento institucional por maioridade
Concebido frequentemente como uma sentenccedila juriacutedica ou como simples medida
administrativa ndash referente agrave oferta de vagas no serviccedilo de acolhimento ndash o desacolhimento por
maioridade tende a ser realizado abruptamente e de modo desarticulado dos recursos e
necessidades dos adolescentes natildeo consistindo portanto em um processo Neste cenaacuterio esse
desacolhimento produz como principais efeitos a perda de direitos baacutesicos dos adolescentes na
medida em que natildeo raras vezes permanecem impedidos de acessar as instituiccedilotildees que os
viabilizaram socialmente Os adolescentes permanecem assim frequentemente expostos a
141
situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia e em alguns casos inclusive de risco de vida Alguns
deles reingressam agraves vezes pouco tempo depois na Proteccedilatildeo Social Especial em funccedilatildeo de
situaccedilotildees de grave desproteccedilatildeo Observamos assim que neste contexto a violecircncia reincide de
modo silencioso contudo natildeo menos mortificante e desta vez perpetrada pelo Estado
(Ferreira 2017)
Apesar dos discursos hegemocircnicos sobre a importacircncia do direito agrave convivecircncia familiar
e comunitaacuteria e sobre a excepcionalidade e a provisoriedade da medida de acolhimento
institucional5 o desacolhimento por maioridade apresenta-se como destino para 338 dos
acolhidos (Assis amp Farias 2013) sendo a terceira causa mais comum de desligamento
Diante da insuficiecircncia de diretrizes concepccedilotildees e estrateacutegias da poliacutetica
socioassistencial que possam nortear os profissionais e tomados por sentimentos de forte
anguacutestia e impotecircncia estes tendem a silenciar os desafios presentes no desacolhimento por
maioridade e seus efeitos destacando-se a (re)produccedilatildeo de situaccedilotildees de desproteccedilatildeo e violecircncia
durante esse processo (Ferreira 2017)
Ali onde encontramos frequentemente silecircncio e anguacutestia procuramos ofertar aos
profissionais envolvidos um espaccedilo para a palavra a partir da constituiccedilatildeo de grupo de caraacuteter
intersetorial composto por profissionais da rede de um territoacuterio do municiacutepio de Satildeo Paulo6
Nos encontros inicias do grupo parte dos profissionais compartilharam certo
estranhamento com o proacuteprio dispositivo coletivo e o objetivo proposto Com exceccedilatildeo dos
profissionais dos SAICAs do poder judiciaacuterio e das Repuacuteblicas Jovens os demais mostravam-
se distantes da temaacutetica do desacolhimento por maioridade tendo dificuldade inclusive de
compreenderem os motivos que justificavam a discussatildeo desse tema em rede Parte dos
5 Art 92 - As entidades que desenvolvam programas de acolhimento familiar ou institucional deveratildeo adotar os
seguintes princiacutepios I- preservaccedilatildeo dos viacutenculos familiares e promoccedilatildeo da reintegraccedilatildeo familiar II- integraccedilatildeo
em famiacutelia substituta quando esgotados os recursos de manutenccedilatildeo na famiacutelia natural ou extensa III- atendimento
personalizado e em pequenos grupos IV- desenvolvimento de atividades em regime de coeducaccedilatildeo V- natildeo
desmembramento de grupos de irmatildeos VI- evitar sempre que possiacutevel a transferecircncia para outras entidades de
crianccedilas e adolescentes abrigados VII- participaccedilatildeo na vida da comunidade local VIII- preparaccedilatildeo gradativa para
o desligamento IX- participaccedilatildeo de pessoas da comunidade no processo educativo (Brasil 1990)
Art 101 - Verificada qualquer das hipoacuteteses previstas no art 98 a autoridade competente poderaacute determinar
dentre outras as seguintes medidas I- encaminhamento aos pais ou responsaacutevel mediante termo de
responsabilidade II- orientaccedilatildeo apoio e acompanhamento temporaacuterios III- matriacutecula e frequecircncia obrigatoacuterias
em estabelecimento oficial de ensino fundamental IV- inclusatildeo em serviccedilos e programas oficiais ou comunitaacuterios
de proteccedilatildeo apoio e promoccedilatildeo da famiacutelia da crianccedila e do adolescente V- requisiccedilatildeo de tratamento meacutedico
psicoloacutegico ou psiquiaacutetrico em regime hospitalar ou ambulatorial VI- inclusatildeo em programa oficial ou
comunitaacuterio de auxiacutelio orientaccedilatildeo e tratamento a alcooacutelatras e toxicocircmanos VII- acolhimento institucional VIII-
inclusatildeo em programa de acolhimento familiar IX- colocaccedilatildeo em famiacutelia substituta (Brasil 1990) 6 Participou da coordenaccedilatildeo do grupo o pesquisador Gabriel Bartolomeu cujo mestrado defendido em 2017 no
Programa de Psicologia Cliacutenica da USP debruccedilou-se sobre o papel do psicanalista na poliacutetica puacuteblica de
Assistecircncia Social
142
profissionais dizia entatildeo que os adolescentes ao completarem a maioridade ldquoseguem sua vidardquo
ldquoacabam resolvendo a vida deles sozinhosrdquo (SAICA 10o Encontro)
As dificuldades presentes no desacolhimento por maioridade eram reduzidas a
caracteriacutesticas individuais dos adolescentes e mais particularmente a supostas falhas deacuteficits e
desvios deles Como apontam as noccedilotildees que circularam no grupo que compreendiam o
adolescente como ldquoimaturordquo ldquoacomodadordquo ldquofracassadordquo ldquofraacutegil psiacutequica ou subjetivamenterdquo
ldquonatildeo- resilienterdquo ldquopouco autocircnomordquo
Os desafios restringiam-se agrave possibilidade do adolescente ldquoaprender a fazer as coisas
sozinhordquo ldquoa manter-se sozinhordquo O grupo parecia considerar o adolescente a partir de um ideal
(ou suposto ideal) distanciando-se de sua singularidade O adolescente deveria assim ldquoestar
pronto aos 18 anosrdquo e o alcance da maioridade representava momento de suposta aquisiccedilatildeo da
ldquomaturidade adultardquo e da condiccedilatildeo de ldquoindiviacuteduordquo daquele que prescinde dos laccedilos com seus
semelhantes e o campo social Nesse momento inicial mostrava-se hegemocircnica a concepccedilatildeo
de adolescecircncia baseada na dicotomia indiviacuteduo e sociedade produzindo a crenccedila de que eacute
possiacutevel ao adolescente autoengendrar-se e criando a ilusatildeo de que ele pode prescindir do
investimento de seus semelhantes e do campo social no qual estaacute inserido
Foi entatildeo escolhido para discussatildeo em grupo e pelo proacuteprio grupo o caso Paulo7
adolescente que parecia pelo menos em um primeiro momento aproximar-se desse ideal de
adolescecircncia Ele completou a maioridade em dezembro de 2015 e foi desacolhido em marccedilo
de 2016 durante a realizaccedilatildeo do grupo Paulo permaneceu institucionalizado por 11 anos
Quando da escolha de seu caso para discussatildeo em grupo Paulo havia completado o
Ensino Meacutedio e diversos cursos profissionalizantes bem como participado de Programa Jovem
Aprendiz e efetivado na empresa A respeito do seu processo de desacolhimento e sobretudo a
partir de uma perspectiva material-financeira os profissionais diretamente envolvidos pareciam
acreditar que o seu desacolhimento ldquodaria muito certordquo Paulo contudo natildeo se reconhecia
nesse ideal de adolescecircncia que forja a maacutexima de que ele deve ldquoestar pronto aos 18 anosrdquo e
solicitava explicitamente acompanhamento das equipes profissionais
Pra me ajudar natildeo sei No maacuteximo me dando apoio no maacuteximo mesmo Como se tivesse
um ombro amigo vamos se dizer assim Esse eacute um apoio que eu vou precisar pra conseguir
colocar minha vida laacute fora pra tirar a minha vida que estaacute aqui no abrigo e conseguir colocar
ela laacute fora Esse seria o apoio que eu ia precisar
O adolescente parecia assim compreender que o desacolhimento requer a continuidade
7 Nome fictiacutecio de modo a preservar a identidade do adolescente participante
143
de um trabalho no territoacuterio na comunidade natildeo coincidindo com sua saiacuteda da instituiccedilatildeo e
natildeo se restringindo a um trabalho intramuros (do SAICA) Paulo parecia contudo solicitar algo
que natildeo consistia pelo menos formalmente em atribuiccedilatildeo dos serviccedilos representados no grupo
de modo que a discussatildeo sobre a continuidade de um trabalho no territoacuterio que implicava o
exerciacutecio de um trabalho articulado e em rede demandou significativas discussotildees em grupo e
representou em alguns momentos divergecircncias e conflitos entre os diversos serviccedilos E a
respeito deste processo de desacolhimento os profissionais mencionaram
O SAICA sempre ajuda esses adolescentes mas essa natildeo eacute responsabilidade do abrigo pois o
processo eacute arquivado na Vara da Infacircncia e Juventude Esses adolescentes acabam resolvendo
a vida deles sozinhos (SAICA Encontro 10)
Por exemplo se hoje tem o desacolhimento de uma adolescente fechadinho redondinho foi
desacolhido por maioridade e tudo e se de repente natildeo deu certo fugiu do roteiro natildeo eacute por
isso que soacute agora eu vou referenciar esse caso no NPJ Porque antes que tudo tava redondinho
natildeo precisava referenciar Existem casos assim tambeacutem (NPJ Entrevista)
Os serviccedilos pareceriam mostrar-se assim fechados em si mesmos fechados em sua
expertise naquilo que jaacute sabiam ou reconheciam saber fazer E o grupo viu-se diante de um
impasse ou os serviccedilos seguem fechados em sua expertise concebendo o desacolhimento por
maioridade como uma sentenccedila juriacutedica ou simples medida administrativa e a despeito das
desproteccedilotildees produzidas ou ao escutar e acolher o sofrimento de Paulo constroem um Projeto
para o adolescente que leve em consideraccedilatildeo a complexidade de sua condiccedilatildeo singular e em
detrimento do ideal de adolescecircncia almejado
A partir da escuta do adolescente e do reconhecimento de seu sofrimento o grupo
passou a ser considerando um dispositivo puacutebico e coletivo do territoacuterio e comprometido com
a construccedilatildeo de um Projeto de desacolhimento para Paulo Esse posicionamento permitiu ao
grupo tomar novos rumos ampliando e adensando as discussotildees coletivas Se notaacutevamos antes
a prevalecircncia do discurso juriacutedico sobre a adolescecircncia as discussotildees em grupo contribuiacuteram
para que este avanccedilasse na compreensatildeo do desacolhimento por maioridade como demanda
referente a um determinado seguimento da populaccedilatildeo de adolescentes em detrimento de
compreendecirc-lo como expressatildeo do fracasso de casos individuais Esse processo de
desacolhimento passou a ser compreendido como demanda coletiva do territoacuterio (mas natildeo
restrita a esse) e portanto como responsabilidade do Estado e objeto de discussatildeo e intervenccedilatildeo
da poliacutetica puacuteblica
Como resultados da pesquisa-intervenccedilatildeo destacamos a realizaccedilatildeo de um trabalho
articulado e em rede a construccedilatildeo de discurso institucional que permitiu incluir esses
adolescentes na poliacutetica socioassistencial e a elaboraccedilatildeo de estrateacutegias de trabalho pactuadas
144
entre os serviccedilos socioassistenciais que permitiram operar o desacolhimento por maioridade de
modo articulado agrave condiccedilatildeo singular do adolescente
Consideraccedilotildees finais
Observamos em nossas praacuteticas profissionais e de pesquisa que a concepccedilatildeo
desenvolvimentista de adolescecircncia permanece largamente naturalizada nos discursos e praacuteticas
dos serviccedilos socioassistenciais em razatildeo sobretudo de sua ampla difusatildeo no campo social Esse
fenocircmeno natildeo eacute casual na medida em que permite circunscrever os conflitos e tensotildees
institucionais e sociopoliacuteticos ao sujeito adolescente individualizando-os (Matheus 2010) Em
detrimento do reconhecimento dessas tensotildees e conflitos estabelece-se uma relaccedilatildeo causal que
os justifica pelas transformaccedilotildees bioloacutegicas sofridas pelo adolescente esvaziando o debate
sobre os contextos institucionais histoacutericos e sociais que os produziram
Ao natildeo reconhecer estas tensotildees e conflitos sociais construiacutedos historicamente e
individualizar os problemas vividos pelos adolescentes os profissionais contribuem para a
desproteccedilatildeo e por vezes para a violaccedilatildeo dos direitos dos adolescentes na medida em que natildeo
basta o encaminhamento do adolescente a um serviccedilo pois antes eacute preciso construir a noccedilatildeo de
pertencimento para que ele possa se sentir no direito de usufruir dos direitos e bens que satildeo
produzidos socialmente e que possa se perceber tambeacutem contribuindo para essa produccedilatildeo
Dada a tradiccedilatildeo autoritaacuteria e tutelar do Paiacutes no campo da proteccedilatildeo da infacircncia e
juventude percebemos que muitas vezes eles satildeo subjugados como objetos de proteccedilatildeo e de
intervenccedilatildeo produzindo uma desqualificaccedilatildeo de sua fala e uma identificaccedilatildeo ao lugar de objeto
na relaccedilatildeo com o outro Portanto a garantia de direitos implica tambeacutem um trabalho junto aos
serviccedilos que asseguram direitos como educaccedilatildeo e sauacutede desconstruindo discursos que
objetificam patologizam e criminalizam os adolescentes
Como efeito essa concepccedilatildeo constitui-se como instrumento poliacutetico que permite aos
atores sociais a perpetuaccedilatildeo de uma sobreimplicaccedilatildeo definida em oposiccedilatildeo agrave anaacutelise de suas
implicaccedilotildees bem como a destituiccedilatildeo do discurso adolescente de sentido e valor restringindo
seus efeitos no campo social em que se inscreve Quando impossibilitados de realizarem a
anaacutelise de suas implicaccedilotildees os diversos atores da rede territorial tendem a tomar em anaacutelise um
uacutenico elemento um uacutenico objeto a saber o proacuteprio adolescente seus comportamentos e atos
frequentemente concebidos a partir da noccedilatildeo de indiviacuteduo que forja o discurso
desenvolvimentista sobre a adolescecircncia Outros elementos natildeo satildeo considerados de modo que
145
os saberes e as praacuteticas dos serviccedilos natildeo satildeo colocados em anaacutelise
Quando os atos e comportamentos dos adolescentes satildeo compreendidas
individualmente e portanto como responsabilidade exclusiva de cada adolescente produz-se
como efeito a cisatildeo e a fragmentaccedilatildeo da compreensatildeo sobre o trabalho realizado junto a ele e
sua famiacutelia Diante da impossibilidade de construir um saber sobre o adolescente considerando
sua singularidade em alguns casos atocircnitos os profissionais seguem testemunhas da
desarticulaccedilatildeo de seu proacuteprio trabalho junto a ele trabalho este realizado arduamente e agraves
vezes durante um longo periacuteodo
Diante da fragmentaccedilatildeo do trabalho das equipes profissionais propomos por meio de
nossas pesquisas-intervenccedilatildeo restituir a dimensatildeo de processualidade que permeia o trabalho
dos profissionais procurando pocircr em anaacutelise suas muacuteltiplas dimensotildees Para tanto faz-se
necessaacuteria a desconstruccedilatildeo dos discursos instituiacutedos sobre a adolescecircncia e sobre os
adolescentes procurando nos manter atentas agrave potecircncia instituinte e agraves forccedilas que impedem sua
emergecircncia Compreendemos que eacute neste embate entre os movimentos instituiacutedo e instituinte
que a construccedilatildeo do conhecimento em sua dimensatildeo coletiva se faz
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Capiacutetulo 8
Jovens da escola Nazareacute Flor experiecircncias de vida no assentamento
Maceioacute litoral do Cearaacute1
Denise Zakabi
Maria Luisa Sandoval Schmidt
Introduccedilatildeo
A Psicologia tem se debruccedilado nos uacuteltimos anos ao estudo das ruralidades no que se
denomina Psicologia Rural Diferentemente de outras aacutereas de conhecimento dentro das
Humanidades a Psicologia tem se dedicado mais fortemente agraves questotildees urbanas Apesar de
ser uma questatildeo pensada desde 1925 com a publicaccedilatildeo de James Williams nos Estados Unidos
de Our rural heritage The social psychology of rural development e em 1973 com a
publicaccedilatildeo de Erich Fromm e Michael Macooby no Meacutexico de Socioanaacutelisis del campesino
mexicano segundo Landini (2015) apenas nos anos 2000 essa questatildeo comeccedilou a ser mais
debatida em congressos e conjuntos de publicaccedilotildees Optou-se por utilizar neste trabalho o
termo Psicologia Rural por ser um termo comumente utilizado na Ameacuterica Latina Espera-se
que este trabalho possa contribuir para a construccedilatildeo deste campo de conhecimento
Segundo Weil (19492001) desde o seacuteculo XIV os camponeses sofrem mais que os
operaacuterios pois estes quando passavam feacuterias nos vilarejos contavam vantagens sobre a
superioridade de se viver na cidade
No seacuteculo XIV os camponeses eram de muito longe os mais desgraccedilados Mas mesmo quando
satildeo materialmente mais felizes - e quando eacute o caso eles natildeo se datildeo muito conta disso porque
os operaacuterios que vecircm passar no vilarejo alguns dias de feacuterias sucumbem agrave tentaccedilatildeo da
fanfarronice - estatildeo sempre atormentados pelo sentimento de que tudo acontece nas cidades e
que eles estatildeo out of it
Evidentemente esse estado de espiacuterito eacute agravado pela instalaccedilatildeo nos vilarejos de TSF
[Telefonia sem fio raacutedio - N T] de cinemas e pela circulaccedilatildeo de jornais como Confidences e
Marie Claire perto dos quais a cocaiacutena eacute um produto sem perigo
Sendo essa a situaccedilatildeo eacute preciso primeiro inventar e aplicar alguma coisa que decirc doravante aos
camponeses o sentimento de que estatildeo in it (Weil 19492001 p 75)
1 Este capiacutetulo eacute baseado na tese de doutorado intitulada ldquoJovens assentados histoacuterias de vida e projetos de futuro
em um assentamento no litoral do Cearaacuterdquo apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo
na aacuterea Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano de autoria de Denise Zakabi orientada pela Profordf Drordf
Maria Luisa Sandoval Schmidt
149
Candido (1975) considerava que a urbanizaccedilatildeo do campo se processaria como um
ldquovasto traumatismo cultural e social em que a fome e a anomia continuaratildeo a rondar o seu
velho conhecidordquo (p 225) caso natildeo houvesse um planejamento racional como a reforma
agraacuteria de forma que possibilitasse ao caipira ter condiccedilotildees de se ajustar a novas instituiccedilotildees
que impotildeem valores teacutecnicas e padrotildees culturais urbanos Assim essa obra apesar de ter sido
publicada no ano de 1975 levanta uma questatildeo brasileira ainda atual e natildeo resolvida que tem
sido discutida e enfrentada pelos movimentos sociais principalmente pelo Movimento Sem-
Terra (MST) e que tem tido avanccedilos e recuos a depender das gestotildees governamentais mais ou
menos abertas ao diaacutelogo
Esta pesquisa visou contribuir com os conhecimentos sobre a Psicologia relacionada agraves
ruralidades a partir das experiecircncias de juventudes em um assentamento que seraacute detalhado
adiante na parte de meacutetodo deste capiacutetulo Buscou ainda fornecer subsiacutedios para se refletir
sobre poliacuteticas puacuteblicas para jovens do campo
A partir dos anos 2000 propulsionadas pela maior presenccedila de jovens dentro de
organizaccedilotildees poliacuteticas e culturais foram criadas poliacuteticas puacuteblicas voltadas para juventude
principalmente entre 2005 e 2015 eacutepoca dos Governos Lula e Dilma segundo Castro (2016)
Essa mudanccedila de paradigma de poliacuteticas puacuteblicas possibilita a concepccedilatildeo de jovens agentes no
processo de construccedilatildeo participativa de poliacuteticas puacuteblicas e natildeo apenas passivos de um Estado
provedor Ao analisar os dez anos dos governos Lula e Dilma Castro (2016) destaca que o
marco legal foi o maior avanccedilo no entanto a institucionalidade e as accedilotildees de poliacuteticas puacuteblicas
natildeo se consolidaram como poliacuteticas de Estado A autora observa que pode haver uma
fragilizaccedilatildeo dessas iniciativas para a juventude pelo ldquogolpe parlamentar que interrompeu o
Governo Dilmardquo (Castro 2016 p 195) E aqui eacute possiacutevel acrescentar que os governos
seguintes Temer e Bolsonaro satildeo marcados por accedilotildees governamentais fascistas que ameaccedilam
criminalizar os movimentos sociais derrubar a democracia e impedir o exerciacutecio dos direitos
humanos
1 Relaccedilotildees de poder
Moradores e moradoras da comunidade estudada podem ser discriminados(as) pela
desvalorizaccedilatildeo que haacute na sociedade sobre quem tem um modo de vida ligado agraves ruralidades
Tambeacutem podem ser discriminados(as) por terem baixa renda pela cor de sua pele negra e por
150
natildeo se enquadrarem nos papeacuteis associados agraves relaccedilotildees de gecircnero Satildeo situaccedilotildees que remetem
ao processo de humilhaccedilatildeo social
O latim ensina que a palavra humilhar (humiliare) eacute formada pelo radical huacutemus e que quer
dizer terra solo humilhar eacute pocircr em terra pocircr para baixo Humilhado eacute quem estaacute no chatildeo
abaixo Soberbo superbus eacute quem estaacute acima brotou por cima fora da terra e por cima dos
outros (Gonccedilalves Filho 2005 p 32)
A humilhaccedilatildeo social eacute fenocircmeno que se caracteriza por sentimentos de anguacutestia que satildeo
sentidos subjetivamente desencadeados pelas relaccedilotildees intersubjetivas e por condiccedilotildees sociais
Relaciona-se com aspectos poliacuteticos sociais e relaccedilotildees de poder desiguais como raccedila etnia
condiccedilotildees sociais gecircnero orientaccedilatildeo sexual e o que eacute especialmente importante para este
estudo relaciona-se com a condiccedilatildeo deter um modo de vida rural ou urbano
Em psicanaacutelise o nome para afetos inominaacuteveis eacute sempre o mesmo anguacutestia o mais
desqualificado dos afetos moeda dos afetos traumaacuteticos O mais abstrato e o mais humano dos
afetos a anguacutestia ndash tal como Laplanche (1987) natildeo cansa de demonstrar ndash representa sempre a
ressonacircncia em noacutes mecaniacutesmica de um enigma intersubjetivo (Gonccedilalves Filho 1998a p 48)
A humilhaccedilatildeo social eacute um fenocircmeno sofrido por um grupo silenciado dentro dos
processos decisoacuterios coletivos impedido de sua accedilatildeo poliacutetica
Como maneira de lidar com situaccedilotildees cotidianas de humilhaccedilatildeo e a anguacutestia advinda
delas as pessoas podem se valer de formas taacuteticas Segundo Certeau (19902013) a taacutetica difere
da estrateacutegia a estrateacutegia eacute a accedilatildeo de quem tem domiacutenio social relaciona-se com as elites ou
usando o termo de Freire (1982) com o opressor representados natildeo por indiviacuteduos e sim por
grupos poliacuteticos e instituiccedilotildees
Chamo de estrateacutegia o caacutelculo (ou a manipulaccedilatildeo) das relaccedilotildees de forccedilas que se torna possiacutevel
a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa um exeacutercito uma
cidade uma instituiccedilatildeo cientiacutefica) pode ser isolado A estrateacutegia postula um lugar suscetiacutevel de
ser circunscrito como algo proacuteprio e ser a base de onde se podem gerir as relaccedilotildees com uma
exterioridade de alvos ou ameaccedilas (os clientes ou os concorrentes os inimigos o campo em
torno da cidade os objetivos e objetos da pesquisa etc) (Certeau 19902013 p 93 itaacutelicos do
original)
A taacutetica se relacionaria ao fraco ou usando novamente termo de Freire (1982) ao
oprimido
a accedilatildeo calculada que eacute determinada pela ausecircncia de um proacuteprio Entatildeo nenhuma delimitaccedilatildeo
de fora lhe fornece a condiccedilatildeo de autonomia A taacutetica natildeo tem por lugar senatildeo o do outro E por
isso deve jogar com o terreno que lhe eacute imposto tal como o organiza a lei de uma forccedila estranha
Aproveita as ldquoocasiotildeesrdquo e delas depende sem base para estocar benefiacutecios aumentar a
propriedade e prever saiacutedas O que ela ganha natildeo se conserva Em suma a taacutetica eacute a arte do
fraco (Certeau 19902013 pp 94-95)
Certeau (19902013) elaborou esses conceitos a partir do pressuposto de que as pessoas
natildeo recebem passivamente informaccedilotildees e experiecircncias sem apropriar-se delas de alguma
151
maneira possiacutevel para sua sobrevivecircncia e usufruto Sua equipe realizou estudos a partir dessa
compreensatildeo por exemplo com pessoas da cultura popular em Pernambuco as quais se
apropriaram da religiosidade trazida pelo branco europeu e veneravam Frei Damiatildeo um santo
a favor das pessoas locais e dos mais pobres Esse autor faz o mesmo questionamento sobre a
suposta passividade dos meios de comunicaccedilatildeo atuais por exemplo como os telespectadores
recebem os conteuacutedos passados pela televisatildeo
Apesar da anaacutelise de Certeau (19902013) remeter agrave relaccedilatildeo entre opressor e oprimido
analisada por Freire (1982) este uacuteltimo ampliando sua esfera considera que esta situaccedilatildeo
somente pode ser superada atraveacutes da libertaccedilatildeo do oprimido por meio de uma transformaccedilatildeo
social a qual passa por um processo de conscientizaccedilatildeo e se concretiza atraveacutes de uma accedilatildeo
Daiacute a necessidade que se impotildee de superar a situaccedilatildeo opressora Isto implica no reconhecimento
criacutetico na ldquorazatildeordquo desta situaccedilatildeo para que atraveacutes de uma accedilatildeo transformadora que incida socircbre
ela se instaure uma outra que possibilite aquela busca do ser mais (Freire 1982 p 35)
Pessoas que moram em contextos rurais podem agir taticamente diante do pouco
investimento de poliacuteticas puacuteblicas voltadas para os(as) pequenos(as) produtores(as) e a
agricultura familiar em busca de frestas nas quais possam se beneficiar dentro de condiccedilotildees
que lhes sejam desfavoraacuteveis No caso particular do assentamento aqui estudado seus(suas)
moradores(as) podem agir taticamente diante de situaccedilotildees sobre as quais tecircm pouco ou nenhum
poder de decisatildeo e planejamento por exemplo as lutas travadas em torno da implantaccedilatildeo da
induacutestria eoacutelica a grilagem de terras a valorizaccedilatildeo da produccedilatildeo em massa o pouco
investimento de governos em relaccedilatildeo agrave infraestrutura local Da mesma maneira em conflitos
internos entre as proacuteprias pessoas do assentamento nos quais haja desigualdade de poder
grupos com menor poder podem agir taticamente e grupos com maior poder estrategicamente
a depender de como a relaccedilatildeo de poder se compotildee por exemplo mulheres em relaccedilatildeo a homens
jovens em relaccedilatildeo a adultos(as) funcionaacuterios(as) em relaccedilatildeo a diretores(as) da escola
diretores(as) da escola em relaccedilatildeo a membros da Secretaria de Educaccedilatildeo Assim como o
processo de humilhaccedilatildeo social eacute realizado por um grupo sobre outro sua forma de superaccedilatildeo
tambeacutem eacute coletiva e aqui se destaca o apoio de movimentos sociais cujas reivindicaccedilotildees
favorecem a conquista de poliacuteticas puacuteblicas para os(as) assentados(as) de maneira geral e para
este assentamento de maneira particular
2 Meacutetodo
152
21 Local de estudo
O assentamento Maceioacute localiza-se na planiacutecie litoracircnea oeste do Cearaacute em Itapipoca
a cerca de 60 quilocircmetros da sede central Sua populaccedilatildeo eacute estimada em mil famiacutelias Essas
comunidades trabalham com agricultura pecuaacuteria pesca e confecccedilatildeo de renda todos de base
familiar (Assentamento Maceioacute 2013) Este assentamento foi formado nos anos 80 quando a
terra foi registrada pelo Instituto Nacional de Colonizaccedilatildeo e Reforma Agraacuteria (Incra)
Durante o periacuteodo em que se conviveu dentro do assentamento quando se conversava
com jovens e velhos(as) estes(as) falavam que moravam na terra haacute vaacuterias geraccedilotildees contaram
que se tornaram serviccedilais de uma famiacutelia que se dizia dona da terra por um processo de
grilagem devido agrave ingenuidade e agrave falta de acesso aos mecanismos da justiccedila Graccedilas agrave
mobilizaccedilatildeo engendrada de trabalhadores(as) locais com apoio das Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs) conquistaram a posiccedilatildeo de assentados(as)
Atualmente os(as) moradores(as) da comunidade continuam ldquona lutardquo contra outros
grupos interessados em usufruir da terra por se tratar de uma comunidade litoracircnea haacute
interesses de grandes empreendedores(as) da agricultura voltada para monocultura como a
produccedilatildeo de camaratildeo e coco da induacutestria do turismo e da induacutestria eoacutelica Haacute divisatildeo entre
os(as) moradores(as) ldquoa favor da lutardquo para manter a terra para uso exclusivo de seus(suas)
moradores(as) locais e aqueles(as) que satildeo ldquocontra a lutardquo e defendem esses(as) grandes
empreendedores(as) pois consideram que trariam benefiacutecios por meio do desenvolvimento da
regiatildeo alguns(mas) inclusive jaacute trabalham para eles(as) em trabalhos subalternos Os(as)
moradores(as) ldquoa favor da lutardquo se mobilizam para impedir o avanccedilo desses(as) grandes
empreendedores(as) Nos anos 90 solicitaram auxiacutelio do MST o qual contribuiu para preservar
a aacuterea de praia para usufruto de seus(suas) moradores(as) atraveacutes da construccedilatildeo de um
acampamento As famiacutelias militantes se revezam para ocupar o acampamento Pela chegada do
MST ter sido tardia em relaccedilatildeo a sua longa histoacuteria de luta satildeo poucos(as) os(as) moradores(as)
que simpatizam ou militam no movimento diferentemente de outros assentamentos
conquistados atraveacutes da luta do proacuteprio MST Mesmo assim com a sua mobilizaccedilatildeo
conseguiram que fosse construiacuteda a escola de ensino meacutedio do campo com recursos federais
de maneira que a comunidade escolhesse o nome e o local em 2010 A escola manteacutem ateacute hoje
o apoio pedagoacutegico do MST
A partir de visitas iniciais a esse assentamento e observando a relaccedilatildeo dos(as) jovens
com os(as) mais velhos(as) a luta o contexto do turismo e do modo de vida rural campesino
e litoracircneo surgiram os seguintes questionamentos quais satildeo as histoacuterias de vida e os projetos
153
de futuro dos(as) jovens desse assentamento e de comunidades ao redor Qual eacute a sua relaccedilatildeo
com as instituiccedilotildees com destaque para a escola onde passam a maior parte do dia Como eacute a
ligaccedilatildeo dos(as) jovens com as lutas engendradas pela comunidade Para responder a essas
questotildees foi realizado um processo de observaccedilatildeo participante que seraacute descrito a seguir
22 Observaccedilatildeo participante
Schmidt (2008) considera o trabalho de campo ldquoum espaccedilo comum entre pesquisadores
e aqueles outros que se deseja conhecer espaccedilo em que uns e outros se tornam mutuamente
inteligiacuteveisrdquo (p 394)
Segundo Silva (2006) a partir dos anos 60 antropoacutelogos(as) passaram a questionar a
condiccedilatildeo de neutralidade do(a) pesquisador(a) e o contexto de pesquisa como a condiccedilatildeo de
classe gecircnero etnia e formas de inserccedilatildeo dos(as) antropoacutelogos(as) Esse movimento teve iniacutecio
quando os paiacuteses dos continentes mais estudados Aacutefrica e Aacutesia passaram a reivindicar
autonomia por meio de movimentos de independecircncia Para este estudo considera-se que essas
reflexotildees podem contribuir para inserccedilatildeo de psicoacutelogos(as) pesquisadores(as) em estudos com
inspiraccedilatildeo etnograacutefica
Realizou-se observaccedilatildeo participante de vivecircncias cotidianas comunitaacuterias e escolares
principalmente na Escola do Campo de Ensino Meacutedio local onde os(as) jovens passam a maior
parte do tempo Tambeacutem foram acompanhados alguns eventos da comunidade como reuniatildeo
no acampamento na cozinha coletiva evento de Paacutescoa Regata e farinhada A Regata eacute uma
corrida entre jangadas e a farinhada a feitura de feacutecula de mandioca chamada tambeacutem de
polvilho doce ou ldquogomardquo como eacute conhecida no Cearaacute Esse processo de observaccedilatildeo
participante durou cerca de quatro anos entre 2013 e 2016
No primeiro ano foram realizadas visitas esporaacutedicas cerca de cinco para escrever o
projeto que deu origem a esta pesquisa Nos dois anos seguintes foram realizadas visitas
semanais para conhecer a comunidade nas quais se passava dois dias por semana vivenciando
o cotidiano da escola e agrave noite convivendo com pessoas da comunidade Jaacute no uacuteltimo ano
foram realizadas outras visitas esporaacutedicas agraves escolas e se participou de alguns eventos
comunitaacuterios Foi mantido um diaacuterio de campo com relatos dessas essas vivecircncias e para
manter o sigilo sobre as falas usam-se aqui nomes fictiacutecios
23 Entrevistas
154
Foram realizadas entrevistas com jovens seis garotas e quatro garotos de diversas
comunidades do assentamento e ao redor da Escola de Ensino Meacutedio do campo Esses(as)
jovens eram estudantes ou funcionaacuterios(as) da escola com os quais se conviveu durante a
observaccedilatildeo participante Buscou-se atraveacutes dessas entrevistas conhecer a diversidade de
vivecircncias dentro do assentamento e em comunidades ao redor e aprofundar temas conversados
informalmente Seguiu-se um roteiro de entrevistas dividido em cinco etapas caracterizaccedilatildeo
dos entrevistados presente passado futuro e reflexotildees sobre melhorias para comunidade
Durante as entrevistas Schmidt (2008) considera fundamental o interesse e o ldquorespeito
genuiacutenos do pesquisador pelos sentidos e significados que seu interlocutor atribui aos
fenocircmenos estudados e da focalizaccedilatildeo do processo de pesquisa como produtor de
conhecimentordquo (p 394) Da convivecircncia entre o(a) entrevistado(a) e o(a) entrevistador(a) pode
surgir um sentimento de gratidatildeo do(a) ouvinte pelo que aprendeu e do(a) narrador(a) por ter
sua experiecircncia valorizada
As entrevistas duraram cerca de uma hora cada Quase todas as entrevistas foram
realizadas em salas na escola do campo exceto a de Hellen que foi realizada em Fortaleza
local onde morava no momento da entrevista
Segue abaixo um quadro (Quadro 1) com o perfil dos(as) jovens entrevistados(as)
Quadro 1 ndash Caracteriacutesticas dos jovens entrevistados
Nome Idade Sexo Ensino Meacutedio Religiatildeo Cor de pele
Beatriz 19 F Terminou Catoacutelica Negra
Francisco 20 M Terminou Catoacutelica Parda
Aldo 17 M Terceiro ano Catoacutelica Morena
Hellen 18 F Terceiro ano Catoacutelica Morena Clara
Loira 19 F Terceiro ano Catoacutelica Morena
Izabel 18 F Terceiro ano Evangeacutelica (Universal) Parda
BMJ 19 M Terminou Catoacutelica Negra
Davi 17 M Segundo ano Catoacutelica Morena
Tereza 16 F Segundo ano Testemunha de Jeovaacute Preta
Adriana 15 F Primeiro ano Catoacutelica Parda
Entre as caracteriacutesticas do Quadro 1 destacam-se Beatriz e BMJ ligado ao MST
uacutenicos(as) entrevistados(as) a se denominarem negros Beatriz corrigiu sua cor de pele na
155
segunda parte da entrevista o que justificou por ter participado de uma formaccedilatildeo na qual a
afirmaccedilatildeo da identidade negra era reforccedilada e as caracteriacutesticas ldquomorenardquo ou ldquopardardquo foram
criticadas
Beatriz Eu fui representar a escola do campo em um seminaacuterio de artes e cultura Aiacute uma mulher
que tava dando a oficina disse que eacute racismo chamar as pessoas de Morena porque a cor de pele
eacute negra natildeo existe uma cor morena A cor eacute negra Aiacute por isso eu sou negra (Trecho de entrevista
com Beatriz)
Esta mudanccedila de opiniatildeo demonstra a importacircncia de formaccedilotildees para construccedilatildeo e
fortalecimento da consciecircncia negra
Apesar de esta pesquisa ter passado por tracircmites burocraacuteticos relacionados ao Comitecirc
de Eacutetica em Pesquisa (Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade
de Satildeo Paulo ndash CAAE 36349614200005561) e terem sido apresentados termos de
assentimento e consentimento para jovens entrevistados(as) conversas informais se tornaram
mais interessantes tanto em termos de conteuacutedo para pesquisa como forma de deixar os(as)
colaboradores(as) mais agrave vontade para aleacutem de ldquoparticipar de uma pesquisardquo poderem se
expressar e se sentir acolhidos(as) em algum sofrimento o que faz problematizar os limites dos
instrumentos instituiacutedos pelos Comitecircs e questionar afinal o que eacute a Eacutetica em Pesquisa
3 Resultados e discussatildeo
Seratildeo apresentados a seguir os principais resultados desta pesquisa que podem
colaborar para a reflexatildeo sobre Psicologia e Poliacuteticas Puacuteblicas relacionadas agrave juventude aos
povos do campo e do litoral e particularmente aos(agraves) jovens assentados(as) A ecircnfase deste
capiacutetulo estaacute nas poliacuteticas relacionadas agrave educaccedilatildeo cultura e moradia que podem ser refletidas
a partir das vivecircncias dos(as) jovens na escola do campo mencionada
Essa escola do campo foi construiacuteda pelo governo estadual com recursos do governo
federal por reivindicaccedilatildeo da comunidade com apoio do MST em 2010 conforme mencionado
no meacutetodo deste capiacutetulo Os proacuteprios membros do assentamento escolheram seu nome Maria
Nazareacute de Souza em homenagem a uma militante da luta pela terra e por direitos sociais
Seus(suas) moradores(as) tiveram prioridade para nela trabalhar e ela se localiza dentro do
proacuteprio assentamento Maceioacute na comunidade Jacareacute distrito de Baleia O MST manteacutem a
coordenaccedilatildeo pedagoacutegica O faacutecil acesso agrave educaccedilatildeo formal eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros
assentamentos e eacute um fator de permanecircncia de jovens no campo Os(as) jovens assentados(as)
156
geralmente tecircm oportunidade apenas de cursar o fundamental pela dificuldade de acesso agraves
escolas de Ensino Meacutedio segundo Castro (2009)
A escola possui doze turmas sendo quatro de cada ano do ensino meacutedio Em 2018
contava com 476 estudantes 31 educadores(as) e 14 funcionaacuterios(as) Apresentava boa
estrutura fiacutesica sala de informaacutetica quadra coberta sala de viacutedeo de grecircmio com raacutedio
instrumentos musicais biblioteca laboratoacuterio de biologia e quiacutemica bem equipado com
microscoacutepios e outros materiais Haacute um espaccedilo de horta que denominaram de ldquomandalardquo em
volta de uma cisterna feita com aacutegua da chuva
A escola apresentava diferenciais em relaccedilatildeo agraves escolas tradicionais a abertura que tem
para discussotildees sobre problemas da atualidade disparadas por membros de Organizaccedilotildees Natildeo
Governamentais (ONGs) movimentos sociais e religiosos ou pelo proacuteprio corpo docente da
escola como por exemplo sobre a Copa do Mundo no Brasil e sobre a produccedilatildeo de energia
eoacutelica Aleacutem disso a escola do campo se diferencia da teacutecnica agriacutecola pela formaccedilatildeo dos(as)
educadores(as) engenheiros(as) agrocircnomos(as) que ministravam a disciplina de Organizaccedilatildeo
do Trabalho e Teacutecnicas Produtivas Nessa disciplina o ensino eacute biodinacircmico em que satildeo
ensinadas teacutecnicas de plantio sem o uso de agrotoacutexico com defensivos caseiros e naturais
atraveacutes do manejo da forma de plantar podar em harmonia com o periacuteodo da lua Durante as
entrevistas alguns(mas) jovens referiram ter levado para suas casas o conhecimento da escola
para seus familiares que trabalhavam na roccedila Havia jovens que eram considerados
ldquobagunceirosrdquo em todas as disciplinas exceto as de praacuteticas do campo quando eram
extremamente soliacutecitos Alguns(mas) estudantes relataram ser as aulas de que mais gostavam
Outro diferencial eacute o incentivo para que o(a) jovem conheccedila a histoacuteria da sua proacutepria
comunidade Foi mencionado nas entrevistas um trabalho solicitado pela escola aos(agraves) jovens
para que entrevistassem os(as) mais velhos(as) para conhecer o motivo do nome da comunidade
onde vivem
Aleacutem dessas singularidades que possibilitavam uma formaccedilatildeo criacutetica politizada e ligada
agrave agroecologia havia uma seacuterie de conflitos interpessoais aos quais se teve acesso durante o
processo de observaccedilatildeo participante
Os membros da escola gostariam que seu ensino fosse diferente daquele das escolas
tradicionais e de instituiccedilotildees capitalistas Havia por exemplo questionamento sobre a
instalaccedilatildeo de uma sirene para avisar sobre o horaacuterio pois remetia ao ritmo industrial alienante
Buscava-se um processo pedagoacutegico que promovesse a autonomia dos estudantes desejo
157
expresso por fotos e frases de Paulo Freire nas paredes da escola Foi possiacutevel o contato com
tensotildees entre autoridade e autoritarismo dentro das diversas instacircncias de poder principalmente
pela dificuldade em estabelecer processos democraacuteticos dentro da escola situaccedilatildeo que remetia
ao sistema capitalista no qual a escola estava inserida e demonstrava os limites da proacutepria
organizaccedilatildeo escolar
Os(as) funcionaacuterios(as) se ressentiam por terem sido membros da luta e atuarem em
funccedilotildees subalternas com menor poder de decisatildeo e menores salaacuterios refletindo a desigualdade
de classes da sociedade Havia em contraposiccedilatildeo uma valorizaccedilatildeo de quem tinha formaccedilatildeo
para ser educador(a) ou membro da coordenaccedilatildeo em sua maioria pessoas que natildeo eram da
comunidade Os(as) funcionaacuterios(as) dividiam-se entre mulheres que cozinhavam lavavam a
louccedila e organizavam o estoque de comida e homens que eram responsaacuteveis pela seguranccedila e
limpeza da escola Uma funcionaacuteria que atuava como porta-voz dos(as) funcionaacuterios(as) falou
que exerciam funccedilotildees subalternas por terem se dedicado mais agrave luta do que agrave proacutepria formaccedilatildeo
diferentemente de alguns membros da comunidade que puderam se tornar educadores(as)
Ouviu-se criacutetica de funcionaacuterios(as) e de educadores(as) quanto ao fato de os(as)
funcionaacuterios(as) soacute serem chamados(as) para debate para resolver problemas em relaccedilatildeo aos(agraves)
estudantes ou aos membros da comunidade Em um dia de observaccedilatildeo particularmente
conflituoso uma funcionaacuteria disse que uma das pesquisadoras autora deste estudo deveria apoacutes
a pesquisa permanecer na escola para reconstruiacute-la
Os(as) educadores(as) por outro lado reclamavam que o serviccedilo dos funcionaacuterios natildeo
era como o de outras escolas estes(as) natildeo serviam cafeacute para os(as) educadores(as) natildeo
limpavam sua sala natildeo cuidavam das hortas da escola
Os(as) funcionaacuterios(as) agem a partir de uma organizaccedilatildeo dos espaccedilos das atividades e
das possibilidades de participaccedilatildeo determinada por educadores(as) e direccedilatildeo Podem agir
taticamente no sentido de Certeau (19902013) como forma de recusa agrave subalternidade por
exemplo deixar de servir cafeacute e limpar as salas de educadores(as)
Membros da coordenaccedilatildeo por sua vez tinham dificuldade em exercer a lideranccedila sendo
chamados em alguns momentos de ldquoautoritaacuteriosrdquo ldquocom dificuldades de ouvirrdquo
Os(as) estudantes demonstravam insatisfaccedilatildeo de maneiras diversas atraveacutes de atos de
vandalismo ou de reivindicaccedilotildees verbais Alguns estudantes tinham o haacutebito de jogar restos de
alimentos ao longo dos bancos da quadra da escola aleacutem de deixar espalhados pratos canecas
e talheres o que exigia que os(as) funcionaacuterios(as) sempre limpassem o local
158
O(a) representante de classe foi descrito(a) por um dos estudantes entrevistados como
um vigiador de ldquobons comportamentosrdquo dentro de sala de aula e natildeo como um representante do
interesse dos estudantes Um ponto que chama a atenccedilatildeo eacute que os jovens considerados
ldquobagunceirosrdquo com quem se conversou tinham um discurso no qual se mostravam bastante
responsaacuteveis em relaccedilatildeo agrave famiacutelia aos projetos de futuro relacionados ao trabalho e uma visatildeo
politizada em relaccedilatildeo ao local e agrave comunidade onde moravam
Ocorreram dois fatos transgressores na escola os quais se destacam aqui O primeiro
aconteceu quando uma comissatildeo de estudantes foi entregar sua lista de demandas aos(agraves)
educadores(as) da escola
Nesse dia de reuniatildeo um educador apresentou uma pauta de reivindicaccedilotildees dos(as)
representantes dos(as) estudantes falando de maneira jocosa perguntavam por que natildeo podiam
acessar o Facebook e a internet e os(as) educadores(as) podiam fazer os dois por que natildeo
podiam ir de calccedila rasgada para escola qual a formaccedilatildeo de alguns educadores(as) citaram a de
Inglecircs que natildeo havia terminado a graduaccedilatildeo e o de Sociologia e Filosofia que era formado em
Geografia Reclamaram que alguns(mas) educadores(as) abordavam estudantes de forma
abusiva Por fim os estudantes reivindicavam participar da proacutexima reuniatildeo de educadores(as)
na semana seguinte (Trecho de diaacuterio de campo)
Nota-se nessas reivindicaccedilotildees o desejo dos(as) estudantes de terem os mesmos direitos
que os(as) educadores(as) por exemplo ao usar a internet e natildeo usar a chamada ldquofardardquo no
Cearaacute ou uniforme escolar em Satildeo Paulo Os(as) educadores(as) da escola tinham uma posiccedilatildeo
duacutebia em relaccedilatildeo a essas iniciativas ofereciam espaccedilo para esses questionamentos ao lerem
suas reivindicaccedilotildees ao mesmo tempo em que as reprimiam fazendo piadas e desvalorizando-
as talvez para natildeo se confrontar com o desconforto causado pelo questionamento de sua
autoridade e por terem de ouvir criacuteticas
O segundo fato transgressor observado foi o de trecircs jovens expulsos da escola por terem
explodido bombas dentro dela Para essa expulsatildeo houve uma reuniatildeo conjunta entre
funcionaacuterios(as) e educadores(as) Para um dos jovens particularmente a expulsatildeo da escola
foi uma decisatildeo difiacutecil para a direccedilatildeo por ter crescido ldquono meio da lutardquo entre assembleias
Descreve-se abaixo conversa com este jovem quando jaacute havia se mudado para a sede do
municiacutepio para dar continuidade aos estudos
Quando se lembrava da experiecircncia de ter explodido a bomba na escola seus olhos brilhavam
e um sorriso se abria em seus laacutebios dizia ser um sentimento de poder e prazer que tinha Mas
se mostrava arrependido pelo que havia acontecido principalmente pela consequecircncia que teve
em sua vida pois natildeo queria ter se afastado do assentamento tampouco ter saiacutedo da escola do
campo Passou a valorizar mais a vida no assentamento depois dessa experiecircncia achava a sede
do municiacutepio barulhenta e reclamava do grande fluxo de carros Considerava que na escola da
sede do municiacutepio faltava luta era voltada somente para o Enem Achava que a escola do campo
propiciava uma formaccedilatildeo que ia aleacutem do curriacuteculo O ato de soltar a bomba na escola dentro
dos banheiros tinha o objetivo de ldquobotar o terrorrdquo Natildeo imaginava que poderia ser expulso por
159
isso poreacutem acha que o lado bom foi ter se afastado dos outros estudantes que considerava
ldquobagunceirosrdquo com quem natildeo tinha mais contato Tinha planos de estudar Agronomia e voltar
agrave escola do campo como professor como tantas pessoas da comunidade almejavam que ele se
tornasse Continuava a frequentar o curso de Residecircncia Agraacuteria que havia iniciado pela escola
do campo cujas aulas ocorrem em vaacuterias escolas do campo do Cearaacute Depois tive oportunidade
de encontraacute-lo durante a Regata do assentamento Disse-me que morava novamente no
assentamento estava fazendo um curso de Agroecologia pela UFC com recursos do Incra
Poreacutem o Incra natildeo financiava mais o curso e estava quase fechando Planejava fazer faculdade
de Matemaacutetica (Trecho de diaacuterio de campo)
A leitura de Winnicott (19631983) pode ajudar a compreender o que aconteceu na
escola haacute uma comunicaccedilatildeo que apesar de barulhenta explosiva eacute silenciosa natildeo fala
diretamente e pode expressar a relaccedilatildeo entre estudantes e escola Assim como a bomba
explodida na escola a imagem metafoacuterica trazida pela funcionaacuteria como porta-voz - de a escola
destruiacuteda poder ser reconstruiacuteda por uma das autoras deste estudo considerada ldquoespecialistardquo -
eacute uma manifestaccedilatildeo que expressa insatisfaccedilotildees com a forma como se configuram as relaccedilotildees
dentro da escola pelas dificuldades para se efetivar como um espaccedilo democraacutetico refletindo a
violecircncia nas relaccedilotildees pelo silenciamento de alguns membros nos processos decisoacuterios
Apesar de o processo de eleiccedilatildeo na escola ser democraacutetico as relaccedilotildees entre membros
da coordenaccedilatildeo educadores(as) funcionaacuterios(as) e estudantes era hierarquizada e os papeacuteis
cristalizados e riacutegidos A desigualdade gerava conflitos pelo ressentimento em natildeo haver
horizontalidade nas relaccedilotildees e valorizaccedilatildeo das diversas opiniotildees A efetividade da construccedilatildeo
de espaccedilos democraacuteticos eacute difiacutecil onde cada um(a) possa ser ouvido(a) e respeitado(a) em
condiccedilotildees iguais de diaacutelogo resguardadas suas diferenccedilas A educaccedilatildeo como praacutetica
libertadora na qual haacute diaacutelogo entre educadores(as) e educandos(as) de maneira que ambos(as)
sejam ouvidos(as) e respeitados(as) em seus anseios e esperanccedilas eacute um desafio a ser superado
de uma tradiccedilatildeo opressora de educaccedilatildeo a qual Freire (1982) nomeou de ldquoeducaccedilatildeo bancaacuteriardquo
Enquanto na praacutetica ldquobancaacuteriardquo da educaccedilatildeo antidialoacutegica por essecircncia por isto natildeo
comunicativa o educador deposita no educando o conteuacutedo programaacutetico da educaccedilatildeo que ele
mesmo elabora ou elaboram para ele na praacutetica problematizadora dialoacutegica por excelecircncia ecircste
conteuacutedo que jamais eacute ldquodepositadordquo se organiza e se constitui na visatildeo do mundo dos
educandos em que se encontram seus ldquotemas geradoresrdquo (Freire 1982 p 120)
A dificuldade de construir espaccedilos democraacuteticos ocorre em outros grupos e instituiccedilotildees
da sociedade que buscam superar relaccedilotildees hieraacuterquicas e almejam a igualdade Eacute um horizonte
a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista dividida em classes sociais Paul Singer
(2002) analisa grupos que realizam atividades de economia solidaacuteria o que soacute eacute possiacutevel
segundo o autor quando as relaccedilotildees natildeo satildeo competitivas O autor analisa as dificuldades
encontradas por esses grupos em se autogerirem e tomarem decisotildees coletivas de forma
cooperativa e democraacutetica por exemplo o esforccedilo adicional dos trabalhadores em se preocupar
160
com as proacuteprias tarefas e os problemas gerais da empresa envolver-se em conflitos participar
de reuniotildees cansativas o que pode levar os soacutecios a preferirem dar um voto de confianccedila agrave
direccedilatildeo para que decida em lugar deles Ainda segundo o autor essa dificuldade pode estar
associada agrave insuficiente formaccedilatildeo democraacutetica dos soacutecios desde a infacircncia e ele cita como
exemplos a famiacutelia patriarcal e a escola Por fim o mesmo autor considera que entre as
empresas solidaacuterias a autogestatildeo se pratica mais autenticamente quando seus(uas) soacutecios(as)
se envolvem em lutas emancipatoacuterias e satildeo militantes sindicais poliacuteticos(as) e religiosos(as)
Castro (2009) menciona a dificuldade de adultos valorizarem as opiniotildees dos(as) jovens
em espaccedilos de decisatildeo em outros assentamentos e eventos sobre juventudes rurais A autora
associa essa desvalorizaccedilatildeo das opiniotildees dos(as) jovens mesmo jovens lideranccedilas reconhecidas
nacionalmente agrave reproduccedilatildeo da hierarquia presente nas relaccedilotildees familiares dentro dos espaccedilos
de decisatildeo e agrave falta de confianccedila nos(as) jovens rurais por sua associaccedilatildeo ao desinteresse pelo
meio rural e agrave atraccedilatildeo pela cidade
Observou-se em momentos decisoacuterios nos quais havia jovens presentes como em
assembleias no acampamento da praia e durante a farinhada no silecircncio destes(as) Os(as)
jovens ficavam apenas observando como se ficarem calados(as) fosse sua forma de respeitar
os(as) adultos que falavam Foi uma diferenccedila apenas geracional observada natildeo relativa ao
gecircnero porque havia participaccedilatildeo tanto de homens como de mulheres lideranccedilas locais
diferente do que foi observado em outros assentamentos do Sertatildeo Cearense nos quais a
predominacircncia da participaccedilatildeo era masculina (Pereira Cavalcante amp Oliveira 2014)
Os(as) jovens deste estudo natildeo participam de formas mais tradicionais de luta das quais
os mais velhos participam e se ressentem da pouca participaccedilatildeo dos(as) jovens como as
assembleias realizadas no acampamento e em outros espaccedilos comunitaacuterios mas satildeo
mobilizados(as) e mobilizadores(as) pelo teatro construiacutedo juntamente com membros de uma
congregaccedilatildeo religiosa catoacutelica e pelos atos puacuteblicos como as audiecircncias nessas uacuteltimas
principalmente quando mobilizados(as) pela escola do campo Aleacutem disso outro espaccedilo de
mobilizaccedilatildeo que pode ter discussotildees poliacuteticas referentes a problemas comunitaacuterios eacute o grupo
de jovens das igrejas
Destacam-se na fala mencionada do jovem expulso da escola e na de outras e outros
jovens com quem se teve oportunidade de conversar os diferenciais mencionados desta escola
a oportunidade para um ensino refletido com ldquolutardquo e poliacutetica de forma que os(as) jovens e
seus(suas) funcionaacuterios(as) problematizem a sociedade e a proacutepria metodologia da escola
161
Contraposta a relaccedilotildees mercantilizadas encontram-se relaccedilotildees de amizade trocas
muacutetuas por generosidade e hospitalidade as quais satildeo necessaacuterias para sobrevivecircncia do grupo
Comumente moradores(as) do assentamento falavam que laacute era um local em que jamais faltaria
comida e hospedagem do que sentiam muito orgulho contrastado ao que observavam nas
grandes cidades em que essa camaradagem natildeo acontecia
O que eacute associado ao campo pode ser valorizado ou desvalorizado de acordo com os
encontros com pessoas que podem potencializar ou despotencializar esse reconhecimento
Em uma das visitas agrave escola estudantes e educadores(as) se preparavam para Mostra de Artes
em comemoraccedilatildeo ao aniversaacuterio de 25 anos do MST no Cearaacute para a qual vi a preparaccedilatildeo
dos(as) estudantes com acompanhamento dos(as) educadores(as) Observei as tentativas de
negociaccedilatildeo de educadores(as) em relaccedilatildeo a muacutesicas a serem danccediladas pelos(as) jovens uma
muacutesica de axeacute com apelo eroacutetico e outra muacutesica gospel ambas sem ligaccedilatildeo com o tema da
Mostra Alguns(mas) estudantes se dedicaram a danccedilar Luiz Gonzaga o que se aproximava
mais da regiatildeo embora natildeo fosse uma muacutesica do local e eu jaacute havia tido oportunidade de
observar apresentaccedilotildees de coco muacutesica enraizada por esse povo litoracircneo cujo ritmo parece
estar dentro de seus corpos danccedilantes desde crianccedilas Tambeacutem natildeo houve recitaccedilatildeo de cordeacuteis
que escrevem com tanta facilidade como quando vi durante apresentaccedilatildeo de seminaacuterio de
estudantes sobre temas que chamam de transversais no caso temas da atualidade relevantes
para a sociedade por exemplo gravidez natildeo-planejada prevenccedilatildeo agraves IST Copa do Mundo e
energia eoacutelica A educadora Clarice me chamou a atenccedilatildeo para umas pinturas realizadas por
estudantes as quais eram identificadas com seus nomes e seacuteries e tambeacutem para um conjunto de
camisetas com a mensagem ldquoMST 25 anosrdquo bordadas agrave renda com o rendado tiacutepico da regiatildeo
as quais natildeo estavam assinadas como se o bordado natildeo fosse elevado agrave arte digno de ser
reconhecidamente identificado como uma pintura (Trecho de diaacuterio de campo)
O que eacute manifestaccedilatildeo de arte local a muacutesica o cordel o bordado por ser tatildeo comum
para seu cotidiano e realizada com tanta naturalidade natildeo foi valorizada nesse momento
Atribui-se essa desvalorizaccedilatildeo agrave humilhaccedilatildeo social ao que eacute reproduzido e valorizado pela
miacutedia e aos valores eurocecircntricos associados aos grandes centros urbanos caracterizados por
uma elite branca Essa desvalorizaccedilatildeo de um aspecto cultural intriacutenseco da comunidade indica
que o sentimento de humilhaccedilatildeo social eacute vivenciado e reproduzido dentro da proacutepria
comunidade o que denota a importacircncia da escola do campo para problematizar essa questatildeo
Um jovem foi avisar para uma educadora que precisaria se ausentar por participar da farinhada
processo de produzir farinha de tapioca a partir da mandioca em um tom de voz inaudiacutevel tanto
para ela como para mim Esta educadora entatildeo me explicou que os jovens quando entram na
escola sentem-se envergonhados em participar da farinhada mas ela me garantia ao terceiro
ano jaacute se sentiam orgulhosos De fato alguns(mas) jovens com quem conversei do segundo e
terceiro ano realmente se sentiam orgulhosos(as) por fazerem parte do assentamento e
sonhavam em continuar laacute na terra onde nasceram (Trecho de diaacuterio de campo)
Foram observadas diferenccedilas entre os(as) jovens entrevistados(as) das comunidades que
pertencem ao assentamento e da comunidade fora do assentamento Os terrenos das
comunidades do assentamento foram adquiridos por meio da mobilizaccedilatildeo da comunidade jaacute
162
residente e trabalhadora no local motivada pelas Comunidades Eclesiais de Base conforme jaacute
mencionado Os terrenos fora do assentamento foram adquiridos atraveacutes de compra Os(as)
jovens da comunidade do assentamento relatam maior uniatildeo das pessoas da comunidade em
casos de necessidade Um contraste ilustrativo dessa mobilizaccedilatildeo estaacute nas descriccedilotildees sobre as
farinhadas e os mutirotildees de Francisco do assentamento e de Aldo de uma comunidade vizinha
com diferenccedilas entre mobilizaccedilotildees comunitaacuterias conjuntas por trocas de serviccedilos e por serviccedilo
prestado por dinheiro
Francisco Cada famiacutelia tem a sua [farinhada] mas existe o haacutebito de Chama ldquotroca de diardquo
Quando eacute a farinhada da minha famiacutelia aquelas pessoas vecircm trabalhar e quando eacute a farinhada
de uma pessoa que trabalha na minha farinhada aiacute a pessoa da minha famiacutelia vai ajudar entatildeo
sempre haacute essa troca Algumas outras atividades por exemplo trabalhos da comunidade
algum mutiratildeo que deve ser feito na comunidade Foi realizada uma barragem no riacho entatildeo
foi o assunto trabalhado tambeacutem por um grupo chamado Terccedilo dos Homens e pelo conselho
tambeacutem (Trecho de entrevista com Francisco)
Aldo Por exemplo eu tenho uma roccedila aiacute eu quero fazer a farinhada aiacute eu chamo as pessoas
que eu quero pra trabalhar pra mim Eu posso chamar quem eu quiser soacute que paga neacute (Trecho
de entrevista com Aldo)
Os(as) jovens do assentamento tambeacutem relataram maior mobilizaccedilatildeo contra a entrada
de grandes empresas de turismo e de outros empreendimentos quando natildeo haacute gestatildeo
comunitaacuteria como as induacutestrias eoacutelicas diferentemente de comunidades fora do assentamento
nas quais haacute a entrada das eoacutelicas e cujos terrenos tecircm sido vendidos para construccedilatildeo de casas
e hoteacuteis para turismo havendo grande fluxo de turistas durante as altas temporadas Aldo
jovem morador de uma comunidade vizinha que estaacute sofrendo o impacto de uma recente
implantaccedilatildeo da induacutestria eoacutelica considera que as consequecircncias dessa implantaccedilatildeo podem
ldquodestruirrdquo seu sonho de ser agricultor Segundo Bosi (2003) a separaccedilatildeo entre trabalho e
relaccedilotildees comunitaacuterias pode ser uma causa de desenraizamento ldquoEntre os mais fortes motivos
desenraizadores estaacute a separaccedilatildeo entre a formaccedilatildeo pessoal biograacutefica mesmo e a natureza da
tarefa entre a vida no trabalho e a vida familiar de vizinhanccedila e cidadaniardquo (Bosi 2003 p
181)
Candido (1975) observou essas formas de solidariedade manifestas atraveacutes do trabalho
coletivo como o mutiratildeo para atividades agriacutecolas as quais eram essenciais para se conseguir
realizar a colheita e caracterizava o modo de vida do paulista caipira permeado pelo aspecto
moral religioso pela satisfaccedilatildeo em ajudar ao proacuteximo acompanhado de refeiccedilotildees e finalizado
com uma festa para alegrar o cotidiano Esse autor concluiu que os pequenos lavradores embora
arrastados para o acircmbito da economia capitalista e para a esfera da influecircncia das cidades
procuram ajustar-se ao que o autor chama de ldquomiacutenimo inevitaacutevel de civilizaccedilatildeordquo (p 218) ldquoA
163
conservaccedilatildeo de traccedilos aparece pois como fator de defesa grupal e cultural representando o
aspecto de permanecircncia A incorporaccedilatildeo dos novos traccedilos representa a mudanccedilardquo (p 219) Aqui
nesta pesquisa se poderia pensar que esses traccedilos de permanecircncia de ruralidades podem
contribuir para o enraizamento e para o sentimento de pertencimento que os(as) jovens tecircm pela
comunidade Segundo Weil (19492001) o enraizamento eacute uma das necessidades mais
importantes do ser humano
O enraizamento eacute talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana
Um ser humano tem raiz por sua participaccedilatildeo real ativa e natural da existecircncia de uma
coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos de futuro
Participaccedilatildeo natural ou seja ocasionada automaticamente pelo lugar nascimento profissatildeo
meio (Weil 19492001 p 43)
Destaca-se a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico atraveacutes de encontros na escola do
campo e eventos dos quais os(as) jovens participam Os(as) colaboradores(as) Aldo e Izabel
moram na mesma comunidade vizinha ao assentamento a qual natildeo tem uniatildeo comunitaacuteria
tendo sentimentos isolados familiares de raiva impotecircncia e revolta contra a implantaccedilatildeo da
induacutestria eoacutelica A segregaccedilatildeo comunitaacuteria ameaccedila os modos de vida tradicionais e no caso a
possibilidade de continuar a morar no local como fala Izabel Seus moradores tecircm buscado
superar o isolamento ao se inteirar sobre as respostas que outras comunidades tecircm tomado de
forma a atuar com apoio coletivo por exemplo atraveacutes de audiecircncias puacuteblicas e seminaacuterios
promovidos por uma ONG que atua na regiatildeo visando agrave conscientizaccedilatildeo sobre as ameaccedilas aos
povos do mar e buscando informaccedilotildees na escola do campo e de grupos religiosos
Nas vivecircncias dos(as) jovens da escola do campo a continuidade dos estudos apoacutes o
Ensino Meacutedio foi considerada importante possivelmente pelo incentivo da proacutepria escola Um
dificultador para continuidade dos estudos mencionado foi ter de morar em outra cidade
Ao ocupar um lugar instaacutevel de poder a partir do qual seja possiacutevel planejar e controlar
o futuro uma das colaboradoras Beatriz age taticamente pensando somente no presente sem
pensar no futuro conforme definiccedilatildeo de taacutetica de Certeau (19902013)
Mesmo quando pensam em se formar em outras cidades e atuar em aacutereas diferentes de
seus pais pensam no retorno e na possiacutevel contribuiccedilatildeo que poderatildeo trazer para sua
comunidade a qual consideram extensatildeo de sua casa no sentido que Gonccedilalves Filho (1998b)
traz
A casa humana recolhe uma coleccedilatildeo de objetos que nos ligam ao passado da famiacutelia satildeo
retratos panos livros algum adorno moacuteveis muitas vezes recebidos dos pais dos avoacutes objetos
que carregam histoacuterias e fazem com que o morador se enraize mais aleacutem da natureza tambeacutem
no mundo dos seus ancestrais ligando o homem a outros homens que o precederam e que o
164
abrigaram Estar em casa eacute estar nos outros eacute estar em si mesmo estando nos outros (Gonccedilalves
Filho 1998b p 3)
Segundo revisatildeo bibliograacutefica realizada por Castro (2016) pesquisas recentes tinham
evidenciado movimentos de permanecircncia e de migraccedilatildeo de retorno de jovens do campo
brasileiro o que foi associado agraves poliacuteticas puacuteblicas criadas a partir dos anos 2000 A migraccedilatildeo
pode ser compreendida como circulaccedilatildeo fenocircmeno complexo ancorado em diversos motivos
como dar continuidade aos estudos atuar em trabalhos temporaacuterios e aproveitar formas de lazer
Nesta pesquisa foi perguntado aos(agraves) jovens sobre o que imaginavam que poderia
melhorar dentro da comunidade Foi mencionada a estrutura dos pequenos negoacutecios locais de
forma a aumentar os ganhos financeiros e gerar mais empregos Por exemplo uma das jovens
colaboradoras Beatriz mencionou a necessidade de haver condiccedilotildees estruturais para que se
possa realizar a pesca artesanal e o plantio do caju em relaccedilatildeo direta com o consumidor
Consideraccedilotildees finais
A maioria dos(as) jovens com os quais se conviveu apresenta forte ligaccedilatildeo com o local
onde mora pela convivecircncia com seus familiares vizinhos(as) e a organizaccedilatildeo do cotidiano
permeada pela religiosidade Mantecircm haacutebitos ligados agraves ruralidades como plantaccedilotildees pesca e
a farinhada Os(as) jovens querem se manter no local onde estatildeo e quando se imaginam no
futuro almejam ter outros modos de vida trabalhar em profissotildees diferentes dos seus pais ter
mais estudos e maior renda
Essa ligaccedilatildeo com o local onde moram e com seus(suas) moradores(as) natildeo se realiza
sem contradiccedilotildees e tensionamentos entre geraccedilotildees principalmente pelas relaccedilotildees de poder
estabelecidas Na escola do campo particularmente essas relaccedilotildees eram demonstradas pelos
conflitos entre o corpo docente membros da direccedilatildeo funcionaacuterios(as) e estudantes os quais
expressavam as limitaccedilotildees da organizaccedilatildeo hieraacuterquica escolar Trata-se de relaccedilotildees complexas
ser morador(a) e militante da comunidade e exercer funccedilotildees subalternas dentro da escola
quando se lutou tanto para natildeo ser subalterno(a) Haacute dificuldades para que todos(as) tenham
direito agrave expressatildeo de forma igual de maneira democraacutetica em uma educaccedilatildeo libertadora na
qual cada um possa ser respeitado em sua singularidade dentro de uma sociedade de classes
na qual quem tem maior possibilidade de formaccedilatildeo eacute mais valorizado e os(as) jovens satildeo pouco
ouvidos(as) em seus anseios Observa-se que essa dificuldade para construccedilatildeo de espaccedilos
democraacuteticos tambeacutem foi analisada por Paul Singer (2002) em grupos que realizam atividades
165
de economia solidaacuteria Eacute um horizonte a ser buscado dentro de uma sociedade capitalista
dividida em classes sociais
Destaca-se que a existecircncia dessa escola dentro do assentamento eacute fruto de uma luta da
proacutepria comunidade juntamente com o MST o que favorece que seus jovens possam manter
os estudos ateacute o Ensino Meacutedio o que eacute um diferencial em relaccedilatildeo a outros assentamentos Sua
formaccedilatildeo possibilita a construccedilatildeo de um pensamento criacutetico em relaccedilatildeo agrave sociedade atraveacutes de
problematizaccedilotildees de temas poliacuteticos atuais e a valorizaccedilatildeo de aspectos da sua proacutepria cultura
como conhecer o histoacuterico da comunidade realizar bordados e cordeacuteis Esses aspectos da
cultura costumam ser desvalorizados pelos(as) proacuteprios(as) jovens o que expressa a situaccedilatildeo
de humilhaccedilatildeo social de quem mora no campo e nas aacutereas marginalizadas em relaccedilatildeo aos
grandes centros localizados principalmente no eixo Rio-Satildeo Paulo Essa escola do campo
portanto tem possibilitado a construccedilatildeo de respostas coletivas agrave situaccedilatildeo de humilhaccedilatildeo social
sofrida pelos jovens ampliando seus horizontes para aleacutem dos padrotildees hegemocircnicos de uma
elite branca e urbana
Assim finaliza-se este capiacutetulo registrando-se a importacircncia de poliacuteticas puacuteblicas
voltadas para as pessoas do campo particularmente a juventude no caso especiacutefico deste
assentamento para enriquecer sua formaccedilatildeo profissional e poliacutetica essas poliacuteticas favoreceram
que jovens almejassem cursar o ensino superior de maneira a contribuir com seus
conhecimentos para o assentamento Aleacutem disso analisando-se as restriccedilotildees existentes
destaca-se a necessidade de que haja maior investimento puacuteblico para que os(as) jovens possam
ter garantidos direitos baacutesicos como sauacutede e um trabalho com dignidade
Esta pesquisa apresentou possibilidades de uma comunidade com uma organizaccedilatildeo
coletiva que diante dos conflitos e dificuldades enfrentados luta para superar a desigualdade e
as injusticcedilas inerentes ao capitalismo Essa comunidade resistiu agrave implantaccedilatildeo da induacutestria de
energia eoacutelica construiu a Escola de Ensino Meacutedio do campo Nazareacute Flor com recursos do
governo federal dentro do proacuteprio assentamento com profissionais preferencialmente da
proacutepria comunidade Essas conquistas satildeo inspiraccedilatildeo para todas e todos noacutes especialmente
neste momento poliacutetico difiacutecil para o paiacutes
Vejam bem caros ouvintes
Como termino a histoacuteria
Natildeo haacute conquista sem luta
Natildeo haacute luta sem vitoacuteria
Natildeo haacute guerra sem batalha
Agraves vezes a mente falha
Mas guarde isso na memoacuteria
Maria da Paz militante do Assentamento Maceioacute (Santos [sd])
166
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168
Capiacutetulo 9
O Programa Mais Educaccedilatildeo e a produccedilatildeo de uma subjetividade aprendiz
Patriacutecia Peixoto Zapletal
Adriana Marcondes Machado
Introduccedilatildeo
A relaccedilatildeo entre psicologia e educaccedilatildeo tem tomado o cotidiano escolar como objeto de
anaacutelise e de praacutetica dos psicoacutelogos Os discursos das poliacuteticas puacuteblicas constitutivos desse
cotidiano tendem a efeitos de naturalizaccedilatildeo sobre os atores do mundo escolar quando
desconsideram as formas de governo presentes nos processos de subjetivaccedilatildeo
Este texto1 daacute relevo agraves concepccedilotildees presentes na formulaccedilatildeo do Programa Mais
Educaccedilatildeo (Brasil 2010) com vistas a interrogar o lugar de uma estrateacutegia recente de ampliaccedilatildeo
da jornada das escolas puacuteblicas brasileiras Partimos da premissa trazida por autores inscritos
no campo dos estudos foucaultianos em educaccedilatildeo de que haveria um espraiamento de
processos de pedagogizaccedilatildeo da vida na contemporaneidade (Aquino 2013 Ball 2013 Simons
amp Masschelein 2011) que se referem a uma forma de gestatildeo social apoiada no discurso de
defesa de uma aprendizagem ininterrupta que instiga um intenso autogoverno dos cidadatildeos
Tomando como alvo analiacutetico o Programa Mais Educaccedilatildeo ndash uma difundida estrateacutegia
indutora de ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos estudantes das escolas puacuteblicas brasileiras
seja nas escolas seja em atividades escolares promovida pelo Governo Federal de 2007 a 2016
ndash este trabalho problematiza discursos referentes a esse Programa A partir do aporte teoacuterico
de Foucault (2004 2008a 2008b) especialmente de um de seus operadores analiacuteticos ndash a
governamentalidade ndash compreende-se que governar se refere a um continuum que se estende
do governo poliacutetico ateacute as formas de autorregulaccedilatildeo Faz parte da estrateacutegia neoliberal de
governo o desenvolvimento de teacutecnicas indiretas para controlar os indiviacuteduos tornando-os
responsaacuteveis pelos riscos sociais Por meio da anaacutelise dos documentos oficiais que materializam
e regulamentam o Programa Mais Educaccedilatildeo e de entrevistas com equipes teacutecnicas responsaacuteveis
1 Essa discussatildeo estaacute presente na dissertaccedilatildeo de mestrado de Patriacutecia Peixoto Zapletal intitulada Ampliaccedilatildeo da
jornada escolar mais aprendizagem de quecirc defendida em fevereiro de 2017 na Faculdade de Educaccedilatildeo da
Universidade de Satildeo Paulo sob orientaccedilatildeo da profa Dra Adriana Marcondes Machado (professora do Instituto
de Psicologia da USP Departamento da Aprendizagem Desenvolvimento e Personalidade ndash PSA)
169
pela sua implantaccedilatildeo tanto no niacutevel do municiacutepio e do estado de Satildeo Paulo quanto no federal
este texto tem como objetivo investigar como tal forma de governo estaacute presente no Programa
Percebe-se que a noccedilatildeo de governamentalidade tomada neste trabalho como ferramenta
analiacutetica auxilia na compreensatildeo da racionalidade governamentalizadora operada por meio de
praacuteticas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar dos alunos da rede puacuteblica brasileira como o Programa
Mais Educaccedilatildeo campo de investigaccedilatildeo deste estudo
1 O cenaacuterio do alargamento das funccedilotildees da instituiccedilatildeo escolar na contemporaneidade
Amplas reformas educacionais foram realizadas pelo governo brasileiro a partir dos
anos 1990 Elas abrangeram distintas dimensotildees do sistema de ensino legislaccedilatildeo
planejamento gestatildeo educacional financiamento curriacuteculo e formaccedilatildeo de professores (Noma
2010) e foram influenciadas por agecircncias multilaterais como Banco Mundial (BM)
Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura (Unesco) Organizaccedilatildeo
para a Cooperaccedilatildeo e Desenvolvimento Econocircmico (OCDE) Programa das Naccedilotildees Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD) entre outras (Shiroma Campos amp Garcia 2005) Essas reformas
fariam parte de um movimento internacional que segundo Noma (2010) propotildee a diminuiccedilatildeo
das desigualdades sociais nacionais e internacionais pelas vias educacionais
Os inuacutemeros projetos elaborados pelas mais variadas instituiccedilotildees organizaccedilotildees natildeo
governamentais secretarias de governo e sociedade civil de que a escola puacuteblica brasileira tem
sido alvo na atualidade parecem destacar o fortalecimento dessa instituiccedilatildeo como um loacutecus
privilegiado para o gerenciamento do risco social (Klaus 2009)
Os estudos de Saraiva (2013) tambeacutem apontam nessa direccedilatildeo ao mostrar que a
Educaccedilatildeo Baacutesica no Brasil vem sendo convocada a participar dos novos modos de lidar com o
risco demandados pela racionalidade poliacutetica atual A autora afirma que as teacutecnicas de
gerenciamento de riscos das populaccedilotildees vecircm sendo deslocadas para o gerenciamento privado
de risco que traz o imperativo de que cada um cuide de si e a responsabilizaccedilatildeo dos indiviacuteduos
por todo tipo de risco Nessa matriz de inteligibilidade as intervenccedilotildees deixariam de ser sobre
os indiviacuteduos ou sobre o meio onde a populaccedilatildeo vive mas sobre as subjetividades Dessa forma
os esforccedilos seriam concentrados ldquonatildeo em accedilotildees de proteccedilatildeo da populaccedilatildeo mas em accedilotildees
educacionais utilizando para isso principalmente a miacutedia e as escolasrdquo (Saraiva 2013 p 171
grifos nossos)
170
As escolas estariam sendo instadas a alargarem suas funccedilotildees no sentido de assumirem a
tarefa de desenvolver competecircncias para tornar os alunos gestores privados dos seus riscos e
eventualmente dos riscos de sua famiacutelia e comunidade Para a autora isso pode ser evidenciado
na ecircnfase que vem sendo dada ao papel da escola para trabalhar no curriacuteculo temaacuteticas como
ldquoeducaccedilatildeo sexual educaccedilatildeo alimentar educaccedilatildeo em sauacutede educaccedilatildeo para o
empreendedorismo educaccedilatildeo financeira educaccedilatildeo para o tracircnsitordquo (Saraiva 2013 p 171)
Os novos contornos que a instituiccedilatildeo escola vem assumindo tambeacutem podem ser
constatados a partir do acompanhamento nos uacuteltimos anos dos deslocamentos dos discursos
sobre poliacutetica educacional presentes em publicaccedilotildees de organismos nacionais e internacionais
Shiroma Campos e Garcia (2005) ressaltam que a literatura derivada de pesquisas comparativas
sobre poliacutetica educacional indica uma crescente hegemonia discursiva das poliacuteticas
educacionais em niacutevel mundial Os autores a partir do acompanhamento sistemaacutetico de
publicaccedilotildees nacionais e internacionais nos uacuteltimos anos evidenciaram que no iniacutecio dos anos
1990 predominavam nos discursos de poliacutetica educacional argumentos a favor da ldquoqualidade
competitividade produtividade eficiecircncia e eficaacuteciardquo (Shiroma et al 2005 p 428) Esses
argumentos teriam sido deslocados para uma face mais humanitaacuteria evidenciada numa
crescente ecircnfase sobre os conceitos de ldquojusticcedila equidade coesatildeo social inclusatildeo
empowerment oportunidade e seguranccedilardquo (Shiroma et al 2005 p 428)
Vocaacutebulos como monitorar gerenciar e avaliar tiacutepicos do mundo dos negoacutecios e cada
vez mais presentes nos documentos oficiais das reformas educacionais tambeacutem evidenciam
para os autores que paulatinamente os problemas educacionais passam a ser explicitados
como problemas de gestatildeo da educaccedilatildeo ou seja de maacute administraccedilatildeo (Shiroma et al 2005)
Essa forma de compreender os problemas educacionais como problemas de
gerenciamento tambeacutem parece contribuir para que a ampliaccedilatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees
da escola ocorra Eacute frequente no cenaacuterio educacional brasileiro os governos enfatizarem a
necessidade de uma nova gestatildeo escolar ou seja uma gestatildeo compartilhada indicando a
importacircncia da participaccedilatildeo da comunidade Essa nova forma de gerenciamento compartilhado
da educaccedilatildeo a partir da participaccedilatildeo da sociedade civil faz emergir variados projetos que
teriam a escola como um local oacutetimo para pocirc-los em praacutetica decorrendo daiacute como tambeacutem
percebe Klaus (2009) um alargamento das funccedilotildees dessa instituiccedilatildeo
Na deacutecada de 1990 assistiu-se no Brasil conforme relembra Krawczyk (2014) agrave
pressatildeo de organismos internacionais e do Executivo nacional para que o empresariado
brasileiro assumisse poliacuteticas sociais a fim de se responsabilizar pelo bem-estar da populaccedilatildeo
171
entre essas poliacuteticas o Programa Comunidade Solidaacuteria presidido pela entatildeo primeira-dama
Ruth Cardoso funcionou como ponta de lanccedila Esse programa teve como objetivo otimizar o
gerenciamento de um conjunto de programas sociais por meio da participaccedilatildeo da sociedade
civil no combate agrave pobreza Assim conforme assinala Krawczyk (2014) figuras juriacutedicas da
sociedade civil na prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos comeccedilam a surgir e por meio de parcerias
complementam o orccedilamento puacuteblico
Variados programas e projetos educacionais atualmente elaborados pelos governos
municipal estadual e federal brasileiros tambeacutem tecircm sido operacionalizados por meio de
parcerias com organizaccedilotildees natildeo governamentais (ONGs) instituiccedilotildees da sociedade civil e
empresas evidenciando a desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo e o deslocamento da ecircnfase de uma
dimensatildeo puacuteblica estatal para a dimensatildeo puacuteblica natildeo estatal
Nota-se juntamente com Popkewitz (2001) o quanto sedutora a noccedilatildeo de parceria tem
se tornado e que esta conforme explicita o autor seria um dos temas redentores da
contemporaneidade Essa noccedilatildeo aparece como uma forma de renovaccedilatildeo do bem-estar social por
meio de accedilotildees civis em que os que estariam diretamente envolvidos com problemas locais
poderiam agir efetivamente No entanto Popkewitz (2001) ressalta que a ideia de parceria e de
participaccedilatildeo da comunidade natildeo pode ser pensada como puro princiacutepio abstrato apartado das
praacuteticas sociais Os discursos presentes nas reformas educacionais atuais que clamam por
mudanccedilas na gestatildeo escolar e primam por uma nova democratizaccedilatildeo da escola estariam
articulados com praacuteticas que produzem sujeitos com habilidades particulares pragmaacuteticos
empreendedores reflexivos autocircnomos e aprendizes permanentes que buscam realizar a si
mesmos por meio de suas escolhas
A partir do exposto evidencia-se que as recentes reconfiguraccedilotildees pelas quais a escola
puacuteblica brasileira vem passando a partir de alguns fenocircmenos interligados tais como loacutegica da
empresa desestatizaccedilatildeo da educaccedilatildeo parcerias e privatizaccedilatildeo do risco social acontecem num
momento histoacuterico em que se opera nos termos de Foucault (2008a 2008b) o neoliberalismo
como racionalidade governamental Essa forma de liberalismo vem sendo ressignificada desde
a deacutecada de 1980 e apresenta mudanccedilas em relaccedilatildeo ao liberalismo concebido no seacuteculo XVIII
(Saraiva amp Veiga-Neto 2009)
Na esteira de Foucault Saraiva e Veiga-Neto (2009) assinalam um dos deslocamentos
marcantes e que interessa ressaltar para este estudo entre o liberalismo e o neoliberalismo
Segundo os autores no liberalismo a liberdade de mercado era entendida como algo natural
ou seja a regulaccedilatildeo do mercado e do proacuteprio Estado seria determinada pelo livre mercado Jaacute
172
na governamentalidade neoliberal cujo princiacutepio de inteligibilidade eacute a maximizaccedilatildeo da
competiccedilatildeo haacute intervenccedilatildeo do Estado para prover condiccedilotildees miacutenimas para que todos possam
entrar no jogo do mercado ou ainda para ldquoproduzir liberdade para que todos possam estar no
jogo econocircmicordquo (Saraiva amp Veiga-Neto 2009 p 189)
Para garantir que todos possam se manter no jogo neoliberal Lopes (2013) afirma que
seria necessaacuterio educar a populaccedilatildeo para que esta possa integrar essa nova forma de vida ldquoque
exige de cada indiviacuteduo dedicaccedilatildeo e constante busca de formaccedilatildeo para poder empreender-serdquo
(Lopes 2013 p 296) Na perspectiva de Lopes (2013) as muitas estrateacutegias de governamento
que satildeo vistas hoje em operaccedilatildeo sobre a populaccedilatildeo em especial sobre aqueles segmentos
considerados de risco seriam investimentos que nas palavras da autora primam ldquotanto pelas
accedilotildees de proteccedilatildeo social quanto pelas accedilotildees de autogovernogovernamentordquo (Lopes 2013 p
296)
Percebe-se portanto que eacute no contexto dessa maneira de investir sobre as condiccedilotildees de
vida da populaccedilatildeo que precisam ser compreendidas as variadas estrateacutegias utilizadas pelos
paiacuteses a fim de reordenar as poliacuteticas educacionais para atender as populaccedilotildees denominadas
em situaccedilatildeo de vulnerabilidade e risco social Entre essas estrateacutegias estariam o aumento da
escolarizaccedilatildeo obrigatoacuteria e a ampliaccedilatildeo da jornada escolar que conforme destaca Perrude
(2013) vecircm sendo no Brasil ldquorecomendadas pelos oacutergatildeos puacuteblicos normatizadas pela
legislaccedilatildeo discutidas nas produccedilotildees acadecircmicas e tambeacutem sugeridas e apontadas como praacuteticas
pedagoacutegicas lsquoinovadorasrsquordquo (Perrude 2013 p 29)
Os debates em torno das propostas de escolas puacuteblicas de tempo integral reanimam-se
no Brasil ao longo dos anos 20002 e elas satildeo apontadas como instrumento indispensaacutevel para a
qualidade educacional Ao percorrer a legislaccedilatildeo3 que ampara a ampliaccedilatildeo da jornada escolar
evidencia-se a intenccedilatildeo do governo de expansatildeo das escolas de tempo integral com atenccedilatildeo
especial agraves ldquocamadas sociais mais necessitadasrdquo (Brasil 2001)
Uma das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar que ganhou espaccedilo nos uacuteltimos anos
nas escolas puacuteblicas brasileiras eacute o Programa Mais Educaccedilatildeo Esse Programa incidiu no acircmbito
do Ensino Fundamental como um modelo de extensatildeo da jornada escolar e das funccedilotildees
2 Ainda que a defesa da escola puacuteblica de tempo integral tenha sido feita por Aniacutesio Teixeira na deacutecada de 1930
a expansatildeo das propostas de ampliaccedilatildeo da jornada escolar ocorreria apoacutes a promulgaccedilatildeo da Lei de Diretrizes e
Bases da Educaccedilatildeo Nacional (LDB) em 1996 3 Menezes (2009) e Coelho e Menezes (2007) apresentam detalhada anaacutelise sobre o que dizem os documentos
legais apoacutes a Constituiccedilatildeo de 1988 acerca do tempo na escola e dos avanccedilos normativos em relaccedilatildeo ao Ensino
Fundamental em tempo integral no ordenamento constitucional
173
escolares pelo Paiacutes Por meio dos nuacutemeros do Censo Escolar4 (2010 2011 2012 2013 2014
2015) eacute possiacutevel acompanhar o aumento de alunos no ensino de tempo integral e o impacto do
Programa na expansatildeo dessas experiecircncias5
2 Poliacuteticas de inclusatildeo nos governos FHC e Lula e o investimento em mais educaccedilatildeo
A emergecircncia do movimento de inclusatildeo escolar no Brasil eacute evidenciada por Lopes e
Rech (2013) na deacutecada de 1990 quando a palavra inclusatildeo passou a ser utilizada de maneira
sutil em materiais e programas elaborados pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) As propostas
de inclusatildeo empreendidas pelo Paiacutes que era entatildeo presidido por Fernando Henrique Cardoso
(FHC) viriam ao encontro das metas estabelecidas pela Conferecircncia Mundial sobre Educaccedilatildeo
para Todos realizada na Tailacircndia em 1990 e pela Conferecircncia Mundial em Educaccedilatildeo
Especial ocorrida em Salamanca na Espanha em 1994
Com a necessidade de educar a todos as estrateacutegias criadas no decorrer dos governos
de FHC a fim de promover a inclusatildeo escolar ganhariam diferentes espaccedilos ultrapassando o
acircmbito escolar Lopes e Rech (2013) apontam que foram criados variados programas sociais
assistenciais que vinculavam o envio e a manutenccedilatildeo das crianccedilas em idade escolar obrigatoacuteria
ao recebimento de bolsas Entre os mais difundidos no periacuteodo destaca-se o Programa Bolsa
Escola6 O governo FHC teria encontrado conforme afirmam as autoras um meio de modificar
consideravelmente os iacutendices de evasatildeo e repetecircncia escolar ao recompensar as famiacutelias que
mantivessem seus filhos na escola
A instituiccedilatildeo de outros programas de transferecircncia monetaacuteria ndash aleacutem do Programa Bolsa
Escola ndash tais como o Programa de Erradicaccedilatildeo do Trabalho Infantil (Peti) o Bolsa-
Alimentaccedilatildeo e o Auxiacutelio-Gaacutes e o uso da educaccedilatildeo puacuteblica para viabilizar a implantaccedilatildeo e
4 O Censo Escolar eacute um levantamento de dados estatiacutestico-educacionais de acircmbito nacional realizado todos os
anos e coordenado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Ele eacute feito
com a colaboraccedilatildeo das secretarias estaduais e municipais de Educaccedilatildeo e com a participaccedilatildeo de todas as escolas
puacuteblicas e privadas do Paiacutes Trata-se do principal instrumento de coleta de informaccedilotildees da Educaccedilatildeo Baacutesica
coletando dados sobre estabelecimentos matriacuteculas funccedilotildees docentes movimento e rendimento escolar Dados
recuperados de httpportalinepgovbrbasica-censo 5 No site do Inep encontra-se a informaccedilatildeo sobre os dados do censo de 2014 em notiacutecia de 11 de fevereiro de
2015 em que o presidente do Instituto evidencia que ldquoA expansatildeo da educaccedilatildeo integral eacute fruto do programa Mais
Educaccedilatildeo desenvolvido pelo MEC por meio do qual satildeo transferidos recursos agraves escolas para manter os alunos
em jornada estendidardquo Dados recuperados de httpportalinepgovbrvisualizar-asset_publisher6AhJcontent
matriculas-em-educacao-integral-apresentam-crescimento-de-41-2redirect=http3a2f2fportalinepgovbr
2f 6 Iniciado em 2001 eram consideradas elegiacuteveis famiacutelias com renda mensal per capita correspondente a meio
salaacuterio miacutenimo que tivessem entre seus membros crianccedilas em idade escolar (6 a 15 anos) Era feito o pagamento
da bolsa de R$ 1500 (valor da eacutepoca) por filho que frequentasse pelo menos 85 das aulas (limitado ao maacuteximo
de trecircs filhos) (Ferro 2007)
174
controle desses programas ocuparam o papel central na abordagem do combate agrave pobreza
adotada no governo Fernando Henrique Cardoso (Algebaile 2009) Esses programas sofreriam
modificaccedilotildees ao longo das duas gestotildees de FHC (19951998 e 19992002) e a partir de 2001
segundo Algebaile (2009) mostraram-se como o eixo da accedilatildeo do Governo Federal no campo
social
A dificuldade de listar com precisatildeo os programas e as accedilotildees daquilo que seria chamado
de reforma educacional praticada durante as gestotildees de Fernando Henrique Cardoso eacute tambeacutem
percebida por Algebaile (2009) ao esclarecer que ela resulta
em primeiro lugar da profusatildeo de ldquoaccedilotildeesrdquo de diferentes portes ldquolanccediladasrdquo sem suficientemente
explicaccedilotildees a respeito de seu efetivo alcance e importacircncia no interior da reforma Em
segundo lugar devido agrave absoluta (e intencional) confusatildeo que caracterizou o processo de
lanccedilamento e implantaccedilatildeo dessas accedilotildees devido agrave expediccedilatildeo de muitas e contraditoacuterias peccedilas
normativas agraves mudanccedilas de nomes dos programas e agrave inclusatildeo de uma mesma accedilatildeo em diversos
programas tornando difiacutecil identificar sua origem definir seus contornos e rastrear seus
desdobramentos (Algebaile 2009 p 271)
Dando continuidade agraves poliacuteticas de inclusatildeo iniciadas no governo FHC ndash que
associariam educaccedilatildeo e assistecircncia social ndash o governo de Luiacutes Inaacutecio ldquoLulardquo da Silva (2003-
2010) embora com concepccedilotildees de governo distintas manteve e ampliou as poliacuteticas e os
programas criados por seu antecessor Lopes e Rech (2013) destacam que os programas criados
no governo Lula aleacutem de terem mantido o caraacuteter assistencialista e neoliberal dos programas
do governo FHC teriam acentuado as accedilotildees de assistecircncia e voluntariado A busca pelo Estado
de investimentos da inciativa privada para as camadas mais pobres da populaccedilatildeo realccedilaria
ainda ldquouma articulaccedilatildeo simbioacutetica entre Estado e mercadordquo (Lopes amp Rech 2013 p 216)
A possiacutevel proximidade em relaccedilatildeo agraves poliacuteticas de inclusatildeo dos governos FHC e Lula
pode ser explicada pela consonacircncia com certas poliacuteticas mundiais e tambeacutem conforme
sublinham Lopes e Rech (2013) pela constataccedilatildeo de que ambos os governos teriam trabalhado
para inscrever o Brasil entre aqueles paiacuteses em condiccedilotildees de se desenvolver Qualquer governo
que estivesse agrave frente do paiacutes com esse objetivo ldquoseria avaliado pela disposiccedilatildeo mundial de
fazer da educaccedilatildeo uma das maiores tecnologias para a governamentalidaderdquo (Lopes amp Rech
2013 p 216)
Portanto eacute no contexto dos investimentos governamentais no campo da educaccedilatildeo e da
assistecircncia social que o Programa federal Mais Educaccedilatildeo foi criado no iniacutecio da segunda gestatildeo
do governo Lula e continuou sendo desenvolvido no governo Dilma Rousseff (2011-2014) O
segundo governo Lula (2007-2010) foi marcado pela criaccedilatildeo de uma diversidade de programas
175
educacionais que teriam como bandeira a educaccedilatildeo de qualidade com o fim de permitir a
inserccedilatildeo do paiacutes na economia mundial
O lanccedilamento feito pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) do Plano de Desenvolvimento
da Educaccedilatildeo (PDE)7 (Brasil 2007) no ano de 2007 demonstra a ampliaccedilatildeo do nuacutemero de accedilotildees
educacionais Esse Plano foi criado com o intuito de enfrentar o problema da qualidade do
ensino ministrado nas escolas de Educaccedilatildeo Baacutesica do Paiacutes Na sua origem o PDE agregou 30
accedilotildees que cobrem a Educaccedilatildeo Baacutesica e Superior e as modalidades de ensino Educaccedilatildeo de
Jovens e Adultos Educaccedilatildeo Especial e Educaccedilatildeo Profissional e Tecnoloacutegica
Compreendido por Saviani (2009) como um ldquogrande guarda-chuvardquo (Saviani 2009 p
5) o Plano de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo (PDE) (Brasil 2007) abriga quase todos os
programas em desenvolvimento pelo MEC O Plano surgiu na circunstacircncia do lanccedilamento do
Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC)8 desenvolvido pelo Governo Federal Cada
ministeacuterio foi solicitado a indicar accedilotildees que se enquadrariam no referido Programa O
Ministeacuterio da Educaccedilatildeo lanccedilou entatildeo o Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb)9
e a ele atrelou diversas accedilotildees que jaacute se encontravam na pauta do MEC (Saviani 2009)
Incluso no PDE (Brasil 2007) como um programa do eixo da Educaccedilatildeo Baacutesica o
Programa Mais Educaccedilatildeo10 foi regulamentado pelo Decreto nordm 7083 de 27 de janeiro de 2010
com a finalidade de ldquocontribuir para a melhoria da aprendizagem por meio da ampliaccedilatildeo do
tempo de permanecircncia de crianccedilas adolescentes e jovens matriculados em escola puacuteblica
mediante oferta de educaccedilatildeo baacutesica em tempo integralrdquo (Brasil 2010)
Embora o Programa tenha sido lanccedilado em 2007 a ampliaccedilatildeo da jornada escolar jaacute era
prevista no art 34 da Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional (Lei nordm 939496) (Brasil
1996) que determina a progressiva ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos na escola
7 O dispositivo legal que potildee em vigecircncia o Plano eacute o Decreto nordm 6094 de 24 de abril de 2007 ndash promulgado na
proacutepria data do lanccedilamento do PDE ndash que institui o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educaccedilatildeo (Saviani
2009) 8 Criado em 2007 o Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento (PAC) promoveu a retomada do planejamento e
execuccedilatildeo de grandes obras de infraestrutura social urbana logiacutestica e energeacutetica do paiacutes Informaccedilotildees recuperadas
de httpwwwpacgovbrsobre-o-pac 9 O Iacutendice de Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) foi criado em 2007 pelo Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Aniacutesio Teixeira (Inep) Foi formulado para medir a qualidade do aprendizado nacional
e estabelecer metas para a melhoria do ensino O Ideb eacute uma combinaccedilatildeo de percentuais de aprovaccedilatildeo com
proficiecircncia em liacutengua portuguesa e matemaacutetica As meacutedias de desempenho utilizadas satildeo as da Prova Brasil para
escolas e municiacutepios e do Sistema de Avaliaccedilatildeo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Saeb) para os estados e o Paiacutes realizados
a cada dois anos As metas estabelecidas pelo Ideb satildeo diferenciadas para cada escola e rede de ensino com o
objetivo uacutenico de alcanccedilar seis pontos ateacute 2022 meacutedia correspondente ao sistema educacional dos paiacuteses
desenvolvidos Informaccedilotildees recuperadas de httpportalmecgovbrindexphpItemid=336 10 O Programa Mais Educaccedilatildeo foi instituiacutedo por meio da Portaria Interministerial nordm 17 em 2007 envolvendo os
seguintes Ministeacuterios Educaccedilatildeo Cultura Esporte e Desenvolvimento Social e Combate agrave Fome
176
e no Plano Nacional de Educaccedilatildeo (PNE) 2001-2010 O novo Plano Nacional de Educaccedilatildeo 2014-
2024 reafirma a intenccedilatildeo do Estado de ampliaccedilatildeo da jornada escolar e apresenta ainda uma
meta especiacutefica que trata da oferta da educaccedilatildeo em tempo integral ldquoOferecer educaccedilatildeo em
tempo integral em no miacutenimo 50 (cinquenta por cento) das escolas puacuteblicas de forma a
atender pelo menos 25 (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da educaccedilatildeo baacutesicardquo
(Brasil 2014)
Inicialmente o Programa Mais Educaccedilatildeo atuou nas capitais nas regiotildees metropolitanas
e em territoacuterios de vulnerabilidade social Em 2012 as escolas do campo foram incluiacutedas E a
partir de 2013 escolas localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes que tecircm um baixo Iacutendice de
Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) ndash aleacutem de outros criteacuterios estabelecidos a cada
ano11 ndash foram consideradas elegiacuteveis para participar do Programa12 O Programa se fez presente
em todos estados brasileiros e no Distrito Federal em 2014 e a evoluccedilatildeo do nuacutemero de escolas
participantes foi crescente de 2008 a 201413
Concebido com o intuito de promover uma ldquoaccedilatildeo intersetorial entre as poliacuteticas puacuteblicas
educacionais e sociaisrdquo (Brasil 2014 p 4) os documentos oficiais normativos do Programa
Mais Educaccedilatildeo evidenciam que para enfrentar a situaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade e risco a que
estatildeo submetidas parcelas consideraacuteveis de crianccedilas adolescentes e jovens e suas famiacuteliasrdquo
(Brasil 2007) a escola deve cumprir o desafio de proteger e educar e para isso ldquoa escola puacuteblica
passa a incorporar um conjunto de responsabilidades que natildeo eram vistas como tipicamente
escolares mas que se natildeo estiverem garantidas podem inviabilizar o trabalho pedagoacutegicordquo
(Brasil 2009a p 17)
Ampliando as funccedilotildees da escola o Programa reconhece que as tarefas dos educadores
seratildeo consequentemente alargadas e defende a necessidade de uma ldquoconsistente valorizaccedilatildeo
11 Os dados utilizados na pesquisa foram aqueles disponibilizados ateacute o ano de 2014 pois natildeo foi possiacutevel ter
acesso aos dados do Programa referentes aos anos de 2015 e 2016 12 Em 2014 para as escolas urbanas os criteacuterios de seleccedilatildeo foram 1) Escolas contempladas nos anos anteriores
2) Escolas estaduais municipais eou distrital que foram contempladas com o PDEEscola e que possuam o Ideb
abaixo ou igual a 35 nos anos iniciais eou finais Ideb anos iniciais lt 46 e Ideb anos finais lt 39 3) Escolas
localizadas em todos os municiacutepios do Paiacutes 4) Escolas com iacutendices igual ou superior a 50 de estudantes
participantes do Programa Bolsa Famiacutelia (Brasil 2014) 13 Solicitamos ao coordenador do Programa Mais Educaccedilatildeo no niacutevel federal em julho de 2016 os dados das
escolas participantes do Programa em 2015 mas natildeo obtivemos resposta Ao longo de 2015 o Programa sofreu
com os ajustes fiscais realizados pelo Governo Federal ainda na gestatildeo de Dilma Rousseff Muitas das escolas
que em 2015 se beneficiavam da iniciativa do Mais Educaccedilatildeo tiveram os repasses das verbas referentes a 2014
e 2015 atrasados inviabilizando a continuidade das atividades em diversas escolas pelo Brasil Em 2016 a
expansatildeo do Programa continuou bastante afetada Apoacutes o impeachment da presidente eleita e a entrada do novo
governo o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo encerrou apoacutes nove anos de funcionamento as atividades do Mais Educaccedilatildeo
apresentando entre outros argumentos o fato de que o Paiacutes natildeo alcanccedilou as metas delineadas pelo Iacutendice de
Desenvolvimento da Educaccedilatildeo Baacutesica (Ideb) para o Ensino Fundamental entre os anos de 2013 e 2015
177
profissional [dos trabalhadores em educaccedilatildeo] a ser garantida pelos gestores puacuteblicos de modo
a permitir a dedicaccedilatildeo exclusiva e qualificada agrave educaccedilatildeordquo (Brasil 2009a p 39) Entretanto o
Programa parece ter como principal aposta para lidar com esse novo contexto o fomento de
uma outra postura profissional dos educadores que poderia ser adquirida por meio de mais
formaccedilatildeo uma formaccedilatildeo permanente
aos educadores tambeacutem vecircm sendo conferidas tarefas que natildeo lhes competiam haacute algum tempo
atraacutes o que tensiona ainda mais a fraacutegil relaccedilatildeo que se estabelece entre esses profissionais e a
escola como a encontramos hoje Esse conjunto de elementos desafia a uma nova postura
profissional que deve ser construiacuteda por meio de processos formativos permanentes (Brasil
2009a p 17 grifo nossos)
A construccedilatildeo de processos formativos permanentes como forma de solucionar o
acuacutemulo de tarefas de que os educadores tecircm sido encarregados demonstra que o Estado tem
transformado discussotildees poliacuteticas e econocircmicas desafiadoras em problemas relacionados com
a necessidade de mais aprendizagem Ou ainda revelam a forccedila do dispositivo de
aprendizagem (Simons amp Masschelein 2008) no presente que induz a compreensatildeo de
problemas econocircmicos a partir de uma loacutegica educacional Em outras palavras problemas
econocircmicos resultariam de uma falta de investimento em processos de aprendizagem
Em 2014 foram ofertadas para as escolas urbanas por meio do Mais Educaccedilatildeo
atividades distribuiacutedas em sete campos de conhecimento 1) Acompanhamento Pedagoacutegico 2)
Comunicaccedilatildeo Uso de Miacutedias e Cultura Digital e Tecnoloacutegica 3) Cultura Artes e Educaccedilatildeo
Patrimonial 4) Educaccedilatildeo Ambiental Desenvolvimento Sustentaacutevel e Economia Solidaacuteria e
CriativaEducaccedilatildeo Econocircmica (Educaccedilatildeo Financeira e Fiscal) 5) Esporte e Lazer 6) Educaccedilatildeo
em Direitos Humanos 7) Promoccedilatildeo da Sauacutede O Programa sugere que as atividades sejam
realizadas por monitores voluntaacuterios (estudantes em processo de formaccedilatildeo docente estudantes
do Ensino Meacutedio e de Educaccedilatildeo de Jovens a Adultos e pessoas da comunidade local) e
coordenadas por um professor vinculado agrave escola denominado Professor Comunitaacuterio
Percebe-se que ao aderir agrave loacutegica do voluntariado na prestaccedilatildeo dos serviccedilos na escola
o Estado natildeo apenas se exime de arcar com as despesas financeiras desses serviccedilos mas tambeacutem
dispensa a necessidade de serviccedilos especializados A participaccedilatildeo de diferentes atores que
seriam corresponsaacuteveis pela efetivaccedilatildeo do Programa mostra o estiacutemulo a uma cidadania ativa
de que nos falam Simons e Masschelein (2008) Ser cidadatildeo nesse contexto significaria
assumir o compromisso de colaborar com a oferta e manutenccedilatildeo de accedilotildees na escola ndash e de
maneira mais ampla envolvendo-o na resoluccedilatildeo de problemas presentes em sua localidade e na
sociedade de modo a produzir uma cidadania responsaacutevel
178
Os estudos de governamentalidade conforme aponta Lemke (2001) mostram que as
formas neoliberais de governo natildeo levam simplesmente a uma reduccedilatildeo do Estado O Estado
no neoliberalismo assume outras tarefas aleacutem de desenvolver teacutecnicas indiretas para controlar
os indiviacuteduos A reduccedilatildeo nos serviccedilos do Estado estaria associada a um chamado crescente para
a responsabilidade pessoal e o cuidado de si Em outras palavras a responsabilidade ndash no caso
das escolas puacuteblicas pela manutenccedilatildeo das unidades de ensino ndash passa a ser de indiviacuteduos ativos
solucionadores de problemas de modo que nas aacutereas sociais ela se torna uma questatildeo de
provisatildeo pessoal
Por meio da noccedilatildeo de governamentalidade a retirada do Estado presente na agenda
neoliberal pode ser decifrada como uma teacutecnica de governo (Lemke 2001) Assim as reduccedilotildees
nas formas de intervenccedilatildeo do Estado estariam menos relacionadas com a perda por parte do
Estado do poder de regulaccedilatildeo e controle e mais com uma reorganizaccedilatildeo das teacutecnicas de
governo Trata-se de uma mudanccedila da competecircncia regulatoacuteria do Estado para indiviacuteduos
racionais e responsaacuteveis encorajando-os a darem agraves suas vidas uma forma empresarial
especiacutefica
3 A trilogia do Programa Mais Educaccedilatildeo
A perspectiva de educaccedilatildeo integral agrave qual o Mais Educaccedilatildeo se refere eacute especialmente
explicitada em trecircs cadernos produzidos pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que compotildeem a Seacuterie
Mais Educaccedilatildeo Esses cadernos expotildeem a concepccedilatildeo teoacuterica do Programa e propotildeem-se agrave
ldquoconstruccedilatildeo de um paradigma contemporacircneo de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 7) Os
trecircs cadernos14 tecircm objetivos e processos de elaboraccedilatildeo diferentes Publicados no mesmo ano
(2009) natildeo formam uma sequecircncia mas um conjunto complementar que visa a ldquocontribuir para
a conceituaccedilatildeo a operacionalizaccedilatildeo e a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeordquo (Brasil
2009a p 6)
14 O primeiro caderno Educaccedilatildeo Integral (Brasil 2009a) ndash texto referecircncia para o debate nacional ndash foi produzido
por um grupo de trabalho convocado pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e eacute uma produccedilatildeo coletiva que envolveu a
participaccedilatildeo de 29 colaboradores de 17 instituiccedilotildees sociais entre gestores e educadores municipais estaduais e
federais representantes de vaacuterias organizaccedilotildees aleacutem de professores universitaacuterios de cinco universidades puacuteblicas
federais e organizaccedilotildees natildeo governamentais O segundo caderno intitula-se Gestatildeo Intersetorial no Territoacuterio
(Brasil 2009b) e foi elaborado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educaccedilatildeo e Accedilatildeo Comunitaacuteria (Cenpec)
uma organizaccedilatildeo da sociedade civil sem fins lucrativos com sede em Satildeo Paulo (capital) Jaacute a publicaccedilatildeo Rede de
Saberes Mais Educaccedilatildeo (Brasil 2009c) cujo subtiacutetulo eacute pressupostos para projetos pedagoacutegicos de educaccedilatildeo
integral foi elaborada por um uacutenico autor com a colaboraccedilatildeo da Casa das Artes uma organizaccedilatildeo da sociedade
civil sem fins lucrativos com sede no Rio de Janeiro (capital) e da Secretaria Municipal de Educaccedilatildeo de Recife
179
Com o objetivo de compreender o funcionamento do Mais Educaccedilatildeo produziu-se um
material subsidiado na anaacutelise dos trecircs cadernos e em entrevistas feitas para pesquisa de
mestrado (Zepletal 2017) com quatro gestores do Programa um gestor municipal e outro
estadual de Satildeo Paulo e dois gestores federais Os entrevistados foram escolhidos em razatildeo do
conhecimento que tecircm do Programa e por sua imersatildeo no contexto de sua estruturaccedilatildeo e
implantaccedilatildeo As entrevistas foram realizadas em Satildeo Paulo (capital) e Brasiacutelia em janeiro e
fevereiro de 2015 Utilizou-se um roteiro semiestruturado em torno dos seguintes toacutepicos o
papel da ampliaccedilatildeo da jornada escolar de tempo integral o porquecirc do atual investimento do
Governo Federal na ampliaccedilatildeo do tempo de permanecircncia dos alunos nas escolasatividades
escolares e os desafios encontrados na implantaccedilatildeo do Programa As entrevistas foram
transcritas e enviadas aos entrevistados assim como o texto escrito a partir delas Os
entrevistados tambeacutem assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido em que
concordaram em participar como voluntaacuterios da pesquisa15 O material transcrito tornou-se
documento de estudo em nosso trabalho Algumas precauccedilotildees em relaccedilatildeo ao modo de operar
com os discursos com os quais se entrou em contato durante a pesquisa foram tomadas
Partindo de um horizonte no qual as verdades satildeo produzidas pelos discursos e operando
a partir do referencial teoacuterico foucaultiano (Foucault 2005) teve-se como premissa o esforccedilo
para natildeo retratar os sujeitos entrevistados como homogecircneos e a-histoacutericos tampouco
consideraacute-los como fonte original de suas falas ndash uma vez que estas participam de uma rede
discursiva que lhes permite dizer o que dizem do modo como dizem Nesse sentido os modos
de pensar e agir presentes no campo de investigaccedilatildeo natildeo satildeo tratados como fenocircmenos que natildeo
deveriam acontecer A esse respeito Machado (2011) lembra que aquilo que comumente
nomeamos como uma forma equivocada de agir e pensar porta uma positividade pois afirma
uma maneira de ver o mundo sendo portanto efeito de um processo de produccedilatildeo carregando
um sentido engendrado em um campo em que se embatem muacuteltiplas forccedilas
Por meio da anaacutelise dos cadernos e das entrevistas pudemos depreender alguns
enunciados recorrentes que parecem legitimar o Programa Com o propoacutesito de identificar e
analisar tais enunciados foram destacadas trecircs categorias denominadas de (1) escola e vida
(2) diaacutelogo com a comunidade e (3) gestatildeo intersetorial
15 As entrevistas realizadas com os gestores foram feitas a partir da assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido mas natildeo passou pelo Comitecirc de Eacutetica pois a Faculdade de Educaccedilatildeo da Universidade de Satildeo Paulo
(USP) natildeo requer passar nesse comitecirc quando se trata de entrevistas
180
31 Escola e vida
Entre as principais orientaccedilotildees do Mais Educaccedilatildeo encontram-se os discursos que
enfatizam a necessidade de uma reaproximaccedilatildeo entre escola e vida embora natildeo seja explicitado
qual o entendimento sobre essa noccedilatildeo Infere-se que a compreensatildeo da relaccedilatildeo entre escola e
vida seria aleacutem da ampliaccedilatildeo dos tempos e espaccedilos de educaccedilatildeo a ideia de uma escola que
funcionasse como uma ldquocomunidade de aprendizagemrdquo (Brasil 2009a p 31) onde diferentes
atores constroem um projeto educativo e cultural e reconhecem que
todos os espaccedilos satildeo educadores ndash toda a comunidade e a cidade com seus museus igrejas
monumentos locais como ruas e praccedilas lojas e diferentes locaccedilotildees ndash cabendo agrave escola articular
projetos comuns para sua utilizaccedilatildeo e fruiccedilatildeo considerando espaccedilos tempos sujeitos e objetos
do conhecimento (Brasil 2009a p 35)
Nota-se aqui a articulaccedilatildeo dos discursos do Programa com a proposta internacional de
cidade educadora Conforme afirma o Programa a educaccedilatildeo ldquonatildeo se realiza somente na escola
mas em todo um territoacuterio e deve expressar um projeto comunitaacuterio A cidade eacute compreendida
como educadora como territoacuterio pleno de experiecircncias de vida e instigador de interpretaccedilatildeo e
transformaccedilatildeordquo (Brasil 2009c p 31)
O coordenador do Mais Educaccedilatildeo no niacutevel municipal de Satildeo Paulo corrobora essa ideia
ao apontar que a possibilidade do uso de outros espaccedilos educativos presentes na comunidade
local em que as escolas estatildeo inseridas propiciaria uma via para que as atividades diversificadas
ofertadas fugissem do ldquomais do mesmordquo
A presenccedila ndash tanto nos documentos analisados que normatizam o Programa Mais
Educaccedilatildeo como nas entrevistas com os gestores do Programa ndash da ideia notavelmente repetida
de que ldquotodos os espaccedilos satildeo educadoresrdquo chama atenccedilatildeo Essa ideia remete agrave constataccedilatildeo jaacute
apontada por alguns autores de que estariacuteamos vivendo numa sociedade que pretende assegurar
que todos os tempos e espaccedilos sejam pedagogizados uma sociedade ldquototalmente
pedagogizadardquo (Ball 2013) Tal sociedade instiga a compreender a vida como podendo ser
medida e racionalizada como resultado de escolhas feitas ou a serem feitas As praacuteticas
contemporacircneas de subjetivaccedilatildeo alerta Rose (2001) produzem um ser com um projeto de
identidade e de estilo de vida e que entende que a vida tem sentido se construiacuteda como resultado
de escolha pessoal
A ideia de que por meio do Mais Educaccedilatildeo e das diversas atividades ofertadas pelo
Programa aos alunos eles poderiam ter maior possibilidade de fazer escolhas e por
conseguinte teriam maior liberdade individual eacute bastante presente nos cadernos analisados e
181
nos discursos sobre os possiacuteveis efeitos do Programa Tal ideia remete a uma noccedilatildeo de liberdade
compreendida como soberania de uma vontade ou escolha pessoal
No entanto ao pensar a noccedilatildeo de liberdade nas coordenadas da governamentalidade
esta lembra Aquino (2013) natildeo pode ser confundida com uma liberdade intimizada como
empresariamento de si ou como autorregulatoacuteria pois o exerciacutecio da liberdade natildeo se opotildee ao
poder mas a liberdade joga ldquocom o poder na proacutepria superfiacutecie dos acontecimentos cotidianosrdquo
(Aquino 2013 p 207)
32 Diaacutelogo com a comunidade
A segunda categoria de anaacutelise que se destaca a partir da leitura dos documentos que
normatizam o Programa e das entrevistas realizadas eacute designada aqui de diaacutelogo com a
comunidade Satildeo recorrentes nos cadernos analisados discursos que afirmam a necessidade de
se enfrentar a distacircncia que caracterizaria as relaccedilotildees entre escola e comunidade na atualidade
a fim de ampliar a dimensatildeo das experiecircncias educadoras Para o Programa a fragilidade do
diaacutelogo entre escola e comunidade seria o elemento responsaacutevel por uma seacuterie de efeitos
perniciosos tais como ldquo(hellip) a rebeldia frente agraves normas escolares os altos iacutendices de fracasso
escolar pichaccedilotildees e depredaccedilotildees de preacutedios escolares atitudes desrespeitosas no conviacutevio
escolar e a apatia dos alunosrdquo (Brasil 2009a p 34)
O Programa advoga que as escolas que mais avanccedilaram no diaacutelogo com a comunidade
ldquoforam as que atingiram os resultados acadecircmicos mais positivosrdquo (Brasil 2009c p 16)
Observa-se portanto uma grande aposta do Programa nas possibilidades de troca e diaacutelogo
entre escolas e comunidade e na entrada nas escolas daquilo que o Mais Educaccedilatildeo chama de
ldquosaberes comunitaacuteriosrdquo como perspectiva de mudanccedila das experiecircncias educadoras ateacute entatildeo
oferecidas
Essa ideia eacute tambeacutem evidenciada na fala do coordenador federal do Programa que
ressalta que a possibilidade de trazer ldquoo campo dos saberes comunitaacuteriosrdquo para o interior das
escolas eacute algo bastante significativo O coordenador compreende que natildeo seraacute possiacutevel avanccedilar
com a promoccedilatildeo da educaccedilatildeo integral no Paiacutes sem o uso de monitores Ele explica sua posiccedilatildeo
dizendo
182
sem monitores acho que natildeo daacute natildeo acho que natildeo seria bom primeiro por uma questatildeo
porque acho que os meninos precisam mesmo de outros saberes e segundo porque tem uma
questatildeo financeira e tambeacutem com o nuacutemero de professores que se tecircm hoje natildeo daacute16
A responsabilizaccedilatildeo da comunidade pela eficiecircncia das escolas eacute destacada tanto na fala
dos gestores do Programa quanto nos cadernos analisados A insuficiecircncia de recursos puacuteblicos
(humanos e financeiros) para atender as demandas das escolascomunidade conforme apontado
pelo coordenador do Programa e a escolha da utilizaccedilatildeo de monitores voluntaacuterios para dar
conta de tal situaccedilatildeo denotam que caberia agraves escolascomunidade localmente inventar a
superaccedilatildeo de seus problemas
Para o Mais Educaccedilatildeo o desafio de construccedilatildeo daquilo que o Programa chama de uma
educaccedilatildeo integral aumenta
se pensarmos que cada escola e cada comunidade mesmo que com aportes de programas de
governo satildeo responsaacuteveis pela superaccedilatildeo de seus proacuteprios limites vividos porque satildeo elas que
os conhecem e que podem reinventaacute-los O desafio do programa portanto eacute estruturar-se sobre
uma base capaz de permitir que os diversos projetos de educaccedilatildeo integral sejam territorializados
e nasccedilam em resposta a cada realidade (Brasil 2009c p 89 grifos nossos)
A partir do exposto pode-se compreender melhor o porquecirc de o Programa enfatizar seu
caraacuteter de estrateacutegia indutora da ampliaccedilatildeo da jornada escolar nos estados e municiacutepios O
Estado portanto natildeo seria mais o agente principaluacutenico da accedilatildeo puacuteblica ldquomas espera-se que
cumpra sua missatildeo de intelligentsia do fazer puacuteblico e em consequecircncia exerccedila papel indutor
e articulador de esforccedilos governamentais e societaacuterios em torno de prioridades da poliacutetica
puacuteblicardquo (Brasil 2009a p 44)
Entende-se assim que os desafios relacionados agrave garantia da qualidade de
aprendizagem propiciada pelas escolas puacuteblicas estariam especialmente relacionados agrave gestatildeo
dos sistemas educativos Essa ideia remete ao terceiro e uacuteltimo enunciado que parece legitimar
o Programa Mais Educaccedilatildeo presente nas entrevistas realizadas e nos cadernos analisados
gestatildeo intersetorial
33 Gestatildeo intersetorial
O termo intersetorialidade eacute bastante utilizado pelo Programa e expresso como
ldquocaracteriacutestica de uma nova geraccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas que orientam a formulaccedilatildeo de uma
proposta de Educaccedilatildeo Integralrdquo (Brasil 2009a p 43) Esse novo tipo de poliacutetica puacuteblica
16 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]
183
impotildee-se como necessidade e tarefa que se devem ao reconhecimento da desarticulaccedilatildeo
institucional e da pulverizaccedilatildeo na oferta das poliacuteticas sociais mas tambeacutem ao passo seguinte
desse reconhecimento para articular os componentes materiais e ideais que qualifiquem essas
poliacuteticas (Brasil 2009a p 43)
Dito de outro modo a intersetorialidade se materializa no cotidiano da gestatildeo agrave medida que
consegue criar consenso em torno de uma meta com a qual todos possam em alguma medida
comprometer-se (Brasil 2009b p 25)
A analista do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo que coordena o Mais Educaccedilatildeo em niacutevel federal
aponta que hoje existe uma intencionalidade expliacutecita da gestatildeo puacuteblica em parar de atribuir
inuacutemeras funccedilotildees agraves escolas Segundo a analista a noccedilatildeo de intersetorialidade ou de poliacuteticas
puacuteblicas intersetoriais que ldquorequer que diferentes setores se comuniquem para que as
demandas puacuteblicas sejam canalizadas de um modo mais racionalrdquo17 joga um importante papel
na diminuiccedilatildeo da atribuiccedilatildeo de funccedilotildees de diferentes naturezas agraves escolas
Para o Programa outro requisito considerado indispensaacutevel para a boa gestatildeo das
unidades escolares refere-se ao papel da democratizaccedilatildeo da gestatildeo Esta eacute considerada um
indicador de qualidade da educaccedilatildeo
enfatizando que em muitos estados e municiacutepios ou mesmo comunidades com menor
financiamento puacuteblico as escolas que adotaram a gestatildeo democraacutetica e mantecircm projetos
pedagoacutegicos bem elaborados tecircm se destacado nas avaliaccedilotildees institucionais e no IDEB como
prova de que a participaccedilatildeo social se constitui um oacutetimo meacutetodo de avaliaccedilatildeo e de fiscalizaccedilatildeo
do desempenho escolar e que a eficiecircncia gestora natildeo se limita agrave racionalidade e agrave
potencializaccedilatildeo dos recursos financeiros e administrativos Os sistemas de ensino poderatildeo
ampliar a praacutetica da gestatildeo democraacutetica ao promover a participaccedilatildeo social nos Conselhos de
Educaccedilatildeo (Estaduais e Municipais) bem como realizar eleiccedilatildeo para diretores de escola
observadas as prerrogativas de autonomia administrativa (Brasil 2009a p 41)
Nota-se por meio da leitura dos cadernos do Programa e das falas dos gestores
entrevistados o lugar de destaque ocupado pelo tema da gestatildeo da escola
Um dos aspectos considerados desafiadores para o bom funcionamento do Programa
assinalados pelo coordenador de educaccedilatildeo integral da Secretaria de Educaccedilatildeo Baacutesica (SEB) do
Ministeacuterio da Educaccedilatildeo diz respeito agrave necessidade de maior formaccedilatildeo dos profissionais da
educaccedilatildeo em geral em especial dos gestores para que possam lidar com a complexidade atual
da gestatildeo das escolas Essa ideia eacute corroborada na entrevista com a coordenadora estadual de
Satildeo Paulo do Mais Educaccedilatildeo ao afirmar a necessidade de uma maior capacitaccedilatildeo dos gestores
escolares para aprimorar a relaccedilatildeo escola e comunidade e para que os gestores possam lidar
com o grande volume de contas que precisam administrar Com a entrada nas escolas de muitos
17 Entrevista realizada no dia 3 de fevereiro de 2015 em Brasiacutelia [material transcrito]
184
outros Programas interligados ao Mais Educaccedilatildeo cabe aos diretores escolares administrarem a
prestaccedilatildeo de um nuacutemero extenso de contas
A recorrecircncia nas falas sobre o Programa que assinalam a necessidade de processos
formativos permanentes da gestatildeo escolar indica que os desafios enfrentados pelas escolas
puacuteblicas estariam prioritariamente relacionados a aspectos de gestatildeo Essa forma de
compreender as dificuldades das escolas parece estar alinhada com um aumento da
responsabilizaccedilatildeo individual dos gestores pela eficiecircncia das escolas e ainda com uma reduccedilatildeo
de questotildees poliacuteticas e econocircmicas complexas que perpassam as escolas puacuteblicas na atualidade
tais como a insuficiecircncia de recursos puacuteblicos para atender as demandas das
escolascomunidades
Percebe-se portanto a necessidade de se examinar com cautela os discursos que
apontam a necessidade de tal formaccedilatildeo permanente dos gestores escolares uma vez que tendem
a ter como efeito a culpabilizaccedilatildeo dos gestores por situaccedilotildees que ultrapassam em grande medida
sua possibilidade de atuaccedilatildeo
Consideraccedilotildees finais
Em uacuteltima anaacutelise o que as leituras dos documentos que normatizam o Programa Mais
Educaccedilatildeo e as entrevistas com seus gestores permitem inferir eacute que a entrada de programas
como o Mais Educaccedilatildeo nas escolas puacuteblicas brasileiras para aleacutem da evidente ampliaccedilatildeo do
caraacuteter de proteccedilatildeo integral das crianccedilas parece indicar mudanccedilas de concepccedilotildees sobre o que
seriam a aprendizagem e o tempo escolar Observa-se a presenccedila de uma noccedilatildeo de
aprendizagem escolar que estaria muito mais relacionada com o aprender a ser algo ndash um
aprendiz ao longo da vida ndash do que com o estudar ou praticar algo e uma noccedilatildeo de tempo
escolar como tempo produtivo tempo ocupado tempo para aprender Essa noccedilatildeo de
aprendizagem remete agrave constataccedilatildeo de que o conceito de aprendizagem no presente seria uma
forccedila crucial de governo de noacutes mesmos
Nota-se por fim juntamente com Magnus Dahlstedt e Mekonnen Tesfahuney (2010)
que os discursos de uma aprendizagem ao longo da vida trazem um apelo universal que os torna
aparentemente apoliacuteticos parecendo natildeo pertencer a um tempo nem lugar especiacuteficos No
entanto escondem uma natureza altamente poliacutetica e efetiva para produzir modos de viver em
que o aprender eacute uma norma Tais discursos satildeo portanto centrais para entender as
185
racionalidades governamentais neoliberais em que o Estado se inscreve nas accedilotildees dos sujeitos
ao investir para que os sujeitos faccedilam suas proacuteprias escolhas
Esse artigo ao enfatizar alguns elementos presentes nos cadernos do Programa Mais
Educaccedilatildeo e nas falas de alguns de seus gestores deu relevo agrave necessidade de se considerar que
ideias e termos como escolha pessoal participaccedilatildeo da comunidade e gestatildeo democraacutetica
precisam ser analisados em suas relaccedilotildees com as formas de governar e os processos de
pedagogizaccedilatildeo da vida Do contraacuterio as questotildees da escolha e da participaccedilatildeo tornam-se
abstratas pois abstraiacutedas de suas condiccedilotildees de existecircncia O agenciamento singular em cada
unidade escolar com a implementaccedilatildeo do Programa Mais Educaccedilatildeo se daacute na complexidade do
cotidiano e dependeraacute das compreensotildees locais da forma como ocorrem os atravessamentos
dos discursos oficiais e das condiccedilotildees concretas de cada realidade Ao nos debruccedilarmos sobre
discursos presentes em materiais e falas oficiais operamos um recorte em nossa anaacutelise que
considera esses discursos como forccedilas intensas na construccedilatildeo cotidiana das praacuteticas referentes
ao Programa e portanto de suas condiccedilotildees de existecircncia
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Capiacutetulo 10
Poliacuteticas Puacuteblicas de Orientaccedilatildeo Profissional uma anaacutelise
socioconstrucionista sobre a construccedilatildeo do Projeto de Vida no Programa
Ensino Integral (PEI)
Omar Calazans Nogueira Pereira
Marcelo Afonso Ribeiro
Introduccedilatildeo
Na deacutecada de 1970 o ensino teacutecnico tornou-se compulsoacuterio para todos que
completavam o ciclo escolar e atividades de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) estavam previstas na
legislaccedilatildeo e implementadas em alguns estados Houve entatildeo uma seacuterie de pesquisas sobre
estas poliacuteticas puacuteblicas de OP dentre as quais ressaltamos os trabalhos de Baptista (1984)
Carvalho (1985) e Lobo (2005) que investigaram o Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)
no Estado de Satildeo Paulo
No entanto desde o encerramento destas poliacuteticas puacuteblicas nos anos 1980 ocorreram
somente pesquisas pontuais sobre poliacuteticas puacuteblicas em OP Temos como exemplo o trabalho
de Silva (2010) que investigou como as escolas puacuteblicas de Ensino Meacutedio auxiliam os alunos
na construccedilatildeo de projetos profissionais e discutiu caminhos para um programa de poliacutetica
puacuteblica em OP Tambeacutem haacute a pesquisa de Munhoz (2010) que sugere subsiacutedios para a
elaboraccedilatildeo de programas de OP no contexto educacional brasileiro
Em termos mundiais haacute vaacuterios modelos de programas de OP em escolas vinculados agraves
poliacuteticas puacuteblicas como a Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP)
(Pelletier Noiseux amp Bujold 1982) e a proposta de Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987)
mas no sistema educacional brasileiro e na legislaccedilatildeo nunca houve nada sistematizado e
implementado semelhante agraves propostas citadas segundo Munhoz (2010) e Silva (2010)
Recentemente com a ampliaccedilatildeo do ensino integral puacuteblico e as reformas no sistema
educacional novas poliacuteticas puacuteblicas de educaccedilatildeo e trabalho estatildeo sendo implementadas
trazendo consigo a ecircnfase no aluno e na construccedilatildeo de seu projeto de vida Por exemplo no
Estado de Satildeo Paulo a partir de 2020 com base no modelo de ensino existente nas escolas do
190
Programa Ensino Integral (PEI) a disciplina Projeto de Vida estaraacute presente em todas as escolas
puacuteblicas estaduais de Ensino Meacutedio
O presente capiacutetulo eacute baseado em pesquisa de Mestrado desenvolvida no periacuteodo de
2017 a 2019 que visou compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a proposta da
disciplina ldquoProjeto de Vidardquo nas escolas do PEI do Estado de Satildeo Paulo a partir do
construcionismo social e analisar se essa proposta seria uma poliacutetica puacuteblica de OP1 Com base
no construcionismo social principalmente a partir das contribuiccedilotildees de Blustein (2011) e
McNamee (2012) e por meio de uma metodologia qualitativa narrativa foi realizada uma
anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e narrativas pessoais produzidos em documentos
escolares e nos grupos focais com professores e alunos de duas escolas da Regiatildeo Metropolitana
de Satildeo Paulo
1 A orientaccedilatildeo profissional (OP) na legislaccedilatildeo educacional brasileira e em programas
educacionais paulistas
11 A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educaccedilatildeo de 1971 e o Programa de Informaccedilatildeo
Profissional (PIP)
Em meio ao golpe militar 1964 a Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo de 1971 ndash LDB
nordm 569271 em substituiccedilatildeo agrave LDB nordm 402461 reformulou o 2ordm Grau tornando-o
profissionalizante (Brasil 1971) ou seja todos os alunos formados no Ensino Meacutedio saiacuteram
obrigatoriamente habilitados para o exerciacutecio de uma atividade profissional Havia uma pressatildeo
popular por mais vagas nas universidades e essa reformulaccedilatildeo do ensino teria sido uma forma
de conter essa demanda pois uma vez adquirida uma profissatildeo ao teacutermino da escola a pessoa
desistiria de ingressar no Ensino Superior (Romanelli 1986)
Esta nova LDB estabeleceu a orientaccedilatildeo vocacional tanto para o 1ordm Grau quanto para o
2ordm grau ldquoseraacute instituiacuteda obrigatoriamente a Orientaccedilatildeo Educacional incluindo aconselhamento
vocacional em cooperaccedilatildeo com os professores a famiacutelia e a comunidaderdquo (Brasil 1971 art
10) Na anaacutelise de Pimenta (1981) a praacutetica da OP na escola acabou reduzida agrave informaccedilatildeo
profissional devido a impossibilidade de testes psicoloacutegicos serem aplicados pelos orientadores
1 Pereira O C N (2019) A construccedilatildeo do projeto de vida no Programa Ensino Integral (PEI) uma anaacutelise na
perspectiva da Orientaccedilatildeo Profissional (Dissertaccedilatildeo de Mestrado) Instituto de Psicologia Universidade de Satildeo
Paulo Satildeo Paulo Agecircncia de fomento Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES)
191
educacionais em funccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo da profissatildeo de psicoacutelogo no Brasil pela Lei nordm
411962 (Brasil 1962) e a determinaccedilatildeo na mesma lei de que somente psicoacutelogos poderiam
usar testes psicoloacutegicos
Pouco tempo depois 1968 a profissatildeo do orientador educacional foi prevista pela Lei
nordm 556464 (Brasil 1968) e regulamentada pelo Decreto nordm 7284673 (Brasil 1973) Neste
decreto seriam atribuiccedilotildees privativas do orientador educacional coordenar a orientaccedilatildeo
vocacional do aluno assim como o processo de sondagem de interesses aptidotildees e habilidades
e o processo de informaccedilatildeo profissional Neste momento houve uma ruptura na qual os
pedagogos tornaram-se os detentores dos processos de OP nas escolas enquanto que os
psicoacutelogos afastados das escolas tornaram-se os detentores das ferramentas (Uvaldo amp Silva
2010)
Por conta de problemas na implementaccedilatildeo do ensino profissionalizante proposto pela
LDB 569271 houve em 1975 uma mudanccedila em seu formato tornando sua duraccedilatildeo mais breve
(Baptista 1984 Silva 2010) Dois anos depois o Ministeacuterio da Educaccedilatildeo (MEC) propocircs a
disciplina Orientaccedilatildeo Ocupacional no primeiro ano do Ensino Meacutedio Ministrada pelo
orientador educacional a disciplina visaria auxiliar os alunos na escolha entre as diferentes
ocupaccedilotildees dentro de determinada habilitaccedilatildeo (Brasil 1977) No Estado de Satildeo Paulo a
disciplina recebeu o nome de Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP)
O Programa de Informaccedilatildeo Profissional (PIP) consistiu em uma disciplina oferecida aos
alunos do primeiro ano do 2ordm grau das escolas puacuteblicas O objetivo era dar informaccedilotildees e
subsiacutedios aos alunos para realizar a escolha por uma das trecircs opccedilotildees de habilitaccedilatildeo baacutesica O
primeiro ano era comum a todas habilitaccedilotildees sendo que nos dois anos seguintes os alunos
deveriam cursar disciplinas referentes agrave habilitaccedilatildeo escolhida (Silva 2010)
Em relaccedilatildeo ao documento ldquoProgramas de Informaccedilatildeo Profissionalrdquo publicado pela
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagoacutegicas (CENP) estabelecendo os objetivos do PIP e
seu conteuacutedo programaacutetico Silva (2010) constata a concepccedilatildeo presente no documento de que
os alunos tecircm uma imagem errada das profissotildees que deveria ser corrigida pela disciplina por
meio de oferta de informaccedilatildeo profissional qualificada e Lobo (2005) destaca a ausecircncia de
conteuacutedos especiacuteficos sobre o conhecimento do aluno a respeito de si mesmo ou seja
autoconhecimento natildeo aparece como um tema especiacutefico
192
Para Baptista (1984) a contestaccedilatildeo da Lei 569271 (Brasil 1971) por parte da
comunidade escolar estendeu-se ao PIP contaminando a experiecircncia do programa Aleacutem disso
para Baptista (1984) outros fatores que contribuiacuteram para o fracasso do PIP foram
bull Falta de treinamento para professores que se mostraram despreparados
bull Falta de material didaacutetico e bibliograacutefico adequado para utilizaccedilatildeo
bull Desinteresse dos alunos que criticavam a maacute conduccedilatildeo das aulas e do desenvolvimento das
atividades
Baptista (1984) ainda traz outros dois motivos como a ausecircncia de discussatildeo sobre o
contexto socioeconocircmico e poliacutetico do trabalho e a imposiccedilatildeo do programa aos agentes
educativos que natildeo puderam debatecirc-lo Para Silva (2010 p 41) ldquoo contexto poliacutetico do periacuteodo
foi um dos principais motivos de fracasso da disciplinardquo
Somado a isso estavam ausentes no PIP dois pontos importantes na criaccedilatildeo de um
programa direcionado para o atendimento de um grande nuacutemero de pessoas apresentaccedilatildeo de
uma proposta teoacuterica clara como embasamento e consideraccedilatildeo de fatores regionais na sua
elaboraccedilatildeo (Silva 2010) Segundo o autor em programas de OP eacute importante adequar a
proposta agrave comunidade considerando os recursos disponiacuteveis na escola Igualmente uma
proposta tatildeo ampla deve possuir uma clara fundamentaccedilatildeo teoacuterica que propicie a formaccedilatildeo das
pessoas envolvidas e instrumentalize o trabalho No Estado de Satildeo Paulo a experiecircncia do PIP
esteve em vigecircncia ateacute 1982 (Baptista 1984 Carvalho 1985 Lobo 2005)
12 A Lei de Diretrizes e Bases da Educaccedilatildeo Nacional de 1996 e a Reforma do Ensino Meacutedio
ndash Lei no 134152017
A partir do final da deacutecada de 1970 o Brasil comeccedilou a passar por um processo de
abertura poliacutetica e nesse contexto o Governo Federal continuava lidando com o fracasso da
profissionalizaccedilatildeo compulsoacuteria (Palma Filho 2010) Em 1982 eacute promulgada a Lei nordm 704482
que alterou os dispositivos da Lei nordm 569271 retirando a profissionalizaccedilatildeo do ensino do 2ordm
grau (Brasil 1982) Assim voltam a ser opcionais as habilitaccedilotildees profissionais de niacutevel teacutecnico
Vale mencionar que mesmo com a Lei nordm 704482 natildeo foi alterado o Art 10ordm da LDB de 1971
que instituiacutea a obrigatoriedade da orientaccedilatildeo educacional e do aconselhamento vocacional
Praticamente sem alteraccedilotildees significativas a legislaccedilatildeo educacional se manteve ateacute
1996 ocasiatildeo da promulgaccedilatildeo da Lei nordm 939496 (Brasil 1996) Apesar de referecircncias sobre a
questatildeo do trabalho ao longo do texto eacute retirada a menccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo educacional assim
como qualquer menccedilatildeo direta agrave OPvocacional Entretanto a Lei nordm 939496 manteacutem a
193
possibilidade das escolas terem uma parte diversificada nos curriacuteculos de 1ordm e 2ordm graus aleacutem da
base nacional comum o que permitiu a inserccedilatildeo de disciplinas de OP ou semelhantes na grade
curricular em algumas escolas principalmente particulares
Mais recentemente a Medida Provisoacuteria no 7462016 (Brasil 2016b) posteriormente
convertida na Lei no 134152017 (Brasil 2017a) tambeacutem conhecida como Reforma do Ensino
Meacutedio propocircs uma seacuterie de alteraccedilotildees da legislaccedilatildeo anterior Segundo o MEC a Reforma do
Ensino Meacutedio teria por objetivo entre outros tornar o curriacuteculo mais atrativo tornando-o mais
flexiacutevel (Brasil 2016a) O Ensino Meacutedio possuiacutea ldquoum curriacuteculo extenso superficial e
fragmentado que natildeo dialoga com a juventude com o setor produtivo tampouco com as
demandas do seacuteculo XXIrdquo (Brasil 2016a)
Dentre algumas modificaccedilotildees da Lei no 134152017 (Brasil 2017a) somente o ensino
de portuguecircs e matemaacutetica se mantiveram como obrigatoacuterios nos trecircs anos do Ensino Meacutedio O
curriacuteculo deste niacutevel de ensino passa a ser composto por aleacutem da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) itineraacuterios formativos que deveratildeo ser organizados na oferta dos seguintes
arranjos linguagens e suas tecnologias matemaacutetica e suas tecnologias ciecircncias da natureza e
suas tecnologias ciecircncias humanas e sociais aplicadas formaccedilatildeo teacutecnica e profissional (Brasil
2017a)
Sfredo e Silva (2016) apontam que as reformas do Ensino Meacutedio nos uacuteltimos dez anos
anunciam uma aproximaccedilatildeo do processo de escolarizaccedilatildeo com os princiacutepios e leis do mercado
sendo o valor do conhecimento definido pelo potencial de empregabilidade que pode garantir
ao sujeito Segundo os autores o ldquoconhecimento natildeo pode ser esvaziado de seu potencial de
intervenccedilatildeo poliacutetica e socialrdquo (Sfredo amp Silva 2016 p 891) Nesse sentido seria necessaacuterio o
estabelecimento de uma criacutetica agraves reformas educacionais que vinculam ldquoa educaccedilatildeo a ganhos
econocircmicos e ao mesmo tempo responsabiliza o indiviacuteduo por seu sucesso ou fracassordquo
(Sfredo amp Silva 2016 p 893)
Ainda de acordo com a Lei no 134152017 ldquoos curriacuteculos do ensino meacutedio deveratildeo
considerar a formaccedilatildeo integral do aluno de maneira a adotar um trabalho voltado para a
construccedilatildeo de seu projeto de vida e para sua formaccedilatildeo nos aspectos fiacutesicos cognitivos e
socioemocionaisrdquo (Brasil 2017a art 35-A sect7) A escola por sua vez deve ldquoorientar os alunos
no processo de escolha das aacutereas de conhecimento ou de atuaccedilatildeo profissionalrdquo (Brasil 2017a
art 36 sect12) Especificamente sobre a escolha dos itineraacuterios formativos seraacute decidido pelos
sistemas estaduais de ensino quando o aluno faraacute essa escolha pois a parte diversificada do
194
curriacuteculo poderaacute iniciar por exemplo tanto no primeiro quanto no segundo ano do Ensino
Meacutedio (Brasil 2017b)
Atualmente a expressatildeo ldquoprojeto de vidardquo tem sido utilizada com frequecircncia e natildeo haacute
uma definiccedilatildeo clara sobre qual o significado dessa expressatildeo conforme aponta Bock (2018) O
autor assinala que haacute definiccedilotildees que trazem o projeto de vida como uma accedilatildeo individual
desconsiderando a realidade econocircmica social e poliacutetica na qual as pessoas vivem Nestas
definiccedilotildees a pessoa eacute a responsaacutevel pelo seu caminho e posiccedilatildeo na sociedade Ao mesmo
tempo existem concepccedilotildees mais criacuteticas de projeto de vida que colocam a meritocracia em
discussatildeo e que incluem projetos coletivos junto aos pessoais atraveacutes da compreensatildeo da
realidade social econocircmica e poliacutetica aleacutem da histoacuteria de vida e familiar da pessoa
O termo ldquoProjeto de Vidardquo tambeacutem estaacute presente na Base Nacional Comum Curricular
(BNCC) que define o conjunto orgacircnico e progressivo de aprendizagens essenciais que os
alunos devem desenvolver ao longo da Educaccedilatildeo Baacutesica (Brasil 2017c) Estas aprendizagens
asseguram ao estudante o desenvolvimento de dez competecircncias gerais No documento
competecircncia eacute definida como ldquoa mobilizaccedilatildeo de conhecimentos (conceitos e procedimentos)
habilidades (praacuteticas cognitivas e socioemocionais) atitudes e valores para resolver demandas
complexas da vida cotidiana do pleno exerciacutecio da cidadania e do mundo do trabalhordquo (Brasil
2017c p 8) Na BNCC dentre as dez competecircncias gerais temos como uma das competecircncias
gerais da Educaccedilatildeo Baacutesica
Valorizar a diversidade de saberes e vivecircncias culturais e apropriar-se de conhecimentos e
experiecircncias que lhe possibilitem entender as relaccedilotildees proacuteprias do mundo do trabalho e fazer
escolhas alinhadas ao exerciacutecio da cidadania e ao seu projeto de vida com liberdade autonomia
consciecircncia criacutetica e responsabilidade (Brasil 2017c p 9)
Para Ferreti e Silva (2017 p 398) a BNCC quando discute as finalidades do Ensino
Meacutedio possui uma inspiraccedilatildeo gramsciana mas ao mesmo tempo em caraacuteter hiacutebrido apresenta
proposiccedilotildees da ldquoperspectiva do desenvolvimento de competecircncias e do individualismordquo Para
Carvalho e Santos (2016 p 790) a loacutegica das competecircncias nos leva a validar ldquoa falsa ideia de
que as desigualdades sociais satildeo problemas individuais de sujeitos que natildeo foram
suficientemente competentes para se qualificarrdquo
13 O Programa Ensino Integral (PEI) e novos programas no Estado de Satildeo Paulo
No Estado de Satildeo Paulo o PEI foi implantado em 2012 atendendo inicialmente o Ensino
Meacutedio sendo posteriormente estendido para o Ensino Fundamental O PEI foi criado tendo
195
como base o modelo da Escola da Escolha desenvolvido e implementado em 2004 no Ginaacutesio
Pernambucano pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educaccedilatildeo (ICE) e posteriormente
implementado em 17 estados brasileiros
O modelo pedagoacutegico do PEI prevecirc a matriz curricular com uma parte diversificada
que inclui no Ensino Meacutedio as disciplinas Liacutengua Estrangeira Moderna Praacutetica de Ciecircncias
Orientaccedilatildeo de Estudos Projeto de Vida Mundo do Trabalho Preparaccedilatildeo Acadecircmica e
Disciplinas Eletivas (Satildeo Paulo 2014b) Todas as escolas integrantes do programa funcionam
em periacuteodo integral com uma jornada de oito horas diaacuterias e os professores trabalham em
Regime de Dedicaccedilatildeo Plena e Integral (RDPI) de 40 horas semanais (Satildeo Paulo 2012)
A construccedilatildeo do Projeto de Vida mais do que uma disciplina eacute principalmente o eixo
estruturante do PEI O Projeto de Vida ldquoeacute o foco para o qual devem convergir todas as accedilotildees
educativas sendo construiacutedo a partir do provimento da excelecircncia acadecircmica da formaccedilatildeo para
valores e da formaccedilatildeo para o mundo produtivordquo (Satildeo Paulo 2014a p 23) A realizaccedilatildeo do
Projeto de Vida pressupotildee interaccedilatildeo com o Protagonismo Juvenil enquanto princiacutepio premissa
e metodologia (Satildeo Paulo 2014a)
A partir de 2020 atraveacutes do Programa Inovaccedilatildeo Educaccedilatildeo foram anunciadas pelo
Governo do Estado de Satildeo Paulo mudanccedilas na matriz curricular das escolas puacuteblicas Por
exemplo haveraacute uma aula a mais por dia e seratildeo introduzidas novas disciplinas no curriacuteculo
Projeto de Vida Eletivas e Tecnologia Mais especificamente haveraacute por semana duas aulas de
Projeto de Vida duas aulas de Eletivas e uma de Tecnologia ao longo dos trecircs anos do Ensino
Meacutedio (Satildeo Paulo 2019)
A ideia deste novo programa eacute ampliar para a rede as experiecircncias ocorridas nas escolas
do PEI e assim como ocorre neste modelo professores de diferentes aacutereas poderatildeo ministrar
as novas disciplinas Aleacutem disso tambeacutem foi anunciado o ldquoPrograma Seguranccedila nas Escolasrdquo
no qual dentre outras medidas haveraacute a implantaccedilatildeo de equipes de psicoacutelogos e assistentes
sociais nas diretorias de ensino para realizar atividades como a formaccedilatildeo de profissionais e o
ldquodesenvolvimento de habilidades socioemocionais aliadas ao curriacuteculo escolarrdquo (Satildeo Paulo
2019 p 35)
Para a anaacutelise do PEI como uacuteltimo modelo proposto de poliacutetica puacuteblica que auxiliaria
nas questotildees de OP a ser estudado no presente capiacutetulo seraacute utilizada uma proposta
socioconstrucionista (Blustein 2011 McNamee 2012) apresentada a seguir
196
2 Uma proposta socioconstrucionista de anaacutelise para a orientaccedilatildeo profissional (OP)
A perspectiva socioconstrucionista eacute multifacetada e se constitui numa rede de propostas
de anaacutelise de fenocircmenos psicossociais ou seja que acontecem na relaccedilatildeo entre pessoas e
contextos e partem de alguns princiacutepios gerais
Visa compreender a realidade de forma dinacircmica sem partir de pressupostos
predeterminados por isso eacute baseada numa ontologia relacional pois postula que o
conhecimento e a realidade satildeo produzidos em relaccedilatildeo (Blustein 2011 McNamee 2012) Neste
sentido preconiza a existecircncia de muacuteltiplas visotildees de mundo (narrativas) que podem ser
intercambiadas e gerar padrotildees (discursos) sempre a partir da visatildeo da indissociabilidade entre
as dimensotildees subjetiva e social nomeada de psicossocial (Ribeiro 2017)
Assim a realidade seria sempre um discurso sobre a realidade produzido
intersubjetivamente e que visa cristalizar posicionamentos coletivos (macronarrativas) atraveacutes
da produccedilatildeo de significados As narrativas seriam produccedilotildees singulares (micronarrativas) que
visam interpelar e desconstruir os discursos atraveacutes da produccedilatildeo de sentidos As praacuteticas e
processos sociais como as poliacuteticas puacuteblicas por exemplo satildeo produccedilotildees discursivas
coconstruiacutedas na teia de relaccedilotildees psicossociais definindo transitoriamente quais seriam os
discursos e significados norteadores de dada praacutetica social em determinado contexto e em
determinado momento soacutecio-histoacuterico Esta loacutegica possibilita a anaacutelise dos discursos sociais
que fundamentam dada praacutetica social como eacute o caso do programa PEI aqui estudado
Especificamente no campo da OP a perspectiva construcionista auxilia a pensar a
construccedilatildeo das trajetoacuterias e projetos de vida de trabalho bem como analisar praacuteticas como a
disciplina de Projeto de Vida entendidos como discursos intersubjetivamente gerados na
relaccedilatildeo entre significados e sentidos produzidos pela accedilatildeo de muacuteltiplos atores sociais entre
eles gestores puacuteblicos legisladores professores e alunos (Ribeiro 2014)
3 Objetivo
Esta pesquisa teve por objetivo compreender teoacuterico-metodoloacutegica e ideologicamente a
proposta da disciplina Projeto de Vida nas escolas do Programa Ensino Integral (PEI) do Estado
de Satildeo Paulo a partir da perspectiva do construcionismo social
Enquanto objetivos especiacuteficos buscou-se
a) Compreender como ocorre a construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina
197
b) Identificar qual eacute o papel do professor na construccedilatildeo do projeto de vida na disciplina
e qual eacute a preparaccedilatildeo ou a formaccedilatildeo que recebe para ministraacute-la
c) Depreender a relevacircncia do protagonismo juvenil na construccedilatildeo do projeto de vida
d) Verificar se a disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como uma poliacutetica
puacuteblica de Orientaccedilatildeo Profissional (OP) na grade curricular
4 Metodologia
A pesquisa qualitativa pode ser definida como ldquoum conjunto de praacuteticas materiais e
interpretativas que datildeo visibilidade ao mundordquo (Denzin amp Lincoln 2006 p 17) Para Morrow
(2007) os meacutetodos qualitativos satildeo eficazes em examinar processos e apropriados em
responder perguntas sobre o ldquocomordquo e o ldquoporquecircrdquo os fenocircmenos psicossociais ocorrem Essas
metodologias podem ser usadas para explorar variaacuteveis que natildeo satildeo facilmente identificaacuteveis
ou que ainda natildeo foram identificadas assim como investigar temas pelos quais ainda natildeo
existem pesquisas ou existem poucas (Morrow 2007)
Nesta pesquisa foi utilizada uma metodologia qualitativa narrativa (Polkinghorne
1988) Um dos objetivos do processo de pesquisa eacute restaurar a agecircncia para o autor da narrativa
(Parker 2005 p 72) pois a agecircncia foi retirada das pessoas ao serem tratadas como objeto de
pesquisa Voltar a ser sujeito na narrativa implica uma relaccedilatildeo com um tempo e um contexto
social ou seja a histoacuteria deve ser contada dentro de um determinado quadro temporal (Parker
2005) Da mesma forma de acordo com Parker (2005) uma narrativa eacute sempre tambeacutem uma
narrativa cultural
41 Seleccedilatildeo das escolas para a realizaccedilatildeo do trabalho de campo (anaacutelise documental e grupos
focais)
Foram procuradas duas escolas que estivessem localizadas em regiotildees distintas na
Regiatildeo Metropolitana de Satildeo Paulo denominadas para esta pesquisa de Escola A e Escola B
com base em criteacuterios socioeconocircmicos ou seja uma escola que atendesse alunos de classe
meacutedia e outra escola que tivesse mais alunos de classe baixa
A Escola A estaacute localizada na cidade de Guarulhos em um bairro comercial A escola
possui cerca de 600 alunos divididos em 18 turmas Conta com cerca 36 professores sendo que
13 ministram a disciplina Projeto de Vida Segundo dados sociodemograacuteficos coletados pela
198
proacutepria escola cerca de 80 dos alunos satildeo de classe meacutedia e 25 moram no proacuteprio bairro
A escola havia entrado no PEI haacute quase trecircs anos na eacutepoca da realizaccedilatildeo da pesquisa
Por seu lado a Escola B estaacute localizada na cidade de Satildeo Paulo proacutexima agrave regiatildeo de
Guaianases no extremo leste do municiacutepio O bairro eacute considerado um ldquobairro dormitoacuteriordquo
Cerca de 80 dos alunos moram no proacuteprio bairro e a renda salarial de seus responsaacuteveis legais
varia entre um a trecircs salaacuterios miacutenimos portanto podendo ser considerados de classe baixa A
escola possui cerca de 110 alunos distribuiacutedos em sete turmas Possui 15 professores sendo que
trecircs destes ministram a disciplina Projeto de Vida A escola havia entrado no PEI haacute menos de
um ano do momento da realizaccedilatildeo da pesquisa
42 Contato com as escolas
O contato com a Escola A foi realizado em um primeiro momento atraveacutes de um
professor de Projeto de Vida da instituiccedilatildeo que havia procurado anteriormente o Serviccedilo de
Orientaccedilatildeo Profissional do Instituto de Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (SOP-IPUSP)
Por sua vez o contato com a Escola B foi realizado por telefone cujo nuacutemero estaacute disponiacutevel
na internet A pesquisa foi realizada na Escola A no mecircs de abril de 2018 e na Escola B nos
meses de agosto e setembro de 2018
43 Cuidados eacuteticos e autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa
Como cuidados eacuteticos foram assinados pelos diretores das escolas um termo de
autorizaccedilatildeo para a realizaccedilatildeo da pesquisa assim como foi entregue para professores e pais um
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) Para alunos foi entregue um Termo de
Assentimento
44 Seleccedilatildeo dos documentos escolares para serem analisados
Foram analisadas as apostilas das disciplinas de Projeto de Vida Preparaccedilatildeo Acadecircmica
e Mundo do Trabalho que satildeo padronizadas para toda as escolas do PEI A princiacutepio foi
pensado em ser analisado tambeacutem o Projeto Poliacutetico-Pedagoacutegico de cada escola Entretanto
durante a pesquisa atraveacutes do contato com a direccedilatildeo da escola e dos grupos focais realizados
com professores foi constatado que esse documento natildeo orienta as praacuteticas da escola da mesma
forma que os documentos do PEI
199
45 Seleccedilatildeo dos participantes e realizaccedilatildeo dos grupos focais
Dois grupos de participantes foram recrutados para a presente pesquisa alunos do
terceiro ano Ensino Meacutedio de escolas do PEI e professores de escolas que estavam
desenvolvendo o PEI e que ministrassem a disciplina de Projeto de Vida ndash alvo da anaacutelise da
presente pesquisa Com base nas propostas de Carlini-Cotrim (1996) e Millward (2010) foram
realizados dois grupos focais especiacuteficos um com alunos e outro com professores
Para a realizaccedilatildeo dos grupos focais com alunos nas escolas selecionadas o pesquisador
entrou em cada turma de terceiro ano do Ensino Meacutedio para convidaacute-los a participar da
pesquisa Foi realizado um uacutenico grupo focal com alunos em cada escola contendo 11
participantes na Escola A e 9 na Escola B No total apresentaram uma idade meacutedia de 17 anos
sendo 70 do sexo feminino e 30 do masculino
Em relaccedilatildeo aos grupos com professores todos os professores de Projeto de Vida das
escolas selecionadas foram convidados pelo pesquisador sendo que todos aceitaram o convite
Foi realizado um uacutenico grupo focal com professores em cada escola contendo 13 participantes
na Escola A e trecircs na Escola B No total 81 dos professores eram do sexo feminino e 19
do sexo masculino apresentando uma idade meacutedia de 46 anos As formaccedilotildees universitaacuterias dos
professores eram nos cursos de Ciecircncias Bioloacutegicas Ciecircncias Sociais Educaccedilatildeo Artiacutestica
Educaccedilatildeo Fiacutesica Filosofia Histoacuteria Letras Matemaacutetica Pedagogia e Psicologia
46 Anaacutelise documental e anaacutelise dos grupos focais
Foi realizada uma anaacutelise de conteuacutedo dos discursos sociais e das narrativas pessoais
produzidos em documentos escolares e nos grupos focais com base em Bardin (1977)
Inspirada no socioconstrucionismo esta pesquisa tem como princiacutepio uma ontologia relacional
na qual a realidade eacute intersubjetivamente construiacuteda Narrativas e discursos produzidos e
articulados nas relaccedilotildees satildeo o foco da investigaccedilatildeo que tem a hermenecircutica diatoacutepica como
principal estrateacutegia para a interpretaccedilatildeo de significados sobre os fenocircmenos psicossociais e que
adota o diaacutelogo democraacutetico como sua perspectiva eacutetico-poliacutetica Na hermenecircutica diatoacutepica a
produccedilatildeo de sentidos se daacute na relaccedilatildeo entre todos (pesquisadores e participantes no presente
caso) e o conhecimento especiacutefico de cada um eacute levado em conta para a anaacutelise final (Ribeiro
2017) Foi realizada a leitura dos documentos escolares selecionados e das transcriccedilotildees dos
200
grupos focais Em seguida foram elaborados dois eixos de anaacutelise das produccedilotildees discursivas
teoacuterico-metodoloacutegico e ideoloacutegico
5 Anaacutelise dos resultados
51 Eixo Teoacuterico-Metodoloacutegico
Na perspectiva socioconstrucionista de OP as ideias de projeto de vida e plano de accedilatildeo
estatildeo presentes envolvendo processos contiacutenuos de escolhas (Ribeiro 2011) Projeto de vida
como narrativa abrange a compreensatildeo de eventos passados da vida das pessoas e o
planejamento de accedilotildees futuras Assim estaacute proacuteximo ao realizado na disciplina Projeto de Vida
na qual satildeo trabalhados o autoconhecimento a identidade e os valores pessoais
conhecer a si e conhecer os outros De onde vocecirc veio quem eacute vocecirc (Professor da Escola
B)
Por sua vez o plano de accedilatildeo no trabalho enquanto dimensatildeo operativa e instrumental
do projeto de vida de trabalho pode ser definido como um conjunto de accedilotildees para atingir um
fim (Ribeiro 2011) Vemos na disciplina Projeto de Vida o estabelecimento de um objetivo a
ser alcanccedilado e o planejamento para atingiacute-lo
Eacute tudo o que a gente quer alcanccedilar e como a gente vai fazer para alcanccedilar o objetivo (Aluna da
Escola B)
Neste sentido podemos afirmar que a disciplina Projeto de Vida tem todas as
caracteriacutesticas necessaacuterias para ser definida como accedilatildeo de OP apesar dos documentos oficiais
natildeo utilizarem esta nomeaccedilatildeo Inclusive o termo ldquoProjeto de vidardquo pode ser traduzido para a
liacutengua inglesa como ldquolife designrdquo que eacute uma das propostas contemporacircneas fundamentadas no
construcionismo social do campo da OP (Savickas et al 2009)
A disciplina Projeto de Vida pode ser entendida como accedilatildeo da OP primeiramente por
visar a construccedilatildeo de um projeto de vida principalmente focado no projeto de vida de trabalho
embora natildeo preconize este objetivo central em suas diretrizes
A disciplina Projeto de Vida visa no seu final o mercado de trabalho esta eacute a essecircncia da
disciplina natildeo satildeo apenas os seus sonhos diversos (Professor da Escola A)
E em segundo lugar por guardar semelhanccedilas com modelos tradicionais de OP como
o modelo da Ativaccedilatildeo do Desenvolvimento Vocacional e Pessoal (ADVP Pelletier Noiseux
amp Bujold 1982) ao se focar em situaccedilotildees de aprendizagem predefinidas e investir no
desenvolvimento sociocognitivo para planejamento do futuro bem como com a proposta de
201
Educaccedilatildeo para a Carreira (Hoyt 1987) Deve-se salientar que nenhuma dessas duas tradicionais
propostas do campo da OP satildeo citadas como referecircncia para a disciplina nem que ela seria uma
estrateacutegia de OP
Em comparaccedilatildeo ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) antiga poliacutetica puacuteblica de
OP do Estado de Satildeo Paulo o PEI apresenta avanccedilos por trazer aleacutem da questatildeo da informaccedilatildeo
profissional o desenvolvimento do autoconhecimento e da construccedilatildeo do futuro via projetos
Ainda o PEI apresenta uma proposta de OP integrada ao projeto da escola que tem como eixo
estruturante a construccedilatildeo do projeto de vida do aluno Nesse aspecto tambeacutem estaacute aleacutem do
antigo PIP cuja disciplina estava desarticulada com o restante do projeto poliacutetico-pedagoacutegico
da escola
Tanto no PIP quanto no PEI o professor possui um papel central nas praacuteticas de OP que
satildeo desenvolvidas e historicamente sabe-se que um dos motivos do fracasso do PIP foi a falta
de treinamento especializado para os professores (Baptista 1984 Carvalho 1985 Silva 2010)
No PEI os professores relatam que recebem uma formaccedilatildeo precaacuteria para ministrar a disciplina
Projeto de Vida sendo realizada principalmente entre eles proacuteprios nas reuniotildees de
alinhamento e no dia a dia da sala de aula
no primeiro ano noacutes natildeo tivemos formaccedilatildeo absolutamente nenhuma (Professora da Escola A)
Nossa maior formaccedilatildeo eacute entre noacutes mesmos (Professor da Escola B)
Pessente (2016 p 61) traz o relato de professores do PEI afirmando que os processos
formativos mais uacuteteis foram aqueles oferecidos na proacutepria escola e na troca entre os colegas
configurando-se como um ldquoprocesso de formaccedilatildeo coletivordquo e realizado na praacutetica com base na
experiecircncia de cada um
Uma formaccedilatildeo de professores especiacutefica e sistemaacutetica se faz necessaacuteria aos professores
da disciplina Projeto de Vida Eacute um risco considerar que somente sua experiecircncia profissional
e pessoal seratildeo suficientes para desempenhar seu papel Essa formaccedilatildeo ou a precariedade desta
tambeacutem influencia em como os professores entendem as diretrizes da disciplina e como
adequam e criam as atividades para serem dadas em sala de aula
52 Eixo Ideoloacutegico
As produccedilotildees narrativas de alunos e professores reproduzem o discurso empresarial no
qual destacam-se deste leacutexico algumas palavras-chave como competiccedilatildeo metas pressatildeo
competecircncia
202
eu tenho que ser melhor que todo mundo nessa sala para eu conseguir alcanccedilar meu objetivo
(Aluna da Escola A)
Nos documentos do PEI o desenvolvimento de competecircncias surge com destaque nas
produccedilotildees discursivas Para Baptista (2015) enquanto haacute nos documentos norteadores do PEI
a sugestatildeo de uma educaccedilatildeo focada no ser humano um modelo empresarial eacute a base da gestatildeo
da escola atraveacutes da cobranccedila de metas e resultados fundamentados no que a loacutegica empresarial
preconiza como metas e resultados relevantes independentemente da realidade na qual a escola
estaacute inserida Para alcanccedilar esse resultado e reconhecimento os alunos devem concorrer com
os demais candidatos ateacute mesmo da proacutepria escola por vagas no Ensino Superior A base
ideoloacutegica desta competiccedilatildeo eacute a meritocracia neoliberal
vocecirc se vecirc forccedilado a entrar a passar para falar eu consegui eu sou bom o suficiente eles
potildeem vocecirc numa posiccedilatildeo de ou vocecirc eacute ou vocecirc eacute (Aluna da Escola A)
No acircmbito do trabalho o discurso neoliberal enfatiza a responsabilidade de cada pessoa
por seus resultados de carreira ao inveacutes de uma responsabilizaccedilatildeo da sociedade ou
organizacional (Roper Ganesh amp Inkson 2010) A desigualdade social eacute colocada como um
ldquoinfeliz resultado de um mundo globalizado tecnologicamente avanccedilado e competitivo que
pode ser superado pelas pessoas atraveacutes da determinaccedilatildeo pessoal da inovaccedilatildeo e do trabalho
durordquo (Irving 2010 p 59)
Exemplos desse discurso estatildeo presentes nas atividades do caderno do professor no qual
satildeo apresentadas histoacuterias de brasileiros que obtiveram sucesso na vida graccedilas ao seu esforccedilo
pessoal Por sua vez o protagonismo juvenil surge reforccedilando a responsabilizaccedilatildeo do aluno
pela concretizaccedilatildeo do seu projeto de vida Nos documentos do programa haacute uma naturalizaccedilatildeo
da atual estrutura sociolaboral O mundo de trabalho jaacute estaacute dado e o sucesso eacute pessoal e
individualizado baseado na loacutegica empresarial vigente do que eacute ter sucesso
Hoje eacute aquele negoacutecio ou vocecirc eacute patratildeo ou vocecirc eacute peatildeo (Aluna da Escola A)
Entretanto estes discursos hegemocircnicos satildeo parciais Haacute uma divergecircncia entre as
produccedilotildees discursivas sociais e as narrativas de professores e alunos Inclusive haacute diversidade
entre as proacuteprias narrativas de professores e alunos pois enquanto alguns reproduzem o
discurso meritocraacutetico neoliberal outros o questionam
ldquoEntatildeo estuda que vocecirc vai conseguirrdquo mas nem sempre vocecirc consegue A realidade eacute essa e
ela bate na porta (Aluna da Escola A)
Tem vaacuterias pessoas que satildeo felizes tecircm sucesso e que natildeo tecircm necessariamente uma faculdade
(Professora da Escola B)
203
Segundo Blustein (2011) McNamee (2012) e Ribeiro (2014 2017) com base no
construcionismo social esta divergecircncia caracteriza a construccedilatildeo ontoloacutegica relacional na qual
uma realidade natildeo eacute reproduzida mas coconstruiacuteda na relaccedilatildeo entre os atores narrativas e
discursos envolvidos No presente caso o discurso do PEI focado na loacutegica neoliberal e as
narrativas accedilotildees e reflexotildees dos professores e alunos baseada em suas realidades de vida
O discurso social predominante no PEI eacute a valorizaccedilatildeo do Ensino Superior a formaccedilatildeo
universitaacuteria como objetivo do Projeto de Vida Quando este objetivo se encontra
descontextualizado um modelo de sucesso pode se tornar um modelo de fracasso Estabelecer
como o uacutenico caminho para todos os alunos a formaccedilatildeo universitaacuteria considerando que natildeo haacute
vagas suficientes neste niacutevel de ensino tornaraacute esses alunos exemplos de fracasso e geraraacute mais
frustraccedilatildeo Contudo foi possiacutevel encontrar nas narrativas de professores e alunos divergecircncias
em relaccedilatildeo ao discurso social predominante no programa nas quais outros tipos de projetos
tambeacutem satildeo valorizados reforccedilando a ideia de que a realidade eacute coconstruiacuteda (Ribeiro 2014
Savickas et al 2009)
De forma alguma se trata por exemplo de deixar de estimular ou encorajar os alunos
O que se propotildee eacute estimular o aluno a ter maiores aspiraccedilotildees sem no entanto desvalorizar ou
menosprezar os projetos que natildeo passem pela escolha de uma universidade Os professores
devem ter o cuidado de levar em conta o contexto do aluno motivando-o sem ultrapassar o
limite de impor um modelo de sucesso que natildeo eacute dele Projetos como a escolha de um curso
teacutecnico ou a constituiccedilatildeo de uma famiacutelia ao final do Ensino Meacutedio devem ser respeitados e
legitimados
Um uacuteltimo aspecto a ser destacado refere-se agraves produccedilotildees discursivas em torno do
mundo do trabalho que eacute apresentado enquanto uma realidade natural Natildeo eacute realizada no PEI
uma discussatildeo sobre as representaccedilotildees sociais das carreiras sobre o contexto histoacuterico-poliacutetico
do trabalho ou sobre a interseccionalidade entre classe social gecircnero e raccedila no mundo do
trabalho
Criacuteticas semelhantes foram realizadas ao Programa Informaccedilatildeo Profissional (PIP) por
Baptista (1984) e ao modelo da Educaccedilatildeo para a Carreira por Irving (2010) Para Irving (2018)
as discussotildees sobre carreira deveriam dar suporte a muacuteltiplas maneiras de ser e participar no
mundo assim como possibilitar aos estudantes uma exploraccedilatildeo sobre caminhos coletivos nos
quais podem influenciar e impactar seu contexto poliacutetico econocircmico e social
204
Consideraccedilotildees finais
Teoacuterica e metodologicamente a disciplina de Projeto de vida se assemelha a modelos
tradicionais do campo da OP e pode ser considerada uma poliacutetica puacuteblica de OP apesar de natildeo
ser assim nomeada e de natildeo oferecer treinamento adequado aos professores responsaacuteveis pela
disciplina E ideologicamente a disciplina carrega o discurso neoliberal do esforccedilo individual
e da alta qualificaccedilatildeo como uacutenicos caminhos para o sucesso na vida de trabalho apesar de
narrativas singulares de professores e alunos problematizarem esta visatildeo
No Brasil natildeo haacute uma norma que regulamente a profissatildeo de orientador profissional
podendo ser encontrados neste campo de atuaccedilatildeo diferentes profissionais como psicoacutelogos
administradores pedagogos licenciados (professores) etc Assim como na deacutecada de 1970 na
qual os professores tiveram destaque atraveacutes de disciplinas de orientaccedilatildeo na grade curricular
com a atual Reforma do Ensino Meacutedio os professores voltam a ser os principais agentes da OP
No caso do Estado de Satildeo Paulo isso jaacute acontece no PEI e seraacute ampliado com o Programa Inova
Educaccedilatildeo
Considerando as reformas curriculares e a inserccedilatildeo da OP nestas poliacuteticas educacionais
atraveacutes de termos como Projeto de Vida faz-se relevante que a OP enquanto aacuterea deva se
preparar para os modelos pedagoacutegicos jaacute existentes e para as praacuteticas que seratildeo implementadas
Principalmente que seja oferecida formaccedilatildeo adequada para os professores e para os demais
educadores no desenvolvimento destes modelos de OP utilizados como poliacutetica puacuteblica de
educaccedilatildeo e trabalho
Para que esse diaacutelogo entre OP e educaccedilatildeo seja estabelecido haacute alguns caminhos que
podem ser apontados como a criaccedilatildeo ou o aprimoramento de espaccedilos de formaccedilatildeo em OP para
educadores seja em cursos de graduaccedilatildeo poacutes-graduaccedilatildeo ou eventos cientiacuteficos
No Estado de Satildeo Paulo a futura inserccedilatildeo de psicoacutelogos nas diretorias de ensino mesmo
que a princiacutepio seja para fazer parte de um programa voltado para a seguranccedila nas escolas abre
como possibilidade a atuaccedilatildeo direta nas poliacuteticas puacuteblicas educacionais As diretorias de ensino
enquanto intermediaacuterias entre a Secretaria da Educaccedilatildeo do Estado de Satildeo Paulo (SEESP) e a
direccedilatildeo de cada escola tecircm como algumas de suas atribuiccedilotildees implementar programas de
formaccedilatildeo continuada a docentes aleacutem de supervisionar e acompanhar o funcionamento das
escolas Neste aspecto faraacute sentido se o psicoacutelogo na Diretoria de Ensino trabalhar em conjunto
com a Equipe de Supervisatildeo de Ensino (ESE) e o Nuacutecleo Pedagoacutegico (NPE) mais
especificamente com os Professores Coordenadores do Nuacutecleo Pedagoacutegico (PCNPs)
205
Sobre a atuaccedilatildeo do psicoacutelogo-orientador profissional na formaccedilatildeo de educadores seja
nas diretorias de ensino ou em outros espaccedilos eacute possiacutevel antecipar como principal desafio a
preparaccedilatildeo enquanto educador e psicoacutelogo escolar Reafirmarmos o apontamento de Uvaldo
Garcia Munhoz e Teixeira (2012) sobre a necessidade de se incluir na formaccedilatildeo dos
orientadores profissionais conhecimentos sobre o funcionamento do sistema educacional
brasileiro dos processos de aprendizagem e das linhas pedagoacutegicas
O olhar da psicologia social nas poliacuteticas puacuteblicas como no caso de poliacuteticas
educacionais auxilia a pensar psicossocialmente os fenocircmenos e ampliar as possibilidades de
construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo de programas gerais e de metodologias focadas na relaccedilatildeo pessoa e
contexto social Como principais limitaccedilotildees do estudo podemos citar a regionalizaccedilatildeo da
pesquisa concentrada na cidade de Satildeo Paulo uma anaacutelise que natildeo focou as questotildees da
interseccionalidade de gecircnero raccedilaetnia e classe e a falta de estudos sobre a mesma temaacutetica
ainda recente para uma melhor validaccedilatildeo intersubjetiva da pesquisa
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Capiacutetulo 11
A tessitura de redes de diaacutelogo e de participaccedilatildeo de crianccedilas no cuidado
hospitalar pediaacutetrico
Andreacuteia Maria de Lima Assunccedilatildeo
Daniela Barros da Silva Freire Andrade
Adriana Marcondes Machado
Introduccedilatildeo
Este capiacutetulo tem como propoacutesito ensejar a construccedilatildeo de uma composiccedilatildeo que
estabeleccedila entrelaccedilamentos entre a infacircncia a psicologia e as poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves
crianccedilas Para tanto entrevistas com crianccedilas hospitalizadas na enfermaria pediaacutetrica de um
hospital puacuteblico do municiacutepio de CuiabaacuteMT produzidas no acircmbito de uma pesquisa de
mestrado (Assunccedilatildeo 2018) foram revisitadas com o intuito de mobilizar reflexotildees que
desvelassem os modos de inscriccedilatildeo e as redes de significaccedilotildees partilhados por 26 crianccedilas-
usuaacuterias frente agraves praacuteticas de cuidado em sauacutede a elas dirigidas
Na medida em que a investigaccedilatildeo apresentada assumiu o delineamento de uma
abordagem de pesquisa com crianccedilas enfatizou-se uma modalidade de escuta atenta ao
pertencimento e agrave inserccedilatildeo social de uma categoria geracional que dispotildee de estatuto social e
poliacutetico especiacuteficos e que mobiliza processos de inserccedilatildeo social fundados por esta condiccedilatildeo de
existecircncia Para tanto orientou-se pelos contornos da pesquisa do tipo etnograacutefica tal como
sintetiza Andreacute (2003) apoiada pelo emprego de entrevistas de observaccedilatildeo participante e de
anaacutelise documental A presente discussatildeo edificaraacute como recorte os conteuacutedos engendrados
particularmente pelas entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas
Diante das conjecturas analiacuteticas empreendidas elucidou-se que as participantes ao
expressarem seus processos de elaboraccedilatildeo e partilha acerca de suas experiecircncias de
hospitalizaccedilatildeo anunciaram tambeacutem por intermeacutedio deste exerciacutecio de enunciaccedilatildeo os
atravessamentos suscitados pelos arranjos institucionais de organizaccedilatildeo e gestatildeo dos serviccedilos
de assistecircncia em sauacutede exprimindo as formas pelas quais interpretavam e imprimiam sentidos
agraves praacuteticas de cuidado ofertadas pelas equipes de sauacutede que compunham a instituiccedilatildeo enfocada
211
Os conteuacutedos explicitados pelas crianccedilas permitiram depreender que o agenciamento de
encontros intergeracionais menos hierarquizados em um contexto puacuteblico de sauacutede pediaacutetrica
pode adquirir o potencial de configurar-se enquanto fecundo dispositivo de participaccedilatildeo social
e de produccedilatildeo de visibilidade ciacutevica da infacircncia sinalizando possibilidades de inserccedilatildeo capazes
de oportunizar a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico de tais instituiccedilotildees
Em atenccedilatildeo a isso pondera-se que o universo de relaccedilotildees sociais forjado no acircmbito dos
equipamentos puacuteblicos de sauacutede extrapola as fronteiras circunscritas agraves suas respectivas funccedilotildees
sociais de oferta de serviccedilos e estrateacutegias amalgamadas por percursos de atenccedilatildeo em sauacutede
assentados na prevenccedilatildeo promoccedilatildeo tratamento e reabilitaccedilatildeo traspondo-se a uma esfera que
considera a perspectiva do desenvolvimento dos sujeitos Neste sentido ao consolidar-se a
partir do marco constitucional do direito agrave sauacutede o acesso agraves instituiccedilotildees puacuteblicas se configura
enquanto componente da complexa rede de relaccedilotildees biopsicossociais que concorre para os
processos de constituiccedilatildeo dosas usuaacuteriosas notabilizando a dimensatildeo educativa poliacutetica e
cidadatilde que as encerram ao mobilizarem processos de participaccedilatildeo e inscriccedilatildeo no interior da
rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede
Para a construccedilatildeo do itineraacuterio teoacuterico e analiacutetico ora proposto delineou-se a elaboraccedilatildeo
de subtemas que perpassaram a discussatildeo em torno do estatuto social da infacircncia em diaacutelogo
com a teoria histoacuterico-cultural o destaque das disposiccedilotildees sobre sauacutede da crianccedila a partir de
poliacuteticas e resoluccedilotildees especiacuteficas eleitas com o propoacutesito de explicitar os princiacutepios e diretrizes
que preconizam as crianccedilas-usuaacuterias como copartiacutecipes nos processos de gestatildeo produccedilatildeo
tratamento e avaliaccedilatildeo em sauacutede a contextualizaccedilatildeo da pesquisa de mestrado cujos dados foram
emprestados a anaacutelise das entrevistas com as crianccedilas hospitalizadas e as consideraccedilotildees finais
desta discussatildeo
1 O estatuto social das crianccedilas em diaacutelogo com a teoria histoacuterico-cultural e a sociologia
da infacircncia
Os conhecimentos partilhados sobre a infacircncia bem como acerca de seu potencial de
participaccedilatildeo social e poliacutetica satildeo engendrados por processos histoacutericos e sociais de construccedilatildeo
fundados por referecircncias e paradigmas distintos e coexistentes que disputam sua constituiccedilatildeo
Neste aspecto dedica-se agrave exploraccedilatildeo das formulaccedilotildees tencionadas pela teoria histoacuterico-
cultural de Vygotsky (2000a 2000b) e a sociologia da infacircncia (Sarmento 2007 Ferreira
212
2010) que colaborem para a compreensatildeo deste quadro conceitual e histoacuterico que participa da
constituiccedilatildeo do estatuto social da infacircncia
Em uma anaacutelise acerca da concepccedilatildeo de desenvolvimento segundo a qual a teoria
histoacuterico-cultural estabeleceu seus alicerces Vygotsky (2000a) enfatizou a necessidade de
combater as formulaccedilotildees que postulassem pela permanecircncia de um vestiacutegio oculto de
ldquopreformismordquo em torno das apreciaccedilotildees acerca do desenvolvimento infantil
O referido pressuposto ancora-se sob um paradigma vigente de maneira velada no
pensamento social e cientiacutefico que considera que a crianccedila se diferenciaria dosas adultosas
exclusivamente pelos contornos e proporccedilotildees fiacutesicas Esta imagem culturalmente eleita
adquiriu eficaacutecia e reverberaccedilatildeo social com o propoacutesito de tecer explicaccedilotildees aos fenocircmenos
pertinentes ao desenvolvimento infantil tendo sido a crianccedila usualmente simbolizada pela
designaccedilatildeo de adulto em miniatura (Vygotsky 2000a)
As teorias ldquopreformistasrdquo ampararam-se pela concepccedilatildeo de que o desenvolvimento se
estabelece sob condiccedilotildees simplesmente quantitativas cuja ldquosementerdquo do humano carrega
consigo todas as estruturas e particularidades de um organismo jaacute formado e maduro (Vygotsky
2000a)
As teorias psicoloacutegicas dedicadas agrave gecircnese do desenvolvimento infantil bem como a
proacutepria praacutetica psicoloacutegica empenham-se no esforccedilo de reiterar que tal fenocircmeno encerra
processos que superam a noccedilatildeo elementar de transformaccedilotildees quantitativas evidenciando que
os meacutetodos essencialmente comparativos entre adultosas e crianccedilas produzem saberes e teorias
que ocasionam a reduccedilatildeo da infacircncia aos aspectos contrastantes de sua situaccedilatildeo de
desenvolvimento em relaccedilatildeo agrave doa adultoa (Vygotsky 2000a) Neste campo desvelam-se
enfoques investigativos teoacutericos e praacuteticos que nada revelam acerca dos traccedilos da condiccedilatildeo
humana da infacircncia em estaacutegio singular de desenvolvimento e aprendizagem
Diante dessas consideraccedilotildees sublinha-se que tais discursos construiacutedos ao longo da
histoacuteria incorrem em impactos psicossociais que adquirem o potencial de produzir efeitos de
invisibilizaccedilatildeo da infacircncia concorrendo para a constituiccedilatildeo de seu estatuto social A
constituiccedilatildeo simboacutelica desta categoria geracional mediante as condiccedilotildees enfatizadas encontra-
se inscrita nas redes de significados socialmente elaboradas que a partir dos processos de
interpretaccedilatildeo da realidade orientam praacuteticas e discursos que circunscrevem a infacircncia e as
crianccedilas
213
As investigaccedilotildees desenvolvidas na seara da sociologia da infacircncia discorrem acerca do
processo de ocultamento da complexidade social da categoria geracional infacircncia gerando
impactos a respeito do que se sabe sobre as infacircncias e crianccedilas posto que ldquonuma ciecircncia que
tem sido predominantemente produzida a partir de uma perspectiva adultocentrada as
vivecircncias culturas e representaccedilotildees das crianccedilas escapam-se ao conhecimento que delas temosrdquo
(Sarmento 2007 p 26)
O campo das imagens sociais sobre a infacircncia se traduz por um expressivo significado
social que incorre na produccedilatildeo de seu estatuto social o qual se revela na esfera da justificaccedilatildeo
das praacuteticas dosas adultos em relaccedilatildeo agraves crianccedilas sobretudo objetivada pela prescriccedilatildeo e pela
invisibilidade de sua potecircncia social cultural poliacutetica e ciacutevica na medida em que eacute considerada
sob a eacutegide da marca da negatividade e da ausecircncia (Sarmento 2007)
Os argumentos expostos contribuem para a formulaccedilatildeo da hipoacutetese de que tais
concepccedilotildees fortalecem os discursos mais estaacuteveis e tradicionais antagocircnicos ao paradigma
preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas pertinentes ao setor sauacutede acerca da infacircncia que
privilegiam as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas que legitimam a condiccedilatildeo de cidadania destes
sujeitos
Contrapondo-se agrave concepccedilatildeo de que o desenvolvimento cultural seria uma continuaccedilatildeo
direta do desenvolvimento natural da crianccedila Vygotsky (2000b) propotildee que
[hellip] quando a crianccedila se insere na cultura natildeo apenas apreende algo natildeo apenas assimila e se
enriquece com o que estaacute fora dela [crianccedila] mas a proacutepria cultura reelabora profundamente a
composiccedilatildeo natural do comportamento da crianccedila e fornece uma orientaccedilatildeo completamente
nova a todo o curso de seu desenvolvimento (Vygotsky 2000b p 305 traduccedilatildeo nossa) 1
Assim notabiliza-se que aleacutem de enfatizar o caraacuteter dialeacutetico do desenvolvimento
cultural da crianccedila Vygotsky (2000b) anuncia que a mesma tambeacutem contribui para a
reelaboraccedilatildeo da composiccedilatildeo cultural ressaltando a participaccedilatildeo da crianccedila na cultura e na
histoacuteria
Acerca do exposto salienta-se que as crianccedilas enquanto dotadas de capacidade de
negociaccedilatildeo de gerir e reinterpretar a composiccedilatildeo social e cultural em seus proacuteprios termos a
partir das relaccedilotildees intra e intergeracionais negociam e produzem sentidos que se desvelam
ancorados em criteacuterios e referecircncias que se distinguem daquelas dosas adultosas mas que natildeo
por isso as destituem do exerciacutecio de seus respectivas papeis como atoresatrizes sociais
1 [] ldquocuando el nintildeo se adentra en la cultura no soacutelo toma algo de ella no soacutelo asimila y se enriquece con lo que
estaacute fuera de eacutel sino que la propria cultura reelabora en profundidad la composicioacuten natural de su conducta y da
una orientacioacuten completamente nueva a todo el curso de su desarrollordquo (Vygotsky 2000b p 305)
214
(Ferreira 2010) A presente contribuiccedilatildeo assume portanto como patente o exerciacutecio de
encontro com a alteridade objetivada pela crianccedila convocando para a criaccedilatildeo e o tensionamento
de estrateacutegias que reivindiquem a validade de seus modos de compor e se inscrever nos
diferentes contextos de existecircncia com vistas agrave superaccedilatildeo do estatuto social que as confere o
semblante de negatividade e de ausecircncia ao interpor obstaacuteculos para o reconhecimento de sua
condiccedilatildeo de cidadania e da legitimidade de sua participaccedilatildeo social nos diferentes cenaacuterios Um
dos desafios do mundo adulto passa a ser neste acircmbito acessar aquilo que as crianccedilas vivem e
pensam no cotidiano das praacuteticas sociais a elas endereccediladas
A partir das consideraccedilotildees enfocadas acerca das crianccedilas dedica-se agrave explanaccedilatildeo de
suas interlocuccedilotildees com as poliacuteticas puacuteblicas a fim de avanccedilar na composiccedilatildeo da presente
construccedilatildeo argumentativa
2 Notas sobre as poliacuteticas de atenccedilatildeo em sauacutede e a infacircncia
No final do seacuteculo XX sob pressotildees dos movimentos populares de redemocratizaccedilatildeo
do paiacutes assim como da Reforma Sanitaacuteria Brasileira2 foi promulgada em 1988 a Constituiccedilatildeo
da Repuacuteblica Federativa do Brasil que preconizou a sauacutede como um direito social fundamental
de todosas osas cidadatildeoscidadatildes e dever a ser garantido pelo Estado instituindo o Sistema
Uacutenico de Sauacutede (SUS) Para regulamentaacute-lo foi estabelecida uma legislaccedilatildeo especiacutefica que natildeo
se resumiu apenas aos limites do SUS mas a diversos aspectos da sauacutede da populaccedilatildeo de
maneira geral intitulada lei orgacircnica da sauacutede (Lei ndeg 8080 de 19 de setembro de 1990) Esta
foi complementada pela lei que dispotildee sobre a participaccedilatildeo e o controle social do SUS (Lei nordm
8142 de 28 de dezembro de 1990) (Paim 2009)
No que se refere agraves poliacuteticas de sauacutede direcionadas agrave infacircncia apoacutes a instituiccedilatildeo do SUS
pela Constituiccedilatildeo de 1988 foi sancionado o Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (Lei nordm 8069
de 13 de julho de 1990) que instituiu a proteccedilatildeo integral e resolveu questotildees que perpassavam
a atenccedilatildeo em sauacutede desta populaccedilatildeo como por exemplo os direitos do neonato as obrigaccedilotildees
hospitalares e dosas profissionais de sauacutede o direito agrave permanecircncia em tempo integral do pai
2 O movimento da Reforma Sanitaacuteria Brasileira tambeacutem conhecido como RSB originou-se na segunda metade
da deacutecada de 1970 com a finalidade de defender a democratizaccedilatildeo da sauacutede e o processo de reestruturaccedilatildeo de seu
sistema de serviccedilos Foi protagonizado por membros de vaacuterios segmentos sociais e populares como estudantes
sociedade civil pesquisadoresas profissionais de sauacutede bem como membros de entidades comunitaacuterias
profissionais e sindicais Um importante marco deste movimento foi a 8ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede em 1986
na qual foram debatidas as proposiccedilotildees sociais que fariam parte da RSB sendo o relatoacuterio final desta reuniatildeo
utilizado como base para a elaboraccedilatildeo da seccedilatildeo ldquoDa Sauacutederdquo da Constituiccedilatildeo brasileira de 1988 (Paim 2009)
215
da matildee ou doa responsaacutevel legal em regime intensivo enfermarias e demais setores de atenccedilatildeo
pediaacutetrica e neonatal (Brasil 1990)
Posteriormente foi aprovada a Resoluccedilatildeo nordm 41 (de 13 de outubro de 1995) do Conselho
Nacional dos Direitos da Crianccedila e do Adolescente (CONANDA) fundamentada no texto
formulado pela Sociedade Brasileira de Pediatria Neste documento instituiu-se dimensotildees natildeo
antes abarcadas pela lei anterior enfatizando a importacircncia de a perspectiva da crianccedila ser
levada em conta apontando a necessidade de ela ser escutada e instruiacuteda em seus processos de
adoecimento e tratamento em sauacutede (Brasil 2004)
Apesar da promulgaccedilatildeo da sauacutede como um direito e de sua regulamentaccedilatildeo enquanto
serviccedilo puacuteblico de atenccedilatildeo e de cuidado ainda assim persistiram problemaacuteticas relacionadas agrave
qualidade da gestatildeo e dos serviccedilos prestados ao sofrimento dosas trabalhadoresas e
usuaacuteriosas a ampliaccedilatildeo do acesso dentre outras Nesse sentido a emergecircncia do tema da
humanizaccedilatildeo foi anunciada na 11ordf Conferecircncia Nacional de Sauacutede no ano de 2000 sendo
reconhecida como um dos principais desafios que permeavam o SUS suscitando sua necessaacuteria
abordagem como parte da pauta e da agenda do setor sauacutede na qualidade de uma estrateacutegia para
o enfrentamento das questotildees salientadas (Pasche 2013)
Para sua instituiccedilatildeo seria preciso constituir o sentido de humanizaccedilatildeo a ser elencado a
direccedilatildeo eacutetico-poliacutetica a ser legitimada e tomada como base para a constituiccedilatildeo deste paradigma
de cuidado e de gestatildeo em sauacutede O valor de humanizaccedilatildeo tencionado pressupunha a inserccedilatildeo
das diferentes pessoas nos processos de gestatildeo e de cuidado colocando-as em diaacutelogo para o
exerciacutecio de relaccedilotildees mais democraacuteticas (Pasche 2013)
Diante dessas problemaacuteticas sob tensionamentos populares e sindicais o Ministeacuterio da
Sauacutede regulamentou o Programa Nacional de Humanizaccedilatildeo da Assistecircncia Hospitalar
(PNHAH) a partir de um projeto apresentado no ano de 2000 Este visava difundir accedilotildees e
propostas de humanizaccedilatildeo ao atendimento puacuteblico em sauacutede nos hospitais preconizando a
transformaccedilatildeo da cultura de atendimento existente de seus modos de cuidar e do modelo de
atenccedilatildeo principalmente no que diz respeito agraves relaccedilotildees entre profissionais de sauacutede e
usuaacuteriosas entre osas proacutepriosas profissionais e entre o hospital e a comunidade (Brasil
2001)
Posteriormente compreendeu-se que para sua consolidaccedilatildeo nas instituiccedilotildees
hospitalares era necessaacuterio que este programa fosse pensado para toda a rede do sistema de
sauacutede Segundo Rios (2009) em 2003 o programa foi revisto e incorporado como um
216
aprimoramento ao SUS como um todo sendo lanccedilado como poliacutetica puacuteblica com a
denominaccedilatildeo de Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (PNH)
A PNH dos serviccedilos de sauacutede atribuiu destaque agraves relaccedilotildees estabelecidas entre os
sujeitos agraves atitudes e praacuteticas sociais que circunscrevem seus modos de cuidar e gerir em
direccedilatildeo ao reposicionamento destes diante dos modos de ldquofazerrdquo sauacutede Este modelo preconiza
como imprescindiacuteveis os processos de negociaccedilatildeo coletiva suscitando a corresponsabilidade
a autonomia e a participaccedilatildeo dosas diferentes atoresatrizes sociais para a reconstruccedilatildeo das
relaccedilotildees de saber de poder e de afeto a partir de orientaccedilotildees princiacutepios e meacutetodos eacutetico-
poliacuteticos que privilegiam o exerciacutecio da inclusatildeo e do diaacutelogo (Pasche 2013)
A PNH orienta-se segundo os princiacutepios da transversalidade da indissociabilidade entre
atenccedilatildeo e gestatildeo e do protagonismo corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e coletivos
O primeiro pressupotildee que a humanizaccedilatildeo deve estar presente e inserida em todos os programas
estrateacutegias e poliacuteticas que fazem parte do SUS atravessando as diversas accedilotildees instacircncias e
relaccedilotildees entre os diferentes sujeitos ampliando a comunicaccedilatildeo entre estes O segundo
estabelece que a atenccedilatildeo e a gestatildeo compotildeem uma unidade e por isso devem ser
compreendidas como interdependentes e complementares natildeo podendo ser tomadas
separadamente nos processos de produccedilatildeo de sauacutede O terceiro consolida que a atenccedilatildeo o
cuidado e a gestatildeo precisam ser compartilhados entre equipes de sauacutede usuaacuteriosas redes
sociofamiliares e comunidades reconhecendo a cidadania a legitimidade de participaccedilatildeo e a
contribuiccedilatildeo destes para a construccedilatildeo de modos coletivos de gerir e cuidar (Brasil 2013)
As diretrizes da PNH retomadas por Santos Filho (2013) foram a cogestatildeo a diretriz
de acolhimento ambiecircncia e cliacutenica ampliada a diretriz da defesa dos direitos dosas
usuaacuteriosas e a diretriz de valorizaccedilatildeo do trabalho e dosas trabalhadoresas da sauacutede
Em continuidade a este processo histoacuterico de promulgaccedilatildeo de poliacuteticas enfatiza-se a
instituiccedilatildeo da Poliacutetica Nacional de Atenccedilatildeo Integral agrave Sauacutede da Crianccedila (PNAISC)
implementada por intermeacutedio da Portaria nordm 1130 de 5 de agosto de 2015 do Ministeacuterio da
Sauacutede no acircmbito do Sistema Uacutenico de Sauacutede Esta poliacutetica encontra-se fundada por princiacutepios
diretrizes e eixos estrateacutegicos que se estruturam com o objetivo de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo da
sauacutede da crianccedila e do aleitamento materno da gestaccedilatildeo aos nove anos de idade por intermeacutedio
de uma rede de accedilotildees de cuidado integral que coadune para a atenccedilatildeo agrave primeira infacircncia e agraves
populaccedilotildees vulneraacuteveis Este delineamento aspira como propoacutesito alccedilar a reduccedilatildeo da
morbimortalidade bem como ensejar condiccedilotildees dignas ao desenvolvimento e agrave existecircncia
humanos (Brasil 2018)
217
Os princiacutepios que orientam a PNAISC alicerccedilam-se sob o direito agrave vida e agrave sauacutede agrave
prioridade absoluta da crianccedila ao acesso universal agrave sauacutede no interior da rede assistencial agrave
integralidade do cuidado agrave equidade em sauacutede a um ambiente facilitador agrave vida agrave humanizaccedilatildeo
da atenccedilatildeo e agrave gestatildeo participativa e ao controle social Em relaccedilatildeo agraves diretrizes cuja
observacircncia se estabelece como necessaacuteria para a elaboraccedilatildeo dos programas e accedilotildees em sauacutede
desta populaccedilatildeo estas especificam-se a partir dos indicadores de gestatildeo interfederativa das
accedilotildees de sauacutede da crianccedila de organizaccedilatildeo das accedilotildees e dos serviccedilos na rede de atenccedilatildeo na
promoccedilatildeo da sauacutede no fomento agrave autonomia do cuidado e da corresponsabilidade da famiacutelia
na qualificaccedilatildeo da forccedila de trabalho do SUS no planejamento e desenvolvimento das accedilotildees no
incentivo agrave pesquisa e agrave produccedilatildeo de conhecimento no monitoramento e avaliaccedilatildeo e na
intersetorialidade (Brasil 2018) Neste campo notabiliza-se que a PNAISC enquanto uma
poliacutetica puacuteblica pertinente ao setor sauacutede fundamenta-se segundo o marco constitucional do
SUS e por conseguinte sob os princiacutepios e diretrizes da PNH
As accedilotildees estrateacutegicas da PNAISC por sua vez organizam-se a partir de sete eixos a
saber atenccedilatildeo humanizada e qualificada agrave gestaccedilatildeo ao parto ao nascimento e ao receacutem-
nascido aleitamento materno e alimentaccedilatildeo complementar saudaacutevel promoccedilatildeo e
acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento integral atenccedilatildeo integral agraves crianccedilas
com agravos prevalentes na infacircncia e com doenccedilas crocircnicas atenccedilatildeo integral agrave crianccedila em
situaccedilatildeo de violecircncias prevenccedilatildeo de acidentes e promoccedilatildeo da cultura de paz atenccedilatildeo agrave sauacutede
de crianccedilas com deficiecircncia ou em situaccedilotildees especiacuteficas e de vulnerabilidade vigilacircncia e
prevenccedilatildeo do oacutebito infantil fetal e materno (Brasil 2018)
Em suma a presente discussatildeo permite compreender que as poliacuteticas puacuteblicas em sauacutede
desenvolvidas no Brasil no final do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI foram impulsionadas
principalmente pelos movimentos sociais e poliacuteticos Em consonacircncia os direitos civis da
infacircncia e da adolescecircncia tambeacutem foram debatidos e sancionados mobilizando-se a elaboraccedilatildeo
de poliacuteticas resoluccedilotildees eou claacuteusulas destinadas agrave sauacutede desta populaccedilatildeo
Com a emergecircncia da PNH chama-se a atenccedilatildeo para o desenvolvimento de um
paradigma em sauacutede que recobra o proacuteprio marco constitucional preconizado pelo Sistema
Uacutenico de Sauacutede enfatizado diante das problemaacuteticas que persistiam neste setor e sustentado
pela urgecircncia no estabelecimento de relaccedilotildees mais democraacuteticas entre os diferentes sujeitos
implicados no processo de atenccedilatildeo e de cuidado Apesar de natildeo realizar menccedilotildees particulares agrave
infacircncia e adolescecircncia sob o uso da terminologia de usuaacuteriosas crianccedilas adolescentes
adultosas e idososas tecircm sido entendidosas no bojo da PNH como sujeitos e agentes dos
218
processos de atenccedilatildeo e gestatildeo em sauacutede segundo as orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas de inclusatildeo
diaacutelogo protagonismo autonomia e corresponsabilidade Na PNAISC por sua vez essas
concepccedilotildees foram reiteradas mais frequentemente atreladas agraves famiacutelias como por vezes
tambeacutem dirigidas agraves crianccedilas-usuaacuterias enfocadas por esta poliacutetica contudo sem pormenorizar
sua aplicabilidade e efeitos
Diante do exposto eacute importante salientar que como categorias geracionais especiacuteficas
a infacircncia e a adolescecircncia possuem especificidades sociais histoacutericas e culturais atribuindo-
lhes marcas sociais que as diferenciam dosas adultosas e que precisam ser pensadas a partir
da complexidade que as encerram
A eacutetica que permeia a proacutepria poliacutetica de humanizaccedilatildeo e o marco constitucional do SUS
permite que coletivamente sejam propostas e efetuadas transformaccedilotildees dos arranjos que
constituem as relaccedilotildees de saber poder e afeto Nesse sentido a inclusatildeo de meacutetodos
dispositivos e experiecircncias que preconizem a crianccedila como copartiacutecipe e protagonista nas
diversas facetas do setor sauacutede podem se consolidar como medidas que contribuam para que
estas poliacuteticas promovam e potencializem a participaccedilatildeo das crianccedilas e dosas adolescentes
hospitalizadosas nos processos de produccedilatildeo de sauacutede
Diante do exposto a articulaccedilatildeo entre infacircncia e poliacuteticas puacuteblicas ora proposta
organiza-se em torno da premissa de que os espaccedilos puacuteblicos adquirem o potencial de se
configurar enquanto fecundos dispositivos de participaccedilatildeo social e de cidadania Os processos
coletivos de trabalho e de gestatildeo podem neste sentido intensificar as forccedilas democraacuteticas em
tais instituiccedilotildees especialmente quando pautados por encontros menos hierarquizados cuja
negociaccedilatildeo intergeracional seja tomada como princiacutepio prioritaacuterio
Mediante esta formulaccedilatildeo revela-se a importacircncia de que as instituiccedilotildees puacuteblicas de
sauacutede e de educaccedilatildeo sejam constituiacutedas e designadas segundo diretrizes que engendrem
estruturas de oportunidade de desenvolvimento e aprendizagem que conformem com
orientaccedilotildees eacutetico-poliacuteticas mais democraacuteticas e dialoacutegicas preconizando processos de
implicaccedilatildeo e pertenccedila que sustentem a expressatildeo de atoresatrizes sociais autocircnomosas e
participativosas
Nesta amplitude a instituiccedilatildeo de sauacutede mais do que um loacutecus de produccedilatildeo de saberes
sobre o corpo e de reestabelecimento da sauacutede anuncia-se enquanto um contexto permeado por
redes de significados que concorrem para o processo de constituiccedilatildeo dos sujeitos Esta
modulaccedilatildeo sinaliza a existecircncia de processos de desenvolvimento forjados pelas relaccedilotildees
219
intersubjetivas desveladas nos espaccedilos de sauacutede notabilizando-se sua dimensatildeo educativa
poliacutetica e cidadatilde
A inserccedilatildeo neste cenaacuterio abrangeria neste aspecto a organizaccedilatildeo de ferramentas e
estrateacutegias que encorajassem o exerciacutecio da condiccedilatildeo de cidadania de categorias geracionais
especiacuteficas mobilizando processos de participaccedilatildeo no interior da rede assistencial do SUS em
interlocuccedilatildeo com as praacuteticas discursos e saberes sociais historicamente forjados sobre a
infacircncia e sobre o potencial de participaccedilatildeo desta nos serviccedilos de sauacutede
Neste sentido os modos possiacuteveis de encontro entre a psicologia a educaccedilatildeo sauacutede e
poliacuteticas puacuteblicas encontram-se amparados sobre a premissa de que as instituiccedilotildees destinadas agrave
infacircncia se tornam capazes de ensejar possibilidades de apreensatildeo de conhecimentos por
intermeacutedio de aprendizagens sociais desenroladas em seu acircmago Estas por sua vez demandam
a inscriccedilatildeo de brechas institucionais que disputem o campo de uma organizaccedilatildeo hospitalar
predominantemente centrada na loacutegica adulta e biomeacutedica em direccedilatildeo agrave ampliaccedilatildeo dos direitos
da infacircncia e adolescecircncia hospitalizadas sobretudo ao preconizar meios para a sua participaccedilatildeo
e protagonismo nos processos de produccedilatildeo de sauacutede que se materializam na gestatildeo nas praacuteticas
de cuidado e nas poliacuteticas que regulamentam os serviccedilos
3 A contextualizaccedilatildeo da pesquisa
A pesquisa de mestrado cujos dados foram revisitados para a construccedilatildeo da presente
discussatildeo intitula-se ldquoRepresentaccedilotildees sociais sobre profissionais de sauacutede segundo crianccedilas
implicaccedilotildees identitaacuterias no contexto da hospitalizaccedilatildeo pediaacutetricardquo Esta investigaccedilatildeo foi
desenvolvida no acircmbito do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Educaccedilatildeo da Universidade Federal
de Mato Grosso (PPGE UFMT) no acircmbito do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infacircncia
(GPPIN) sob a orientaccedilatildeo da Profa Dra Daniela Barros da Silva Freire Andrade
Este estudo notabilizou como objeto de investigaccedilatildeo as representaccedilotildees sociais de
crianccedilas hospitalizadas sobre osas profissionais de sauacutede vinculados ao tratamento destas
explorando-se a partir do recorte proposto as implicaccedilotildees desta rede de significaccedilotildees aos
processos de representaccedilatildeo de si das participantes O aporte teoacuterico da pesquisa explicitada
compreendeu originalmente o diaacutelogo entre a teoria das representaccedilotildees sociais em uma
abordagem ontogeneacutetica e a teoria histoacuterico-cultural
O cenaacuterio em que a pesquisa foi construiacuteda circunscreveu a enfermaria pediaacutetrica de um
hospital puacuteblico pertencente agrave rede assistencial do Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) do municiacutepio
220
de Cuiabaacute (MT) Esta trajetoacuteria se constituiu ao longo de trecircs meses e congregou em seu
conjunto a participaccedilatildeo de vinte e seis crianccedilas hospitalizadas com idades entre sete e doze
anos por intermeacutedio do assentimento destas e o consentimento escrito dosas respectivosas
acompanhantes apoacutes elucidados os procedimentos e objetivos investigativos
O itineraacuterio que sustentou o processo de produccedilatildeo de dados alicerccedilou-se sob os
contornos da abordagem do tipo etnograacutefica (Andreacute 2003) e considerou a adoccedilatildeo dos
procedimentos de entrevistas observaccedilatildeo participante e anaacutelise de documentos Como exposto
privilegiou-se para a construccedilatildeo deste capiacutetulo as informaccedilotildees produzidas a partir da realizaccedilatildeo
de entrevistas com as crianccedilas participantes
Ao dedicar-se agrave abordagem de pesquisa com crianccedilas procedeu-se com a elaboraccedilatildeo de
adequaccedilotildees metodoloacutegicas que permitissem o encontro com as crianccedilas participantes assumido
enquanto diaacutelogo intergeracional Esta construccedilatildeo foi norteada pela adaptaccedilatildeo e refinamento
dos procedimentos para que adquirissem o potencial de propiciar a escuta e o registro da
pluralidade de expressotildees das crianccedilas tomadas como interlocutoras legiacutetimas em
contraposiccedilatildeo agraves tendecircncias dos estudos que consideram exclusivamente os sentidos partilhados
pelosas respondentes adultosas ao interessarem-se pelas experiecircncias das crianccedilas sob a
responsabilidade daquelesas
Neste sentido especificamente no que tange agraves entrevistas ponderou-se como
pertinente a elaboraccedilatildeo de um roteiro luacutedico3 segundo a proposiccedilatildeo de rearranjos ao
procedimento de entrevista ao ser esboccedilado a partir do delineamento de uma brincadeira eou
jogo mediado pela pesquisadora na qual as crianccedilas foram convidadas agrave construccedilatildeo de desenhos
e narrativas apreciados como ferramentas compatiacuteveis com a expressividade e enunciaccedilatildeo das
significaccedilotildees que compartilham acerca das intervenccedilotildees de sauacutede objetivadas pelas praacuteticas
dosas profissionais implicadosas no tratamento destas
Os materiais elaborados a partir do roteiro luacutedico foram organizados em diferentes
etapas em decorrecircncia da multiplicidade da natureza de suas produccedilotildees a saber metaacuteforas e
metoniacutemias narrativas descriccedilotildees de experiecircncias e desenhos Neste sentido estabelece-se
como objeto da discussatildeo ora apresentada a explanaccedilatildeo proveniente da anaacutelise das respostas agrave
questatildeo 1 e das questotildees 4 a 104 do roteiro luacutedico processadas pelo programa computacional
IRAMUTEQ (Camargo amp Justo 2013 2014)
3 Este instrumento foi denominado ldquoQuem cuida de mim no hospitalrdquo 4 Demonstrativo de questotildees do roteiro luacutedico elencadas na presente ocasiatildeo Questatildeo 1 Quem vocecirc desenhou e
como essa pessoa cuida de vocecirc no hospital Questatildeo 4 Imagine que uma crianccedila que nunca ficou hospitalizada
221
Com o propoacutesito de explicitar a natureza da composiccedilatildeo das questotildees do roteiro luacutedico
salientadas discorre-se que na ocasiatildeo de seu empreendimento a crianccedila foi convidada a criar
a partir da realizaccedilatildeo de desenhos sua proacutepria equipe de sauacutede podendo incluir nesta as
distintas categorias profissionais e funccedilotildees conforme a perspectiva da participante Apoacutes o
desenho a crianccedila foi estimulada a identificar para a pesquisadora as pessoas desenhadas nos
cartotildees e explicar como cada uma delas realizava a funccedilatildeo de cuidado intra-hospitalar Neste
enquadramento as transcriccedilotildees agraves respostas agrave questatildeo 1 compuseram o corpus textual
processado pelo software de maneira que os desenhos propriamente ditos natildeo seratildeo enfocados
na presente discussatildeo mas somente as descriccedilotildees destes
O segundo momento ora enfocado para a anaacutelise exprime os conteuacutedos abarcados pelas
questotildees 4 e 5 do roteiro luacutedico cujas participantes foram apresentadas a uma situaccedilatildeo
imaginaacuteria para que como em uma brincadeira de faz-de-conta explicaria para uma crianccedila
hipoteticamente receacutem-chegada quais pessoas seriam responsaacuteveis pelas praacuteticas de cuidado e
como essa abordagem era empreendida Apoacutes esse momento eram incentivadas a atribuir um
tiacutetulo agrave narrativa elaborada
As questotildees 6 e 7 seguintes foram dedicadas a estimular que a crianccedila discorresse acerca
das fontes informacionais que as permitiram acessar os conhecimentos descritos pela narrativa
bem como explicitar os conteuacutedos que consideravam importantes dentre aqueles experienciados
no cenaacuterio hospitalar os quais sustentaram o desenvolvimento da narrativa anteriormente
construiacuteda com o propoacutesito de identificar a dimensatildeo expressiva destas vivecircncias segundo a
focalizaccedilatildeo das crianccedilas
No que concerne agraves questotildees de 8 a 10 estas foram configuradas segundo o propoacutesito
de explorar os processos identitaacuterios em termos psicossociais subjacentes agrave experiecircncia de
hospitalizaccedilatildeo atravessadas pelas praacuteticas em sauacutede empreendidas pela equipe desvelando as
implicaccedilotildees do outro aos processos de constituiccedilatildeo do sentimento de identidade e de pertenccedila
das participantes Mediante a transcriccedilatildeo destes conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas e
mobilizados a partir das questotildees elucidadas procedeu-se com o procedimento de
processamento destas informaccedilotildees sob o apoio do programa computacional IRAMUTEQ que
estaacute chegando agora no hospital e natildeo conhece quem cuidaraacute dela [hellip] Como vocecirc que jaacute estaacute mais experiente
com o que acontece no hospital explicaria para essa crianccedila quem cuidaraacute dela no hospital e o que cada um faraacute
com ela Questatildeo 5 Que nome vocecirc daria para essa histoacuteria que vocecirc acabou de contar Questatildeo 6 Como vocecirc
ficou sabendo de tudo isso que acabou de contar Questatildeo 7 O que foi importante aqui no hospital que fez com
que vocecirc aprendesse tudo isso que acaba de contar Questatildeo 8 Como era vocecirc antes e depois de ter ficado no
hospital Questatildeo 9 O que vocecirc aprendeu sobre vocecirc a partir da experiecircncia de hospitalizaccedilatildeo Questatildeo 10
Agora uma uacuteltima pergunta como vocecirc chegou ao hospital e o que aconteceu que vocecirc teve que vir (Assunccedilatildeo
2018)
222
resultou na identificaccedilatildeo de cinco classes que se demonstraram estaacuteveis Diante do exposto
delimitou-se que as anaacutelises tecidas neste trabalho enfocariam particularmente os materiais
textuais classificados no interior da Classe 4 que representou 2325 da totalidade do corpus
original
4 As praacuteticas de cuidado em sauacutede pediaacutetrica segundo crianccedilas hospitalizadas
O conjunto de excertos produzidos pelas crianccedilas e congregados nesta classe
tangenciou mais especificamente o universo dos sentidos atribuiacutedos agraves relaccedilotildees de cuidado
tendo sido elencadas suas faces desejaacuteveis e natildeo desejaacuteveis de pessoalidade e impessoalidade
Neste sentido o narrar e o desenhar podem ser compreendidos como recursos que sintetizaram
os processos de classificaccedilatildeo e nomeaccedilatildeo das crianccedilas engendrando exerciacutecios de seleccedilatildeo de
conteuacutedos e afetos sobre os sujeitos focalizados e suas accedilotildees resgatados pela vivecircncia da
crianccedila diante deste universo de cuidado que permeia o quem desempenha e o como eacute percebido
Ah ela quando eu tava com dor ela foi ver eu como que tava meu coraccedilatildeozinho e ela foi laacute na
sala na hora que eu tava laacute mediu pressatildeo um monte de coisa Fez bastante coisa pra mim Ela
olhou meu coraccedilatildeo viu como tava a pressatildeo e viu se eu tava com febre A meacutedica Ela eacute daqui
de cima mesmo da pediatria (Flor5 10 anos)
A de pressatildeo Escreve a de pressatildeo Ela mede nossa pressatildeo se estaacute alta ou baixa Soacute Eu vou
desenhar vocecirc Porque sim vocecirc eacute legal Eu posso desenhar vocecirc Eu natildeo sei o que desenho
mais Eu jaacute desenhei a de agulha a de pressatildeo Eacute Como eacute esse assim que a gente coloca assim
e fica medindo assim Eacute Eacute de pressatildeo quase neacute Termocircmetro Mas eacute a mesma pessoa que
cuida da pressatildeo Acho que natildeo Mas taacute bom soacute esses desenhos (Raissa 9 anos)
Vem ver se eu tocirc com febre Ela coloca aquele negocinho no meu sovaco pra ver se eu tocirc com
febre Ela tem vez que troca o meu curativo Tava esquecendo Eacute que ela eacute a mulher que passa
e vem ver a minha pressatildeo ver se eu tocirc com febre e troca meu curativo (Rafael 12 anos)
Vou fazer o doutor cardiologista Primeiro o cabelo O olho grande ele Esse aqui saiu melhor
O cardiologista De vez em quando ele passa aqui para olhar como eacute que o braccedilo estaacute
melhorando (Gabriel 10 anos)
Agora soacute falta desenhar os meninos no hospital Eu vou desenhar ela arrumando o soro Sabe o
que que eacute isso Eacute um hospital Mas eacute tipo uma casa (Beatriz 7 anos)
Ela eacute da equipe do Superman Ela levanta minha camisa e coloca aquele negoacutecio de axila
Como que eacute o nome Eacute O trermocircmeto Aiacute quando ela natildeo acha no meu braccedilo ela coloca na
minha axila (Lilo 10 anos)
O instrumento de pesquisa possibilitou uma dinacircmica que encorajou processos
reflexivos acerca de elementos jaacute naturalizados pela crianccedila desencadeados pela produccedilatildeo de
certo estranhamento em relaccedilatildeo a tais conteuacutedos principalmente aqueles motivados pela
5 Os nomes informados ao longo deste relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram eleitos pelas proacuteprias crianccedilas
hospitalizadas participantes do estudo ao final da realizaccedilatildeo de cada entrevista
223
formulaccedilatildeo de uma questatildeo com resposta aparentemente oacutebvia no contexto de inserccedilatildeo dosas
participantes
Os excertos elucidaram que as crianccedilas percebem a existecircncia de pessoas que
desempenham o ofiacutecio do cuidado bem como as atividades que estas realizam para fazecirc-lo
poreacutem nessa classe os sujeitos da accedilatildeo dos segmentos de texto muitas vezes apresentaram-se
nomeados de maneira vaga eou geneacuterica apesar da existecircncia de detalhamento em relaccedilatildeo agraves
praacuteticas de sauacutede explorando inclusive seu aparato instrumental
As narrativas estatildeo imbricadas em uma dimensatildeo afetiva que demonstra as formas pelas
quais as experiecircncias relatadas foram vivenciadas pelas crianccedilas Esse fenocircmeno explicitou os
processos de atribuiccedilatildeo de sentido a um universo de accedilotildees desconhecidas declaradas a partir
de recursos e nomenclaturas familiares como em ldquoEla eacute da equipe do Supermanrdquo ldquoE um
hospital Mas eacute tipo uma casardquo que conferiram menores niacuteveis de estranhamento e
possibilitaram uma descriccedilatildeo ancorada agraves categorias que lhes eram comuns
Na medida em que elaboraram seus discursos por intermeacutedio de uma fala dirigida para
si mesmosas como em um exerciacutecio de autorregulaccedilatildeo que osas apoiaram na produccedilatildeo de um
saber as crianccedilas explicitaram a descriccedilatildeo de um modelo de cuidado marcado por uma
conotaccedilatildeo operacional dessa praacutetica revelando seus modos de accedilatildeo protocolares
Se uma crianccedila chegasse falaria que ela ia apertar neacute nossa matildeo pra saber se taacute com febre se
natildeo coloca um trermocircmeto de axila de baixo do suvaco [hellip] Eacute do mesmo jeito Eacute o mesmo
jeito de medir tambeacutem Eles mandam a mesma coisa neacute Fazer Pra ver apertar o braccedilo pra
saber se taacute com febre se natildeo colocar o trermocircmeto de axila [hellip] Natildeo eu natildeo fiquei sabendo
eu descobri que ela fazia assim comigo Ah eu tava de boa neacute achei que ningueacutem ia cuidar de
mim [Risos] Soacute vinha com trermocircmeto assim pra conferir colocar e ver se eu tava com febre
ou natildeo Aiacute eu tava aqui deitado de repente chega ela Aiacute ela foi e fez do mesmo jeito aiacute veio
essa outra aiacute que eu desenhei e fez do mesmo jeito Aiacute eu descobri aiacute eu jaacute sabia que vinha outra
e ia fazer Aiacute eu gostei dessa daqui (Lilo 10 anos)
Tem um monte de Eacute um monte de doutora que vem aqui aplicar Uma hora vem uma outra
hora vem outra No total que vem aplicar eacute umas trecircs Acho que eacute por causa do turno neacute Vou
desenhar o doutor O doutor laacute o cabelo dele eacute liso (Gabriel II 10 anos)
Aqui eacute aquela ldquoAnnyrdquo E daqui mesmo Agora lembrei o nome Ela cuida da mesma coisa da
ldquoLuisardquo ela vem para caacute para ver se eu estou com febre e ver minha pressatildeo (Rafael 12 anos)6
A accedilatildeo descritiva da crianccedila avanccedilou na compreensatildeo da dinacircmica de cuidado
ensejando a formulaccedilatildeo de hipoacuteteses que referendam a existecircncia de um script de praacuteticas em
sauacutede seguido pelosas profissionais Os discursos revelaram um modo de operar a promoccedilatildeo
do cuidado que implica a repeticcedilatildeo de um ldquomesmo jeitordquo ou a execuccedilatildeo de uma ldquomesma coisardquo
6 Os nomes dosas profissionais de sauacutede apresentados ao longo do relatoacuterio de pesquisa satildeo fictiacutecios e foram
escolhidos pela proacutepria pesquisadora
224
cuja realizaccedilatildeo eacute intercalada entre membros da equipe ldquouma hora vem uma outra hora vem
outrardquo que por conseguinte satildeo distribuiacutedosas sob o regime de ldquoturnosrdquo
Os participantes enunciaram ainda a existecircncia de uma instacircncia reguladora destas
atividades ao mencionar que ldquoEles mandam a mesma coisa neacute Fazerrdquo (Lilo 10 anos) bem
como apresentaram o senso de existecircncia de uma organizaccedilatildeo hieraacuterquica entre as categorias
profissionais existentes na cena hospitalar A assertiva demonstra proximidade entre as ideias
elaboradas pelas crianccedilas e as normativas que regulamentam de modo sistemaacutetico e
padronizado as accedilotildees teacutecnico-assistenciais em sauacutede frequentemente objetivadas pelos
protocolos operacionais padratildeo
O processo de discorrer sobre esse conhecimento social aparenta alicerccedilar-se sobretudo
pela exposiccedilatildeo de circunstacircncias marcadas pelos domiacutenios da percepccedilatildeo da concretude e a partir
da experiecircncia corporal que resultou das accedilotildees de cuidado empreendidas as quais a crianccedila foi
depositaacuteria delineando-se como um sujeito que recebeu a accedilatildeo do outro As vivecircncias
fornecidas pelas relaccedilotildees intersubjetivas foram utilizadas como suporte para a apreensatildeo de
conhecimentos sociais e para o desenvolvimento de importantes conceitos que tangenciaram a
hospitalizaccedilatildeo explorando noccedilotildees sobre a organizaccedilatildeo dos serviccedilos as praacuteticas de atenccedilatildeo em
sauacutede suas ferramentas e quem as realiza
Ela eacute enfermeira aqui Sabe sempre tem a melhor laacute que fica eu acho que ela eacute a enfermeira
Ah eu natildeo sei eacute a que fica responsaacutevel pelo plantatildeo sei laacute eu natildeo sei o nome (Moana 12
anos)
Vou desenhar ela carregando agulha Taacute estranho Eacute aquilo que coloca Eacute a seringa neacute Que
segura assim e a gente vai puxando pra passar tudo Seraacute que eu desenho um kit e outro Na
outra matildeo dela um kit Um kit assim de primeiros socorros (Raissa 9 anos)
Ficou estranho neacute O negoacutecio A que mede pressatildeo com aquele negoacutecio que aperta tudo Com
o negoacutecio que aperta o pulso assim [hellip] Esse daqui eacute aquilo que faz assim pra colocar no braccedilo
Aiacute coloca no braccedilo e essa daqui eacute a parte que zera Aiacute aqui coloca o braccedilo aiacute vai taacute uns
coraccedilatildeozinho assim Aiacute o papelzinho e aiacute esse eacute a pulseira (Raissa 9 anos)
Essa construccedilatildeo dialoacutegica resulta em aprendizagens sociais que possibilitam que as
crianccedilas se aproximem e muitas vezes passem a operar segundo o significado de certos
constructos aplicando com sentido terminologias teacutecnicas pertencentes agrave rede de conteuacutedos que
permeiam o acircmbito hospitalar Esses termos passam a ser tambeacutem partilhados entre e pelas
crianccedilas que os adotam como descritores da realidade ao empregaacute-los durante os processos
comunicacionais entre pares e com os adultos conferindo compreensatildeo e uso aos mesmos
Ao utilizar esse repertoacuterio de conceitos a crianccedila se dedica a um processo de
significaccedilatildeo do real a partir de suas proacuteprias produccedilotildees alavancando anaacutelises de suas
experiecircncias e dos produtos culturais que elabora sustentados pelos marcadores sociais que
225
acessa exprimindo pelos desenhos e narrativas as formas pelas quais interpreta e imprime
sentidos agraves particularidades da realidade social Nesse escopo descreve qualifica e se coloca
afetivamente implicada nos conteuacutedos que formula revelando as dimensotildees vivenciais e
reflexivas de suas construccedilotildees como nos segmentos que se seguem
Esqueci como eacute o cabelo dela Deve ser assim neacute Eu tocirc desenhando ela mais bonita porque
eu gosto mais eacute dela daqui do hospital A doutora a doutora natildeo a enfermeira Ela cuida assim
bem ela natildeo natildeo briga natildeo manda eu ir dormir toda hora quando taacute ficando tarde e ela eacute
boazinha A gente pediu pra ela deixar jogar no play aiacute ela falou que podia soacute que tava muito
tarde jaacute se tivesse pedido antes ela deixava mas era meia noite Aiacute ela eacute boazinha Eu gosto
dela (Moana 12 anos)
Essa doutora aqui de vez em quando ela vem aqui me perguntar se eu preciso de alguma coisa
Natildeo vem aqui de vez em quando natildeo Ela soacute veio aqui soacute fazer uma visita veio soacute ver se tava
precisando de alguma coisa Ela falou que se precisasse de alguma coisa ela tava ali na na
frente Falei nada natildeo a matildee que conversou com ela Falou taacute bom Ela veio aqui falar que se
precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Acho que ela tava de feacuterias e ela chegou Disse que
se precisar de alguma coisa eacute soacute falar com ela Primeira vez que eu vejo ela Eacute bem prestativa
ela Chegou de feacuterias natildeo tinha nada pra fazer e veio aqui avisar que se precisasse de ajuda
alguma coisa assim ela tava disponiacutevel (Gabriel II 10 anos)
[hellip] nas horas que eu falava que eu tava com muita dor muito coccedilando ela me dava remeacutedio
na hora que eu precisava Ela ficava mais perto de mim Ficava olhando ela perguntava se eu
tinha dor aiacute eu falava agraves vezes que sim agraves vezes que natildeo mas ela cuidou muito bem de mim
Ah ela eacute meacutedica laacute de baixo Da sala amarela (Flor 10 anos)
Fui aprendendo com a meacutedica que ela falou um monte de coisas pra mim ldquoNatildeo precisa ter
medo Beatriz quando for furar vocecirc natildeo precisa ter medo natildeo precisa olharrdquo E quando o tio
falou ldquoVocecirc soacute vai taacute dormindo vocecirc natildeo vai sentir nadardquo E eu falei ldquoNem senti nadardquo Na
cirurgia (Beatriz 7 anos)
Os coraccedilotildees satildeo pra elas ficar feliz Tavam tristes Agora a que veio aqui ficou alegre neacute por
causa dos coraccedilotildees (Batman 12 anos)
Os recortes discursivos explicitam que a seleccedilatildeo e a organizaccedilatildeo dos conteuacutedos
expressos acerca dosas profissionais de sauacutede foram anunciadas segundo as implicaccedilotildees
afetivas engendradas nas interaccedilotildees que circunscrevem a hospitalizaccedilatildeo Os exemplos
ilustrados tangenciam diferentes modulaccedilotildees sobre esse campo elucidando perspectivas de
atenccedilatildeo em sauacutede que demonstram as accedilotildees que agradam as crianccedilas e que segundo elas satildeo
desejaacuteveis de se receber eou partilhar exprimidas principalmente pelo uso das colocaccedilotildees
gostar cuidar natildeo brigar natildeo mandar deixar falar poder pedir vir perguntar fazer
precisar estar ser dizer chegar avisar ajudar dar ficar olhar aprender De alguma
maneira as conotaccedilotildees que essas palavras traduzem se ramificam de uma faceta de cuidado
ancorada a uma eacutetica de proximidade diaacutelogo e disponibilidade para o outro
Tais processos de negociaccedilatildeo alicerccedilados pela relaccedilatildeo indissociaacutevel entre a concretude
e a forma com que satildeo vivenciadas pela crianccedila resultam tambeacutem na atribuiccedilatildeo de sentidos agraves
226
experiecircncias que desvelam um aspecto desagradaacutevel e natildeo desejaacutevel da dinacircmica de promoccedilatildeo
de sauacutede conferindo modulaccedilotildees agraves conotaccedilotildees de cuidado apresentadas anteriormente
Ela cuida mal porque era Minha veia tava doendo neacute daiacute era pra ela olhar e arrumar certinho
neacute aiacute ela foi e puxou tudo de uma vez assim e ficou doendo o meu braccedilo Porque uma outra
enfermeira ela conseguiu arrumar ela olhou e arrumou certinho a veia E ela puxou de uma
vez A outra arruma certinho na veia de volta [hellip] Acho importante que ela natildeo cuidou de mim
Ela podia ter machucado o meu braccedilo Eacute que ela puxou de uma vez o negoacutecio Ateacute a matildee falou
assim ldquoVai com cuidado soacute daacute uma olhada vecirc se taacute fora da veiardquo e ela foi puxando assim e eu
falei ldquoAi meus pelinhosrdquo Bem assim e ela puxou de uma vez assim e arrancou tudo Nesse
braccedilo aqui (Moana 12 anos)
Eacute chato levar injeccedilatildeo para tirar sangue Tirei duas vezes ontem Esse aqui foi hoje esse daqui
foi ontem Esse foi com borboletinha E esse aqui natildeo Prefiro sem borboleta Porque agulha
com borboleta demora pra pegar sangue E a sem vai puxando assim eacute rapidatildeo Quando foi a
da borboletinha eu soacute dei um grito Sem borboletinha natildeo precisou gritar (Raissa 9 anos)
A que tira sangue eacute maacute ela eacute muito maacute Soube porque eu vi elas fazendo em mim Ainda mais
essa daqui que tira sangue que eacute muito chata Machuca muito o braccedilo ontem eu tive que dormir
com o braccedilo assim oacute (Raissa 9 anos)
Esse aqui eu jaacute tomei doze Soacute nessa veia Eu tomei um grandatildeo daqueles grandatildeo Eu conto
Mas claro Pra ver se natildeo passou da hora Matildee vai ter que chamar a mulher Taacute pingando aqui
Aiacute depois vai ter que lavar Lavar doacutei eu que natildeo falava nada Doacutei Lava com aacutegua A veia
enche Manda essa mulher aiacute lavar matildee Eu natildeo vou falar que doacutei Ah aiacute vatildeo querer trocar de
veia Eu natildeo quero Ela troca de veia e eu natildeo quero (Batman 12 anos)
Ateacute gelou aqui agora ateacute gelou Acho que apertou tanto Sai ateacute o couro Esparadrapo puxa
cabelo (Batman 12 anos)
Os trechos salientados transmitem em seus conteuacutedos descritivos a compreensatildeo de que
as crianccedilas nomeiam a presenccedila de uma dimensatildeo do cuidado que eacute qualificada como adversa
e hostil que pode ser acentuada pela postura e a conduta adotadas pelosas profissionais quando
a accedilatildeo eacute desempenhada eou pela maneira com que eacute percebida pela crianccedila que a recebe
As accedilotildees desagradaacuteveis e repelidas recordam modalidades de intervenccedilotildees que satildeo
antagocircnicas agraves associadas ao que osas participantes classificam como desejaacuteveis e positivas
pormenorizando-as com o suporte de verbos como puxar machucar arrancar levar tirar
demorar pegar gritar fazer tomar lavar doer encher trocar apertar sair O emprego
dessas terminologias denota a percepccedilatildeo das accedilotildees de cuidado como incisivas abruptas
dolorosas e invasivas distintas daquelas caracteriacutesticas nomeadas pelas crianccedilas ao discorrer
sobre episoacutedios identificados pelos sentidos de proximidade diaacutelogo e disponibilidade
A conjuntura analiacutetica empreendida pelos segmentos de texto apresentados permite
formular a hipoacutetese da existecircncia de uma importante fonte de informaccedilatildeo que decorre
diretamente da experiecircncia corporal delineada pelas praacuteticas de sauacutede atitudes e prescriccedilotildees
que incidem sobre o corpo da crianccedila configurando as relaccedilotildees de instruccedilatildeo face a face eou
anocircnimas Essa ordem de saberes se constitui como fonte por protagonizar processos
227
comunicacionais que operam sob a eacutegide das relaccedilotildees mediatizadas pelo corpo ao fornecer o
escopo para a transmissatildeo de conhecimentos sociais sendo as accedilotildees que lhes satildeo dirigidas
significadas pela crianccedila a partir de diferentes conotaccedilotildees que oscilam desde as entendidas
como agradaacuteveis e desejaacuteveis ateacute aquelas nomeadas como hostis e adversas
Consideraccedilotildees finais
Diante do propoacutesito de revisitar o recorte dos conteuacutedos gerados no acircmbito da pesquisa
de mestrado anunciada buscou-se estabelecer entrelaccedilamentos entre infacircncia psicologia e
poliacuteticas puacuteblicas destinadas agraves crianccedilas mais especificamente as poliacuteticas e resoluccedilotildees
salientadas ao longo deste capiacutetulo
Os conteuacutedos elaborados pelas crianccedilas anunciaram os modos pelos quais elas
nomeavam e descreviam as praacuteticas de cuidado em sauacutede empreendidas pela equipe de sauacutede
desvelando suas ancoragens agraves normas rotinas institucionais e aos processos de gestatildeo e
organizaccedilatildeo dos serviccedilos que traduzem em seu conjunto os itineraacuterios de apropriaccedilatildeo e
implementaccedilatildeo dos princiacutepios diretrizes e eixos de atuaccedilatildeo recomendados pelas poliacuteticas
puacuteblicas pertinentes ao equipamento hospitalar pediaacutetrico e agrave populaccedilatildeo atendida
Neste sentido os processos de enunciaccedilatildeo engendrados situaram-se inscritos pelos
arranjos que constituiacuteram as relaccedilotildees de saber poder e afeto que permitiram acessar como osas
participantes perspectivaram as accedilotildees assistenciais em sauacutede a eleselas endereccediladosas
declarando as possibilidades que dispunham de participaccedilatildeo nos processos de cuidado em sauacutede
intra-hospitalares
Em correlaccedilatildeo aos pressupostos salientados pelas poliacuteticas e resoluccedilotildees tomadas para a
presente discussatildeo identifica-se que os equipamentos e dispositivos de sauacutede satildeo fundados por
princiacutepios e diretrizes que visam a elevaccedilatildeo do grau democraacutetico da rede assistencial do SUS
em que as crianccedilas sob a eacutegide da terminologia de usuaacuterias tambeacutem se encontram abarcadas
Apesar do exposto notabiliza-se que o estatuto social e poliacutetico da infacircncia ao situaacute-la a partir
dos marcadores da negatividade e da ausecircncia inscrevem-na a condiccedilatildeo de incapacidade de
exerciacutecio de sua condiccedilatildeo de participaccedilatildeo e de cidadania no interior da instituiccedilatildeo enfocada
privilegiadamente pautada pelas perspectivas adultas e biomeacutedicas de gestatildeo e produccedilatildeo de
sauacutede
Assim reafirma-se que frente agraves particularidades sociais histoacutericas e poliacuteticas que
permeiam a infacircncia desvela-se como patente a inclusatildeo e a partilha de meacutetodos dispositivos
228
e experiecircncias que inscrevam a crianccedila como protagonista e copartiacutecipe das accedilotildees de cuidado
em sauacutede com o propoacutesito de convocar a dimensatildeo educativa poliacutetica e cidadatilde que as
instituiccedilotildees de sauacutede puacuteblicas mobilizam e conduzir a tessitura de redes de diaacutelogo e
participaccedilatildeo no que tange agrave atuaccedilatildeo da infacircncia nestes contextos
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230
Capiacutetulo 12
Psicologia Social e Poliacuteticas Puacuteblicas em diaacutelogo com sauacutede e educaccedilatildeo
questotildees de gecircnero sauacutede mental justiccedila violecircncia e permanecircncia
estudantil
Mariana Fagundes de Almeida Rivera
Tatiana Alves Romatildeo
Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim
Fernanda Lyrio Heinzelmann
Kate Delfini Santos
Paula Rosana Cavalcante
Ianni Regia Scarcelli
Introduccedilatildeo
A partir de pesquisas desenvolvidas no LAPSO - Laboratoacuterio de Estudos em Psicanaacutelise
e Psicologia Social do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de
Psicologia da Universidade de Satildeo Paulo (IP-USP) que primam pela diversidade metodoloacutegica
busca-se neste capiacutetulo apresentar algumas pesquisas em desenvolvimento1 na linha de
pesquisa ldquoSauacutede direitos humanos e poliacuteticas na interface com a Psicologia Socialrdquo A seguir
procura-se discutir a partir delas possibilidades de interlocuccedilatildeo entre a psicologia social e
poliacuteticas puacuteblicas em setores como sauacutede e educaccedilatildeo e na interface com gecircnero sauacutede mental
justiccedila violecircncia e permanecircncia estudantil Os estudos do LAPSO fundamentam-se em
pressupostos que consideram dimensotildees intrapsiacutequicas intersubjetivas e trans-subjetivas na
especificidade dos processos psiacutequicos dos grupos e instituiccedilotildees e no contexto da poliacutetica A
referida linha de pesquisa objetiva investigar processos psicossociais que ocorrem em campos
de relevacircncia na vida social contemporacircnea como as poliacuteticas puacuteblicas de caraacuteter intersetorial2
Apoiando-se em autores do campo da psicologia social em particular Enrique Pichon-
Riviegravere busca-se de modo geral indagar sobre quais contribuiccedilotildees de saberes psi podem trazer
1 As pesquisas satildeo orientadas pela Professora Ianni Scarcelli 2 A polissemia do tema que envolve intersetorialidade tem sido bastante discutida Em uma perspectiva
operacional de acordo com Akerman de Saacute Moyses Rezende amp Rocha (2014) poderia ser definida como um
modo de gestatildeo que se desenvolve em processo sistemaacutetico de articulaccedilatildeo planejamento e cooperaccedilatildeo entre os
distintos setores da sociedade e entre as diversas poliacuteticas puacuteblicas de modo a atuar sobre determinantes sociais
231
agrave discussatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Tambeacutem se aborda como esses saberes podem ser ampliados
pela participaccedilatildeo nesse debate e quais ressonacircncias da e sobre a Psicologia Outra questatildeo
relaciona-se agrave intenccedilatildeo de compreender os efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre vidas das pessoas
e tipos de lacunas que se estabelecem entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-assistencial
quando estaacute em questatildeo a implementaccedilatildeo de novos programas e poliacuteticas (Scarcelli 2017)
As pesquisas que apresentamos se debruccedilam em questotildees de gecircnero sauacutede mental
violecircncia justiccedila permanecircncia estudantil relacionadas agraves poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede e
educaccedilatildeo no contexto brasileiro Aleacutem disso possuem diferentes caminhos metodoloacutegicos ndash
como observaccedilatildeo e registro em diaacuterios de campo narrativas entrevistas e sociodrama ndash e satildeo
pautadas por uma concepccedilatildeo de sujeito compreendido como ser histoacuterico e socialmente
determinado em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica entre mundos interno e externo (Pichon-Riviegravere 2005) de
tal modo que projetos poliacuteticos ressoam na constituiccedilatildeo psiacutequica dos sujeitos Refletem assim
sobre possibilidades de uma psicologia social imbricada na relaccedilatildeo dialeacutetica entre sociedade e
produccedilatildeo de saberes buscando pautar o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas comprometidas
com diferentes necessidades sociais
Eacute importante ressaltar que no contexto do vasto campo da psicologia social
caracterizado pela pluralidade e multiplicidade de abordagens teoacutericas a perspectiva
pichoniana concebe uma interciecircncia com metodologia interdisciplinar ou seja o lsquohomem-em-
situaccedilatildeorsquo como objeto das vaacuterias ciecircncias suscetiacutevel de uma abordagem pluridimensional
Segundo o proacuteprio Pichon-Riviegravere (2005) seu pensamento estaacute sistematizado num conjunto de
conceitos gerais e teoacutericos referidos a um setor do real e a um determinado universo do
discurso que permitem uma aproximaccedilatildeo instrumental a um objeto particular concreto Esses
conceitos segundo Quiroga (2009) buscam dar conta de uma realidade para guiar uma accedilatildeo
sobre ela
Tais referecircncias tecircm nos guiado e se mostrado relevantes no diaacutelogo com o campo das
poliacuteticas puacuteblicas com os setores das poliacuteticas sociais como a sauacutede e abordagens psicoloacutegicas
em meio a outros modos diversos e tambeacutem potentes de buscar aproximaccedilatildeo entre esses campos
(Scarcelli 2017)
1 As pesquisas
As pesquisas apresentadas sinteticamente a partir de seus objetivos e caminhos
seguidos e agrupadas neste texto segundo as questotildees que abordam situam-se no acircmbito de
232
Mestrado e Doutorado no Curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Psicologia Social do IP-USP
11 Gecircnero
Duas pesquisas desenvolvidas uma em niacutevel de Doutorado e outra de Mestrado
partiram de uma concepccedilatildeo na qual gecircnero eacute relacional e poliacutetico como defende Joan Scott
(1995) Donna Haraway (2004) por sua vez afirma que gecircnero seria um conceito desenvolvido
para contestar a naturalizaccedilatildeo da diferenccedila sexual de modo que os feminismos buscam explicar
e transformar sistemas histoacutericos nos quais ldquohomensrdquo e ldquomulheresrdquo satildeo socialmente
constituiacutedos e posicionados em relaccedilotildees de hierarquia Nesta mesma perspectiva Judith Butler
(2008) propotildee repensar categorias de identidade no contexto de uma assimetria radical do
gecircnero A autora problematiza a proacutepria construccedilatildeo dos corpos como gendrados pautada numa
inteligibilidade cultural diretamente associada agrave matriz heterossexual e agrave praacutetica compulsoacuteria
da heterossexualidade que naturaliza corpos gecircneros e desejos Corpos inteligiacuteveis possuiriam
um sexo estaacutevel expresso por um gecircnero estaacutevel que eacute definido oposicional e
hierarquicamente por meio da praacutetica compulsoacuteria da heterossexualidade (Butler 2008 p
216)
A pesquisa de Doutorado Transmasculinidades no Sistema Puacuteblico de Sauacutede
experiecircncias dos usuaacuterios3 investiga experiecircncias de transiccedilatildeo de gecircnero em sistemas puacuteblicos
de sauacutede no Brasil e em Portugal Para tal a partir de entrevistas realizadas com de homens
trans4 que utilizaram o Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) no Brasil ou o Sistema Nacional de
Sauacutede (SNS) em Portugal Entrevistando interlocutores nos dois paiacuteses busca compreender
como suas experiecircncias podem contribuir agrave proposiccedilatildeo e reformulaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas
Foram realizadas quatro entrevistas de caraacuteter exploratoacuterio duas em Portugal e duas no
Brasil com homens trans atendidos no processo de transiccedilatildeo de gecircnero no sistema de sauacutede
puacuteblica no seu paiacutes Nestas entrevistas os toacutepicos abordados partiram da percepccedilatildeo dos proacuteprios
interlocutores sobre efeitos da transiccedilatildeo em curso em suas vidas aleacutem de investigar o acesso
destes e os caminhos que percorreram dentro do sistema de sauacutede bem como suas concepccedilotildees
de gecircnero
Aleacutem das entrevistas textos das poliacuteticas puacuteblicas brasileiras como o da Poliacutetica
3 Conduzida por Fernanda Lyrio Heinzelmann 4 Conforme a definiccedilatildeo de Jaqueline de Jesus (2013) pessoas trans satildeo aquelas que natildeo se identificam com o
gecircnero que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente Para a pesquisa em questatildeo satildeo homens trans os que
natildeo se identificam com o gecircnero feminino que lhes foi atribuiacutedo ao nascimento ou socialmente
233
Nacional de Sauacutede Integral LGBT (Leacutesbicas Gays Bissexuais Travestis e Transexuais) de
2011 e o da Portaria nordm 2803 de 19 de novembro de 2013 do Ministeacuterio da Sauacutede que
redefine e amplia o Processo Transexualizador no SUS satildeo analisados nesta pesquisa visando
problematizar possiacuteveis discrepacircncias entre proposiccedilotildees teoacutericas por parte do Estado e o que na
praacutetica eacute vivenciado pelos usuaacuterios do sistema O texto da lei de identidade de gecircnero
portuguesa Lei nordm 382018 tambeacutem eacute estudado (Portugal 2018) A partir da discussatildeo dos
dados levantados almeja-se traccedilar um panorama do que existe em termos de cuidado para estes
homens e tambeacutem pensar sobre a relaccedilatildeo existente entre estes cuidados e suas demandas
A pesquisa de Mestrado intitulada ldquoDiscussotildees de gecircnero nas praacuteticas de sauacutede no
contexto da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUSrdquo5 analisa como se manifestam questotildees de gecircnero na
Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS bem como suas implicaccedilotildees nas praacuteticas de sauacutede do ponto de vista
do cuidado das relaccedilotildees concepccedilotildees e poliacuteticas puacuteblicas Para tanto a poacutes-graduanda
permaneceu por cinco meses em uma unidade baacutesica de sauacutede de uma grande cidade da regiatildeo
sudeste brasileira Atendimentos grupos reuniotildees e discussotildees de casos foram observados e
registrados em caderno de campo
A Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS foi considerada como campo privilegiado por se tratar da
ldquoporta de entradardquo do sistema de sauacutede tanto responsaacutevel por cuidar de grande parte dos
problemas de sauacutede da populaccedilatildeo quanto capaz de organizar o fluxo de atendimento para os
niacuteveis mais complexos de atenccedilatildeo agrave sauacutede Dessa forma nas unidades baacutesicas profissionais
acolhem diariamente diferentes situaccedilotildees e demandas de sauacutede que estatildeo mutuamente
relacionadas ao contexto de vida das pessoas e agraves dimensotildees estruturais da sociedade como a
patriarcal Entende-se conforme Avtar Brah (2006) que as relaccedilotildees patriarcais satildeo como uma
ldquoforma especiacutefica de relaccedilatildeo de gecircnero em que as mulheres estatildeo numa posiccedilatildeo subordinadardquo
(Brah 2006 p 351)
A partir de concepccedilotildees feministas de gecircnero segundo as quais diferentes instituiccedilotildees e
praacuteticas sociais satildeo constituiacutedas pelos gecircneros e constituintes dos gecircneros (Louro 1997)
compreende-se que haacute uma iacutentima relaccedilatildeo entre gecircnero e praacuteticas de sauacutede que pode ser
analisada Por essa anaacutelise tem sido possiacutevel refletir sobre a cotidianidade dos serviccedilos de
sauacutede sobretudo a respeito das poliacuteticas puacuteblicas do campo visando desenvolvecirc-las em um
sentido mais comprometido com o combate agraves desigualdades de gecircnero
5 Conduzida por Mariana Fagundes de Almeida Rivera
234
12 Violecircncia
Tambeacutem posicionada no acircmbito da Atenccedilatildeo Baacutesica do SUS encontra-se uma pesquisa
de Doutorado que aborda a Poliacutetica de Enfrentamento e Prevenccedilatildeo de Violecircncia na aacuterea da
Sauacutede do municiacutepio de Satildeo Paulo6 objetivando identificar e compreender quais as
possibilidades e desafios que os Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo de Violecircncia (NPV) possuem para lidar
com as situaccedilotildees de violecircncia que se apresentam no dia a dia seja no niacutevel da prevenccedilatildeo ou da
intervenccedilatildeo nas Unidades Baacutesicas de Sauacutede (UBS)
Em 2002 a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) reconheceu a violecircncia como um
problema de sauacutede puacuteblica e divulgou o ldquoRelatoacuterio Mundial sobre Violecircncia e Sauacutederdquo (Krug
Dahlberg Mercy Zwi amp Lozano 2002) No Brasil apesar de desde a deacutecada de 1980 esses
eventos constituiacuterem a segunda causa de oacutebito no perfil da mortalidade geral somente em 2001
foi instituiacuteda por meio da Portaria nordm 737GM do Ministeacuterio da Sauacutede a ldquoPoliacutetica Nacional de
Reduccedilatildeo da Morbimortalidade por Acidentes e Violecircnciasrdquo (PNRMAV) em que foram
estabelecidas diretrizes e responsabilidades institucionais de cada ente da Federaccedilatildeo Na cidade
de Satildeo Paulo destaca-se a Portaria nordm 13002015SMSG que institui Nuacutecleos de Prevenccedilatildeo da
Violecircncia (NPV) nos estabelecimentos de sauacutede do municiacutepio ou seja equipes de referecircncia
das Unidades de Sauacutede responsaacuteveis pela ldquoorganizaccedilatildeo do cuidado e articulaccedilatildeo das accedilotildees a
serem desencadeadas para a superaccedilatildeo da violecircncia e promoccedilatildeo da cultura de pazrdquo (Prefeitura
de Satildeo Paulo 2015)
Minayo (2005) fala sobre a complexidade do tema e afirma que as causas devem ser
analisadas a partir de componentes soacutecio-histoacutericos econocircmicos culturais e subjetivos
Ressalta que no caso do Brasil questotildees estruturais que cronificam a fome a miseacuteria e as
desigualdades sociais de gecircnero de etnia e mantecircm o domiacutenio adultocecircntrico sobre crianccedilas e
adolescentes relacionam-se diretamente com os atos violentos que se revelam no dia-a-dia
Em sua obra ldquoSobre a Violecircnciardquo Marilena Chauiacute (2017) destaca a questatildeo do
autoritarismo da sociedade brasileira que naturalizou a violecircncia que se apresenta sobretudo
de maneira velada estruturada a partir de relaccedilotildees familiares de classes dominantes com
predomiacutenio do espaccedilo privado sobre o puacuteblico em que os benefiacutecios concedidos a uma minoria
satildeo percebidos como naturais
Para alcanccedilar o objetivo da pesquisa foram realizadas oito entrevistas abertas com
pessoas que trabalham nos NPVs e trecircs entrevistas com gestoras e gestores da aacuterea teacutecnica de
6 Conduzida por Kate Delfini Santos
235
Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de Violecircncia sendo uma no niacutevel da supervisatildeo de
sauacutede outra na coordenadoria aleacutem da responsaacutevel pela aacuterea na Secretaria Municipal de Sauacutede
Tambeacutem foi realizada uma anaacutelise da Poliacutetica Nacional de Reduccedilatildeo da Morbidade sobre
Violecircncia e Sauacutede e da Linha de Cuidado para Atenccedilatildeo Integral da Pessoa em Situaccedilatildeo de
Violecircncia
13 Sauacutede Mental e Justiccedila
Duas pesquisas em niacutevel de Doutorado abordam a Sauacutede Mental na interface com a
Justiccedila Uma delas intitulada ldquoSauacutede Mental e Defensoria Puacuteblica buscando caminhos para
praacuteticas de cuidado no Sistema de (in)Justiccedilardquo7 trata de demandas relacionadas ao campo da
Sauacutede Mental e como estas se apresentam e se cruzam com instituiccedilotildees juriacutedicas a partir da
perspectiva da Defensoria Puacuteblica do Estado de Satildeo Paulo Objetiva levantar e compartilhar
possibilidades para efetivaccedilatildeo de praacuteticas de cuidado e garantia de direitos das ldquopessoas com
transtornos mentaisrdquo8 e de suas famiacutelias as quais tecircm suas histoacuterias acompanhadas pelo Sistema
de Justiccedila Partindo de narrativas registradas no diaacuterio de campo da pesquisadora ndash que eacute
tambeacutem psicoacuteloga da Defensoria Puacuteblica e estaacute imersa cotidianamente em seu campo de
pesquisa ndash foram analisados alguns casos processos judiciais fluxos intra-institucionais e
intersetoriais intervenccedilotildees e projetos articulando as anaacutelises das praacuteticas com legislaccedilotildees
normativas dados e bibliografia que versa sobre o tema
Frequentemente nas Defensorias Puacuteblicas chegam pedidos de internaccedilatildeo
involuntaacuteriacompulsoacuteria para pessoas com transtorno mental eou que fazem uso problemaacutetico
de drogas geralmente a pedido de familiares Tambeacutem se observa a interface com a Sauacutede
Mental quando pessoas procuram a instituiccedilatildeo com discursos confusos ou ideias aparentemente
delirantespersecutoacuterias eou vivendo situaccedilotildees de violecircncianegligecircncia nas accedilotildees de
destituiccedilatildeo do poder familiar de mulheres pobres com transtorno mental eou que fazem uso
problemaacutetico de drogas por exemplo em casos em que medidas de seguranccedila determinam a
internaccedilatildeo de pessoas em Hospitais de Custoacutedia e Tratamento Psiquiaacutetrico (HCTP)
Demandas relacionadas ao campo da Sauacutede Mental satildeo encontradas no Sistema de
7 Conduzida por Paula Rosana Cavalcante 8 Os termos ldquotranstorno mentalrdquo e ldquopessoas com transtorno mentalrdquo foram designados pelos diagnoacutesticos meacutedicos
ou pelo modo estas pessoas ou situaccedilotildees foram historicamente denominadas na sociedade Aqui satildeo utilizadas para
circunscrever o fenocircmeno social mas natildeo sem fazer a criacutetica a estes roacutetulos e o significado destes Entende-se que
se trata de uma construccedilatildeo social que denominou certas caracteriacutesticas ou comportamentos como ldquodesviordquo
ldquodoenccedilardquo ou ldquoanormalidaderdquo portanto algo indesejado a ser corrigido ou controlado
236
Justiccedila haacute muito tempo Observa-se que historicamente estes casos em geral eram atendidos
de maneira segmentada e estigmatizante com praacuteticas de segregaccedilatildeo contenccedilatildeo e violecircncia
(Dotto Endo Sposito amp Endo 2012)
Neste contexto apesar da cultura ainda repressora e estigmatizante do campo do direito
identificam-se algumas praacuteticas alinhadas com os princiacutepios da Luta Antimanicomial
(Amarante 2008) tais como accedilotildees de qualificaccedilatildeo ao atendimento ndash na perspectiva do cuidado
ndash accedilotildees de articulaccedilatildeo com outras poliacuteticas puacuteblicas e equipamentos construccedilatildeo de termos de
cooperaccedilatildeo e accedilotildees civis puacuteblicas para implementaccedilatildeo e fortalecimento da Rede de Atenccedilatildeo
Psicossocial projetos de capacitaccedilatildeo e de educaccedilatildeo em direitos O papel de profissionais da
psicologia tem sido fundamental neste processo buscando novos e alternativos caminhos neste
campo preocupando-se com a escuta qualificada e a autonomia de usuaacuterias e usuaacuterios atuando
no fortalecimento dos laccedilos sociais e familiares bem como visando potencializar as conexotildees
entre as poliacuteticas puacuteblicas fomentando intervenccedilotildees para que a Defensoria Puacuteblica integre
tambeacutem esta Rede
Outra pesquisa de Doutorado em curso que compotildee o cenaacuterio de interface entre
poliacuteticas puacuteblicas de sauacutede mental e o campo do Sistema de Justiccedila sobretudo o campo de
garantia de direitos eacute o estudo de uma poacutes-graduanda9 que tambeacutem eacute trabalhadora do
Ministeacuterio Puacuteblico de Satildeo Paulo (MPSP) o qual a exemplo da Defensoria Puacuteblica compotildee o
Sistema de Justiccedila brasileiro e que a partir da Constituiccedilatildeo Federal de 1988 tem como funccedilatildeo
ldquoa defesa da ordem juriacutedica do regime democraacutetico e dos interesses sociais e individuais
indisponiacuteveisrdquo (Brasil 1988 art 127) Na perspectiva institucional o MPSP inclui accedilotildees que
se direcionam para a efetivaccedilatildeo do projeto societaacuterio democraacutetico atuando tambeacutem no
monitoramento e na avaliaccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas assim podendo contar com apoio de
equipes teacutecnicas proacuteprias (eg Goulart 2016) Neste contexto no estado de Satildeo Paulo foi
criado um Nuacutecleo de Assessoria Teacutecnica Psicossocial (NAT) em 2012 em cujo contexto o
trabalho da pesquisadora estaacute inserido
Entre 2012 e 2018 portanto a pesquisadora teve acesso por meio de visitas
institucionais a serviccedilos previstos na Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental Tambeacutem adentrou
outras unidades natildeo configuradas nesta poliacutetica como Instituiccedilotildees de Longa Permanecircncia para
Idosos (ILPI) previstas na poliacutetica de Assistecircncia Social Comunidades Terapecircuticas que
recebem casos sem conexatildeo com o perfil de uso de aacutelcool e outras drogas cliacutenicas particulares
9 Ana Carolina Martins de Souza Felippe Valentim
237
serviccedilos sem oficializaccedilatildeo de funcionamento (entendidos como ilegais) deparando-se com
discursos e praacuteticas ainda de caraacuteter manicomial Neste sentido a pesquisa por meio de
narrativas da trabalhadora revela situaccedilotildees de persistentes internaccedilotildees em situaccedilotildees natildeo
parametrizadas que vatildeo no sentido oposto aos contextos da Luta Antimanicomial e de poliacuteticas
de Atenccedilatildeo em Sauacutede Mental que permitem refletir sobre o processo de Reforma Psiquiaacutetrica
frente a avanccedilos retrocessos e sentidos do termo manicomial como ldquometaacutefora de relaccedilotildees de
violecircncia e discriminaccedilatildeo geradoras de exclusatildeo socialrdquo (Scarcelli 1998 p 1)
14 Permanecircncia Estudantil
No campo das poliacuteticas puacuteblicas voltadas agrave educaccedilatildeo superior a pesquisa de Doutorado
ldquoEncontros e desencontros entre o saber popular e o conhecimento acadecircmicordquo10 procura
compreender o percurso das comunidades que adentram a universidade puacuteblica gratuita aleacutem
de analisar papeacuteis que os grupos sociais possuem na permanecircncia de estudantes cotistas Trata-
se de uma pesquisa-accedilatildeo de natureza qualitativa A anaacutelise documental (2000 a 2016) permite
compreender que um conjunto de poliacuteticas puacuteblicas construiu uma expansatildeo da rede de
universidades federais para aleacutem da ampliaccedilatildeo de vagas pautando o desenvolvimento de
territoacuterios (Programa de Aceleraccedilatildeo de Crescimento) e a inclusatildeo de maiorias e minorias sociais
(Brasil 2012)11
Na tese propotildee-se o termo ldquoUniversidades Suleadasrdquo12 para nomear algumas
universidades puacuteblicas federais que surgiram em um movimento de expansatildeo destas
universidades com um projeto poliacutetico-pedagoacutegico pautado num ideaacuterio contra hegemocircnico e
na praacutexis da emancipaccedilatildeo social
Ainda para o caso brasileiro cabe considerar a recente configuraccedilatildeo de novas universidades
puacuteblicas que buscam outro modelo de universidade contra a loacutegica hegemocircnica ainda que
dentro da oficialidade estatal Alguns desses exemplos satildeo a Universidade Federal da Integraccedilatildeo
Latino-Americana (Unila) a Universidade Federal da Integraccedilatildeo Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (Unilab) a Universidade Federal do Sul da Bahia e a Universidade Federal da
Fronteira Sul (UFFS) esta que inclusive se autodefine como uma universidade popular em
seus documentos de fundaccedilatildeo Sobre essas universidades e o processo de expansatildeo do sistema
puacuteblico brasileiro temos trabalhos de produccedilatildeo recente baseados em pesquisas em andamento
10 Conduzida por Tatiana Alves Romatildeo 11 A Lei nordm 12711 de 29 de agosto de 2012 (Nova Lei de Cotas) conjuga criteacuterios de cotas raciais e de cotas
sociais que altera a questatildeo do acesso agrave educaccedilatildeo superior federal por um mecanismo que ao direcionar o bem
puacuteblico aos menos privilegiados efetivam uma forma de desenvolvimento social de uma maioria historicamente
excluiacuteda de acesso agrave educaccedilatildeo superior (Lei nordm 12711 2012) 12 O termo Universidade Suleada tem em Paulo Freire uma de suas inspiraccedilotildees Freire chama atenccedilatildeo para os
aspectos ideoloacutegicos do termo ldquonortearrdquo e usa a expressatildeo ldquosulearrdquo para referir-se agrave oacutetica do sul agrave construccedilatildeo de
paradigmas alternativos e agrave reinvenccedilatildeo da emancipaccedilatildeo social (Cf Dicionaacuterio Paulo Freire 2008)
238
no projeto Observatoacuterio da Universidade Popular no Brasil (Morris 2016 p 117)
Com base no cenaacuterio apresentado elege-se a Universidade Federal do Sul da Bahia
inaugurada em 2014 para a conduccedilatildeo da pesquisa Esta Universidade pratica uma poliacutetica de
cotas que privilegia indiacutegenas aldeadaos quilombolas e campesinaos do Movimento Sem
Terra
2 Caminhos da investigaccedilatildeo procedimentos e instrumentos utilizados nas pesquisas de
campo
Como jaacute referido haacute uma ampla diversidade metodoloacutegica no campo da Psicologia
Social Tendo meacutetodo como ldquocaminho do pensamentordquo (Minayo 2014) ilustra-se aqui o
desenvolvimento e a construccedilatildeo de possiacuteveis trajetos de investigaccedilatildeo que permitam
compreender efeitos das poliacuteticas puacuteblicas sobre as vidas das pessoas A definiccedilatildeo de desenho
metodoloacutegico bem como a escolha de procedimentos e instrumentos utilizados eacute pautada tanto
pelo campo da pesquisa quanto pelo referencial teoacuterico guiotildees estes que permitem um rigor
que valide os saberes gerados pelas investigaccedilotildees e o desenvolvimento de poliacuteticas puacuteblicas
comprometidas com diversas necessidades sociais
Diferentes instrumentos e procedimentos foram utilizados nas pesquisas apresentadas
entrevistas narrativas observaccedilatildeo diaacuterio de campo e sociodrama se constituiacuteram como
possibilidades viaacuteveis nas investigaccedilotildees e satildeo apresentados como forma de dar visibilidade a
essas propostas no campo da Psicologia Social
21 Observaccedilatildeo e diaacuterio de campo
As Ciecircncias Sociais haacute muito se utilizam da observaccedilatildeo participante e da etnografia para
a realizaccedilatildeo de pesquisas nas quais se busca conhecer uma realidade diversa daquela da pessoa
que a conduz Nestes trabalhos o uso de diaacuterio de campo ou caderno de campo se fez
fundamental uma vez que nele foram registradas caracteriacutesticas da cultura da realidade do
ldquocampordquo que se punham a conhecer A Psicologia Social pocircde ao longo do tempo se debruccedilar
sobre essas contribuiccedilotildees e tambeacutem se utilizar delas
Comprometidas com uma criacutetica agrave construccedilatildeo do conhecimento positivista e agrave
hegemonia do saber cientiacutefico as pesquisas que se utilizaram desses caminhos metodoloacutegicos
objetivaram ultrapassar a falsa dicotomia entre o pesquisador e o objeto da pesquisa A
ldquopesquisa de campordquo no contexto do grupo de pesquisa aqui mencionado no entanto se realiza
239
menos proacutexima agrave etnografia e mais proacutexima de um ldquose deixar levarrdquo Scarcelli (2012) em sua
pesquisa de Doutorado demonstrou como eacute possiacutevel se apoiar nas ideias pichonianas para
produzir uma investigaccedilatildeo de campo que permita encontros e conversas com o intuito de se
aproximar de uma realidade desconhecida ou conhecer algum aspecto dela em particular
A partir das ideias de Pichon-Riviegravere (2005) eacute possiacutevel acessar processos
intersubjetivos realizando tambeacutem uma constante anaacutelise do mundo interno por quem
investiga Como o autor propotildee deve-se atentar a duas dimensotildees de fenocircmenos presentes neste
processo o observaacutevel (expliacutecito) e as fantasias inconscientes (impliacutecito) As observaccedilotildees em
uma pesquisa de campo que adote esse modo de investigaccedilatildeo entatildeo servem para se questionar
o que se processa no sujeito e nos arranjos e rearranjos grupais Para Pichon
todo processo impliacutecito manifesta-se dentro do campo de observaccedilatildeo pelo surgimento de uma
qualidade nova nesse campo a qual seraacute denominada emergente O emergente destaca-se como
conceito por representar a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e intersubjetividade
(Scarcelli 2002 p 102)
O conceito de emergente representa a articulaccedilatildeo possiacutevel entre os acircmbitos da intra e
intersubjetividade do mundo interno e mundo externo expressa-se por um conjunto de
fantasias inconscientes explicitadas atraveacutes do processo de atribuiccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteis
(Pichon-Riviegravere 2005) Trata-se de uma formulaccedilatildeo relacionada agravequele que pode ser
considerado um dos pilares da teoria pichoniana o conceito de porta-voz Porta-voz de um
grupo eacute aquele que em um determinado momento denuncia o acontecer grupal as fantasias
que o movem as ansiedades e necessidades do grupo Natildeo fala por si soacute mas por todo o grupo
pois eacute no porta-voz que se conjugam a verticalidade e horizontalidade grupais (Scarcelli 2012)
Nesse sentido o sujeito porta-voz eacute veiacuteculo de uma qualidade emergente que remete agrave
a dimensatildeo impliacutecita das relaccedilotildees estruturantes do grupo estabelecidas entre seus integrantes
O emergente representa uma nova situaccedilatildeo grupal sendo porta-voz quem explicita as fantasias
inconscientes do grupo (Pichon-Riviegravere 2005) A investigaccedilatildeo feita a partir do grupo indaga o
interjogo entre o intra e o intersubjetivo (mundo interno e mundo externo) considerando-se
entre outros aspectos uma observaccedilatildeo dos modos de interaccedilatildeo simultaneamente agrave formulaccedilatildeo
de hipoacuteteses provisoacuterias acerca dos processos envolvidos nesse interjogo
Na pesquisa que aborda gecircnero realizada na UBS adotou-se a ldquoobservaccedilatildeordquo das
atividades realizadas na e pela instituiccedilatildeo sendo o diaacuterio de campo instrumento primordial para
seu objetivo Neste diaacuterio registravam-se acontecimentos presenciados em campo encontros e
desencontros aquilo que se mostrava significativo para a pesquisa e ao mesmo tempo
sensaccedilotildees ideias vivecircncias internas da proacutepria pesquisadora em campo como frequentemente
240
se faz o observador de grupos operativos tal como teorizado por Pichon-Riviegravere (2005) Para
este autor o mundo interno representa um conjunto de relaccedilotildees sociais internalizadas que
passam do que estaacute fora (mundo externo) para o grupo interno (mundo interno) que se
encontram em permanente interaccedilatildeo Essas relaccedilotildees apresentam-se como objeto da Psicologia
Social da Praacutexis que tem como instrumentos privilegiado de investigaccedilatildeo o grupo que foi
denominado de operativo no qual se investiga o interjogo entre a dimensatildeo psicossocial e a
dimensatildeo sociodinacircmica (Scarcelli 2017) a ldquoobservaccedilatildeo das formas de interaccedilatildeo dos
mecanismos de adjudicaccedilatildeo e assunccedilatildeo de papeacuteisrdquo (Pichon-Riviegravere 2005 p 238) ou das
ldquoformas de interaccedilatildeo que nos conduzem a estabelecer hipoacuteteses acerca de seus determinantesrdquo
(Lema 2008 p 107) Nesse sentido
ter o grupo operativo como instrumento de investigaccedilatildeo natildeo significa constituir um grupo assim
formalizado ou investigar um grupo constituiacutedo a partir do que propotildee a teacutecnica Em outros
termos do grupo operativo decorre um conjunto de conceitos que orientam nosso olhar quando
examinamos situaccedilotildees de maneira geral (Scarcelli 2017 p 192)
Desse modo o diaacuterio de campo tudo incluiacutea informaccedilotildees sobre o local e as pessoas
datas e horaacuterios ocorridos contatos acordos e combinados bem como questotildees subjetivas
reflexotildees acerca do tema da pesquisa e diaacutelogos com leituras que a pesquisadora jaacute havia feito
Todo esse registro formou um diaacuterio de campo de uma experiecircncia vivida
corporalmente nas relaccedilotildees entre pessoas ndash e natildeo com o ldquoobjetordquo de pesquisa ndash assim como
de uma experiecircncia vivida na instituiccedilatildeo com sua (des)organizaccedilatildeo hierarquia cultura e
histoacuteria Portanto os escritos no diaacuterio de campo natildeo representam a realidade externa mas uma
construccedilatildeo na qual a proacutepria pesquisadora participa jaacute que o que eacute selecionado para registro
passa por sua atenccedilatildeo interpretaccedilatildeo vida interna que pode ser teorizada a partir de uma teoria
de grupos concebida no acircmbito da Psicologia Social da Praacutexis (Kazi 2006)
22 Entrevistas
A entrevista como recurso metodoloacutegico eacute entendida acima de tudo como conversa
entre duas ou vaacuterias pessoas interlocutoras tendo como finalidade fornecer informaccedilotildees
pertinentes sobre um objeto de pesquisa (Minayo 2014) Traz informaccedilotildees dos proacuteprios
sujeitos a partir de sua maneira individual de sentir e compreender sua realidade revela crenccedilas
valores condutas maneiras de atuar Bleger (1998) afirma que o campo da entrevista eacute
dinacircmico sendo necessaacuterio considerar (a) quem conduz a entrevista considerando aspectos de
identificaccedilatildeo e contratransferecircncia etc (b) quem eacute a pessoa entrevistada incluindo aqui os
aspectos transferenciais suas defesas e ansiedades etc (c) a relaccedilatildeo interpessoal onde
241
circulam as ansiedades o processo de comunicaccedilatildeo (projeccedilatildeo introjeccedilatildeo identificaccedilatildeo) etc
Isso quer dizer que ateacute pelas condiccedilotildees em que as entrevistas ocorrem devem ser considerados
tanto aspectos formais e objetivos quanto a subjetividade envolvida nesse encontro
Entrevistas foram realizadas nas pesquisas desenvolvidas por este grupo de autoras e
elas aconteciam frequentemente na perspectiva do ldquose deixar levarrdquo que pode se encaminhar agrave
modalidade de encontro previamente marcado e orientado por questotildees previamente definidas
A pesquisa que abordou questotildees de gecircnero em Portugal e no Brasil simultaneamente
encaminhou-se com entrevistas que almejaram obter relatos pessoais a partir de respostas dadas
pelos interlocutores Inicialmente foram propostas entrevistas abertas com toacutepicos sugeridos
e listados num roteiro natildeo riacutegido Ao longo do trabalho foram feitos ajustes para incluir
particularidades natildeo pensadas originalmente a exemplo da existecircncia de uma lei de identidade
de gecircnero no contexto portuguecircs Deste modo em Portugal foi necessaacuterio elaborar um roteiro
de perguntas que partiram de um questionaacuterio semiestruturado enquanto no Brasil as
entrevistas permaneceram abertas tendo como elemento disparador uma uacutenica pergunta Ainda
que no primeiro caso nem todos os toacutepicos listados no roteiro preacutevio tenham sido abordados
as ausecircncias destes tambeacutem puderam fornecer dados relacionadas a relevacircncia de tais questotildees
para cada interlocutor
23 Narrativas
Conforme exposto no toacutepico anterior algumas das pesquisas aqui descritas utilizam
narrativas a partir do resgate de registros em diaacuterio de campo das pesquisadoras que satildeo
tambeacutem trabalhadoras em seu campo de pesquisa Esta escolha se deu fundamentada no
entendimento de que poderaacute ser um modo coerente de acolher diversas formas de manifestaccedilatildeo
das questotildees de sauacutede mental e de como estas se apresentam nas instituiccedilotildees juriacutedicas ou ainda
em relaccedilatildeo a oacutergatildeos que representam direitos e portanto justiccedila Deste modo procura-se
retratar resgatar recolher visibilizar atraveacutes de narrativas os atendimentos visitas reuniotildees
diaacutelogos e demais procedimentos que compotildeem o cotidiano das pesquisadoras A pesquisa
narrativa eacute um instrumento criativo e inovador jaacute consagrado pela Organizaccedilatildeo Mundial de
Sauacutede (OMS)
Em 2003 o Escritoacuterio Regional para a Europa da Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede criou um
serviccedilo de informaccedilatildeo puacuteblica denominado HEN ndash Health Evidence Network Baseado em
ldquoevidecircncias sintetizadasrdquo propotildee ldquoopccedilotildees poliacuteticasrdquo para o desenvolvimento de futuras
recomendaccedilotildees na tomada de decisotildees em sauacutede Entre as sugestotildees figuraram uso de
novos tipos de evidecircncia pesquisa qualitativa e narrativa ampliaccedilatildeo de disciplinas acadecircmicas
242
relacionadas a contextos culturais (Nunes 2018 p 307 grifo nosso)
Este relatoacuterio com recomendaccedilotildees da OMS observa que abordagens altamente
estruturadas minimizam a importacircncia da leitura e da interaccedilatildeo dialoacutegica entre a literatura e a
pesquisadora a continuidade interpretativa e o questionamento a avaliaccedilatildeo criacutetica e a
criatividade o desenvolvimento da argumentaccedilatildeo e da escrita ndash atividades altamente
intelectuais e criativas que buscam originalidade ao inveacutes de replicabilidade Desse modo uma
narrativa seria um relato com um comeccedilo uma sequecircncia de eventos que se desenrolam e um
final A narrativa coloca personagens eventos accedilotildees e contexto juntos para dar sentido a eles
(Nunes 2018)
Segundo esta anaacutelise as histoacuterias satildeo subjetivas e intersubjetivas incorporadas em
praacuteticas institucionais e sociais e convencem natildeo pela sua verdade objetiva mas por sua
semelhanccedila com a vida real e o impacto sobre o leitor ou ouvinte O foco da pesquisa narrativa
estaria em produzir o que nomeia de ldquointerpretaccedilatildeo convincenterdquo destacando que
confiabilidade plausibilidade e criticidade ndash reflexividade questionamento e interpretaccedilotildees
alternativas ndash satildeo fundamentais (Nunes 2018)
O documento tambeacutem aponta que ldquopesquisas narrativas bem conduzidas e analisadas
podem complementar estudos randomizados estudos observacionais e dados coletados
rotineiramente de vaacuterios tiposrdquo (Nunes 2018 p 309) Satildeo recomendados como procedimentos
para garantir criteacuterios cientiacuteficos agrave pesquisa coletar vaacuterias histoacuterias sobre o mesmo assunto
relacionar a histoacuteria a outras fontes como dados biomeacutedicos e estar atenta aos deveres eacuteticos
de honestidade e confidencialidade Desta forma o conteuacutedo das narrativas pode ser o material
disparador para um encontro com o campo de interesse do estudo ilustrando dinacircmicas
(institucionais interpessoais interinstitucionais) relaccedilotildees discursos diaacutelogos accedilotildees
intervenccedilotildees dentre outras descriccedilotildees elementos que podem ser analisados em conjunto com
outras fontes de dados tais como legislaccedilatildeo normativas estatiacutesticas bibliografia e outras
pesquisas
Por fim se por um lado a narrativa eacute considerada como elemento inovador haacute que se
ponderar sobre a criticidade direcionada a esta concepccedilatildeo de fazer e compreender a ciecircncia
desde os trabalhos de Walter Benjamin (1985) e Hannah Arendt (2016) A funccedilatildeo poliacutetica de
narrar eacute resgatada na pesquisa ao se buscar o sentido desta accedilatildeo na composiccedilatildeo da mesma e a
partir dela deixar vir agrave cena aquilo que estava fora do discurso oficial de sucesso da histoacuteria
neste caso para compor o cenaacuterio dos avanccedilos da sauacutede mental no Brasil que como temos
visto vem sendo desconstruiacuteda atualmente sem representaccedilatildeo de resistecircncias que efetivem
243
barras no desmonte
Agraves pesquisas portanto interessam contar dos processos a fim de compor contextos de
estudos quantitativos e outros qualitativos e tambeacutem promover reflexatildeo sobre os restos que
ficam de fora do discurso apenas dos avanccedilos e conquistas para partilhar de experiecircncias no
campo de interface da justiccedila e sauacutede que recolham as contradiccedilotildees e incongruecircncias da
realidade (Critelli 2012) Ficaria a cargo do narrador a transmissatildeo natildeo oficial ou dominante
pois eacute dela que a tradiccedilatildeo natildeo recorda (Gagnebin 2006) e assim do lugar de trabalhadoras do
sistema de justiccedila buscamos narrar o que testemunhamos deste lugar
Assim dialoga-se com Pichon partindo de conceitos que foram trazidos e trabalhados
anteriormente Se quem eacute porta-voz denuncia o acontecer grupal entende-se que as narradoras
tambeacutem promovem esse dizer das realidades nos contextos da interface justiccedila e sauacutede como
accedilatildeo de denuacutencia de um acontecer grupal tendo as realidades narradas surgindo como
emergente de um movimento pela sauacutede mental ndash que compotildee o contexto do direito da poliacutetica
e dos aspectos sociais
24 Sociodrama
O sociodrama eacute um instrumento metodoloacutegico da socionomia que ao ser utilizado como
meacutetodo de pesquisa interventiva permite estabelecer uma relaccedilatildeo dialeacutetica e dialoacutegica com seus
participantes Nesta concepccedilatildeo metodoloacutegica para se manter a coerecircncia com o referencial
filosoacutefico e teoacuterico os sujeitos satildeo convidados a ocupar o papel de co-pesquisadoras ou co-
pesquisadores a respeito da temaacutetica investigada
Moreno13 (1975) introduz o sociodrama como meacutetodo de accedilatildeo na abordagem dos
problemas antropoloacutegicos e culturais
O Conceito subjacente nessa abordagem eacute o reconhecimento de que o homem eacute um inteacuterprete
de papeacuteis que todo e qualquer indiviacuteduo se caracteriza por um certo repertoacuterio de papeacuteis que
dominam o seu comportamento e que toda e qualquer cultura eacute caracterizada por um certo
conjunto de papeacuteis que ela impotildee Para o estudo das inter-relaccedilotildees culturais o procedimento
sociodramaacutetico eacute idealmente adequado especialmente quando duas culturas coexistem em
proximidade fiacutesica e seus membros se encontram respectivamente num processo contiacutenuo de
13 Eacute importante destacar que Jacob Levy Moreno (1892-1974) trouxe agrave teoria do papel no campo da Psicologia e
na criaccedilatildeo do psicodrama quando procurava descrever os processos psiacutequicos que ocorriam neste meacutetodo nascido
do Teatro do Improviso E se ele trouxe contribuiccedilotildees importantes para a Psicologia eacute George Mead quem vai
desenvolver a noccedilatildeo de papel no acircmbito da Psicologia Social e explicar muitos aspectos da vida social por meio
do estudo dos papeacuteis Para ele na mente de cada um de noacutes natildeo soacute assumimos nosso papel como fazemos isso
tambeacutem em relaccedilatildeo ao papel do outro assumindo o papel social de um grupo organizado E foi no estudo de Mead
que Pichon buscou subsiacutedios para a construccedilatildeo de sua Psicologia social histoacuterica e concreta (Scarcelli 2017)
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interaccedilatildeo e permuta de valores (Moreno 1975 p 413)
Convidou-se agrave vivecircncia de um ato sociodramaacutetico membros dos grupos que constituem
a instituiccedilatildeo os quais vestidos de seus papeacuteis sociais e do papel de co-pesquisadoras e co-
pesquisadores satildeo conduzidos em dramatizaccedilotildees de cenas eleitas e criadas pelo proacuteprio grupo
No sociodrama o grupo eacute ao mesmo tempo autor e ator das histoacuterias representadas
3 Anaacutelise
As pesquisas que apresentamos trazem diferentes questotildees e colocam reflexotildees de
dimensotildees de ordens diversas A partir de uma perspectiva pichoniana quando se tem o grupo
operativo como instrumento de investigaccedilatildeo sempre satildeo analisadas trecircs dimensotildees que natildeo se
separam mas satildeo consideradas como recortes metodoloacutegicos a psicossocial que analisa a parte
do sujeito que se dirige aos diferentes membros que o rodeiam a sociodinacircmica que aborda
diversas tensotildees existentes entre todos os membros que configuram a estrutura do grupo e a
institucional que consiste na investigaccedilatildeo dos grandes grupos (estrutura origem composiccedilatildeo
histoacuteria economia poliacutetica ideologia etc) (Pichon-Riviegravere 2005) Elas representam trecircs
direccedilotildees de anaacutelise na investigaccedilatildeo social e perpassam a discussatildeo desenvolvida nas pesquisas
aqui apresentadas que dialogam com o esquema conceitual referencial e operativo (ECRO) da
formulaccedilatildeo teoacuterica de Pichon-Riviegravere (Scarcelli 2017) Contudo a discussatildeo acerca da
dimensatildeo institucional natildeo tem sido suficientemente desenvolvida em estudos que priorizam a
abordagem psicoloacutegica para se refletir sobre as poliacuteticas puacuteblicas e praacuteticas institucionais
Baseadas nesta hipoacutetese e com o intuito de examinar com mais cuidado tal dimensatildeo
nas pesquisas e no caraacuteter social que elas tecircm lanccedilamos matildeo de outro recorte metodoloacutegico
sugerido por Scarcelli (2017) a partir do diaacutelogo feito com a teoria pichoniana mas que natildeo se
restringe a ela Tal proposta possibilita a identificaccedilatildeo de camadas relacionais que interrogam
questotildees e agregam conhecimento agrave dimensatildeo institucional e sua relaccedilatildeo intriacutenseca com as
dimensotildees psicossocial e sociodinacircmica quando estamos por exemplo diante das poliacuteticas
puacuteblicas e as praacuteticas que delas decorrem14
De acordo com esse recorte compreendem-se quatro acircmbitos distintos O poliacutetico-
juriacutedico refere-se agraves leis normas diretrizes e programas governamentais decorrentes de
definiccedilotildees poliacuteticas o social-cultural aos grupos e sujeitos suas necessidades e demandas no
14 Considerando os limites deste texto natildeo seraacute apresentado com mais detalhes o modo de fazer tal anaacutelise
Discussatildeo mais detalhada encontra-se em Scarcelli (2017)
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contexto da implantaccedilatildeo e implementaccedilatildeo das poliacuteticas o teoacuterico-conceitual aos fundamentos
teoacutericos e filosoacuteficos assim como as concepccedilotildees que sustentam as praacuteticas leis diretrizes
poliacuteticas e programas e por fim o teacutecnico-assistencial que se refere aos modos de criaccedilatildeo
implantaccedilatildeo implementaccedilatildeo e desenvolvimento de praacuteticas leis diretrizes poliacuteticas e
programas (Scarcelli 2017)
Os acircmbitos estatildeo sempre interligados apoiando a investigaccedilatildeo de problemas que se
encontram na esfera das poliacuteticas puacuteblicas (por exemplo) e podendo ser utilizados como lentes
para adentrar o campo de pesquisa e refletir experiecircncias que satildeo mobilizadas tambeacutem na pessoa
que conduz a pesquisa Neste sentido os acircmbitos pensados como recorte metodoloacutegico
auxiliam o enquadre15 e o desenvolvimento da pesquisa considerando que a experiecircncia de
quem pesquisa estaacute implicada no processo de pesquisar
Os trabalhos das pesquisadoras deste capiacutetulo por exemplo se referem aos setores da
sauacutede e educaccedilatildeo e podem assim indagar sobre diferentes situaccedilotildees que se relacionam aos
acircmbitos propostos no recorte apresentado no campo das poliacuteticas puacuteblicas levantando questotildees
diversas Quais as leis e diretrizes que sustentam os setores da educaccedilatildeo e sauacutede no paiacutes Quais
poliacuteticas governamentais subsidiam as praacuteticas encontradas nas diferentes instituiccedilotildees
estudadas
E como satildeo concretizadas as praacuteticas no cotidiano das instituiccedilotildees que estatildeo prescritas
nas leis e diretrizes que as sustentam Estatildeo alinhadas ou em desalinho com tais poliacuteticas
Como concretizar em praacuteticas o que estaacute sendo proposto legalmente
Quem satildeo os grupos de pessoas que produzem tais praacuteticas Quais seus modos de
expressatildeo seus contextos de vida Mas aleacutem disso quais sujeitos que constituiacuteram as leis e
diretrizes poliacuteticas estudadas Como se organizaram e como realizaram esse trabalho
Haacute concepccedilotildees e referenciais teoacutericos e filosoacuteficos que orientam as praacuteticas nessas
instituiccedilotildees entatildeo quais satildeo eles E quais princiacutepios baseiam a construccedilatildeo das leis diretrizes
e programas que se relacionam a essas praacuteticas Qual a visatildeo de mundo e interesses dos sujeitos
que participaram desse processo
Como proposta de compreensatildeo dos focos que cada acircmbito pode motivar as perguntas
acima referem-se respectivamente aos acircmbitos poliacutetico-juriacutedico teacutecnico-assistencial social-
15 Joseacute Bleger (1984) disciacutepulo de Pichon-Riviegravere propotildee a concepccedilatildeo de enquadre para se aproximar de um
fenocircmeno do qual se toma uma parte de suas relaccedilotildees delimitando o que estaacute presente implicitamente em todas
as indagaccedilotildees cientiacuteficas ou natildeo De acordo com o autor enquadre satildeo as constantes dentro das quais acontece o
processo operando como um organizador psiacutequico Se por um lado o enquadre eacute imprescindiacutevel tambeacutem eacute
essencial que se tenha a criticidade quanto agrave caracteriacutestica de mobilidade do campo)
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cultural e teoacuterico-conceitual ndash lembrando que satildeo camadas imbricadas podendo ser utilizadas
como recortes metodoloacutegicos que auxiliem na apreensatildeo da realidade sem ignorar suas relaccedilotildees
Uma busca estaacute em indagar sobre as lacunas entre os acircmbitos poliacutetico-juriacutedico e teacutecnico-
assistencial (Scarcelli 2011 2017) O que estaacute proposto em diretrizes leis e programas eacute de
fato concretizado no cotidiano das praacuteticas nas instituiccedilotildees Em muitos aspectos e
circunstacircncias como aqueles captados pelas pesquisas aqui apresentadas pode-se afirmar que
natildeo Mas isso jaacute eacute sentido e conhecido pelos diferentes atores dessas instituiccedilotildees O que se
torna interessante eacute conhecer como isso se daacute e quais as consequecircncias dessa discrepacircncia
tarefa que se torna facilitada pelo uso do recorte metodoloacutegico
Conflitos contradiccedilotildees e ambiguidades que se expressam entre o que se propotildee e o que
se estabelece (Scarcelli 2017) podem assim ser conhecidos Isso se expressou nos objetivos
e no desenvolvimento dos trabalhos das poacutes-graduandas que aqui escrevem
Um exemplo foi a adaptaccedilatildeo do formato das entrevistas de uma das pesquisas bem
como a inclusatildeo de alguns temas inicialmente desconsiderados A necessidade de se discutir
discrepacircncias entre os contextos portuguecircs e brasileiro possibilitou um olhar sobre questotildees
estruturais pautadas no poacutes-colonialismo (Brah 2006) Neste ponto pesaram natildeo apenas as
diferenccedilas entre os dois paiacuteses mas tambeacutem o fato de a pesquisadora em questatildeo ser brasileira
e ter se mostrado preponderante ao realizar a investigaccedilatildeo em Portugal
Jaacute no acircmbito da justiccedila em interface com a execuccedilatildeo da poliacutetica de sauacutede as
contradiccedilotildees satildeo inerentes e revelam campos de disputas diversas inclusive ideoloacutegicas
permitindo que as praacuteticas visualizem diferentes interaccedilotildees possiacuteveis que fogem agraves
regulamentaccedilotildees pactuadas na estrutura legal democraacutetica ndash esta inclusive se consolida em
nuances tambeacutem mais ou menos democraacuteticas como temos presenciado na histoacuteria da aacuterdua
construccedilatildeo da democracia no Brasil ingrediente fundamental ao lanccedilar-se em pesquisas do
universo das poliacuteticas puacuteblicas Os proacuteprios oacutergatildeos de defesa e garantia de direitos acabam por
apresentar diferentes posturas e condutas apesar da lei escrita e pactuada como unidade de
direccedilatildeo pois os inter-jogos vivos no campo social impactam nos movimentos diaacuterios e
institucionais
Nos serviccedilos de sauacutede em contexto nas diversas pesquisas presentes neste capiacutetulo a
diversidade de acesso e atendimento bem como as resoluccedilotildees cotidianas para conflitos e
desafios que se apresentam narram sobre as particularidades que inundam os processos de
relaccedilotildees cotidianas que estatildeo em jogo na execuccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede que satildeo reveladas por
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meio de diferentes meios de instrumentais metodoloacutegicos e compotildeem o cenaacuterio das pesquisas
Tal configuraccedilatildeo tambeacutem eacute percebida no campo da execuccedilatildeo da poliacutetica de educaccedilatildeo
Consideraccedilotildees finais
O conhecimento que adveacutem das indagaccedilotildees por meio da proposta de recorte
metodoloacutegico dos acircmbitos assim como da proposta em realizar uma criacutetica da vida cotidiana16
pode trazer reflexotildees sobre a construccedilatildeo e implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Desnaturalizar
discriminar analisar desconstruir estereoacutetipos pode ser potente para se questionar sobre quais
instituiccedilotildees e praacuteticas estatildeo sendo produzidas nesta sociedade desigual ndash afinal de que tratam
as poliacuteticas puacuteblicas no Brasil na constante tensatildeo entre a diminuiccedilatildeo da desigualdade social e
na manutenccedilatildeo de um estado de desigualdade harmocircnico
As contribuiccedilotildees da Psicologia Social nesse sentido se referem agrave possibilidade de natildeo
perder de vista a dimensatildeo do sujeito psiacutequico e social Eacute por meio por exemplo das sensaccedilotildees
de impotecircncia de anguacutestia e sofrimento dos sujeitos envolvidos nos processos investigados que
se pode indagar a respeito da dimensatildeo social e institucional que compotildee a formulaccedilatildeo e
implementaccedilatildeo de poliacuteticas puacuteblicas Se a violecircncia a injusticcedila o manicocircmio o sexismo o
racismo a falta de pertencimento se desvelam nas relaccedilotildees constituiacutedas nos cotidianos da
execuccedilatildeo das poliacuteticas puacuteblicas a Psicologia Social nos convida a adentrar este campo com a
ciecircncia do tamanho de sua complexidade bem como da ausecircncia da ineacutercia e da insuficiecircncia
dos pactos convocando a compreensatildeo destes inter-jogos campo-pesquisa poliacutetica puacuteblica-
execuccedilatildeo lei-praacutetica serviccedilo-profissional e pessoa-pessoa
Referecircncias
Amarante Paulo (2008) Sauacutede Mental e Atenccedilatildeo Psicossocial Rio de Janeiro Fiocruz
16 A psicologia social formulada por Pichon estaacute inscrita em uma criacutetica da vida cotidiana porque aborda o sujeito
imerso em suas relaccedilotildees sociais nas condiccedilotildees concretas de existecircncia ou seja aos modos de produccedilatildeo e
reproduccedilatildeo da existecircncia material de inserccedilatildeo dos sujeitos no processo produtivo Mas na cotidianidade os fatos
satildeo aceitos de forma naturalizada autoevidente sem ao menos serem questionados ou verificados pois eles satildeo
significados como o real por excelecircncia O sistema de representaccedilotildees sociais (ideologias) encobre e distorce o
cotidiano enquanto oculta a essecircncia da vida cotidiana segundo interesses dos setores hegemocircnicos da sociedade
as ideologias tecircm caraacuteter de classe social Sendo assim a reflexatildeo psicoloacutegica deve incluir indagaccedilotildees frente agrave
complexidade das relaccedilotildees que determinam as tramas vinculares e constituiccedilatildeo subjetiva e satildeo por elas
determinadas pois a vida cotidiana reivindica uma criacutetica uma atitude analiacutetica que faccedila frente agrave consciecircncia
ingecircnua indagando as leis que regem a configuraccedilatildeo do sujeito (interjogo necessidadessatisfaccedilatildeo) e as
modalidades de resposta social em cada formaccedilatildeo social concretardquo (Scarcelli 2017 p 217)