Volume 1, Número 1
ISSN 2527-0532 João Pessoa, 2017
Artigo
Os limites da linguagem na aquisição do conhecimento segundo Santo Agostinho
Páginas 70 a 86 70
OS LIMITES DA LINGUAGEM NA AQUISIÇÃO DO CONHECIMENTO
SEGUNDO SANTO AGOSTINHO
Renan Pires Maia1
Carlos Bezerra de Lima Júnior2
RESUMO - O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise de como Santo Agostinho aborda,
em seu De Magistro, a questão do limite da linguagem no processo de obtenção do conhecimento. Na
obra em questão, que assume a forma de um diálogo, Agostinho desenvolve dialeticamente, com seu filho
Adeodato, sua concepção sobre os sinais ou palavras, colocando-os como elementos que se referem a
coisas (significados). Ao problematizar a questão do alcance da linguagem, o Santo Doutor tem como
alvo não postular algo como uma filosofia da linguagem, mas fundamentar sua teoria do conhecimento de
base neoplatônica, abordando o problema do ensino e do aprendizado e sua relação íntima com a
comunicação. O ensino gira em torno da comunicação ou da linguagem, e esta, por seu turno, se mostra
incapaz de transmitir um conhecimento real para além daquele que o sujeito já carrega em si
interiormente, como o que obtém através de sua experiência sensível e guarda em sua memória. Mas,
longe de cair numa espécie de empirismo, onde o sujeito apenas adquire conhecimento passivamente
através da exterioridade – e as próprias palavras estão meramente no âmbito da sensibilidade, na medida
em que são nomes, sons etc. que percutem nos ouvidos (cap. XI) – Santo Agostinho centra o processo de
conhecer no ensino do “mestre interior” (cap. XII-XIV). A sensibilidade é colocada como algo
relacionado ao exterior do homem. O homem que julga é o homem interior, ensinado diretamente pelo
Verbo, que ilumina diretamente a alma racional em cada apreensão da Verdade. Não é, pois, o mestre
exterior – o professor, no caso – aquele que ensina, como conclui no cap. XIV da obra, mas o mestre
interior, que é Cristo.
Palavras-chave: Santo Agostinho. De magistro. Conhecimento.
ABSTRACT- The current work has as objective to do an analysis of how Saint Augustine addresses,
in his De Magistro, the issue of the limit of the language in the process of acquiring of knowledge. In the
work in question, that assumes the form of a dialogue, Augustine develops dialectically, with his son
Adeodato, his conception about the signs or words, establishing them as elements that refer to things
(meanings). Problematizing the issue of the range of the language, the Saint Doctor has as goal not to
1 Psicólogo formado pela UFPB, mestre em filosofia pela mesma instituição e professor na Faculdade
Santíssima Trindade (FAST), em Nazaré da Mata - PE.
2 Graduado e mestre em filosofia pela UFPB.
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postulate something like a philosophy of language, but to base his theory of knowledge of platonic basis,
addressing the problem of the teaching and of learning and its intimate relation with the communication.
The teaching focuses on communication or on language, and the language, in its turn, shows itself
incapable of transmitting a real knowledge beyond that one the subject already carries inside himself, as
the one that he obtains through his sensual experience and keeps in his memory. But, instead of falling in
a type of empirism, for which the subject only acquires knowledge passively through exteriority – and the
words themselves are merely in the realm of sensibility, once they are names, sounds etc. that percusses
in the ears (chapter XI) – Saint Augustine focuses the process of knowing in the teaching of the “interior
master” (chapters XII-XIV). The sensibility is putted as something related to the exteriority of man. The
man that judges is the interior man, taught directly by the Word, that lights directly the rational soul in
each apprehension of the Truth. It is not, finally, the exterior master – the teacher, in case – the one who
teaches, as concluded in the chapter XIV, but the interior master, that is Christ.
Keywords: Saint Augustine. De magistro. Knowledge.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho se propõe a fazer uma análise de como Santo Agostinho
aborda a questão da linguagem em sua obra De magistro, seu alcance e suas limitações
no processo de aquisição do conhecimento. Dito de modo mais simples: a questão de se
a linguagem e a comunicação são capazes de fornecer, ou antes transmitir, o
conhecimento, o que se relaciona diretamente com a relação ensino-aprendizagem e
com o magistério, este já aludido no título De magistro, isto é, Do mestre. Mathews
afirma que
Uma boa maneira de abordar as opiniões positivas de Agostinho sobre o
conhecimento e a iluminação é considerar o que ele tem a dizer sobre
aquisição de linguagem. Algumas das suas opiniões positivas podem ser
encontradas em seu diálogo inicial De magistro, a maioria dos quais é
dedicado ao tema da linguagem e da aprendizagem (MATHEWS, 2006, p.
173).
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Tendo isto em mente, temos que a relevância de tal temática se sustenta,
primeiramente, pelo fato de o problema da linguagem ser hoje um dos pontos
fundamentais em torno do qual gira boa parte da filosofia contemporânea, muito embora
Agostinho não esteja, ao abordar o assunto, chegando a formular uma filosofia da
linguagem propriamente dita, em sentido contemporâneo, mas a justificar uma teoria do
conhecimento essencialmente cristã, pautada na iluminação interior e na graça,
questionando, com isso, o alcance do conhecimento linguístico; em segundo lugar,
pode-se, a partir da análise da temática e da obra em discussão pensar-se sobre as
relações de ensino-aprendizagem e sobre a autonomia do sujeito no processo de
aquisição do conhecimento, uma vez que a obra se coloca fundamentalmente como uma
abordagem dos limites da transmissão do conhecimento na relação mestre-discípulo,
defendendo que o saber se funda, em última instância, no interior do próprio discípulo,
que é ensinado por um mestre interior, e não por nada que venha de fora ou
transcendente ao sujeito.
Dito isto, o presente artigo se subdividirá em duas partes, a primeira se
propondo a expor a abordagem agostiniana da natureza da linguagem na aquisição do
conhecimento; e a segunda se propondo a expor a visão de Agostinho do alcance e dos
limites da linguagem na transmissão do saber e sua da doutrina do Mestre interior e da
iluminação, que se funda na noção cristã de graça.
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A NATUREZA DA LINGUAGEM
O problema do alcance da linguagem não se inicia exatamente com Santo Agostinho,
mas já é problematizado antes, como podemos constatá-lo em Plotino ao tratar do
princípio (arché) de todas as coisas, isto é, o Uno, que está acima de toda predicação,
sendo chamado de “além do Ser” ou “Sobre-Ser” (PLOTINO, 2000, p. 55). Sobre o
Uno, Plotino afirma que “não é possível conhecê-lo ou falar a respeito dele”. Ou mesmo
antes, em Platão no Parmênides, que coloca o Uno como sendo susceptível de vários
predicados contrários ou mesmo de nenhum deles (vide: PLATÃO, 2003, 137d-142a;
144b-155e). Sabe-se que o bispo de Hipona, assim como outros pensadores cristãos dos
primeiros séculos, entre os quais Santo Ambrósio e Dionísio-Areopagita foram
influenciados, direta ou indiretamente, pelo pensamento plotiniano e pelo
neoplatonismo, conciliando-os com as doutrinas cristãs.
No que diz respeito ao alcance do conhecimento linguístico, Santo Agostinho
leva a questão mais longe ao problematizar não apenas se o princípio de que todas as
coisas se originam (no caso, Deus) pode ser determinado predicativamente, mas se é
possível que a linguagem possa fornecer um conhecimento em geral, qualquer que seja
ele, incluindo aí o conhecimento mais perfeito, que seria o de Deus. É-nos evidente que
uma tal problematização pode ser constatada em alguma medida já em Platão o qual,
para todos os efeitos, também funda todo o verdadeiro conhecimento no interior do
sujeito, o qual já o carrega dentro de si antes mesmo do nascimento, sendo o processo
de aprendizagem uma reminiscência. No caso do Doctor Gratiae, todavia, não há
espaço para algo como uma doutrina da transmigração das almas, como podemos ver
em Platão, e, consequentemente, para a ideia de um conhecimento fundado na pré-
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existência da alma em relação ao corpo. Agostinho funda o processo de aquisição do
saber na iluminação interior e na graça.
Já no primeiro capítulo da obra a qual nos propomos a discutir, o bispo de
Hipona, em diálogo com seu filho Adeodato, lança a questão de qual seria a finalidade
da linguagem. Pergunta Agostinho: “Que te parece que pretendemos fazer quando
falamos?” (AGOSTINHO, 1984, p. 291), ao que responde Adeodato: “Pelo que de
momento me ocorre, ou ensinar ou aprender” (idem). Já de início, entretanto, algumas
exceções parecem ser colocadas. Adeodato questiona se procuramos ensinar ou
aprender algo quando cantamos ou rezamos. Ao cantar, responde Agostinho, não
buscamos senão certa modulação do som (idem), e ao rezar, as palavras se fazem
dispensáveis, uma vez que a verdadeira oração se daria no interior do homem, “no
templo da mente e no íntimo do coração” (AGOSTINHO, ibidem, p. 292).
O capítulo I termina com a conclusão de que Cristo, ao ensinar seus discípulos
a rezar, não os ensinou meras palavras, mas aquilo que as palavras significam. Assim,
as palavras são sinais que suscitam na mente as coisas que significam, guardadas na
memória. No segundo capítulo insere-se então a distinção entre sinal/signo e
significado. Toda palavra é um sinal. Mas pode um sinal não significar algo? Algumas
exceções são consideradas, como a palavra nihil (nada). Sobre isso, comenta Mathews:
O diálogo logo se move para uma consideração dos significados das palavras.
As palavras, diz Agostinho, são sinais, e um sinal não pode ser um sinal, ele
insiste, a menos que isso signifique algo. No entanto, não é fácil dizer o que,
por exemplo, a conjunção "se" (si) significa, e muito menos o significado do
pronome "nada" (nihil). Diante da convicção de que "nada" é certamente um
sinal e, portanto, significa algo, não nada, Agostinho sugere que o que "nada"
significa é uma busca mal sucedida (2.3) (MATHEWS, op. cit., p. 173).
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O “nihil” não seria, portanto, uma palavra destituída de significado, posto que
não deixa de significar “aquele estado da alma produzido quando não se vê a coisa, e,
no entanto, descobre-se ou se pensa ter descoberto que a coisa não existe”
(AGOSTINHO, op. cit., p. 293). Mas sempre que se pede para se explicar o que
significam as palavras, usa-se outras palavras, nunca se chegando, assim, às coisas às
quais elas significam. Sempre tendemos a explicar as palavras com outras palavras, em
suma.
O cap. III questiona, então, se é possível mostrar alguma coisa sem um
emprego do sinal. Adeodato concede “que se possa fazer isso, mas só com aqueles
nomes que significam corpos e quando estes corpos estejam presentes” (AGOSTINHO,
ibidem, p. 295), isto é, quando fazemos gestos, como apontar o dedo, para indicar as
coisas às quais queremos nos referir. Também não utilizamos palavras quando
conversamos com algum surdo por meio de gestos. Todavia os gestos são ainda sinais.
Se perguntássemos, por outro lado, o que é correr, e se pedisse que o explicasse sem o
uso das palavras, alguém poderia mostra-lo com o ato mesmo. Todavia, esta forma de
aprendizado ainda carrega muitas limitações, como aponta ainda Mathews:
Este e outros exemplos no De magistro mostram que a aprendizagem
ostensiva está cronicamente e inevitavelmente atormentada pela
ambiguidade. Se estamos apontando para algo para mostrar o que significa
"azul", ou mostrando a alguém uma amostra da cor azul para ilustrar o que a
palavra significa, qualquer esforço dado no ensino ostensivo está aberto a
mal-entendidos. Como saber se o que está sendo apontado é a cor azul, um
tom particular de azul, uma tonalidade, um objeto colorido, sua forma ou
algo bem diferente? No caso de caminhar, o que está sendo demonstrado é
caminhar, apressar-se, fugir, assumir tantos passos ou o quê? (MATHEWS,
op. cit., p. 174).
O capítulos IV questiona se os sinais podem ser mostrados com outros.
Agostinho argumenta que as palavras escritas são sinais de palavras faladas, e que sinais
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como a palavra “nome”, significam outros sinais, nomes “como Rômulo, Roma, virtude
rio e inúmeras outras coisas” (AGOSTINHO, op. cit., p. 297). Há, ainda, sinais que
significam a si mesmos, como a própria palavra “palavra”, em cujo gênero de coisas o
qual significa ela mesma se inclui. A questão dos sinais que significam a si mesmos é
abordada também no cap. VI, onde Agostinho argumenta que palavras são nomes e
nomes são palavras, embora sejam distintos em gênero, tal como a “diferença que há
entre cavalo e animal” (AGOSTINHO, ibidem, p. 299), sendo “palavra” (verbum)
também o termo utilizado para designar não apenas nomes, mas também “aquela parte
do discurso que se declina por tempos” (idem). O capítulo V considera a questão dos
sinais recíprocos, isto é, que sinalizam uns aos outros, e o cap. VII fecha o primeiro
momento fazendo uma síntese de tudo o que foi abordado anteriormente.
O ALCANCE E AS LIMITAÇÕES DA LINGUAGEM, A DOUTRINA DO
MESTRE INTERIOR E DA ILUMINAÇÃO
Depois de analisada a natureza dos sinais e o que são as palavras, e depois de
Agostinho e Adeodato terem chegado ao consenso de que as palavras sempre significam
algo, ou são significáveis, algumas significando coisas concretas, e outras, por seu
turno, outros sinais, ambos passam à questão em torno da qual gira a obra, que é a de se
os sinais são capazes de fornecer conhecimento. Nos capítulos VIII e IX o Doctor
Gratiae levanta a questão de se devemos dirigir a mente às palavras ou às coisas que
estas palavras significam, e se devemos preferir estas àquelas. Quando somos
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questionados sobre algo, considera Santo Agostinho, somos levados a pensar nas coisas
significadas pelas palavras. Assim discute com Adeodato:
Agostinho: (...) Observa, ao invés, com mais atenção, se na palavra “homo”
(homem) a sílaba “ho” é outra coisa que não “ho” e a sílaba “mo” nada mais
que “mo”. Adeodato: Não vejo, na verdade, nada mais. Agostinho: Observa
ainda se, juntando estas duas sílabas, poder-se-á fazer um homem. Adeodato:
De maneira alguma concederia isso, porque concordamos, com razão, que,
depois de ter o sinal, a mente vai examinar o que este significa, e após o
exame é que concede ou nega o que se diz. Mas aquelas duas sílabas, por
soarem sem qualquer significado, se pronunciadas separadamente, ficou
estabelecido que têm valor somente como som. Agostinho: Concordas,
portanto, com convicção que não se deve responder às perguntas senão
segundo as coisas significadas pelas palavras? (AGOSTINHO, ibidem, p.
310).
Quando se pergunta o que é nome, entretanto, entende-se a questão sob um
sentido duplo: “‘homem’ é nome e animal: o primeiro (ser nome) se diz enquanto é
sinal; o segundo (ser animal) enquanto indica a coisa significada” (ibidem, 311), isto é,
homem enquanto animal, racional, mortal etc. Todavia, considera ainda o bispo de
Hipona, “tudo o que existe devido a outra coisa, necessariamente tem valor menor que a
coisa pela qual existe” (AGOSTINHO, ibidem, p. 312). Assim sendo, os significados
possuiriam valor maior do que os sinais que os designam. Ambos os interlocutores não
deixam de considerar, como sempre, exceções, como por exemplo, ao pensarmos na
palavra lamaçal (“coenum”). Evidentemente, é preferível o sinal ao seu significado.
Todavia, ainda assim, quando pronunciamos palavras cujo significado nos pode ser
abjeto, não deixamos de querer exprimir um conteúdo que nos é mais caro do que os
próprios sinais que utilizamos. “O conhecimento das coisas é mais precioso que os
sinais das mesmas” (AGOSTINHO, ibidem, p. 313), embora consideremos a coisa
conhecida (no caso, o lamaçal) melhor do que seu sinal. Tal consideração é expandida
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para formas de conhecimento mais relevantes. “Muito melhor que as palavras é,
portanto, a doutrina”, o que inclui o conhecimento dos vícios e das virtudes
(AGOSTINHO, ibidem, p. 314).
Chegando à conclusão de que o conteúdo das palavras, isto é, o conhecimento
que as palavras designam, é superior em valor a elas mesmas, Santo Agostinho passa à
sua última consideração, a saber, a de se é possível às palavras transmitir conhecimento,
e de que forma poderíamos conhecer. O cap. X inicia esta última seção perguntando se é
possível ensinar algo sem sinais. Agostinho inicia fazendo uma distinção entre ensinar e
significar (isto é, utilizar sinais). “Quem ensina o que é ensinar o faz usando sinais ou
diversamente?” (AGOSTINHO, ibidem, p. 315), questiona, levando a uma negação da
tese de que se é impossível ensinar sem sinais, uma vez que pode-se, por exemplo, ao se
questionar o que é caçar, ou andar, ensinar o significado destas palavras realizando o
próprio ato (AGOSTINHO, ibidem, 316-317), embora isso, como considerado
anteriormente por Mathews, não deixe de envolver certas limitações. Agostinho lança,
então, a reflexão de que há uma infinidade de coisas que são aprendidas por si mesmas,
sem sinais, e que os simples sinais, nada podem ensinar se não tivermos o conhecimento
prévio das coisas que eles significam. Assim ele diz:
Mas, se considerarmos isto com maior atenção, talvez não encontres nada
que se possa aprender pelos seus próprios sinais. Com efeito, se me for
apresentado um sinal e eu me encontrar na condição de não saber de que
coisa é sinal, este nada poderá ensinar-me; se, ao contrário, já sei de que é
sinal, que aprendo por meio dele? Assim, quando leio “Et saraballae eorum
non sunt immutatae” (E as suas coifas não foram deterioradas), a palavra
(coifas) não me mostra a coisa que significa. Pois se certos objetos que
servem para cobrir a cabeça se chamam com este nome de “saraballae”
(coifas), porventura, depois de ouvi-lo, aprendi o que é cabeça e o que é
cobertura? Eu, ao contrário, já antes conhecia estas coisas, delas adquiri
conhecimento sem que as ouvisse chamar assim por outrem, mas vendo-as
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com meus próprios olhos. Quando as duas sílabas com que dizemos “caput”
(cabeça) repercurtiram pela primeira vez no meu ouvido, sabia tão pouco o
que significavam como quando ouvi e li pela primeira vez “saraballae”.
Porém, ouvindo muitas vezes dizer “caput” (cabeça) e notando e observando
a palavra quando era pronunciada, reparei facilmente que ela denotava aquela
coisa que, por tê-la visto, a mim já era conhecidíssima (AGOSTINHO,
ibidem, p. 317).
A conclusão natural é então a de que não aprendemos pelas palavras, mas por
elas apenas recordamos o que sabíamos (AGOSTINHO, ibidem, p. 318). Segundo
Mathews poder-se-ia
pensar que Agostinho está aqui abordando o ponto chato e óbvio de que uma
definição de dicionário não é de ajuda para alguém que ignora os significados
dos termos usados na definição da palavra. Mas isso não está certo. Suponha
que sarabarae realmente significa "coberturas de cabeça". Então o que a
palavra significa é a cobertura de cabeça. Saber o que é a palavra, Agostinho
nos diz, inclui saber o que isso significa, o que, ele supõe, inclui estar
familiarizado com as coisas em si. Portanto, ser capaz de dar sinônimos para
sarabarae será insuficiente para mostrar que se sabe o que a palavra significa
e, portanto, de acordo com Agostinho, o que é. Além disso, apenas alguém
que está familiarizado com as coisas significadas, os próprios sarabaraes,
pode dizer-se conhecedor do que é a palavra (MATHEWS, op. cit., p. 174).
Mesmo no caso de narrativas para nós antes desconhecidas, como na história
de “três jovens que com sua fé e religião venceram o rei e as chamas” etc., todos os
elementos, três jovens, rei, chamas etc., são já de antemão conhecidos de quem ouve
pela primeira vez a narrativa, permitindo-o reconstruí-la e entendê-la, embora não se
possa conhecer quem foram Ananias, Azarias e Misael (os três jovens de quem se fala)
(AGOSTINHO, op. cit, p. 319). Todavia, ao contrário do que parece, Santo Agostinho
também não está de alguma forma a defender uma espécie de empirismo, no qual
aprendemos as coisas através dos sentidos e delas formamos nomes, como mais tarde
postulará o nominalismo. A forma de conhecimento defendida pelo Santo Doutor é,
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antes, racional, interior, não dependente da exterioridade, exterioridade esta que inclui
as próprias “palavras que repercutem exteriormente” (AGOSTINHO, ibidem, p. 318).
Sobre isso, Costa comenta que
para Agostinho, o que na Filosofia Moderna (no Empirismo) chamamos de
conhecimento sensível, produzido pelos sentidos corpóreos, a rigor, não é
conhecimento. O primeiro nível do conhecimento propriamente dito é a
sensação, produzida pelo sentido interior – a alma. O corpo, apesar de
necessário é apenas um instrumento. Assim sendo, Agostinho fala da
existência de duas luzes no homem: uma corporal, própria dos sentidos
externos, e outra espiritual, própria do sentido interno, ou da alma, que
capacita a corporal a ver os objetos (COSTA, 2012, p. 28).
E acrescenta ainda que Agostinho postula um terceiro sentido, que é o
conhecimento racional, que teria um caráter superior por seu conteúdo ser universal, e
não subjetivo, como o conteúdo dos conhecimentos provenientes dos sentidos interior e
exterior (COSTA, ibidem, p. 29-30). Todas as coisas provenientes dos sentidos guardam
sempre uma referência ao sujeito. Assim é com a vista, o gosto, os sons que se ouvem
etc. Cada pessoa tem uma visão, um gosto, uma audição própria etc., em suma,
experiências únicas com os objetos dos sentidos, formando um conhecimento não-
universalizável, e portanto também não plenamente comunicável aos demais. A razão,
por outro lado, teria como objeto aquilo que é universal, passível de ser conhecido por
todos os sujeitos igualmente, não por ser comunicado, mas por cada um poder enxergá-
lo dentro de si mesmo.
Mais adiante, no cap. XII do De magistro, tem-se a distinção entre as coisas
que são percebidas pelo corpo e pela mente, isto é, as sensíveis e as inteligíveis, ou
ainda, as carnais e as espirituais (AGOSTINHO, op. cit., p. 320). As coisas sensíveis
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são, como dissemos, subjetivas, isto é, coisas que levamos como “documentos só para
nós” (idem). As inteligíveis, por outro lado, diz Agostinho,
vemos como presentes naquela luz interior de verdade, pela qual é iluminado
e de que frui o homem interior; mas também neste caso quem nos ouve
conhece o que eu digo por sua própria contemplação e não através das
minhas palavras, desde que ele também veja por si a mesma coisa com olhos
interiores e simples. Por conseguinte, nem sequer a este, que vê coisas
verdadeiras, ensino algo dizendo-lhe a verdade, porque aprende não pelas
minhas palavras, mas pelas próprias coisas, que a ele interiormente revela
Deus (AGOSTINHO, idem).
Aqui entende-se que o espírito racional, interior ao homem, o qual é também
chamado de “homem interior” (AGOSTINHO, ibidem, p. 319) não é algo aparte de
Cristo, que é a “Sabedoria de Deus”, como diz a Bíblia (1Co 1:24). Assim diz
Agostinho:
No que diz respeito a todas as coisas que compreendemos, não consultamos a
voz de quem fala, qual soa por fora, mas a verdade que dentro de nós preside
à própria mente, incitados talvez pelas palavras a consulta-la. Quem é
consultado ensina verdadeiramente, e este é Cristo, que habita, como foi dito,
no homem interior, isto é: a virtude incomutável de Deus e a sempiterna
Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada um
quanto é permitido pela sua própria boa ou má vontade (AGOSTINHO, op.
cit., 319).
Assim temos também aqui a defesa da visão agostiniana de que “in interiore
homine habitat veritas”, isto é, a visão de que, assim como em Platão, o homem já
carrega em si o conhecimento das coisas, sobretudo o conhecimento absoluto, de Deus,
pelo qual tudo é conhecido, embora distinga-se de Platão no fato de que o conhecimento
que o homem traz em si não é fruto de uma vida pré-corporal, mas da direta iluminação
e graça divinas, imanente ao espírito racional, sendo Cristo mesmo sabedoria e razão
divina, sendo equiparado pelo próprio Agostinho com o νοῦς (COSTA, op. cit., p. 23),
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fazendo eco à Cristologia do λόγος, que postula que cada homem tem em si mesmo o
Verbo divino (HÄGGLUND, 1981, p. 23). Esta iluminação interior é o que pode-se
também chamar de graça, no contexto do Cristianismo, e Cristo, que ensina
interiormente, seria o Mestre Interior. Cabe dizer que este Verbo (λόγος), ao ser
equiparado com o νοῦς por Agostinho, é colocado como inteligível. Cristo se revela ao
homem em seu interior, portanto, e através do conhecimento inteligível e racional, que
apreende as verdades universais, não subjetivas ou referentes apenas ao sujeito.3
Os capítulos seguintes do De magistro vão apenas na direção de um
desdobramento desta tese central. A comunicação não seria, nesse sentido, uma
transmissão de conhecimento. Quando utilizamos palavras, falamos de coisas de cujo
conhecimento já carregamos no espírito, e falamos para que outras pessoas suscitem em
si as memórias que elas carregam dos significados das palavras que pronunciamos e
para que suscitem em si mesmas as verdades por elas acessadas interiormente (tese
explorada no cap. XII). As palavras seriam insuficientes inclusive para mostrar o
pensamento de quem fala, como no caso, considerado no cap. XIII, dos que ensinam
mentiras acreditando serem suas mentiras verdades, ou mesmo dos mentirosos.
O último capítulo encerra com uma nova defesa da tese de que Cristo é quem
ensina interiormente ao homem, sendo, portanto, o Mestre Interior. Neste último
capítulo, entra em questão a relação ensino-aprendizagem no âmbito da academia,
tendo-se em mente as implicações das conclusões anteriormente tiradas. Assim
considera o bispo de Hipona:
3 Não se trata, contudo, de uma defesa de que Deus seria apreensível apenas pela razão. No que diz
respeito às potências cognoscitivas do homem, a razão certamente é o que há nele de mais sublime eficaz,
se dirigindo ao que é eterno e imutável. Mas Deus transcende até mesmo a razão, embora lhe seja também
imanente, necessitando da revelação e da fé para ser plenamente conhecido.
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Mas quem é tão tolamente curioso que mande o seu filho à escola para que
aprenda o pensa o mestre? Mas quando tivera explicado com as palavras
todas as disciplinas que dizem professar, inclusive as que concernem à
própria virtude e à sabedoria, então é que os discípulos vão considerar
consigo mesmos se as coisas ditas são verdadeiras, contemplando segundo as
suas forças a verdade interior. Então é que, finalmente, aprendem; e, quando
dentro de si descobrirem que as coisas ditas são verdadeiras, louvam os
mestres sem saber que elogiam mais homens doutrinados que doutos: se é
que aqueles também sabem o que dizem. Erram, pois, os homens ao
chamarem de mestres os que não o são, porque a maioria das vezes entre o
tempo da audição e o tempo da cognição nenhum intervalo se interpõe; e
porque, como depois da admoestação do professor, logo aprendem
interiormente, julgam que aprenderam pelo mestre exterior, que nada mais
faz do que admoestar. (...) o verdadeiro e único Mestre de todos está no céu.
Mas o que depois haja nos céus, no-lo ensinará Aquele que também, por
meio dos homens, nos admoesta com sinais, e exteriormente, a fim de que,
voltados para Ele interiormente, sejamos instruídos (AGOSTINHO, op. cit, p.
323-324).
O papel do professor não seria ensinar, de fato, numa perspectiva agostiniana,
mas no máximo suscitar no aluno o conhecimento e a Verdade que habita dentro dele.
Um conhecimento proveniente da exterioridade seria, nesse sentido, um conhecimento
inferior, na medida em que é produto de objetos exteriores, relativos e efêmeros. O
conhecimento interior tem a ver com o conhecimento de Deus e, portanto, com o
conhecimento em sentido pleno, conhecimento da Verdade absoluta, da qual todas as
verdades subordinadas provêm. Sobre isso, Fraile diz que
A Santo Agostinho interessa, sobretudo, o conhecimento do homem e de
Deus, mas pouco o do mundo sensível. O conhecimento de si mesmo é o
princípio da sabedoria. Mas para isso é preciso apartar-se das coisas
exteriores, fechar os olhos e os ouvidos e recolher-se na própria interioridade
(FRAILE, 1986, p. 208).
Também Gilson diz:
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ISSN 2527-0532 João Pessoa, 2017
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Os limites da linguagem na aquisição do conhecimento segundo Santo Agostinho
Páginas 70 a 86 84
Há no homem, portanto, algo que excede o homem. Já que é a verdade, esse
algo é uma realidade puramente inteligível, necessária, imutável, eterna. É
precisamente o que chamamos de Deus. As metáforas mais variadas podem
servir para designá-lo, mas todas têm, finalmente, o mesmo sentido. Ele é o
sol inteligível, à luz do qual a razão vê a verdade, é o mestre interior, que
responde de dentro à razão que o consulta. Como quer que se o chame,
sempre se pretende designar essa realidade divina que é a vida da nossa vida,
mais interior a nós mesmos do que nosso próprio interior. É por isso que
todos os caminhos agostinianos para Deus seguem itinerários análogos, do
exterior para o interior e do interior para o superior (GILSON, 1995, p. 147-
148).
O conhecimento mais perfeito não está, assim, dissociado de um auto-
conhecimento, posto que é conhecimento das coisas interiores e que mesmo o que há de
superior ao homem está no interior dele. Agostinho ecoa, deste modo, a máxima
socrática “conhece-te a ti mesmo”, fazendo a consciência perfeita coincidir com uma
autoconsciência, onde Deus é conhecido em sua plenitude e, consequentemente,
também são conhecidas todas as coisas que dele dependem.
CONCLUSÃO
Dito isto, temos, em suma, que Santo Agostinho desenvolve no De magistro a
questão da limitação da linguagem na transmissão do conhecimento, de modo que as
palavras só se referem a conhecimentos que já carregamos conosco, e a questão de que a
Verdade, em última instância, já reside no interior daquele que aprende, sendo o
processo de aprendizagem muito mais um voltar-se para si mesmo, um processo
racional, em que o indivíduo é ensinado diretamente por Deus, que lhe é imanente,
ainda que igualmente transcendente.
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Podemos pensar a partir disso em diferentes desdobramentos, que podem
perpassar não só a teologia e a metafísica, mas também a epistemologia e até mesmo a
pedagogia. No caso desta última, já que o De magistro aborda a relação entre mestre-
discípulo e ensino-aprendizagem, temos que a função do mestre exterior (como os
professores das escolas e universidades) jamais é a de ensinar, até pela impossibilidade
do ensino através de palavras ou pelas limitações da aprendizagem através da
sensibilidade. A função do mestre exterior, por assim dizer, seria muito mais a de
suscitar no interior de cada um o conhecimento, que só é atingido por cada pessoa em
particular, de modo autônomo, entendendo-se aqui autonomia como aquela
independência de fatores externos, incluindo aí os próprios mestres e professores que
pronunciam suas sentenças desde fora ao espírito do discípulo. A doutrina do Mestre
Interior e da Iluminação não iria, por esta perspectiva, contra a noção de uma autonomia
no processo de ensino-aprendizagem, posto que Cristo é, segundo a visão agostiniana,
transcendente mas também imanente ao espírito racional, ensinando-o e instruindo-o
desde dentro em cada vislumbre da Verdade.
REFERÊNCIAS
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1984.
Bíblia de Jerusalém. 1ª ed. São Paulo: Paulus, 2002.
COSTA, M. R. N. 10 lições sobre Santo Agostinho. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
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Páginas 70 a 86 86
FRAILE, G. Historia de la filosofia II. Madrid: Biobloteca de Autores Cristianos,
1986.
GILSON, E. A filosofia na idade média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Martins Fontes, 1995.
HÄGGLUND, B. História da teologia. Tradução de Mário L. Rehfeldt e Gládis Knak
Rehfeldt. Porto Alegre, RS: Concórdia, 1981.
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apresentação e notas de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed. PUC-
Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
PLOTINO. Tratados das Enéadas. Tradução, apresentação, introdução e notas de
Américo Sommerman. São Paulo: Polar Editorial, 2000.