OROZCO E SIQUEIROS: DUAS REPRESENTAÇÕES DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NA
REVOLUÇÃO MEXICANA
Maria Eunice da Silva Sousa (História)
Prof. Ms. Ival de Assis Cripa (Orientador)
Resumo:Este artigo é resultado de pesquisa de Iniciação Científica em que o objeto de estudo foram as representações da Revolução Mexicana criadas pelos pintores muralistas David Alfaro de Siqueiros e José Clemente Orozco. Precisamente, aqui, nos ativemos à discussão das representações da participação popular na revolução tentando demonstrar que os pintores embora vivendo num mesmo momento histórico: a Revolução Mexicana, os movimentos de vanguarda na América Latina, o crescimento das idéias comunistas; fruto da influência da Revolução Russa e a crise do capitalismo que caracterizaram a primeira metade do século XX criaram representações em perspectivas opostas no que diz respeito à participação popular nos eventos políticos e sociais daquele período.
Abstract:This article is result of search in Scientific Initiation in that the object of study were the Mexican Revolution representation in the painters of David Alfaro de Siqueiros and José Clemente Orozco. Specifyly, here, we discussed the representations of the popular participation in revolution, trying to demonstrate what although living in the same historical moment: the Mexican Revolution, the Vanguard Movements in Latin America, the increase of the communists ideas; Russian Revolution’s influence and the crisis of Capitalism what characterized the half first of the Twenty Century XX they created representations in opposite perspectives about of the popular participation in the politics and social events of that period.
Palavras-chave:Revolução Mexicana, representação, ideologia
Key-words:Mexican Revolution, representation, ideology
A cultura mexicana após os dez anos da Revolução Mexicana, que abrangeu toda a segunda década
do século XX, dentro dos movimentos de Vanguarda na América e dos projetos de modernização econômica, foi
a responsável por uma grande produção de imagens com conteúdos históricos. Toda a História do México foi
transformada em imagens pelos pintores que pertenceram ao Movimento Muralista Mexicano, principalmente
nas figuras de David Alfaro de Siqueiros, José Clemente Orozco e Diego Rivera. Porque, segundo Camilo de
Melo Vasconcelos (2003, 176):
a Revolução Mexicana, em oposição ao velho regime e às aristocracias no poder, engendrou uma nova ordem política que se refletiu também na questão cultural. A cultura teria que se reconstituir, se renovar, assumir uma nova orientação, mais condizente com os princípios e os objetivos revolucionários, levando
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consequentemente a um processo de nacionalização da cultura na qual a pintura mural mexicana encontrou seu proeminente lugar.
O objetivo deste artigo é analisar a representação do povo na Revolução Mexicana na obra dos pintores David
Alfaro de Siqueiros e José Clemente Orozco. Estes pintores foram contemporâneos da revolução, e ambos
tiveram contato direto com os acontecimentos políticos e militares daquele momento. Siqueiros, além de
propagandista da revolução e correspondente militar no jornal “La Vanguardia Revolucionária”, um jornal
criado com o propósito de fazer propaganda para a facção burguesa da revolução e sua aliança com os operários
da COM (Casa del Obrero Mundial), também participou da luta armada, se alistando no Exército
Constitucionalista. Orozco não participou da luta armada, mas foi caricaturista e redator do jornal “La
Vanguardia”, enquanto esteve na cidade de Orizaba com as tropas dos Batalhões Vermelhos, formados pelos
operários da COM.
O tema da Revolução Mexicana foi objeto de várias obras destes pintores, e por esse motivo
decidimos utilizar essas pinturas como documentos para elaborar um estudo sobre a revolução, levando em
consideração afirmações como as de Bronislaw Baczko, (1985, p. 319) de que as épocas de crise de um poder
são também aquelas em que se intensificam a produção de imaginários sociais concorrentes e antagonistas, e em
que as representações de uma nova legitimidade e de um futuro diferente ganham difusão e agressividade,
exercendo principalmente as funções de designar o inimigo no plano simbólico, mobilizar as energias e
representar as solidariedades, cristalizar e ampliar as esperanças e os temores difusos. Além das observações de
Ulpiano e Baczko, ainda tomamos de empréstimo as afirmações de Jorge Coli (1988), escritas no prefácio do
livro “1789, Os Emblemas da Razão” de Jean Starobinski. Para ele, não existe um método pré-estabelecido para
análise dos objetos da cultura, e que este se constitui no processo de interpretação, pela prática do contato e da
experiência estimulada pela curiosidade, onde se estabelece um diálogo com os produtos da cultura para
entender seu significado.
A Revolução Mexicana representou o auge de uma crise de poder e uma ruptura com uma forma
de poder instituída, portanto acreditamos que o imaginário produzido durante e após este período esteja de
acordo com as definições de imaginários sociais e suas relações com o poder político de Baczko. Entretanto não
podemos deixar de lembrar, que neste caso, os pintores, ou seja, os produtores das imagens são agentes sociais
que tiveram sua própria trajetória, que suas relações com o novo poder político saído da Revolução Mexicana
são permeadas por contradições, e estas relações nem sempre representaram um apoio incondicional e irrestrito
ao poder revolucionário. Devemos pensar na produção artística destes pintores levando em consideração o que
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escreveu Bordieu1, (apud, Cripa, 2000) que “o real é descontínuo e que as ações humanas são aleatórias,
imprevistas e fora de propósito.” Foi a partir deste corpo teórico -- que não apresenta uma definição
metodológica rígida para estudar os objetos da cultura -- que passamos a observar as obras dos pintores,
relacionando-as ao contexto de sua produção para inferir delas nossas reflexões sobre a representação do povo na
Revolução Mexicana. Segundo Bezerra de Meneses (1995), as representações sempre expressam as ideologias
do momento em que estão sendo produzidas, e por isso ao estudá-las, podemos perceber o posicionamento de
seu produtor em relação à sociedade de sua época, seu ponto de vista em relação aos acontecimentos e fatos
históricos, suas relações com o poder instituído, enfim, como foram pensadas por ele as questões de seu tempo,
qual sua visão de mundo dentro do contexto em que está vivendo.
Orozco e Siqueiros criaram, cada um de acordo com suas convicções, representações da participação
popular na revolução, como poderão ver a seguir. O pintor Siqueiros era comunista, tendo aderido ao Partido em
1923, quando se tornou secretário do Partido e presidente do Sindicato dos Operários, Técnicos e Pintores; e no
qual permaneceu até sua morte, em 1974. Durante toda a sua vida defendeu o que acreditava ser uma arte de
conteúdo social, que representasse o povo e sua luta contra a dominação, uma “arte ativa para um espectador
ativo”. Acrescento as opiniões de Tibol, (1996, p.9) quando ela diz que:
para avaliar a vida e a obra de Siqueiros é preciso levar em conta sua condição de líder do movimento operário mexicano, justamente quando o México estava dando passos firmes rumo à sua industrialização. Foi um artista, militante político, teórico em questões de método para o trabalho artístico e para a crítica da arte; foi um agitador social, um renovador, um homem de seu tempo. Viveu com seu tempo, para seu tempo desde seu tempo. Seu credo internacionalista o levou a rechaçar todas as variantes de um nacionalismo estreito no social e no artístico, ainda que sua capacidade de análise não o tenha livrado de um dogmatismo sustentado em sua crença na responsabilidade do artista frente ao seu momento histórico.
Orozco sempre fez questão de deixar claro que não defendia nenhuma ideologia, tinha uma visão
extremamente crítica, quase trágica, dos acontecimentos, e esta foi a sua marca, foi o que predominou em suas
criações artísticas. Segundo Tibol (1996, p.16) o pintor ficou extremamente chocado com a violência e a
brutalidade que envolveu a Revolução Mexicana. A autora analisa a obra pintor dessa forma:
Em sua obra, José Clemente Orozco não vê literalmente a realidade, o visível, mas sim faz uma interpretação dela por meio de um estilo pictórico forte e direto. A ênfase dramática de sua pintura não despreza os recursos da caricatura, mas sim os assume. A deformação caricaturesca reforça a agressividade da imagem com a qual pretende criticar veementemente a sociedade de seu tempo. Em quase toda sua obra, Orozco é um expressionista em estado de protesto. (...) Opôs sua arte ao sistema dominante. Utilizou sua arte como instrumento de ira e acusação.
1Ver Pierre Bordieu. A Ilusão Biográfica. In: Usos e Abusos da História Oral, (organizado por Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado), Rio de janeiro, FGV, 1996.
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Começamos nosso diálogo com a tela “Zapatistas” (fig.1) que representa uma cavalgada de
camponeses armados com baionetas, seguidos pelo grupo das “soldaderas”, as mulheres que acompanhavam as
tropas junto com seus maridos e ajudavam a socorrer os feridos. Um homem idoso tropeça e cai no caminho. Os
líderes vão a cavalo, Zapata à frente, com seus enormes “sombreros”, enquanto ao fundo, imponentes vão
ficando as montanhas de Morelos, ásperas, pedregosas, quase inacessíveis, e que, no entanto, serviam de refúgio
para os zapatistas perseguidos. O que chama mais a atenção é o modo de caminhar. Um caminhar resignado
rumo a um futuro incerto. Não é possível visualizar neles o afã de lutar, nem a perspectiva de vitória. Eles vão
indo, já que não resta alternativa. A paisagem sugere a aridez da caminhada. Esta é uma representação de Orozco
sobre a participação popular na revolução. A sensação é a de que a revolução foi imposta a eles, não há nenhum
entusiasmo, não representa um povo que faz a sua revolução, mas um povo que sofre a revolução.
A perspectiva de Siqueiros é oposta, como podemos observar no mural “O Povo pega em Armas”,
(fig. 2) um dos painéis que compõem o grande mural “Do Porfirismo à Revolução”, no Museu Nacional de
História do México, pintados por Siqueiros entre 1957 e 1966. “O povo pega em armas” representa os vários
Exércitos envolvidos na Revolução Mexicana. Pelos chapéus podemos distinguir à direita o Exército de Madero,
que aparece retratado com o chapéu que caracterizava seu exército revolucionário (chapéu circundado por uma
faixa com a cores vermelha, branca e verde, as cores da bandeira mexicana), o chapéu vermelho é dos nortistas,
os “os jacobinos”. Ao centro, estão os zapatistas e à direita os villistas. Há até a presença das “soldaderas” (as
mulheres que participaram da revolução) no mural, na figura das irmãs Margarita e Rosaura Ortega. Siqueiros
não retrata os líderes dos Exércitos à frente do povo. Eles são retratados no meio do povo. Esta é uma
representação que coloca o povo em evidência, numa atitude de enfrentamento, numa atitude decidida. É o povo
que pega em armas para fazer sua revolução. A visão de Siqueiros sobre a participação popular é bastante
otimista.
Outro mural de Orozco no qual é representado o povo numa perspectiva pessimista é “Hidalgo: a
primeira batalha da revolução” (fig.3) pintado no Palácio do governo do Estado de Jalisco, Guadalajara, em
1937. O afresco fica no teto que cobre uma grande escadaria e Hidalgo é representado com o punho direito em
riste, segurando uma grande tocha, abaixo dele encontra-se uma multidão de corpos. O tema é heróico: por entre
cadáveres, baionetas eriçadas, serpentes sibilantes e nesgas de céu vermelho, a figura do rebelde afronta o
destino. Segundo Raquel Tibol (1996), em torno ao núcleo fundamental do nacionalismo econômico
impulsionado por Cárdenas, a intelectualidade progressista desenvolvia, com entusiasmo revolucionário,
múltiplas ações em prol dos oprimidos e explorados no campo e na indústria, e de solidariedade com outros
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povos que lutavam pela liberdade e pela democracia, enquanto os intelectuais considerados reacionários
desenvolviam muitas atividades de oposição às orientações progressistas do regime. Segundo Ival de Assis Cripa
(2000), a gestão cardenista toma os rumos do corporativismo nas relações entre Estado e sociedade. A
incorporação dos camponeses, operários, intelectuais, classes médias e outros segmentos sociais em torno do
PRI (Partido Revolucionário Institucional). Há que se considerar também a chegada de Leon Trotski ao México,
por intermédio de Diego Rivera junto ao presidente Cárdenas, causando divergência entre a esquerda mexicana,
pois alguns, como Lombardo Toledano, secretário geral da Confederação dos Trabalhadores do México se
posicionaram contra a acolhida a Trotski, alegando que sua linha ideológica ia contra a tática da Frente Popular,
que era a união de operários, camponeses, elementos da classe média e ainda a pequena burguesia, com o
governo; como Trotski era comunista leninista defendia a idéia de que o proletariado era o motor da revolução e
se bastaria a si mesmo, e não deveria fazer aliança de nenhuma espécie com nenhum governo, pois isso seria
colaboracionismo e só serviria para aumentar o poder da burguesia. Orozco tinha plena consciência dos conflitos
internos e os observava com ceticismo. Segundo Tibol (1996) Orozco via como responsáveis pelos
desentendimentos as forças reacionárias: o clero obscurantista e o militarismo ditatorial. Quando foi pintar
palácio do governo de Guadalajara, Orozco expressou estas idéias elegendo Hidalgo, um rebelde, um herói,
como aquele que acendeu a chama definitiva da revolução de independência contra toda opressão interna ou
externa. Maria Lígia Prado (2004) faz uma análise da atuação e das idéias do padre Hidalgo durante o processo
de independência do México. Hidalgo era um padre nada ortodoxo, que vivia na vila de Dolores, onde além de
ser o pároco era também fazendeiro e tinha duas filhas ilegítimas. Suas idéias inconformistas chamavam a
atenção da inquisição sobre ele, que era acusado de heresias para com os símbolos da igreja católica e também
de querer implantar as liberdades proclamadas pela Revolução Francesa para os mexicanos. O padre Hidalgo
durante sua formação teve contato com o pensamento ilustrado lendo autores franceses, ingleses e até mexicanos
que sustentaram o seu desejo de lutar pela libertação do México e dos mexicanos. Em 1810, Hidalgo estava entre
o grupo de conspiradores que intentavam a independência. A conspiração foi descoberta e eles decidiram partir
para o viver ou morrer pela independência. O exército de Hidalgo era formado pelas pessoas simples,
camponeses e artesãos pobres, sem nenhuma qualificação para guerra e que tinha que caminhar a pé e usar como
armas pistolas, espadas, lanças, arcos e flechas e até pedras, pois não possuíam um armamento mais poderoso já
que era um exército de pessoas pobres que chegou a ter até 90 mil homens. Com este exército Hidalgo ganhou
várias batalhas até cair numa emboscada em março de 1811, quando foi preso e fuzilado pelas costas junto com
outros líderes do movimento em 30 de julho do mesmo ano. Entretanto, antes de ser pego pela reação ele
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ordenou em 5 de dezembro de 1810, na cidade de Guadalajara, a restituição das terras indígenas que haviam sido
usurpadas pelos ‘hacendados”, aboliu o pagamento de tributos pelos indígenas e decretou o fim da escravidão. O
padre Hidalgo, como podemos perceber, preferiu colocar-se ao lado dos oprimidos e abandonar as idéias
conservadoras da igreja para lutar por justiça e contra a exploração. Hidalgo foi até as últimas conseqüências
lutando pelo que acreditava: justiça e liberdade, mas segundo Lígia Prado ele também padeceu de enormes de
dramas de consciência por ter que usar da violência para lutar pelo que deveria ser direito nato de todo ser
humano. Octavio Paz (1985) diz que a independência mexicana começou como uma revolta das classes
despossuídas contra a opressão e exploração dos grandes latifundiários nativos, mais do que contra a metrópole
propriamente, foi uma Aguerra de classes@ e uma “revolução agrária em gestação”. Isso ajuda a esclarecer a
posição de Hidalgo dentro do movimento de independência. Orozco certamente tinha essa mesma visão a
respeito do processo histórico mexicano, contudo também acreditava que o heroísmo de Hidalgo não fora
suficiente para resolver os problemas do México. Segundo Raquel Tibol (1996) a reflexão sobre o passado e o
presente do México recorre como um sistema circulatório toda a obra de Orozco. Hidalgo foi derrotado, depois
veio Zapata que também foi derrotado embora a sua luta tenha conseguido que a Constituição de 1917
contemplasse leis de reforma Agrária que, se aplicadas, reduziriam as injustiças no campo. Agora o governo
Cárdenas tentava aplicar essas leis: lei de reforma agrária, leis trabalhistas que beneficiariam as massas; e os
setores reacionários novamente vinham à carga para não deixar que nada mudasse. Orozco tinha uma visão
pessimista dos processos políticos. O mural com Hidalgo, que representa as lutas políticas internas do México na
década de 30, no período do governo Cárdenas, cabe também para o período da Revolução Mexicana quando o
contexto interno também era de luta e divergências de idéias, guerras, traições, divisões, às quais o fim da
revolução não conseguiu por termo, pois passados mais de 10 anos, o México continuava dividido. Segundo
Tibol (1996, p. 176), “o pintor parecia não acreditar na capacidade das ideologias e dos partidos políticos
formados por elas para ajudar ao povo a sair da prostração e do caos.” Para o pintor parece que, nas disputas
entre direita e esquerda, as "massas" sempre levam a pior, sendo enganadas e manipuladas, não há saída pacífica.
A visão do pintor é paradoxal, ele acreditava e defendia o papel do revolucionário e representou isso pintando
várias obras com o tema do revolucionário, do rebelde. Pintou Hidalgo por duas vezes, e também Zapata por
duas vezes. Orozco acreditava que o sangue do mártir é necessário, porém era totalmente contra a violência e
sofrimento causados pela guerra demonstrando isso em várias obras onde retrata o sofrimento das pessoas mais
simples durante a Revolução Mexicana. Nessa perspectiva dá para fazer uma aproximação entre as idéias do
pintor e as idéias defendidas pelo padre Hidalgo. Este mural é um conjunto: ao lado esquerdo Orozco pintou “Os
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Fantasmas da Religião em Aliança com os Militares”, numa referência ao papel dessas forças na História
mexicana, segundo Rochfort. Ainda segundo Rochfort (1993), a bandeira que cobre o rosto do militar, um
recurso que o pintor utilizou também no mural “A Trindade Revolucionária”, simboliza a perda da direção na
luta revolucionária. À direita um “Carnaval de Ideologias”, que mistura nazismo, fascismo, comunismo numa
alusão às disputas de ideologias políticas entre direita e esquerda no México e também no mundo; e abaixo de
Hidalgo, o grupo de figuras macilentas que se esfaqueiam numa luta sem sentido em meio a bandeiras
vermelhas, representa as massas, que, na visão do pintor, parecem não ter condições de traçar seu próprio
caminho, aspecto reforçado pela simbologia que significa irracionalidade, atraso espiritual. A simbologia é forte:
uma imagem fúnebre e facas, muitas facas. Em nossa opinião isto é proposital. Orozco fez uma crítica pesada
àquele momento histórico, no qual Cárdenas subia ao poder. O mural revela que, no imaginário do pintor, e na
cultura mexicana, o padre Hidalgo, herói da independência, representa o ideal nobre da revolução. Ele é o
verdadeiro revolucionário, num sentido que transcende as fronteiras do México. Para Orozco a atitude de mudar
é iniciativa de um líder que conduz o povo, um rebelde que se levanta contra a tirania em nome de uma causa
humana e social.
Podemos comparar o mural com a imagem de Hidalgo com o mural no qual Siqueiros representa a
“Greve de Cananea” (fig.4). Esta greve, ocorrida em 1906, é considerada de grande importância no movimento
revolucionário, pois a partir dessa greve dos mineiros, de caráter nacionalista, revelou-se a degradação do
sistema paternalista de Díaz em relação aos operários. Segundo Américo Nunes (1975), a importância desta
greve não reside apenas no fato de ela abrir a luta em prol da “mexicanização” dos setores industriais, e de
evidenciar a ruptura de fato entre o governo e a classe operária. Revela, também, uma das constantes, não só do
movimento operário, mas também da Revolução Mexicana: o nacionalismo “antiimperialista”, que se traduzia
num repúdio ao que era de fora, principalmente norte-americano. Siqueiros representa a greve como um embate
entre os operários (os mexicanos) e o patrão (o americano). De um lado, estão os operários que, na greve de
Cananea, lutavam por igualdade em relação aos operários americanos que trabalhavam no México e recebiam
salários muito maiores pela mesma jornada de trabalho e tarefa. Do outro, está o dono da companhia
Consolitaded Copper Company of América, apoiado pelos rurales, a polícia repressora do governo de Díaz. A
disputa pela bandeira do México, entre o operário e o dono da companhia, representa a dominação do capital
estrangeiro no México e a oposição dos mexicanos a esse fato. Segundo Desmond Rochfort Siqueiros eleva essa
disputa ao tema central do mural. Os personagens que disputam a bandeira são representações de pessoas reais.
O operário é Fernando Palomares, membro do Partido Liberal Mexicano e o patrão é William C. Green, dono da
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companhia extratora de cobre, que ficava em Cananea, estado de Sonora. Siqueiros utilizou estas duas figuras,
para descrever a greve industrial de Cananea e o descontentamento dos trabalhadores mexicanos contra seus
patrões opressores. Ainda segundo Rochfort (1993), essa representação quer demonstrar também que no
momento em que Siqueiros pintou o mural, a década de 60, a bandeira mexicana ainda estava em disputa, ou
seja, a Revolução não conseguira seu objetivo. Como Siqueiros mesmo disse, neste mural ele retratou ainda
outros personagens reais. Estão presentes, também, aí, personagens conhecidos que comandaram a repressão à
greve, tais como o governador de Sonora, Rafael Izcábal, e o vice presidente da República, Ramon Corral. Não
posso deixar de mencionar que para combater os grevistas de Cananea, foram trazidos os rangers americanos e
muitos voluntários do estado norte-americano do Arizona. No mural, as forças repressoras da greve estão
retratadas entre a “corte porfiriana” e os operários, numa alusão à proteção oferecida por essas forças para
manter o sistema dominante. Três operários carregam um operário morto, vítima da repressão. Na perspectiva
deste mural, a Revolução Mexicana foi uma “rebelião” contra o domínio econômico do capital estrangeiro no
México, causado pela política colonial permitida pelo governo de Díaz, que sacrificava o povo mexicano para
favorecer o capital estrangeiro e se manter no poder. Segundo Rochfort, (1993, p.207 e segtes.) para Siqueiros, a
disputa e a greve subsequente resumiam o espírito infinitamente complexo da Revolução Mexicana. A greve dos
trabalhadores mexicanos contra seus patrões estrangeiros, que como resposta trouxeram forças de seu próprio
contingente policial para acabar com o movimento, resumia o alcance da dominação e da opressão econômica e
política do México. Mas a dimensão nacionalista da representação de Siqueiros não se prende a imagens de
antepassados ou a origens raciais e culturais. Ela se expressa na descrição dos dois protagonistas principais dessa
passagem da luta pela posse da bandeira nacional do México. Os dois protagonistas dividem o cenário em dois:
atrás de William C. Green está o regime do ditador Díaz, e atrás do operário Fernando Palomares está o povo
mexicano em resoluta atitude de enfrentamento aos seus opressores. O pintor criou uma imagem que pode ser
interpretada não somente como uma referência histórica, mas como uma metáfora da natureza inconclusa da
Revolução Mexicana e da dominação contínua pelos interesses econômicos dos estrangeiros, particularmente
dos EUA. Siqueiros representa a revolução como fruto do descontentamento popular. O povo é a parte principal
da representação: homens, mulheres e até crianças aparecem. O povo, as massas são vistos de forma positiva por
Siqueiros, em atitude determinada para arrancar das mãos do estrangeiro sua soberania. Contudo tal
representação também significa que nos anos 60, quando o mural foi pintado, o México ainda não se livrara da
influência americana. A bandeira ainda estava em disputa. O detalhe das mãos é siginificativo, são mãos grandes
e fortes, mãos que representam o trabalho. Mas esta representação deixa de fora o papel das classes médias na
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revolução, que segundo Américo Nunes (1975, p. 171) A... é obra da classe média, sobretudo dos seus
intelectuais liberais jacobinos, aliada ao proletariado das cidades saído do mutualismo e do cooperativismo, sob a
direção daqueles. A originalidade desta revolução é a tentativa do movimento agrário, do Norte (Villa) e do sul
(Zapata), de dispor de uma direção política autônoma.
Como podemos perceber os acontecimentos são percebidos de formas diferentes pelos vários
agentes envolvidos no processo. No caso de Orozco e Siqueiros, cada um percebeu a revolução sob uma
perspectiva, que, no que diz respeito à participação popular, foi quase antagônica. Enquanto Siqueiros viu de
forma otimista e positiva a participação popular, Orozco a percebeu de forma pessimista e trágica representando
“as massas” sempre oprimidas e incapazes de tomar as rédeas de seu destino. Essas formas de perceber os fatos
estão relacionadas com as convicções políticas e intelectuais de cada um. Siqueiros era comunista, e, portanto, na
sua perspectiva, o povo, os operários são os responsáveis por fazerem a revolução. O que predomina nas
representações de Siqueiros é uma visão otimista da participação popular na revolução. Em nossa perspectiva, as
criações de Siqueiros podem favorecer a mitificação da revolução como uma revolução social. O povo mexicano
ao olhar os murais de Siqueiros pode se ver como um povo que fez uma revolução. Apesar do tom comunista
destas representações, o que poderia causar apreensão nas elites capitalistas do México, seu apelo ao imaginário
social funciona ao avesso. O povo, se vendo como realizador da revolução estaria vivendo sua revolução, e não
sendo vítima de uma burguesia que construiu sua hegemonia atrás de uma retórica revolucionária.
Orozco preferiu não aderir a nenhuma bandeira ideológica, tinha uma visão mais crítica do
processo, mas talvez, pelo fato de acreditar na importância da intelectualidade como promotora do
desenvolvimento social, ele tirava das “massas” qualquer poder de iniciativa autônoma de participação nos
processos políticos. Como afirmou à escritora americana Alma Reed (1955) o pintor acreditava que o
desenvolvimento da humanidade deveria partir da iniciativa dos intelectuais, a verdadeira elite da terra, que
deveria se unir com esse objetivo, pois “os cumes das montanhas se vêem uns aos outros enquanto os vales não”.
Sobre a importância do muralismo o pintor acreditava que “os bons murais são como Bíblias pintadas e o povo
precisa delas tanto quanto das Bíblias faladas (sic)”. Sua obra dentro do muralismo, entretanto, quando se trata
da Revolução Mexicana, é carregada de crítica. Não há nenhum lirismo, nenhuma apologia à revolução, mas
uma crítica contundente ao que foi a revolução enquanto guerra, e ao que se tornou enquanto discurso político e
ideológico.
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ARTIGO: OROZCO E SIQUEIROS: DUAS REPRESENTAÇÕES DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NA REVOLUÇAO MEXICANA
ÍNDICE DAS IMAGENS
Figura 3-Hidalgo – a primeira batalha da Revolução, 1937
Figura 1 – Orozco – Zapatistas – 1931
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Figura 2 – Siqueiros – O povo pega em armas 1957-65
Figura 4 – Siqueiros – Greve de Cananea 1957-65
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