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OCCUPY: ELEMENTOS PARA UMA PROBLEMATIZAÇÃO SOBRE

MOVIMENTOS SOCIAIS

Ariovaldo de Oliveira Santos1

RESUMO: Este artigo analisa alguns dos elementos constitutivos das recentes mobilizações coletivas e seus esforços para se contraporem aos desdobramentos do processo de mundialização do capital. Dentre as várias manifestações coletivas recentes, que ganharam projeção mundial, destaca-se a do Occupy. O artigo procura investigar motivações e limites que marcam esta forma de luta coletiva adotando por hipótese que os Occupy não são movimentos sociais, seja em perspectiva marxiana ou touraineniana, embora coloquem questões importantes para a reflexão da vida social no estágio atual do desenvolvimento do capitalismo. Um dos pontos importantes a serem contemplados por uma analise destas formas de mobilização é a maneira como pensam as formas de democracia formal e a posição de desconfiança ou descrédito em relação a formas tradicionais de organização dos interesses, como os partidos políticos, ou lutas coletivas de classe, inclusive as sindicais. PALAVRAS-CHAVE: Occupy; Novos movimentos sociais; Globalização; Juventude.

JUVENTUDE, GLOBALIZAÇÃO E PRECARIEDADE SOCIAL

A juventude, enquanto objeto teórico, refere-se a um conjunto relativamente definido,

seja pelas suas características etárias, seja pelas sociais. No caso do movimento Occupy,

aliado a outras manifestações que marcaram a passagem dos anos 1990-2000, como as de

Seattle e Praga, bem como as manifestações na Grécia e em Portugal, mais recentemente, ou a

chamada Primavera Árabe, é incontestável a presença do contingente juvenil, menos, talvez,

porque saibam utilizar a internet como recurso para expor suas ideias, mobilizando-se para

irem às ruas, e mais, com certeza, em razão de que têm sido eles, já de longo período, afetados

profundamente pelas transformações em curso no capitalismo contemporâneo. Assim como

ocorreu no maio de 1968 e diversas outras manifestações contemporâneas àquelas

mobilizações, pouco comentadas mas não menos significativas, a emergência no espaço

1 Doutorando no Programa Serv iço Social, Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutor em Socio logia e

Ciências Sociais (Université Paris I); Prof. Dr. Do Departamento de Ciências Sociais (Universidade Estadual

de Londrina – Pr)

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público dos contingentes definidos como jovens resulta de um mal estar real, o qual pode ser

negado apenas no plano da imaginação.2

Grécia, Londres, Oriente Médio, Estados-Unidos, Portugal, por exemplo, apontam

para uma certa homogeneidade no contexto do capitalismo global, no que concerne à

juventude, ainda que o fenômeno das manifestações recentes não se restrinjam a este

contingente etário. Trata-se, efetivamente, da existência de possibilidades cada vez mais

limitadas de participação na esfera do consumo capitalista que acaba por se traduzir em um

mosaico que vai desde o radicalismo pequeno-burgues contra a sociedade existente, expresso

na proposta de altermundialismo ou na exigência de uma verdadeira democracia formal, até à

negação pura e simples do existente por meio de ações que percorrem o espaço público em

ritmo de tsunami, destruindo tudo o que tem pela frente, no caso, carros, lojas, bancos, entre

outros símbolos visualizados como a negação de tudo aquilo que os estratos mais

“marginalizados” não possuem ou não têm acesso. Trata-se de um conjunto de manifestações

que têm, ainda, em comum, o fato de catalizarem, cada um com suas motivações, os

escolarizados e os que possuem um baixo nível de escolarização, os que estão mais integrados

ao consumo capitalista e aqueles que deste participam menos intensamente. Trata-se,

igualmente, de uma certa homogeneidade dada pela situação objetiva do emprego, em geral,

instável e mal pago, apesar da escolaridade. Dois exemplos são, neste sentido, importantes de

serem citados. De um lado, os “milleuristas”, ou geração mil euros, há alguns também

chamados por “geração 600 marcos” ou “geração Mac Donalds”. Expressões que, à parte

variações possíveis de serem encontradas dentro das fronteiras de cada Estado Nação,

remetem a uma realidade marcada pela disponibilização, aos jovens, de empregos sem

grandes promessas futuras, mal pagos, instáveis no que se refere aos contratos de trabalho e

marcados por uma forte tendência à rotatividade (turn-over) e absenteísmo.

Soma-se a isto a intensidade com a qual o fenômeno do desemprego atinge estes

contingentes. Na Espanha, por exemplo, onde dados de 2012 acusam um índice de

desemprego da ordem de 24,4 %, portanto, praticamente o mesmo que ela possuía nos anos

2 Para uma rad iografia dos conflitos sociais nos anos 1960 há um importante estudo de Guy Spitaels que

abrange o declínio do modelo de regulação construído na Europa no período do pós Segunda Guerra

Mundial. SPITAELS, Guy, Les Conflits Sociaux en Europe (greves sauvages, contestation, rajeunissement

des structures), Belgique, Marabout Services, 1971.

3

1990, o índice chega a mais de 50% na faixa etária situada entre os 15 e 24 anos. É a pior taxa

de desemprego entre os países que integram a zona do euro e apenas a Grécia apresenta taxas

semelhantes3. Isto, no entanto, não implica afirmar que a situação seja menos desastrosa em

outros países da zona do euro. A taxa de desemprego em Portugal para a mesma faixa etária é

atualmente de 36,1%, seguido pela Itália (35,9%) e Irlanda (30,3%).

Estes elementos apontam para que não se trata de um raio em dia de sol, mas de um mal

estar social que é gestado na medida em que o desenvolvimento capitalista avança nos diversos

continentes, o que poderia ser evidenciado, por exemplo, se analisado o caso dos estudantes

chilenos, em 2012, ou as mobilizações de rua em junho de 2013, no Brasil, em defesa do passe

livre. São os elementos de descontentamento social que levaram, a partir de 2010, os jovens

gregos, portugueses, italianos, ingleses e espanhóis, por exemplo, para as ruas, e à formação de

algumas iniciativas como o El movimento 15 de mayo. Mais do que o uso da internet para expor

suas posições, angustia e fazerem a convocação de ocupação das ruas, o motor efetivo do

processo é o desemprego e a deterioração das condições sociais de existência.

Refinando um pouco mais os dados, de acordo com a Organização para a Cooperação

e Desenvolvimento Econômico (OCDE), dentre os 34 países considerados desenvolvidos e

contemplados pelo organismo, em 2012, a taxa de desemprego entre jovens, isto é, os que se

encontram entre 15 e 24 anos, de acordo com os critérios adotados pela instituição, totaliza

17,1%, enquanto que há cinco anos, em 2007, ela era da ordem de 12,2%. Com isto, estima-se

que atualmente exista no conjunto destes países, cerca de 11 milhões de jovens sem emprego.

Porém, a própria OCDE reconhece que mais da metade dos jovens que vivenciam a situação

de desemprego nos países considerados está fora das estatísticas oficiais e integra o que se

convencionou chamar por “desempregados desencorajados”, isto é, aqueles que, por não a

encontrarem, desistiram de procurar uma ocupação assalariada. De acordo com documento da

OCDE, muitos “jovens que abandonaram o sistema de ensino deixaram de aparecer nas

estatísticas de emprego”, o que poderia elevar o número real de desemprego entre os jovens

para um total de 23 milhões. A situação é mais agravante na medida em que, ainda de acordo

3 Russo, Rodrigo, Bancos da Espanha registram recorde de créditos podres. Folha de São Paulo, Mundo,

Sábado, 19 de maio de 2012, A20.

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com o documento, há “uma preocupação crescente de que uma proporção significativa e cada

vez maior da população esteja em risco de um desemprego ou inatividade prolongada”. 4

MOBILIZAÇÕES COLETIVAS, PRECARIZAÇÃO E “PRECARIATO”

Embora as camadas mais jovens de cada país se apresentem com maior evidência por

ocasião das manifestações que têm ocupado as ruas para protestar contra as condições

existentes no capitalismo global, destaque-se que a instabilidade do emprego para este

contingente não autoriza uma determinada leitura de que a classe operária, trabalhadora ou

proletária tenha voltado à ofensiva. Uma investigação mais minuciosa sobre a composição

social das manifestações ainda está por ser feita, o que ajudaria a explicar as razões pelas

quais as bandeiras vermelhas não tremulem para anunciar a Monsieur le Capital que o

“espectro do comunismo” deixou de rondar apenas a Europa para tornar-se planetário.

Destaque-se que o cuidado com este tipo de análise, que vê nos jovens o surgimento de novas

lutas proletárias, identificadas como o “precariato”, devem ser redobrados, sobretudo quando

se considera a resistência destas mobilizações aos partidos de esquerda tradicionais ou a

outras formas de vínculos institucionais mais estáveis.

Para melhor elucidar o objeto sobre as recentes mobilizações coletivas, tendo os

jovens como elemento de destaque, algumas considerações se fazem necessárias à luz do que

foi afirmado anteriormente. Observe-se que, efetivamente, a denominada “precariedade do

trabalho” tem sido um eixo articulador das respostas fornecidas por sindicatos e trabalhadores

em suas lutas cotidianas diante do capital. Entretanto, conceitualmente, o debate sobre a

expansão das atividades precárias tem padecido de imprecisões. A expressão trabalho

precário vulgarizou-se de tal modo na literatura que trata das questões concernentes ao

universo do trabalho assalariado que a sua simples enunciação ganhou força aparentemente

explicativa. Algumas análises, mais cuidadosas, acentuam que não se trata de trabalho

precário e sim de emprego precário. Contudo, mesmo utilizando a expressão emprego

precário, os limites analíticos persistem em razão de sua imprecisão. Afinal, sob o

capitalismo, por princípio, o trabalho assalariado é, em geral, precário, visto resultar de

4 Europa: 17% dos jovens não têm emprego; outros nem buscam mais. In: Vermelho. www.vermelho.org.br.

Acesso em 19 de maio de 2012.

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formas de exploração que dilapidam o ser social, transformando-o em mercadoria na medida

em que ele mesmo sustenta-se na produção de mercadorias.

A tendência à precarização se mantém mesmo quando é considerada a polivalencia.

Assim, se o uso de palavras como precariedade, precarização e precarizado, referentes ao

trabalho ou ao emprego, podem designar algo, isto se refere à tendência crescente de redução

de direitos sociais conquistados ao longo de décadas pelos trabalhadores em seus embates

cotidianos contra o capital. Disto decorre o reconhecimento de que a precarização e a

precariedade são tomadas, contemporaneamente, não pelo caráter que possui a utilização da

força de trabalho na sociedade capitalista e sim à progressiva ausência de proteção jurídica

que cerca sua utilização. Por outras palavras, o debate contemporâneo tem atentado

substancialmente para a forma e não à essência da utilização da força de trabalho.

Ainda que não capte a essência do trabalho sob o capitalismo e sim, sobretudo, a sua

forma jurídica, a frequência com a qual a temática da precariedade vem à tona é sintomática

da corrosão que vem atingindo os pilares sociais do atual modo de produção. De um lado, o

capital se revela cada vez mais incapaz de manter arranjos institucionais que lhe serviram de

base no período do pós-guerra e que se expressaram, no caso dos países do capitalismo

avançado, sob a forma do que a literatura vem chamando por sociedade salarial. Arranjos

suficientemente fortes para produzirem uma dupla ilusão. De um lado, a de que poderiam ser

reproduzidos indefinidamente. De outro, a aparência de que poderiam ser universalizados para

o eixo periférico do capitalismo desde que as mesmas condições institucionais e a

“modernização” de suas estruturas econômicas fossem efetivadas.

A persistência da terminologia jurídica de precário, assim como seus correlatos, isto é,

precarização, precariedade e, mais recentemente, precariato (referência à existência de um

proletariado cada vez\ mais empurrado para a situação de precariedade), é um sintoma

marcante dos limites que se impõem à manutenção de conquistas sociais dos trabalhadores e à

oferta de uma paix duradoura com o capital. Evidencia-se em todas as partes os esforços

conduzidos pelo capital no sentido de estabelecer a demolição de leis que possam agir como

obstáculo à acumulação capitalista, o que vai desde a extensão do tempo de contribuição, em

diversos países da Europa, aos esforços para a reformulação das Leis do Trabalho, como é o

6

caso da Lei Abascal, no México e da Reforma Trabalhista e Sindical no governo Lula 5.

Adiciona-se a esse movimento, como elementos de protesto, as ações anti-globalização, as

lutas dos jovens franceses, em 2006, em torno à tentativa de implementação de uma lei de

primeiro emprego que restringia direitos sociais, ou mesmo os conflitos de jovens em diversos

países europeus, em 2005.

Efetivamente, a emergência do conceito de precariedade é anterior à grande crise do

emprego que se abate sobre as economias do capitalismo desenvolvido a partir de meados da

década de 1970. No entanto, é a partir dela que o conceito assume uma presença cada vez

mais constante no debate acadêmico e político.

Referindo-se ao caso francês, por exemplo, Tuchszirer observa:

“Mesmo se a emergência do conceito de precariedade é anterior à crise do emprego de

meados dos anos 1970, não permanece um fato menor que é depois deste período que a

questão ganha novamente a superfície no debate social. Desde os primeiros efeitos da crise, a

vontade de tornar mais leve o código de trabalho para responder às necessidades supostas da

flexibilidade das empresas se traduz por uma expansão do que durante muito tempo se

qualificou por ‘novas formas de emprego’. Ao modelo de emprego padrão veio se ajuntar

uma gama de empregos que não são ainda designados nos finais dos anos 1970 como

empregos precários, mas como empregos ‘atípicos’, significando assim que eles permanecem

restritos a um segmento particular do salariato, da qual a figura dominante permanece o

assalariado a tempo pleno e a duração indeterminada” (TUCSZIRER:2005:23-24).

Assim, mais que um problema de ordem semântica, o trânsito de empregos atípicos para

empregos precários aponta para o conjunto crescente de problemas vivenciados pela esfera do capital e

do trabalho a partir dos anos 1970. Do lado do capital, aprofunda-se o limite do modelo instaurado no

pós-Segunda Guerra enquanto que, da parte do trabalho, registram-se as dificuldades crescentes em

ampliar e mesmo preservar as conquistas obtidas no período anterior à nova ofensiva do capital.

Diante disso, os conceitos de precarização, precariedade e precariato remetem a uma evolução das

perdas progressivas de direitos entre os grandes contingentes de trabalhadores. No conjunto, esses

conceitos apontam para uma determinada condição social de existência da força de trabalho. Eles são

fruto de um lento e relativamente longo processo de desenvolvimento, o qual, por sua vez, traduz o

próprio declínio da situação de estabilidade jurídica dos assalariados no interior das relações

capitalistas de produção. Inicialmente, se falava de empregos atípicos, uma vez que eram anomalias

diante de estruturas onde o direito do trabalho estava profundamente normatizado. Em um segundo

5 Santos, Ariovaldo, A Reforma Trabalhista e Sindical do Governo Lula: de volta aos parâmetros neoliberais,

in Serv iço Social & Sociedade, Ano XXVI, Março 2005, Cortez, S.P., pp. 40-57.

7

momento, quando o ataque organizado das políticas neoliberais investe decididamente contra o campo

dos direitos do trabalho, criando fissuras e bolsões de empregos que vão se colocando à margem da

proteção jurídica, é que o termo precarização se instaura com toda força.

Destaque-se que a perspectiva que tem animado o debate paga um grande tributo aos

referenciais socialdemocratas uma vez que orientada, majoritariamente, pela perspectiva de que as

condições de precariedade e precarização devem ser combatidas em prol do restabelecimento de

empregos seguros que recomponham a sociedade salarial em vez de a conduzirem para a terceiro-

mundialização.

UM MOSAICO DE ESTRATOS ETÁRIOS E SOCIAIS

É um fato que, no atual contexto, a internet tem se constituído em instrumento

importante para a aglutinação de individualidades dispostas a exprimir seu descontentamento.

Ao mesmo tempo em que facilita a difusão das iniciativas e estimula à realização de outras,

em vários pontos de um mesmo país ou, mesmo, em diversos países, quase que

simultaneamente, assistimos a um momento da processualidade contraditória das forças

produtivas capitalistas, isto é, elas servem ao capital ao mesmo tempo em que criam

condições para que os de baixo exprimam suas demandas mediante a apropriação da “rede”

por um conjunto heterogêneo de vontades que se sentem desconfortáveis na sociabilidade

contemporânea. Um exemplo típico, neste sentido, é a mobilização Occypy NY e seus

desdobramentos para outros países. Mobilização que guarda muitos elementos em comum

com El moviminento 15 de mayo. Em ambos, para ampliar aqui reflexão desenvolvida por

Yannick Harrel, constata-se a presença de

“um fenômeno social de envergadura resultante da convergência de diversos fatores: crise

econômica atingindo principalmente a população mais jovem; desencantamento em relação

[à] polít ica, considerada como muito dependente dos lobbies e desconectada das realidades

[sociais]; descoberta da democracia que escaparia aos indivíduos para ser retida nas mãos

de profissionais; recusa de um grande e excessivo distanciamento entre os rendimentos dos

mais ricos e os dos mais pobres.”.6

Observe-se ainda que os “mais pobres” fazem-se presentes, mas tendo como parceiros a

participação de estratos médios que, por condição ou situação de classe, se apresentam 6 Yannick Harrel, Internet: catalyseur d’um nouveau paradigme économique, génerationnel et géopolitique. In:

Revue Défense Nationale, nº 160.

8

historicamente como pouco predispostos a abraçarem causas revolucionárias, embora

geralmente se manifestem favoráveis às manifestações de contestação que não transcendam os

limites da ordem social configurada. Este elemento deve ser considerado em uma análise mais

acurada sobre as potencialidades contidas na multiplicidade de manifestações que, nos

últimos anos, têm apontado para a existência de um mal estar na civilização contemporânea.

AS MANIFESTAÇÕES “OCCUPY”

Lançado em New York no dia 17 de setembro de 2011 o movimento Occupy, ou,

Ocupar, guarda muitas proximidades como as manifestações dos “indignados”, na Espanha, e

a chamada “Primavera Árabe”, no Oriente Médio. Para além de suas especificidades, no

conjunto guardam em comum o posicionamento de insatisfação com a ordem política

existente no plano nacional mas, também, internacional. Sobretudo no que concerne à

compreensão de que o controle das decisões políticas transformam cada vez mais a ideia de

cidadania em um conceito jurídico sem valor, além de conduzir a uma concentração elevada

da riqueza social.

Outro elemento comum a estas manifestações remete aos esforços demonstrados em

recuperar, pela base, o poder de decisão sobre os problemas que os afligem no p lano da vida

cotidiana. Como observa Kempf, “se reencontra em toda parte esta vontade de recuperar um

poder confiscado, o desejo de participar realmente à vida pública e à maneira pela qual as

sociedades são governadas – o que se exprime frequentemente através a simples palavra de

democracia”7.

Ainda que bradando contra situações decorrentes do movimento de expansão do

capital, conduzindo a uma concentração cada vez maior da riqueza em poucas mãos, e mesmo

que contando com a participação de operários, uma forte componente destas manifestações,

torna-se necessário o reconhecimento de que o ideário predominante expressa, justamente, a

composição mais efetiva destas manifestações, isto é, a pequena classe média empobrecida

ou em vias de ingressar nos quadros do que alguns autores têm chamado por precariato. Na

Espanha, por exemplo, a manifestação ocorrida em Madrid, no dia 15 de maio de 2011, na

7 KEMPF, Raphaël, De Londres a Santiago, La revolte des declassés. In: Le Monde Diplomatique, mai 2012,

p. 24.

9

Puerta del Sol, e que encontra-se na origem do movimento auto-denominado 15-M, fruto

direto, por sua vez, do movimento Democracia Real Já, assimila as aspirações de romper com

uma situação que “limita o crescimento pessoal e profissional da população”. Nas palavras de

um dos manifestantes: “Aqueles que estão no alto permanecem lá, e aqueles que estão

embaixo caem cada vez mais para baixo. A impossibilidade de progredir economicamente e

socialmente me conduziu a buscar outras vias”8.

Sintomático da nova situação dentro da qual estas lutas pretendem ser travadas é o

distanciamento que elas revelam em relação a partidos e sindicatos e, igualmente, a ideologias

políticas, ainda que estas se façam presentes, mesmo que não estando conscientemente

evidente para os manifestantes. Nascidas das próprias necessidades cotidianas, não se torna,

portanto, estranho, que o leque das reivindicações seja por vezes bastante amplo e, mesmo,

que ataquem a forma e não o conteúdo da sociedade contra a qual pretendem protestar. Há o

reconhecimento do peso que o capital financeiro tem assumido no tempo presente, a

identificação do aprofundamento das distâncias entre as classes, traduzidas na expressão

“desigualdades sociais” e, também, do esgotamento das formas mais tradicionais de

democracia representativa. Entretanto, carentes de uma compreensão teórica sólida, estes

elementos permanecem como partes de um todo fragmentado e carente de mediações. De

certo modo, é legitima a afirmação de que “Esta crise da representatividade explica a

emergência espontânea de mecanismos visando a adoção das dec isões por consenso” por

parte dos integrantes das mobilizações9.

Do ponto de vista da construção de uma luta política efetiva as mobilizações em pauta

atestam para os limites pretendidos. Efetivamente, trata-se de um embate contra a forma

assumida pela política e não pela supressão da política, ou seja, das estruturas de poder. Por

outras palavras, o que se coloca no horizonte, percebido por diversos autores como um dos

elementos mais positivos destas mobilizações, é a exigência de “superação do sistema político

representativo” existente, prisioneiro que está dos interesses econômicos. Os limites da crítica

ensaiada, isto é, restringir-se ao plano das demandas de uma retomada da democracia

burguesa, é evidente nos argumentos apresentados por Negri e Hardt. Para eles,

8 Id. Ib id., p. 24.

9 Id. Ib id, p. 24.

10

“As manifestações organizadas sob o standart ‘Occupy Wall Street’ não encontram um eco

junto a numerosas pessoas unicamente porque elas dão voz a um sentimento generalizado

de injustiça econômica, mas também e, talvez sobretudo, porque elas expr imem

reivindicações e aspirações políticas. (...) as mobilizações colocaram em evidência a

realidade e a profundidade da indignação contra a avidez das empresas e as desigualdades

econômicas. A revolta contra a falta – ou fracasso – da representação política não é menos

importante. O desafio não é tanto de saber se este homem ou aquela mulher polít icos, ou tal

partido, é ineficaz ou corrompido ( mesmo se se trata de uma questão importante) mas de se

perguntar se o sistema polít ico representativo em seu conjunto é inadaptado. Este

movimento de protesto poderia, e mesmo deveria, se transformar em um verdadeiro

processo democrático constituinte”10

Saudados como mais um momento das forças populares nas ruas, inclusive por

correntes identificadas ao marxismo, tem ficado em enésimo plano, nas análises, os limites

intrínsecos a estas formas de expressão de massa centradas na explosão espontânea do

descontentamento coletivo. Soma-se a isto a ausência de um projeto claro, de um objetivo a

atingir e que demandaria uma outra forma de luta, capaz de tocar efetivamente nas estruturas

de poder, alguns

“meses após seu lançamento OWS aparece como polimorfo e heterogêno. Ele agrega em

torno de si as iniciat ivas as mais diversas, lança manifestações e e ações sobre todos os

temas: a habitação, o poder das multinacionais, as vendas internacionais de armamento

pelos industriais que ‘exportam a morte em nome da defesa’, ou ainda a dívida dos

estudantes e a luta por uma educação gratuita. Outros ainda pensam em ocupar as fazendas

(fermes)”11

Outra questão igualmente inquietante é: “Há um projeto de sociedade que norteie estas

ações ? Entendendo-se aqui por projeto de sociedade a perspectivação de se construir,

efetivamente, uma alternativa ao capitalismo. A resposta aponta para a negat iva. O que se

pretende, efetivamente, são reformas, de tal modo que se busca combater os efeitos mas

deixando relativamente protegidas as causas, ainda que os protestos se direcionem a uma

abstrata classe dominante, identificada por vezes na subordinação dos partidos aos interesses

econômicos globais, ou ao slogan dos “99% contra os 1%”, traduzido também na sua forma

pré-marxiana de “os pobres contra os ricos”.

10

HARDT, Michael e NEGRI, Toni, Le combat pour La “democratie réelle” au coeur de “Occupy Wall Stree t.

In http://www.mouvements.info/Le -combat-pour-la-democrat ie.html. Acesso em 04 de julho de 2012. 11

Id. Ib id., p. 25.

11

No conjunto, intensa participação da classe média e ausência de um projeto que

coloque na ordem do dia a radicalidade do humano, isto é, a necessidade de construção de

novas relações sociais que estejam dadas por uma lógica que não seja a da mercadoria, se

configura como uma marca destas explosões de rua. No Chile, diante da privatização da

Educação, os manifestantes ocupam as ruas para questionar as desigualdades, a reforma

tributária e o sistema político. No plano mais amplo:

“Eles não se consideram ligados aos ‘indignados’ nem à Primavera Árabe: construíram suas

reivindicações com relação à situação de seu país, mas dizem expressar uma có lera que

ultrapassa as fronteiras do Chile”.12

A base comum fica por conta de um esforço das individualidades em ação buscarem

caminhos para tomarem, elas mesmas, as decisões sobre sua cotidianeidade social e pessoal.

Trata-se muito mais e intervir na vida pública, no terreno institucional, uma vez que há a

discordância sobre a maneira como a vida social tem sido governada pelas instâncias

deliberativas e o poder econômico do capital.

O mesmo espírito se faz presente na Espanha, seja pelo conjunto de demandas que se

colocam seja pela dimensão assumida pela iniciativa, transcendendo a expectativa de seus

mentores e revelando, ao mesmo tempo, a ausência de um projeto capaz de apontar para

embates marcados por maior solidez. Assim, observa Kempf:

“Em Madrid, a g rande concentração que encheu a Puerta del So l no dia 15 de maio de 2011

– e deu nascimento ao movimento 15-M – surpreendeu até mesmo os organizadores da

manifestação, como Carlos Paredes. O movimento ‘Democracia Radical Já!’, do qual ele é

um dos porta-vozes, tinha sido criado alguns meses antes em torno de oito propostas que

iam da supressão dos privilégios da classe política até a aplicação efetiva do direito à

habitação e a reforma da lei eleitoral. (...) Para Paredes, um empreendedor de 32 anos que

exerce sua atividade nos serviços de informática, a motivação de ir para a rua é ao mes mo

tempo mais profunda e menos precisa do que essas pouco propostas. (...) A impossibilidade

de progredir econômica e socialmente me levou a procurar outras vias. Aí encontrei

‘Democracia real já!’. Ele não se diz de nenhum partido ou sindicato, não se refere a

nenhuma ideologia política. Mas critica o sistema econômico cada vez mais desigual e uma

democracia que não representaria mais ninguém, nem na Espanha nem na Europa”13

12

Id. Ib idem, p. 10. 13

KEMPF, Raphael, Afetada pela crise......., Id. Ibid., p. 10.

12

Por fim, respeitadas as especificidades do país, dinâmica semelhante acompanhou a

eclosão do Occupy Wall Street. Mais uma vez o que se verifica é a ausência de uma real

determinação proletária, como muitas vezes se é induzido a crer, a julgar pela proliferação de

matérias em todos os meios de comunicação que chama a atenção para a presença dos

“excluídos” pelo processo de globalização. Também neste caso, não são os assalariados que

se colocam na origem da manifestação e sim camadas médias. Assim:

“A praça agregou diversos tipos de pessoas. Além dos homens jovens brancos diplomados,

também v ieram os sem-teto, minorias e outras ‘vozes marginalizadas’, cuja inclusão é um

desafio não necessariamente resolvido. Alguns se afirmam comunistas ou socialistas, ou

designam o capitalismo como a causa do problema. Outros querem, ao contrário, conservar

esse sistema e a economia der mercado, e pedem unicamente a sua regulação”.14

Para além de sua composição interna, no que se refere aos estratos envolvidos, é

preciso considerar o espectro ideológico, o conjunto de ideias mestras que animam, em geral,

estas mobilizações que têm nas ruas o espaço mais evidente de expressão. Neste aspecto, é

possível afirmar que uma gama de ideias gerais, que vão do “vamos quebrar tudo” ao “isto é

mesmo necessário”, se fazem presentes

A composição heterogênea da forma de mobilização e luta presente no Occupy se

reflete diretamente nesta ausência de rumos. Dilemas internos resultantes da aglutinação tanto

de elementos ideológicamente radicalizados, quanto daqueles essencialmente moderados, em

decorrência da situação e posição de classe que os marca. A diversidade, de resto, é

reconhecida por Knabb. Indagado sobre a composição social do movimento e, também, se há

um núcleo que se pode situar socialmente, responde que:

“É muito variada. Occupy Oakland comporta talvez 50% de Negros e Latinos., enquanto

que as ocupações em outras regiões do país podem ser principalmente o fato de Brancos.

Certas ocupações são antes de tudo o resultado da ação de pessoas muito pobres, de SDF,

etc., e outras incluem empregados. É certo que os jovens precários estão entre os

participantes mais presentes”.15

Embora faça referência essencialmente aos grupos étnicos que integram os Occupy, emerge

também da fala de Knabb elementos para se registrar a composição heterogênea no que

14

Id. Ib idem., p. 11. 15

Id. Ib idem., p. 1.

13

concerne ao pertencimento de classe. Assim, ao lado dos SDF, abreviação francesa para

designar os sem domicílio fixo, isto é, os sem teto, jovens precarizados juridicamente e

socialmente pelas condições de existência produzidas pelo capitalismo global, colocam-se,

também, os empregados, isto é, aqueles estratos médios de trabalhadores, cujas atividades

estão distantes de serem aquelas do trabalhador fabril.

Extrair, como o faz Knabb, da prática de uma democracia pela base, importante

seguramente dentro da perspectivação de um projeto alternativo ao capital, um

desdobramento outro, vendo nestas formas de expressão nas ruas “o início de um movimento

implicitamente revolucionário” é, no entanto, temeroso e parece pouco corresponder à

realidade.16

Estes limites decorrem tanto do fato de que a espontaneidade que marca estas

manifestações não se pretende a realização de um projeto claro. Um norte preciso fica entregue

à própria dinâmica destas formas de expressão, caso elas tenham continuidade e se solidifiquem

para além de sua dimensão midiática ou cyberespacial. Occupy repete, assim, limites já

presentes nas manifestações anti-globalização iniciadas pela ocupação das ruas em Seattle, em

1999, depois Praga e outros países. Estes limites se apresentam, mais uma vez transparentes, na

voz de um dos próprios animadores desta forma de mobilização. Assim, indagado sobre se é

possível a ideia de uma outra sociedade possível, se isto se coloca no horizonte e se as

proposições são colocadas sobre os meios de se atingir este objetivo, Knabb responde:

“A ideia de um outro tipo de sociedade está implícita em tudo isto. A maior parte do tempo,

as pessoas não falam porque elas compreendem que é muito mais importante prestar

atenção ao que eles fazem agora. Elas apreendem que este processo é a parte principal de

toda a situação última. Para mim, é um pouco sem importância que as pessoas digam que

elas são a favor ou contra o ‘capitalismo’ ou o ‘Estado’; é muito mais importante que eles

estejam desde agora engajados dentro de um processo não-hierárquico e não-capitalista.

Creio que elas [as pessoas], desenvolverão assim projetos bem mais eficazes do que

preocuparem-se em debater entre diversas nuances de radicalis mo”.17

Ao elemento pequeno burguês, une-se o ideário anarquista, que garante a estas

expressões particulares, o 15-M e os Occupy, a dimensão de uma falsa radicalidade, capaz de

comprometer efetivamente as estruturas sociais contra as quais investem. Esta falsa

16

Id. Ib idem., p. 1. 17

Id. Ib id., p. 2.

14

radicalidade explica em parte a relação que estas formas de exprimir-se nas ruas guarda com

aqueles que dela não participam e, sim, apenas, acompanham. Questionado sobre se o “resto

da população é hostil” aos Occupy, “indiferente ou simpatisante”, Knabb argumenta:

“Uma boa parte do resto da população se mostra relativamente simpatisante, em parte

porque – justamente – a maior parte das ocupações evitam a retórica radical (Oakland é um

pouco excepcional a este respeito), se apresentam antes como uma forma simples e de bom

senso de se atacar aos problemas dos quais cada um tem consciência, de uma maneira que

corresponde bem às primeiras tradições americanas (se reunir em assembleias da cidade

para debater sobre aquilo que pode ser feito para resolver diversos problemas práticos)”.18

Importantes por sua natureza os Occupy e outras formas de expressão coletiva recentes

no espaço público, como os casos citados ao longo deste artigo, não autorizam, contudo,

serem referenciados, conceitualmente, como o “povo mundial em luta” e, menos ainda, como,

movimentos sociais”, seja na perspectiva marxiana, seja no espectro Tourainiano. Neste

sentido, pelo seu caráter informe e não programático, as manifestações expressas entre outras

pelos Occupy se assemelham mais ao conceito de multidão, defendido por Negri e Hardt, que,

por força das limitações de um artigo, já neste ponto extenso, será impossível de desenvolver

mais detalhadamente aqui.19. Referencia-se, apenas, que o conceito de multidão tem raízes

históricas em Negri para além de sua manifestação no capitalismo global enquanto ações de

embate contra as formas de dominação contemporânea, promovidas pelo capital.

REFERÊNCIAS

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18

Id. Ib id., p. 2. 19

PACHECO, Anelise; COCCO, Giuseppe; VAZ, Pau lo, O Trabalho da Multidão, Gryphus, R.J., 2002.

15

KNABB, Ken, “Il NE s’agit pás d’une série de protestations, mais d’un movement”. In: Article 11, Jeudi, 10 novembre 2011. Site: http:/WWW.article11.info/?Ken-Knabb-Il-ne-s-agit-pas-d-une.

KEMPF, Rahaël, Afetada ela rise, a classe média vai às ruas. In: e Monde Diplomatique Brasi, Maio, S.P., Editora Livre/Polis, 2012.

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MARX, K, Marx à Friedrich Bolte, a New York (Londres, le 23 novémbre 1871). In MARX, ENGELS, LENINE, Sur l’Anarchisme et l’Anarcho Syndicalisme, Moscou, Éditions du Progrès, 1982

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