2
Ao final da unidade você deverá:
• definir os saberes docentes;
• estabelecer a relação entre saber docente
e conteúdos necessários para o exercício da
docência.
Obje
tivos
OS SABERES DA DOCÊNCIA
unidade
1 INTRODUÇÃO
Na segunda unidade de nossos estudos, aprenderemos mais
detalhadamente sobre cada um dos tipos de conhecimentos exigidos
ao docente para e no exercício de sua atividade.
Entretanto, como o trabalho docente acontece na esfera da
prática social humana, prevalece, no interior das discussões sobre
os saberes da docência, o debate sobre o que mais determina a
constituição desse saber: a teoria aprendida nos cursos de formação
ou a prática exercida no interior das escolas?
Apesar de os estudos sobre os saberes docentes já terem
tomado impulso e importância para a formação de professores no
exterior desde a década de 1980, no Brasil, eles chegam até nós no
início da década de 1990. Como traços em comum, eles possuem
a valorização da experiência profissional a partir da compreensão
de que, ao desenvolver o seu trabalho, o professor mobiliza uma
pluralidade de saberes, produzindo conhecimento prático. Entretanto,
essa forma de ver e compreender o trabalho do professor não vem
ocorrendo sem críticas, como afirma Alves:
Se para autores tão diversos como Tardif (2002), Shulman (1987) e Pimenta (2002), a perspectiva que investiga os saberes dos docentes pode contribuir com o desenvolvimento profissional dos professores, no entanto, para outros, como Arce (2001) e Duarte (2003), ela pode ser compreendida como um recuo no modo de se conceber a formação do professor, representando um ajustamento ao ideário neoliberal
UNIDADE IIOS SABERES DA DOCÊNCIA
35PedagogiaUESC
2U
nida
de
(ALVES, 2007, p.265).
Desta forma, abordar o campo dos saberes da docência
está longe de ser algo fácil e não problemático. Vários autores, por
exemplo, tentaram ordenar a diversidade dos saberes profissionais
dos professores, e de suas fontes variadas, propondo classificações ou
tipologias: Bourdoncle (1994), Doyle (1977), Gage (1978), Gauthier
et al. (1998), Martin (1993, 1997), Mellouki e Tardif (1995), Paquay
(1993), Raymond (1993), Raymond, Butt, Yamagishi (1993), Shulman
(1986). Todavia, essas numerosas tipologias apresentam dois grandes
problemas: por um lado, seu número e sua diversidade dão mostras
do desmembramento da noção de “saber”; por outro, se comparadas,
é possível perceber que se baseiam em elementos incomparáveis
entre si, tornando impossível uma visão mais “compreensível” dos
saberes dos professores como um todo (TARDIF 2000, p. 216).
Sem desconsiderarmos, portanto, as produções geradas por
esse debate, nesta unidade, centraremos a nossa discussão dos
saberes da prática pedagógica desenvolvidos por Paulo Freire e por
Selma Garrido Pimenta, anunciando, por fim, o que consideramos
como conhecimentos necessários ao professor no e para o exercício
do seu trabalho, entendendo que é o conjunto desses conhecimentos,
amadurecido na experiência, que determinará os saberes da docência.
Para tanto, organizamos esse conjunto de conhecimentos em
três dimensões: a educação (suas origens históricas, políticas, legais,
epistemológicas etc.), a prática pedagógica (seus fundamentos
históricos, epistemológicos e práticos) e a escola (sua organização
institucional, administrativa e pedagógica); todas elas na direção da
construção de uma atividade docente transformadora, geradora de
uma prática diferente da que a originou.
FUNDAMENTOS DA DOCÊNCIA
36 Módulo 2 I Volume 6 EAD
Os saberes da docência
2 DOCÊNCIA E ENSINO: OS SABERES PROFISSIONAIS
DA DOCÊNCIA
Várias vezes você já deve ter ouvido alguém dizer que professor
“fulano” sabe muito, mas não tem “didática”. Ou então, que outro
professor é uma pessoa tão boa, mas não tem domínio de classe e
seus alunos fazem dele “gato e sapato”. Também já deve ter ouvido
alguém reclamar que o professor “tal” fala, fala, mas não diz nada,
pois ele não tem conteúdo. Estas pessoas, sem o saber, estão dizendo
que os professores a quem elas se referem não possuem os saberes
necessários ao desenvolvimento do trabalho docente e que, portanto,
mesmo sendo “sabichão, gente fina ou um bom comunicador”, lhes
faltam as ferramentas básicas para atuarem como verdadeiros
professores. Quais são, portanto, os saberes necessários para que
nos tornemos professores (e bons professores)?
Para tentarmos responder esta pergunta, iremos recorrer aos
trabalhos de dois autores brasileiros sobre os saberes docentes. O
primeiro deles é o professor Paulo Freire que, em 1996, pouco antes
de sua morte, publicou o livro “Pedagogia da Autonomia: saberes
necessários à prática educativa”. O outro autor é a professora Selma
Garrido Pimenta (1999) e os três tipos de saberes docentes por ela
classificados no livro “Saberes pedagógicos e atividade docente”.
Como dissemos antes, os estudos sobre os saberes docentes são
muitos, diversos e contraditórios entre si, daí a nossa opção pelos
dois autores brasileiros, pois, ao contrário dos autores internacionais
citados anteriormente, Freire e Pimenta não buscam criar uma
tipologia dos saberes docentes, mas, tomando como ponto de partida
a natureza do trabalho docente, estabelecem os saberes necessários
na perspectiva da reflexão e da formação docente para a autonomia.
2.1 Paulo Freire e a Pedagogia da Autonomia
Dois aspectos de imediato nos chamam a atenção no livro
de Paulo Freire, em relação à construção dos saberes docentes
necessários à prática pedagógica: a primeira delas é o fato de que
a temática abordada em Pedagogia da Autonomia foi uma constante
preocupação ao longo de sua vida como educador, tratando-se,
portanto, de uma obra viva que “fala com a força do testemunho”.
O segundo aspecto diz respeito a seu ponto de partida:
o conceito de educar como o ato de construir, de libertar os seres
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de
humanos das cadeias do determinismo neoliberal, reconhecendo que
a história é um tempo de possibilidades. E, de novo, Freire salienta
que educar não é a mera transferência de conhecimentos, mas sim
conscientização. Para ele, o homem e a mulher são os únicos seres
capazes de aprender com alegria e esperança, na convicção de que a
mudança é possível. Aprender é uma descoberta criadora, com abertura
ao risco e a aventura do ser, pois ensinando se aprende e aprendendo
se ensina.
Freire insiste na “especificidade humana” do ensino enquanto
competência profissional e generosidade pessoal, sem autoritarismos
e arrogância. Só assim, diz ele, nascerá um clima de respeito mútuo
e disciplina saudável entre “a autoridade docente e as liberdades dos
alunos, [...] reinventando o ser humano na aprendizagem de sua
autonomia” (FREIRE, 1996, p.105). Consequentemente, não se poderá
separar “prática de teoria, autoridade de liberdade, ignorância de saber,
respeito ao professor de respeito aos alunos, ensinar de aprender”
(p.106-107).
Como princípios basilares a uma prática educativa que transforma
educadores e educandos e lhes garante o direito à autonomia pessoal
na construção duma sociedade democrática que a todos respeita e
dignifica, Freire nos indica os saberes necessários à prática educativa de
professores, formados ou em formação:
1º - “Não existe docência sem discência” - o professor dever ser
um grande aprendiz, e estar aberto para aprender com a realidade de
seus educandos, mas para que isso ocorra é preciso que se tenha uma
rigorisidade metódica. Ensinar não se esgota no tratamento do objeto
ou do conteúdo, todavia se alonga à produção de condições em que
aprender criticamente é possível, exigindo a presença de educadores e
educandos criativos, investigadores e inquietos, rigorosamente curiosos,
humildes e persistentes. Nas condições de verdadeira aprendizagem,
os educandos e educadores vão se transformando em reais sujeitos da
construção e reconstrução do saber ensinado.
O educador democrático trabalha com os educandos a rigorosidade
metódica com que devem se aproximar dos objetos cognoscíveis. Não
há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. E cabe ao professor
continuar pesquisando para que seu ensino seja propício ao debate e
a novos questionamentos. A pesquisa se faz importante também, pois
nela se cria o estímulo e o respeito à capacidade criadora do educando.
A escola e os professores precisam respeitar os saberes dos
educandos e, sempre que possível, trabalhar seu conhecimento empírico,
sua experiência anterior. As novas descobertas precisam ser debatidas
e aceitas mesmo que parcialmente; contudo, é importante preservar o
FUNDAMENTOS DA DOCÊNCIA
38 Módulo 2 I Volume 6 EAD
Os saberes da docência
velho, as formas tradicionais de educação.
É condenada qualquer forma de discriminação, racial, política,
religiosa, de classe social, pois a discriminação nega radicalmente a
democracia e fere a dignidade do ser humano. Qualquer discriminação
é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se reconheça a
força dos condicionamentos a enfrentar.
Quanto ao reconhecimento da identidade cultural, o respeito
é absolutamente fundamental na prática educativa progressista. Um
simples gesto do professor representa muito na vida de um aluno. O
que pode ser considerado um gesto insignificante pode valer como
força formadora para o desenvolvimento intelectual e acadêmico do
educando.
2º - “Ensinar não é transferir conhecimento” - o professor
que pensa certo deixa transparecer aos educandos que a beleza de
se estar no mundo é a capacidade de perceber que, intervindo no
mundo, ele conhecerá e transformará o mesmo. Portanto, ensinar
exige bom senso, uma vez que se deve observar o quão coerente
e coeso os educadores estão sendo ao cobrar os conteúdos da sua
disciplina.
O professor que desrespeita a curiosidade do educando, seu
gosto estético, sua linguagem, sua sintaxe e prosódia; o professor
que ironiza o aluno, que o minimiza entre outras ofensas em prol da
ordem em sala de aula, transgride os princípios fundamentais éticos
de nossa existência e esta transgressão jamais poderá ser vista ou
entendida como virtude, mas como ruptura com a decência.
Consequentemente, o educando deve ser educado de forma
a lutar pelos direitos dos professores, apoiando sua luta por salários
mais justos e respeito por sua profissão. Os órgãos da classe
deveriam priorizar o empenho da formação permanente dos quadros
do magistério como tarefa altamente política e repensar a prática
das greves, inventando uma nova maneira de lutar que seja mais
eficaz. A luta dos professores pela dignidade de sua função, não só
é democraticamente importante, bem como pode ser interpretada
como uma prática ética.
Quanto às comunidades carentes, a mudança é difícil, mas
é possível. Baseando-se neste saber fundamental, é que a ação
político-pedagógica será programada, com alegria e esperança,
respeito e conscientização. Não obviamente impondo à população
espoliada e sofrida que se rebele, que se mobilize ou se organize
para se defender; trata-se de desafiar os grupos populares para que
percebam a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua
situação. Desta forma, a educação se faz presente como forma de
PARA CONHECER
Assista a segunda par-te da última entrevista de Paulo Freire, na qual o educador fala sobre como compreende a na-tureza do ser humano “ser mais”. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=8-kbIU-QULtw
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nida
de
intervir no mundo.
3º - “Ensinar é uma especificidade humana” - sendo uma
especificidade humana, o ato de educar exige segurança, competência
profissional, comprometimento e generosidade. O professor que
não leva a sério sua formação, que não estuda, nem se aprimora,
não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe.
Todavia, há professores cientificamente preparados, mas autoritários
e arrogantes, ou seja, a incompetência profissional desqualifica a
autoridade do professor. A autoridade coerentemente democrática
quer de si mesma, quer do educando, para a construção de um clima
de real disciplina, jamais minimiza a liberdade. Está convicta de que a
disciplina verdadeira não existe na estagnação, mas no alvoroço dos
inquietos, na dúvida que os instiga e na esperança que os desperta.
2.2 Selma Garrido Pimenta e os saberes da docência
Antes de qualquer coisa, a professora Selma Garrido Pimenta
nos alerta que, dada a natureza do trabalho docente (o de ensinar como
contribuição ao processo de humanização), espera-se do professor,
que domine o conhecimento específico, e, também seja capaz de, no
cotidiano escolar, mobilizar os conhecimentos da teoria da educação e
da teoria pedagógica necessários à compreensão do ensino como uma
realidade social. E, igualmente, possua a capacidade de investigar a
sua própria atividade para, a partir dela, construir e transformar, em
um processo contínuo, o seu “saber-fazer docente”. Para a autora,
os saberes necessários à docência são, portanto, de três ordens: o
conhecimento, os saberes pedagógicos e a experiência. Estes saberes
e as formas como eles se articulam na prática de cada professor é o
resultado de um processo e do seu contexto histórico.
1º - “Os saberes da docência – o conhecimento” - se há algo
em relação ao trabalho docente que é consenso em toda a sociedade é
o fato de que, para ser professor, é preciso conhecer (e bem) o que se
quer ensinar. Entretanto, qual é o significado que esses conhecimentos
têm na sociedade? Qual significado tem esses conhecimentos na
vida das crianças, adolescentes e jovens com quem o professor irá
trabalhar? Qual a diferença entre conhecimento e informação? Qual o
papel do conhecimento no mundo do trabalho? Qual a relação entre as
diversas áreas de conhecimento? Muitas dessas perguntas ficam sem
respostas para a maioria dos professores que, raramente, refletem
sobre elas ao selecionarem os conteúdos a serem trabalhados.
PARA REFLETIR
Contam a estória de que um vendedor de carros, muito ansioso para reali-zar vendas, passava todo o dia de trabalho abor-dando quem chegasse à concessionária de carros, mostrando os melhores modelos e explicando as melhores vantagens para se adquirir aqueles veículos. Ao final do dia, exausto, se vangloriava de ter vendido muitos carros. Espantados, os colegas, perguntavam como era possível ele ter vendido os carros se estavam todos ali, sem donos. Para surpresa de todos, o vendedor expli-cava:• Vender eu vendi, eles
não compraram porque não quiseram.
Mas isso tem algum cabi-mento? Pois é, mas ima-gine você que, dia após dia, muitos professores têm repetido para si mes-mos:• Ensinar eu ensino, os
alunos não aprendem porque não querem.
FUNDAMENTOS DA DOCÊNCIA
40 Módulo 2 I Volume 6 EAD
Os saberes da docência
O conhecimento, como saber necessário à docência, precisa
ser definido, primeiro, como diferente da informação. Conhecer
implica classificar, analisar e contextualizar as informações, de forma
consciente e inteligente. Desta forma, a informação diz respeito apenas
a uma primeira etapa do conhecimento, pois este, ao exigir consciência
e reflexão, implica em produção de novas formas de existência, de
humanização. “Ou seja, conhecer significa estar consciente do poder
do conhecimento para a produção da vida material, social e existencial
da humanidade” (PIMENTA, 1999, p. 22).
Ao assumir o seu papel como mediador entre a informação
e os alunos, o professor precisa fazê-lo a partir do desenvolvimento
da reflexão que possibilite a sabedoria necessária à construção do
humano. Isto requer que o professor tenha uma preparação científica,
técnica e social e não apenas “conteudista”. Condição muito complexa
no nosso tempo atual no qual convivem, contraditoriamente, um
elevado nível de progresso e um número majoritário de seres humanos
sem condições para usufruir dos resultados deste progresso. O que
também revela a necessidade de saber a condição dos conhecimentos
nos quais o professor é especialista.
2º - “Os saberes da docência – saberes pedagógicos” – será que
para ensinar basta, então, ter apenas o domínio dos conhecimentos
específicos? Se fizerem essa pergunta a qualquer pessoa, pela
experiência que ela tem (ou teve) com a escola, prontamente ela
responderá que não. Dirá que além do conhecimento, para ensinar é
preciso que o professor tenha “didática”. De certa forma, essa pessoa
está dizendo que, para ser professor, também se fazem necessários
os saberes pedagógicos e didáticos.
Por vezes, na formação de professores, os saberes do
conhecimento e os saberes pedagógicos são trabalhados em blocos
distintos e desarticulados, tendo o primeiro, quase sempre, maior
relevância acadêmica do que o segundo.
Os saberes pedagógicos dizem respeito ao conjunto de
conhecimentos relativos a: (a) saber transformar o conhecimento
específico em saber escolar e (b) identificar as melhores maneiras
de socializar esses conhecimentos com os alunos, tendo sempre a
atenção de fazê-lo, a partir das necessidades pedagógicas postas
pelo real.
A atenção às reais necessidades pedagógicas não significa,
entretanto, se render às novidades de ensino, “flutuando”
pedagogicamente, e variando as metodologias de ensino a depender
das concepções que estão em predominância no momento. Significa
O termo sabedoria, neste contexto, está sendo uti-lizado como a capacidade de lidar inteligente e refle-xivamente com o conheci-mento.
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nida
de
tomar a prática dos educandos como ponto de partida e de
chegada, reinventando os saberes pedagógicos a partir da
prática social da educação.
Para tanto, segundo Pimenta (1999, p. 25), torna-
se importante a realização de um balanço crítico das novas
colaborações da psicologia e da sociologia educacionais,
como também das novas lógicas de organização escolar
(funcionamento da escola, currículo, formação dos professores,
gestão etc.).
3º - “Os saberes da docência: a experiência” – Os dois
tipos de saberes necessários ao professor para o exercício
da prática docente (conhecimento específico e saberes
pedagógicos) se articulam, segundo Pimenta (1999), com um
terceiro tipo de saber: os saberes da experiência. Estes saberes
se referem aos conhecimentos dos quais nos apropriamos à
medida que vamos agindo e experimentando.
Especificamente em relação à docência, quando
chegamos aos cursos de formação de professores já trazemos
alguns saberes provenientes de nossa experiência como
alunos de vários tipos de professores que tivemos um dia.
Essa experiência nos permite identificar quais foram aqueles
professores com quem aprendemos muitos conteúdos, quais
foram aqueles que ajudaram na formação humana, quais foram
aqueles que não tinham “didática” etc. O que queremos dizer
é que os saberes dessas experiências, de certa forma, nos
ajudam a constituir um perfil sobre a atividade docente.
Ao concluirmos o curso e começarmos a ensinar,
também as nossas experiências, o nosso cotidiano de trabalho,
irão se constituindo num corpo de “saber-fazer” que, ora irão
se consolidando, ora irão se modificando.
A seguir, veremos mais detalhadamente como os saberes
PARA CONHECER
VOCÊ SABIA?
Em seu livro, “Ensino: as abor-dagens do processo” (1986), Maria da Graça Nicoletti Mi-zukami apresenta uma análise dos conceitos básicos sobre os processos de ensino, buscando identificar o que fundamenta a ação docente. Este livro, hoje um clássico, é leitura obrigató-ria para quem quer compreen-der melhor a formação do ide-ário pedagógico.
Vários estudos sobre a apren-dizagem da docência têm de-monstrado que o início da car-reira é acompanhado de uma fase crítica, na qual os pro-fessores julgam sua formação universitária anterior. Segundo esses professores, muita coisa da profissão se aprende com a prática, no próprio trabalho. Desta forma, ao iniciarem sua profissão, muitos professores se lembram de que estão mal preparados, principalmente para enfrentar condições de trabalho difíceis. Entretanto, o domínio progressivo do traba-lho leva os professores a uma abertura em relação à cons-trução de suas próprias apren-dizagens. Esse domínio está relacionado, inicialmente, aos conteúdos de ensino e à prepa-ração da aula. Constata-se, as-sim, que a evolução da carreira é acompanhada geralmente de um domínio maior do trabalho e do bem-estar pessoal no to-cante aos alunos e às exigên-cias da profissão.
da experiência se constituem.
3 OS SABERES PROFISSIONAIS DA EXPERIÊNCIA
Se, hoje, perguntarmos a vários professores experientes como
aprenderam a ser professores, eles, na sua maioria, não vão dizer
que foi em um curso para formar professores. Eles irão responder
que foi no dia a dia da escola e da sala de aula; vão dizer que foi
contando com a ajuda de um (ou mais) colega mais experiente que
ele ou ainda que foi relembrando as ações daqueles seus professores
FUNDAMENTOS DA DOCÊNCIA
42 Módulo 2 I Volume 6 EAD
Os saberes da docência
por quem desenvolveu uma admiração ou uma repulsa. São esses
alguns dos saberes profissionais que denominamos por saberes da
experiência e pelos quais (ou nos quais) os demais conhecimentos
são amadurecidos.
Como aponta Tardif (2000), os saberes que servem de base
para o trabalho docente, ao mesmo tempo em que dizem respeito
a conhecimentos cognitivos, filosóficos, científicos e pedagógicos,
também são existenciais:
São existenciais, no sentido de que um professor ‘não pensa somente com a cabeça’, mas ‘com a vida’, com o que foi, com o que viveu, com aquilo que acumulou em termos de experiência de vida, em termos de lastro de certezas (TARDIF, 2000, p. 235).
Isto é, no exercício de sua atividade profissional, o professor,
ao tomar decisões, também o faz a partir de sua história de vida
(intelectual, emocional, afetiva, pessoal e interpessoal), história essa
portadora de sentido, de linguagens, de significados oriundos de
experiências formadoras que lhe proporciona um lastro de certezas.
Entretanto, temos de considerar que, apesar dessas
experiências serem pessoais, elas se dão em múltiplos espaços sociais
e, por isso, também são construções coletivas legitimadas por seus
grupos de referência. O uso dos saberes da experiência pelo professor
implica, então, numa relação social que o legitima ou invalida. Por
isso podemos afirmar que as experiências, ao mesmo tempo em que
são individuais, são também sociais.
[...] o que significa dizer que a sua utilização depende de sua adequação às funções, aos problemas e às situações do trabalho, assim como aos objetivos educacionais que possuem um valor social (TARDIF, 2000, p. 236).
Os saberes da experiência são, portanto, interativos, possuindo
as marcas das interações tais como elas se estruturam nas relações
de trabalho.
A sua importância também é inquestionável, pois os saberes
da experiência estão intimamente ligados à pessoa do professor e à
rotina do trabalho e estão na base do ensino.
Por fim, se é verdade que a experiência do trabalho docente
exige um domínio dos conhecimentos sobre a educação, a prática
pedagógica e a escola, e o domínio do instrumental da função, ela
também exige uma vivência profissional através da qual se constrói e
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nida
de
se experimenta pouco a pouco certezas profissionais.
4 CONHECIMENTOS NECESSÁRIOS AO TRABALHO
DOCENTE
A partir das dimensões que apontamos na introdução desta
parte de nossos estudos (educação, prática pedagógica e escola),
vejamos como, no Curso de Pedagogia, deve estar presente a
possibilidade de construção dos tipos de saberes necessários à prática
docente.
4.1 Sobre a Educação
Pare agora, por um momento, e procure responder as seguintes
perguntas:
a) O que é educação?
b) Qual a relação entre a educação e a atividade docente?
c) Qual a relação entre educação e a pedagogia?
Você conseguiu responder sem precisar recorrer a algum livro,
artigo ou Internet? As respostas fluíram quase que naturalmente,
demonstrando que já se apropriou dos conceitos chave (educação,
atividade docente, pedagogia)? Se sim, parabéns, você pode dizer
que começa a ter domínio de parte dos conhecimentos necessários
para o exercício da profissão docente.
Todo professor precisa conhecer a Educação, precisa saber quais
são os determinantes políticos, históricos, filosóficos e sociológicos que
definem e organizam esse fenômeno humano. Além de se apropriar
deste saber sobre a educação, o docente também precisa conhecer
as formas como esses conhecimentos foram e são produzidos, para
que possa efetivamente compreender o porquê de suas diferentes
conceituações e de seus impactos sobre a determinação de seu papel
como docente e como educador.
Por isso é tão importante estudarmos filosofia, sociologia,
antropologia, história e psicologia e sua relação com o fenômeno
educativo, na dimensão que chamamos de fundamentos da educação.
Da mesma forma, é também muito importante conhecer sobre a
pesquisa em geral e sobre a pesquisa educacional, apropriando-nos
do conhecimento das formas de produzir mais conhecimentos.
Mesmo sendo preparado para atuar nos anos iniciais da
Educação Fundamental e na Educação Infantil, cabe ao licenciado em
FUNDAMENTOS DA DOCÊNCIA
44 Módulo 2 I Volume 6 EAD
Os saberes da docência
Pedagogia compreender que tal tipo de saber faz parte do conjunto
de saberes específicos de sua área de atuação profissional.
Conhecer a educação, portanto, como fenômeno humano e
as suas bases teóricas e práticas, é condição fundamental para a
construção da compreensão das ciências da educação.
4.2 Sobre a Prática Pedagógica
Para você, o que é a prática pedagógica? Como ela se
manifesta no dia a dia? Na escola, como se relacionam as múltiplas
dimensões da prática educativa (professor, aluno, conteúdos,
metodologia, avaliação, relação professor/aluno, concepção de
educação e de escola)? Conhecer as respostas para essas perguntas
é muito importante. Isto porque, a prática pedagógica, entendida
aqui como um conjunto organizado de ações educativas direcionadas
à aquisição de diferentes aprendizagens, é saber fundamental para o
desenvolvimento da atividade docente.
Como conjunto organizado de ações educativas, a prática
pedagógica faz parte de um processo social e de uma prática social
maior. Ela envolve a dimensão educativa não apenas na esfera escolar,
mas na dinâmica das relações sociais que produzem aprendizagens.
Na nossa sociedade, é comum ao falarmos de prática que
as pessoas a entendam como oposição à teoria. Entretanto, a
prática pedagógica exige fundamentação teórica, pois uma prática
desprovida de consciência teórica é ação vazia. Da mesma forma, o
seu desenvolvimento exige intencionalidade, isto é, saber o porquê,
o para que e o como realizar a atividade educativa. Como afirma
Veiga (1992, p. 16) a prática pedagógica é “[...] uma prática social
orientada por objetivos, finalidades e conhecimentos, e inserida no
contexto da prática social”.
Intrinsecamente atrelado ao “por que” está o conceito de
educação, de mundo e de sociedade que o professor defenderá
no exercício de sua função. Isto porque, compreender a prática
pedagógica requer considerarmos as características marcantes da
sociedade que influenciam a realidade educacional. Desta forma,
para definirmos o porquê da realização e da concretização de uma
prática pedagógica, é preciso ter como ponto de partida os aspectos
da formação socioeconômica, cultural e ideológica da sociedade.
Ao “para que”, está relacionado o conceito de homem educado
e de conhecimento.
Permeado por todos esses conceitos, são escolhidos e
PARA REFLETIR
Todo o trabalho do pro-fessor, e todas as deci-sões éticas em relação ao seu trabalho, são guia-dos pelo que ele acredita (mesmo que não tenha consciência disso) ser a educação e, consequen-temente, o que é um ser humano educado.
45PedagogiaUESC
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nida
de
SAIBA MAIS
selecionados os meios de efetivação da prática pedagógica, o “como”,
ou seja, a expressão das decisões rotineiras do cotidiano educativo
(estejamos em ambiente escolar ou não).
A prática pedagógica é, portanto, multidimensionada. Além
das dimensões de concepção de educação, sociedade e homem,
também estão as dimensões do professor, do aluno, da metodologia,
da avaliação e da relação professor e alunos.
Tendo esses conceitos claramente definidos, podemos,
portanto, falar que o professor tem uma teoria, isto é, é capaz de
antecipar mentalmente e de forma intencional a sua prática docente.
Além disso, é capaz também de materializar essa antecipação em
forma de planejamento. Assim, planejar também é saber necessário
ao trabalho docente.
O planejamento é importante não como uma das exigências
impostas pela atual política de organização da educação brasileira,
mas porque ele traduz a compreensão que um grupo de docentes tem
do seu trabalho e do que esperam alcançar a partir de sua realização.
Traduz a concepção de seres humanos, das relações necessárias
entre eles, de conhecimentos, de suas formas de produção e de
como devem ser trabalhados para que as novas gerações deles se
apropriem.
Nesta perspectiva, o planejamento se torna mais do que
uma atividade burocrática do trabalho docente e passa a ser a
materialização dos fundamentos e das ações da prática pedagógica.
São elementos do planejamento: os objetivos (educacionais
e de ensino), os conteúdos de ensino, a relação professor/aluno, a
metodologia de ensino e a avaliação (educacional e de ensino).
4.3 Sobre a Escola
A escola, desde as suas origens, foi organizada a partir de
sua possibilidade de garantir às novas gerações a apropriação de
conhecimentos e dos valores de cada época, tornando-se, portanto,
um espaço de formação de gerações.
Na nossa época, na qual a luta pela universalização do
ensino ganhou hegemonia e a escola deixou de ser encarada como
um privilégio e passou a ser defendida como um direito de todos,
os conhecimentos e os valores a serem apropriados pelas novas
gerações precisaram ser questionados e dimensionados a partir de
suas condições de classes sociais e de interesses de manutenção (ou
não) da ideologia de um tempo histórico.
Vale a pena relembrar que a especificidade do trabalho docente é a de socializar os conhecimen-tos elaborados historica-mente pela humanidade. Para tanto, o professor precisará: dominar estes conhecimentos tanto no seu conteúdo quanto na sua forma de produção; saber transformar estes conhecimentos em saber escolar, isto é, adequar quantidade e abordagem ao aluno; e precisará saber como irá mediar a sua socialização, con-siderando tanto a natu-reza do conhecimento a ser aprendido quanto as especificidades dos seus alunos.
VOCÊ SABIA?
Foi, em 1549, que surgiu a primeira escola no Bra-sil, em Salvador, fundada por um grupo de jesuítas. Foi este mesmo grupo que fundou também a se-gunda escola brasileira, em 1554, em São Paulo. A data marca também a fundação da cidade. Na cartilha do professor constava: ensinar a ler, escrever, fazer cálculos de matemática e apren-der a doutrina católica.
FUNDAMENTOS DA DOCÊNCIA
46 Módulo 2 I Volume 6 EAD
Os saberes da docência
Para Sacristán (1999), as características da sociedade
influenciam no tipo de escola, sendo essa, portanto, uma instituição
que atenderá a um modelo de vida e a uma hierarquia de valores de
determinado tipo de sociedade, não sendo, por isso, desprovida de
significados ‘desinteressados’.
Entretanto, a escola, mesmo se percebendo determinada,
precisa se tornar autônoma, relacionando-se dialeticamente com a
sociedade, o Estado e os interesses econômicos de mercado. Para
ser agente de transformação, e não apenas de manutenção, a escola,
sem perder a sua condição de espaço de conhecimento, precisa ser
encarada como um tempo de formação crítica, de realização humana:
Neste contexto de impregnação do conhecimento, cabe à escola: amar o conhecimento como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento cultural; selecionar e rever criticamente a informação; formular hipóteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser provocadora de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e reconstruir conhecimento elaborado (GADOTTI, 2000, p. 8).
Essa escola, ainda segundo Gadotti (2000, p. 7), precisa
ser “ao mesmo tempo, pública quanto ao seu destino – isto é, para
todos – estatal quanto ao financiamento e democrática e comunitária
quanto à sua gestão”.
Para tanto, o professor, como elemento essencial para a
efetivação do papel da escola, deve conhecer sua função e o seu
papel social. Deve conhecer as dinâmicas próprias da escola e as
relações que se estabelecem dentro dela. Além disso, é preciso que
ele perceba que as decisões não podem ser tomadas isoladamente,
pois somente no coletivo é que o seu trabalho pode se efetivar.
E por ser um trabalho que só pode se efetivar no coletivo é que
as relações dentro da escola e no seu entorno são tão importantes.
Relações essas construídas sob o princípio da democracia e da ação
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nida
de
RESUMINDO
comunitária.
Nesta unidade, você viu que o campo dos saberes da docência está
longe de ser algo fácil e foram criadas várias tipologias para tentar enquadrá-
los.
Viu, também, que dois autores brasileiros, sem desconsiderar o processo
histórico do qual a docência faz parte, elaboraram estudos sobre os quais seriam
os saberes necessários ao trabalho do professor. Paulo Freire, em seu livro
“Pedagogia da Autonomia” (1996) e Selma Garrido Pimenta com os três tipos de
saberes docentes: (1) os saberes específicos, (2) os saberes pedagógicos e (3)
os saberes da experiência.
Por fim, aprendeu que, no curso de Pedagogia, esses saberes precisam
ser construídos a partir do conhecimento de três dimensões: a educação, a
DESAFIOS
prática pedagógica e a escola.
Desafio 1 – Escolha um(a) professor(a) de sua cidade que tenha mais de 10 anos de
experiência e faça com ele/ela a seguinte entrevista:
(1) Como foi o seu início de carreira?
(2) Quais as principais dificuldades que enfrentou?
(3) Como recorda de ter superado estas dificuldades?
(4) Qual deve ser o papel da escola junto ao professor inexperiente?
(5) Como aprendeu a ser professor(a)?
Desafio 2 – Agora que já tem as respostas, compare-as com o que estudou nesta unidade
e relacione quais são os saberes necessários a todos os docentes, independentemente
de sua área de conhecimento ou nível de ensino em que atua.
Desafio 3 – Faça uma visita a uma escola dos anos iniciais do Ensino Fundamental e
solicite o seu Projeto Pedagógico. Identifique no documento:
(1) Qual a concepção de educação defendida.
(2) Qual a concepção de aprendizagem e de aluno.
(3) Como está organizado o tempo (físico e pedagógico) da escola.
(4) Como são definidos os papéis de cada um na comunidade escolar.
Converse com o(a) coordenador(a) pedagógico(a) ou o(a) diretor(a) da escola a respeito
dos pontos que você destacou. Com a autorização dos mesmos, registre a conversa e
aproveite para tirar as suas dúvidas. Aproveite também para saber como foi elaborado
o referido documento.
FUNDAMENTOS DA DOCÊNCIA
48 Módulo 2 I Volume 6 EAD
Os saberes da docência
RE
FE
RÊ
NC
IAS
ALVES, Wanderson Ferreira. A formação de professores e as teorias do saber docente: contextos, dúvidas e desafios. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.2, p. 263-280, maio/ago. 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Autores Associados, 1996.
GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, n. 14 (2), p. 3-11, 2000.
PIMENTA, Selma Garrido. Formação de professores - saberes da docência e identidade do professor. In _____. (Org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 1999.
SACRISTÁN, J. G. Poderes instáveis em educação. Porto Alegre: Artmed, 1999.
TARDIF, Mauricie; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Revista Educação e Sociedade, São
Paulo, n. 73, p. 209-244, dez. 2000.
LEITURAS NECESSÁRIAS
BORGES, C. Saberes docentes: diferentes tipologias e classificações de um campo de pesquisa. Educação & Sociedade. Dossiê: Os saberes dos docentes e sua formação. Campinas: Cedes, n. 74, Ano XXII, p. 11-26, abr., 2001.
TARDIF, M.; LESSARD, C.; LAHAYE, L. Esboço de uma problemática do saber docente. Teoria & Educação. v. 1, n. 4, p. 215-253, 1991.
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Suas anotações
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